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Viviane Diehl A EDUCAÇÃO DO SENSÍVEL: MODELANDO O BARRO E (RE)SIGNIFICANDO O CORPO Dissertação apresentada ao curso de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade de Passo Fundo, como requisito para a obtenção do grau de Mestre em Educação, tendo como orientadora a profa. Dra. Graciela Ormezzano. Passo Fundo 2006

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Viviane Diehl

A EDUCAÇÃO DO SENSÍVEL: MODELANDO O BARRO

E (RE)SIGNIFICANDO O CORPO

Dissertação apresentada ao curso de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade de Passo Fundo, como requisito para a obtenção do grau de Mestre em Educação, tendo como orientadora a profa. Dra. Graciela Ormezzano.

Passo Fundo

2006

2

A todos os educandos com os quais convivi e

àqueles com quem ainda vou viver momentos de

sensibilidade.

“...duas mãos e o sentimento do mundo.”

Carlos Drummond de Andrade

3

NNo o pprriinnccííppiio o DDeeuus s ccrriioou u o o mmuunnddoo..

EEnnttãão o vviiu u qquue e pprrececiissaavva a dde e aallgguuéém m ppaarra a hhaabbiittáá--lloo

E E o o hhoommeem m ddo o bbaarrrro o sse e ffeezz......

EEnnqquuaanntto o ccrriiaannççaass, ,

O O bbaarrrro o mmaacciioo, , úúmmiiddoo, , aammaassssaa,,ddeesslliizzaa, , aaccaarriicciiaa,,

BBrriinncca a nnaass mmããooss..

PPeerrcecebbeemmooss, , sseennttiimmooss,,aapprrececiiaammooss, , eexxppeerriimmeennttaammooss, ,

MMoollddaammooss......

E E ffoommoos s eessqquueceecennddo o aaqquueelle e bbaarrrro o eem m aallgguum m lluuggaarr,,

O O bbaarrrro o ssececoouu!!

SSoommoos s JJoovveennss,,

SSoommoos s aadduullttooss..

MMaas s ppooddeemmoos ts toorrnnaar r eesssse e bbaarrrro o mmaacciio oo ouuttrra a vveezz

É É pprreecciisso qo quueerreer r

É É pprreecciisso o pprreeststaar r aatteennççããoo

E E ccoollooccaar r áágguua a oouuttrra a vveezz

NNoovvaammeenntte e úúmmiiddoo, , aammaassssaarr, , mmiiststuurraarr, , aaccaarriicciiaarr,,

PPaarra a aassssiimm..... . TTrraannsfsfoorrmmaarr..

Viviane Diehl

4

RESUMO

Esta pesquisa, de abordagem etnográfica, buscou compreender os significados da

educação do sensível, considerando-se o papel da arte para sua efetivação, na formação

escolar de adultos, tentando ampliar o entendimento da educação estética como um elemento

constitutivo do processo educativo. O estudo aborda o significado da educação do sensível na

cultura estabelecida na oficina de arte cerâmica para adultos. Com base nessa questão foram

definidos os seguintes objetivos: estudar as propostas da EJA em âmbito nacional e estadual;

evidenciar os fundamentos da educação do sensível e suas relações com a educação estética;

identificar as implicações da educação do sensível para o processo de educar e para a

construção da corporeidade de jovens e adultos numa oficina de arte cerâmica; criar uma

metodologia de trabalho que utilize a linguagem tridimensional da cerâmica e realizar uma

oficina pedagógica com os alunos do Núcleo Estadual de Educação de Jovens e Adultos e de

Cultura Popular Felipe Roberto Sehn, na cidade de Carazinho, RS. A compreensão das

informações seguiu os passos do método fenomenológico descrito por Ormezzano e Torres

(2003), a partir do qual emergiram as essências que seguem: as possibilidades educativas da

oficina, educação do sensível e corporeidade, subjetividade e intersubjetividade, arte cerâmica

e (re)significações. A pesquisa permitiu compreender que as ações envolvendo a sensibilidade

são provocadoras e potencializam o valor do ensino da arte para a construção da corporeidade

na educação comprometida com o saber sensível e inteligível, gerando novas atitudes dos

educandos para com a vida.

Palavras-chave: educação estética, educação do sensível, educação de adultos, arte cerâmica.

5

ABSTRACT

This study of ethnographic approach has aimed at understanding the meanings of the

education of the sensitive, taking into account the role of art for its effectiveness on the

education of adults. That is an attempt to widen the understanding of esthetic education as a

constitutive element of the educational process. The study approaches the meaning of the

education of the sensitive in the culture established at the workshop of ceramic art for adults.

Based upon that issue, the following goals have been determined: studying the EJA

propositions both in a state and in a national level; evidence the foundations of the education

of the sensitive and its relations with esthetic education; identify the implications of the

education of the sensitive on the educational process and the corporeity of adults and young

adults in a workshop of ceramic art; create a methodology which uses ceramics’

tridimensional language and carry out a pedagogical workshop with students from Núcleo

Estadual de Educação de Jovens e Adultos e de Cultura Popular Felipe Roberto Sehn, in

Carazinho, RS. The understanding of the information followed the steps of the

phenomenological method described by Ormezzano and Torres (2003), from which the

following aspects came out: the educational possibilities of the workshop; education of the

sensitive and corporeity; subjectivity and intersubjectivity; ceramic art and (re)significations.

The research which allowed us to understand that the actions involving sensitivity are

provoking and increase the value of art teaching for the construction of corporeity in

education committed with sensitive and intelligible knowledge, thus generating new attitudes

of the students towards life.

Key words: esthetic education, education of the sensitive, education of adults,

ceramic art.

6

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................................................08

1 POR ONDE ANDA A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS.......................................16

1.1 A proposta da educação de jovens e adultos no Brasil....................................................17

1.2 O compromisso do Rio Grande do Sul com a EJA..........................................................21

1.3 Questões político-pedagógicas da educação de jovens e adultos....................................24

2 A EDUCAÇÃO DO SENSÍVEL...........................................................................................28

2.1 Escritos sobre estética e educação...................................................................................31

2.2 Educação do sensível para o encantamento do saber sensível.........................................35

2.3 A experiência sensível revelada com a corporeidade......................................................39

2.3.1 A (re)significação na oficina de arte.......................................................................41

2.3.1.1 A cabeça...............................................................................................................41

2.3.1.2 A identidade da máscara do rosto........................................................................42

2.3.1.3 Os registros na pele: cultura maori......................................................................44

3 VIVÊNCIAS DO SENSÍVEL NA OFICINA PEDAGÓGICA DE

ARTE CERÂMICA..................................................................................................................48

3.1 Os encontros na oficina....................................................................................................50

4 AS ESSÊNCIAS FENOMENOLÓGICAS............................................................................57

4.1 As possibilidades educativas da oficina...........................................................................58

4.1.1 O saber com prazer: proposta de ensino-aprendizagem..........................................58

4.1.2 A realidade escolar da EJA: adultos jovens, médios e idosos................................61

4.1.3 A escultura na arte cerâmica...................................................................................63

4.2 Educação do sensível e corporeidade..............................................................................64

4.2.1 Percepção, sensibilidade e inteligibilidade.............................................................65

4.2.2 Desafios impertinentes da corporeidade: resistência e mudança............................67

7

4.2.3 Corpo: identidade e pertencimento.........................................................................70

4.3 Subjetividade e intersubjetividade...................................................................................72

4.3.1 Fragmentos de histórias de vida..............................................................................72

4.3.2 O saber de si mesmo, e o (re)conhecer-se...............................................................74

4.3.3 Contextos intersubjetivos: conhecer o outro, o grupo da oficina............................76

4.4 Arte cerâmica e (re)significações.....................................................................................78

4.4.1 O fazer na arte cerâmica: o eu e a forma..................................................................78

4.4.2 Possibilidades da criatividade na arte cerâmica.......................................................80

4.4.3 Processo cerâmico e os significados sentidos..........................................................81

CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................................84

REFERÊNCIAS........................................................................................................................87

ANEXOS..................................................................................................................................93

8

INTRODUÇÃO

Os dedos duplicados por uma lembrança de argila Em movimento sob o desejo das mãos

Jean Tardieu

Modelagem... Lembrança de criança...

Amassar pequenas partes de barro...

As bolinhas de terra vermelha rolavam na palma das mãos, entre os dedos.

Eu e meu avô fizemos muitas delas, que, depois de secas ao sol, serviam para espantar

os passarinhos que teimavam em beliscar as folhas das verduras na horta. Fico questionando

se essas passagens do cotidiano, com o barro, podem ter tido alguma significação para as

escolhas que fiz.

Quando eu estava na primeira série, a professora chamou minha mãe à escola,

admirada com meus desenhos, que passeavam pelas folhas do caderno entre as letras que eu

começava a conhecer e iam se espalhando entre palavras, números, cálculos, fórmulas,

textos...

Na minha adolescência, meu pai comprou um aparelho de som. Então, todos os

domingos pela manhã, a casa era envolta em sinfonias que toda a vizinhança podia

compartilhar tão alto era o volume. As músicas clássicas ecoavam para despertar a casa toda;

eram lindas e muitas vezes traziam tanta emoção que eu chorava quando as ouvia. Meu pai

nunca falou do sentir, que considerava “bobagem”, mas também chorava quando ouvia suas

músicas preferidas, o que acontece até hoje, e até com mais freqüência.

A sensibilidade, a arte, sempre estiveram presentes. Lembro-me de estar envolvida

nesse mundo procurando desenvolver as habilidades, imaginar, criar.

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Então, minha prima pediu à minha mãe que permitisse que eu fosse com ela às aulas

de pintura de uma professora particular. Comecei a pintar quadros e a professora dizia:

“Escolham a estampa, vamos começar a pintar”. E ela desenhava na tela para que eu

começasse a pintura (até se parece com uma história conhecida sobre flor vermelha de caule

verde). Contudo, eu decidi aprender a desenhar. Em outro ateliê, com um frio na barriga no

dia de iniciar, a professora disse: “Agora vamos apenas riscar, experimentem traçar muitas

linhas diferentes”. E então continuei observando tudo e, ao olhar, muitas coisas foram sendo

descobertas. Os potes iam se transformando (eles já passeavam por aqui), as frutas e flores,

jarros e vasos, paisagens.

Foram muitos, inúmeros desenhos, até que decidi desenhar pessoas. Eu queria

experimentar e surgiram mais outros tantos desenhos. Conheci as cores e as muitas misturas

que podia fazer para pintar uma tela que escolhi entre meus próprios desenhos: um pote e uma

maçã. Foram suportes diferentes, muitas tintas, aquarelas e lápis de todos os tipos para

experimentar.

O tempo foi passando... Entre cartazes e planos de aula, o estágio chegou para dar

início a uma outra fase e muitas crianças para ensinar. Comecei a trabalhar como educadora,

mas, mesmo antes disso, já ensinava a desenhar e pintar no ateliê que iniciava em casa.

Experimentando, experienciando... Aprendi a pintar cerâmica e foi tudo diferente,

especialmente a queima no forno.

Então decidi fazer o vestibular e o meu pai contestou: “Para que vestibular?”.

Escolhi o curso de educação artística, concluí o bacharelado e a licenciatura, sempre

conciliando a artista e a educadora. Envolvida em muitas atividades, mantinha no ateliê a

produção artística e cursos informais de artes. Atualmente, a Casa-Atelier Vivie Diehl

desenvolve peças em cerâmica e vidro fundido. Pelo barro tenho um fascínio especial:

amassar com as mãos, tocar, moldar, construir, desconstruir, transformar.

Minha experiência no curso de graduação na Unoesc – Campus de São Miguel do

Oeste e também no Campus de Xanxerê, onde atuo como educadora na disciplina de

Cerâmica, é um trabalho instigante, um processo que requer uma ação reflexiva das propostas

desenvolvidas em sala de aula com as futuras(os) educadoras(es) de arte.

No percurso do magistério estadual, trabalhei num Centro Integrado de Educação

Pública (Ciep) e, logo em seguida, num Centro Interescolar de Ensino com oficinas técnicas

que foram extintas. Então, a escola preparou-se para receber alunos da educação de jovens e

adultos, passando a ser um núcleo que oferecia ensino regular nas totalidades, exames

fracionados e exames supletivos. De início, foram oferecidas diversas oficinas para os alunos,

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integradas no horário regular, nas quais eu trabalhava com a cerâmica; depois, a aula de artes

foi inserida na carga horária das totalidades e, atualmente, a proposta do núcleo foi

reestruturada deixando de oferecer o ensino regular em totalidades. A partir do ano de 2006, o

núcleo oferece regularmente apenas os exames supletivos e os exames fracionados para

aqueles que estão fora da escola.

Conforme consta nas diretrizes pedagógicas da EJA (2003-2006), a arte é integrante

da área sociolingüística e se faz obrigatória em apenas uma das totalidades do ensino

fundamental e uma das totalidades do ensino médio, o que consideramos acentuar a

desvalorização do ensino da arte. Com uma profunda preocupação, constatamos que ações

como essa fazem com que a arte continue perdendo seu espaço e importância na educação.

Desse modo, visando suprir algumas das tantas necessidades e dificuldades

vivenciadas na prática educativa, pensamos poder contribuir para o resgate do ensino da arte

na escola, entendendo-a como central e fundamental do processo educativo, investigando uma

experiência de educação estética entendida como uma maneira de perceber e significar o

mundo compreendendo a educação do sensível.

Na tentativa de revelar a significação dos fenômenos surgidos na cultura de uma

oficina de arte vivida pelos educandos jovens e adultos, propusemos esta investigação

fenomenológica da educação em interface com a arte, considerando a possibilidade de

conhecer-se a si mesmo, estimulando a própria sensibilidade e a criatividade por meio da

linguagem tridimensional da cerâmica, com ênfase na modelagem da figura humana,

provocativa da corporeidade, aspecto importante para a organização dos saberes sensíveis.

O corpo é condição de vida e existência, cuja pluralidade e complementaridade se

expressam na corporeidade. Atualmente, o contexto social fragmentado tenta silenciar a

sabedoria do corpo e sua linguagem sensível, abandona essa condição, priorizando a

materialidade, um corpo de consumo, de imagens idealizadas, sem identidade, sem

experiências sensíveis.

Considerando que a corporeidade estabelece estreitas relações com a educação do

sensível, “o corpo nos revelará o sujeito que percebe assim como o mundo percebido”,

tornando-se importante trazer algumas reflexões para contribuir na compreensão dos achados

da pesquisa, que encontram subsídios na fenomenologia de Merleau-Ponty (1999, p. 110). A

existência realiza-se no corpo e é por meio dele que podemos estar-no-mundo, compreendê-lo

e encontrar uma significação para ele.

A possibilidade de reorientação do estar-no-mundo, de transformar a si mesmo, pode

ser oportunizada subjetivamente ao educando por meio da linguagem artística vivenciada no

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processo de modelagem, na transformação do barro. Experimentando percepções, emoções e

criando significados no fazer artístico, o educando pode compor referenciais para

compreender os fenômenos que ocorrem em si mesmo e nas inter-relações do contexto

cultural.

Segundo Bertrand e Valois (1994), uma visão epistemológica humanista promove a

concepção do conhecimento como um processo do organismo humano centrado na

subjetividade e na qualidade do ser que considera suas vivências, aprendendo a conhecer o

papel das percepções, dos sentimentos, da afetividade, dos desejos. Desse modo, confere-se

importância à sensibilidade e à capacidade criadora das pessoas a partir da experiência

pessoal, para poder compreender e reorientar aspectos significativos passíveis de

transformações que sejam portadoras de valor para a própria existência.

A educação do sensível constitui-se como saber elaborado por meio das sensações e

das percepções de si mesmo e do mundo vivido, potencializado na corporeidade, com o

propósito de favorecer vivências afetivas, intuitivas e criativas para que o corpo se amplie

como um organismo vivo. A arte tem fundamental participação nesse processo, sendo

apreendida primeiramente pela sensibilidade e seguida dos significados atribuídos,

oportunizando a experiência estética. O ser humano é um todo sensível capaz de sonhar, de

criar e recriar, potenciando-se a todo instante em essência e existência.

Assim, a arte pode ser pensada como possibilidade facilitadora de relações que possam

mostrar o sentido da vida às pessoas, mobilizar ordenações e desordenações num conhecer

mais profundo de si mesmo, provocar o encontro do mundo interno com o mundo externo,

quando atribuímos a devida atenção ao despertar da sensibilidade para com a vida mesma.

Portanto, o paradigma educacional humanista vem ao encontro desta proposta,

conforme escrevem Bertrand e Valois (1994), estando centrado no desenvolvimento da

pessoa, nas relações multissensoriais, promovendo a criatividade, a imaginação, a expressão

do eu, em processos transformadores para a vida plena. O reconhecimento de semelhanças

entre ações individuais e coletivas no grupo do qual faz parte presentifica o sentimento de

pertença. Neste estudo sugerimos uma proposta pedagógica humanista que se abre para

considerar também aspectos da sociedade e da cultura, dado que a ambiência da oficina tem

uma proposta de cunho social e, em se tratando de uma oficina de arte, não seria possível

deixar de lado a dimensão cultural.

No processo de ensino-aprendizagem é preciso atenção e estímulo para que os sujeitos

ampliem sua sensibilidade e, a partir dos valores pessoais aliados aos valores compartilhados,

possam construir e reconhecer uma existência própria, fortalecendo o sentido de

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pertencimento. A concepção do mundo vivido se constrói e se desconstrói na coexistência do

coletivo e do individual e no reconhecimento e valorização das inter-relações com identidades

culturais diversas, ou seja, na interculturalidade.

Richter escreve que, atualmente, o termo “interculturalidade vem sendo utilizado

quando se refere as propostas que estabeleçam a inter-relação entre os códigos culturais de

diferentes grupos culturais”. (2003, p.19). A questão da diversidade cultural também é

encontrada na literatura no termo “multiculturalidade”, nas propostas de estudos atuais sobre

o ensino da arte, como sinônimo de “pluralidade ou diversidade cultural”. Para este estudo

pensamos que o termo “interculturalidade” parece ser o mais adequado, pois a definição da

autora vem ao encontro da pesquisa apresentada na compreensão da existência de processos

culturais comuns às culturas abordadas na oficina.

Estudos propostos na área das ciências humanas e sociais têm sua origem na

fenomenologia e dela decorrem diversas correntes de investigação na educação. O potencial

da abordagem etnográfica para esta pesquisa reside no estudo das questões escolares,

investigando as práticas educacionais, sua proposta e a significação na vida dos educandos;

por isso, consiste numa metodologia que se volta para o universo da problemática, tendo

como método de coleta das informações a observação participante.

A problemática construída busca compreender o significado da educação do sensível

para resgatar e desenvolver a sensibilidade, ou seja, a capacidade dos educandos de

reconhecerem as sensações que lhes são oferecidas pelos sentidos a partir do mundo vivido na

cultura da oficina de cerâmica.

Esse processo vivenciado no meu cotidiano e este estudo promoveram inúmeros

questionamentos e um estímulo para a atenção à sensibilidade, tentando romper com os

padrões que aprendemos a aceitar e que não permitem o reconhecimento do sentir. Sendo este

um estudo etnográfico, não são construídas hipóteses, mas, sim, questões de pesquisa, as

quais são: Que propostas possui a EJA em âmbito nacional e estadual? Quais são as relações

que se estabelecem entre a educação do sensível e a educação estética? Quais são as

implicações da educação do sensível para o processo de educar e para a construção da

corporeidade de jovens e adultos numa oficina de arte cerâmica? Como criar uma

metodologia de trabalho que utilize a linguagem tridimensional da cerâmica e realizar uma

oficina pedagógica com os alunos da EJA de Carazinho?

Na tentativa de responder a essas questões, elaboramos os seguintes objetivos: estudar

as propostas da EJA em âmbito nacional e estadual; evidenciar os fundamentos da educação

do sensível e suas relações com a educação estética; identificar as implicações da educação do

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sensível para o processo de educar e para a construção da corporeidade de jovens e adultos em

uma oficina de arte cerâmica; criar uma metodologia de trabalho que utilize a linguagem

tridimensional da cerâmica e realizar uma oficina pedagógica com os alunos da EJA de

Carazinho.

Desse modo, com o intuito de compreender a significação da educação do sensível por

meio da arte, construímos os subsídios teóricos que apontam contribuições para esta

investigação. O primeiro momento situa a educação de jovens e adultos no Brasil para

chegarmos à realidade dessa modalidade de ensino no Rio Grande do Sul, fazendo

considerações históricas e pedagógicas que norteiam os Núcleos de Educação de Jovens e

Adultos, entidade-campo onde será feita a coleta dos dados.

Na segunda parte, adentramos no universo da educação estética, resgatando alguns

aspectos históricos que consideramos importantes e abordando a educação do sensível na

trajetória da concepção do saber sensível, que é discutido nesta pesquisa, com destaque para

os escritos de João-Francisco Duarte Júnior, entre outros autores humanistas que dialogam

sobre a necessidade atual da educação do sensível. O saber do corpo separado do saber da

mente contribuiu para a crise da modernidade, analisada pelo autor na obra O sentido dos

sentidos (2004), que propõe uma oportunidade para se repensar a vida cotidiana com

sensibilidade. Afirmações dessa natureza parecem causar um completo estranhamento e até

antagonismos quando propostas para o ensino.

Muitos escritos têm mobilizado estudos sobre o sentido do sensível, discussão que

vem de muito tempo e também é encontrada nas obras de Lowenfeld (1970), Ostrower

(1984), Maffesoli (1995), Damásio (1996), Merleau-Ponty (1999), Read (2001), Meira (2003)

e Duarte Júnior (2004).

Para o trabalho de campo foi construída uma proposta prática sob a forma de oficina

de arte, descrita no terceiro momento, contemplando a linguagem tridimensional da cerâmica,

que, pela sua característica transformadora, foi privilegiada nesses encontros. Também

incluímos a vivência de experiências sensíveis nas atividades de sensibilização, para que os

sentidos possam ser despertados, redescobertos, estimulados.

Música, poesia, essências, tocar a si mesmo e ao outro, amassar o barro, moldar,

experimentando sensações e emoções são vivências perceptivas que podem contribuir com o

propósito desta investigação. Essas atividades diversas não se submetem apenas à prática, mas

envolvem o educando como um todo, transitando pelos saberes de outras áreas do

conhecimento, mediando relações e inter-relações que evidenciem o encontro consigo mesmo

no reconhecimento da própria identidade.

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A realidade da oficina de cerâmica, conforme Oly Pey (1997), caracteriza-se pela

multiplicidade de sentidos num contexto cultural educacional que pode ser compreendido

segundo múltiplos significados, os quais se apresentam por meio da prática educativa.Tendo

este estudo priorizado a educação do sensível, para a qual as experiências vivenciadas pelo

corpo são imprescindíveis, escolhemos como temas para a oficina a cabeça, a máscara do

rosto e as tatuagens faciais da cultura maori1.

A vivência das atividades na oficina mostrou-nos as diferentes possibilidades, pois a

arte, estando presente na vida dos educandos e apresentando diferentes propostas que

facilitam o modo como cada um desenvolve suas potencialidades sensíveis e criativas,

possibilita o agir criador e transformador que podemos encontrar por meio da expressão

artística, num percurso que precisa ser desencadeado com a sensibilidade de cada um, na

busca da sua essência e atribuindo significados ao existir.

No processo de redução fenomenológica emergiram as essências das dimensões

significativas do fenômeno, que são descritas e interpretadas na última parte do corpo do

trabalho na tentativa de trazer algumas das possíveis contribuições da educação do sensível

observadas na cultura da oficina de arte para os adultos. As informações foram coletadas e

registradas no diário de campo, considerando a descrição do ambiente, as pessoas, as falas e

atitudes dos educandos, as transcrições das gravações, observações, percepções e

considerações do educador, as fotografias e as produções para tentar responder à problemática

da pesquisa.

A partir da leitura atenta das observações sem preconceitos e sem considerar os

conhecimentos prévios, os achados foram sistematizados para a compreensão nas quatro

etapas do método fenomenológico proposto por Giorgi e mais uma por Comiotto

(ORMEZZANO; TORRES, 2003), nos seguintes passos:

• O sentido do todo;

• As unidades de significado;

• A transformação das unidades significativas;

• A síntese das estruturas de significado;

• As dimensões fenomenológicas.

1 Os maoris são um povo primitivo da Oceania que têm resgatado a sua cultura ancestral preservando-a e

cultivando tradições milenares, como as tatuagens faciais, chamadas moko.

15

A compreensão foi organizada tentando explicitar algumas significações entre tantas

que surgiram a partir da pesquisa, considerando que, por mais que tentemos colocar entre

parênteses nosso conhecimento prévio, ele sempre envolve a visão de mundo daquele que o

constrói, estando subsidiado pelo referencial teórico; abre-nos ao mundo e põe-nos em

situação nele para que possamos transcender os limites da nossa compreensão primeira,

estando atentos às essências que emergem dos fenômenos na dinâmica de coexistir.

Essa compreensão não se encerra aqui e propõe que surjam outras tantas quantas

possíveis a partir da reflexão e do diálogo que possa estimular entre os educadores.

16

1 POR ONDE ANDA A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

Neste capítulo são abordados aspectos históricos nacionais e estaduais da formação

de jovens e adultos, apresentando uma realidade diversificada de práticas educativas e

algumas considerações da organização dessa modalidade de ensino. Tais aspectos se

constituem em subsídios para educadores e outros grupos interessados em conhecer a

realidade educacional da EJA e suas propostas, preparando-os para melhorar a qualidade do

ensino ofertado, visto que, ao se reconhecerem como agentes da educação, podem tentar

contribuir para a vida dos educandos na percepção de si mesmos, sendo capazes de apreender

o mundo e de nele influir.

