drummond - testemunho da experiência humana

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Drummond - Testemunho da experiência humana

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  • ISBil ~~l1l1111I ll ii O- 9 788561 467104

    ~ 75 FUNDACO .

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    -~ PETROBRAS

    Associao dos Amigos da Casa de Rui Barbosa rfcRB

    MINIST~RIO DA CULTURA

    o u D::: o 1-lfl :r: LLI ::i d

  • O Almanaque Drummond, testemunho do expe-

    rincia humano e o Guio do Professor que o acom-

    panha vm trazer ao pblico uma face menos co-

    nhecida do grande poeta mineiro - a do cronista,

    que se mostra sob a perspectiva do investigador do

    cotidiano e da existncia humana. Contudo, a poesia

    tambm atravessa as pginas deste trabalho, como

    a anunciar que este mineiro indissocivel da sua

    condio dE poeta.

    O Almanaque est dividido em s ees, que tran-

    sitam basicamente pelas origens do poeta-cronista,

    seus trajetos e jornadas, sua relao com a vida lite-rria e poltica do pas, seu olhar sobre os aconteci-

    mentos do mundo e retratos de uma paisagem que

    acompanhou a longa vida de Carlos Drummond de

    Andrade. O Guio do Professor sugere leituras e ati-

    vidades para serem realizadas com alunos dos Ensi-

    nos Fundamental e Mdio, apontando caminhos de

    reflexo, porque no tem a pretenso de esgot-las.

    Assim, espera-se que o leitor tire proveito dessa

    investida no universo de um poeta cuja trajetria se confunde, em muitos aspectos, com os caminhos de

    um pas, em quase um sculo em que foram compa-

    nheiros de jornada.

  • DRUMMOND TESTEMUNHO A '

    DA EXPERIENCIA HUMANA

    Rosa Gens 1 Ana Crelia Dias 1 Manoel Santana 1 Martha Alkimin

    9 ~ FUNDAO

    -~ PETROBRAS

    ~ Associao dos Amigos da ~Casa de Rui Barbosa ~RB Mll

  • FUNDAO BANCO DO BRASIL Presidente Jorge Alfredo Streit

    Diretor Executivo de Desenvolvimento Social

    der Marcelo de Melo Diretor Executivo de Gesto de Pessoas, Controladoria e Logstica Dnis Corra

    Gerente de Educao e Cultura Marcos Fadanelli Ramos

    Assessoria tcnica Juliana Mary M. Ganimi Fontes

    ASSOCIAO DE AMIGOS DA CASA DE RUI BARBOSA Presidente Joo Maurcio de Arajo Vice-Presidente Irapoan Cavalcanti

    Diretor-tesoureiro Joo Aguiar Sobrinho

    Diretora Secretria Maria Augusta

    FUNDAO CASA DE RUI BARBOSA Presidente Jos Almino de Alencar e Silva Neto

    Diretora Executiva Rosalina Maria Fernandes Gouveia

    Diretora do Centro de Pesquisa Rachel Teixeira Valena

    D iretora do Centro de Memria e Informao Ana Maria Pessoa dos Santos

    Coordenador-Geral de Planejamento e Administrao Carlos Renato Costa Marinho

    C hefe do Arquivo-Museu de Literatura Brasileira Eduardo Coelho

    PETROBRAS Presidente .Jos Sergio Gabrielli de Azevedo

    Diretor de Comunicao vVilson Santarosa

    G-crentc de Patrocnio Ei.i::i. ne Costa

    Gerente de Patrocnio Cultural Tais Wohlrnulth Reis

    PRODUTORA CULTURAL Abnlvidco

    Co1lcepo e Texto /\na C reUa Dias J'\,lanoel Santana Martha Alkimin Rosa Gens

    Coordenao Geral Elizabete Braga

    Pesquisa Histrica Joo Camillo Penna

    Assistente de Pesquisa M ariana Qyadros

    Pesquisa Histrica e Iconogrfica Silvana.Jeha

    Pesquisa Iconogrfica Ana Crelia Dias Elizabete Braga Martha Alkimin M anoel Santana Rosa Gens

    Imagens de Arquivo Arquivo-Museu de Literatura Brasileira - FCRB Arquivo Nacional Arquivo Pblico Mineiro Biblioteca Jos e Guita Mindlin Casa de Lucio Costa Fundao Biblioteca Nacional Fundao Casa de Rui Barbosa Fundao Getulio Vargas Instituto de Estudos Brasileiros - USP Instituto Moreira Salles J ornai do Brasil Museu de Arte Moderna - RJ Museu de Valores do Banco Central Museu Histrico Ablio Barreto Secretaria de Turismo de Itabira

    Digitalizao e tratamento de imagens Trio Studio Fundao Casa de Rui Barbosa

    Reviso de Textos Cely Curado Ana Paula Belchor

    Projeto Grfico Ruth Freihof 1 Passaredo D esign Christiane Krmer

    Superviso Geral Ruy Godinho

    Imagem da capa e 4 capa: Arquivo Carlos Drummond de Andrade - AMLB/ FCRB

    D 795 Gens, Rosa.

    Drummond, testemunho da experincia humana / Rosa Gens .... [et ai.] . - Braslia: Abravideo, 2011. 104 p.: il.

    ISBN 978-85-61467-10-4

    1. Andrade, Carlos Drummond de. 2 . Poeta brasileiro. 3. Almanaque. I. Gens, Rosa. II. Ttulo.

    CDD B869.6

    - ----- ----- ------ - - - - ------ ----~

    Catalogao na fonte: C arolina Perdigo CRBl- 1898

  • SUMRIO Origem ........ ..................... ................ ........................ ............ .................................. 8

    Leituras de infncia e juventude ............................................ .. ...... ................ ....... 13 Aluno: Carlos Drummond de Andrade ......................................................... :~ ..... 19

    Crnica da vida ..................................... .... ........ ....... .... ..................... ...... .... ..... ..... 23

    "Itabira apenas um retrato na parede ... " ....................... ....................................... 24

    Percurso de vida, no Brasil ...... ........................ ............................. .. ................ ..... .. 32

    Belo Horizonte .......... ..... ............ ......... ........ ....... .... ..... ........ ............. ...... .... ....... ... 34

    O Modernismo ... .......... ............ ................................................................... ......... 38

    "No meio do caminho" ....... ........ .... ............... .... ............................ ................. ...... .42

    Rio de Janeiro .................. .............. ......... .... ... ........ ................. ... ......................... .48

    Viver a cidade .................. .... ...... ................. ..... ............... ........ .... ............ ... .... ...... 52

    Percursos no mundo .............. .............. ....... .................................. ....................... .56

    Olhadores de anncios ................................ ....... ........ .... ........ ........ .... .... ........ ...... 58

    O sentimento do mundo .. .. ..... .................... ....... ...................... ...... ... .............. ... .. 61

    Remetente: Carlos Drummond de Andrade .... .......... .. .... .... ...................... .. ... ..... 64

    Carlos Drummond de Andrade e o Estado Novo .. ........ .............. .............. .......... 67

    M quinas de escrever ... .......... ................. .... .... ... ... ...... ....................... ............ ...... 68

    Um Palcio ................. .... ........ ..... .... ............ ........... ..................... ............... .... ..... 70

    Drummond arquivista ... .................... ................................... .......................... ...... 72

    Em tempos de chumbo ............. .. ........ ... ..... .. ..... .... ........ .... .... ........ ... ..... .............. 74

    Msica, maestro! ..... .... ........ .... ........ ............. ....... ......... .... .... .... ..... ... .................... 76

    Amigo ouvinte! ............. ... ............. .. ....... ....... .... ........... .......... ....... ... .. .................. 78

    Braslia: "A cidade inventada" ..... ........... ..... ..... ............ ....... ............ ... ............. ... ... 80

    O Sabadoyle ............................. ..................... ............... .... ... ....... ... .. ........... ...... .... 84

    A ltima crnica .. ... ..... ............ .................. .. ..... ... ......... .... .... ..... .... .... .......... ........ 86

    Sabores e nostalgias ...... ...... ........... .. .............................. ................ ..... ... .............. 88

    As vrias faces da moeda brasileira ....... .... ............ ............................... .... ............. 90

    O que um cometa? .............................. ............. .......... ... ............. ...... ................. 92

    E agora, Drummond? ....... ..... ........ ..... ... ................ ....... ...... ....................... .......... 95

    Vida em imagens ........ ..... .... ....... .... ...... ............ ........... .... ................................ .... 98

    Elucidaes .......... .... .... ... ............. ......... ..... .... ... .. .. ............. .... .............. ......... ..... 100

    Referncias bibliogrficas ...... ...................... ..... ..... .. ................ .... .... ....... ..... ... .... 102

  • O Projeto Memria, em sua 13. edio, rende homenagem ao escritor Carlos Drummond de Andrade, poeta mximo de nosso pas. No intuito de torn-lo conhecido de um pblico cada vez maior, apresen ta um perfil menos visvel de sua obra, o de cronista, que se revela entrelaado ao de poeta.

    Ele viveu de 1902 a 1987. Qase todo o sculo XX transparece em sua obra, j que o poeta experimentou o longo tempo e tratou de colocar atos, fatos e reflexes no vigor de sua escrita. Sua atividade de composio literria foi contnua e intensa, e sua produo cronstica se estende por mais de sessenta anos (1921- 1984). Ao focalizar mo-mentos dessa produo, este almanaque se abre para o Brasil, e, em larga medida, para o mundo, permitindo a interpretao de aconteci-mentos a partir da perspectiva do escritor, que se torna reveladora de elementos por vezes pouco ntidos no percurso brasileiro. O testemu-nho do autor convida a partilhar a memria drummondiana, revisitar seus lugares, confront-los com o presente, possibilitando percepo crtica diversa e movimentos de pensar dinmicos e aprofundados. Retraar caminhos percorridos por D rummond, entender o impacto da pedra, visitar paisagens do Brasil, compreender o mundo e os mun-dos revelados pelo poeta so os desafios que este almanaque prope.

    Nosso olhar de leitor persegue o do poeta, assim como desejamos que o do leitor o siga, nessas "notcias humanas", em que se obser-vam grandes reflexes de cunho existencial e pequenas mincias do cotidiano. N elas, est presente a preocupao com o humano, que se afigura em estado de perigo, aliada tentativa de salvamento - do humano e da poesia.

    Resgatamos, em nosso percurso de escrita, traos caractersticos dos almanaques do incio do sculo XX. Neste, que ora apresentamos, h matria recreativa, humorstica, cientfica, literria e informativa. Sua construo empreendeu-se em vrias direes, o que permite, tam-bm, modos de leitura variados. O leitor pode seguir a linha da obra drummondiana, ou deixar-se levar por outras, que dela derivaram.

    Qe possa, assim, maneira dos an tigos almanaques, o favor do pblico facilitar a nossa tarefa, recebendo com en tusiasmo esta publicao e fazendo os textos de Carlos Drummond de Andrade circularem intensamente.

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    Que lembrana darei ao pas que me deu tudo que lembro e sei, tudo quanto senti?

    ) "Legado". Carlos Drummond de Andrade, Claro enigma

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    7

  • ORIGEM

    SIGNO: ESCORPIO O horscopo revela que a personalidade

    de Escorpio a essncia do Mistrio.

    Regente: gua

    Elemento: Marte 1

    .._ ___ J --- ----..,

    Nasceram tambm em 1902: Lcio Cos-ta, arquiteto (27 /02) 1 Srgio Buarque de Holanda, historiador, crtico da literatura e jornalista (11/07) 1 Juscelino Kubitschek, mdico e poltico (12/09).

    l Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira do Mato Dentro, Minas Gerais, em 31 de outubro de 1902. Foi o nono filho de Carlos de Paula Andrade, fazendeiro, e Julieta Augusta Drummond de Andrade.

    DRUMMOND O sobrenome Drummond tem origem

    escocesa. Em cltico, significa "costas", ligando-se ao naufrgio da frota comanda- ' da pelo Prncipe Maurcio, descendente de tila, o Rei dos Hunos. Foi ele o primeiro a se chamar Drummond. Drum - violen-ta, grande, e onde - onda.

