a entrevista que drummond (nÃo) deu para o pasquim

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O jornalista Sérgio Cabral, no ano de 1971, montou esta entrevista partindo de fragmentos da obra do Drummond, que se recusou com muita simpatia a ser entrevistado pelo Pasquim. As negociações sem sucesso para a entrevista também integram o documento. Coisa rara e hilária, agrada aos fãs do Pasquim e do Drummond, um momento genial do Jornalista Sérgio Cabral. Histórico.Talita.

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Entrevistar Carlos Drummond de Andrade foi uma proeza que o PASQUIM não conseguiu.

No tempo em que era editor do jornal cheguei a publicar essa dica:

“Ilmo. Sr. Poeta Carlos Drummond de Andrade, pela presente dica, suplico ao senhor a gentileza de conceder uma entrevista ao PASQUIM. Sei que o senhor não tolera dar entrevistas, mas a gente gostaria muito de fazê-la. Dá pé? Diz que dá pé, poeta.

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Aguardando uma resposta favorável, subscrevo-me, atenciosamente em nome da patota. – (Sérgio Cabral)”

No dia 21 de junho de 1971, em sua coluna no Jornal do Brasil, Drummond respondeu com essa nota:

“Prezado Sérgio Cabral, há mais de 50 anos não tenho feito outra coisa na vida senão dar entrevistas: em verso, em crônica, em carta, em papo. O que penso, o que sinto, o que imagino, o que me dói, me alegra, me aborrece, tudo está dito e contado por este auto contador incorrigível. E você ainda quer que repita o repeteco, bicho? Como leitor do PASQUIM, não quero que ele publique matéria gasta. Um abraço à patota.”

Diante da resposta, fui aos lugares onde ele contou as coisas e montei essa entrevista, procurando também reproduzir o estilo dos entrevistadores da época do PASQUIM. Tempos depois encontrei Drummond num jantar em homenagem aos 70 anos de Prudente de Moraes, neto, e ele me cumprimentou assim: - Como vai o meu entrevistador?

Tive a alegre sensação de que gostou.

Sérgio Cabral – Desde que o PASQUIM nasceu que a gente está tentando fazer uma entrevista com o senhor. No entanto, o senhor não nos atendeu. A

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gente sabe que o senhor nunca deu uma entrevista. Mas, pra gente, pô, devia dar. Por que sempre fugiu?

Carlos Drummond de Andrade – A idéia de fuga tem sido alvo de crítica severa e indiscriminada nos últimos anos, como se fosse ignominioso, por exemplo, fugir de um perigo, de um sofrimento, de uma caceteação.

Jaguar – Mas por que esse negócio com O Pasquim? Por que ele é um jornal prafrentex que aponta para o futuro?

Drummond – Não serei o poeta de um mundo caduco.

Flávio Rangel – Então dá a entrevista pro Pasquim, pô.

Drummond – Também não cantarei o mundo futuro.

Ziraldo – Então qual é o seu caso?Drummond – O tempo é a minha matéria, o

tempo presente, os homens presentes, a vida presente.

Millôr Fernandes – Eu disse algumas vezes aqui no Pasquim que a música é uma atividade menor em relação, por exemplo, à literatura. Agora, eu soube que você reclama uma crítica mais profunda à poesia, reconhecendo, inclusive, que a música tem uma critica mais rigorosa.

Drummond – Infelizmente, exige-se pouco do nosso poeta; do que se reclama ao pintor, ao músico, ao romancista.

Millôr – Explica isso melhor.

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Drummond – Entendo que a poesia é negócio de grande responsabilidade e não considero honesto rotular-se de poeta quem apenas verseja por dor-de-cotovelo, falta de dinheiro ou momentânea tomada de contato com as forças líricas do mundo, sem se entregar aos trabalhos cotidianos e secretos da técnica, sem leitura, da contemplação e mesmo da ação. Até os poetas se armam, e um poeta desarmado é, mesmo, um ser a mercê de inspirações fáceis, dócil às modas e compromissos.

Paulo Garcez – O homem é um tremendo profissional.

Drummond – Meu processo é lentíssimo, componho muito pouco, não me julgo substancialmente e permanentemente poeta.

Sérgio – Quer dizer que não é mole ser poeta, não é?