O território do nosso país é extenso, dividido em regiões que apresentam numerosas

diferenças econômicas, sociais, culturais e ambientais numa realidade de contrastes. Essas

desigualdades também se refletem na escolaridade da população. De 170 milhões de

habitantes, de acordo com o Censo Demográfico de 2000 (IBGE, 2003), temos cerca de 15

milhões de brasileiros com quinze anos ou mais que não sabem ler nem escrever, o que

corresponde a 14% da população (INEP, 2003). Essa condição compromete a inserção social

e profissional e configura um problema muito significativo no país.

A diminuição dos índices de analfabetismo repercute na educação, no

desenvolvimento e na construção do saber cotidiano das crianças, que não são educadas

apenas na escola, mas também no ambiente familiar e comunitário. A qualidade da educação

de jovens e adultos tem sido uma preocupação para os professores que se vêem frente a essa

proposta educacional, geralmente aprendendo a trabalhar no exercício da prática, visto que se

apresenta diretamente relacionada ao grupo com uma diversidade de características, muitos

deles advindos das classes mais pobres.

A procura por melhores condições de vida levou grupos de alunos para as salas de

aula, esses jovens e adultos excluídos do sistema escolar na infância, que também construíram

17

seus conhecimentos na família, no trabalho, na sociedade e em grupos políticos e religiosos.

Excluídos do ambiente escolar por causa de repetência, por idade, por necessidade de

trabalho, pela opção de criar os filhos, pela distância de casa para a escola, por estarem muitos

anos fora dela e considerarem ser muito tarde para recomeçar, esse é o perfil desse alunado.

De uma forma equivocada, esses educandos vêem nas escolas de EJA apenas uma

oportunidade para concluir a formação do ensino fundamental e médio num tempo breve,

objetivando, em sua maioria, a certificação para conseguir concorrer a uma vaga para ingresso

do mercado de trabalho que lhes assegure a permanência e a promoção, atendendo às novas

exigências econômicas e tecnológicas da sociedade contemporânea. Essa problemática tem

acompanhado grande parte da caminhada histórica educacional no Brasil.

Tratada como ensino supletivo na lei 5.692/71 (BRASIL, 1971), essa modalidade de

ensino passou a ser designada como “educação de jovens e adultos”, prevista pela Lei de

Diretrizes e Bases 9.394/96 (BRASIL, 1996). A EJA tem sido tema para discussões e

preocupações de professores e instituições que se vêem frente a essa proposta educacional,

que ainda apresenta muitas dificuldades para responder às necessidades dos alunos e barreiras

para um projeto de educação humanista nesses grupos, os quais, freqüentemente, vêm de um

sistema de ensino completamente defasado.

1.1 A proposta da educação de jovens e adultos no Brasil

A educação de jovens e adultos não é nenhuma novidade e sempre envolveu processos

de aprendizagem formais e informais muito diversos. A implementação da escolarização sem

atender às necessidades da população foi avançando lentamente, sempre na dependência

econômica e política dos interesses dominantes.

Santos (2003) afirma que a de educação de adultos aconteceu como campanha pela

primeira vez em 1947, com o Serviço de Educação de Adultos (SEA), preocupado com a

extensão do ensino fundamental, ou seja, a educação básica. Chegou-se, assim, às escolas

supletivas, que mantiveram uma característica de aceleração e incentivaram a matrícula em

cursos profissionais.

A educação de adultos considerada apenas como alfabetização foi redefinida pela lei

5.692/71 e, no capítulo IV dessa LDB, o ensino supletivo foi regulamentado prevendo a

“suplência (substituição dos estudos regulares para os que não os fizeram ou não os

18

concluíram na idade própria), o suprimento (complementação ou continuidade de estudos

paralela ou posteriormente aos cursos regulares)”, a aprendizagem e a qualificação mantendo

o viés tecnicista do sistema educacional. (BRASIL, 1971, p.32-33).

Em 1996, houve a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases 9.394 (1996), que

estabeleceu as linhas gerais da política nacional de educação e detalhou a organização do

sistema depois de muitas discussões desde a Constituição de 1988. O projeto da LDB

aprovado apresentou avanços e retrocessos e foi modificado em muitos aspectos. No artigo 4º,

item VII, estabeleceu a “o ferta de educação escolar regular para jovens e adultos, com

características e modalidades adequadas às suas necessidades e disponibilidades, garantindo-

se aos que forem trabalhadores as condições de acesso e permanência na escola”. (BRASIL,

1996).

Sobre a educação de jovens e adultos disposta na LDB (1996), seção V do capítulo II,

os artigos 37 a 39 garantem a gratuidade da educação em cursos ou exames, considerando-se

as idades mínimas de 15 anos para o ensino fundamental e de 18 para o ensino médio

(anteriormente de 18 e 21 anos, respectivamente), além de estabelecer a distinção entre a EJA,

que passa a ser vista como uma modalidade de ensino, e a educação profissional.

Nesse contexto, em 1997, a educação de jovens e adultos foi tratada na V Conferência

Internacional sobre Educação de Adultos (V Confitea), convocada pela Unesco, em

Hamburgo, na Alemanha, onde se reconheceram dois aspectos fundamentais: a maciça

existência de jovens na educação de adultos e a educação continuada, ou seja, aprender por

toda vida promovendo transformações sociais e o direito à cidadania. Encontros regionais

discutiram e prepararam essa conferência, um deles realizado no Brasil, em Brasília, para a

apresentação da situação da EJA, princípios e metas de cada país participante. A Declaração

de Educação de Adultos é resultado da conferência internacional e destaca a importância do

desenvolvimento centrado no ser humano e da participação esclarecida para que a

humanidade possa sobreviver e enfrentar os desafios do futuro, num processo de educação

continuada em tempos de globalização. Para tanto esclarece no art. 3°:

19

A educação de adultos pode modelar a identidade do cidadão e dar um significado à sua vida. A educação ao longo da vida implica repensar o conteúdo que reflita certos fatores, como idade, igualdade entre os sexos, necessidades especiais, idioma, cultura e disparidades econômicas. Engloba todo o processo de aprendizagem, formal ou informal, onde pessoas consideradas “adultas” pela sociedade desenvolvem suas habilidades, enriquecem seu conhecimento e aperfeiçoam suas qualificações técnicas e profissionais, direcionando-as para a satisfação de suas necessidades e as de sua sociedade. A educação de adultos inclui e educação formal, a educação não-formal e o espectro da aprendizagem informal e incidental, disponível numa sociedade multicultural, onde os estudos baseados na teoria e na prática devem ser reconhecidos (UNESCO, 1997, p. 19-20).

Ao final de década de 1990, como resultado de todos os acontecimentos, a EJA já

ocupava um espaço reconhecido na educação, ao menos nas questões teóricas e

metodológicas, pois alguns Estados e Municípios já desenvolviam campanhas e movimentos,

mas, muitas vezes, esbarravam no limite dos recursos financeiros.

No período de 1995 a 1998 o Ministério da Educação elaborou os Parâmetros

Curriculares Nacionais e os Referenciais para a Educação (1999), nos quais contemplou o

ensino para jovens e adultos. Articulado com o projeto dos Parâmetros em Ação, incentivou o

desenvolvimento profissional e as discussões da prática pedagógica para a qualidade do

ensino, oferecendo subsídios aos educadores.

Com o desafio de discutir as políticas educacionais, entidades públicas, não

governamentais e educadores assumiram a realização de fóruns para disseminar informações e

assessorar instituições participantes. Depois do Fórum de Educação de Jovens e Adultos,

iniciado no Rio de Janeiro, outros surgiram em todo país, organizados por temáticas que se

vinculavam à cotidianidade, e, a partir de 1999, realizaram-se os Encontros Nacionais de EJA.

A resolução CNE/CEB nº. 1/2000 e o parecer sobre Diretrizes Curriculares Nacionais

para EJA, CNE/CEB nº. 11/2000 (2000a b) foram homologados pelo Conselho Nacional de

Educação, envolvendo muitos educadores de todo país em fóruns de metodologia

participativa que interferiram na sua definição. O parecer defendeu a educação como direito

de todos, argumentando sobre as mudanças nas questões teóricas e sobre as práticas

governamentais.

Sobre o encontro de Dakar (Fórum Mundial da Educação), em 2000, para uma

avaliação dos compromissos assumidos em Jomtien e renovar o programa de “Alfabetização

para Todos”, Stromquist (2001) relata que foi proposta a redução do analfabetismo em 50%

até 2015, considerando-se o pouco progresso que havia sido registrado até então.

20

Depois desse encontro, o Conselho Nacional de Educação instituiu o Plano Nacional

de Educação (BRASIL 2000), lei 10.172/2001, com mudanças nas questões teóricas do

ensino e na construção do conhecimento, além do compromisso com o aumento da oferta de

educação para alfabetizar dez milhões de jovens e adultos. Com vigência por dez anos, o PNE

indica a responsabilidade dos Estados, Distritos e Municípios para elaborar seus planos,

definindo as metas da EJA com políticas de formação profissional, emprego e ação cultural.

Cavalcante relata sobre os planos mundiais para a alfabetização:

Existem no total 960 milhões de pessoas nessa situação - 20% da população mundial -dois terços são mulheres. Cerca de 100 milhões de crianças em idade escolar não conhecem uma sala de aula. Para tentar mudar a vida desses cidadãos, a Organização das Nações Unidas lançou a Década da Alfabetização, cujo principal objetivo é unir governo e sociedade nessa luta. A meta é ousada: diminuir pela metade o número de iletrados no mundo, fazendo com que 430 milhões de pessoas, até 2012, comecem não só a ler e a escrever, mas a se comunicar no mundo digital e globalizado (2003, p. 1).

O governo elaborou uma nova proposta, da qual se destaca o Programa Brasil

Alfabetizado, e assumiu o compromisso histórico de erradicar o analfabetismo até 2006.

Contudo, o que se observa é que o apoio à educação de adultos hoje é muito menor do que já

foi no final da década de 1970. As necessidades são reconhecidas, as ações compensatórias de

combate à pobreza configuram desigualdades no acesso à educação, efeitos são

superestimados e as dificuldades de implementação, subestimadas. O governo brasileiro,

atento aos movimentos de organização da sociedade, a partir de 2004 investiu nas políticas de

EJA e estabeleceu como desafio a garantia do acesso ao ensino médio, considerando o direito

à continuidade dos estudos.

O perfil dos educandos que participam da educação de jovens e adultos vem se

modificando, pois, antes, a maioria eram pessoas adultas, maduras e idosas que não haviam

tido oportunidades para estudar, mas, atualmente, grande parte dos alunos é constituída de

jovens que não conseguiram acompanhar os grupos regulares e vêm de uma realidade de

conflitos buscando aceleração. São grupos bem distintos na faixa etária, nos aspectos culturais

e nas expectativas, de modo que, para os educadores que trabalham nessa modalidade, são

desafios e possibilidades que se apresentam no cotidiano escolar.

21

1.2 O compromisso do Rio Grande do Sul com a EJA

O Rio Grande do Sul (2003-2006) possui 501.261 mil analfabetos absolutos (IBGE,

2000), o que corresponde a 6,7% da população do estado sem escolaridade mínima; grande

parte dessas pessoas é de mais idade e representa o crescimento das matrículas na EJA.

Mesmo com toda a situação que vivenciamos na EJA atualmente, Di Piero (2001)

relata que os Estados ainda hoje são os principais provedores do ensino supletivo, financiando

a educação básica para jovens e adultos – segundo o Censo Escolar de 2001, 47% das

matrículas do ensino fundamental e quase a totalidade das matrículas do ensino médio

público. Ao final da década de 1990, as matrículas na educação básica de jovens e adultos dos

municípios perfaziam a terça parte e, em 2001, a participação no ensino fundamental já

representava 49,65% do total.

A educação de jovens e adultos - nos níveis fundamental e médio -, tendo em vista o espírito da nova Lei (9394/96), deve superar a idéia de supletividade contida na Lei no. 5.692/71, reorganizando-se através do desencadeamento de propostas e programas que atendam aos interesses desta parcela da população, resgatando o conhecimento prévio dos educandos, fazendo-os partícipes nos processos de investigação, na resolução de problemas, na construção do conhecimento, de forma a responder com pertinência e eficácia às necessidades de vida, trabalho e participação social (RIO GRANDE DO SUL, 1999a).

A partir de 1998, quando o Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental e

Valorização do Magistério (Fundef) entrou em vigor, os recursos públicos foram destinados

para as crianças e adolescentes, deixando de atender aos jovens e adultos. Alguns Municípios

criaram programas de aceleração computados como ensino fundamental comum para atender

a esse grupo, o que mascarou as estatísticas do ensino público, gerando dúvidas sobre os

números precisos. Entretanto, os programas da EJA têm apresentado respostas, com

experiências significativas envolvidas diretamente com a realidade dos grupos de jovens e

adultos.

No programa estadual Alfabetiza Rio Grande, em parceria com a Unesco, entidades e

instituições integram-se com o objetivo de atender a população urbana e rural de analfabetos,

resgatar a escolaridade dos analfabetos funcionais e a formação continuada, integrando-se às

discussões com a comunidade na elaboração do Plano Estadual Decenal de Educação. Foram

realizados vários encontros com educadores, que oportunizaram a troca de experiências

vividas, a discussão e a reflexão sobre o ensino da EJA.

22

Em 1999, o Conselho Estadual de Educação do Rio Grande do Sul, pela resolução nº.

250 e parecer nº. 774 (1999b, 1999a), orientou a oferta da EJA no sistema estadual de ensino

para os cursos de ensino fundamental e médio e a oferta dos exames supletivos nas escolas e

núcleos. A possibilidade de funcionamento de núcleos de EJA objetiva oferecer os exames

supletivos, que se mantêm nos níveis de conclusão do ensino fundamental e do ensino médio,

sendo observados os limites de idade previstos na lei (art. 38, § 1º, LDBEN 9394), além de

outros programas, atividades de apoio e exames fracionados.

Ainda em 1999, conforme Almeida (2004), foi iniciado o processo da Constituinte

Escolar, que teve seu primeiro momento marcado pela elaboração, sensibilização e preparação

para o lançamento da Constituinte; depois se realizou o estudo da realidade, das práticas

pedagógicas e o levantamento das temáticas; a seguir, a definição dos Princípios e Diretrizes

da Escola Democrática e Popular e, então, a reconstrução dos projetos político-pedagógicos,

dos regimentos escolares, dos planos de estudo e planos de trabalho dos educadores.

Almeida (2004) relata ainda que, com a participação de trinta Coordenadorias

Regionais de Educação, da Coordenação Estadual da Educação de Jovens e Adultos e do

Movimento de alfabetização de Jovens e Adultos (Mova-RS), foi construído o documento das

Políticas Públicas da Educação de Jovens e Adultos (2001), comprometidas com a educação

popular baseada na metodologia freireana da pesquisa participante, de onde emerge o tema

gerador constitutivo do currículo libertador.

Na elaboração das Diretrizes Político-Pedagógicas de EJA, a perspectiva “é

comprometer-se com a inclusão educacional que encaminhe à inclusão social, que parta da

leitura do mundo para chegar à leitura da palavra, e construa as possibilidades de intervenção

cidadã, assegurando para os alunos e professores a tão necessária formação continuada” (RIO

GRANDE DO SUL, 2003-2006, p. 7).

Nessa modalidade de ensino, a flexibilidade é uma das exigências, sendo premente o

diagnóstico da realidade a partir da cultura regional para a abrangência da cultura universal. A

pesquisa socioantropológica propõe-se desvelar as temáticas para a discussão e ampliação dos

saberes, a criticidade e a organização e sistematização dos conhecimentos elaborados, para a

superação das diferenças sociais, construindo novos significados.

A formação dos Grupos de Trabalho de Educação de Jovens e Adultos (Gatejas),

partindo do recenseamento da população, consolidou as políticas descentralizadas de

alfabetização pela promoção, monitoramento e avaliação dos resultados alcançados com as

atividades programadas para educandos e educadores, visando à inclusão social, à formação

23

continuada e à qualidade da educação nessa modalidade. Conforme orientam as diretrizes

estaduais da EJA, a organização curricular se faz pelas

Totalidades 1, 2, 3, 4, 5, e 6 correspondem ao Ensino Fundamental e dividem-se em Alfabetização e Pós-Alfabetização. As Totalidades de 7, 8, e 9 correspondem ao ensino médio.Cada Totalidade deve envolver as seguintes Áreas do Conhecimento: sociolingüística, sócio-histórica, sóciocientífica (RIO GRANDE DO SUL, 2003-2006, p. 77).

A cada área do conhecimento correspondem componentes curriculares, de atuação

interdisciplinar, com temáticas oriundas da realidade socioantropológica, permitindo a

discussão e ampliação dos saberes já construídos e a sistematização dos conhecimentos

elaborados. Conforme consta nessas diretrizes (2003-2006), a arte é integrante da área

sociolingüística e se faz obrigatória ao menos numa totalidade de ensino fundamental e de

ensino médio.

Os núcleos são estabelecimentos próprios para a educação de jovens e adultos que

asseguram durante todo o ano a oferta dessa modalidade ao oferecerem atividades de apoio

“(ações educativas com relação presencial sistêmica e continuada)” e programas “(ações

educativas em que há relação não-presencial objetivando o assessoramento)” para sistematizar

as experiências e saberes sociais, conforme consta nas Diretrizes Estaduais da EJA. (RIO

GRANDE DO SUL, 2003-2006, p. 97). Fazendo uso de metodologias próprias, entre outras

especificações, o CEED (1999a) estabelece que os núcleos possam implementar atendimentos

individuais e/ou coletivos aos candidatos, disponibilizando recursos audiovisuais de ensino a

distância, recursos eletrônicos de comunicação, entre outros; o atendimento é ininterrupto e a

freqüência não é obrigatória.

A Secretaria de Educação do Rio Grande do Sul (2004) salienta que os núcleos

constituem espaços de troca de saberes entre todos os participantes, em favor da construção

do ensinar e aprender, da valorização das vivências de cada um e das culturas, para que

aconteçam possíveis transformações da realidade, destacando que a dialogicidade, a

cooperação e a humanização são os princípios fundamentais dos núcleos de EJA.

24

1.3 Questões político-pedagógicas

Após todas essas considerações a respeito da educação de adultos, é preciso enfatizar

que dos acontecimentos mundiais e das suas conseqüências no Brasil e no Rio Grande do Sul

podemos extrair diversos aspectos que provocam dúvidas, inquietações e motivações para

propormos uma discussão, seja em razão das dificuldades enfrentadas pelas escolas com a

evasão escolar, seja pela falta de vagas para o ingresso dos alunos, assim como pelas

divergências que ocorrem entre o que o aluno quer aprender e que a escola quer ensinar, o que

é importante para a vida da cada um e tantos outros.

Numa sociedade industrial que dá pouca importância ao indivíduo, muitas vezes as

pessoas transformam-se em meras produtoras de lucro. Essa realidade está explicitamente

integrada no contexto escolar de jovens e adultos, que, tentando fazer parte dela, depositam na

conclusão dos estudos a possibilidade para nela ingressar. Assim, outras implicações da

própria existência ficam em segundo plano, como a sensibilidade, que parece ter deixado a

vida das pessoas: “desse ser humano preocupado cada vez mais com sua eficiência, isto é,

com sua capacidade de ganhar dinheiro e acumular bens” (DUARTE JÚNIOR, 2002, p. 60).

Como uma modalidade de ensino engajada num processo de socialização, a EJA

propõe um espaço escolar de aprendizagem, de construção do saber e de produção científica,

no qual os educandos tenham a possibilidade de aprender e ensinar, de brincar com as idéias,

de investir na criatividade, de produzir transdisciplinarmente, num compromisso consigo

mesmos e com o grupo a que pertencem.

Tratando do projeto pedagógico escolar, o Conselho Estadual de Educação esclarece

que

a escola, considerando as necessidades da comunidade onde está inserida, poderá contemplar no seu projeto pedagógico a oferta do ensino fundamental e/ou do ensino médio para jovens e adultos através de metodologias específicas [traduzidas nos Regimentos Escolares, Planos de Estudo para o desenvolvimento do ensino que atenda as necessidades dos educandos]. Caberá a ela, no momento da construção de seu currículo escolar, atender às Diretrizes Curriculares Nacionais e considerar as relações existentes entre os diferentes níveis de ensino, as áreas do conhecimento e os aspectos da vida cidadã (RIO GRANDE SO SUL, 1999a).

Os currículos são um conjunto de componentes que devem ser ordenados por

seqüência e tempo, com abrangência, objetivos e aprofundamento adequados aos grupos de

educandos, considerando os conhecimentos, habilidades e competências adquiridos pela

25

vivência e no mundo do trabalho. Nesse sentido, o espaço e o tempo são reordenados na

escola/núcleo, considerando-se as particularidades na aprendizagem e as diversidades socio-

culturais do educando. Para tanto, torna-se necessário um tratamento diferenciado dos

conteúdos a serem trabalhados e um sistema de avaliação processual ao longo do período

escolar, que permita o avanço quando o aluno apresentar a construção do conhecimento

pertinente.

A reflexão da prática pedagógica para a EJA é proposta pela Secretaria Estadual de

Educação no Padrão Referencial de Currículo, construído coletivamente e que apresenta

algumas divergências entre o que se propõe a realizar e a forma como essas idéias são

redigidas, conservando aspectos da racionalidade determinante. Por um lado, estabelece

vários propósitos educativos para a valorização do educando, das vivências, o reconhecimento

e o valor a si mesmo e às suas relações com o outro e com o ambiente; por outro, sustenta um

discurso fragmentado, conflitando com uma consciência de corporeidade.

É importante identificar o educando, este jovem ou adulto, suas concepções e também

o modo como se dá a busca da aprendizagem nas relações com a subjetividade e com a visão

de mundo. Para tanto, é necessário pensarmos num planejamento da prática educativa que

contemple as diversidades que permeiam as especificidades das culturas no aprender e

ensinar, com atenção para as vivências do educando como um todo, possibilitando uma

atuação transformadora centrada nas “necessidades do indivíduo, no seu próprio ritmo de

aprendizagem, na sua forma pessoal de aprender e nos seus próprios interesses”

(BERTRAND; VALOIS, 1994, p. 136).

Vindo ao encontro dessas idéias, o Regimento do Núcleo Estadual de Educação de

Jovens e Adultos e Cultura Popular Felipe Roberto Sehn, de Carazinho, entende que

o conhecimento é relacionado com dimensões do aprender a conhecer, a fazer, a criar, a sentir, a ser, que acontece no diálogo, instrumentalizando o coletivo na constituição de um conhecimento necessário para aprender para toda a vida, que por sua vez exige complementaridade e continuidade (NÚCLEO, 2002, p. 7).

A realidade do ensino compromete as propostas da arte na medida em que o currículo

é dividido em disciplinas que são priorizadas, como a matemática, o português, as ciências,

excluindo-se a arte dos conhecimentos elementares, a qual só é contemplada com um mínimo

previsto por lei e que, na realidade, está longe de uma proposta para educar por meio da arte.

Ainda contribuem para essa situação muitos professores que trabalham apenas com o objetivo

de completar a carga horária, atuando em qualquer outra área sem ter a mínima capacidade

26

para tal; esses não habilitados entendem que, ainda hoje, artes é apenas dar aos alunos alguns

desenhos impressos para colorir.

A proposta da educação para jovens e adultos apresenta especificidades para que

possamos efetivar a promoção da educação do sensível e inteligível, sem o privilégio do

conhecimento intelectual no processo de ensino. Nesse modelo, que muitas vezes é

favorecido, os professores são os que sabem e ensinam e os alunos, aqueles que não sabem e

aprendem de modo completamente fragmentado, cada um só respondendo por aquilo que foi

definido como sua tarefa. Nesse contexto, o ensino da arte, em muitas situações, é

desvalorizado.

A experiência na prática escolar leva-nos a acreditar que a maioria dessas instituições

resiste bravamente às mudanças, pois os participantes já estão acostumados com a rotina nas

atividades, o que lhes garante comodidade; pensam que não há necessidade de mudança, pois

os alunos freqüentam a escola, recebem uma porção de informações, fazem provas para

avaliar os conhecimentos assimilados e ganham um certificado que confirma a conclusão do

curso para o mundo do trabalho, numa rotina a que se submetem ou são submetidos na

sociedade, a qual se repete na escola.

Stromquist (2001) reconhece que a construção da proposta da educação de jovens e

adultos deve ser entendida como uma necessidade que requer a compreensão das

características e necessidades dos educandos, metodologias que os reconheçam e tratem suas

experiências ricas e diversas, professores capacitados para questões cognitivas e emocionais,

além de investimentos em diferentes setores.

Algumas propostas educacionais estão tentando fazer diferente, preocupando-se com

os educandos, com suas experiências e tudo o que faz parte da sua vida cotidiana; criando

uma organização para que esses saberes se constituam em possibilidades de transformação,

tentando desenvolver a sensibilidade e buscando o fortalecimento do saber sensível por meio

da arte. A respeito de projetos educacionais comprometidos, Duarte Júnior afirma:

na consideração e educação do sujeito, hoje, sua dimensão imaginativa, emotiva e sensível (ou sua corporeidade) deve ser colocada como origem de todo projeto que vise a educá-lo e a fortalecê-lo como princípio da vida em sociedade. A sensibilidade do indivíduo constitui, assim, o ponto de partida (e talvez, até o de chegada) para nossas ações educacionais com vistas à construção de uma sociedade mais justa e fraterna, que coloque a instrumentalidade da ciência e da tecnologia como meio e não um fim em si mesma (DUARTE JÚNIOR, 2004, p. 139).