    O poeta descende da famlia Carvalho Drummond, de linhagem da Ilha da Ma-deira. O tronco de I tabira apresenta grande ramificao na Zona do Carmo.

    O sobrenome Andrade geogrfico, lo-cativo, originrio. bastante comum no Brasil.

    DR\JM

    O nome Carlos tem origem germnica e significa "homem". Remete ao imperador Carlos Magno (sculos VIII e IX).

    Assinatura de Carlos Magno 1 Ilustrao

    8

  • Drummond criana, em montagem de foto feita por ele mesmo 1 Arquivo Carlos Drummond de Andrade - AMLB/FCRB

    ACONTECEU,

    EM 3 I DE OUTUBRO D E 1 902, DIA DE SO Ol.J1NT INO, UM ECLIPSE DO SOL.

    LUA TERRA

    Cone de sombra 0 1.1 Umbra Penumbra

    9

  • 10

    -ANDRA. DENon .Afinal ICJONA1uo que andrade~

    de olh . .Andrade , as alternas B. arvore

    / Ores plidas herrnafi-od ltas

    andrade , de se.me . corrego , nte grand igarap rb . e arroio . e

    1 eiro ri riacho andrade o corredeira

    rnorr0 povoado ilha

    perdidos n a geografia

    ' no sangue Carlos Dr

    urnrnond de And~ ---- ade, Bo1ternpo

    VAI, CARLOS! SER GAUCHENA VIDA.

    CARLOS Drummond, na estrofe inicial do poema que

    abre o seu primeiro livro,Alguma poesia (1930), apresenta Carlos, espcie de mscara que ao mesmo tempo ilumina e oculta a identidade do poeta:

    Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

    "Poema de sete faces"

  • Drummond aos 8 ano S 1 Arquivo Carlos O rummond d e Andrade - AMLB/FCRB

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    francesa e si.gni.fica "es-

    f\. pa\avra gauc e qudo". }lo po

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  • O livro Carlos Magno e os doze pares de Frana circulou no Brasil, no sculo XIX, e deixou marcas em nossa literatura popular. O folclorista e pesquisador cultural Lus da Cmara Cascudo o apon-tou como um dos livros mais populares do Brasil. um livro do povo, mesmo, que motivou muitas reescrituras, principalmente na literatura de cordel, e aparece em festas populares, como as cava-lhadas, que tomam por base torneios medievais e batalhas entre cristos e mouros.

    Carlos Drummond de Andrade afirma: "li a Histria de Carlos Magno e dos Doze Pares de Frana, em edio de capa vermelha da Livraria Garnier, que percorria o Brasil de Sul a Norte, e me lem-bro que no me interessou muito. Os heris de espavento nunca foram o meu fraco."

    "Leituras de garoto", Tempo, vida, poesia.

    O ENCANTO DA ILHA, OU ROBINSON CRUSO, DE DANIEL DEFOE

    O livro do escritor ingls data de 1719 e sua trama continua cati-vando leitores. A histria do nufrago que chega a uma ilha e deve, pouco a pouco, criar nela condies de vida reveste-se de interesse, atraindo a ateno para como se pode sobreviver. A grande aventu-ra da obra a da prpria sobrevivncia: como se alimentar, como se vestir, como se abrigar, custa de engenho e trabalho. E Robinson um solitrio, embora a ele se junte, mais tarde, seu companheiro Sexta-feira. A experincia de Carlos Drummond de Andrade, me-nino tmido e provinciano, filho de fazendeiro, se soma extraor-dinria aventura martima vivida em tempos antigos pelo nufrago Robinson Cruso. As duas do forma a um campo de ao, que, a partir da obra Sentimento de mundo at Novos poemas, ser povoado de maneira notvel pela poesia.

    13

  • LEITURAS DA MENINICE Drummond rememora, em crnica:

    A primeira reminiscncia de sentido liter-rio, que me acode, no propriamente de um texto de literatura, em verso ou prosa, mas de um personagem de romance. N o do romance em si, mas da figura projetada por ele. Porque o texto no era bem texto, era uma coleo de legendas a uma coleo de figuras, na verso iiifantil do Robinson Cruso, de Defoe, na revista O Tico-Tico, publicao da maior importncia na formao intelectual das crianas do comeo deste sculo. Creio que lhe devo minha primeira emoo literria, pois quando R obinson conseguiu se mandar da ilha, senti um n na garganta: eu queria que ele continuasse l o resto da vida, solitrio e dominador. .. E moo produzida por uma per-sonagem literria, um mito.

    - Mas voc o t ipo de caramujo, puxa! Ainda fedelho, ej sonhava com ilhas desertas.

    - No era bem a solido da ilha que me en-cantava no R obinson, era talvez, inconscien-temente, a sugesto potica.

    Pginas dos fascculos As aventuras de Robinson Cruso, em O Tico-Tico 1 Lucia Loeb/Biblioteca Jos e Guita Mindlin

  • E enfatiza no poema "Infncia", de Alguma poesia:

    M eu pai montava a cavalo, ia para o campo. Minha me ficava sentada cosendo. Meu irmo pequeno dormia. Eu sozinho menino entre mangueiras lia a comprida histria de Robinson Cruso, Comprida histria que no acaba mais.

    Para concluir:

    E eu que no sabia que minha histria Era mais bonita que a de Robinson Cruso.

    ............................................................. ..

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    ROMANCE OA Nlti:L DB roa

    Capa dos fascculos As aventuras de Robinson Cruso. em O Tico-Tico 1 Lucia Loeb/Biblioteca Jos e Guita Mindlin

    15

  • I e J

    Uma das leituras de Drummond na in-fncia foi a revista O Tico- Tico, que circulou no Brasil de 1905 a 1977. Era um peridico para crianas, inspirado em um suplemento jornalstico lanado em 1905 na Frana, por Henri Gautier, intitulado La Semaine de Su-zette, e destinado a meninas de 8 a 14 anos. A publicao brasileira no se restringia s me-ninas - tinha, entre seus leitores, crianas e adultos de ambos os sexos.

    Obras traduzidas e adaptadas para a revis-ta: As aventuras de Tom Sawyer, A ilha do te-souro, D om Quixote, Robinson Cruso.

    - _J O Tico-Tico era a nica revista dedicada s

    crianas brasileiras e lhes dava tudo: histrias, adivinhaes, prmios de dez mil ris, lies de coisas, pginas de armar e principalmente de aventuras.

    Carlos Drummond de Andrade

    16

    Personagens famosos em O Tico- Tico:

    Reco-Reco, Bolo e Azeitona _J ---

    .4.lmonuque 1 1 ~ [!]

    imsm~ 11mmlri ~ .

    Revista O Tico-Tico, 1941 1 Lucia Loeb/Biblioteca Jos e Guita Mindlin

  • Almanaque O Tico-Tico , 1958 1 Lucia Loeb/Biblioteca Jos e Guita Mind lin

    Livro histrico sobre o centenrio de O Tico-Tico , 2005 1 Lucia Loeb/Biblioteca Jos e Guita Mindlin

    Sees da revista: histrias infanto-juvenis, cartas dos leitores com fotos e desenhos, curiosida-des, adivinhas, informaes cientficas, artsticas, cvicas etc.

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  • O Elefante, 1983 1 Marcella Azal/Arquivo Carlos Drummond de Andrade - AMLB/FCRB

    Histria de dois amores, 1985 1 Marcella Azal/Arquivo Carlos Drummond de Andrade - AMLB/FCRB

    18

    Escrever para crianas?

    O pblico infantil conhece as crnicas drummondianas especial-mente por meio dos livros didticos. O poeta, entretanto, resistia, quando questionado sobre se fazia literatura infantil.

    O gnero Literatura Infantil tem a meu ver existncia duvidosa. H a-ver msica infantil? Pintura infantil? A partir de que ponto uma obra literria deixa de ser alimento para a alma de uma criana ou um jovem e se dirige ao esprito do adulto? Qual o bom livro para crianas que no seja lido com interesse pelo homem feito? { .. } Observados alguns cuida-dos de linguagem e decncia, a distino preconceituosa se desfaz . Ser a criana um ser parte? Ou ser a Literatura Infantil algo de mutilado, de reduzido, de desvitalizado - porque coisa primria, fabricada na persu-aso de que a imitao da irifncia a prpria infncia?

    Drummond, Confisses de Minas

    Andersen{ .. } talvez seja leitura mais para ho;nens do que para meninos: estes tm o maravilhoso em si, {..} enquanto;a,quelf},,_s fabricfm o maravi-lhoso,j no acreditam nele, e tm de refugiar-se )1-S mais ingnuas fices.

    '\ / Drummond, "O velho Andersen" - 5 de abril de 1955

  • ALUNO: CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

    Carlos Drummond de Andrade inicia seus estudos oficialmente em 1910, com pouco mais de sete anos - ingressa no Grupo Escolar Doutor Carvalho Brito onde inicia seu curso primrio.

    1 Secretaria de Turismo de ltabira/Museu de ltabira

  • 'Aula de francs de Mestre Emlio. ltabira, 191... " Legenda de Drummond 1 Arquivo Carlos Drummond de Andrade - AMLB/FCRB

    Colgio Arnaldo, em Belo Horizonte 1 Arquivo Pblico Mineiro

    20

  • FRUTA-FURTO

    Atrs do grupo-escolar ficam as jabuticabeiras. Estudar, a gente estuda. Mas depois, ei pessoal: furtar jabuticaba.

    Jabuticaba chupa-se no p. O furto exaure-se no ato de furtar. Conscincia mais leve do que asa ao descer, volto de mos vazias para casa.

    Drummond, Boitempo

    Em 1916, torna-se aluno do Colgio Arnaldo, em Belo Horizonte. Em 1918, ingressa, como aluno interno, no Colgio Anchieta, em Nova Friburgo (RJ), escola fun-

    dada por padres jesutas italianos no ano de 1886. Curiosamente, no ano - 1918 - que Drummond tem seu primeiro poema publicado pelo irmo

    Altivo no nico nmero do jornalzinho Maio. O poeta tinha 15 anos ento e utilizou o pseudnimo WIMPL.

    Em 1919, o poeta expulso dessa escola por "insubordinao mental", depois de um incidente com o professor de Portugus.

    Em 1923, ingressa na Escola de Odontologia e Farmcia de Belo Horizonte, curso que conclui ao final do ano de 1925.

    ONDA

    Uma onda veio, mansamente, espreguiar-se na praia, numa carcia dolente ... Parecia o corpo de uma mulher ... Era imensamente triste. Foi rolando sobre a areia, rolando .. . Perto havia uma rvore onde folhas secas punham olheiras .. . A onda beijou-a longamente, num beijo de gaze, de espumas. A rvore, ento, derramou duas lgrimas verdes que a onda levou ...

    Reproduzido por Jos Cond em "Confidncias do itabirano", Correio da Manh, Rio de Janeiro, 05 set. 1948 Segunda seo, p. 8

    21

  • Colgio Anchieta, Nova Friburgo 1 Manoel Santana

    Drummond formado em odontologia 1 Arquivo Carlos Drummond de Andrade - AMLB/FCRB

    22

    OSr.~~lu11111odu .&"' a11110 mmccu uo 111 J0 2, 1, o A'ua F1.,buryo/.&1e~., l !Jlfl ..

    O Sl!:C~TARlO ~ ,,,/l.. '"

    Boletim do aluno Carlos Drummond de Andrade 1 Arquivo Carlos Drummond de Andrade - AMLB/FCRB

  • CRNICA DA VIDA Carlos Drummond de Andrade casou-se, em 1925, com

    Dolores Dutra de Moraes, com quem teve dois filhos : Carlos Flvio, em maro de 1927, falecido meia hora depois de nas-cer; e Maria Julieta, nascida em 4 de maro de 1928. A filha se tornaria, nas palavras do poeta, a pessoa a quem mais amou na vida, grande companheira, inclusive na carreira literria.

    Dedicamos este espao a voc, leitor, para que aqui sejam regis-trados acontecimentos da sua histria, moda de Drummond.