Drummond – Eu sustento que o pior literato de 20 anos ainda é um homem maravilhoso. Eu o invejo, o amo e o respeito, absolutamente sem crítica.

Miguel Paiva – A lenda que corre por aí é que o senhor não gosta muito de ajudar os novos.

Drummond – No Brasil, a glória começa com a violação do sigilo espistolar. Lemos amanhã nos jornais a carta que mandamos hoje ao moço escritor.

Fortuna – No Rio, a glória termina no Russel e termina no Flamengo.

Millôr – Na sua resposta ao Maciel, você cortejou os jovens de 20 anos. Mas em cima de mim

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esse negócio não pega, não. Fala mesmo o que vocÊ pensa do intelectual de 20 anos.

Drummond – Vinte anos é uma bela idade, mas tem o inconveniente de não se dar a conhecer senão depois que a perdemos. Para quem chega aos 50 anos, não há tempo mais doce; quando se tem 20 anos, é um inferno. A alma não se encontrou ainda, mas julga haver-se reconhecido. Tudo é triste e velho não há esperança nem ingenuidade. É impossível ser otimista quando não houve sofrimento nem foi avaliado o preço da vida. A mocidade nutre-se de equívocos e, às vezes, chega a morrer deles. Exemplo: Álvares de Azevedo.

Ziraldo – Mas é disso que nós vivemos. O intelectual tem que ser permanentemente perplexo e se nutrir de equívocos. Quer dizer o senhor acha que o cara tem que ser quadradão pra dar certo?

Drummond – Sabe-se o que há de perigoso na literatura em uma conduta exemplar; o perigo é tão positivo como o dia da falta de conduta. De bons sentimentos não germinam obrigatoriamente bons versos.

Carlos Leonam – Estou tentando falar desde o início da entrevista e não consigo. Agora já perdi a primeira pergunta. Mas o Miguel Paiva falou um troço que eu gostaria de insistir. É sobre sua falta de paciência com os novos, Eu li uma vez no Correio da Manhã uma poesia sua tratando do assunto. Se um jovem levar pro senhor uma poesia ou um romance como é que o senhor reage?

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Drummond – Ah, não tragam originais para ler, para corrigir, para louvar. Sobretudo para louvar. Não sou leitor do mundo nem espelho das figuras que amam refletir-se no outro, a falta de retrato interior. Sou velho cansado que adora o seu cansaço e não o quer submisso ao vão comércio da palavra.

Chico Júnior – O senhor se chateia assim, é? Estava pensando em levar pro senhor os originais das Memórias do Madame Satã que estou escrevendo para o Pasquim agora desisti. O homem é uma fera.

Drummond – Respeitem a fera, triste, sem presas, é fera.

Ziraldo – O senhor sabe que de vez em quando sou procurado por colegiais que querem saber a minha biografia. Eles vão lá em casa, vêm aqui no Pasquim. Eu não agüento mais parar meu trabalho lá em casa para atender os garotos, embora goste muito disso. Tanto é que Nelma aqui no Pasquim é quem está quebrando o galho pra mim. O senhor como é que reage?

Drummond – Vocês, garotos de colégio, não perguntem ao poeta quando nasceu. Ele não nasceu. Não vai nascer mais.

Ivan Lessa – E as entrevistas?Drummond – Repórteres de vespertinos, não

tentem entrevistá-lo. Não lhe, não me peçam opinião, que é impublicável qualquer que seja o fato do dia.

Fortuna – Então, o que é que o senhor quer?

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Drummond – Quero a paz da estepes, a paz dos descampados, a paz do Pico de Itabira quando havia o Pico de Itabira, a paz de cima das Agulhas Negras, a paz de muito abaixo da mina mais funda e esboroada de Morro Velho. A paz da paz.

Jaguar – Eu também. Meu caso é ir pra Arraial do Cabo e ficar lá a vida toda.

Ziraldo – Por falar em Arraial do Cabo, Caratinga já teve a honra de aparecer na sua poesia, não foi, seu Drummond? Como que é a poesia mesmo?

Drummond – Uma namorada em cada município,os municípios mineiros são duzentos e quinzemas o verdadeiro amor onde se esconderá:em Varginha, Espinosa ou Caratinga? Sérgio Augusto – Pelo que tenho lido em suas crônicas, o senhor não é muito de ir ao cinema. Pelo menos não escreve muito sobre o assunto. Mas eu sei que o senhor é um grande admirador de Carlitos, para o qual escreveu um poema lindíssimo, Canto ao Homem do povo Charles Chaplin. Gostaria que o senhor falasse sobre isso.