27

A educação a que nos propomos procura um espaço para que a arte possa estar no

mundo vivido dos educandos como uma possibilidade de resgatar a interação cooparticipante

do pensamento sensível e inteligível.

Assumimos um compromisso como educadores enquanto agentes que propõem

transformações, cuja capacitação e experiência aumentam a responsabilidade para com os

educandos no cotidiano da EJA, tornando possível fazermos parte de um sistema sociocultural

dinâmico. Dessa forma, cabe a nós, pesquisadores e professores, analisar essa problemática,

além de tantas outras inseridas na nossa vivência educadora, e, por meio de propostas

concretas, promover ações para a educação do sentimento e do conhecimento, contribuindo

para que a educação de adultos atenda às especificidades dessas pessoas.

28

A EDUCAÇÃO DO SENSÍVEL

Homem fragmento

racional.

razão e sentimento,

mental e corporal,

sensação e pensamento,

corporeidade, espiritualidade.

Corpo, mente, espírito.

Ser um todo humano,

Num humano mundo.

Nosso mundo é plural, constituído por crianças, jovens, adultos e idosos que

compartilham múltiplos espaços e uma infinidade de culturas. São pessoas cuja criatividade,

imaginação, desenvolvimento e satisfação das necessidades parecem não ter muita

importância numa realidade onde a dessensibilização para com a vida não é uma preocupação.

Muitos autores já acenavam, algum tempo atrás, com considerações a esse respeito, revelando

que essa problemática discutida na nossa contemporaneidade vem de tempos mais remotos.

Schiller (2002) observava, em 1793, que na sociedade que se configurava, onde a

máxima estava na funcionalidade e no lucro, não era possível construir um universo estético

para o desenvolvimento da humanidade, com o que a educação da sensibilidade tornava-se

urgente.

A discussão das transformações na vida do ser humano, na sua existência, reacendeu

reflexões que não são alheias ao passado e que revelam olhares atentos para o resgate dos

saberes que se interpenetram continuamente. Algumas transformações já começam a

29

despontar em favor da retomada da educação estética para uma existência sensível, na qual

possamos vislumbrar sinais que contemplem a valoração da sensibilidade. Alguns exemplos

disso estão nas campanhas de reciclagem, que apresentam resultados positivos; em congressos

e seminários nos quais são relatadas vivências educacionais que privilegiam a educação

comprometida com a sensibilidade; na valorização do artesanato nas comunidades, entre

outros.

A difusão do artesanato, das peças feitas à mão, decorre de interesses múltiplos: por

um lado, propõe-se conquistar mais mercado com peças de “qualidade”, quando o design alia-

se ao artesanal; por outro, percebemos que as pessoas começam a preferir formas nas quais se

identifica o toque das mãos, um detalhe que registra a existência de um sujeito que a criou, o

que o aproxima das pessoas. Quanto à retomada do artesanato, não podemos deixar de trazer

as colocações do ensaio de Octavio Paz:

o design moderno tomou outros caminhos – seus próprios – na busca por um acordo entre a utilidade e a estética. Às vezes é um acordo bem sucedido, mas o resultado tem sido paradoxal. O ideal estético da arte funcional é aumentar a utilidade do objeto na mesma proporção em que reduz a sua materialidade. A simplificação das formas e da maneira como funcionam se torna a fórmula: a eficiência máxima deve ser atingida com um mínimo de presença. [...] Precisamente o oposto do artesanato: uma presença física que nos chega pelos sentidos e na qual o princípio da máxima utilidade é violado continuamente em favor da tradição, da imaginação e até mesmo de puro capricho. A beleza do desenho industrial é conceitual por natureza: se ele expressa alguma coisa, essa coisa é a precisão de uma fórmula. É o signo de uma função. Sua racionalidade o condiciona a uma e somente uma alternativa: ou um objeto funciona ou não funciona. No segundo caso, deve ser jogado na cesta de lixo. Mas não é só a utilidade que torna o artesanato tão cativante. Ele vive em contato íntimo com nossos sentidos, e é por isso que é tão difícil abandoná-lo. Seria como expulsar de casa um velho amigo (2006, p. 82-89).

A nossa sociedade está caracterizada pelo utilitarismo e pelo individualismo, sendo

mantenedora dessa condição na vida das pessoas, que, ao se defrontarem com experiências

que envolvem o sentir com o outro, acabam refutando-as enfaticamente. Para tentar resolver

essas dificuldades, observamos medidas paliativas em vez de preventivas, como as

possibilidades de relações por meio das comunidades virtuais, que reforçam a manutenção

desse estado social.

Conforme Maffesoli, vivemos cansados de um mundo utilitarista, onde tudo é igual,

todos os lugares têm o mesmo jeito, as roupas das lojas são todas iguais, os objetos da nossa

casa são todos iguais, as aulas nas escolas continuam repetitivas. Para o autor, “a relativização

do utilitarismo é a marca do estilo nascente. É o indicador de uma espécie de disponibilidade

30

social, que experimenta novas maneiras de ser e que busca outros mitos fundadores”. (1995,

p. 61).

A educação do sensível nos aponta uma possibilidade de discussão sobre a presença

das manifestações estéticas que estão inseridas no nosso cotidiano, oferecendo-nos condições

para a ressignificação do mundo da vida.

No retorno às coisas realizado pela estética fenomenológica, descobriu-se um novo mundo no cotidiano, percebeu-se que viver é distinguir, escolher, criar, intervir, com base numa estética que revela como os indivíduos corporificam seus sentimentos, seus saberes, o sentido ético e a consciência política que orienta sua vida. Através da estética, há uma educação subjacente sobre o viver e o conviver (MEIRA, 1999, p. 130).

Nesse sentido é que nos preocupamos com a educação estética, que compreende a

educação do sentir, a qual, antes de tudo, de qualquer explicação, parece ser o que precisamos

aprender primeiro e incorporar na nossa vida diária. O corpo é a essência para essa

incorporação; assim, somos instigados a refletir a respeito da corporeidade, num corpo que

parece ter esquecido das próprias capacidades e, tentando desfragmentá-lo, reconhecer os

limites e as possibilidades que compõem esses saberes.

O desafio da educação estética é fazer com que a arte deixe de ser uma disciplina do currículo e se torne algo incorporado à vida do sujeito, que o faça buscar a presença da arte como uma necessidade e um prazer, como fruição ou como produção, porque em ambas a arte promove a experiência criadora da sensibilização (MEIRA, 1999, p. 131).

A sensibilidade está no âmbito da subjetividade; é preciso sentir, mas não seguindo os

valores que a sociedade idolatra ou a mídia enaltece, numa rotina que prioriza trabalhadores e

regula os momentos de lazer. “Quase todas as pessoas vivem atualmente so b o signo da

alienação, altamente difundido pela mídia, quanto ao que devem degustar, olhar, escutar,

tocar, cheirar para depois comprar” (SITTA; POTRICH, 2005, p. 34).

Presenciamos a transformação da vida das pessoas pelo excesso de consumo, aliada às

tecnologias, padronizando as relações, sustentando idéias de individualismo,

dessensibilizando-as, criando desejos e necessidades supérfluos a serem atendidos por

determinados produtos culturais, que garantem uma felicidade nunca satisfeita, com

promessas de novidades cada vez mais agressivas que tentam mascarar a sensação de sermos

mercadorias substituíveis, determinando a superficialidade com que a vida é tratada. Duarte

31

Júnior (2004a) critica esse contexto cultural da modernidade, onde a sensibilidade vai

perdendo seu valor na vida das pessoas.

O estético foi transformado numa mercadoria a mais, sob os cuidados da poderosa indústria cultural, em constante vigilância para que ele seja consumido sem maiores sobressaltos, aplainando-lhe as arestas e retirando-lhe a capacidade de surpreender, de causar estranhamento ou inquietar (DUARTE JÚNIOR, 2004a, p. 150-151).

Nesse contexto, o corpo surge como objeto de culto, como um signo de identidade e

alteridade na sociedade, onde impressionar significa existir. As identidades que a mídia

propaga são criadas pela cultura de consumo; assim, acabamos perdendo a nossa própria

identidade individual e compartilhada e uma das referências mais significativas, que é a do

corpo. Nóbrega (2000) escreve que é visível e difundida a presença do corpo como

mercadoria que precisa ser diferenciada, produzida, manipulada, exigindo novas

conformações corporais, especialmente idealizadas, de juventude, saúde, aptidão e beleza, as

quais refletem a preocupação com a imagem e a auto-expressão para a adequação aos valores

e padrões de consumo divulgados.

“Em relação ao corpo, há outras formas de sabedoria que não devem ser descartadas,

mas que, em conjunto com os acontecimentos contemporâneos, compõem a complexidade de

existência corpórea”, como a sensibilidade expressiva, que pode contribuir para

dimensionarmos outro tipo de referências na nossa cultura (NÓBREGA, 2000, p.32).

São várias as interpretações que seguem pelos rumos da sensibilidade, da estética, da

educação, das quais destacamos algumas para que possamos construir uma rede de

significações na compreensão dos fenômenos. Fundamentamos no texto que segue aspectos

da estética e da educação que contribuem para a consolidação dos referenciais teóricos da

proposta para a educação dos sentidos.

2.1 Escritos sobre a estética e a educação

Precisamos de mais sensibilidade. Onde ela está?

Tão próxima... E tão distante...

Distante historicamente, distante cotidianamente.

32

Ao dialogar com as propostas da educação, percebemos que é preciso resgatar a

sensibilidade para qualificar as experiências vivenciadas pelas pessoas. Essa qualificação é

resultado da coexistência de todos os elementos que constituem a pessoa na interação consigo

mesma e com o mundo. Portanto, vamos iniciar um breve percurso de diálogo com a

educação estética na visão de alguns autores, alcançando um sentido que compreende a

experiência sensível do indivíduo para a apreensão do mundo vivido.

Para iniciar nosso processo reflexivo é necessário compreender, primeiramente, o

sentido conceitual da teoria estética, que Meira nos esclarece da seguinte forma:

A teoria estética nasceu como disciplina da metafísica grega e como reflexão capaz de dar conta da mediação entre teoria e prática, entre o inteligível e o sensível. A estética surgiu, portanto de uma interface e por necessidade de compreender o sentido das interações, do que transita e vibra, anima e é animado por tal relação. Não nasceu para explicar a arte, mas a atuação que se faz num percurso de procedimentos, para ver como os elementos constituintes dessa atuação, afetam-se uns aos outros, repelem-se, misturam-se, entram em conjunção, apesar de suas diferenças (2003, p.23).

A maioria das concepções e visões de mundo dos filósofos e pensadores sempre

contemplou conceitos estéticos, considerando a importância da dimensão do sensível nos

objetos e seres. Entretanto, o curso da história trouxe períodos de grandes mudanças, pois o

ser humano moderno direcionou sua visão para o futuro e para a o intelecto. Nesse contexto

do século XVII, a felicidade e o bem-estar são alcançados no porvir pelo esforço e pelo

trabalho num mundo em movimento, cujo conhecimento se sustenta na ciência experimental e

na filosofia moderna de Descartes (s.d.), que com seu método cartesiano separa o corpo e a

mente do humano. Nessa forma de pensar fragmentada, sem complementaridade, só é saber

confiável o que podemos mensurar, o saber racional, que desbanca todas as outras referências,

especialmente aquelas que envolvem as emoções e a sensibilidade.

O século XVIII foi marcado pelo Iluminismo, que defendia a supremacia da razão

para a conquista da liberdade do ser humano, assinalado pela Revolução Industrial, a qual

pregava um modelo de produtividade que desencadeou profundas transformações na vida das

pessoas, principalmente incentivando a “reeducação do corpo” para ser cada vez mais

produtivo (DUARTE JÚNIOR, 2004a, p.47). Às artes eram atribuídas as finalidades de

utilidade e beleza, surgindo, então, a primeira teoria filosófica sobre a educação estética.

Gennari (1997) escreve que Alexander Baumgarten é quem utiliza pela primeira vez o

termo “estética” relacionado ao conhecimento sensível, destacando a sua importância apesar

de intelectualizar a experiência estética influenciado pelo contexto da sua época.

33

O sentimento, a beleza e o sublime são tratados nos escritos críticos de Kant (1993),

que defende a possibilidade de se discutir o gosto para se chegar a um juízo estético

partilhado na constante construção e organização do mundo sensível, uma estética que

compreende um sentimento de prazer, o qual prescinde da finalidade e utilidade das coisas.

As transformações no campo da estética e da educação estética se sucedem e, entre os

autores, destacamos Schiller (2002), que buscou resgatar a riqueza simbólica da estética e

cujos escritos vinculam o ser humano com o sentido estético e o lúdico, observando que é por

meio da beleza que o humano conquista a liberdade. Para dar conta da sua função pedagógica,

a educação estética propõe-se resgatar a humanidade do ser humano por meio da beleza, que

harmoniza as faculdades próprias da sua natureza. Assim, Schiller afirma que “ a formação da

sensibilidade é, portanto, a necessidade mais premente da época, não apenas porque ela vem a

ser um meio de tornar o conhecimento melhorado eficaz para a vida, mas também porque

desperta para a própria melhora do conhecimento” (2002, p. 47).

Nas discussões que se seguem continua o debate sobre a estética moderna com a

incontestável contribuição de Hegel, para quem “a arte não te m outra missão além de oferecer

à percepção sensível o verdadeiro, tal como ele existe no espírito, o verdadeiro na sua

totalidade, na sua conciliação com o objetivo e o sensível” (1997, p. 15). Na concepção

nietzscheniana, a existência humana é entendida e justificada pela estética. Nietzsche entende

que a arte é capaz de criar um sentido para a existência, mesmo que ilusório, quando se

fundamenta em vivências estéticas.

A estética contemporânea propõe a possibilidade de uma outra dimensão do

conhecimento sensível, trazido pela fenomenologia, na qual o fenômeno estético é valorizado

pelos efeitos que produz no ser humano, e pela teoria da forma, que considera reações físicas,

psíquicas e orgânicas como uma totalidade. Ambas mostraram que não há diferença entre

sensação e percepção. Das estéticas fenomenológicas, destacamos os escritos de Merleau-

Ponty (1999) na obra Fenomenologia da percepção, o qual trata das vivências da percepção

que permitem ao ser humano as simbolizações.

Em 1934, iniciou-se uma nova etapa da educação estética, com a obra Art as

experience, de Dewey propondo que entre o ser humano e o ambiente se estabelece uma

interação que produz uma experiência estética. Assim, a arte e a sociedade são os elementos

vitais para os quais propõe uma teoria pedagógica na qual essas se manifestam; num jogo de

ação e recepção, as energias, atitudes e materiais se reorganizam. Num texto que corresponde

a uma das palestras de Dewey, “Cultura e indústria na educação”, o autor escreve sobre o que

considera arte:

34

Perceber o significado do que se está fazendo e se regozijar com ele, unificar, simultaneamente em um mesmo fato, o desdobramento da vida emocional interna e o desenvolvimento ordenado das condições externas materiais – isso é arte. Os sinais externos de sua presença – ritmo, simetria, arranjo de valores, o que se queira – essas coisas são sinais de arte na qual se exibem a união de pensamento agradável e o controle da natureza (DEWEY, 2002, p. 31).

Segundo Dewey, é no contexto de uma formação global do humano que se dá o

desenvolvimento de uma educação estética. Nesse âmbito temos também as contribuições de

Herbert Read, propondo que a arte seja a base da educação, cujo objetivo, partindo da

sensibilidade estética, está em promover harmoniosamente o individual e o coletivo do ser

humano. Para tanto, destaca dois processos básicos, que são a percepção e a imaginação. O

autor defende a idéia de uma educação visual ou plástica, que

compreende todos os modos de auto-expressão, literária e poética (verbal), bem como musical ou auricular, e constitui uma abordagem integral da realidade que deveria ser chamada de educação estética – a educação dos sentidos nos quais a consciência e, em última instância, a inteligência e o julgamento do indivíduo humano estão baseados. É só quando esses sentidos são levados a uma relação harmoniosa e habitual com o mundo externo que se constitui uma personalidade integrada. Sem essa integração, temos [...] aqueles sistemas arbitrários de pensamento, dogmáticos ou racionalistas em sua origem, que procuram, a despeito dos fatos naturais, impor um modelo lógico ou intelectual ao mundo da vida orgânica. Esse ajustamento dos sentidos ao seu meio ambiente objetivo talvez seja a função mais importante da educação estética (READ, 2001, p. 8-9).

Em seus escritos na obra Educação pela arte, Read (2001) tem sido referência para o

ensino e a arte, destacando as principais formas da educação como sendo a percepção

psicológica, a imaginação icônica, a ludicidade e a expressividade. Desencadeando uma série

de discussões que resultaram em diversas pesquisas, conferências e debates, Read mobilizou

muitos outros autores. Este autor analisa a desvalorização da educação estética como um

reflexo da sociedade que impõe uma formação tecnológico-produtiva, a qual torna muito

difícil uma formação estética do ser humano, resultando na desvalorização do ensino da arte.

No período da pós-modernidade, a racionalidade e o poderio de industrialização

conquistaram os artistas, o que, conseqüentemente, reflete-se nas suas produções,

especialmente nas iniciadas nos movimentos de vanguarda, quando a arte se perdeu entre

tantas tecnologias e experimentações, não encontrando mais a sua significação poética. Ortega

y Gasset (2005), ao tratar da “desumanização da arte ”, diz que, quando esta abandona as

relações com o passado histórico e existe apenas por si mesma, desrealiza, rompe com o real,

manifesta-se na pluralidade, é o princípio da existência de uma nova sensibilidade estética.

35

A estética que compõe a hipermodernidade, como escreve Duarte Júnior (2004a),

caracteriza-se pela abrangência de diferentes concepções e não se refere apenas à arte. A

proposta de Lowenfeld e Brittain, que ainda hoje continua válida, “refere -se também à

integração mais profunda do pensamento, do sentimento e da percepção. Pode, assim, suscitar

maior sensibilidade em face da existência e, portanto, converte-se no objetivo principal da

educação” (1970, p. 398).

O ensino por meio da arte num determinado contexto social e histórico e sua

apreensão pelo observador a partir da relação sensível que se estabelece, a qual pode ampliar

a capacidade de criação e reflexão da pessoa, compreendem a educação estética que

abordamos neste estudo.

A arte [...] pode inclusive converter-se em um modo de ser, em um paradigma vital, em uma promotora de experiências enriquecedoras no nível do inconsciente e do consciente, em um canal para a expressividade, a criatividade ou a atitude crítica. A inteligibilidade, o discernimento, o conhecimento e a capacidade do juízo podem ser adquiridos sempre que a experiência artística comprometa a toda a pessoa, a todo o ser (e não a cada uma das suas parte de forma independente), de modo que cada sentido possa entrar em empatia com os ambientes e seus sujeitos, e assim, o todo do homem pouco a pouco se torne intencionalmente ativo no terreno estético (tradução livre) (GENNARI, 1997, p. 160).

A educação do sensível, da qual faz parte aprender e ensinar arte para a ampliação da

pessoa como uma totalidade, propõe a apropriação do saber sensível, a nossa primeira forma

de apreensão do mundo, que, aliada à expressão por meio da arte, constitui uma das

possibilidades transformadoras da existência.

2.2 Educação do sensível para o encantamento do saber sensível

Educação...

Precisamos repensar,

Precisamos pensar diferente...

A educação está em processo de discussão do ambiente familiar ao mundial, e sempre

há o que considerar quando tratamos do ato de educar. Para dar continuidade a essa

exposição, consideramos alguns aspectos abrangentes da educação, juntamente com conceitos

e idéias que envolvem mais especificamente a educação do sensível.

36

Esse modo de “pensar diferente”, a que nos referimos inicialmente, pressupõe que

aprendamos a prestar atenção na vida cotidiana, (re)descobrindo a capacidade de sentir a

própria vida na educação da sensibilidade para integralizarmos a educação do sensível que

nos propomos a realizar. Havendo comprometimento da educação com sensibilidade na nossa

prática cotidiana escolar ou informal, estaremos começando a interagir com o processo de

transformação, pois a educação é um dos caminhos, senão o mais importante, para as

mudanças começarem a acontecer. Mesmo que não venha a mostrar muitos resultados

imediatos, certamente esses estão acontecendo. A educação do sensível pode ser considerada

imprescindível para o processo educacional.

Para Duarte Júnior (2002), levar a conhecer é educar. Esse processo de aprendizagem,

que compreende a complementaridade entre o sentir e o simbolizar, é que fundamenta a

educação. Ao conhecer, a pessoa apreende pela emoção e pela percepção; atribui

significações, procura um sentido para sua existência no mundo enquanto sente, pensa e age.

Com base nesses sentidos e significados atribuídos, podemos transformar as

experiências, ressignificando-as, de forma que se tornem representação de algo. Assim

acontece a aprendizagem, que, para ser consolidada, exige que haja o interesse, que é

determinado pelo valor que damos ao aprendido quando estabelece referências com as

próprias experiências de vida. É o que escreve também Freire (2004) quando se refere à

“visão do mundo” que cada pessoa elabora e que não pode ser desconsiderada na ação

educativa.

É notório destacar que, quando tratamos da educação estética, não se impõem

significações; educar compreende uma escolha, pois o educando age, organiza e pode

escolher o que aprende entre as muitas possibilidades significativas no mundo, naquilo que

pode trazer mais sentido para sua vida. Merleau-Ponty escreve:

Tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência não poderiam dizer nada [...] Retornar às coisas mesmas é retornar a este mundo anterior ao conhecimento do qual o conhecimento sempre fala. (1999, p. 3-4).

Em muitos momentos constatamos significações desvinculadas da vida do educando

e impostas pelo sistema escolar; assim, a possibilidade de criar torna-se desnecessária, visto

que não é preciso cultivar a imaginação, com tudo sendo oferecido pronto e compartimentado.

Esse modelo remete à educação bancária, criticada por Paulo Freire (2004) como uma forma

37

de agressão ao educando, apenas o adequando ao mundo, sem que ele estabeleça qualquer

vínculo com suas próprias vivências.

Apreendendo e aprendendo a ordenar, a desordenar e a complementar as experiências

e significações da sua vivência, as pessoas podem ser capazes de compreenderem a si mesmas

e ao mundo. Duarte Júnior define a educação como sendo

um processo formativo do humano, como um processo pelo qual se auxilia o homem a desenvolver sentidos e significados que orientem sua ação no mundo. Neste sentido, o termo educação transcende os limites dos muros da escola para se inserir no contexto cultural onde se está (2002, p. 17).

Educar é um processo de formação no qual a estética torna-se fundamental para

despertar a vontade de conhecer e o interesse, pois de outra forma não haverá a aprendizagem

na sua pluridimensionalidade.

Uma proposta educativa humanista reconhece o ser humano com um todo e assume

relações de complementaridade entre saber e conhecer, sensível e inteligível. Para Duarte

Júnior (2002), saber e conhecer são distintos: o saber está mais relacionado ao sensível, que se

elabora a partir das experiências sensoriais transformadas em aprendizagens significativas, e

conhecer refere-se ao inteligível, compreendendo o intelectivo e tendo uma estrutura

cientificista fundamentada em qualidades mensuráveis e objetiváveis pela razão.

O autor também diferencia o sensorial do sensível afirmando que a experiência

sensorial compreende todas as nossas percepções do corpo por meio dos sentidos, registrando

e aperfeiçoando estímulos elementares táteis, visuais, auditivos, sonoros naquilo que se

apresenta no mundo; a experiência sensível é constituída de sentidos e significações mais

complexos, elaborados um pouco mais além das vivências sensoriais; pode ser equiparada à

experiência estética proporcionada pela arte, que se utiliza das percepções sensoriais, dos

sentidos e significados refletidos, articulando relações na corporalidade.

O saber sensível está no nosso cotidiano, no senso comum, faz parte das nossas

tradições; são saberes múltiplos que podem ser capazes de proporcionar o reencontro da

essência que temos perdido ao longo da nossa vida. O saber também é corporal, pela

capacidade que temos de sentir com o corpo; apreendemos tudo primeiro pelos sentidos, pois,

quando olhamos, tocamos, cheiramos, ouvimos, saboreamos, o corpo dá conta desses

registros. É um saber entranhado no organismo por ser muito mais do que habilidades, é uma

sabedoria incorporada a ele. Duarte Júnior esclarece que

38

incorporar significa precisamente trazer ao corpo, fundir-se nele: o saber constitui parte integrante do corpo de quem o possui, torna-se uma qualidade sua [...]; o saber carrega um sabor, fala aos sentidos, agrada ao corpo, integrando-se feito um alimento, à nossa existência (2004a, p.14).

Atualmente, conforme artigo divulgado na revista Super Interessante (2005), algumas

pesquisas têm mostrado a possibilidade de termos muitos outros sentidos, que passam de

vinte, complexos e que podem mudar o que sabemos sobre a realidade. No artigo, Bárbara

Axt, partindo da diferenciação entre o nosso mundo externo, o que acontece fora de nós e é

percebido pelos cinco sentidos, e o nosso mundo interno, que percebe a nós mesmos e a

relação do nosso corpo com o espaço, explica que sensação e percepção

são processos complementares, mas diferentes. A sensação é a parte passiva, quando simplesmente recebemos um estímulo. É quando as ondas sonoras atingem o aparelho auditivo, fazem o tímpano vibrar e, na forma de impulsos elétricos, são levadas pelo nervo auditivo até o cérebro. A partir daí, entra em cena a percepção, que assimila, decodifica e processa esses dados (AXT, 2005, p. 79).