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    Dolores e Drummond

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    1 Arquivo Carlos Drummond de Andrade - AMLB/FCRB

    Maria Julieta e Drummond 1 Arquivo Carlos Drummond de Andrade - AMLB/FCRB

    23

  • UIT ABIRA APENAS UM RETRATO NA PAREDE ... "

    24

    Em muitos dos seus escritos, Drummond faz referncias s suas origens itabiranas:

    AMRICA

    [ ... ] Uma rua comea em Itabira, que vai dar no meu corao. Nessa rua passam meus pais, meus tios, a preta que me criou. Passa tambm uma escola - o mapa - , o mundo de todas as cores. Sei que h pases roxos, ilhas brancas, promontrios azuis. A terra mais colorida do que redonda, os nomes gravam-se em amarelo, em vermelho, em preto, no fundo cinza da infncia. Amrica, muitas vezes viajei nas tuas tintas. Sempre me perdia, no era fcil voltar. O navio estava na sala. Como rodava!

    [ ... ] As cores foram murchando, ficou apenas o tom escuro, no mundo escuro. Uma rua comea em Itabira, que vai dar em qualquer ponto da terra. Nessa rua passam chineses, ndios, negros, mexicanos, turcos, uruguaios. Seus passos urgentes ressoam na pedra, ressoam em mim. Pisado por todos, como sorrir, pedir que sejam felizes? Sou apenas uma rua na cidadezinha de Minas humilde caminho da Amrica.

    [ ... ]

  • Vista parcial de ltabira 1 Secretaria de Turismo de ltabira/Museu de ltabira

    Imagem atual de ltabira 1 lugo Koyama/Editora Abril/Contedo Expresso

    A presena de Drummond na Itabira atual: Nome de rua, da Fundao Cultural da Cidade entre outras referncias. Hoje, os habitantes se referem a Itabira como a Cidade da Poesia.

    A presena de Itabira na obra de Drummond: A cidade um motivo recorrente na obra do autor - a cidadezinha de

    ferro que se confundir, a partir do livro Sentimento do mundo, com o carter seco e mineral do poeta, infenso ao que na vida porosidade e comunicao.

    25

  • 1 0 "I b. " . l' nome ta ira tem sua ongem na mgua tupi, tendo como significado "rvore de pedra'' ou "pedra que brilha", (ita=pedra e bira=rvore, que brilha).

    No dia 9 de outubro de 1848, atravs da Lei Provincial n 374, a Vila de Itabira do Mato Dentro foi elevada categoria de ci-dade.

    *

    26

    PEDRA NATAL

    ita pedra luzente pedra empinada pedra pontuda pedra falante pedra pesante por toda a vida

    bira candeia seca sono em decbito tempo e desgaste sem confidncia paina de ferro viva vivida

    pedra mais nada

    Drummond, Boitempo

    Litografia antiga de ltabira 1 Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de Minas Gerais - FAPEMIG

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    Elucidao da Carta enigmatica 1 Veja pg. 100

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  • Itabira, Cau e ferro

    Cada um de ns tem seu pedao no pico do Cau. Na cidade toda de ferro as ferraduras batem como sinos.

    "ltabira" (srie Lanterna mgica). Drummond, Alguma poesia

    Imagem do poeta-cronista com rea do Cau minerada ao fundo 1 Rogrio Reis/Pulsar Imagens

    28

    O PICO DO CAU O pico do Cau era uma formao geolgica elevada, um mor-

    ro, que tinha, em sua composio rochosa, alto grau ferrfero. E ssa caracterstica comum a toda a rea do Qyadriltero Ferrfero de Minas Gerais denominada Formao Cau. O pico foi inteiramente demolido pela minerao da Vale (antiga Cia. Vale do Rio Doce -CVRD). Em seu lugar, resta uma cratera, onde existiu o pico. Pro-cesso idntico ocorreu tambm com o Morro da Conceio, outra referncia da cidade - que vive srios problemas socioambientais por causa da indstria extrativa a cu aberto em sua regio urbana, que se estende por uma rea de aproximadamente 15 quilmetros.

    O pico do Cau uma forte referncia simblica, constitutiva da iden-tidade da cidade. Mas o alcance das operaes de Cau tambm inter-nacional. A histria do complexo minerador de Itabira diretamente relacionada ao Japo. A modernizao das minas e da ferrovia Vitria - Minas, alm da construo do porto de Tubaro, foram viabilizadas pelas exportaes de minrio resultantes dos acordos Brasil (at ravs da CVRD) - ]apo.

    Nelson Brissac et ai

    Se a vida passasse depressa, a estrada de ferro j teria p osto os seus tri-lhos na orla da cidade; sombra do Cau, uma usina imensa reuniria dez mil operrios, congregados em cinquenta sindicatos, e alguma coisa como D etroit, Chicago, substituiria o ingnuo traado das ruas do Corte, do Bongue, dos Monjolos. M as para que tanta pressa? Tudo vir a seu tempo, e se no fora agora, como no foi em 1898, quando o padre Jlio Engrcia dizia ironicamente que 'depois que pelos diversos estudos ficou a esperana que passar na cidade uma v ia frrea, tem havido animao em construir: ao menos houve esta vantagem' - algum dia h de ser, e tudo estar bem.

    Drummond, "Vila de Utopia". Confisses de Minas

  • O pico do Cau j no se alteia Mas no corao da gente ele resiste

    Drummond, Jos & Outros

    O pico do Cau na paisagem de ltabira e nas paisagens drummondianas 1 Secretaria de Turismo de ltabira/Museu de ltabira

    29

  • A transformao da paisagem

    O poeta-cronista lamentou, em muitas situaes, a total demolio do pico do Cau.

    A MONTANHA PULVERIZADA

    Chego sacada e vejo a minha serra, a serra de meu pai e meu av, de todos os Andrades que passaram e passaro, a serra que no passa.

    [ ... ] Esta manh acordo e no a encontro. Britada em bilhes de lascas deslizando em correia transportadora entupindo 150 vages no trem-monstro de 5 locomotivas - o trem maior do mundo, tomem nota -foge minha serra, vai deixando no meu corpo e na paisagem msero p de ferro, e este no passa.

    Drummond, Boitempo

    No sou Napoleo, mas tenho de subir pedra do Arpoador para divisar, nas nuvens, qualquer coisa parecida com as montanhas de Minas. Fernando, diretor, acha que a cena ser de grande efeito. Mas no fcil ver o pico do Cau,j demolido na realidade, erguer-se sobranceiro no cu.

    Drummond, O obseNador no escritrio

    O pico do Cau est presente nas imagens de Itabira construdas pelo escritor. Temos, nelas, o con-finamento geogrfico por causa das montanhas, o destino duro do ferro, mas, tambm, a solidez e a fora da pedra. H, ainda, alm disso, e especialmente em Boitempo, textos a respeito do abismo entre a eternidade que a montanha fazia vislumbrar e a destruio depois realizada com o avano da indstria sobre a paisagem.

    30

  • Em "Confidncia do itabirano", o escritor tambm faz referncia ao ferro, elemento presente na sua memria e na vida, nas paisagens que espelham um modo de progresso tecnolgico, cientfico e cul-tural.

    * Alguns anos vivi em Itabira. Principalmente nasci em Itabira. Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro. Noventa por cento de ferro nas caladas. Oitenta por cento de ferro nas almas. E esse alheamento do que na vida porosidade e comunicao.

    Drummond, Sentimento do Mundo

    E voc? Tem o ferro presente em seu cotidiano? Qyanto de ferro est encarnado em voc?

    O ferro moldou ltabira e seus habitantes, a experincia humana de homens, mulheres e crianas das serras mineiras.

    H, em sua regio, uma riqueza to forte que marque a vida dos seus conterrneos? Descreva-a e represente-a, fotografe e monte suas memrias a respeito.

    31

  • PERClIRSO DE VIDA, NO BRASIL

    MEMRIA

    Amar o perdido deixa confundido este corao.

    Nada pode o olvido contra o sem sentido apelo do no.

    As coisas tangveis tornam-se insensveis palma da mo.

    Carta Portulano 1 O Tesouro dos Mapas A Cartografia na Formao do Brasil /

  • MINAS GERAIS

    ITABIRA @

    @ BELO HORIZONTE

    SO PAULO

    SO PAULO @

    O escritor faz esse percurso em dois momentos: a pri-meira vez em 1916 para o Colgio Arnaldo e, em 1920, com a famlia.

    Retorna, mais de uma vez, a Itabira. Primeiro, quando recebe aulas particulares antes de mudar- se para Nova Friburgo. Em outro momento, ao ser professor e, depois, quando tenta a vida na fazenda, por breves perodos.

    Muda-se como aluno do Colgio Anchieta, Nova Fri-burgo 1918-1919, de onde volta aps expulso por "in-subordinao mental".

    ----1~- Muda-se para o Rio de Janeiro em 1934, onde vive at sua morte, em 1987.

    33

  • BELO HORIZONTE

    Vista parcial da rua da Bahia no cru-zamento com avenida Afonso Pena. Em segundo plano, a esquerda v-se o edifcio do Bar do Ponto. Este edif-cio abrigou o Congresso Provisrio da Cidade, no inicio do sculo XX e, pos-teriormente, estabelecimentos comer-ciais. O Bar do Ponto tem esse nome porque ficava em frente ao ponto ini-cial e final dos bondes que percorriam a cidade 1 Acervo do Museu Histrico Ablio Barreto

    34

    E m 1916, D rummond tem 14 anos. Nesse ano, estuda em Belo H orizonte, no Colgio Arnaldo, da Congregao do Verbo D ivino. Em 1919, muda- se com a famlia para a capital de M inas Gerais. Nela, vive at 1926, quando, j casado, regressa a Itabira para tentar a vida de fazendeiro. Em menos de um ano, regressaria a Belo Ho-rizonte, onde fica at 1934, quando se muda para o Rio de Janeiro.

    A cidade smbolo de modernidade, cidade-capital planejada, ar-quitetada segundo o iderio moderno.

    Quando chegamos ao colgio, em 1916, a cidade teria apenas cinquenta mil habitantes, com uma corifeitaria na rua principal, e outra na avenida que cortava essa rua. Alguns cafs completavam o equipamento urbano em matria de casas p blicas de consumao e conversa, no falando no espantoso nmero de botequim, consolo de pobre. As ruas do centro eram ocupadas pelo comrcio de armarinho, ainda na forma tradicional do salo dividido em dois.fregueses de um fado, dono e caixeiros de outro; alfaiates, joalherias de uma s porta, agncias de loteria que eram ao mesmo tempo pontos de venda de jornais do Rio e ostentavam cadeiras de engraxate. Um comrcio mido, para a clientela de funcionrios estaduais, estudantes, gente do interior que v inha visitar a capital e com pouco se deslumbrava.

    Drummond, O sorvete

  • A vida literria na Belo Horizonte dos anos 1920 se forma na rua da Bahia, no corao da cidade, onde a rapaziada se rene, com sonhos de mudana e atitude vanguardista. Na rua, destaca-se o Bar do Ponto, referenciado pelo poeta e por seus compa-nheiros de gerao, imortalizado em seus escritos. Uma literatura moderna pensada na esquina da rua Bahia com Afonso Pena, pelo grupo de in-telectuais formado por Abgar Renault, Anbal Machado, Emlio Moura, Joo Alphonsus, Pedro Nava e Carlos Drummond de Andrade.

    As paisagens de Belo Horizonte hoje so outras. Pouco restou dos prdios e locais pelos quais o po-eta passava nos anos 1920.

    A Livraria Alves, outro ponto de encontro do grupo modernista, j no existe mais. Situava-se na rua da Bahia, 1055.

    Imagem atual da rua Bahia 1 Fernando Goes

    LIVRARIA ALVES

    Primeira livraria, rua da Bahia. A carne de j esus, por Almquio Diniz (no leiam! obra excomungada pela Igreja) rutila no aqurio da vitrina. Terror visual na tarde de domingo.

    Volto para o colgio. O ttulo sacrlego relampeja na conscincia. Livraria, lugar de danao, lugar de descoberta.

    Um dia, quando? Vou entrar naquela casa, vou comprar um livro mais terrvel que o de Almquio e nele me perder - e me encontrar.