Drummond – Dignidade da boca, aberta em ira justa e amor profundo, crispação do ser humano, árvore irritada, contra a miséria e a fúria dos ditadores, ó Carlitos, meu e nosso amigo, teus sapatos e teu bigode caminham numa estrada de fé e de esperança.

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Garcez – Engraçado, ainda não falaram assim do Jece Valadão.

Jaguar – Mas o Millôr Fernandes ganhou uma poesia de Carlos Drummond de Andrade. Só que naquele tempo o Millôr assinava Vão Gôgo n’o O Cruzeiro.

Drummond – Vão Gôgo faz ouvir ao surdoa alegre música do absurdo. Ele mostra a cara da gentecomo é, de fato: inteiramente demissionária de nós mesmos.serão jóias, serão torresmosem nossos tipos anfibólicosVão Gôgo ensina tanta cousaque nossa prudência não ousaaprender, e leva na flauta(vôo cego, não o aeronauta).Liberta-nos o riso, mas...Há algo preso em Alcatraz.

Miguel – Não sei se o senhor sabe, mas há uma certa área que o considera um conservador. O que é que o senhor acha disso?

Drummond – Quando nasci um anjo torto, desses que vivem na sombra, disse: Vai, Carlos, ser gauche na vida.

Millôr – Isso você disse numa certa época da sua vida. Depois sua posição mudou um pouco. Pelo menos, ficou um combatente mais ameno.

Drummond – Não posso acreditar que transformada a ordem social e econômica, a vida

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assuma aspectos idílicos de fácil intercompreensão e o indivíduo sinta desvanecida a sua complexidade. Alguma coisa excede o econômico, e essa coisa é a própria capacidade de organizar o econômico, tanto como a de suplantá-la.

Fortuna – E o senhor pensa o que desses caras que atacam o senhor pela sua posição?

Drummond – Que metro serve para medir-nos?Flávio – O Drummond é bem claro na sua obra.Drummond – Eu preparo uma canção que faça

acordar os homens e adormecer as crianças.Sérgio – Mas concretamente o que é que o

senhor fez pelo homem brasileiro?Drummond – tenho apenas duas mãos e o

sentimento do mundo.Ziraldo – O desejo de qualquer intelectual, de

qualquer artista, de qualquer homem é modificar alguma coisa.

Drummond – Mas há uma hora em que os bares se fecham e todas as virtudes se negam.

Leonam – Mas se o senhor fosse Presidente da República o que é que faria?

Drummond – Fosse eu Rei do Mundo, baixava uma lei: mãe não morre nunca. Mãe ficará sempre junto do seu filho.

Miguel – Freud explica.Maciel – Vamos falar de religião. Tenho a

impressão de que a ausência entre nós de um pensamento religioso qualificado, o descobrimento das fontes orientais do pensamento religioso, etc.

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favoreceu em larga escala a adesão fácil às fantasias da teosofia.

Drummond – O misticismo constitui um dos recursos mais sutis de que lança mão o solitário para evadir-se da sua regra. O místico não está só, pois tem comunicação pessoal e direta com a divindade. Está mesmo demasiadamente cheio da sociedade, pois se liga a todos os homens através de Deus, realizando uma comunhão que nenhum contato repugnante ou simplesmente incômodo virá comprometer. O místico é um falso solitário.

Maciel – Concordando que o místico esteja cheio da sociedade.

Drummond – A solidão é niilista. Penso numa solidão total e secreta, de que a vida moderna parece guardar a fórmula, pois para senti-la não é preciso fugir para Goiás ou às cavernas. No formigamento das grandes cidades, entre o ronco dos motores e o barulho dos pés e das vozes, o homem pode ser invadido bruscamente por uma terrível solidão, que o paralisa e o priva de qualquer sentimento de fraternidade ou temor. Um desligamento absoluto de todo o compromisso liberta e ao mesmo tempo oprime a personalidade. Desta solidão está cheia a vida de hoje, e a instabilidade nervosa do nosso tempo poderá explicar o fenômeno de um ponto de vista científico; mas, poeticamente, qualquer explicação é desnecessária, tão sensível e paradoxalmente contagiosa é esta espécie de soledade.

