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    A destruio da intelignciaESCRITO POR OLAVO DE CARVALHO | 19 JULHO 2014

    ART IGO S - CU LT UR A

    Poucas coisas so to grotescas quanto a coexistncia pacfica, insensvel, inconsciente esatisfeita de si, da afetao de inconformismo com a subservincia completa autoridade de

    um corpo docente.

    Aprender, imitar e introjetar o vocabulrio, os tiques e trejeitos mentais e

    verbais da escola de pensamento dominante na sua faculdade , para o jovem

    estudante, um desafio colossal e o carto de ingresso na comunidade dos seus

    maiores, os to admirados professores.

    A aquisio dessa linguagem to dificultosa, apelando aos recursos mais sutis

    da memria, da imaginao, da habilidade cnica e da autopersuaso, que seria

    tolo conceb-la como uma simples conquista intelectual. Ela , na verdade, um

    rito de passagem, uma transformao psicolgica, a criao de um novo

    personagem, apoiado no qual o estudante se despir dos ltimos resduos da

    sentimentalidade domstica e ingressar no mundo adulto da participao

    social ativa.

    quase impossvel que essa identificao profunda com o personagem

    aprendido no seja interpretada subjetivamente como uma concordncia

    intelectual, ao ponto de que, no instante mesmo em que repete fielmente o

    discurso decorado, ou no mximo faz variaes em torno dele, o nefito jure

    estar pensando com a prpria cabea e exercendo o pensamento crtico.

    A imitao , com certeza, o comeo de todo aprendizado, mas ela s funciona

    porque voc imita uma coisa, depois outra, depois uma infinidade delas, e com a

    soma dos truques imitados compe no fim a sua prpria maneira de sentir,

    pensar e dizer.

    No aprendizado da arte literria isso mais do que patente. O simples esforo

    de assimilar auditivamente a maneira, o tom, o ritmo, o estilo de um grande

    escritor j uma imitao mental, uma reproduo interior daquilo que voc

    est lendo. A imitao torna-se ainda mais visvel quando voc decora e declama

    poemas, discursos, sermes ou captulos de uma narrativa. Porm nas suas

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    primeiras investidas na arte da escrita impossvel que voc no copie,

    adaptando-os s suas necessidades expressivas, os giros de linguagem que

    aprendeu em Machado de Assis, Ea de Queiroz, Camilo Castelo Branco, Balzac,

    Stendhal e no sei mais quantos. Esse exerccio, se voc um escritor srio,

    continua pela vida a fora. Quando conheci Herberto Sales que Otto Maria

    Carpeaux julgava o escritor dotado de mais conscincia artstica j nascido neste

    pas --, ele estava sentado no saguo do Hotel Glria com um volume de Proust

    e um caderninho onde anotava cada soluo expressiva encontrada pelo

    romancista, para us-la a seu modo quando precisasse. J era um homem de

    setenta e tantos anos, e ainda estava praticando as lies do velho Antoine

    Albalat.[1] assim, por acumulao e diversificao dos recursos aprendidos,

    que se forma,pari passucom a evoluo natural da personalidade, o estilo

    pessoal que singulariza um escritor entre todos. T. S. Eliot ensinava que um

    escritor s verdadeiramente grande quando nos seus escritos transparece,

    como em filigrana, toda a histria da arte literria.

    Em outros tipos de aprendizado, a imitao ainda mais decisiva. Nas artes

    marciais e na ginstica, quantas vezes voc no tem de repetir o gesto do seu

    instrutor at aprender a produzi-lo por si prprio! Na msica,

    quantasperformancesmagistrais o pianista no aprende de cor at produzir a

    sua prpria!

    Nas cincias e na tecnologia, o manejo de equipamentos complexos nunca se

    aprende s em manuais de instruo: o aluno tem de ver e imitar o tcnico mais

    experiente, num processo de assimilao sutil que engloba, em doses

    considerveis, a transmisso no-verbal.[2]