    Drummond, Boitempo

    35

  • Drummond passeia pelas ruas de Belo Horizonte nos anos 1920 1 Arquivo Carlos Drummond de Andrade - AMLB/FCRB

    36

  • Vista area de Belo Horizonte 1 AceNo do Museu Histrico Abllio Barreto

    Sua mudana para Belo H orizonte deu-se em 1919, tendo morado em diversas penses, no H otel Avenida, no Internacional e na rua Silva jardim, nos nmeros 117 e 127. Esta a casa que frequentei s, com Alberto Campos, com Emlio Moura, para v isitar o poeta. Era uma simptica edificao, defronte igreja da Floresta, pintada de leo verde, com entrada central, escada de degraus de mrmore dando no "diminuto alpendre" cujas paredes ostentavam, como era moda em Minas, afrescos (o do pescador que ornava o prdio do Carlos foi-se, conforme verifiquei em romaria de saudade feita com ngelo Osvaldo a 16 de dezembro de 1976). Esse al-pendre dava para as portas de serventia do domiclio e direita, para a do quarto independente habitado pelo poeta. Em cima deste quarto, telhado de duas guas fazendo chal, simtrico ao do lado oposto do imvel. Os dois ligados pela cobertura da parte central. Tudo isto desapareceu, sendo substitudo pela desgraciosa laje de concreto que deu ao edifcio, que era gentil, aspecto de caixote. Mas esto l o mesmo porto de serralheria, os degraus de mrmore, a porta onde entrvamos com vinte anos, para conversar sobre tudo que nos vinha cabea, para resolver os problemas da terra, planejar arrasamentos, redigir manifestos, delinear depredaes, salvar o mundo mundo vasto mundo do poema do prprio maistre de cans. [ .. ]No posso esquecer certo dia de fossa (naquele tempo era mais bonito: dizia- se blues) em que o Carlos e eu no nos julgamos nem altura da casa e que fomos debateblaterar sentados na terra frouxa e ciscada do galinheiro cheio de t itica, de aragens finas e p eninhas esvo-aando.[ .. ] N s tnhamos vontade de nos matar, de matar. No sei se o Carlos lembra certo poema.

    Merda de galinha sobre a nossa vida. Constantemente. Incessantemente.

    Pedro Nava, Beira-Mar

    37

  • 38

    O MODERNISMO

    Em 1924, uma caravana modernista de So Paulo, que inclua Mrio de Andrade, O swald de Andrade, seu filho, Non, Tarsila do Amaral e o poeta franco-suo Blaise Cendrars, aporta em Belo Ho-rizonte. Drummond e seus amigos Pedro Nava, Martins de Almei-da, Joo Alphonsus e Emlio Moura, todos jovens mineiros escri-tores que se iniciavam nas atividades literrias, acorrem ao Grande Hotel, onde estava hospedada a trupe paulistana.

    Assim relata Drummond o episdio: "Uma tarde, em 1924, tive-mos notcia de que no Grande Hotel se hospedava uma caravana modernista de So Paulo. [ ... ] Assistimos ao final de jantar (minei-ros e precavidos, j tnhamos jantado). Depois, samos todos, rua da Bahia abaixo, em direo avenida Afonso Pena. Conversa genera-lizada e alegre, com Oswald em sua natural desenvoltura, Cendrars expandindo sua curiosidade de francs interessado em tudo, prin-cipalmente em captar a cor local da vida mineira. No desenvolver desse multidilogo sem rumo, foi-se logo revelando, para mim e meus companheiros, a personalidade de Mrio. Mesmo brincando, ele inspirava uma confiana intelectual que O swald, muito mais bri-lhante e imprevisto, seria incapaz de despertar."

    O encontro de grande importncia para os jovens, que iniciam assduas correspondncias com Mrio de Andrade, as quais se esten-dem pelos prximos anos. Para os paulistas, a "viagem de descoberta do Brasil" significava injetar profundidade histrica reflexo sobre a modernidade que o movimento modernista de 1922 encarnava. Para os mineiros, os paulistas vieram lhes fazer descobrir M inas, uma vez que eles s tinham olhos para a Europa. Para os paulistas, Minas lhes mostra o Brasil.

  • Estrada de Ferro Central do Brasil, de Tarsila do Amaral, 1924

    39

  • Alguns retratos de uma gerao

    Oswald de Andrade, 1926 1 Acervo lconographia

    Murilo Mendes, 1995 1 Folhapress

    Cndido Portinari , 1938 1 Fundao Getulio Vargas - CPDOC

    Mrio de Andrade em sua casa na rua Lopes Chaves. So Paulo, incio da dcada de 1940 1 Acervo lconographia

    40

  • ..

    Otto Maria Carpeaux, 1959 1 Folhapress

    Antonio Candido, 1946 1 Acervo lconographia

    Anita Malfatti, 1912 1 Acervo lconographia

    Tarsila do Amaral e "Morro da favela", 1925 1 Acervo lconographia 41

  • ANO 11 -Vol. 1 AbrU~Junho 1926

    ESTETICA REVISTA TRIMENSAL

    Olrulo e Ad111lnl111r11ilo

    3 Rodaco

    LIVRARIA OOEON-AVENIDA RIO BRANC0, 157 Rio de Jnndro

    .W:AHIOl)l!AXDRALll! 08\\'Al,OOUll AIWHAIJt: l'RUDRl't.""l'Hlll!)JOllAl'.8, f't.'trr(l

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    AU:tJllUlil!SGl!N8 1)1! CATACAZ&8 MAKTI~'fl OI! or~Yl!Jll,\ ll00MRNl8MO Sl::RG10 lllLIJt.'T nm.1ui.\O oooor11eoo RANOrJ. A SYNOOW. Wl!L.LL'\OTO/C 0UA.'\D0 CANTOS llUNICIP.\l!S ARGAHIU!HAULT

    CAHl.OSOllUJOIONDOHANllH,\1)11 A$C.\NIOl.0f'K8 1108.\lllOl'Us

  • 11NO MEIO DO CAMINHO"

    No meio do caminho tinha um poema que causou muito burburinho na vida literria brasileira, mesmo em tempos de ruptura de padres modernistas.

    No se pode negar que, hoje, o poema mais conhecido de Drummond.

    ANNO 1 - NUMERO 3 500 RS JULHO - 1928

    Revista de Antropofagia Dire..:~iio de A~TNIO DE ALCANTAHA MACJIAOO

    Endereo : 13, RUA BENJAMIN COHSIAHI - 3. rav. Sala 7

    CARNIA ~uma conferencia hi1 pouco rea liznrla na

    Fac!lcladc de Direilo de S;io Paulo Baptis ta Pereira esguichou um pouco de Crnzwaldina na epidemia positiYista que assolou e ainda hoje nssola ste pas condorcro. Pode parecer bob:!gem a gente a inda se preocupar com tal

    cou"~" Pode parecer s: porque n'io . :-\n-guem est claro Yai se rlar ao trak lho de com-bater o posti\'ismo hoje cm dia. ~las preciso de lll11a \'ez por todas liquidar com esse cad-,er que enterrado desrlr muito nc1 E uropa f'oi tx1mwdo por n!C'ia dzia de fi\'das e lraziclo par:.1 o Brasil onde contimw empesta ndo o ambiente.

    eclra

    tinh'I uma pedra no meio cio caminho

    tinhr. uma pedra

    no 111eio do caminho tinha uma pedra.

    Nunca me esquecerei desse acontecimento

    na vicia de minhas retinas to fatigadas.

    Nunca me esquecerei que no meio do caminho

    tinha uma pedra

    tinha uma pedra no meio do caminho

    no meio cio caminho tinha uma pedra.

    (BELO-HORIZONTE)

    C.\RLOS DRUMMO ' D f~ ANllRA IH:

    , ,

    "A BARBARIE DURA SECULOS. PARECE QUE SEJA ELA O NOSSO ELEMENTO : A

    - A -RAZAO E O BOM - GOSTO NAO FAZEM -SENAO PASSAR"

    D'ALEMBERT- Discurso preliminar da ENCICLOPDIA 43

  • Na pgina anterior, encontra-se o poema mais conhecido de Car-los Drummond de Andrade, "No meio do caminho". O poema, es-crito ao final de 1924, foi publicado em julho de 1928, na Revista de Antropofagia, e provocou reaes dos mais diversos tons por parte da crtica.

    A Revista de Antropofagia circulou em 1928 e 1929, sob a respon-sabilidade de Oswald de Andrade e um grupo de amigos, tais como Antnio de Alcntara Machado e Raul Bopp. Sua concepo grfica foi inovadora, e, aliada retrica de ruptura, pretendia resgatar as matrizes brasileiras recalcadas, sem deixar de lado o progresso da contemporaneidade.

    "No meo do caminho" nas vozes da crtica:

    Charge retratando CDA, por Alvarus 1 Arquivo Carlos Drummond de Andrade AMLB/FCRB

    44

    Mrio de Andrade, em carta a Drummond (1924 ou 1925): "O 'No meio do caminho' formidvel. mais forte exemplo que conheo, mais bem frisado, mais psicolgico de cansao intelectual."

    Ainda Mrio, em carta de 1926: ''Acho isso formidvel. Me irrita e me ilumina. smbolo."

    Cyro dos Anjos, em Minas Gerais, 1930: 'Nesse poema pode-se medir a fora transmissora de sentimento na poesia moderna. Poema breve, sem nenhuma palavra bonita. Mas como se exprime nele com riqueza de cores, um drama interior e como se comunica toda a sua potencialidade emocional. Uma pedra no meio do caminho. O leitor tambm a teve, do contrrio no compraria um livro de versos. E esse leitor que pode avaliar a insistncia daquela lembrana obsedante da pedra no meio do caminho."

    Henri, em Monitor Campista, 1943: 'Tambm eu no compreendo, e creio que muita gente, a tal histria da 'pedra no caminho'. Diabo! Encontrei uma pedra no caminho, a pedra estava no caminho. Afinal de contas que isso? Versos? No. No pode ser. Deve ser pilhria do sr. Carlos Drummond. Decididamente pilhria."

    Flvio Brandt, em Dirio de Notcias, 1944: ''Antigamente as pedras serviam para serem atiradas nos maus poetas; hoje os versejadores modernistas as encontram pelo meio dos caminhos, desviam-se das mesmas para no tropearem e fazem um poema impresso para que

  • Caricatura de Augusto Rodrigues, 1943. O rei Vtor Manuel, da Itlia, a "pedra no caminho" dos aliados na Segunda Guerra Mundial 1 Augusto Rodrigues

    o pblico saiba que o poeta viu uma pedra no meio do caminho, o que constitui para os vates das musas de elefantases um fato indito e um tema potico de rara beleza. Ou estou doido ou vocs esto errados."

    Oscar Qyeiroz, em Gazeta de Notcias, 1948: 'O soneto a mais in-teressante forma da poesia clssica, infinitamente acima das aviltantes tolices com as quais o bloco de pedra na cabea e no no caminho como dizem por a, de pedra na cabea e na mo que apedreja o Belo, pretende desmoralizar e anular as nossas sagradas tradies artsticas, o que me parece caso de cadeia, porque no justo nem admissvel a impunidade de to monstruosos crimes!"

    Davi Arrigucci, em Corao partido, 2002: "O poemeto constitui, portanto, no s a pedra de escndalo modernista que marcou a inau-gurao do universo potico de Drummond, pelo rebaixamento ines-perado, irnico e contundente da poesia ao terra-a-terra mais trivial, mas a meditao bsica e simblica do poeta sobre o ato criador, cujo carter problemtico vem a expresso curto e grosso como um desaforo para quem podia esperar do potico s mistrio e elevao."

    -'ovurtaht 1101 "Dt::do1 Ahoc1tulo1"

    - Aqora a cslf'ada est limpa./ - B'. Mas "no meio do caminho tem uma P,edra." J

  • E na voz do autor.

    com ironia que Carlos Drummond de Andrade con-clui sua ''Autobiografia para uma revista":"[ ... ] sou o autor confesso de certo poema, insignificante em si, mas que a partir de 1928 vem escandalizando meu tempo, e serve at hoje para dividir no Brasil as pessoas em duas categorias mentais."