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Sérgio – O senhor não falou ainda da sua cidade, Itabira.

Drummond – Declaro que nasci em Itabira, no ano de 1902, filho de pais burgueses, que me criaram no temor de Deus.

Sérgio Augusto – Como é que o senhor viu, ainda jovem, a I Guerra Mundial?

Drummond – Ao sair do grupo escolar, tomei parte na guerra européia (pesa me dizê-lo) ao lado dos alemães. Quando o primeiro navio mercante brasileiro foi torpedeado, tive que retificar a minha posição. A esse tempo já conhecia os padres alemães do Verbo Divino (rápida passagem pelo Colégio Arnaldo em Belo Horizonte).

Leonam – Por falar nisso, o que é que o senhor acha de Belo Horizonte?

Drummond – A menos interessante das cidades mineiras; menos interessante do que qualquer estaçãozinha de estrada de ferro, perdida no mato, onde o trem não pára.

Ziraldo – Vamos organizar esta entrevista. O senhor estava comentando que passou pelo Colégio Arnaldo. Eu sei que o depois o senhor foi estudar em Friburgo, no estado do Rio.

Drummond – Dois anos em Friburgo, com os jesuítas. Primeiro aluno da classe, é verdade que mais velho que a maioria dos colegas, comportava-me como um anjo, tinha saudade das famílias e de todos os bons sentimentos, mas expulsaram-me por “insubordinação mental”. O bom reitor que me

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fulminou com essa sentença condenatória morreu, alguns anos depois, num desastre de bonde na Rua São Clemente.

Voz não identificada – Bem feito.Ziraldo – Não fale assim, rapaz.Millôr – Ziraldo, agora você é que está

atrapalhando. Drummond. Essa expulsão lhe causou algum problema de cuca?

Drummond – A saída brusca do colégio teve influência enorme no desenvolvimento dos meus estudos e de toda minha vida. Perdi a fé. Perdi tempo. E sobretudo, perdi a confiança na justiça dos que julgavam.

Flávio – Não ganhou nada?Drummond – Ganhei a vida e fiz alguns

amigos inesquecíveis.Jaguar – Continua.Drummond – Casado, fui lecionar no interior.

Voltei a Belo Horizonte como redator de jornais oficiais e oficiosos. Mário Casassanta levou-me para a burocracia, de que tenho tirado meu sustento. De repente, a vida começou a impor-se, a desafiar-me com seus pontos de interrogação, que se desmanchavam para dar lugar a outros. Eu liquidava alguns, mas apareciam novos.

Sérgio – Qual foi o seu primeiro livro publicado?

Drummond – Meu primeiro livro, Alguma Poesia (1930), traduz uma grande inexperiência do

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sofrimento e uma deleitação ingênua com o próprio indivíduo.

Maciel – Isso continuou no seu segundo livro?Drummond – Já em Brejo das Almas (1934),

alguma coisa se compôs, se organizou; o individualismo será mais exacerbado mas há também uma consciência crescente de sua precariedade e uma desaprovação tácita da conduta (ou falta de conduta) espiritual do autor. Penso ter resolvido as contradições elementares de minha poesia num terceiro volume, Sentimento do Mundo (1940). Só as elementares: meu progresso é lentíssimo.

Sérgio Augusto – O senhor também tentou ser ator quando era garoto em Minas Gerais, não foi?

Drummond – Eu aprendia tudo quem me ensinavam de geografia, história, maneira de assentar e comer, não meter (em público) o dedo no nariz, etc, mas não conseguia ser bom ator. Fui péssimo.

Jaguar – O senhor acredita, como dizem alguns, que a poesia já era?

Drummond – A poesia está viva, e sua luz, de tão fulgurante, algumas vezes torna-se incômoda.

Leonam – O senhor falou que aprendia tudo de geografia, história, etc. Qual foi o melhor professor que o senhor já conheceu?

Drummond – Mário de Andrade, cem por cento professor, o melhor professor que já conheci, embora nunca lhe ouvisse uma aula.