Ainda não existe um consenso entre os pesquisadores, mas a discussão baseia-se na

afirmação de que as relações entre as sensações e as percepções nem sempre funcionam juntas

e que o corpo cria outras formas de sentir, portanto, outros sentidos, que vêm suprir as

deficiências, como a cegueira e a surdez. Entretanto, como já foi mencionado anteriormente, a

fenomenologia não diferencia a percepção e a sensação. Fayga Ostrower também define a

percepção escrevendo que

delimita o que somos capazes de sentir e compreender, porquanto corresponde a uma ordenação seletiva dos estímulos e cria uma barreira entre o que percebemos e o que não percebemos. Articula o mundo que nos atinge, o mundo que chegamos a conhecer e dentro do qual nós nos conhecemos (1984, p.13).

Com essas considerações, podemos dizer que, hoje, o nosso corpo está

acomodadamente deficiente, ou seja, recebe as informações sensoriais do mundo externo, mas

não as percebe, não presta atenção naquilo que é sentido. Essas afirmações, portanto, só vêm a

reforçar a necessidade atual, e até urgente, de uma educação do sensível como educação do

sentimento, que se encontra no âmbito da educação estética, a qual, ao fazer confluir as

informações dos sentidos e da percepção, constrói uma elaboração mais ampla, completa e

abrangente.

39

Duarte Júnior esclarece que se trata de voltar ao verdadeiro sentido da palavra

“estética”, que vem do grego aisthesis, “indicativa da primordial capacidade do ser humano de

sentir a si próprio e ao mundo num todo integrado” (2004a, p.136); e m português, o termo se

traduz como “estesia”, com o mesmo sentido da estética. O autor ainda salienta que

poderíamos dizer que é uma volta para desenvolver e apurar os sentidos, na qual os

educadores devem centrar sua atenção para construir uma educação do sensível.

Desenvolver a sensibilidade começa na atenção e educação dos nossos sentidos como

um todo, alcançando níveis mais complexos de estesia. Neste estudo nos referimos mais

especificamente à educação do sensível como saber construído pelos sentidos e pelas

percepções de si mesmo e do mundo. Nessa conspiração, a arte tem fundamental participação,

pois sua apreensão se dá, inicialmente, pela sensibilidade. Portanto, situamos a educação do

sensível num todo mais abrangente, que no seu gradativo desenvolvimento conduzirá à

educação estética como uma forma de perceber e significar o mundo, refletindo sobre a

condição de fazermos parte dele e nele interagir. “A educação estética favorece a criação em

todos os níveis de conhecimento, faz seres humanos mais capacitados de resolver todo tipo de

questionamentos e mais independentes no seu pensar e no seu agir” (ORMEZZANO;

TORRES, 2003, p.56).

Considerando as questões pontuadas, reconhecemos a validade de uma educação dos

sentidos que possa ser compartilhada no ensino da arte, promovendo a sensibilidade.

2.3 A experiência sensível revelada com a corporeidade

APRENDER...

O barro nas mãos

Sentir...

O barro imaginado

Refletir...

A forma do barro

Moldar...

Transformar...

EXISTIR

40

Tudo que imaginamos e criamos, se estiver estreitamente ligado ao nosso corpo, à

nossa sensibilidade, oferece mais condições para sentir, interpretar e compreender a cultura

cotidiana. Especialmente quando nos referimos à arte, há múltiplas formas de expressão.

A corporeidade é pois compreendida como campo de vivência e reflexão a partir dos diferentes corpos existencializados e de diferentes construções teóricas, desdobrando possibilidades epistemológicas e éticas, referendadas pelo logos do mundo estético [...], trata-se de um saber incorporado, desdobrado pela percepção, configurando a linguagem sensível (NÓBREGA, 2000, p. 26-54).

O corpo precisa ser redescoberto, ser reconhecido como um organismo vivo, como um

todo de limites e possibilidades, que é capaz de sentir, expressar, mover; é um conjunto que

sustenta toda a mobilidade e do qual o educando se faz construtor ao refletir e criar. A noção

de corporeidade trata das potencialidades do corpo que, talvez, “só a natureza estética em seu

aspecto sensível, que une vivência e conceito, possa expressar com plenitude” (NÓBREGA,

2000, p. 29).

O corpo aprende, e aprende pelos sentidos, mesmo que essa aprendizagem não seja

considerada significativa pelos modelos epistemológicos de educação e por algumas pessoas

que, por não conhecerem, ou mesmo, não estarem habituadas, mantêm-se anestesiadas; o

corpo é capaz de distinguir sons, cheiros, texturas, sabores, possui uma sabedoria que em

muitos momentos não é expressa com palavras, mas na sua sensação. Os problemas

educacionais de toda ordem não são exclusivos da nossa época, pois sempre estiveram

presentes nas sociedades. Portanto, uma das inquietações atuais é compreender e vivenciar o

corpo não como uma máquina nem, muito menos, dissociado em corpo e mente, mas como

uma unidade na sua pluridimensionalidade.

António Damásio, na obra O erro de Descartes (1996), esclarece que não existe

divisão entre o corpo e a mente, que essa separação é um engodo porque tudo é parte de um

todo onde o conhecimento racional e abstrato se dá por meio dos processos sensíveis. Essa

situação também é destacada por Rubem Alves nas notas introdutórias da obra de Duarte

Júnior Fundamentos estéticos da educação: “Fragmentam -se as funções, fragmentam-se os

olhos, fragmenta-se o pensamento: as pessoas se tornam incapazes de perceber sua condição

como totalidade” (2002, p. 12) – logo, o eu penso e o eu corpo são considerados duas

entidades isoladas.

A racionalidade moderna tentou silenciar os saberes do corpo que permitem o saber de

si mesmo, da identidade do corpo, mas continuamos experimentando deixá-los emergir,

41

especialmente por meio da experiência sensível na arte, que nos permite ampliar a percepção

e a sensibilidade para que se torne possível a aceitação de si mesmo e do outro como legítimo

da convivência. “Todo saber se instala nos horizontes abertos pela percepção” (MERLEAU -

PONTY, 1999, p.280).

2.3.1 A (re)significação do corpo na oficina de arte

Para dar conta da proposta educativa na oficina de arte cerâmica, as temáticas

privilegiaram a convivência com o corpo numa tentativa de configurar a corporeidade como

expressão e sensibilidade, sem deixar de reconhecer que o corpo é um todo por meio do qual

construímos saberes. Os temas escolhidos para a oficina foram a cabeça, a máscara do rosto e

as tatuagens faciais da cultura maori. Dessa forma, temos como objetivo evidenciar

observações que possam identificar as implicações da educação do sensível para a construção

da corporeidade de adultos na oficina de arte cerâmica, investigando o cotidiano dos

encontros.

Apresentamos os subsídios teóricos dos temas escolhidos.

2.3.1.1 A cabeça

O barro nas mãos...

Sentir...

A cabeça e os órgãos sensoriais nela localizados são o nosso corpo; na área frontal da

cabeça, o nosso rosto registra e revela nossa identidade pessoal, a nossa expressividade. É na

cabeça que se localiza o cérebro e onde se concentra a maior parte dos órgãos que

possibilitam as experiências sensoriais, como os olhos, os ouvidos, o nariz, a boca, além da

pele, que também envolve o corpo todo, sendo esse o principal objeto de estudo deste tema.

“A cabeça geralmente simboliza o ardor do princípio ativo. Abrange a autoridade de

governar, ordenar, instruir. Devido a sua forma esférica, a cabeça humana é comparável,

segundo Platão, a um universo. É um microcosmo” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2005,

p.. 151).

A modernidade conceituou o humano como um ser de corpo e mente, antes de tudo,

racional. A cabeça, onde se situa o intelecto, foi separada do resto do corpo, sendo sua

42

superioridade potenciada por estar localizada no ponto mais alto do corpo, “comanda todo o

resto”. Esse desmembramento do corpo que separa a cabeça do todo pode ser vinculado a uma

elitização das partes: a cabeça diz respeito ao pensar e o corpo, ao sentir. As sensações são

desprezadas e inferiorizadas como se não fôssemos um organismo que sente com o corpo

todo.

Segundo Durand (2002), na cosmologia dos bambara, um povo da África, a cabeça é o

resumo abstrato da pessoa; para outros povos primitivos, a cabeça é centro e princípio de vida,

de força física e psíquica, além de receptáculo do espírito.

A condição de dar forma à cabeça pode provocar situações psicoeducativas de

confronto e superação a partir das experiências vividas que se definem nas valorações

atribuídas e que estão em constante transformação nas novas relações que se estabelecem

cotidianamente. “Formar implica em transformar” (OSTROWER, 1984, p.51). É na cabeça

que o rosto registra a identidade de cada um e também é por meio dele que as pessoas

expressam-se com visibilidade, quando a face expõe pensamentos, sentimentos e emoções.

2.3.1.2 A identidade da máscara do rosto

O barro imaginado...

Refletir.

Quando pensamos em alguém, lembramos o seu rosto, que identifica e diferencia cada

pessoa na sua existência. “A face do homem designa seu rosto, sobre o qual se inscrevem seus

pensamentos e sentimentos” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2005, p. 414).

Para ver o próprio rosto precisamos do espelho, de uma forma ou outra; o rosto não é

para si mesmo, é apresentado aos outros e infinitamente pode ser o mais revelador do corpo; o

espelho nos mostra o que é nosso corpo, ativa nossa imaginação, é o que se vê, o percebido e

o que se imagina ver, o pensado. Jeudy escreve que a

imagem de si leva a dizer: “Você pod e imaginar tudo que quiser, não se esqueça de que você é o que você vê. O espelho não engana, ele lhe diz o estado presente de seu corpo. E se você não quer vê-lo, vire-se...” [...] As caretas, os sorrisos, as maquiagens e outros cosméticos não mudarão muito a imagem refletida (2002, p. 55).

43

O rosto modelado no barro oferece subjetivamente um universo imenso para o diálogo

consigo mesmo e com os outros, uma possibilidade de compreender um pouco mais a própria

imagem vivida. Nas máscaras de barro revelam-se e escondem-se as ambigüidades do dia-a-

dia; ao modelar expressam a vida vivida numa experiência sensível da imaginação criadora.

Mas no esforço em compor o seu rosto segue o homem o vôo onírico, incessante e confuso, em ondulações íntimas, transformadoras para acabar por sucumbir à comédia, ao drama de sonhos que nascem e morrem ou num agitado lamento cristalizam-se no cotidiano das máscaras (GOUVÊA, 1989, p. 78).

Os elementos característicos do rosto de uma pessoa são sempre marcantes e se

mantêm apesar das transformações que ocorrem, seja pelo avanço da idade, seja pelo estado

de ânimo. Moldamo-nos em função das expectativas das outras pessoas e construímos as

máscaras da nossa cotidianidade que gradualmente vamos assumindo e instalando.

A maquiagem feminina também pode colaborar para acentuar ou disfarçar os traços,

especialmente do rosto, que registra os sinais. Se, por um lado, atende muito mais à própria

individualidade, por outro, compactua com os estereótipos estéticos da cultura do grupo social

ao buscar um ideal de beleza.

Se a mulher ocidental parece conformar-se em se maquilar de acordo com um tipo ideal de beleza, é igualmente verdade que ela tenta manifestar sua própria singularidade imaginando o olhar dos outros. A maquiagem é um jogo com os estereótipos socioestéticos (JEUDY, 2002, p. 90).

Os povos têm práticas de embelezamento, de realce do corpo, e cobrem o rosto com

pinturas faciais com as mais diversas finalidades, como equivalentes às mascaras. Há também

métodos que se distinguem, que imprimem sinais que modificam o corpo, como as tatuagens,

incisões e pearcings. Laude (1968), escrevendo sobre Las artes del África negra, destaca que

semelhantes intervenções devem considerar-se como um ramo da cosmética, mas não

procedem diretamente dos sistemas postos em execução na sociedade das máscaras. Não se

trata de representar a outros seres com a ajuda de um humano, que é a função da máscara, mas

de precisar a situação de um indivíduo particular no seio da sociedade e do mundo.

A máscara do rosto estabelece uma relação íntima com aquele que a modela, é uma

experiência de externar a si mesmo subjetivamente, podendo expressar as sensações e os

sentimentos. “O rosto fala, é discurso. Comunica -se com o outro, como o Outro, desvelando-

se” (ORMEZZANO, 2001, p. 89).

44

A construção das máscaras pode oferecer informações que contribuem para a

compreensão do significado da educação do sensível a que se propõe este estudo, como uma

possibilidade de reconhecimento da própria identidade, um registro corporal consciente de

cada educando, com todas as especificidades que os tornam únicos, diferentes, estabelecendo

relações, reconhecendo a si próprios nas formas modeladas no barro e, num contexto mais

abrangente e subjetivo, a possibilidade de saberem sobre si mesmos.

2.3.1.3 Os registros na pele: cultura maori A forma do barro...

Moldar.

Para a experiência estética, apesar de a percepção visual ser marcante, muitas vezes é

insuficiente e, quando a forma e a textura nos agradam, sentimos a necessidade de tocar com

as mãos; é a descoberta de um mundo novo, diferente da visualidade conhecida, que muitas

vezes não descobrimos pelo nosso vínculo mais forte com o sentido da visão. O

desaparecimento dessa relação entre aquele que toca e o que é tocado possibilita o sentimento

estético; o prazer ou desprazer acessível pelo tato pode ser despertado.

A pele do corpo, como superfície de registros dos sinais, se dá a ler, a ver e a tocar; ela

não esconde nada; experimentar sua textura faz com que a representação corporal se

desvaneça; é uma “superfície de auto -inscrição, como um texto, mas um texto particular, pois

seria o único a produzir odores, sons e a incitar o tocar” (JEUDY, 2002, p.84).

A nossa pele nos revela, manifesta os nossos traços de caráter mais singulares e,

quanto mais envelhecemos, mais ela mostra quem somos. O sentido da intimidade e da

proximidade está sempre presente através da pele, que é exposta ao olhar do outro. Superfície

de registro dos sinais da aparência, mostra e esconde a intimidade do corpo, torna público,

marca o limite entre o que está fora e o que está dentro.

Os registros traçados, acentuados ou dissimulados na superfície do corpo são uma

forma de adorno, uma escolha de exposição pessoal.

A exibição da tatuagem é um gesto considerado sagrado, é o mistério de um código figurado por uma representação simbólica que é oferecido ao olhar alheio. À sua maneira, a tatuagem se apresenta ao mesmo tempo como uma inscrição intimista sobre o corpo e uma manifestação pública. [...] A tatuagem é, ao mesmo tempo, um sinal de identidade e pertença (JEUDY, 2002, p. 89-91).

45

Nas muitas culturas que compõem o nosso universo encontramos as mais diversas

manifestações ligadas aos rituais dos povos, que são repetidos pelas gerações para que a

identidade pessoal e cultural seja mantida e para transmitir a sua forma de organização da

sociedade e do mundo. O impulso de criar é uma característica da humanidade, e o corpo

pode ter sido o primeiro suporte para a arte da pintura.

Num universo de muitas culturas fomos buscar a expressividade das tatuagens faciais

da cultura maori (Anexo J e K), uma sociedade primitiva, aborígine, da Oceania, para

estabelecermos relações com o mundo vivido dos educandos, discutindo os registros no

corpo, a maquiagem, as marcas de nascimento, as cicatrizes e as tatuagens que hoje têm se

tornado freqüentes na pele das pessoas. “O conhecimento e a apreciação de outras culturas

permitem uma melhor compreensão e uma melhor apreciação de sua própria cultura”

(RICHTER, 2003, p. 202).

Na Nova Zelândia, entre outros países, os maoris têm resgatado a sua cultura ancestral

preservando-a, cultivando tradições milenares, atualmente em harmonia com outros povos. A

tradição das tatuagens faciais (moko) se mantém, e o rosto é tatuado com desenhos

permanentes. As linhas são elementos predominantes colocados ao redor da boca, dos lábios,

na testa, enfatizando ou contrastando as formas. Cada linha ou grupo de linhas que compõem

a tatuagem conta uma longa história, desde a posição no grupo a momentos importantes da

vida (tradução própria) (TA MOKO, 2005, p. 6-7).

Segundo Allworthy (2005), a tatuagem maori está sendo resgatada desde a década de

70 como uma afirmação da identidade étnica, quando os maoris urbanizados a redescobriram,

valorizando esse símbolo da sua cultura. Hoje são estudantes, operários, soldados,

empresários, pesquisadores que lutam para preservá-la; é um processo doloroso de desenho

que não tem como ser removido, afirmando publicamente a crença desse povo nas suas

atitudes, na sua religião e história.

No texto They were treir tattoos (2004) encontramos referências sobre as complexas

tatuagens faciais dos maoris que foram reconhecidas nos anos de 1800, não só como

decoração corporal, mas também como identidade legal. Os maoris são suas tatuagens. A

tradição das tatuagens faciais contém mensagens tribais ancestrais sobre o seu existir, as quais

narram sobre a vida familiar, os valores, o pertencimento e a posição na estrutura social da

tribo.

As tatuagens estabelecem estreitas relações com o local onde estão colocadas: quando

aplicadas no queixo feminino, podem se referir à passagem da infância para a adolescência;

quando estão ao redor da boca, referem-se ao direito adquirido de falar e defender os direitos

46

do povo maori dentro do grupo; nos braços contêm mensagens relativas à atividade

ocupacional. Rare (2000) afirma que, quando as tatuagens estão localizadas no lado esquerdo

da face, relatam a história paterna e, no lado direito, a história materna; escreve também que

as mulheres podem usar pequenas tatuagens na face ou no ombro, indicando que alguém

muito próximo da família tenha morrido.

Pouroto Ngaropo, no texto Ta moko, explica a tatuagem que usa dizendo que

não são todos que podem usar “ta moko”. Eu tenho que pedir permissão para os mais velhos do meu clã. E tenho que agradecer aos espíritos ancestrais por me concederem o direito de usar. Cada tatuagem é única para quem a usa. No meu caso cada linha conta uma história, minha tatuagem reflete 480 anos da minha ancestralidade. As quatro linhas desenhadas no meu nariz representam as quatro canoas que chegaram em “Aotearoa” [“Nova Zelândia” na língua maori]; os dois círculos nas laterais representam a família do meu pai e a família da minha mãe; as linhas me conectam com meu grupo, com o lugar onde vivemos, a navegação e as tribos, o conhecimento da natureza e o eterno significado para nossa cultura” [tradução própria] (2005, p. 15).

O uso das tatuagens no rosto pelos maoris permite-nos estabelecer relações com o

mundo vivido dos nossos adultos dentro de um contexto social onde são utilizados adornos no

corpo, como uma condição de ser diferenciado, de resgate da identidade e, ao mesmo tempo,

de pertencimento à sociedade contemporânea, que estabelece padrões culturais. Portanto, esse

tema foi abordado com os educandos a partir da reflexão da história pessoal, de si mesmos

como seres únicos e da sua participação na cultura cotidiana.

As tatuagens são intervenções estéticas para adornar o corpo, que, simultaneamente,

traduzem uma expressão coletiva e individual da vida das pessoas, um claro sinal de

pluridimensionalidade cultural. Assim, consideramos que seria adequada uma proposta de

ensino-aprendizagem intercultural em artes que estabelecesse inter-relações entre diferentes

culturas, ou seja, a cultura dos educandos da EJA e a cultura maori, suas confluências e

divergências no uso das intervenções estéticas no corpo, conduzindo-os a reconhecer a

riqueza cultural como potencializadora da educação do sensível.

Greiner (2005) destaca que há uma inter-relação entre corpo e cultura que acontece de

maneira simultânea e evolui em processo; assim, para que possamos propor transformações na

vida das pessoas é preciso que o contexto social seja também transformado, e quem o

transforma é o próprio ser humano.

“Possíveis mundos de sonhado povo que desejamos ser nos desafiam a redesenhar

cenários novos para conceitos de identidade, pertença, diferença, afetividade, conceitual e

47

perceptiva” (MEIRA, 2003, p. 58). A autora complementa destacando o desafio que se

instaura para a compreensão do outro, o que pressupõe o entendimento de si mesmo, da sua

cultura e do seu espaço na vida das pessoas e para o que muito contribui a educação do

sensível.

Amassando, batendo, apertando, espichando, deslizando, nas suas práticas de

significação da experiência sensível na oficina, o educando modela o barro; da gestualidade

do corpo aflora a forma com toda sua plasticidade.

48

2 VIVÊNCIAS DO SENSÍVEL NA OFICINA PEDAGÓGICA DE ARTE

CERÂMICA

A proposta investigativa da cultura da oficina de cerâmica aliou as áreas de interesse

da pesquisa e relacionou-as com a vivência de educadora e artista-ceramista. Caracterizou-se

como uma prática educativa para a educação de adultos com propostas vivenciadas que

implicam uma educação estética desenvolvida a partir da educação do sensível, da arte e suas

possibilidades psicoeducativas.

Para que pudéssemos compreender os significados dos fenômenos, observamos a

cultura construída pelos educandos no espaço da oficina. Ao reconhecer e identificar na

experiência estética elementos de sensibilidade e estruturas constitutivas que se

complementam com informações, Meira (2003) escreve que parece ser um modo de fazer

cultura; para Richter (2003), é um espaço compartilhado pelos educandos, cuja capacidade de

dar significado às suas ações e ao mundo vem à tona, numa reinvenção permanente das

tradições.

É uma modalidade que contempla um conjunto de eventos, especialmente práticos,

que propõem uma vivência para os educandos na sua pluridimensionalidade, com especial

atenção para o sensorial, o afetivo, o criativo, o inter e intrapessoal por meio da arte. Como

espaço educativo, propõe o sentir, o refletir e o fazer de forma a gerar saberes que podem ser

vividos e sistematizados.

É importante salientar que o espaço educativo da oficina pode ser um espaço de

discussão, de descoberta, de interesse, de fomento da expressão, onde a aprendizagem

acontece sem padrões organizacionais rígidos, sem uma metodologia restritiva, e onde todas

as formas de expressão podem construir aprendizagens.

De acordo com Ormezzano,

49

[...] a oficina é um espaço em que se trabalha sem distinção entre intelectual e manual. Também implica a maneira de produção apropriada.[...]. A oficina é um espaço de troca que evolui pela capacidade de seus membros e do sistema em sua inteireza [...], favorece diferentes maneiras de pensar, sentir, perceber, emocionar-se e expressar a produção de um saber, do que somos e, de quem nós somos (ORMEZZANO, 2001, p.82-85).

O regimento do Núcleo Estadual de Educação de Jovens e Adultos Felipe Roberto

Sehn, em Carazinho, escolhido como entidade-campo para este estudo, contempla as oficinas

pedagógicas no seu currículo

para a construção da cultura e do conhecimento do educando/educanda, através de contextos educativos que favoreçam a integração criativa e cooperativa dos diferentes sujeitos [...] A dimensão da cultura, um componente dessa formação, aparece em inúmeras iniciativas pedagógicas, em momentos escolares voltados para manifestações artísticas onde aparece também a dimensão da estética nas formas de expressão dos educandos/educandas. As Oficinas Pedagógicas Culturais trabalham interdisciplinarmente com as outras áreas de conhecimento [...] visando a conquista de novas possibilidades, alternativas de vida, enfrentando os desafios como agentes de transformação (2002, p. 13).

O Neeja está localizado num bairro de fácil acesso, funcionando numa mesma

construção de dois andares com dez salas de aula para atender os alunos, uma oficina de artes,

biblioteca, cozinha, cinco salas do setor administrativo, mais quatro salas cedidas ao Núcleo

de Tecnologia Educacional. Atendia, na época da pesquisa, aproximadamente seiscentos

educandos, na sua maioria moradores das proximidades, que fazem parte da população de

baixa renda ou sem renda do município; são adultos, trabalhadores e desempregados, mas,

sobretudo, jovens, especialmente nas totalidades do diurno, tentando recuperar os anos

perdidos com repetências.

Como núcleo, as atividades letivas foram iniciadas em 2003; antes disso, atendiam-se

os educandos das escolas estaduais e a comunidade nas oficinas técnicas oferecidas, extintas

com as mudanças nas propostas educacionais. Para que as transformações acontecessem,

houve discussões e estudos que consolidaram o início das atividades fundamentadas na

proposta da educação popular de Paulo Freire (2004), baseada no diálogo como prática da

liberdade.

A pesquisa participante foi organizada elaborando-se os temas geradores, decifrando

as temáticas que seriam problematizadas e planejando as aulas transdisciplinarmente, sempre

preocupados com a perspectiva do todo e a construção a partir da vivência dos alunos, dos

acontecimentos e saberes da vida cotidiana. Entretanto, essas mudanças exigiram

50

disponibilidade e geraram conflitos, idéias divergentes e críticas, as quais foram

desestruturando a proposta, prejudicada pelas posições extremas assumidas pelos envolvidos.

Os educandos que estavam habituados ao sistema tradicional de ensino também mostravam

resistência, exigindo “conteúdos”, e a proposta pedagógica de educação popular não teve

sustentação.

A EJA contemplava aulas de artes com dois tempos (o mesmo que períodos na escola

regular), favorecendo as inter-relações e a criatividade para a formação e a qualificação

permeadas pelas experiências de vida, as quais revelam o que realmente é significativo no

mundo vivido de cada educando.