    De tudo quanto foi meu passo caprichoso na vida, restar, pois o resto se esfuma, uma pedra que hav ia em meio do caminho.

    "Legado" . Drummond, Claro Enigma

    ~~=g~~rn;g;;g~~;J ~~-1m ~'1-io d1> ra. mi . nho ti.nh1'1 uma pc .. fa.

    1-4..J,- -~;,i-~~~ =--- - -, '-..:::1_-- - # /. .

    46

    * DADOS BIOGRFICOS Mas que dizer do poeta numa prova escolar?

    ~e ele meio pateta e no sabe rimar?

    [ ... ] ~e encontrou no caminho uma pedra e, estacando, muito riso escarninho o foi logo cercando?

    Drummond, Viola de bolso

    Esta composio de Francisco Mignone foi apresentada em primeira audio na Escola Nacional de Msica, pela cantora Nair Duarte Nunes, em agosto de 1938

    1 Arquivo Carlos Drummond de Andrade - AMLB/FCRB

  • U1n poema pelo mundo ...

    AZ T KZEPN

    Az t kozepn volt egy ko egy ko volt az t kozepn volt egy ko az t kozepn egy ko volt.

    Soha nem falejtem el ezt az esemnyt amig csak fradt retinm l. Soha nem falejtem, hogy az t kozepn volt egy ko egy ko volt az t kozepn az t kozepn egy ko volt.

    Em hngaro, por Paulo Rnai, 1930

    ?: ? ?- p ?: (".) 1 ? 9 6 !.~ 9 ~ LC / ( !f !! 4 : p ?:

    tJ ; ' ?: ( J f"' ( rf ~ 1t--~;- ~.,...,.,,,, ..

    Verso hebraica do poema "No meio do caminho", por Hamilton Nogueira, 1964 1 Arquivo Carlos Drummond de Andrade - AMLB/FCRB

    Crie a sua verso do poema de Carlos D rummond de Andrade.

    47

  • RIO DE JANEIRO A casa de um itabirense muito carioca

    Carlos Drummond de Andrade viveu a maior parte da sua vida no Rio de Janeiro, de 1934a1987, ou seja, 53 dos seus 85 anos. Por todo esse tempo, foi um observador atento dos hbitos e das mudanas que marcaram a vida da Cidade Maravilhosa. Viveu em Copacabana, passando por trs endereos, e deu lugar a muitas referncias ao Rio de Janeiro em suas crnicas e na poesia. De 1934 a 1941, viveu na rua Princesa Isabel, em uma casa de vila; depois, de 1941 a 1962, em uma casa na rua Joaquim N abuco; e, finalmente, em um apartamento na rua Conselheiro Lafaiete.

    48

    CORAO NUMEROSO

    Foi no Rio. Eu passava na avenida quase meia-noite. Bicos de seio batiam nos bicos de luz estrelas inumerveis. H avia a promessa do mar e bondes tilintavam, abafando o calor que soprava no vento e o vento vinha de Minas.

    [ ... ] Mas tremia na cidade uma fascinao casas compridas autos abertos correndo caminho do mar voluptuosidade errante do calor mil presentes da vida aos homens indiferentes, que meu corao bateu forte, meus olhos inteis choraram.

    O mar batia em meu peito, j no batia no cais. A rua acabou, quede as rvores? a cidade sou eu a cidade sou eu sou eu a cidade meu amor.

    Drummond, Alguma poesia

  • Copacabana alg c ' umas

    donstrues e Prdio o Hotel C Pai opacabana

    ace ao centro 1 Domingo K . s a1ser/Arquivo G. Ermakoff

    Praia de e opacaban ~~~u~~odios e casar~ 1 Arquivo Nacional

    B.onde, centro da cidade do Rio de Janeiro, Cinelnd' 1

    A' 1a nstogiton Malta/A .

    G. Ermakoff rqu1vo

  • Panormica do Rio de Janeiro, vista pela Enseada de Botafogo 1 Marcella Azal

    Observador ambivalente de um camarote recuado da histria brasileira e mundial, Drummond no cessa de apontar-lhe os problemas "crnicos". A atualidade dos textos de Drummond referentes s questes urbanas e sociais da cidade do Rio de Janeiro permanece. Temas como os transportes, a especulao imobiliria e a faveli-zao esto registrados e refletidos em sua escrita. Exemplos: 1. Favelizao no Rio de Janeiro ("Crnica de Janeiro", Versiprosa, "Captulo do Gnesis" e "O ladro",A balsa e a vida, "O telhado", Caminhas de Joo Brando); 2. Populao pobre no Rio de Janeiro ("Debaixo da ponte" e "Areia branca", A bolsa e a vida); 3. Mudana da capital para Braslia ("Destino: Braslia" e "Cano do fico", Versiprosa). So temas constantes das crnicas os moradores ilustres com que Carlos Drummond de An-drade conviveu e dialogou no Rio de Janeiro (Vinicius, Cartola, Ferreira Gullar).

    Nas crnicas, Drummond tratar, com sua elegncia e fineza habituais, de pro-blemas comezinhos e grandes como a falta de gua e a especulao imobiliria no Rio de Janeiro, os acidentes comuns da vida urbana, a sobrevivncia das culturas indgenas, as igrejas de escravos no perodo colonial mineiro, a nobreza do samba de Cartola. Pequenas intervenes na vida brasileira e mundial, numa tarefa sutil de salvamento do humano onde quer que ele se refugie, sinalizando o perigo iminente de sua destruio terminal.

    1951 - janeiro, 22 - Tarde de chuva fina, no centra. junta Livraria, observ a mi-nuciosamente as runas da tempo, que me sorriem. Para no sofrer com a espetculo, p refira

    fechar os olhas. Eles, porm, inspecionam por conta prpria, mquina fotogrfica a fancia-nar independente de mim. Chove na passado, chove na memria. O tempo o mais cruel dos escultores, e trabalha na barro.

    Drummond, O obseNador no escritrio

    50

  • Rio: ontem, hoje, amanh

    PO DE ACAR

    O grande po de mel suspenso entre mar e cu insinua os prazeres da cidade. A boca, o paladar, a trama dos sentidos serpenteia l embaixo. O sol nascente e o sol cadente vestem de prpura a forma rgida. Nuvens ciganas brincam de subtra-la. A cada hora, desintegra-se, recompe-se, assume formas inditas de transparncia. Tem as cores da vida e o sigilo da sombra. montanha ou apario crepuscular.

    Drummond, Poesia errante

    PRAIA

    A cu aberto renem-se em congresso os corpos que a manh torna esculpidos, ao entardecer envoltos de doura. Aqui pousam morenas redondezas entregues delcia de existir ao calor da onda glauca, sem problemas. Existir, simplesmente - a vida cor, curva adolescente, surfe e papo. O mar, irmo. O co namora o peixe? A barraca levada pelo vento? A obrigao tediosa postergada? Deixa fluir o tempo! O tempo nada.

    Drummond, Poesia errante

    51

  • VIVER A CIDADE

    Percursos drun1n1ondianos - maneiras de percorrer o mundo urbano, viver a cidade

    Todas as cidades que fui conhecendo mais tarde suscita-ram uma composio potica, ou um trecho, e quando eu no vi a cidade confessei puerilmente: No falo porque nunca foi l (caso da Bahia).

    Depoimento apresentado ao Jornal de Letras, mar. 1955, p. 16

    As referncias cidade nos textos de Carlos Drum-mond de Andrade so muito frequentes, seja por tra-tarem de fatos e situaes cotidianas, dessas que se pode acompanhar na rua, seja por explicitarem mu-danas e transformaes, ou, ainda, por se referirem a hbitos e costumes tipicamente urbanos.

    A poesia de Drummond majoritariamente urbana. A vida no interior ainda vida na cidade, na pequena cidade ameaada pelos domnios dos grandes centros (a especulao imobiliria, os objetivos dos lucros das grandes empresas mineradoras). Estamos no mbito do "tempo presente", no momento em que a cidade est em perigo.

    Drummond pelas ruas do Rio de Janeiro 1 Arquivo Carlos Drummond de Andrade - AMLB/FCRB

  • RUAS

    Por que ruas to largas? Por que ruas to retas? Meu passo torto foi regulado pelos becos tortos de onde venho. N o sei andar na vastido simtrica implacvel. Cidade grande isso? Cidades so passagens sinuosas de esconde-esconde em que as casas aparecem-desaparecem quando bem entendem

    e todo mundo acha normal. Aqui tudo exposto evidente cintilante. Aqui obrigam-me a nascer de novo, desarmado.

    Drummond, Boitempo

    53

  • As cenas e imagens urbanas com e do Carlos Drummond de Andrade - Itabira, Belo Ho-rixonte, Rio de Janeiro - so os principais exemplos desse "olhar e experimentar" a cidade, e, a partir deles, podemos reco-nhecer sua sensibilidade para com as questes urbanas em crnicas e poesias.

    Ex.: Registrando as mudanas no morro da Catacumba (Arqui-vo Agncia O Globo); o poeta na feira do livro na praa (Cineln-dia, RJ), na rua, em passeios.

    Descreva ou rabisque mapas de seus trajetos pela cidade ou rea rural onde voc vive.

    Qyais os lugares preferidos, quais histrias so recordadas neles?

    54

  • BELO HORIZONTE

    Debaixo de cada rvore fao minha cama, em cada ramo dependuro meu palet. Lirismo. Pelos jardins Versailles ingenuidade de velocpedes.

    Drummond, Alguma poesia

    Admitir que segredos iguais se cultivam na grande cidade e, mes-mo, que uma cidade, excluso feita de prdios, veculos, objetos e outros smbolos imediatos, no mais que a corljugao de inmeros segredos dessa ordem, idnticos e incomunicveis entre si, e pressentidos somente por poesia ou amor, que poesia sem necessidade de verso.

    "Segredos". Drummond, Passeios na ilha

    [ ... ] feia. Mas realmente uma flor.

    Sento-me no cho da capital do pas s cinco horas da tarde e lentamente passo a mo nessa forma insegura. Do lado das montanhas, nuvens macias avolumam-se. Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pnico.

    feia. Mas uma flor. Furou o asfalto, o tdio, o nojo e o dio. ''A Flor e a nusea" . Drummond, A rosa do povo

    Cotidiano de Drummond no Rio de Janeiro 1 Alair Gomes/Arquivo Carlos Drummond de Andrade - AMLB/FCRB

  • }

    PERCURSOS NO MUNDO

    Carlos Drummond de Andrade tinha conhecimento aprofundado da lngua france-sa, tanto que traduziu diversas obras de autores im-portantes daquela cultura. Esse domnio do idioma pelo poeta nos revela o quanto possvel conhecer de outros mundos por meio da lngua e da cultura de seus povos. Esse domnio do francs indica tam-bm o quanto o idioma era valorizado no incio do sculo XX, resultado da influncia de importantes pensadores e romancistas franceses que marcam at hoje o mundo literrio e filosfico, bem como di-versas reas do conhecimento contemporneo. Os autores traduzidos so Balzac, Moliere e Proust. Exemplo: 1943 - 1hrese Desqueyroux, de Fran-ois Mauriac, sob o ttulo de Uma gota de veneno; 1947 - Les Liaisons dangereuses, de Choderlos de Lados, sob o ttulo de As relaes perigosas; 1954 - L es Paysans, de Balzac; 1956 - Albertine Dis-parue, de Marcel Proust; 1960 - Oiseaux- mouches ornithorynques Du Brsil, de Descourtilz; 1962 -

    Forurberies de Scapin, de Molire - encenada no Tablado; 1963 - Sult (Fome), de Knut Hamsum .

    ..... . - ----..,._

    56

    :;.

  • Carlos Drummond de Andrade fez tambm tradues de autores de lngua espanhola para o portugus, o que nos revela o conhecimento apu ado do idioma, bem como de elementos da cultura hispnica. Esse universo da lngua espanhola esta ' to presente nos pases latinoame-

    ricanos vizinhos do Brasil, alm da prpria Espanha, na Europ , outros pases do mundo. Exemplo: 1958 - Dona Rosita la Soltera, de Frederico Garca Lo a, como (traduo e

    nico pas visitado por Drummond em viagem de motivao familiar, por ocasio do nasci-

    mento dos netos na Argentina.