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Millôr – Ao contrário de você que detesta ler originais dos jovens desconhecidos, Mário de Andrade se interessava muito pelos escritores que surgiam. Na sua casa de São Paulo ele recebia originais de todo Brasil e respondia sempre com uma carta elogiando ou esculhambando. Eu sei por exemplo que você mesmo escrevia pra ele lá de Belo Horizonte. Você e muitos escritores da sua geração. Como é que vocês respondiam às cartas de Mário de Andrade?

Drummond – As cartas de Mário de Andrade ficaram constituindo o acontecimento mais formidável da nossa vida intelectual belo-horizontina. Eram torpedos de pontaria infalível. Depois de recebê-las ficávamos diferentes no sentido de mais ricos ou mais lúcidos. Quase sempre ele nos matava ilusões, e a morte era tão completa que só podia deixar-nos ofendidos e infelizes. Então reagíamos com injustiças, tolices, o que viesse de momento ao coração envinagrado. Mário recebia sorrindo essas tolices, mostrava que eram simplesmente tolices e ficávamos mais amigos.

Sérgio – Mário de Andrade foi um cara muito importante na Semana de Arte Moderna de 1922, coisa e tal e foi, na minha opinião, um dos maiores intelectuais brasileiros de todos os tempos, no sentido de que conhecia profundamente vários tipos de atividades cultural, era um criador e um crítico como poucos, um revolucionário, coisa e tal. Quando penso numa comparação com ele o único

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nome que me ocorre é o Ferreira Gullar, além de Monteiro Lobato, este mais limitado naquele sentido de que te falei antes. Mas todos os três foram sobretudo militantes. Falei pra chuchu e ainda não fiz a pergunta. É o seguinte: quem mais dos modernistas impressionou ao senhor?

Drummond – Oswald de Andrade: não houve no modernismo personagem mais vivo do que ele.

Fortuna – Na entrevista que deu ao Pasquim, Eneida colocou o senhor entre os maiores amigos dela. Pouco depois ela morreu.

Drummond – Do lado esquerdo carrego meus mortos. Por isso caminho um pouco de banda.

Jaguar – O senhor tem uma quadrinha pra ela.Drummond - Enquanto uma

cigarra zine no ouro da tarde que desmaia fitas o rosto de Lenine com o longo olhar de Krupskaia.

Ziraldo – Outro grande amigo seu foi Manuel Bandeira, não foi?

Drummond – Ontem, hoje, amanhã: a vida inteira teu nome é para nós, Manuel,

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bandeira.

Maciel – O senhor tem alguma poesia sobre a Bahia?

Drummond – É preciso fazer um poema sobre a Bahia. Mas eu nunca fui lá.

Ziraldo – Mas deixa eu fazer minha pergunta: se o senhor ganhasse na Loteria Esportiva o que é que faria com aquela grana toda?

Drummond – Compraria uma ilha; não muito longe do litoral, que o litoral faz falta; nem tão perto, também, que de lá eu possa aspirar a fumaça e a graxa do porto. Para esta ilha sóbria não se levará bíblia nem se carregarão discos. Algum amigo que saiba contar histórias está naturalmente convidado. Bem como alguma amiga de voz doce ou quente, que não abuse muito dessa prenda. Haverá pedras à mão – cascalho miúdo – que se possa lançar ao céu, a título de advertência quando determinada arte puser em perigo o ruminar bucólico da ilha. Não vejo inconveniente na entrada sub-reptícia de jornais. Servem para embrulho, e nas costas do noticiário político ou esportivo há sempre um anúncio de filme em reprise, invocativo, ou qualquer vaga menção a algum vago evento que, por obscuro mecanismo, desperte em nós profundas e gratas emoções retrospectivas.

Flávio – Voltando àquele negócio do princípio, o problema das entrevistas. O senhor não acha que as entrevistas ajudam um pouco a posteridade?

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Drummond – Muitos escritores organizam eles mesmos a posteridade, explicando-se, confessando-se, coroando-se. Não chegam à perfeição de se atacar, mas no íntimo, desejariam fazê-lo.

Leonam – O senhor lê o Pasquim?Drummond – É melhor sorrir (sorri

gravemente).Sérgio – Sabe que tem gente que acha o

Pasquim pornográfico?Drummond – Oh! Sejamos pornográficos

(docemente pornográficos). Por que seremos mais castos que o nosso avô português?

Millôr – Drummond, você tem algum vício?Drummond – Meu verso é minha consolação.

