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UNIVERSIDADE DE COIMBRA FACULDADE DE DIREITO A DESJUDICIALIZAÇÃO DA EXECUÇÃO HIPOTECÁRIA COMO MEIO ALTERNATIVO DE RECUPERAÇÃO DE CRÉDITOS SAMY GARSON COIMBRA 2006

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UNIVERSIDADE DE COIMBRA

FACULDADE DE DIREITO

A DESJUDICIALIZAÇÃO DA EXECUÇÃO HIPOTECÁRIA COMO

MEIO ALTERNATIVO DE RECUPERAÇÃO DE CRÉDITOS

SAMY GARSON

COIMBRA

2006

2

UNIVERSIDADE DE COIMBRA

FACULDADE DE DIREITO

A DESJUDICIALIZAÇÃO DA EXECUÇÃO HIPOTECÁRIA COMO

MEIO ALTERNATIVO DE RECUPERAÇÃO DE CRÉDITOS

SAMY GARSON

Dissertação de Mestrado apresentada na

disciplina Direito Processual Civil, sob a

orientação do Professor Doutor Joaquim José

Coelho de Sousa Ribeiro, como requisito para

a obtenção do título de mestre em ciências

jurídico-processuais.

COIMBRA

2006

3

AGRADECIMENTOS

Aos Professores Doutores Maria José Capelo e Milton Paulo de

Carvalho, grandes incentivadores na consecução deste estudo.

Aos amigos Marcelo Kramer, André Weinmann, Luís Fernando

Carvalho e Tiago Garcia Clemente, pelo incentivo e pela profícua

troca de impressões acerca das questões polêmicas que foram

surgindo no curso da investigação.

A Iva Garson, José, e Taisa, que me ensinaram a compreender que

além das palavras existe a necessidade de tornar real aquilo que

importa e aparentemente reside no campo da especulação.

4

SIGLAS E ABREVIATURAS

a.C. antes de Cristo

ADIN Ação Direta de Inconstitucionalidade

art. artigo

CC Código Civil

CCustas Código de Custas

cfr. conforme

Coord. Coordenador

CPC Código de Processo Civil

Dec.-Lei Decreto-Lei

LEC Ley de Enjuiciamiento Civil (Espanha)

LEUD Livraria e Editora Universitária de Direito

LOFTJ Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais

n. número

Orgs. Organizadores

RCDI Revista Crítica de Derecho Inmobiliario (Espanha)

RE Recurso Extraordinário

RESP Recurso Especial

RRCOP ???ou RPCOP � Regime dos Procedimentos destinados a

exigir o Cumprimento de Obrigações Pecuniárias?

STF Supremo Tribunal Federal (Brasil)

STS ???(Ver referência de ROBLEDO VILLLAR, Antonio)

UNIDROT Entidade pela Unificação do Direito Privado

ZPO Zivilprozebordnung

5

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.....................................................................................................................8

1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA JURISDIÇÃO E DO PROCESSO DE

EXECUÇÃO – BREVE CONSPECTO ...........................................................................15

1.1 Da autotutela à execução estatal – Jurisdição no direito romano ..................................15

1.2 A execução no direito intermédio..................................................................................22

1.3 A evolução da ação de execução em Portugal...............................................................25

1.3.1 O agente de execução .................................................................................................32

1.3.2 O juiz de execução......................................................................................................36

2 A EXECUÇÃO DA GARANTIA HIPOTECÁRIA ........................................................39

2.1 O atual regime português...............................................................................................39

2.2 O projeto de execução extrajudicial hipotecária português ...........................................40

2.3 Dos problemas identificados para a adoção da execução hipotecária em Portugal.......44

2.4 O modelo espanhol de execução extrajudicial hipotecária............................................50

2.4.1 Das causas de suspensão da execução no regime executivo da hipoteca

em Espanha.................................................................................................................59

2.4.2 A reclamação pela via ordinária .................................................................................63

2.5 A evolução da execução no Brasil.................................................................................64

2.5.1 A execução extrajudicial hipotecária brasileira ..........................................................68

2.6 Os problemas decorrentes da execução extrajudicial hipotecária brasileira..................79

2.7 A interpretação jurisprudencial e doutrinária favorável à execução extrajudicial.........84

3 FUNDAMENTOS PARA A DESJUDICIALIZAÇÃO DA

EXECUÇÃO HIPOTECÁRIA.........................................................................................89

3.1 A essência da execução hipotecária e a desnecessidade do ato de penhora ..................89

3.2 Da realização adequada dos atos executivos .................................................................98

3.2.1 Da citação do executado .............................................................................................99