Nas totalidades três e quatro do ensino fundamental, estavam matriculados 37 adultos,

tendo-se a participação de 22 (oito homens e quatorze mulheres), com idades entre vinte e

sessenta e dois anos; com freqüência mais assídua (que não é uma exigência da modalidade de

EJA) registramos em torno de 17 alunos. Entre os educandos que trabalham encontramos as

profissões de pedreiro, vendedor de abacaxi, costureira, doméstica, auxiliar de laboratório,

dona de casa, faxineira, operário, vendedora; há uma aluna aposentada e outros estão

desempregados. A maioria afirmou que está terminando os estudos para conseguir um

emprego e para melhorar o salário. O grupo é participativo, interessado em aprender, mas

mostrou-se, inicialmente, resistente e muito crítico quanto às propostas apresentadas,

provocando algumas discussões. Combinamos os encontros previamente, mas algumas vezes

eles reclamaram alegando que não estavam avisados, especialmente quando a aula

programada seria de português ou matemática.

Foram realizados sete encontros, num total de 24 horas aula, e, para dar conta da

pesquisa, foi combinado um horário diferenciado com cinco encontros de quatro tempos e

dois encontros com dois tempos, durante o horário regular do noturno.

A proposta pedagógica humanista para a oficina de arte cerâmica contemplou a

linguagem tridimensional veiculada nas formas modeladas de argila, o que muito contribuiu

para esse estudo.

3.1 Os encontros na oficina

Os encontros na proposta da oficina foram organizados por temáticas, considerando-se

as etapas do processo cerâmico, vinculadas aos processos de interiorização dos educandos:

Conhecer o barro

51

• Autoconhecimento e cognição da matéria essencial da espécie humana.

• Sensibilização, sentidos, sensações, tocar.

Preparar o barro

• Percepção e conhecimento sensível.

• Amassar, modelar e ocar a cabeça.

Moldar o barro

• A possibilidade do (re)encontro.

• Modelar a máscara e a pintura corporal primitiva (cultura maori).

Molde do barro

• (Re)produção criativa do rosto e novo olhar sobre si mesmo.

• Fazer a forma de gesso a partir da máscara modelada.

Queimar o barro

• Vivência estruturante e transformadora.

• Recriar com gaze barbotinada no molde de gesso e preparo da queima.

Pintar o barro

• Desmascarar-se.

• Pintar a máscara.

As propostas oferecidas pelos encontros na oficina de cerâmica contemplaram

diversas experiências para a construção do saber sensível, envolvendo atividades que não se

caracterizam apenas pela prática, mas que consideram o educando como um todo e foram

planejadas conforme descrito em seqüência.

Primeiro encontro – 4h/a

OBJETIVOS

• Explorar a atividade sensorial por meio do barro tendo como finalidade que os

educandos reconheçam a si mesmos e ao outro.

ATIVIDADES

• Apresentação do educador e exposição da proposta de trabalho de educação estética,

desenvolvida em sete encontros previamente combinados com a direção e os

educandos.

• Exercícios de respiração e consciência corporal com apoio das músicas do CD

Spiritual four seasons e de sensibilização explorando as formas do rosto de um colega.

• Modelagem representativa de algo desagradável ou de algum fato que marcou

negativamente a vida de cada um.

52

• Exercício de transformação da materialidade do barro, dissolvendo na água a forma

modelada.

• Socialização do encontro e registro das falas dos educandos sobre a experiência

vivenciada.

METODOLOGIA

• Iniciamos a atividade convidando todos os educandos para cheirar e escolher um dos

aromas oferecidos e espalhá-lo nas palmas das mãos. A seguir, ouvindo sons da

natureza (CD Spiritual four seasons), orientamos exercícios de respiração e

consciência corporal, indicando aos alunos que iniciassem um caminhar; depois, o

olhar, que se seguiu em diversos momentos; o toque nas formas do rosto do colega,

orientando esse percurso e destacando a atenção para com os registros do tato na

percepção dos detalhes da constituição fisionômica, que compreende o

reconhecimento das características da face, ou seja, as características do outro. Após,

organizamos os educandos em grupos de quatro componentes, os quais, com os olhos

vendados, modelaram as sensações de mágoa, tristeza, angústia, perda, dificuldade e

outras para, depois, cada um transformar a argila dissolvendo-a na água e, então,

devolver à terra o barro. No momento final do trabalho, os educandos falaram da

experiência vivenciada no encontro.

Segundo encontro – 4h/a

OBJETIVOS

• Vivenciar a percepção dos sentidos do tato, da visão, do olfato, da audição e do

paladar explorando a percepção sensível da corporeidade e as relações com processos

interiores, especialmente nas formas da cabeça, por meio do registro plástico em argila

como resultado estético da criação.

ATIVIDADES

• Exercício sensorial e mensagem “Metade” de Oswaldo Montenegro (Anexo L).

• Modelagem da cabeça com argila (Anexo M).

• Discussão sobre as percepções das propriedades da argila e os processos.

METODOLOGIA

• Ao som ambiente do CD de Lorena MacKennitt para proporcionar o relaxamento na

sala aromatizada, convidamos os educandos para se colocarem confortavelmente no

espaço para realizar exercícios de respiração e consciência corporal; a seguir,

53

indicamos que iniciassem o toque nas formas do próprio rosto, que foi orientado

destacando-se a atenção para os detalhes da constituição fisionômica, que compreende

o reconhecimento das características do próprio rosto, ou seja, sua identidade facial.

Ao finalizar esse momento, foi ouvida a mensagem “Metade” de Oswaldo

Montenegro e, a seguir, na oficina de cerâmica, cada educando modelou seus registros

da cabeça na argila. A partir do contato com a argila, provocamos uma discussão sobre

as propriedades, as cores, as reações ao toque, o cheiro, percebendo com atenção o

material e as reações no corpo de cada um, os processos de secagem e queima da

argila, transformando-a.

Terceiro encontro – 2h/a

OBJETIVOS

• Experienciar o processo de finalização e ocagem da peça preparando-a para a secagem

e a queima, tendo como finalidade que os educandos, ao retirar a argila da peça,

pudessem estabelecer relações com o modo de perceberem a si próprios, assim como

conhecerem os procedimentos e a transformação do barro.

ATIVIDADES

• Ocagem da cabeça.

• Discussão sobre as transformações da argila nos processos de secagem e queima.

METODOLOGIA

• Retomada da modelagem da cabeça, finalizando a peça e ocando, isto é, retirando a

argila de dentro da cabeça para continuar o processo de secagem. Durante as

atividades discutimos sobre as transformações da argila em cada etapa e a vivência das

atividades pelos educandos.

Quarto encontro – 4h/a

OBJETIVOS

• Construir com os educandos um momento reflexivo ao conhecer a cultura maori,

tendo como finalidade que identificassem o modo de vida, os costumes e suas crenças,

especialmente as tatuagens faciais.

• Vivenciar o processo de modelagem da máscara na argila, reconstituindo a fisionomia

do próprio rosto, reencontrando a si mesmo.

ATIVIDADES

54

• Viagem imaginária à Nova Zelândia para conhecer os maoris.

• Modelagem na argila das máscaras com a própria fisionomia, observando-se no

espelho (Anexo M).

METODOLOGIA

• A partir de uma tatuagem de henna pintada na mão esquerda da educadora,

questionamos a necessidade das pessoas de adornarem o corpo com enfeites, pearcing,

maquiagem, tatuagem, nas suas diversas possibilidades, provocando um debate com

os educandos e resgatando suas vivências com relação ao tema. Introduzimos alguns

aspectos da cultura dos povos e as suas particularidades para enfeitar o corpo, com

especial destaque para os maoris, e, então, convidamos os educandos para fazerem

uma viagem imaginária e conhecer esse povo, seus costumes e crenças. Partindo dos

mapas, localizamos o espaço onde nos encontramos, os continentes e a Oceania. Ao

chegar à Nova Zelândia, apresentei-me como a guia de turismo, acompanhada de um

grupo nativo maori, que fez a apresentação de recepção, um ritual de boasvindas à

ilha, com a imagem do grupo projetada (Anexo J) e uma forte música. A seguir,

iniciamos uma exposição acompanhando lâminas com imagens contextualizando as

particularidades desse povo, como viviam e como vivem hoje (Anexo K), seus

costumes, o resgate dessa cultura ancestral, destacando especialmente as tatuagens

faciais e suas significações. Convidamos todos para participarem de uma oficina para

“turistas”, onde experimentariam a modelagem de máscaras de cerâmica, fazendo a

modelagem do rosto, cada um registrando a sua fisionomia na argila pela observação

no espelho.

Quinto encontro – 2h/a

OBJETIVOS

• Experienciar o processo de reprodução da máscara utilizando como recurso a técnica

da gaze gessada, reconstituindo a forma original do próprio rosto, tendo como

finalidade possibilitar um novo olhar sobre si mesmo.

ATIVIDADES

• Construção do molde do rosto ou da máscara modelada com gesso ou gaze gessada

(Anexo C).

METODOLOGIA

55

• Introduzimos a construção do molde do próprio rosto ou da máscara de argila com a

gaze gessada ou gesso, explicando os procedimentos passo a passo; depois de

endurecido, o molde é retirado. Para o molde da máscara de argila, os educandos

prepararam o gesso e cobriram toda a peça, fazendo uma camada espessa para que

ficasse resistente; depois de endurecer o gesso, a argila é retirada de dentro do molde

para que seque completamente.

Sexto encontro – 4h/a

OBJETIVOS

• Ampliar o universo de conhecimento dos educandos utilizando como recurso didático

a gaze barbotinada para explorar as possibilidades de estruturação do próprio eu.

• Criar representações por meio de desenhos que contam aspectos da vida pessoal com o

propósito de fazer uma reflexão sobre a própria vida e os acontecimentos mais

significativos.

ATIVIDADES

• Cópia do molde de gesso com a gaze barbotinada (Anexo M).

• Retomada das propriedades das argilas e sua percepção, em especial a barbotina.

• Desenhos representando aspectos da vida pessoal.

• Queima das peças de gaze barbotinada e das cabeças modeladas.

METODOLOGIA

• Introduzimos outras características das argilas, em especial da barbotina usada para os

moldes. Explicamos o processo de fazer uma cópia com gaze barbotinada do molde do

rosto feito com o gesso no encontro anterior. Cada educando preparou os pedaços de

gaze, impregnando-os com barbotina e aplicando camadas dentro do molde até chegar

à espessura desejada e, depois, esperou-se o endurecimento da barbotina. Retomou-se

a cultura maori e, nele, as tatuagens faciais para a criação de desenhos representativos

da própria vida que seriam pintados nas máscaras. Ao final do encontro, as máscaras

de barbotina foram retiradas das formas para que se completasse o processo de

secagem. A queima foi realizada no intervalo dos encontros.

Sétimo encontro – 4h/a

OBJETIVOS

56

• Vivenciar o processo da queima das peças, tendo como finalidade a identificação das

transformações do barro pelo calor e suas relações com a própria vida.

• Analisar aspectos importantes que fazem parte da existência, num momento de

reflexão sobre si mesmo, por meio da representação plástica na máscara.

• Reconhecer os aspectos positivos vivenciados nas propostas realizadas durante o

projeto, refletindo a partir do saber construído durante todas as etapas.

ATIVIDADES

• Representação plástica na máscara (Anexo M).

• Socialização das propostas desenvolvidas no projeto.

METODOLOGIA

• Analisamos as transformações ocorridas pela queima das peças, as perdas das peças

que se quebraram, a identificação da própria modelagem, de si mesmo. A seguir,

realizamos a pintura da máscara, a escolha das cores, representando simbolicamente

referenciais da própria vida. Continuando o encontro, numa outra sala preparada para

recebê-los, aromatizada, com uma música de Lorena McKennitt, cada um falou sobre

a experiência vivenciada nos encontros de que havia participado. Fez-se a leitura de

uma mensagem apresentada no PowerPoint, fazendo alguns comentários sobre as

experiências vividas pelos educandos, refletindo sobre a própria vida; em seguida,

cada um recebeu uma caixa de presente com um espelho e, olhando-se nele,

reconheceu-se como pessoa.

O processo da cerâmica, pela sua característica transformadora, foi privilegiado nesses

encontros, que também incluíram a vivência de experiências perceptivas e sensíveis, na

tentativa de compreender a possibilidade da educação do sensível por meio da arte.

Depois de cada encontro realizado, as observações e considerações do educador, a

transcrição das gravações, as falas e as atitudes dos educandos foram registradas e

sistematizadas no diário de campo e, juntamente com as fotografias e as produções, servem de

referencial para buscarmos a compreensão dos fenômenos no contexto da oficina, de onde

emergem as essências que serão apresentadas em seqüência.

57

4 AS ESSÊNCIAS FENOMENOLÓGICAS

As essências fenomenológicas permitiram-nos visualizar as dimensões apontadas nas

observações das experiências dos adultos participantes da oficina, na cultura estabelecida

pelos educandos, nas falas e nos comportamentos registrados no diário de campo, nas

produções artísticas e nas percepções como educadora e pesquisadora dos fatos ocorridos

durante os encontros.

As informações foram sistematizadas para a compreensão dos achados segundo as

quatro etapas do método fenomenológico de Giorgi e uma quinta acrescida por Comiotto

(ORMEZZANO;TORRES, 2003), que configuram os passos descritos a seguir:

• O sentido do todo:

Nesta etapa as observações registradas no diário de campo são muito importantes, pois

é feita a leitura dos textos das observações para que o pesquisador se impregne do

conteúdo buscando entender a linguagem dos participantes. Esta leitura é feira quantas

vezes se façam necessárias para evidenciar os conteúdos e para a familiarização com o

contexto até a compreensão do todo.

• As unidades de significado:

Quando a visão do todo estiver construída por meio da descrição do fenômeno,

realiza-se a redução fenomenológica; para tanto, a percepção do pesquisador é muito

importante, pois, durante a releitura, as unidades surgem espontaneamente como

conseqüência da compreensão. As unidades são numeradas em ordem crescente em

cada diário de campo.

• A transformação das unidades significativas

Nesta etapa é preciso atenção e sensibilidade ao que se mostra nos registros dos

encontros com os educandos que revelam seu mundo vivido. É preciso ir a fundo para

58

atingir sua essência. Depois de apreender as mensagens, interpretamos e expressamos

o fenômeno por meio de uma linguagem psicoeducativa.

• Síntese das estruturas de significado:

Numa visão do todo, as percepções do pesquisador e dos educandos se fundem num

texto de conteúdo diferente com os aspectos mais significativos, na busca de explicitar

e intuir as essências que aparecem (Anexos C, D, E, F,G, H, I).

• Dimensões fenomenológicas:

Nesta etapa procuramos as dimensões mais significativas do fenômeno que vão

emergindo das reduções e compõem as essências. Não é a fragmentação, mas a

intuição do fenômeno que muito colabora para que o todo seja captado. Para estruturar

os significados das vivências para os participantes, é preciso que haja uma síntese

entre subjetividade e mundo. As essências serão abordadas a seguir:

4.1 As possibilidades educativas da oficina

Esta essência evidenciou-se nos encontros a partir dos comentários e atitudes dos

educandos participantes da oficina em momentos distintos. O grupo é formado por adultos

com uma diversidade de interesses, desejos e sensibilidades. A vivência diferenciada de

ensino-aprendizagem foi reconhecida pelos alunos, que comentaram sobre o prazer do saber

nesse ambiente por meio da linguagem tridimensional da cerâmica.

As atividades ofereceram aos participantes experiências sensíveis, geraram conflitos e

resistências. Entretanto, a oficina proporcionou um espaço aberto ao diálogo e à expressão,

incitou o desejo dos educandos de darem continuidade ao desenvolvimento sensível e

inteligível dos saberes que se entrelaçam no processo educativo.

4.1.1 O saber com prazer: proposta de ensino-aprendizagem

A oficina pedagógica mostrou-nos possibilidades de pensar o cotidiano escolar de

modo diferente, envolvendo múltiplas formas de experimentação e de expressão numa

aprendizagem por meio do fruir e do desejo; mostrou-se um espaço integrado que oferece

condições para que o educando possa se situar estabelecendo trocas e que favorece

transformações a partir das percepções como caminho do saber.

59

A oficina é um ambiente cujo intuito é propiciar a convivência e as relações de saber e

fazer, que pressupõe um tempo diferente de outros espaços para a imersão no processo de

criação, para viver o tempo da arte. Como escreve Richter (2003), esse tempo é mais

encontrado nas oficinas e ateliês do que nas salas de aula tradicionais.

A possibilidade de vivenciar experiências sensíveis e criadoras com verdadeiro

interesse se dá

[...] quando aos alunos é dado o direito de simplesmente experimentar, tatear, sentir o prazer de apenas explorar os materiais ou divagar entre idéias incipientes, sem o peso do compromisso de apresentar “para nota” um produto final da atividade; [...] quando os alunos realizam atividades capazes de despertar sentidos plenos para eles, e isso ocorre quando se identificam com a proposta de trabalho e se reconhecem como autores, quando constatam que podem criar algo novo por meio de sua ação (ALMEIDA, 2004, p. 19).

Portanto, a autora nos mostra que no ambiente de informalidade da oficina o

educando se sente mais livre e descomprometido da obrigatoriedade que se instaura na

aprendizagem, experienciando o ato de aprender como ação prazerosa.

Para Gilmar, as pessoas passam o dia estressadas. Ele nos contou que no trabalho

dele também é assim; por isso, na oficina se sentiu mais aliviado, a atividade faz com que se

sintam mais unidos, promove as boas relações com o outro. Considerou que o trabalho os

conduziu a se sentirem melhor, o que promove uma vida com mais qualidade para eles.

Duarte Júnior (2004a) escreve sobre um viver prazeroso, que tem um sabor especial,

um prazer de saber, de saber de si, que se revela com o fruir das qualidades, como expressou

Cláudia: Ah, meus filho não vão acreditar que eu sou uma artista! (falando muito orgulhosa

da escultura).

A oficina constrói momentos possíveis de aprendizagem, com respeito ao tempo

próprio de cada educando, com possibilidades de fazer escolhas, com tempo para fruição e

criação, como foi explicitado na fala da Íria: A gente trabalha (no fazer) e se diverte. O

contexto da oficina, especialmente a manipulação do barro, tem a característica de provocar a

ludicidade, que, como a arte, produz prazer.

No prefácio do livro de Duarte Júnior, Alves escreve:

60

No brinquedo e na arte não aparece coisa alguma no fim. E pode-se então perguntar: ‘Mas como justificar estas atividades curiosas, inúteis, improdutivas?’ É que elas produzem prazer: atividades que são um fim em si mesmas. Não existem em função de coisa alguma a não ser elas mesmas e a alegria que fazem nascer (2002, p. 13).

Observou-se que o grupo se sentia cada vez mais descontraído, motivado e dedicado

durante o trabalho na oficina; os alunos conversavam entre si, pediam opinião aos colegas;

pediam ajuda e davam sugestões de como fazer; dedicaram-se às atividades, que se tornaram

prazerosas pela satisfação e descontração com que foram realizadas.

Maria Oly Pey escreve que é possível caracterizar uma oficina como

projetos vivenciais, onde a dialogicidade é essencial na relação entre as pessoas, [...] se obtém uma força coletiva de produção de saber superior que a soma das forças individuais; produzem saberes em autorias e obras [...] para o desejo tomar a direção que insistir, permite às pessoas desenvolver trabalho de investigação de saberes, ao invés de tarefas rotineiras; se articulam no âmbito dos saberes práticos, tecnológicos, científicos, artísticos, artesanais, intuitivos, literários e outros, sem colocar qualquer ordem hierárquica no trato deles (1997, p. 47-48).

Na oficina o percurso é construído em função dos acontecimentos, não do tempo,

razão por que as atividades se tornam interessantes. Tanto é assim que muitos educandos

continuaram a atividade mesmo durante o tempo de intervalo.

A atividade e experiência como educadora-artista-ceramista, em contato com os

processos e materiais pertinentes a esse contexto, contribuiu para o ensino-aprendizagem,

chamando a atenção e o interesse dos educandos. Cláudia comentou num dos encontros que

eu deveria gostar muito do que faço, o que eu confirmei. Mestre Nado, ceramista de Olinda,

de uma sabedoria ímpar, diz: “O desafio sempre foi e continuará sendo a gente se manter

firme no que sabe fazer, faz porque gosta e gosta porque sabe que tem sempre que aprender

[e ensinar]” (SOM..., 1995).

O reconhecimento do trabalho como educadora revelou-se pela salva de palmas dos

educandos ao encerrarmos os encontros e pelo desejo manifestado por eles de darem

continuidade à atividade. Isso está expresso no questionamento da Sandra: Quem sabe a profe

vai dá aula de novo pra nós? O prazer de participar da oficina foi comentado também por

Judite: Que bom que é segunda-feira, hoje, essa aula maravilhosa, pena que tá chegando ao

fim.

61

No decorrer dos encontros, os alunos desfrutavam do convívio e do fazer, num

ambiente descontraído, socializando com o grupo.

4.1.2 A realidade escolar da EJA: adultos jovens, médios e idosos

Na categoria de adultos, o ciclo vital compreende os adultos jovens, médios e

idosos, caracterizando, assim, o grupo de participantes da oficina, que revelaram

especificidades, necessidades, dificuldades e interesses que os motivam, eles manifestam o

que pensam sobre o processo educativo e como se situam na EJA, entre outros aspectos.

O tempo que ficaram afastados da escola e os interesses que os motivaram a buscar a

EJA são diversos. Dione conta que parou de estudar na segunda série e que procura no EJA

aprender e crescer mais; Gilnei quer trocar de emprego, sempre trabalhou na construção civil

e agora quer ser segurança de banco, para não estar sempre sujo e por ser um trabalho que não

exige muito esforço físico; Íria ressente-se pelo fato de os filhos não se interessarem em

estudar e fala que está no Neeja para trazer o filho, mas mesmo assim ele sai no pátio pra

matar aula.

Os educandos têm pressa em concluir os estudos. Constantemente presenciei a

insistência deles na cobrança das avaliações para avançar rapidamente nas totalidades e a falta

de “conteúdos” em algumas disciplinas na proposta de educação popular, amplamente

defendida por Freire (2004). Isso se mostrou na oficina quando Vera reclamou que já está na

EJA há meio ano e ainda não avançou. Gadotti escreve que “o educando quer ver a aplicação

imediata do que está aprendendo. Ao mesmo tempo, apresenta-se temeroso, sente-se

ameaçado, precisa ser estimulado, criar auto-estima pois a sua ignorância lhe traz tensão,

angústia, complexo de inferioridade” (2005 , p. 39).

No grupo de educandos as idades variavam entre vinte e sessenta e três anos; seis

alunos estavam na faixa dos vinte anos; seis, na faixa dos trinta anos; oito, na faixa dos

quarenta anos e duas, na faixa de cinqüenta e sessenta anos. Judite e Inelsi ficaram cansadas

no primeiro encontro, pois são as alunas de mais idade. Ivanir, que tem quarenta anos, alega

que o grupo já não é tão jovem, se comparando ao grupo de escola regular. Ela diz que todos

trabalham e todo mundo chega cansado, faz aquele sacrifício de vir pra aula. Portanto, as

exigências do cotidiano dos educandos trabalhadores culminam na sua desmotivação para

estudar.

62

A freqüência não é exigida na EJA, que se propõe respeitar o tempo dos educandos;

assim, atrasos e ausências fazem parte desse contexto. Alguns chegam atrasados em razão dos

compromissos de trabalho; outros se afastam por determinado período e depois retornam. Os

ingressos e afastamentos dos educandos acontecem a todo o momento. Num dos nossos

encontros, Claudionor lamentou ter de parar de estudar, pois não conseguiria conciliar os

horários; estava feliz por ter conseguido um emprego fixo, disse que gosta muito de estudar e

que se sente bem na escola, mas teve de desistir.

Por outro lado, Sílvio destacou a presença freqüente dos colegas, especialmente

quando foi iniciada a modelagem, afirmando que foram se interessando e poucos faltaram, o

que realmente aconteceu. Na cultura da EJA as atividades escolares apareceram vinculadas

aos referenciais de esforço mental, dedicação total, sofrimento, que, ao final, têm na

aprovação a recompensa. Ivanir reclamou: Os professor pedem os trabalho, a gente faz, fui

pesquisar, levei um tempão e agora, ele disse que não vai ser mais esse trabalho. Olha aqui

tudo que eu fiz (mostra várias folhas). Os educandos vêem-se frente a situações conflitantes:

por um lado, aprender com prazer; por outro, aprender com sofrimento.

A EJA é um espaço de embate, de aproveitamento de brechas na busca de ser, se pessoas que, historicamente, foram deixadas na “ marginalidade”. Condenadas à exclusão e à violência. É um espaço entre o querer-ser e o ser-o-que-outros-querem-que-sejam (SANTOS, 2003, p.142).

Aparece também a comparação das metodologias e o quanto é difícil para os alunos

aceitarem o que é diferente, que sai da rotina a que estão acostumados no contexto escolar dos

que aprendem e dos que ensinam. Ivanir expressou: O professor Marcelo, as aulas de artes

dele eram bem diferentes da sua.

Nos encontros também se mostrou expressiva a participação da mulher, que compõe

a maioria no grupo: são quatorze mulheres e oito homens. A decisão de retomar os estudos

expõe a fragilidade das relações familiares e o quanto ainda são submissas, o que contribui

para gerar sentimentos de insegurança entre os casais. Dione conta que estava se indispondo

com o marido porque chegava em casa com a roupa suja de argila, o que provocava nele

desconfiança. Cláudia contou que o marido exige tudo muito bem explicado: Ele quer ser o

meu dono, eu digo que não tenho dono, o tempo da escravatura já se foi. Ele é possessivo,

nós separamos e voltamos agora, ele melhorou bastante. Eu explico, se não acredita, vai lá

63

no colégio e pergunte”. Assim se configura a realidade do grupo de participantes na cultura

da oficina.