Meu verso é minha cachaça. Todo mundo tem a sua cachaça.

Flávio – E mais nada?Drummond – Perdi o bonde e a esperança.Ziraldo – Quer dizer que há esperança? Drummond – Meus olhos são pequenos para

ver países mutilados como troncos, proibidos de viver, mas em que a vida lateja subterrânea e vingadora.

Millôr – É a apologia dos heróis.Sérgio – O senhor teme ser superado por um

novo movimento de poesia moderna?Drummond – Como ficou chato ser moderno,

agora serei eterno.Leonam – O senhor faz versos sobre tudo o que

vê ou que faz?

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Drummond – Não faço versos sobre acontecimentos. Não há criação nem morte perante a poesia.

Ziraldo – Vários trabalhos seus em prosa e poesia falam de Ouro Preto, Sabará, Congonhas, aquelas cidades por onde o Aleijadinho andou, o que é que o senhor acha dele?

Drummond – Esse mulato de gênio lavou na pedra sabão todos os nossos pecados.

Garcez – Menos os dele.Sérgio – Eu soube que o senhor detesta

literatura infantil.Drummond – O gênero “literatura infantil”

tem, a meu ver, existência duvidosa. Haverá música infantil? pintura infantil?

Sérgio – O senhor fala muito em si próprio na sua obra, se confessa muito. O senhor acha importante esse comportamento em todos os escritores?

Drummond – Não aprovo as mulheres que cantam em poesia o ser próprio corpo, relatando-nos suas delícias e comodidades. Elas se oferecem indistintivamente a cada leitor do livro ou jornal, na rua ou na biblioteca. Mas suponho que se recusariam a esse mesmo leitor que, de livro ou jornal em punho, as procurasse para a consumação do ato sugerido ou proposto literariamente.

Ziraldo – Há vários gênero de poema, existe até o poema bíblico.

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Drummond – Sim, é verdade, há poetas bíblicos, mas quando chega a hora mosaica prefiro ler diretamente a Bíblia.

Jaguar – O senhor está a par de alguma revolução literária que esteja acontecendo ou para acontecer no Brasil? Um negócio assim como a semana de arte moderna.

Drummond – Nossas revoluções são bem maiores do que quaisquer outras; nossos erros também.

Leonam – Mas a gente pode acompanhar pelo menos o que se está passando na Europa, por exemplo, não é?

Drummond – Um sábio declarou a O Jornal que ainda falta muito para atingirmos um nível razoável de cultura. Mas, até lá, felizmente, eu estarei morto.

Flávio – Como era sua infância em Itabira?Drummond – Meu pai montava a cavalo, ia

para o campo. Minha mãe ficava sentada cosendo. Meu irmão pequeno dormia. Eu sozinho, menino entre mangueiras, lia a história de Robinson Crusoé.

Sérgio Augusto – O senhor era rico?Drummond – Tive ouro, tive gado, tive

fazendas. Hoje sou funcionário público. Itabira é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói!

Millôr – Você teve apenas uma filha, não é?Drummond – O filho que não fiz hoje seria

homem. Ele corre na brisa, sem carne, sem nome.

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Flávio – O senhor conhece um caso de fixação em mulher como o de Di Cavalcanti? Talvez se lhe compara (gostaram do se lhe?) o Vinícius de Moraes.

Drummond – Multiamante, Di Cavalcanti fez pacto com a mulher.

Sérgio – Quais sãos as suas restrições à Academia Brasileira de Letras?

Drummond – É inteiramente vinculada a um padrão já há muito sabido.

Sérgio Augusto – O senhor ainda tem algum vínculo com Itabira?

Drummond – Uma rua começa em Itabira que vai dar no meu coração. Nesta rua passam meus pais, meus tios, a preta que me criou.

Ziraldo – O senhor tem medo? Por exemplo: o senhor tem medo da bomba atômica?

Drummond – A bomba tem 50 megatons de algidez por 85 de ignomínia. A bomba não destruirá a vida. O homem (tenho esperança) liquidará a bomba.

Fortuna – O senhor tem outras preocupações?Drummond – Minha poesia deste momento

inunda minha vida inteira.Ziraldo – Há algo em sua vida que o senhor

jamais esqueceu nem esquecerá?Drummond – Nunca esquecerei que no meio

do caminho tinha uma pedra.