    Por que seria diferente na filosofia? Compreender uma filosofia no se resume

    nunca em ler as obras de um filsofo e julg-las segundo uma reao imediata

    ou as opinies de um professor. impregnar-se de um modo de ver e pensar

    como se ele fosse o seu prprio, olhar o mundo com os olhos do filsofo, com

    ampla simpatia e sem medo de contaminar-se dos seus possveis erros. Se desde

    o incio voc j l com olhos crticos, buscando erros e limitaes, o que voc

    est fazendo reduzir o filsofo escala das suas prprias impresses, em vez

    de ampliar-se at abranger o universo dele. Erros e limitaes no devem ser

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    buscados, devem surgir naturalmente medida que voc assimila novos e novos

    autores, novos e novos estilos de pensar, pesando cada um na balana da

    tradio filosfica e no da sua incultura de principiante. No seria errado dizer

    que, entre outros critrios, um professor de filosofia deve ser julgado,

    sobretudo, pelo nmero e variedade dos autores, das escolas de pensamento,

    das vias de conhecimento que abriu em leque para que seus estudantes as

    percorressem.[3]

    No preciso mais exemplos. Em todos esses casos, a imitao o gatilho que

    pe em movimento o aprendizado, e em todos esses casos ela no se congela em

    repetio servil porque o aprendiz passa de modelo a modelo, incorporando

    uma diversidade de percepes e estilos que acabaro espontaneamente secondensando numa frmula pessoal, irredutvel a qualquer dos seus

    componentes aprendidos.

    Mas o que acontece se, em vez disso, o aluno submetido, por anos a fio,

    influncia monopolstica de um estilo de pensamento dominante, alis muito

    limitado no seu escopo e na sua esfera de interesses, e adestrado para

    desinteressar-se de tudo o mais sob a desculpa de que no referncia

    universitria?

    Se durante quatro, cinco ou seis anos voc obrigado a imitar sempre a mesma

    coisa, e ainda temendo que o fracasso em adaptar-se a ela marque o fim da sua

    carreira universitria, a imitao deixa de ser um exerccio temporrio e se

    torna o seu modo permanente de ser um hbito, no sentido aristotlico.

    como um ator que, forado a representar sempre um s personagem, no s

    no palco mas na vida diria, acabasse incapaz de se distinguir dele e de

    representar qualquer outro personagem, inclusive o seu prprio. Pirandello

    explorou magistralmente essa situao absurda na peaHenrique IV, onde um

    milionrio louco, imaginando ser o rei, obriga os empregados a comportar-se

    como funcionrios da crte, at que eles acabam se convencendo de que so

    mesmo isso.

    Toda imitao depende de uma abertura da alma, de uma impregnao

    emptica, de uma suspension of disbeliefem que o outro deixa de ser o outro e

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    se torna uma parte de ns mesmos, sentindo com o nosso corao e falando com

    a nossa voz. Se praticamos isso com muitos modelos diversos, sem medo das

    contradies e perplexidades, nossa mente se enriquece ao ponto do nihil

    humanum a me alienum, daquela universalidade de perspectivas que nos

    liberta do ambiente mental imediato e nos torna juzes melhores de tudo quanto

    chega ao nosso conhecimento. No errado dizer que o julgamento honesto e

    objetivo depende inteiramente da variedade dos pontos de vista, contraditrios

    inclusive, que podemos adotar como nossos no trato de qualquer questo.

    Em contrapartida, o enrijecimento da alma num papel fixo abusa da capacidade

    de imitao at corromp-la e extingui-la por completo, bloqueando toda

    possibilidade de abertura emptica a novos personagens, a novos estilos, anovos sentimentos e modos de ver.

    Habituado a tomar como referncia nica o conjunto de livros e autores que

    compe o universo mental da esquerda militante, e a olhar com temerosa

    desconfiana tudo o mais, o estudante no s se fecha num provincianismo que

    se imagina o centro do mundo, mas perde realmente a capacidade de

    aprendizado, tornando-se um repetidor de tiques e chaves, caqutico antes do

    tempo.

    Quem no sabe que, no meio acadmico brasileiro, a receita uniforme, h mais

    de meio sculo, Marx-Nietzsche-Sartre-Foucault-Lacan-Derrida, no se

    admitindo outros acrscimos seno os que paream estender de algum modo

    essa tradio, como Slavoj Zizek, Istvan Meszaros ou os arremedos de

    pensamento que levam, nos EUA, o nome de estudos culturais?

    Da a reao de horror sacrossanto, de dio irracional, no raro de repugnncia

    fsica, com que tantos estudantes das nossas universidades reagem a toda

    opinio ou atitude que lhes parea antagnica ao que aprenderam de seus

    professores. No que estejam realmente persuadidos, intelectualmente, daquilo

    que estes lhes ensinaram. Se o estivessem, reagiriam com o intelecto, no com o

    estmago. O que os move no uma convico profunda, sria, refletida:

    apenas a impossibilidade psicolgica de desligar-se, mesmo por um momento,

    do eu artificial aprendido, cuja construo lhes custou tanto esforo, tantoinvestimento emocional.