    .:

    V ESCALA

    800

    N

    1 600 km

    /

  • OLHADORES DE ANNCIOS Drummond mostrou-se um observador atento. A crnica

    "Olhador de anncio" traz uma perspectiva muito bem-humo-rada sobre as propagandas e os artifcios de que elas se utiliza-vam para seduzir o consumidor.

    OLHADOR DE ANNCIO

    Eis que se aproxima o inverno, pelo menos nas revistas, cheias de anncios de cobertores, de ls e malhas. O que desenvolvimento! Em outros tempos, se o indivduo sentia frio, passava na loja e adquiria os seus agasalhos. Hoje so os agasalhos que lhe batem porta, em belas mensagens coloridas.

    Mas sempre bom tomar conhecimento das mensagens publici-trias. o mundo visto atravs da arte de vender. ':As lojas fazem tudo por amor". j sabemos que esse tudo muito relativo. ''Em nossas vitrinas a japona irresistvel". Ento, precavidos, no passaremos adiante das vitrinas. E essa outra mensagem, mesmo, de alta pru-dncia: ':Aprenda a ver com os dois olhos". Precisamos deles para nave-gar na mar de surrealismo que cobre outro setor da publicidade: "Na liquidao nacional, a casa tritura preos". Os preos virando p, num pas inteiramente lquido: vejam afora da imagem.[ .. } A bossa dos anncios prova o contrrio. E ao vender-nos qualquer mercadoria, eles nos do de presente "algo mais': que produto da imaginao e tem serventia, as coisas concretas, que tambm de po abstrato se nu-tre o homem.

    Drummond, Prosa seleta

    VOC SABIA? At o incio do sculo XX, os anncios publicitrios impressos

    em peridicos perpetuavam a tradio do uso de caricaturas, assinadas por renomados ilustradores - Raul Pederneiras e Di Cavalcanti fizeram trabalhos desse tipo.

    58

    312 A0 'i2!fiorf

    J CALOU GLOBO?

    FORMAS

    AMERICANAS

    PREOS SF.M ~

    ENCONTR1\ -SE l!\IQUASl TODAS AS CASAS MAIS IMPORT 1\NTl~S UA c;1D,\UE.

    Revista Autosport, 1912

    Alguns produtos, como remdios e cigarros, que hoje tm restrio de di-vulgao comercial, cir-culavam em anncios da mesma forma que outros produtos.

  • A partir dos anos 1920, a impresso em cores tornou-se mais comum, devido evoluo dos equipamentos grficos.

    O Cruzeiro, 1928

    A dcada de 1950 inaugura um novo mercado a ser vendido nos anncios: o dos automveis e dos aparelhos de TV.

    A partir da dcada de 1970, a exposio do corpo, especial-mente da mulher, torna-se co-mum nos anncios.

    '~ ~\i}-](f}, \ l~r>;t~r : ~ Gmt. -mi 't.o..im ! .ste bonde no vem !

    ,.

    No ser pelo facto do Snr. irritar-se que elle chegar mai' depressa ! No perca, por to pouco, o seu bom humor; e para manter um perfeito e o n t r le dos seus nervos, sensveis menor contrariedade, tome comprimidos de ADALINA, que so pro-

    ~idcnciacs para normalizar o systcma nervoso.

    CALMANll DOS MllVOS au&wa 1 ovo

    28 de Maio de 1938

    O Cruzeiro, 1938

    Realidade, 1966

    ~-~ / ' )~J CONSUl TI SEMPRE O SEU DINTIST AI e1. ' o grande amigo do 10Vde . , 16ment 41 poder6 11encer as cries lnfecclo101 prolongar o vida dos 1eu1 dentei. Mos o u dentiJto tom bm dlr6 que voc4 pro ciso 01ud6.lo usando o Creme Dental Eucolol

    Selees, 1958

    Sem que voe~ perce-ba, um tnue "ilmc amarelo" - urna in-crustao cida - en-volve )CUS dentes e destri o esmalte. En co, as cries tornam se freqentes. Co m-bata ssc pcrigo1 re movendo o "amarelo" com o Creme Dental Eucalol. . . e depois, mostre seus dentes brilhantes com o sor riso de sal1dc!

    59

  • /J,,
  • Soldados russos no campo de batalha em fevereiro de 1943 1 Pictorial Parade/Getty lmages

    O SENTIMENTO DO MUNDO

    Drummond assistiu s duas grandes guerras mundiais: a primeira, de 1914, que se estendeu at 1918; e a segunda, que foi de 1939 a 1945. A angstia dos confrontos foi tema de muitos dos escritos drummondianos.

    SENTIMENTO DO MUNDO

    Tenho apenas duas mos e o sentimento do mundo, mas estou cheio de escravos, minhas lembranas escorrem e o corpo transige na confluncia do amor.

    Qyando me levantar, o cu estar morto e saqueado, eu mesmo estarei morto, morto meu desejo, morto o pntano sem acordes.

    [ ... ] Drummond, Sentimento do mundo

    61

  • AONU

    62

    A funo da Organizao das Naes Unidas, criada com o fim de esta-belecer cooperao entre os pases e evitar novos conflitos, lembrada por Drummond na crnica "A O NU, essa desconhecida":

    Uma vez que fora da ONU no haver soluo para os problemas de convivncia entre as naes, agravando-se a fria dos grupos econmicos que se digladiam, e que, tanto como indivduos tanto como povo, precisamos ter uma viso clara do mundo, levemos a ONU s escolas. [..}No instilemos nos meninos e adolescentes a chamada 'insnia internacional'. Expliquemos- lhes, com a maior simplicidade e verdade, o que , o que vale, o que p ode ainda valer para o bem de todos a ONU As primeiras geraes formadas pela repblica deram-se muito bem com uma disciplina singela, a instruo moral e cvica, que nunca degenerou em propaganda pessoal dos governantes. Dentro dela caberia essa informao aos pequenos: - No devemos desanimar. A guerra pode ser evitada; pelo menos nossa obrigao fazer tudo por evit- la; e na ONU est a esperana. (09/02/1954)

    N a crnica escrita por ocasio da morte de Lasar Segall, fala do horror da guerra e do trabalho do pintor:

    Navio de emigrantes, Pogrom, Campo de concentrao, xodo, Guerra no precisam ser citadas para documentar a humanidade de Segai!. Mas esses retratos do nosso tempo honram o pintor sobretudo porque este, submisso s exigncias mais es-tritas da arte, e com a brandura peculiar a seus meios, induziu mais misericrdia do que ao dio. O horror dos espetculos no foi atenuado, e at punge mais, porque o artista o velou sob tons surdos, montonos, quase indiferentes.

    Em outra crnica (WRI), cita uma declarao da associao War Resister's I nternational:

    A guerra um crime contra a humanidade. Estamos decididos a negar apoio a qualquer espcie de guerra e a trabalhar pela abolio de todas as causas de guerra. (01 /06/1 958)

  • Pogrom, Lasar Segall , 1937, pintura a leo com areia sobre tela, 184 x 150cm 1 Acervo do Museu Lasar Segall-IBRAM/ MinC

    Navio de emigrantes , Lasar Segall, 1939/41, pintura a leo com areia sobre tela, 230 x 275cm 1 Acervo do Museu Lasar Segall-1 BRAMI MinC

  • 64

  • ----Para: Gustavo Capanema 4 agosto de 1930

    Meu querido Capanema

    [ ... ] Demorei um pouco a mandar o seu famoso lbum. As razes, voc j sabe: a minha incurvel incapacidade

    epistolar, que me inibia de escrever duas linhas afetuosas acompanhando o tal e tambm a incurvel falta de honestidade dos nossos poetas, que nunca fazem aquilo que prometem ...

    ("-~..... J)," "*4...., ..,.,, dA .-cl...A-:'-De: Antonio Candido lSde agosto 1987

    Meu caro, muito caro Drummond:

    Confesso a dificuldade em escrever a propsito dessa inverso terrvel da ordem natural que a partida dos filhos antes dos pais

    [ ... ] Um ser de alta qualidade, cuja falta h de ser insuportvel para a me e o pai. A ambos o abrao mais afetuoso

    e solidrio de Gilda e do ~ C...... ~

    Para: Mrio de Andrade ltabira, 3 maro 1926

    Mario querido,

    Pronto. Estou em ltabira com armas e bagagem. Andei oito lguas no lombo do burro, debaixo de chuva e com atoleiros medonhos. Desconfio que sou heri. Meu endereo ltabira do Mato Dentro, estado de Minas.

    [ ... ]

    De: Mario de Andrade So Paulo, 10 de maro de 1926

    Carlos do corao,

    Um abrao. Agora voc est em ltabira do Mato Dentro. Precisa trabalhar, hein, Carlos.

    [ ... ] No quero absolutamente que voc se perca a e abandone as coisas de pensamento pra que tem um certo jeito

    e que fazem parte do destino de voc, tenho a certeza. ~--~/-~ De: Joo Cabral de Melo Neto 17 de janeiro de 1942

    Se lhe desagradar a opinio dos jornais e revistas, no publique para eles; publique para o povo. Mas o povo no l poesia ... Qyem disse? No do ao povo poesia. Ele, por sua vez, ignora os poetas.

    [ ... ] /(,,....,

    Para: Joo Cabral de Melo Neto 5 de janeiro de 1950

    "[ ... ] sabe que em matria de correspondncia eu sou como a mula velha e incorrigvel."

    (o.~,.. A I,,.,. "' ,.. , dA. .. c1...1. -:'-

  • Quando o poder, que emana do povo, deixa de ser exercido, ou contra o povo se exerce, alegando servi-lo;

    ~ndo a autoridade carece de autoridade, e o legitimo se declara t 11..gi timo;

    quando a lei uma palavra batida e pisada, que se refugia nas ca-taownbas do direito;.

    quando as ferros da paz se convertem em ferros de insegurana; quando a intimidao faz ouvir suas rias enervantes, e at o siln-

    cio palpita de ameaas;

    quando faltam a confiana e o arroz, a prwt:ncia e o feijo, o lei-te e a tranqdilidade das vacas;

    quando a fome industrializada em ."slogans 11, e mais fome se acumula quanto mais se promete ou se finge combater a fome;

    quando o cruzeiro desaparece no sonho de uma po ite de papel1 por trs de wn cortejo de alegrias especuladoras e de lagrimas assalariadas; quando o mar de pronunciamentos frenticos no deixa fluir uma gta

    sequer de verdade; quando a gorda impostura das terras dadas enche a boa dos terrate-

    nentes; quando a dltos brados se exigem refonnas1 para evitar que elas, se

    implantem, e assim continuem a ser reclamadas como dividendo politioo;

    quando os reformadores devem ser refonnados; quanpo a incompetncia acusa o espelho que a revela, dizendo que a

    culpa e do espelho;

    quando o direito constitucional uma subdisciplina militar, e subs-titui a disciplina pura e simples;

    qu

  • CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE E O ESTADO NOVO

    Ao mesmo tempo Drummond foi Chefe de Gabinete do Ministro Gustavo Capanema, em pleno Estado Novo, e mostrava-se muito engajado nas causas sociais.

    Com a sua sada do gabinete de Capanema, no entanto, firmando-se nele o desejo de "militar contra o ditador" Getlio Vargas, sua par-ticipao jornalstica se adensa, dando-se a a significativa passagem da crnica literria ao comentrio cada vez mais interventivo nos fatos cotidianos.

    Menos de um ms depois de deixar o Ministrio da Educao e Sade, ele sondado por Paulo Bittencourt, diretor do Correio da Manh. Drummond assim menciona o fato em seu dirio: ''Junto colaborao literria, pretende fazer de mim jornalista poltico: edi-torial e tpicos." Sua reao, no entanto, ambivalente: "Meio ator-doado, procuro sentir-me na pele de editorialista, mas falta alguma coisa na minha vontade de atuar politicamente: falta precisamente a vontade, a garra, a paixo; uma atitude intelectual, contra a minha natureza. Veremos." O convite no se materializa.