4.1.3. A escultura na arte cerâmica

Esta dimensão aflorou das possibilidades da escultura cerâmica para a construção da

linguagem tridimensional na proposta da oficina, das características da materialidade do

barro, e dos fundamentos da teoria e da prática.

A argila é um material fácil de ser encontrado, podendo ser recolhido da natureza,

numa olaria ou mesmo comprado; não há dificuldade para encontrá-lo. Utilizaram-se a argila

em pasta e a barbotina (consistência cremosa usada em moldes). Os educandos mostraram

diversas reações frente à argila, percebendo suas características, como maleabilidade, cheiro,

temperatura, reação ao calor das mãos, o prazer ou desprazer de tocar. Para alguns alunos era

suja e, especialmente, a barbotina, pareceu “nojenta”.

Na expressão por meio da linguagem tridimensional da cerâmica, as primeiras

reações dos educandos, quando da proposição de modelagem da cabeça, foi afirmar que não

sabiam fazê-la; eles se viam incapazes de realizar a tarefa, mas, ao receberem o material,

iniciaram o manuseio e foram construindo, um pouco inseguros inicialmente, a forma das

cabeças, a partir do formato de uma bola. Na modelagem o gesto é mais livre e pode ser

facilmente corrigido.

Daniela modelou com facilidade e pediu instruções sobre como fazer os cabelos;

Sandra modelou uma forma arredondada bem esquemática e colocou nela olhos de bola,

sobrancelhas, um mínimo nariz e uma boca muito sutil, acrescentando, ao final, o queixo;

Claudionor também tinha dificuldades para dar forma à argila e fez dois grandes buracos para

os olhos e o nariz. Num outro encontro quando foi realizada a modelagem do próprio rosto,

eles já demonstravam mais afinidade com o material.

Produzir por meio da arte é uma ação perceptiva que implica sentir e expressar a

partir do material, numa entrega que envolve a ambos, matéria e educando; é uma atuação

criativa que contribui para o próprio desenvolvimento. Meira escreve que

nessa matéria informe, mas pulsante de vibração, operam as práticas de significação da experiência estética, as qualificações vitais que a arte engendra para elaborar suas linhas de força, suas cores, suas formas, o sentido imanente de suas práticas e interação (2003, p. 65).

64

A escultura cerâmica é um recurso que facilita a expressão dos conteúdos subjetivos,

do repertório individual de cada educando, da maneira como se relaciona consigo mesmo nos

processos do fazer, possibilitando a compreensão, a integração e a transformação a partir das

percepções sensíveis proporcionadas pela experiência estética.

Sílvio deu muita importância ao fazer, achando o trabalho interessante; destacou o

processo de aprendizagem da modelagem, dizendo que foi importante ter vivenciado o que

muitos ainda não tinham experimentado, pois a maioria deles nunca tivera contato com a

argila, e atribuiu as perdas na queima, que foram poucas, à falta de conhecimento desse

material: As máscara, muitas quebrô porque o pessoal não tinha muita habilidade com

argila.

Portanto, a teoria e a prática precisam coexistir, convergir, para que a educação possa

acontecer vinculada ao mundo vivido. Os conceitos e saberes práticos proporcionaram uma

relação prazerosa de ensino-aprendizagem aos educandos. Gilmar faz comparações entre

teoria e prática, afirmando que, quando apenas conceitos e conteúdos abstratos vigoram

durante as aulas, estas se tornam muito cansativas; para ele, as experiências práticas são ricas

e facilitam o processo de ensino-aprendizagem. O que o educando aprende precisa ser vivido;

no seu caso, permitiu-lhe construir significados a partir dos referenciais que ele próprio

compôs.

Íria lastimou que os óculos na máscara dela tivessem sido arrancados pelo molde; ao

aprender como corrigir o acontecido e a possibilidade de resolver o problema, ficou contente.

O conhecimento das técnicas contribui para dar qualidade ao saber que está sendo construído.

4.2 Educação do sensível e corporeidade Das dimensões construídas a partir das significações da corporeidade para os

educandos, das implicações perceptivas, inteligíveis e sensíveis na pluridimensionalidade dos

participantes na cultura da oficina emergiu esta essência. No corpo, os educandos vivenciaram

a experiência sensível, resistiram, protestaram; sentir é condição de estranhamento, de

intimidade, de conflito no cotidiano e acaba privando os educandos do saber sensível e

inteligível integrados.

A educação do sensível na arte cerâmica privilegia o processo perceptivo dos

educandos, que, na sua corporeidade, trazem registros de identidade e pertencimento. Para

65

ampliar os saberes de si mesmos e das relações que estabelecem no seu cotidiano cultural

propusemos inter-relações com a cultura maori.

O sentimento, ou seja, sentir como apreensão do mundo, e as relações emocionais

estabelecidas guiam o pensamento, conjugando o sentir, o pensar e o fazer numa vivência

estética.

4.2.1 Percepção, sensibilidade e inteligibilidade Na oficina, a coexistência dos saberes sensíveis e inteligíveis, num contexto que vai

refinando a aprendizagem e desencadeando os valores próprios como um todo, promove a

vida dos educandos.

Na percepção, as informações do mundo são recebidas pelo corpo, as sensações são

assimiladas pelo organismo e colocam-se em relação.

Nós reaprendemos a sentir nosso corpo, reencontramos, sob o saber objetivo e distante do corpo, este outro saber que temos dele porque ele está sempre conosco e porque nós somos corpo. Da mesma maneira, será preciso despertar a experiência do mundo tal como ele nos aparece enquanto estamos no mundo por nosso corpo, enquanto percebemos o mundo com nosso corpo. Mas, retomando assim o contato com o corpo e com o mundo, é também a nós mesmos que iremos reencontrar, já que, se percebemos com nosso corpo, o corpo é um eu natural e como que o sujeito da percepção (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 278).

O mundo dos educandos no contexto da oficina deu-se a perceber sensorialmente,

visto que as atividades estimulavam a percepção pelos sentidos. O cheiro, o olhar, os sons, o

toque foram experiências vivenciadas pelos educandos consigo mesmos e com os colegas. As

atividades também privilegiaram a materialidade da argila, abrindo-se um universo de

percepções e significações.

Considerando as experiências sensíveis, Cláudia disse que foi uma coisa fora da

rotina, que foi bom caminhar, mas que se complicou no olhar o outro. As atividades propostas

para a percepção de si mesmo, não foram tão difíceis quanto as da percepção do outro, o que

provocou polêmica no grupo. Os educandos mostravam-se dispostos a participar, mas tinham

reservas, barreiras que os impediam de tocar o próprio rosto ou, mesmo, de olhar-nos ao

mostrar-lhes as formas, orientando a modelagem.

Daniela, Sandra e Rosane cheiraram a argila; sugeri que os colegas também

experimentassem esse cheiro, calor e maleabilidade. Todos a puxaram, bateram, esticaram e

66

experimentaram pelos sentidos para, então, atribuírem as próprias significações, dando

sentido ao apreendido.

As percepções têm ligação com os sentimentos e, conforme se deu o acesso à

subjetividade, provocaram reações diferentes nos educandos. Íria comenta sobre a irritação

com a sala aromatizada contando que já cheirara veneno e que, depois disso, não suportava

cheiros. Na atividade realizada com uma colega, Judite disse que sentira como se fosse o

carinho da mãe, mas explicou que a mãe não tivera tempo para dar-lhe carinho, por isso se

sentia carente.

O grupo de educandos adultos tem consciência da necessidade da sensibilidade no

cotidiano, pois sentir não pode ser substituído ou compensado por outra maneira qualquer,

Cláudia falou do relacionamento diferenciado para com os filhos e que a diferença está no

sentir.

Numa das propostas os educandos modelaram a própria cabeça. Alguns dias depois

Claudionor chegou dizendo: Profe, vou ter que deixar minha cabeça aí, vou trabalhar na

Coviplan. A separação do corpo e da mente persiste apesar das afirmações defendidas por

Damásio (1996). Para Claudionor, o fato de estudar indica que ele precisa da “cabeça”, que,

neste momento, iria deixar na oficina de arte; para o trabalho como operário, ele considera

que precisa somente do corpo, então, separou-os.

A educação tradicional sempre será controladora da vida do educando, da sua

criatividade, como é controladora do pensamento. Por sua vez, a construção dos saberes na

relação pluridimensional de ensino-aprendizagem da oficina diferencia-se por valorizar a

sensibilidade e o pensamento, sendo sempre prazerosa, pois permite ao educando um

processo participativo, de interação, cooperação e diálogo mais constante no grupo, onde

somos todos educandos, aprendendo e ensinando, como nos convida Paulo Freire (2004).

Quando Vera afirma O que precisa é português e matemática, é isso que a gente tem

que aprendê está explícita a defesa de uma proposta educacional na qual possam “aprender o

que realmente interessa”, destacando -se a racionalidade dos conceitos e cálculos entre os

conteúdos dessas disciplinas que privilegiam o inteligível e que são importantes para o

trabalho. As “outras disciplinas” assumem uma posição desprezada, de validade questionável,

como é o caso do ensino da arte, que apresenta propostas diferenciadas. Esse descaso com o

ensino da arte foi presenciado, juntamente com os educandos, quando encontramos o espaço

da oficina transformado em depósito de mesas e cadeiras.

A fragmentação dos saberes continua instaurada no contexto educacional atual,

Gilmar relata essa experiência dizendo que, quando está na escola só escrevendo, enche a

67

cabeça com cálculo, com tanta informação que volta mentalmente mais estressado para casa.

Portanto, aprender aparece como uma tarefa fatigante imposta no cotidiano, onde o saber

sensível, que é considerado impreciso, está silenciado, mas continua ativo no corpo. Este é

condição de existência e precisamos mobilizar para nos reencontrarmos.

A oficina de arte é uma modalidade por onde tramitam prazerosamente os saberes

sensíveis e os saberes inteligíveis, assimilados, modificados, continuados, os quais dinamizam

a aprendizagem, as possibilidades práticas e teóricas experienciadas nesse cotidiano.

Considerando as idéias de Bertrand e Valois (1994), o paradigma educacional

humanista que permeou esta pesquisa reconhece o ser humano com uma pessoa integralizada;

assim, saber e conhecer, sensível e inteligível, podem assumir relações de

complementaridade. Há que se promover a educação do sensível para ocupar seu lugar no

processo educativo de supremacia intelectiva até que os saberes possam coexistir sem que

haja o desprezo de um pelo outro.

4.2.2 Desafios impertinentes da corporeidade: resistência e mudança É pelo corpo que os educandos constroem os saberes. Tudo é, primeiramente,

apreendido pelos sentidos; o corpo registra e resiste. Assim emerge esta dimensão, permeada

pelos conflitos, desprezo e sufocamento da corporeidade, que é a realidade imediata mais

palpável de que o educando dispõe.

Pelo estímulo da sensibilidade e da percepção, os educandos foram conduzidos a

apreender o mundo vivido; eles manifestaram impedimentos para permitir o acesso ao corpo

no que se apresentava. O corpo é a forma pela qual o educando se expressa no mundo e que

expressa sua cultura.

A experiência do sensível já no primeiro encontro despertou as vivências da

corporeidade. Discutimos as atividades sensoriais, e os educandos externaram falando das

sensações e sentimentos prazerosos ou não, do desconforto, do constrangimento, da

estranheza. Percebeu-se o “pr ocesso anestésico” citado por Duarte Júnior (2004a), o qual

escreve que a anestesia é cultivada na sociedade de hoje, porque as pessoas são levadas a não

sentir, como se fossem inatingíveis por tudo que se relaciona com a possibilidade de

experimentar sentimentos, contrapondo-se à estesia, que supõe exatamente a envolvente e

plena percepção dos nossos sentidos.

68

Havia bloqueios ao envolvimento sensível dos educandos, que mostravam dificuldade

em participar da proximidade e do reconhecimento corporal tanto dos colegas quanto de si

mesmos. Quando provocados para que olhassem nos olhos um do outro, eles não se olhavam,

a maioria não conseguia olhar o colega, mostravam-se constrangidos e envergonhados.

Sandra, Dione e Daniela riam nervosamente, mantinham conversas como uma forma de

dissipar a tensão e a intimidade que a atividade promovia. Ivanir disse: Eu não relaxei, eu

fiquei o tempo inteiro rindo, não sei se é porque eu fiquei nervosa.

Jeudy (2002) escreve que os sentimentos são representados no corpo, mais

particularmente, o rosto é reflexo da alma e permite certa compreensão mútua antes que

qualquer explicação verbal. Sentir o outro é atribuir um significado à representação corporal

que pode ser legitimado ou não.

A “revolução”, antecipada por Duarte Júnior (2004a), aconteceu. Os educandos

enfrentaram um conflito provocado pelas significações das experiências sensíveis vivenciadas

com estranhamento, significados esses atribuídos por eles próprios e pelos alunos de outras

turmas, que ridicularizaram a vivência e invadiram a privacidade da sala, ou seja, dos

educandos, ao espiarem pela janela. Cláudia falou da situação criada pelos colegas do outro

grupo: Virou uma bagunça, aquela gente espiando pela janela, ficou meio chato, as pessoas

comentando, que estavam de fora, que não tem sentido, ficam fazendo chacota, dando risada.

Esses acontecimentos e sentimentos provocaram um “boicote” aos nossos encontros,

que só não foi levado a cabo pela intervenção da direção do núcleo, dizendo que a decisão de

não voltar a participar dos encontros não solucionaria a questão e aconselhando-os a

conversarem para expor o que estavam vivenciando.

Íria falava no corredor com as colegas de baboseiras e palhaçadas, reclamando do

cheiro na sala aromatizada com essência de erva-doce. Disse que não estava ali pra isso,

numa reação intempestiva, e foi embora, logo depois seguida por Cleci.

Alguns educandos aceitaram o desafio de discutir sobre a proposta e aguardavam

fora da sala. Rosani também reclamou do cheiro e trocamos de sala para conversar. Ivanir

começou dizendo: Na segunda-feira a gente se propôs a fazer, concordou, só que a gente não

achou que ia ser aquele tipo de aula. As críticas estavam fundamentadas principalmente na

atividade que envolvera o olhar e tocar o colega, ao que eles reagiram como se a corporeidade

de cada um tivesse sido “violada”. Ela falou que, por ser a primeira vez, pelo que aconteceu,

todo mundo ficou apavorado e ninguém queria vir.

Sílvio destacou os aspectos negativos dizendo: Ninguém tá acostumado a olha no olho

do outro, acariciar o rosto do outro, ali foi bem estranho, ficou complicado porque, se fosse

69

daquele jeito de novo, ninguém ia participar, nós viemos aí pra conversa com a profe. Nas

relações entre as pessoas, a demonstração de afeto e expressão de sentimentos que despertam

a intimidade foi claramente discutida e desprezada. Portanto, o prazer é condenado quando

vinculado aos desejos do corpo.

Daniela ponderou que para mulheres é normal acariciar, que entre duas mulheres é

mais comum, mas que com homem não é normal.

Durante a conversa, eles falaram dos mais diversos sentimentos que vivenciaram: a

vergonha, a timidez, a insegurança, a discriminação, a indignação, a exposição pessoal, o

prazer, a imprevisibilidade, além de muitos outros. Foi extremamente significativo ouvi-los

relatar os sentimentos quando o nosso cotidiano nos anestesia quanto aos saberes do corpo.

Meira escreve sobre a problemática que se instaura no cotidiano, onde a “perda de vínculos e

a impossibilidade de chegar ao corpo por afetos, percepções diretas e pela ação conjugada

entre olho, mão e ação imediata têm produzido conflitos e exclusões consideráveis na

sociedade atual” (2003, p. 33).

Os significados atribuídos pelos educandos às atividades provocaram experiências

contraditórias. Por um lado, sentiram-se bem, exploraram o prazer que a atividade

proporcionou, como Dione disse: Eu trabalho num ambiente de doença, é muito

sofrimento[...] Num hospital a gente vê muita coisa triste, então foi muito bom pra mim. Por

outro, ela relata que se sentiu mal quando o marido exigiu satisfações a respeito da roupa suja

de argila.

Os impedimentos para vivenciar a corporeidade também se confirmaram num outro

momento, quando foi solicitado aos educandos que fizessem o reconhecimento de si mesmos

tocando o próprio rosto. Nesse momento havia a vontade de participar, contudo o corpo

reagia contraditoriamente; foi inquietante e eles mostraram muita dificuldade para sentir o

rosto, como também olhar a si mesmos no espelho. Assim, eles pouco olharam ou, mesmo,

distraíam-se modelando. De acordo com Païn e Jarreau:

A modelagem apela diretamente ao corpo: às sensações transmitidas pelas extremidades dos dedos, à modulação da pressão e tensão muscular, à diferenciação profunda dos gestos, ao maior compromisso de toda a postura e da dinâmica do corpo que modela. Paralelamente, a atividade corporal de representação pela modelagem desencadeia mais rapidamente uma resposta emotiva, uma ressonância afetiva mais ligada ao trabalho que ao resultado [...], é antes o saber do corpo que é posto em causa na modelagem e sentido como eficaz no bom êxito, ou culpado no fracasso (2001, p. 124).

70

As atividades perceptivas permitiram-lhes uma significação da corporeidade na

cultura da oficina, que ainda é desprezada, é contraditória e suprimida. A discussão inicial

com os educandos mostrou-lhes que são necessárias diferentes opiniões para que encontremos

um entendimento nas relações de grupo. A vivência dos sentimentos contribuiu para o

autoconhecimento, para a busca e o reencontro, com a consciência de que o mundo vivido e

as relações podem ser diferentes. Sílvio comenta que a atividade pode acontecer de várias

maneiras, a pessoa vai experimentando devagarzinho, vai estabelecendo os contatos, vai

relaxando cada vez mais, vai se deixando levar, eliminando as barreiras e vai se

aproximando da pessoa.

Assim, delineia-se uma metodologia para a educação do sensível, na sugestão de

Sílvio. Os vínculos foram se fortalecendo a cada encontro; o contato com a materialidade do

barro e a vivência do fazer foram sendo despertados e fizeram aflorar o saber sensível. O

comportamento, as atitudes e sentimentos expressos pelos educandos foram confirmando esse

impulso.

4.2.3.Corpo: identidade e pertencimento

A educação do sensível pressupõe o saber de si mesmo, e esse saber confere

identidade e pertencimento ao educando, temática que foi abordada com a cultura maori e

suas tatuagens faciais na proposta da oficina. A partir das marcas do corpo dos educandos, dos

sinais na pele, construímos a relação intercultural que promoveu o reconhecimento e

fortalecimento dos aspectos da identidade pessoal, conduzindo a um olhar para si mesmo

como partícipe da sua cultura.

Ao conhecer o contexto dos maoris, os educandos puderam estabelecer relações e

ampliar um saber de si, que é dinâmico e transitivo. Assim, reconhecer sua própria identidade

pressupõe a relação com os outros, a sua participação na cultura. Richter escreve que, “ao

olhar para outras culturas, também o observador altera e renova a sua visão do mundo e das

coisas” (2003, p.16 -17).

O corpo exibe os sinais da identidade dos educandos. Sílvio conta que tem uma marca

de um caminhão, não vai sair nunca, devido a um acidente. Na obra O corpo como objeto de

arte, Jeudy escreve que a pele,

71

suas marcas, suas cicatrizes, suas rugas tanto são sinais visíveis e palpáveis que revelam toda a ambigüidade da apercepção do corpo. Se a tatuagem ou a escarificação se mostram como o prazer de um desafio lançado aos olhos de todos, a cicatriz se esconde como um sinal indelével de uma degradação física (2002, p. 85).

Há também os sinais que são usados como adorno no corpo, para assemelhar ou

diferenciar as pessoas, como a tatuagem. Cristiano ergue a blusa, mostra o escorpião no

ombro e diz que, quando a avó ficou sabendo, ficou louca, ela é do tipo que pensa que quem

tem tatuagem é maconheiro, mas eu não sou.

Daniela sempre estava bem maquiada nas aulas, desenhava as sobrancelhas e o

contorno dos olhos com lápis preto bem marcado; ela afirmou que gosta muito de usar

maquiagem e que gostaria de fazê-la definitivamente, o que parece ser uma forma de

fortalecer a auto-estima. Judite comentou que precisava fazer uma maquiagem definitiva para

correção de uma das sobrancelhas.

Na modelagem da máscara do rosto, Dione representou a pinta que tem na testa e, no

decorrer das atividades, fez o molde da própria máscara. Íria examinou o molde e disse a

Dione que tinha um buraco na testa, ao que esta respondeu: Não é buraco, é minha pinta, a

gente fez olhando no espelho. O ato de olhar no espelho permitiu-lhes o (re)conhecimento de

si mesmos e, no fazer, os educandos estabeleceram e revelaram relações da modelagem da

máscara com a própria identidade facial.

Sílvio comentou que um lado da máscara iria ficar em branco, contando que não

sabia do pai dele, pois nunca o conhecera. Conforme Gouvêa, “traduzir -se em máscara é

desnudar-se frete ao espelho do barro inicial” (1989, p.82).

Os educandos observaram as esculturas das cabeças, encontraram similaridades e

diferenciações fazendo comparações com as características dos colegas e comentando que

todas são diferentes. Cláudia disse que nenhuma é igual à outra, da mesma forma que cada

um deles é diferente do colega. Eles pegaram as cabeças, olharam-nas e procuraram

identificar os colegas pela modelagem; tentaram adivinhações, acharam graça nas formas. A

situação foi divertida para o grupo, foi uma possibilidade de vivenciar identidade e

pertencimento, de vivenciar o toque do outro.

Os educandos aproveitaram os momentos da oficina para expor suas dificuldades; o

pertencimento ou afastamento se conjugam na cultura. Pintando, Cláudia reconstruiu as

gerações da própria família nas gestações: Esta é a barriga da minha vó, mãe de meu pai

(desenhou uma bola grande do lado esquerdo), e esta outra, a barriga da minha vó, mãe da

72

minha mãe (mostrou outra bola e colocou mais bolas, uma dentro da outra, comentando que

são as barrigas das outras pessoas que vieram depois).

Ao representar fragmentos da história de vida, os educandos criaram desenhos nas

máscaras que contavam das relações familiares. Gilmar mostrou os desenhos do lado

esquerdo, que representa o pai e do lado direito, a mãe. Ele contou que é casado, que tem um

irmão gêmeo e que são seis irmãos. Dione também relatou: Tenho oito irmãos, o pai, minha

mãe, meus avós. Judite pintou a máscara contando dos irmãos, do pai que morrera e estava

representado por uma pequena cruz vermelha próxima ao olho.

4.3 Subjetividade e intersubjetividade

Esta terceira essência que emerge na cultura da oficina advém da vida vivida pelos

educandos, da forma como significam as relações que estabelecem consigo mesmos e com os

outros. Os fragmentos da memória permearam todos os encontros com os educandos e foram

surgindo em vários momentos; aos poucos, eles foram tomando consciência da própria

história como uma possibilidade de se reconhecerem e de compreenderem a si mesmos, ao

outro e ao mundo vivido.

A subjetividade e a intersubjetividade permearam os diálogos, mostrando a

importância de se ouvir o outro, de se prestar atenção ao mundo vivido dos educandos, de se

construírem momentos de troca, desencadeando o saber. No fazer, desfazer e refazer da

modelagem, houve a possibilidade de reconhecer e reestruturar a si mesmos, de se

transformarem.

4.3.1 Fragmentos de histórias de vida

Para a compreensão de si mesmo o educando necessita resgatar fatos e sentimentos

significantes que se conjugam na sua história de vida e acessam fragmentos da memória.

Esses significados fazem parte dos referenciais que ficam registrados no seu mundo interior

e, quando outras percepções significativas surgem, são estabelecidos vínculos que podem

despertar sentimentos com todas as suas variações. “Os fragmentos de histórias de vida não

têm a pretensão de refazer o passado, a história, mas de nos situarmos e de compreendermos

o tempo presente em que vivemos para melhor projetar o futuro” (OLIVEIRA;

WESCHENFELDER; SANTOS, 2005, p.53).

73

Sílvio comentou sobre o pai, o que levou Judite a reavivar lembranças: Eu sinto falta

do meu pai, morreu quando eu tinha oito anos. Até hoje eu tenho saudades, eu pego as fotos,

olho, é como se não tivesse acontecido. São vivências sensíveis que puderam ser significadas

durante o trabalho nos processos cerâmicos; mexendo no barro, a interioridade e a

exterioridade co-participam. “O afeto é forma e conteúdo ligados ao gesto, aos sentimentos e

à criação de significações de um indivíduo” (MEIRA, 2003, p.24). Essas passagens do

mundo vivido dos educandos ficam à disposição; delas são recolhidas as experiências que

podem orientar suas atuações futuras, as quais nem sempre são conscientes.

Os fragmentos da vida dos educandos vieram à tona interligados a conteúdos

vivenciais; circunstâncias novas e similares reavivam referências anteriores quando há relação

com o que está sendo vivenciado. Cláudia passou por essa experiência quando tocou o rosto

da Judite dizendo que lembrara a mãe. Porém, explicou que se relacionava melhor com o pai

que fora sempre muito carinhoso com ela, abraçava-a e beijava-a muito mais que a mãe.

Contou que a mãe era mais dura e destacou a presença da avó materna e o quanto sentia

saudades dela, que mora na Bahia.

No contexto da sensorialidade, a percepção ordena as informações recebidas. Sem

essa ordenação, não seriam possíveis as estruturas associativas, as quais Rosani experienciou

quando reagiu contra a essência. Ela lembrou que tomara muito leite com erva-doce para

poder amamentar a filha, por isso agora fica enjoada quando sente o cheiro.