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    Justamente, a convico intelectual genuna s pode nascer da experincia, do

    longo demorado com os aspectos contraditrios de uma questo, o que

    impossvel sem uma longa resignao ao estado de dvida e perplexidade. A

    intensidade passional que se expressa em gritos de horror, em insultos, em

    afetaes de superioridade ilusria, marca, na verdade, a fragilidade ou ausncia

    completa de uma convico intelectual. A construo em bloco de um

    personagem amoldado s exigncias sociais e psicolgicas de um ambiente

    ideologicamente carregado e intelectualmente pobre fecha o caminho da

    experincia, portanto de todo aprendizado subseqente.

    A irracionalidade da situao ainda mais enfatizada porque o discurso desse

    personagem o adorna com o prestgio de um rebelde, de um espritoindependente em luta contra todos os conformismos. Poucas coisas so to

    grotescas quanto a coexistncia pacfica, insensvel, inconsciente e satisfeita de

    si, da afetao de inconformismo com a subservincia completa autoridade de

    um corpo docente.

    No auge da alienao, o garoto que passou cinco anos intoxicando-se de retrica

    marxista-feminista-multiculturalista-gayzista nas salas de aula, que reage com

    quatro pedras na mo ante qualquer palavra que antagonize a opinio de seus

    professores esquerdistas, jura, depois de ler uns pargrafos de Bourdieu para a

    prova, que a universidade o aparato de reproduo da ideologia burguesa. A

    j no se trata nem mesmo de paralaxe cognitiva, mas de um completo e

    definitivo divrcio entre a mente e a realidade, entre a mquina de falar e a

    experincia viva.

    Se, conforme se observou em pesquisa recente, cinqenta por cento dos nossos

    estudantes universitrios so analfabetos funcionais[4] no havendo razo

    plausvel para supor que a quota seja menor entre seus professores mais jovens

    --, isso no se deve somente a uma genrica e abstrata m qualidade do

    ensino, mas a um fechamento de perspectivas que buscado e imposto como

    um objetivo desejvel.

    No que a presente gerao de professores que d o tom nas universidades

    brasileiras tenha buscado, de maneira consciente e deliberada, a estupidificaode seus alunos. Apenas, iludidos pelo sloganque os qualificava desde os anos 60

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    do sculo XX como a parcela mais esclarecida da populao, tomaram-se a si

    prprios como modelos de toda vida intelectual superior e acharam que,

    impondo esses modelos a seus alunos, estavam criando uma pliade de gnios.

    Medindo-se na escala de uma grandeza ilusria, incapazes de enxergar acima de

    suas prprias cabeas, tornaram-se portadores endmicos da sndrome de

    Dunning-Kruger[5] e a transmitiram s novas geraes. Os cinqenta por cento

    de analfabetos funcionais que eles produziram so a imagem exata da sua

    sntese de incompetncia e presuno.

    Notas:

    [1]V. Antoine Albalat, La Formation du Style par l'Assimilation des Auteurs(Paris, Alcan,1901).

    [2]V. sobre isso as consideraes de Theodore M. Porter em Trust in Numbers. The Pursuitof Objectivity in Science and Public Life, Princeton University Press, 1995, pp. 12-17.

    [3] Digo isso com a conscincia tranqila de haver cumprido esse dever. Ao longo dos anos,introduzi no espao mental brasileiro mais livros e autores essenciais do que todos oscorpos docentes de faculdades de filosofia neste pas, somados aos formadores de opinioda mdia popular. Em vez de me agradecer, ou de pelo menos ter a sua curiosidadedespertada pela sbita abertura de perspectivas, estudantes e professores, com freqncia,me acusaram de citar autores desconhecidos dando por pressuposto que tudo o que

    ignorado no seu ambiente imediato desconhecido do resto do mundo e no tem a maismnima importncia.

    [4]V. http://www.folhapolitica.org/2014/02/pesquisador-conclui-que-mais-da-metade.html.

    [5] Efeito Dunning-Kruger: incapacidade de comparar objetivamente as prpriashabilidades com as dos outros. Quanto menos voc sabe sobre um assunto, menos coisasacredita que h para saber. V. David McRaney,You Are Not So Smart, London, OneworldPublications, 2012, pp. 78-81.

    Publicado no Digesto Econmico.

    http://olavodecarvalho.org

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