    Mas, menos de um ms depois, em 1.0 de maio, ele aceita partici-par do Conselho Diretor de O popular, convertido adiante em Tribu-na Popular, com compromisso de escrever com grande regularidade. Apesar do entusiasmo inicial, a sua participao dura muito pouco, pouco menos de dois meses. Em 22 de junho, ele comunica a reso-luo de deixar o comit da direo do jornal. Qyando comea a es-crever crnicas trs vezes por semana no Correio da Manh, em 1954, portanto, no mais como jornalista "bissexto", ele ainda trabalhava na "burocracia", junto com Rodrigo M. F. de Andrade, como chefe da Seo de Histria, na Diviso de Estudos e Tombamento do SPHAN (Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional), posto que assumira ainda em 1945 e do qual se aposentar em 1962.

    Poema "Quando" (1945) . Indito em livro, mas preservado no Arquivo-Museu de Literatura Brasileira 1 Arquivo Carlos Drummond de Andrade - AMLB/FCRB

    - 1 \

    67

  • MQUINAS DE ESCREVER

    Dolores observa Drummond em sua mquina de escrever 1 Arquivo Carlos Drummond de Andrade -AMLB/FCRB

    Pgina 69: Datiloscrito do poema "Nota Social" de 1923, publicado em 1930 em Alguma poesia, com intervenes de Mrio de Andrade 1 Arquivo Carlos Drummond de Andrade - AMLB/ FCRB

    68

    Carlos Drummond de Andrade escreveu seus textos a mo e a mquina. Em "Nota Social'', podemos verificar o sistema de criao do escritor.

    1714 Pellegrino Turri constri mquina de escrever para sua ami-ga, a Condessa Fantoni, que era cega (Itlia).

    1870 "Bola de escrever'', do pastor dinamarqus Malling Hansen.

    1873 E. Remington and Sons, fabricantes de armas, compraram os direitos de fabricao da mquina de escrever em 1872.

    1874 Mquina de escrever Scholes&Gliden (Estados Unidos). Seu principal criador, Chistopher L. Scholes, era jornalista, poe-ta e, por vezes, inventor.

    1895 Underwood- modelo de mquina de escrever que foi segui-do ao longo do sculo XX.

    1900 inventada a mquina de escrever porttil. 1920 inventada a mquina de escrever eltrica. 1930 A IBM lana a mquina Eletronate.

    1964 A IBM Seletic permite vislumbrar o que ser um processador de texto.

    1985 A Microsoft lana o "WOrd 1.0, primeira verso do processador de texto mais popular atualmente.

  • . l ~~ !Q1..A SOCIAL J,~ ;fJJ- J,o- ~,....

    O poeta chega nale~tao do caminho oe ferro. O poeta desembarca. _ ;r: O poeta toma um au.to. ~ , (JVVO O poeta vae para o hotel. E em~uanto elle realiza

    es~es e _ de todo dia, uma ovauo o persegue como uma vaia. Banas de musica, foguetes, discursoe, o povo de chapo de pa:J.ha, :machinas photographicae aE:'seetadas, ruido de gente, fon-fon doa automoveis, os bravos ... O poeta est melanoolico.

    Numa arvore do passeio publico (melhoramento da ul tiz:1a ad.niinietrao ), uma drvore verde, prisioneira de grades , uma arvore banal, uma arvore que ninguern v, c._n ta uma ci .c:arra. ~11~ Canta uma cigarra que ninguem ouve u~ hyrc..no que nin~uetJ a.pplaude. Canta, numo, r~loria silenciosa.

    o poeta entra no elevador, o po eit-a. sobe, o poeta fecha-se no quarto,

    o poeta est melancolico.

  • UM PALCIO Domingo, 23 de junho de 194 ...

    Meu caro Carlos, Para no transmitir ao nosso amigo Capanema impresses intei-

    ramente levianas a respeito dos projetos submetidos ao exame da Co-misso julgadora do Concurso aberto para o Edifcio do M.E., Manuel Bandeira e eu recorremos a um arquiteto de talento e digno de farte con-fiana.

    Rodrigo de Melo Franco de Andrade

    Nos anos 1930, o Governo Federal constri ministrios e mo-numentos no Rio de Janeiro, apostando em uma nova face para a cidade. O Ministro Gustavo Capanema faz parte desse esforo renovador e abre, em abril de 1935, concurso de anteprojetos para o prdio que ir abrigar o Ministrio da Educao e Sade.

    O projeto vencedor do concurso, de Archimedes M emria, tinha cara de passado: prdio neogrego com motivos da flora e fauna ama-znica, calcado na arte marajoara. Os artistas modernos no se con-formam com a escolha e pressionam Capanema para deixar de lado o concurso. Deste grupo fazia parte Carlos Drummond de Andrade.

    O ministro Gustavo Capanema convida Lcio Costa, Afonso Eduardo Reidy, Carlos Leo, Jorge Maia, Ernandes Vasconcelos e Oscar Niemeyer para projetar o prdio do ministrio. Lcio Costa, por sua vez, chama Le Corbusier para prestar consultoria. Os cro-quis do arquiteto franco-suo servem de base ao projeto, com uma srie de modificaes propostas por Oscar Niemeyer. Orgulho da arquitetura nacional, marca do moderno no Brasil, o Palcio Capa-nema, como hoje conhecido, tornou-se um marco da arquitetura brasileira e internacional. 70

    Projeto de Le Corbusier (1936) 1 Marcella Az.al/Acervo lphan

    Drummond entre os pilotis do palcio 1 Arquivo Carlos Drummond de Andrade AMLB/ FCRB

  • Palcio Gustavo Capanema 1 Ricardo Azouri/Pulsar imagen

    1 Ricardo Azouri/Pulsar imagen

    Pilotis em escala monumental, que parecem deixar o prdio flutuando: Praa, que permite a passagem de pedestres sem entraves

    Maquete do Palcio Gustavo Capanema 1 Max Rosenfeld/Fundao Getulio Vargas - CPDOC

    1 Marcel Gautherot/Fundao Getulio Vargas - CPDOC

    Jardim suspenso criado pelo paisagista Roberto Burle-Marx

    Azulejos de Cndido Portinari. O prdio tem tambm painis de Guignard, Pancetti , e esculturas de Bruno Giorgi

    Drummond ocupa uma das salas desse prdio em 1944, como chefe de gabinete de Gustavo Capa-nema, e volta a ele para trabalhar no Servio de Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (SPHAN), convidado por Rodrigo Melo Franco de Andrade. Seu cargo era o de chefe da Seo de Histria, na Diviso de Estudos e Tombamentos, mas, na verdade, foi durante quase 20 anos chefe do arquivo. A ele se dedicou com cuidado, preciso e inventividade.

    71

  • Mquina de escrever de Clarice Lispector

    Toca-discos de Cornlia Pena

    Poltrona de Manuel Bandeira 1 Arquivo-Museu de Literatura Brasileira/ FCRB

    72

    DRUMMOND ARQUIVISTA

    Carlos Drummond de Andrade apresentou uma tendncia a apontar acontecimentos, fazer listas, rotular experincias, classifi-cando o mundo para tentar compreend-lo a partir do seu olhar. Tratou de pensar o mundo ordenando-o (ou desordenando-o) por exerccios de sensibilidade.

    A criao de um museu de literatura coaduna-se a essa tendncia arquivista do autor, manifestada na maneira como organizava suas fotos, cartas, textos, desenhos. Drummond a apresenta como sonho e fantasia, em crnica publicada no jornal do Brasil em 11 de julho de 1972.

    Velha fantasia deste colunista - e digo fantasia porque continua dor-mindo no poro da irrealidade - a criao de um museu de literatura. Temos museus de arte, histria, cincias naturais, carpologia, caa e pesca, anatomia, patologia, imprensa, folclore, teatro, imagem e som, moedas, armas, ndio, repblica ... de literatura no temos [..}

    Drummond, Jornal do Brasil, 11 de julho de 1972

    D esde 28 de dezembro de 1972 a Fundao Casa de Rui Barbo-sa abriga em sua sede, situada rua So Clemente, 134, Botafogo, Rio de Janeiro, o Arquivo-Museu de Literatura Brasileira. Inicial-mente foi dirigido por Plnio Doyle e no momento rene acervos de escritores como Clarice Lispector, Manuel Bandeira e o prprio Drummond, alm de um acervo museolgico que rene cerca de 1.200 peas de natureza diversa: canetas, medalhas, mveis, peas de indumentria .. .

    Os guardados esto em ordem, graas a ele, que no tem fama de or-ganizado, enquanto eu, o arquivista profissional, sinto que por mim a arrumao jamais se faria. Sem tristeza os tiramos da arca, miramo-los, notamos este ou aquele pormenor que ficou precioso considerado de p erto e de depois, v oltamos a deposit-los onde dormiam. Sem tristeza. At com a mida, reflexiva alegria dos proprietrios de velhas lembranas.

    "O amigo que chega de longe". Drummond, 1 de maro de 1968

  • < n \IP. J< 'L\.P i:c '\!o 010~

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    12 7

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    13 6

    ~ ~\J 16 17

    20 4

    18 19 ~ 21

    25 3

    2

    1

    Complete os pontos e descubra a caricatura de Drummond feita por ele mesmo.

    Elucidao de Completar pontos 1 Veja pg.100

    73

  • EM TEMPOS DE CHUMBO

    A cantora Nara Leo participou do show Opinio, em 1965, com Joo do Vale e Z Kti, tempo em que comea uma srie de atribulaes que ela vem a ter com o Governo Militar 1 Arquivo o Cruzeiro/EM/DA Press

    Na obra Versiprosa, h uma srie de poemas em que Drum-mond faz uma espcie de "revista" dos acontecimentos do ms ou da semana. Nesse livro, composto por crnicas em verso, o poema mais "colado ao fato" do que nas crnicas em prosa, que tendem transfigurao do acontecimento, ao fantasioso. Alm disso, em Versiprosa, Drummond realiza algumas peti-es em verso.

    importante observar tambm que o ltimo poema em que Drummond faz "revistas" dos fatos datado de outubro de 1966 (h poemas publicados at em junho de 1970). Duran-te o perodo de chumbo da ditadura, os textos de Versiprosa tornam-se menos "factuais" ou "realistas", por falta de expres-so melhor. Comeam a surgir textos de reflexo a respeito da condio humana.

    74

    APELO

    Meu honrado Marechal dirigente da nao, venho fazer-lhe um apelo: no prenda N ara L eo.

    Soube que a Guerra, por conta, lhe quer dar uma lio. Vai enquadr- la - esta forte no artigo tal. .. no sei no.

    A menina disse coisas de causar estremeo? Pois a voz de uma garota abala a Revoluo?

    [ .. . ] De msica precisamos, para pegar no rojo, para viver e sorrir, que no est mole no.

    N ara pssaro, sabia? E nem adianta priso para a voz que, pelos ares, espalha sua cano.

    Meu ilustre Marechal dirigente da N ao, no deixe, nem de brinquedo, que prendam Nara L eo.

    Drummond, Versiprosa

    Trechos do poema '/'\pelo", em que o poeta intervm a favor da cantora Nara Leo

  • Em 1970, houve uma campanha ufanista, deflagrada pelo governo militar, que visava a ligar futebol e a imagem de um Brasil vitorioso em todas as reas. Aps a conquista da Copa do Mundo, o cartu-nista Jaguar lanou a seguinte imagem, ligada a trecho do poema "Jos", de Drummond.

    (,f l)'I SL l'l i RRO

    jaguar jaguar

    " E agora Jos? A festa acabou, A htz apagou, O povo sumiu, A noite esfriou, E agora, Jos?

    C..rloa Drummond dt Andrade

    "

    E agora Jos? A festa acabou, A htz apagou, O povo sumiu, A noite esfriou, E agora, Jos? " Ca.rtos Dnun.mond dt Andrade

    Esta ilustrao que fiz para os versos de Carlos Drummond de Andrade quase provocou a priso do p oeta. Tive um trabalho danado para convencer o general da Censura que publiquei o desenho sem p edir a autorizao do autor.

    Jaguar

    Elucidao do Jogo dos sete erros ! Veja pg. 101

    75

  • MSICA, MAESTRO! 2 projetos em 1.

    3 1 poemas musicados + 31 gravuras do nosso poeta maior.