O ser humano, por ser social, tem a necessidade de partilhar a vida com outras

pessoas e, por meio dos fragmentos de memória, os educandos puderam conhecer mais a si

mesmos e aos colegas, saber das relações com os familiares, dos motivos do retorno aos

estudos, das lembranças de infância, situando-se para compreender o mundo vivido.

Cristiano conta que, quando morava com os pais, saía para caminhar no mato das

pitangas e ficava por lá procurando consolo no meio das árvores, com os passarinhos. Tadeu

também teve saudosas lembranças do avô, que tinha terras, mas botou tudo fora. Ele contou

que trabalha numa firma que faz reboques, mas que gosta mesmo é da lavoura, gosta do mato,

onde não se importa de trabalhar o dia todo.

Resgatar a história de vida, dos afetos, dos sentimentos, das perdas e ganhos compõe

conteúdos que podem ser trabalhados na oficina, geradores de saberes segundo a intervenção

pedagógica proposta por Freire (2004), que fundamenta a educação de adultos.

Os fragmentos de histórias de vida contribuem para que o educador conheça mais os

educandos e são reveladores da subjetividade, construtores de saberes.

74

4.3.2 O saber de si mesmo e o (re)conhecer-se

Nesta dimensão pontuamos as relações subjetivas que acontecem no cotidiano dos

educandos.

Meira (2003) aponta que o grande desafio atual está em compreender o outro e, para

isso, a compreensão de si mesmo, da própria cultura e do seu espaço na vida das pessoas

torna-se imprescindível. No contexto da oficina, os educandos vivenciaram o processo

cerâmico como uma possibilidade de estabelecer relações do fazer com os processos internos;

puderam refletir e reorganizar as experiências vividas na tentativa de compreenderem a si

mesmos e de reconhecerem sua própria identidade. Enquanto pintava, Cláudia ia contando de

si mesma, externando, reorganizando e elaborando aspectos vividos, que eram acessados pelo

processo do fazer: Negra, cabelo crespo, baiana, feliz, mãe de dois, três filhos, tem um

marido exemplar (em tom de brincadeira).

Modelando a máscara, Claudionor modelou a si mesmo: O meu nariz, pelo menos é

parecido com o tamanho do meu, a tentativa é erguê ele mais um pouco.

Por outro lado, a identificação pessoal também se deu na relação com outras

pessoas. Cláudia, ao modelar a própria cabeça, observou que parecia cabeça de homem;

queria mudá-la e deixá-la mais feminina, mas não conseguia; a sua identidade estava

relacionada com uma figura masculina.

Como um ser cultural, o universo subjetivo dos educandos vincula interioridade com

o mundo. A presença marcante das interações familiares foi trazida nos encontros da oficina;

no processo do fazer o educando entra em contato com a sua subjetividade, acessando

sentimentos e fragmentos da vida vivida. Durante as atividades Sílvio rememorou lembranças,

contando que questionara a mãe sobre quem seria o seu pai e ela desconversava. Então

desistiu de saber. Ele disse: Sentia muita falta, pensava quem seria, agora não sinto mais, não

penso mais nisso, nunca soube dele.

Os educandos revelam-se e escondem-se nas máscaras de barro, nas ambigüidades do

dia-a-dia; são rostos que expressam e expõem a vida numa experiência sensível da

imaginação criadora, na qual o medo de sentir também está presente e compromete o fluir da

criatividade.

75

O artifício da máscara nos ativa e nos insere na dialética da dissimulação e sinceridade, da discriminação e indiscriminação, de consciência e inconsciência; essa dualidade que insiste em ser dialética sem abandonar a vontade [...]. Traduzir-se em máscara é desnudar-se frete ao espelho do barro inicial (GOUVÊA, 1989, p. 82).

O rosto modelado no barro oferece um universo imenso para o diálogo consigo

mesmo e com os outros, ao mesmo tempo em que esconde, mascarando o sentido da

existência quando o educando se depara com a possibilidade de sentir e de compreender um

pouco mais a sua imagem vivida. Não sentir, não sofrer com a realidade do cotidiano mascara

o verdadeiro sentido da existência humana, provoca distorções no reconhecimento de si

mesmo.

O psicanalista James Hillman (1993) explica que as pessoas acabam sofrendo mais,

sentindo indignação, angústia, tristeza no cotidiano; por isso, acabam desistindo de sentir,

pois sem sentir não há sofrimento, ficam anestesiadas.

A modelagem contribuiu para que os educandos elaborassem a imagem de si mesmos,

falassem do sentir e o vivenciassem. Daniela comentou que depende dela mesma sentir-se

bem. Neusa contou que ficara feliz por não ter desistido de participar retornando para a

oficina; contou que gosta de fazer bolo e pães, modelou um queijo e colocou o próprio rosto.

Os educandos conversavam, contavam de si enquanto modelavam descontraidamente; o

processo de criação foi envolvente e estimulou a auto-estima e o diálogo entre eles.

O autoconhecimento que o fazer cerâmico proporcionou e a reelaboração dos

significados podem contribuir para a auto-estima. Íria disse que é preciso gostar de si mesmo

e reconheceu momentos difíceis dizendo: tem dias que eu tô azeda, eu não me agüento, fica

difícil.

Numa das atividades, já finalizando os encontros, na qual os educandos precisavam

olhar-se no espelho, Sílvio disse: Eu não consigo, so feio, só vô me olhá no espelho bem

poquinho, quanto menos eu olhá no espelho, menos vô enxergá meus defeitos. Logo em

seguida, quando lhe mostrei sua foto modelando na oficina, ele exclamou que é um artista.

Portanto, reconhecer-se no que sabe fazer ampliou a sua auto-estima.

Rosani afirmou veementemente que não gosta de dar nem de receber abraços; e

participou com resistência das atividades de sensibilização corporal. Disse sentir-se a ovelha

negra da família, pois tem mais irmãs e o pai prefere o “filho homem”. Disse: n unca fui

importante pra eles, quem era importante era meu irmão. A auto-estima foi um dos aspectos

evidenciados pelos educandos nos encontros, especialmente a falta dela.

76

Duarte Júnior afirma que a missão da educação nos nossos dias é “ estimular o

sentimento de si mesmo, incentivar esse sentir-se humano de modo integral, numa ocorrência

paralela aos processos intelectuais e reflexivos acerca de sua própria condição humana”

(2004a, p. 175).

A mobilização das emoções por meio do ensino da arte permite a espontaneidade e a

revelação dos sentimentos dos educandos, que os expressam autenticamente sem os

simulacros do cotidiano. No respeito e na valorização dessa identidade podemos propor a

construção do saber num contexto pluridimensional.

4.3.3 Contextos intersubjetivos: conhecer o outro, o grupo da oficina

Nesta dimensão apareceram as pessoas com as quais os educandos construíram

relações emocionais no espaço da oficina ou fora dele. Por meio dos fragmentos de memória,

os outros aparecem na cultura da oficina, presentes subjetivamente na existência cotidiana dos

alunos. Essas relações contribuíram para as significações construídas. Num exercício de

autoconhecimento, os educandos vão elaborando os pensamentos e significações e, enquanto

fazem, buscando dar forma à argila, identificam atitudes e comportamentos como reflexos do

convívio com os familiares.

Claudionor comentou a dificuldade de relacionamento com o filho mais velho de dez

anos: Eu não pego nele, nem no colo, me irrito muito se ele vem no meu colo, se ele senta

digo: ‘sai do meu colo que eu tô cansado’. Identificou-se com o pai nessa relação e

reconheceu que está repetindo a situação vivida por ele: Era assim meu pai. Então, o modo

como eu fui criado, eu me criei por mim mesmo, conforme fui criado, eu sô com o meu filho,

sou muito brabo.

Cláudia vivencia a rejeição da filha. Conta da relação afetuosa que tem com os dois

filhos meninos, mas com a menina pensa haver alguma coisa errada, o que explica dizendo:

Não é que eu não ame a minha filha, eu faria qualquer coisa por ela, mais eu tenho mais

facilidade de demonstrar mais carinho com os meninos do que com ela [...] Ela tem mais

afinidade com o pai. Quando questionada sobre as relações com a família, reconhece que

também tinha mais afinidades com o pai. Preocupada, alegou que precisava procurar alguém

para ajudá-la, um psicólogo, e disse: Sabe o que é se sentir mal por dentro, eu tento melhorar.

Os educandos refletiram sobre essas relações com o intuito de compreender e poder

viver melhor. O manuseio da argila alivia os sofrimentos que esses sentimentos provocam na

77

vida deles, como Gilmar destacou quando disse que se sente “mais aliviado” nos encontros.

Quando os educandos expressam seu mundo vivido e suas relações, a cultura estabelecida no

núcleo familiar pode ser assimilada, transformada e preservada.

Nas relações interpessoais, Ivanir pensa que há um laço mais forte entre as pessoas

quando há demonstração de afeto. Afirmou que a pessoa que recebe sente isso e fica

guardado dentro, há valorização do outro e a auto-estima pode ser ampliada. Para Rosane a

relação com o pai é difícil; ela não conversa com ele e tem uma mágoa muito grande porque,

além da preferência pelo filho homem, os pais não tiraram fotos com ela no casamento. Sílvio

(o marido) diz que eles não acharam importante.

Greiner escreve que “o homem nunca está separado do ambiente onde vive e

dificilmente pode ser compreendido sem uma atenção especial às relações que aí se

organizam” (2005, p.23). O ser humano é um ser social cujo desenvolvimento se dá a partir

das relações que constrói consigo mesmo, com os outros e com o mundo. Logo, não podemos

deixar de prestar atenção a esse contexto.

As mulheres do grupo assumiam atitudes passivas e ativas nas relações que foram

trazidas para discussão. Cláudia contou que se posicionava perante o marido dizendo que ele

não era seu dono. Dione se resignava a aceitar as cobranças do marido, que revelavam a

insegurança no relacionamento, como foi citado anteriormente, e Ivanir ponderou a

dificuldade para conciliar os vários papéis assumidos no cotidiano.

As relações entre os educandos foram de companheirismo, reconhecendo que se

conheciam pouco. Eles afirmaram que todos têm relacionamentos mais próximos com alguns

do grupo. Dione e Neusa, por exemplo, estão sempre juntas, são muito amigas; Ivanir diz que

está mais próxima do Sílvio e de Rosani; Cláudia considera Judite uma pessoa muito especial.

As experiências sensíveis nas inter-relações foram propostas no primeiro encontro e

promoveram confrontos, como já citado anteriormente. Depois do diálogo, os educandos

continuaram ativamente na oficina, viam-se no lugar do outro, faziam relações com situações

semelhantes, com fatos comuns da vida deles que foram partilhados, e isso os aproximou. O

grupo enfrentou o desafio da proposta, as pressões, as divergências e manteve-se unido,

discutindo e tentando compreender para conviver na oficina A continuidade da proposta,

mesmo sendo mais pessoal, manteve as inter-relações.

A arte cerâmica atua como facilitadora desses processos e traz uma realização em si

que aproxima as pessoas quando criam. Cláudia mostrou sua satisfação de comunicar a

relação de si mesma com o mundo pela arte quando exclamou: Olha lá, o meu, fala sério, não

tá um espetáculo!

78

4.4 Arte cerâmica e (re)significações

As significações da arte e do processo cerâmico construídas pelos educandos, a partir

das quais surgiram dimensões, delineiam a essência que se apresenta.

A arte cerâmica é construção, é processo de criação, concebida como o caminho para

unificar o singular e o universal; o educando apropria-se do barro para expressar, o fazer

torna-se uma etapa fundamental.

A arte pode consistir num precioso instrumento para a educação do sensível, levando-nos não apenas a descobrir formas até então inusitadas de sentir e perceber o mundo, como também desenvolvendo e acurando os nossos sentimentos e percepções acerca da realidade vivida (DUARTE JÚNIOR, 2004b, p. 23).

A expressão por meio da arte, em especial a arte cerâmica, tornou-se uma forma de

registro das descobertas dos educandos sobre si mesmos, uma possibilidade para o

reconhecimento dos sentimentos e emoções vividos. O educando identificou-se no próprio

fazer, pois fazer é ordenar, é testemunho do que acontece consigo mesmo e que pode ser

partilhado com o outro.

As atividades vinculadas à produção artística promoveram prazer e encantamento, um

estado de bem-estar individual e social, de cooperação, para os educandos; a vivência do fazer

da arte cerâmica na oficina foi comparada a uma forma de terapia.

4.4.1 O fazer na arte cerâmica: o eu e a forma

Esta dimensão surgiu no processo criador, no fazer na arte. Ao moldar, o educando

simboliza seus pensamentos e sentimentos, que são encaminhados na forma criada fazendo

aflorar as suas capacidades para (re)significar e transformar. Duarte Júnior escreve que

pela arte o indivíduo pode expressar aquilo que o inquieta e o preocupa. Por ela este pode elaborar seus sentimentos, para que haja uma evolução mais integrada entre o conhecimento simbólico e seu próprio “eu” (2004a, p.73).

No processo de criação o educando apropria-se de formas simbólicas constituídas de

sentido, podendo integrar o que ocorre no cotidiano, gerando um conteúdo expressivo que

79

pode proporcionar ordenações interiores trazidas ao consciente de cada um. Assim, a arte tem

desempenhado papel importante ao oferecer a possibilidade da vivência estética.

No cotidiano da oficina, por meio de práticas do sensível, foram mobilizados

informações e saberes para dar sustentação ao educando no próprio fazer, compreendido

também como experiência sensível e inteligível; enquanto faz, o educando comunica-se

interiormente e exteriormente. Para Meira, a vivência do fazer está vinculada a “imagens

materiais e formas que nascem de gestos” (2003, p.81). Sílvio fez um comparativo com as

vivências na oficina e comentou que se sentia melhor ao ver o que fez, que o processo do

fazer fora especialmente significativo para ele.

Durante a proposta de educação do sensível, os educandos experienciaram

sentimentos de ansiedade, impaciência, conflito, prazer, alegria. Para Cristiano trouxe o bem-

estar. Ele considerou a atividade muito boa e disse que foi tipo uma terapia. Para Ivanir,

Marlene e Carmem, foi uma terapia que as envolveu no fazer e aliviou o estresse.

Judite foi uma das educandas que se identificaram modelando; ela sentiu prazer em

trabalhar com a argila e comentou que, para ela, foi uma terapia. Nesse sentido, a arte torna-se

uma possibilidade que vem sendo discutida e defendida pelos arteterapeutas e arte-

educadores, os quais encontram nas atividades artísticas a possibilidade para ajudar as pessoas

a viverem melhor.

O papel da arteterapia consiste em utilizar a função da atividade artística para obter melhor equilíbrio psicológico, domínio do corpo e capacidade intelectual, ao que acrescento o gozo espiritual, em uma relação mais flexível e dinâmica com os outros no mundo (ORMEZZANO; TORRES, 2003, p. 71).

As vivências arteterapêuticas proporcionam uma forma de reflexão, gerando

aprendizagens e a possibilidade de enfrentamento e (re)significação dos sentimentos por meio

das atividades artísticas.

Cada proposta de atividade, cada materialidade, cada cor, forma, movimento, som

oferece uma perspectiva de atuação. Sílvio disse que gostara da modelagem: Você trabalha o

dia inteiro, chega bem cansado à noite (na escola), você esquece um pouco do trabalho, então

já descontrai, dá uma amassada naquela argila com raiva, pra mim foi bom, gostei. A

atividade permitiu-lhe a troca com a materialidade do barro, uma vivência sensível na

transferência e alívio dos sentimentos.

80

Experienciando a corporeidade, os educandos revelaram sua interioridade, abriu-se o

espaço para que falassem de si mesmos, dos seus saberes, das suas relações pessoais,

familiares e sentimentos. Nesse contexto de educar por meio da arte cerâmica, quando o

educando elabora uma representação, esta sempre será carregada de emoção; dando forma ao

barro, ele atribui um conteúdo, configura sua vida e é capaz de transformar recriando a si

mesmo. Nesse sentido, a forma também corresponde à mediação entre o eu e o mundo. Sobre

essa relação Ostrower escreve que,

em moldando a terra moldou a si próprio. Seguindo a matéria e sondando-a quanto “à essência de ser”, o homem impregnou-a com a presença de sua vida, com a carga de suas emoções e de seus conhecimentos. Dando forma à argila ele deu forma à fluidez fugidia de seu próprio existir, captou-o e configurou-o. Estruturando a matéria, também dentro de si ele se estruturou. Criando, ele se recriou (1984, p.51).

A autora afirma que o fazer é uma busca contínua que integra o ser que se

reconhece, que precisa de tempo para o silêncio, para a atenção a essa pressão do dentro para

o fora que os alunos ainda têm medo de enfrentar. Nas atividades de sensibilização, Daniela

disse que tivera vontade de sair, mas não o fizera, e Ivanir alegou que não tinha intimidade

com os colegas para olhar e tocar. Muitos riam, conversavam, o que os dispersava, parecendo

fugir da situação que os colocava frente a si mesmos.

4.4.2 Possibilidades da criatividade na arte cerâmica

A criatividade é um termo ainda discutido e de muitas compreensões. Para Kneller

(1978), não é um processo isolado e, para desenvolver a criatividade dos educandos, é preciso

estimular a originalidade, a apreciação do novo, encorajar a inventividade, a curiosidade e a

pesquisa, a autodireção e a percepção sensorial. Todos esses aspectos formam um contexto

abrangente do qual destacamos a percepção sensorial, que veio ao encontro da proposta desta

pesquisa de educação do sensível. Para explorar a capacidade criativa é preciso estimular as

percepções, o que foi proposto nos encontros da oficina.

Ivanir dizia que não conseguia fazer, não sabia, mas foi desenvolvendo e conseguiu

dar forma à argila. Judite estava tendo dificuldades para fazer, mas pediu que eu a deixasse

tentar fazer sozinha; aos poucos, eles foram descobrindo as possibilidades e enfrentando os

limites impostos por si mesmos e pelo material, acreditando na própria capacidade para

realizar e conquistando a autoconfiança.

81

O desafio de criar uma forma, de dispor-se a experienciar e encontrar meios para

representar é também um desafio do fazer, de ser capaz do saber fazer da arte como uma

atividade em que o ser humano se descobre, como Rosani, quando se surpreendeu com o que

foi capaz de fazer: Eu também achei muito legal, proveitoso, tem coisas que nem se

imaginava fazer, tipo mesmo a máscara, tinha que ser queimada, tinha que amassá até tirá o

ar.

O educando explora sua capacidade criativa quando compreende e tem condições de

dar forma aos significados relacionados ao próprio viver, e a educação do sensível, na medida

em que refina e amplia as percepções, contribui para alimentar a criatividade. “ A arte coloca-

o frente a frente com a questão da criação: a criação de um sentido pessoal que oriente a sua

ação no mundo” (DUARTE JÚNIOR, 2004, p.73).

No reconhecimento das próprias ações criativas desta proposta da arte cerâmica

emergem saberes incorporados. Cláudia exclamou, orgulhosa, observando e mostrando aos

colegas a escultura feita: Eu sou uma artista!

4.4.3 Processo cerâmico e os significados sentidos

O processo cerâmico é abordado como possibilidade para a educação do sensível,

marcada pelo fazer, compondo esta dimensão com as implicações subjetivas na

(re)significação da vida das pessoas, o que pode ocorrer no contato e manuseio da argila

promovendo o encontro com os significados e construindo novas relações simbólicas.

O trabalho com a argila é constituído por etapas que acontecem gradativamente; é uma

experiência rica para a sensibilidade, e o tempo é um fator importante nesse processo, que

precisa ser respeitado. Em alguns momentos os educandos tiveram pressa. Num dos

encontros, depois de deixar a barbotina endurecendo, ao chegar à oficina, eles já tinham

retirado todas as máscaras dos moldes, mesmo a do Moacir, que ainda não estava endurecida,

movidos pela curiosidade e pelo pouco tempo que restava do encontro para finalizar a

proposta.

No processo cerâmico é necessário respeitar a argila, são etapas que se seguem.

Obedecendo aos movimentos do tempo e da matéria, o barro acomoda a forma, mas também

se rebela quando não respeitamos os limites da sua maleabilidade; secando, perde toda a

umidade e endurece para, então, se render ao calor do fogo, transformando-se.

82

Construir a escultura da cabeça com argila tornou-se uma possibilidade de

experienciar a si mesmo. Sílvio decidiu que ia deixá-la como estava, justificando que com o

tempo ia mudando, como se a escultura também pudesse acompanhar as mudanças que o

corpo vai mostrando. Quando comentou que gostaria de fazer os cabelos e os colegas acharam

graça, ele se justificou alegando que antes não era assim, pois já tivera cabelo. A experiência

da modelagem proporciona uma relação consigo mesmo e com as transformações que se

sucedem na existência de cada um, sejam na própria aparência do corpo, sejam no universo

interno que se descortina.

A natureza misteriosa do barro foi que proporcionou ao ser humano um conhecimento mais profundo de si mesmo. A partir da estrutura oculta do barro o homem vem descobrindo quando pelo calor de suas mãos faz da terra molhada a confidente de imagens carregadas de emoções vividas e por viver (GOUVÊA, 1989, p. 59).

Sentir o barro nas mãos, das quais emana o calor que vai alterando a superficialidade

tornando-o cada vez mais seco e firme, foi uma percepção observada e comentada por Daniela

quando pegou a argila, complementada pela Cláudia ao dizer que a água vai saindo. A

materialidade do barro se dá ao toque em contextos subjetivos. Os tipos de argila, a

modelagem, as transformações permitiram a construção de relações com os significados

sentidos. O processo cerâmico, marcado pela atuação no fazer, exige o toque da argila, o

toque da pele.

Vera contou que não participou de duas aulas e, quando foi, não estava querendo

fazer, mas, depois que começou a amassar a argila, foi gostando e se concentrando na

modelagem, num retorno a si mesma, a um saber de si, do que sente, do que pensa.

Íria disse que a sua escultura ficara linda e comentou que as pessoas precisam se

dispor a participar. Ao ser questionado sobre as significações dos encontros, Gilnei declarou:

Mudou em todos os sentido, principalmente suas aula é muito vantajosa no sentido de soltá a

pessoa, ficá descontraído, referindo-se às transformações que aconteceram a partir do nosso

primeiro encontro.

Integrando-se, os educandos compreenderam a proposta e, pouco a pouco, a cada

encontro, avançamos ou recuamos, com a vontade de compartilhar, de experienciar e sentir-se

bem ou sentir-se mal, mas com o intuito de nos conhecermos e de construirmos saberes.

Essencialmente, modelar é sentir com o corpo, e essa relação do educando com o barro

83

provocou a educação do sensível, que ainda precisa ser ampliada nos espaços educativos para

que o saber sensível e o inteligível estejam incorporados na vida dos educandos.

84

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa evidenciada teve como finalidade identificar as implicações e compreender

os significados da educação do sensível na educação de adultos, considerando-se o papel da

arte na formação escolar, tentando ampliar a reflexão que permeia a educação estética como

elemento e/ou meio central e fundamental no processo educativo.

A participação dos adultos na oficina e a experiência como educadora-artista-

ceramista possibilitaram apresentar os significados da educação do sensível na proposta

pedagógica que privilegiou a construção do saber a partir das percepções, dos sentimentos, da

afetividade e dos desejos provocados pela arte. É necessário que os educadores entendam que

ensinar e aprender a arte é um meio de oferecer ao educando percepções de si mesmo como

totalidade, ampliando sua capacidade reflexiva e criativa.

O corpo é condição para a educação do sensível, para a apropriação desse saber

demarcado pelos limites e possibilidades da corporeidade, que precisa ser resgatada e

estimulada nos adultos. É o corpo que determina identidade e pertencimento na cultura

compartilhada, nas inter-relações entre as culturas, suas confluências e divergências, que

conduzem para o reconhecimento da riqueza cultural como potencializadora da educação do

sensível.

Validar a educação dos sentidos que pode ser compartilhada no ensino da arte, reforça

a importância de “prestarmos atenção” a essa possibilidade de conhecer, de trocar energias

pelo tato, pela pele, pelo olhar, desenvolvendo a sensibilidade. A atenção a esses sinais pode

trazer mais sentido à existência de cada um, abrir aos saberes do corpo e a uma vivência

expressiva e transformadora, que pensamos ser significativa para a educação.

Os aspectos abordados sobre a história da educação de jovens e adultos no Brasil e no

Rio Grande do Sul contribuíram para o entendimento do contexto desse grupo, que voltou a

estudar depois de estar afastado da escola e cujas características e necessidades cognitivas e

85

emocionais precisam ser consideradas como em qualquer outra modalidade de ensino. É um

cotidiano escolar apressado, que prioriza a inteligibilidade, voltado para a profissionalização.

As vivências sensíveis experienciadas promoveram uma “desordem” no cotidiano do

grupo. Duarte Júnior (2004) em seus escritos nos diz o quanto é difícil aceitar e reconhecer a

validade dos saberes e conhecimentos para além da ordem lógico-racional. Entretanto, os

educandos decidiram apostar na proposta e continuar participando, pois, ainda que conflitante,

era condição de um processo voltado para uma ação educativa conjunta entre educandos e

educador.

Foi observado que as ações envolvendo a sensibilidade, consideradas como

“palhaçadas” e “baboseiras” na nossa realidade cotidiana, puderam ser provocadoras a ponto

de serem desmistificadas, motivando a participação do grupo. Nessas inter-relações foram

gerados signos expressivos comuns de cooperação, de respeito e de aceitação alertados

pedagogicamente. Como educadora, reconhecer essa condição que o ensino da arte oferece

significa compreender a importância que a arte tem na educação escolar.