3.2.2 Da venda da garantia hipotecária e da dispensa da sua avaliação ............................102

3.3 A necessária superação do dogma da reserva de jurisdição e da

inafastabilidade do juiz ................................................................................................105

3.3.1 Da inafastabilidade do agente judicial no controle e nos atos sancionatórios ..........121

6

3.4 Da compatibilidade da natureza jurisdicional dos atos processuais executivos com a

desjudicialização da execução ...........................................................................................122

3.5 O necessário respeito aos princípios da igualdade de partes e do contraditório..........131

4 CONCLUSÕES ..............................................................................................................136

BIBLIOGRAFIA ...............................................................................................................148

7

NOTA PRÉVIA

Em 6 de dezembro último, adveio no ordenamento jurídico brasileiro a Lei n.

11.382/2006, diploma que procedeu a alteração de dispositivos da Código de Processo

Civil (Lei n. 5.869, de 11.1.1973), introduzindo modificações significativas no regime do

processo de execução de títulos extrajudicias e, subsidiariamente, no cumprimento de

sentença previsto na Lei n. 11.232, de 22 de dezembro de 2005. Em virtude do exíguo

lapso temporal existente entre o advento do novo diploma e a data limite para a entrega da

presente dissertação, 31 de janeiro de 2007, embora, por óbvio, não exista bibliografia

comentando a inovação havida, ao se analisar o texto da lei, pode-se afirmar que não houve

qualquer modificação significativa no regime da execução da hipoteca que, à luz do artigo

580, inciso III do Código de Processo Civil, continua a ser considerada título executivo

extrajudicial. Sem prejuízo, no curso deste estudo, assinalaremos, no local próprio, as

inovações introduzidas que consideramos mais relevantes.

Ressaltamos, outrossim, que este trabalho foi elaborado empregando as regras

ortográficas e gramaticais reconhecidas pela República Federativa do Brasil.

INTRODUÇÃO

Considerando que os problemas decorrentes da morosidade e da falta de

efetividade do Poder Judiciário não serão resolvidos a partir da adoção de um ato isolado1, capaz de por si só dotar da necessária credibilidade o sistema democrático de acesso ao direito, e na busca de alternativas viáveis para a solução dos problemas que se apresentam, entendemos ser de relevo fornecer aos operadores do direito reflexões acerca das experiências de outros ordenamentos jurídicos, independentemente do seu êxito ou não, como meio de proporcionar elementos para apurar o seu desempenho.

Nessa senda, no desenvolvimento deste estudo, pretendemos focar a atenção no

processo de execução extrajudicial, cuja origem remonta ao direito romano, e que atualmente, no que diz respeito à execução de créditos hipotecários, é largamente utilizado pelas instituições financeiras brasileiras e espanholas como forma de viabilizar os contratos de financiamento imobiliário.

A partir do estudo da evolução histórica do processo de execução, notadamente no

que concerne à realização dos atos executivos tendentes à expropriação do patrimônio do devedor, esboçaremos as linhas mestras para verificar as soluções processuais encontradas no direito romano e no direito medieval, para, de um lado, alcançar a satisfação do crédito exeqüendo, e, de outro lado, extirpar da sociedade o mal da autotutela.

Embora seja cediço que o processo declaratório tenha merecido maior atenção por

parte da comunidade jurídica ao longo da evolução do processo civil, inexoravelmente é no processo de execução que se verifica a expropriação dos bens do devedor para a satisfação do crédito invocado pelo credor e, portanto, em caso de resistência do executado para o cumprimento espontâneo da sua obrigação, ensejará a intervenção estatal, para que finalmente se efetive a justiça material2. Eis a razão para a função executiva operar no

1 Para uma maior compreensão acerca das linhas mestras a serem adotadas para que se promovam soluções

para os problemas atualmente vividos na Justiça, indicamos a leitura da intervenção de João Álvaro Dias (COLÓQUIO INTERNACIONAL OS CUSTOS DA JUSTIÇA, Coimbra, 2002, Os custos da justiça: actas do Colóquio Internacional, Coimbra, 25-27 de setembro de 2002, Coordenação de João Álvaro Dias, Coimbra: Almedina, 2003, p. 557-567).

2 Segundo José Lebre de Freitas, a ação executiva “tradicionalmente considerada o parente pobre da família das acções judiciais e, talvez por isso, durante muito tempo abandonada a um imobilismo contrastante com o ritmo e as exigências da evolução sócio económica, foi ganhando, ao longo dos anos, uma cada vez maior ineficácia. Constituindo, ela, no campo dos direitos patrimoniais, o momento processual mais apurado da manifestação do jus imperii jurisdicional ao serviço da norma jurídica, essa ineficácia acaba por paralisar a própria garantia do direito.” (Estudos sobre direito civil e processo civil, Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 708).