    "' JvA R1As 10 < CARA~ m

    O compositor Belchior lanou, em 2003, um livro, acompanhado de dois CDs, em que musicou 31 poemas de Carlos Drummond. O livro trazia 31 caricaturas do poeta feitos por Belchior

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    Carlos Drummond foi grande apreciador de m-sica. Esse era um assunto muito frequente em suas crnicas e tambm nas conversas com os amigos, especialmente com Mrio de Andrade. Estima-se que existam mais de cem peas compostas a partir de poemas de Drummond.

    A respeito de um caso de suspeita de plgio, que envolvia Villa-Lobos, acusado de copiar indevida-mente uma composio de Catulo, Drummond escreveu uma crnica em que deixou clara sua pro-funda admirao pelo msico brasileiro:

    Vil/a-Lobos realmente um excelso ladro. Sua obra monumental, fartou-a do Brasil, do sentimento, da graa rtmica, do arrepio interior de nossa gente; de-pois, fartou para ns a admirao do mundo.

    "O sono da msica". Drummond, 13 de janeiro de 1954

    Em outra crnica, cita a carta que recebera de Bandeira, que dizia que Villa-Lobos musicara seu poema "Cantiga de vivo": "O Villa, que anda numa fase folclrica, est escrevendo uma srie de serestas sobre versos nossos. [ ... ] A 'Cantiga de vi-vo' tambm est feita e ficou deliciosa. [ ... ] No me lembro se ca duro de espanto ou se pulei de felicidade. [ .. . J Em 1934, o compositor me concede outra honra: musicara o meu poema 'Jos'[ ... ]." "Vil la-Lobos numa sala". Drummond, 11 de novembro de 1962

  • Alguns poemas de Drummond que j foram musicados: "Cantiga de vivo" - 1925, Villa-Lobos.

    "Qyero me casar" - 1931, Frutuoso Viana. "Qyadrilh' e "No meio do caminho" - 1938, Francisco Mignone. "Jos" e "Viagem na famlia" -1944, Villa-Lobos.

    Composio do pernambucano Loureno da Fonseca Barbosa, o Capiba, sobre poema "Memria" 1 Arquivo Carlos Drummond de Andrade - AMLB/FCRB

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  • AMIGO OUVINTE!

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    Em 1961, Drummond colabora no programa Quadrante da Rdio Ministrio da Educao, institudo por Murilo Miranda.

    O ator Paulo Autran comenta o sucesso do programa Quadrante: "[ ... ] os cronistas eram a nata da inteligncia do Rio de Janeiro.

    Era Carlos Drummond, Ceclia Meireles, Dinah Silveira de Qyei-roz, enfim, um para cada dia da semana. Ento era um programa privilegiadssimo. Durava no mximo cinco minutos, que era o tem-po de leitura de uma crnica. Ia ao ar s oito horas da noite, e era repetido no dia seguinte, ao meio-dia. Era um dos programas de maior audincia [ ... ]."

    VOC SABIA? A radiodifuso sonora chegou ao Brasil em 1922, ano do centen-

    rio da Independncia. No dia 7 de setembro daquele ano, o discurso do ento presidente Epitcio Pessoa foi transmitido ao grande p-blico.

    At a dcada de 1930, o rdio expandiu-se por todo o Pas, levan-do ao povo msica e informao.

    Cartaz programa de rdio Quadrante, 1961

  • Drummond em estdio, gravando poemas 1 Arquivo Carlos Drummond de Andrade -AMLB/FCRB

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    l ISTERIO DE T~Sl'ORiES Of lA NACtN EMPRESA NACIONAL D TRANSf'ORTES

    FLOTA . ERCA. TTE DEL ESTADO M/N. "RIO JACHAL"

    . .. . ... .... de 195 ...

  • "Era um rabisco e pulsava." Essas fo-ram as palavras de Carlos Drummond de Andrade depois de ler o relatrio es-crito e desenhado por Lcio Costa para criao da cidade de Braslia.

    Croquis feito por Lcio Costa, em 1956, com esboo do traado urbano da capital federal 1 Acervo Casa de Lcio Costa

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    Parte do projeto-piloto da cidade de Braslia 1 Acervo Casa de Lcio Costa

    Carlos Drummond de Andrade trabalhava com Lcio Costa no Ministrio da Educao e a ele coube a tarefa de ler o projeto: "Peguei da folha e tive entre os dedos nada menos que a cidade de Braslia, inexistente e completa, como um germe contm e resume a vida de um homem, uma rvore, uma civilizao."

    82

    / /

  • MQUINA DE ESCREVER: , O manuscrito do Lcio foi levado a uma firma da rua da Quitanda, no Rio de Janeiro, com a orientao de que fosse datilografado ' em espao 2 e se fizessem duas cpias.

    ---- ---- - -~ --- ---~---~-~------1

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  • OSABADOYLE

    Em 1964, Drummond comeou a frequentar a casa de Pl-nio Doyle, um respeitvel biblifilo, a fim de fazer consulta biblioteca para a escrita de suas colunas no jornal. Aos poucos, essas visitas tiveram pblico ampliado, e assim formou-se uma das maiores confrarias literrias de que se tem notcia at hoje. Oficialmente, as reunies duraram, com poucas interrupes, 34 anos (1964-1998). O nome, registrado em ata no ano de 1974, foi dado por Raul Bopp, que assim o definiu: "reunio aos sbados na casa de um cidado chamado Plnio Doyle." Falava-se, sobretudo, de literatura e artes, mas o horizonte de assuntos era amplo, des-de que no se tratasse de poltica e religio.

    Na biblioteca de Plnio Doyle, Novembro 1972: Da esquerda para a direita, sentados: Joaquim lnojosa, Prudente de Morais, Cndido Mota Filho, Carlos Drummond de Andrade, Raul Bopp, Pedro Nava; em p: Fernando Monteiro, Gilberto Mendona Teles, Raul Lima, Alphonsus de Guimares Filho, Mrio da Silva Brito, lvaro Cotrim (Alvarus), Paulo Berger, Plnio Doyle, Pricles Madureira de Pinho 1 Arquivo Carlos Drummond de Andrade - AMLB/FCRB

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  • ALGUNS DEPOIMENTOS SOBRE O SABADOYLE:

    Ata em comemorao aos vin-te anos de Sabadoyle, escrita por Drummond:

    [..} Os vinte anos decorridos aps

    aquela primeira conversa dividida entre a voluptuosidade da pgina impressa e as douras do Natal, so outros tantos vividos por Plnio Doyle no esforo de manter aceso um ideal de confraternizao margem de todos os motivos de ten-so e incompatibilidade ideolgica. N esse esforo, contou com a ines-timvel cooperao de Esmeralda, inesquecvel companheira de toda a vida, e conta com a de Sonia,ji-lha que prolonga, no sentimento e na vontade, os dons espirituais do casal. Pela saudade, vivem conosco, ainda, os companheiros desapare-cidos. Aqui estamos pois todos reu-nidos como uns poucos o estiveram em tarde esperanosa de dezembro de 1964: com a mesma alma aber-ta e o mesmo fervor de esprito e de corao.

    ATA N 7CO>CO> DO AIEADOYJLIE COMEMORATIVA 00S80 ANOS

    00 COMPANHEIRO GABRIEL VANONI DE BARROS

    E DOS78ANOS DO COMPANHEIRO

    AMl:RICO JACOBINA LACOMBE

    EDIES SABADOVLE 1987

    SABADOYLEI

    Uma ata obrigatria em tudo quanto sesso. Por isso, quando a pediram eu no pude dizer no. Juntei algumas palavras ao estilo de um tabelio. Se no fao o que me pedem fico de cara na mo! Na casa do Plnio Doyle s h uma obrigao: cafezinho e um bate-papo de sua predileo. Qyando hora de ir-se embora trocam-se apertos de mo. De acordo com o estatuto fica encerrada a sesso.

    Raul Bopp, 1974

  • Carlos Drummond de Andrade 1 Arquivo Carlos Drummond de Andrade - AMLB/FCRB

    A A CRNICA caderno

    "Ciao", despedida do poeta 1 Arquivo/CPDOC JB

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    Depois de mais de seis dcadas de jornalismo, em 1984, s vsperas de completar 82 anos, o poeta decide encerrar sua atividade de cronista.

    Em carta ao presidente do Jornal do Brasil, Drummond afirma: "Sin-to que hora de descansar e tambm de ceder espao a outros que comeam ou que esto em fase de desenvolvimento de carreira."

    CIAO

    H 64 anos, um adolescente fascinado por papel impresso notou que, no andar trreo do prdio onde morava, um placar exibia a cada manh a primeira pgina de um jornal modestssimo, porm jornal. No teve dvida. Entrou e ofereceu os seus servios ao diretor, que era, sozinho, todo o pessoal da redao. O homem olhou-o, ctico, e perguntou:

    - Sobre o que pretende escrever? - Sobre tudo. Cinema, literatura, vida urbana, moral, coisas deste

    mundo e de qualquer outro possvel.

    O diretor, ao perceber que algum, mesmo inepto, se dispunha a fa-zer o jornal para ele, praticamente de graa, topou. Nasceu a, na velha Belo Horizonte dos anos 20, um cronista que ainda hoje, com a graa de Deus e com ou sem assunto, comete as suas croniquices.

    [ ... ] E por admitir esta noo de velho consciente e alegremente, que

    ele hoje se despede da crnica, sem se despedir do gosto de manejar a palavra escrita, sob outras modalidades, pois escrever sua doena vital, j agora sem periodicidade e com suave preguia. Ceda espao aos mais novos e v cultivar o seu jardim, pelo menos imaginrio. Aos leitores, gratido, essa palavra-tudo.

    "Ciao" . ltima crnica do poeta. Jornal do Brasil , 29 de setembro de 1984

  • , /\

    Encontre nesta cruzadinha 16 ttulos do poeta itabirano.

    ETERNO - PALAVRAS NO MAR - INVENTRIO - CANO AMIGA -A FLOR E A NUSEA - O MEDO - POEMA DE SETE FACES -NO MEIO DO CAMINHO - TRISTEZA NO CU - SEGREDO - LAGOA -NOTURNO MINEIRO - INFNCIA - CONFIDNCIA DO ITABIRANO -O ENIGMA - ITABIRA

    11 1 1 ] ~N ] '3 [4p

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    Elucidao das Palavras cruzadas ! Veja pg. 101

  • 1 *

    1 SABORES E NOSTALGIAS

    MEMRIA DO PALADAR, NOSTALGIA DA INFNCIA

    Passa o tabuleiro de quitanda: po-de-queijo rosca brevidade broa de fub bolo de feijo tudo que gostoso e eu vou comprar eu vou comer o dia inteiro a vida inteira o sortimento deste tabuleiro.

    Drummond, Boitempo

    A memria do paladar recompe com p reciso instantnea, atravs daquilo que comemos quando meninos, o menino que fomos. O cronista, se fosse escrever um livro de memrias, daria nele a maior importncia mesa de famlia, na cidade do interior onde nasceu e passou a meninice.

    "O cu da boca". Drummond, A bolsa e a vida

    Algumas linhas apenas, para situar no tempo as refeies. A cordar s sete (com aquele frio de montanha) e caf com leite; almoo s nove, lanche s doze (chamava-se caf do meio-dia e era um novo caf com leite). Esses cafs eram forrados a biscoito de polvilho, po de queijo, bolo de feijo que ardia na boca, de to apimentado, rosca, ou queca (nacionalizao do cake ingls). Coisas diversas, que meninos de tabuleiro cabea iam vendendo de porta em porta - e que se adquiriam um pouco por serem gostosas, enquanto o po de trigo da cidade era geralmente ruim, e outro pouco para ajudar as vivas ou velhas parentes pobres que as fabricavam.

    "O cu da boca". Drummond, A bolsa e a vida

    PARA TODOS OS GOSTOS "A culinria brasileira rica e inventiva. O cardpio indgena, as comidas africanas e a culinria

    portuguesa formam a sua base, retocada pela influncia do gosto alimentar de outros pases, como a Frana e a Itlia."

    Cmara Cascudo, em Histria da alimentao no Brasil, revela que os mineiros tm uma "queda