Educar na EJA sempre foi inquietante e revelador, visto que o educando pode ser

despertado para possibilidades de ensino-aprendizagem prazerosas, que valorizam os saberes,

conduzindo a uma vivência pluridimensional e dinâmica, que passa por alterações, mudanças

e adaptações necessárias no transcorrer dos encontros. O espaço da oficina promoveu

vínculos, a descontração do grupo e o fortalecimento dos saberes. Também apresentou

dificuldades devido ao número excessivo de participantes para essa modalidade e à atuação

simultânea como educadora e observadora, o que pode ter interferido na apreensão mais

completa das informações.

A abordagem da arte cerâmica é uma via de acesso à subjetividade. Explorar a

modelagem permite ao educando despertar e aprimorar a sensibilidade, revelando o corpo que

sente o mundo vivido: sente as mãos que tocam o barro, que tocam o outro; sente o toque no

rosto próprio, na máscara de argila enquanto sente a si mesmo e procura uma forma de

expressão. Entregar-se a esse universo interior para manifestar sua atuação criadora e

transformadora talvez seja, inicialmente, assustador.

Os educandos vivenciaram a oficina enquanto vivenciei este estudo; em conjunto,

ensinamos e aprendemos. Experienciamos conflitos, alterações e possibilidades, resgatando

fragmentos da memória, percepções, sentimentos que fomos “modelando”, da mesma forma

que o barro, enquanto úmido, nos permite essa condição. Percebo, então, que precisamos

mantê-lo para que ao longo da nossa existência possamos fazer novas escolhas, desmodelar,

remodelar continuamente.

86

Para que a educação do sensível possa iniciar e se consolidar, o percurso é lento e não

são poucos encontros que darão conta dessa necessidade. O corpo precisa desaprender a ser

parte para ser todo, numa atenção cotidiana para além dos limites do ensino da arte e da

educação formal.

Portanto, configuram-se campos para ampliar essa proposta de educação do sensível

enquanto educação estética, iniciada nesta pesquisa, que poderá encontrar ressonância mais

abrangente quando os educadores puderem despertar e aprimorar a sensibilidade. Assim,

torna-se mais urgente o investimento das instituições de graduação no corpo docente –

especialmente das licenciaturas –, porque, preparando novos educadores, podem ampliar a

abrangência dessa proposta e, por que não, envolvendo as suas equipes administrativas, para

que possam, talvez, reconhecer as implicações da sensibilidade para a educação no país.

Ficaram muitas questões a serem compreendidas e ampliadas. O texto pode apresentar

expressões contraditórias, pois, além dos vestígios da formação lógico-racional incorporada, a

minha expressividade sempre esteve com as mãos no barro. Então, volto ao início deste

estudo, citando Drummond: “[...] duas mãos e o sentimento do mundo”.

Não há nada que se compare ao prazer de descobrir e saborear o mundo que se dá a

conhecer pela arte. Educar é conhecer para (re)significar e transformar.

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REFERÊNCIAS

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93

ANEXOS

94

ANEXO A – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Estamos solicitando a sua participação para uma pesquisa que está sendo realizada por

minha pessoa, Viviane Diehl, mestranda em Educação pela Universidade de Passo Fundo, a

respeito do significado da atenção à percepção dos sentidos, que será oferecida nas aulas de

artes, numa proposta de oficina em arte cerâmica, por meio de atividades de percepção dos

sentidos, modelagem com argila, discussão, pintura, sem nenhuma despesa com os materiais.

A sua colaboração é muito importante, uma vez que as informações permitirão

compreender os significados desta proposta. Gostaríamos de salientar que sua opção por

recusar-se a participação ou retirar seu consentimento, pode ser feita a qualquer momento sem

nenhum prejuízo. Se você tiver alguma pergunta antes de decidir, sinta-se à vontade para

fazê-la. Se surgirem dúvidas e a necessidade de maiores esclarecimentos e informações você

pode entrar em contato com a pesquisadora Viviane Diehl pelo telefone 0xx(54)3330 1067 e

com o Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de Passo Fundo pelo telefone 0xx(54)

3316 8370.

CONSENTIMENTO

Eu concordo em disponibilizar informações sobre aspectos da minha vida para a

pesquisa acima mencionada e autorizo a utilizar os depoimentos e as produções plásticas por

mim realizadas. A pesquisadora informou-me do caráter voluntário da minha participação, o

direito de negar o meu consentimento a qualquer momento e o direito ao tratamento

confidencial das informações que eu fornecer. A pesquisadora esclareceu as minhas dúvidas,

explicou e confirmou que me será dada uma cópia assinada deste consentimento livre e

esclarecido. Eu li (ou foi lido para mim), compreendi este documento e concordo em

participar desta pesquisa.

DATA:________________________________

NOME DO PARTICIPANTE:

_______________________________________________________________

ASSINATURA:

_______________________________________________________________

NOME DA PESQUISADORA: Viviane Diehl

ASSINATURA:

_______________________________________________________________

95

ANEXO B - AUTORIZAÇÃO DA DIREÇÃO DA INSTITUIÇÃO

TERMO DE CONSENTIMENTO

Ao Diretor do Núcleo Estadual de Educação de Jovens e Adultos e

Cultura Popular Felipe Roberto Sehn

Celso Favaretto

Estamos solicitando a sua autorização para uma pesquisa que está sendo realizada

por minha pessoa, Viviane Diehl, mestranda em Educação pela Universidade de Passo Fundo,

a respeito do significado da atenção à percepção dos sentidos, numa proposta de oficina em

arte cerâmica, por meio de atividades de percepção dos sentidos, modelagem com argila,

discussão, pintura, sendo que as informações obtidas permitirão compreender os significados

desta proposta para os educandos jovens e adultos do ensino fundamental. Para quaisquer

dúvidas, esclarecimentos e informações, contato com a pesquisadora Viviane Diehl pelo

telefone 0xx(54)3330 1067 e com o Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de Passo

Fundo pelo telefone 0xx(54) 3316 8370.

Declaro que conheço e cumprirei os requisitos da Res. CNS 196/96 e suas

Complementares e como esta instituição tem condições para o desenvolvimento do projeto:

MODELANDO O BARRO: A EDUCAÇÃO DO SENSÍVEL NA OFICINA PEDAGÓGICA

PARA JOVENS E ADULTOS, realizado pela mestranda Profa. Viviane Diehl, da

Universidade de Passo Fundo, autorizo sua execução.

Carazinho, ____ de março de 2006.

______________________________

Celso Favaretto

Diretor do Núcleo de Educação de Jovens e Adultos e Cultura Popular

Felipe Roberto Sehn

96

ANEXO C – SÍNTESE DE SIGNIFICADO DO TODO

Primeiro encontro – 24 de outubro de 2005 (4h/a)

Organizamos a sala para esperar os educandos, que chegaram aos poucos, com certo

atraso. Explicamos a proposta que estávamos iniciando, fazendo os acordos.

Eles afastaram as classes e cadeiras, escolheram essências e foram caminhando em

silêncio e com atenção na respiração, no relaxamento do corpo e nos movimentos realizados,

tomando consciência da corporeidade. A seguir, cada um foi procurando o olhar dos colegas,

buscando um parceiro, fazendo um reconhecimento do rosto, porém sem tocar, para depois se

deitarem no chão e tocarem a face do outro com as mãos. Durante toda a proposta pareciam

envergonhados, os olhares fugiam, inquietavam-se, não conseguiam olhar o outro,

dispersavam-se, estavam desconfortáveis e resistentes, parecendo que se esforçavam para

participar; depois, foram relaxando e se tranqüilizando.

Sentaram-se em grupos de quatro e, com os olhos vendados, realizaram a

sensibilização com a argila (re)significando sentimentos, a qual, após, foi dissolvida na água e

jogada fora, desfazendo-se subjetivamente de emoções desagradáveis.

Ao retornarem à sala, os educandos falaram da vivência e dos sentimentos, dizendo

que fora muito bom e que lhes trouxera lembranças agradáveis, como também desagradáveis.

Resgataram fragmentos das histórias de vida, saudades, avaliando a si mesmos,

reconhecendo-se no que sentem, nas atitudes, nas relações com os filhos, com os familiares,

com os parceiros; as afinidades com o outro, os problemas do cotidiano, as dificuldades

enfrentadas no trabalho, o preconceito, a realidade na escola, a primazia da inteligibilidade, o

desgaste.

Alguns consideraram a atividade como uma novidade “estranha”, muito demorada e

cansativa, uma experiência difícil, ao passo que outros se sentiram bem, tranqüilizados,

acariciados, respeitando o tempo para experienciar, como se fosse “uma terapia”,

considerando que promoveu o convívio compartilhado, que conseguiram fazer e se envolver

na experiência perceptiva. Reconheceram a importância do diálogo, de aprender a se

expressar, e a possibilidade de “fazer diferente”, dos sonhos, dos planos para a vida.

Para o grupo, olhar e tocar o outro foi um desafio a si mesmo, comentando que o

olhar é muito revelador e também dissimulado.

97

ANEXO D – SÍNTESE DE SIGNIFICADO DO TODO

Segundo encontro – 27 de outubro de 2005 (4h/a)

Preparamos a sala com aroma e almofadas. Quando tivemos um encontro com a

direção do Neeja, ela nos alertou sobre os fatos acontecidos com os educandos, os

comentários críticos de outros colegas sobre as atividades realizadas e a confusão gerada, que

levara o grupo a desistir de participar.Entretanto, eles aceitaram a sugestão da direção para

conversar com a educadora. No corredor, um grupo, indignado, reclamava do aroma e das

“baboseiras” e foi embora. Outro grupo esperava fora da sala e também reclamava do aroma;

numa outra sala foram conversar e começaram criticando as atividades do encontro anterior, a

interpretação das experiências, a ridicularização dos colegas, o medo de sentir, de serem

julgados. Também estavam preocupados com a repercussão nas relações familiares e afetivas,

com a intimidade, a invasão ao seu espaço, à privacidade e o desrespeito.

O desejo de sair da sala, as reações nervosas, o desconforto e os sentimentos

contraditórios provocados levaram-nos a pensar que com o grupo deles “não d eu certo”.As

dificuldades maiores estavam no envolvimento com os colegas, no olhar e tocar, revelando a

falta de atenção e afeto nas relações cotidianas com as pessoas próximas.

Durante toda a conversa eles faziam comparações com a vida dos colegas e traziam

as dificuldades nas relações com familiares, com os filhos, com a educação, os limites, as

mudanças necessárias. Comentaram as aulas “diferentes” dos outros professores, o cansaço

depois do trabalho e o esforço para estudar. Os educandos reconheceram a dificuldade de

receber e aceitar atenção, assim como observamos que sentimentos de culpa, a submissão das

mulheres, a discriminação estão presentes no contexto do grupo. Afirmaram que alguns

momentos tinham sido proveitosos, como o relaxamento e a argila.

Convidamos o grupo para a atividade seguinte, quando todos acompanharam a

sensibilização com especial atenção para a cabeça e o reconhecimento de si mesmos; apenas

duas alunas não conseguiram acompanhar. Na oficina, iniciaram-se as orientações e

esclarecimentos sobre a argila e os processos, discutindo com o grupo que iniciou a

modelagem da cabeça. Eles pareciam inseguros, mas foram criando as formas, observando

como definir os detalhes com mais expressão ou sutilmente; enquanto trabalhavam,

conversavam com os colegas contando de si e de suas relações, mostrando a necessidade e a

importância de se conversar para discutir sobre os acontecimentos, partilhar, criar laços.

98

ANEXO E – SÍNTESE DE SIGNIFICADO DO TODO

Terceiro encontro – 31 de outubro de 2005 (2h/a)

Neste encontro o grupo estava grande e eles pareciam resistir à mudança de sala,

sem muita disposição para as atividades quando os convidamos para irem à oficina terminar a

modelagem das cabeças.

Enquanto os educandos modelavam, comentavam que era gostoso mexer na massa,

mas também “melequento”. Enquanto trabalhavam, falamos sobre as características das

argilas, suas cores, aparência, salientando alterações e transformações que vão acontecendo

durante o processo cerâmico. Quanto à queima, a escola tem um forno elétrico que está na

oficina, e as discussões foram sobre a temperatura, a mudança de cor da argila na queima, as

olarias.

Alguns educandos estavam finalizando a modelagem, fazendo os acabamentos;

outros, que haviam faltado ao encontro anterior, iniciaram a modelagem a partir das nossas

explicações, nas quais destacávamos o formato da cabeça, do rosto, os detalhes, sugerindo que

sentissem com as mãos os volumes, mostrando no próprio rosto Então, eles ligeiramente

olhavam, tinham dificuldade e ficavam envergonhados para fazê-lo, não conseguindo tocar o

próprio rosto sem restrições.

Os educandos pediam ajuda aos colegas para fazer e sugestões de como fazer,

mostrando-se bem satisfeitos e divertindo-se com a modelagem. Judite comentou que era

como “te rapia”. Eles estavam descontraídos, alegres, realizaram a ocagem das cabeças com

cuidado para não estragar os detalhes, empenhavam-se bastante e alguns mostravam

facilidade para encontrar as formas.

Por outro lado, havia aqueles que não tinham muita paciência, que faziam

rapidamente, com detalhes bem superficiais e esquemáticos; outros reclamavam das

dificuldades para realizar a atividade, não conseguiam criar a representação da própria cabeça.

Um educando comentou que com o tempo a escultura mudaria, como as pessoas

quando envelhecem. Eles se identificavam com as formas, relacionando-as com pessoas

conhecidas.

A aula foi cansativa, o grupo estava excessivamente grande para o trabalho na

oficina, o que dificultou a atenção particularizada aos educandos que exigem orientação

constantemente.

Com as peças prontas iniciamos o processo de secagem, que foi explicado, e os

educandos organizaram a sala para encerrar o encontro.

99

ANEXO F – SÍNTESE DE SIGNIFICADO DO TODO

Quarto encontro – 07 de novembro de 2005 (4h/a)

Este encontro, na sala de aula, iniciou com uma tatuagem na mão, que introduziu a

discussão e a reflexão sobre questões de identidade e pertencimento dos educandos, a partir

dos sinais e marcas naturais que eles têm no corpo, como pintas, manchas e cicatrizes, além

daqueles que são feitos por escolha própria, como as tatuagens, a maquiagem, o piercing.

Os educandos comentaram e mostraram o próprio corpo, atribuindo o uso desses

recursos à diferenciação das pessoas para se sentirem mais bonitas, aumentando sua auto-

estima. Seguiram discutindo e relatando identificações das pessoas que fazem parte do

cotidiano deles.

Numa viagem imaginária pelos mapas, que alguns alunos não estavam dispostos a

fazer, sugerimos que se localizassem, comentassem sobre os países, continentes e a Oceania,

onde vive a cultura maori e suas tatuagens, o que os surpreendeu. Mostraram-se interessados

nos mapas e admiravam-se com os desenhos da face, perguntando como eles faziam.

Explicamos e conversamos sobre as tradições, a cultura do povo, os hábitos, a história, a

simbologia dos desenhos usados.

O grupo participou e fez questionamentos a respeito dessa cultura, que conta a sua

história e a própria história da pessoa por meio das tatuagens no rosto, cujos desenhos têm

significados pela sua forma e localização.

Quando foram para a oficina, encontraram-na transformada em depósito, repleta de

mesas e cadeiras, que eles retiraram. Ali, cada educando recebeu um pequeno espelho e

iniciou a observação do próprio rosto, achando-se engraçado, estranhos; alguns conseguiram

se olhar, outros esqueceram ou nem olharam, apenas espiaram. Começaram a preparar o barro

para modelar o próprio rosto. Eles tentavam copiar pressionando argila no rosto, observavam,

faziam relações com as medidas dos dedos para dar forma, acrescentavam partes para os

volumes, enfim, o processo de criação os envolveu consigo mesmo e eles entregaram-se ao

fazer com prazer. Nesse contexto a subjetividade emergiu e as percepções afloraram; eles

reconheceram sentimentos, desejos, valores, habilidades, falaram de si mesmos, do trabalho,

dos planos para o futuro, dos motivos que os levaram a estudar novamente e também

contaram das relações com as pessoas da família, com os pais, os filhos.

Orientamos, então, sobre a proteção da máscara com plástico para a continuidade no

próximo encontro e, depois, organizamos a oficina.

100

ANEXO G – SÍNTESE DE SIGNIFICADO DO TODO

Quinto encontro – 17 de novembro de 2005 (2h/a)

Quando entrei na sala, o grupo olhou-me com espanto, pois esperavam aula de

matemática. Começaram a reclamar das confusões com os horários, da falta de informação na

escola, da exigência no trabalho, estavam cansados. Na aula anterior alguns alunos haviam

saído no intervalo, por isso destacamos a importância da presença de todos para compartilhar

do processo de ensino-aprendizagem com o grupo. Em defesa própria, eles comentaram que

não costumavam faltar.

Estavam desgastados, cobraram avaliações dos trabalhos, comentaram do esforço

que fazem para estudar e cumprir as tarefas e do descaso por parte dos professores, das

constantes mudanças.

Argumentamos sobre a importância de aprender, que está além da escola e das

avaliações, implicando a vida vivida de cada um dos educandos, as escolhas que fazem, o

objetivo maior da existência. Os alunos cumprem as atividades da escola estritamente

vinculadas à avaliação para o avanço e valorizam as aulas de português e de matemática.

Alguns deles realizaram as provas do exame supletivo e comentaram entre si sobre o gabarito

e as disciplinas.

Reclamaram para escrever sobre a própria vida numa das tarefas solicitadas por

outro professor, por isso explicamos a importância de saber de si, de conhecer-se. Depois de

muito diálogo, decidiram iniciar a proposta, que envolveu a produção dos moldes de gesso

das máscaras modeladas no encontro anterior.

O grupo estava grande. Eles iam olhando as esculturas das cabeças que secavam,

comentando entre si e admirando-as, reconhecendo as diferenças e semelhanças. Foram feitos

esclarecimentos sobre o processo cerâmico e as transformações que vão ocorrendo, as

características das argilas, e explicamos os procedimentos para a realização dos moldes a

partir do próprio rosto ou da máscara de argila. Apenas Cristiano se dispôs para o molde do

rosto e o grupo foi organizado para iniciar; os colegas acharam assustador e sujo. Aqueles que

não tinham a máscara ajudaram aos colegas.

Os educandos tinham pressa em fazer, foram preparando o gesso, conversando e

aplicando as camadas orientados para a atenção com a espessura; ao final, organizaram a sala

e os moldes ficaram secando.

101

ANEXO H – SÍNTESE DE SIGNIFICADO DO TODO

Sexto encontro – 21 de novembro de 2005 (4h/a)

Preparamos a oficina e os materiais para que os educandos realizassem as cópias dos

moldes de gesso com a gaze barbotinada. Encontramos o grupo na sala de aula e fizemos a

retomada do encontro anterior, da construção dos moldes a partir das máscaras modeladas

pelos alunos, que estavam na oficina prontos e secos.

Os moldes e as máscaras estavam sobre a mesa, mas os educandos tiveram

dificuldades para reconhecer seu próprio molde. Muitas máscaras foram estragadas nesse

procedimento, e os alunos queriam saber se poderiam consertá-las, porém explicamos que a

argila estava muito dura. Seguiram-se explicações sobre a secagem, as mudanças de cor das

cabeças quase secas que estavam nas prateleiras, as diferenças nas argilas, a barbotina(argila

em creme) e suas características. A seguir, explicamos a técnica de reprodução da máscara e o

cuidado para executar o processo, com pequenos pedaços de tecido de algodão ou gaze

embebidos em barbotina que foram sobrepostos dentro do molde, evitando bolhas de ar.

Mostramos uma máscara que havia sido copiada para que eles entendessem o processo; todos

a pegaram, observaram e comentaram as características. Os alunos tiveram dificuldade de

reconhecer a inversão no molde, observaram as particularidades, os detalhes, a irregularidade

da espessura e os pequenos consertos que poderiam ser feitos. Estavam ansiosos, alguns

queriam iniciar rapidamente, outros não estavam dispostos a fazer. Enquanto colocavam as

camadas, conversavam fazendo comparações com atividades do cotidiano.

Os alunos que não tinham molde fizeram a modelagem da máscara e constantemente

solicitavam a nossa atenção para orientá-los e ajudá-los. Depois dos acabamentos, os moldes

ficaram secando e eles organizaram a sala.

Ao serem questionados sobre o encontro, comentaram que fora uma terapia, que lhes

tirara o estresse, que haviam se envolvido no fazer, no encontro consigo mesmos. Retomaram

as cabeças modeladas, identificaram-se e admiraram suas produções artísticas com orgulho.

Dando continuidade, os educandos criaram desenhos de linhas com tinta para

representar aspectos da própria vida. Enquanto pintavam, resgataram fragmentos que

constituem a identidade, fizeram comentários, contaram das relações com outras pessoas, do

cotidiano.

Ao final, retiraram as máscaras dos moldes, com certa confusão, reclamando das

imperfeições, que depois foram corrigidas.

102

ANEXO I – SÍNTESE DE SIGNIFICADO DO TODO

Sétimo encontro – 05 de dezembro de 2005 (4h/a)

Neste último encontro acompanhamos os educandos até a oficina onde estavam as

cabeças e máscaras já queimadas. Eles estavam curiosos, procuravam suas peças, alguns com

dificuldade de identificar sua própria produção, a si mesmos, discutindo sobre os processos e

as transformações. Iniciaram a pintura das peças, escolhendo as cores, fazendo comparações,

perguntando sobre as tintas e suas características. Os educandos representaram sua vida por

meio de desenhos pintados na máscara. Nesse processo fizeram relações com traços e

características pessoais, identificando-se. Todos estavam envolvidos no trabalho, o ambiente

era divertido e compartilhado no grupo.

Numa outra sala preparada para recebê-los, aromatizada, o grupo discutiu as

experiências vivenciadas e os significados para a própria vida.

Inicialmente, vários educandos destacaram ter sido uma “terapia ”, envolvendo e

descontraindo o grupo depois de terem trabalhado o dia todo; fora uma forma de “colocar pra

fora”, descontraída. Reconheceram que ficaram nervosos para falar. Comentaram, em

especial, sobre os processos da cerâmica, o que aprenderam, o prazer no fazer, as novidades

experimentadas e que as habilidades podem facilitar a atividade. Destacaram a queima e as

mudanças na argila, reconheceram que o saber sensível e inteligível é importante para a vida

deles.

Por outro lado, retomaram o primeiro encontro afirmando que não estavam

acostumados com essas atividades que envolvem o olhar a si mesmos e ao outro. Comentaram

que, mesmo contrários inicialmente, foram despertando para as possibilidades e o prazer que a

modelagem proporciona e compreendendo a proposta.

Destacaram a importância afetiva das relações entre as pessoas e a (re)significação

da proposta. Reconheceram que estabeleceram relações com fragmentos da própria vida. o

que lhes provocou diversos sentimentos, mobilizando conteúdos internos. Comentaram sobre

si mesmos, o que pensam, o que sentem, compondo um saber de si.

O grupo mostrou-se alegre e descontraído, compartilhando as vivências; sentiam-se

como um grupo que dividira momentos significativos, o que os aproximara uns dos outros.

Esse fator contribuiu para a valorização de si mesmos, ampliando a auto-estima. Fizeram uma

retomada dos encontros e realmente sentiram-se muito bem, agradecendo pelos momentos e

revelando o desejo de continuar.

103

ANEXO J – GRUPO DE HOMENS MAORI

www.gymmuenchenstein.ch/.../image004.jpg

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ANEXO K – MULHER TATUADA – FOTO HANS NELEMAN

www.ralphmag.org/DK/maori_face_woman350x387.gif

105

ANEXO L – METADE – OSWALDO MONTENEGRO

http://www.oswaldomontenegro.com.br

Que a força do medo que tenho não me impeça de ver o que anseio que a morte de tudo em que acredito não me tape os ouvidos e a boca pois metade de mim é o que eu grito a outra metade é silêncio. Que a música que ouço ao longe seja linda ainda que tristeza que a mulher que amo seja pra sempre amada mesmo que distante pois metade de mim é partida a outra metade é saudade. Quer as palavras que falo não sejam ouvidas como prece nem repetidas com fervor apenas respeitadas como a única coisa que resta a um homem inundado de sentimentos pois metade de mim é o que ouço a outra metade é o que calo. Que a minha vontade de ir embora se transforme na calma e paz que mereço que a tensão que me corrói por dentro seja um dia recompensada porque metade de mim é o que penso a outra metade um vulcão. Que o medo da solidão se afaste e o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável que o espelho reflita meu rosto num doce sorriso que me lembro ter dado na infância pois metade de mim é a lembrança do que fui a outra metade não sei. Que não seja preciso mais do que uma simples alegria pra me fazer aquietar o espírito e que o seu silêncio me fale cada vez mais pois metade de mim é abrigo a outra metade é cansaço. Que a arte me aponte uma resposta mesmo que ela mesma não saiba e que ninguém a tente complicar pois é preciso simplicidade pra fazê-la florescer pois metade de mim é platéia a outra metade é canção. Que a minha loucura seja perdoada pois metade de mim é amor e a outra metade também.

106

ANEXO M – FOTOS DA OFICINA

Modelagem das cabeças

Modelagem da máscara

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Fazendo o molde de gesso

108

Cópia do molde com gaze barbotinada

O grupo pintando as cerâmicas

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Máscara com óculos

Máscara Pintada

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Máscara e cabeça 1

Máscara e cabeça