9

mundo dos fatos, notabilizando-se pela agressão à esfera jurídica do patrimônio do executado, a ponto de merecer a célebre metáfora de Carnelutti3, segundo a qual o processo de conhecimento transforma o fato em direito, e o processo de execução traduz o direito em fatos.

Portanto, o processo de execução deve viabilizar a segurança dos negócios

jurídicos envolvendo o crédito que, numa sociedade de consumo de massa4, são realizados de forma interdependente, sob pena, inclusive, de se colocar em xeque todo o sistema de fluxo de valores destinados ao fomento empresarial e à pessoa singular.

Com efeito, a manutenção do fomento ao crédito, sobretudo na delicada área da

habitação, depende sobremaneira do retorno do capital financiado, para que posteriormente o mesmo possa ser novamente investido no sistema, sob pena de a sociedade prescindir do fundamental apoio da iniciativa privada para a complementação de uma função que outrora competia precipuamente ao Estado.

3 Francesco Carnelutti, Diritto e processo, Napoli: Morano, 1958, p. 283-284. 4 “Quem faz uso mais intensivo dos tribunais, em matéria cível, não são os cidadãos mas as grandes

empresas, sobretudo na área de crédito ao consumo, portanto, em processos de cobrança de dívidas. Este uso é tão avassalador que bloqueia os tribunais. Como é do conhecimento geral, esse problema agravou-se nos últimos anos com a generalização do crédito ao consumo e uma nova geração de dívidas (telemóveis, cartões de crédito, compras a prestação em sistema de leasing, etc.) e o consequente endividamento e sobreendividamento das pessoas singulares e, também, das empresas. Por exemplo, em 2000 e 2001, o peso das ações de dívida nas ações declarativas findas era de 61,8% e 64%, respectivamente. Em Lisboa, os números sobem para 84,8% e 81,9%, respectivamente, sendo sendo que 37% das ações de dívida a nível nacional, e cerca de 55% em Lisboa, dizem respeito a valores inferiores a 1.250 euros; sendo certo que os tribunais estão a ser mobilizados por pessoas coletivas com capacidade económica para poder gerir, de forma racional, a sua litigância. O problema é que a racionalidade do uso empresarial da justiça conduz à total irracionalidade da justiça quando vista da perspectiva dos cidadãos e dos seus direitos democráticos de acesso à justiça, pois, a despeito da pequena complexidade maioria dos casos, tem-se verificado o aumento da duração processual. As estatísticas da justiça portuguesa mostram que, a partir de 1995, tem-se registrado uma diminuição considerável das percentagens de ações resolvidas em 1ª instância em menos de um ano (em 1995, 70,4% e em 2000, 51,3%). Nos últimos anos da década de 90, a duração das ações declarativas cíveis com duração igual ou superior a dois anos aumentou significativamente, acompanhando o aumento das pendências. As ações com duração superior a dois anos aumentaram significativamente, acompanhando o aumento das pendências. As ações com duração superior a dois anos representavam, em 1997, cerca de 13% de todas as ações findas enquanto que, em 2000, representavam cerca de 28% dos processos findos. À luz do diagnóstico, as soluções a adotar devem ter presente as ideias de que os tribunais não são o único recurso de justiça, vez que não podem dar resposta a todos os litigios, como no caso dos litigios de massa, como, por exemplo, as dívidas; sendo fundamental encontrar mecanismos que permitam gerir, de forma racional e diferenciada, o volume da procura do sistema judicial. Esses caminhos podem passar pela informatização e desjudicialização de certos litigios. Esta pode ser uma via, não só para ‘descarregar’ os tribunais da ‘litigação de massa’, e melhorar o seu desempenho, mas, também, para desenvolver uma perspectiva de integração social, reduzindo tensões sociais, criando solidariedade através da participação dos cidadãos e promovendo o acesso ao direito e à justiça. A informalização, a desjudicialização e os julgados de paz, constituem alguns dos caminhos da reforma da administração da justiça.” (Boaventura de Sousa Santos, A justiça em Portugal: diagnósticos e terapêuticas, Revista Manifesto, Práticas, Direitos, Poderes, Lisboa, n. 7, p. 84-85, abr. 2005, Disponível em: <http://manifesto.com.pt/>).

10

Contudo, face à fragilização do welfare state, o Estado não dispõe dos recursos

necessários para prover os investimentos para viabilizar a aquisição da casa própria por

parte da plenitude dos cidadãos. Sem prejuízo, é de se destacar que os cientistas políticos

do mundo todo advertem que está ocorrendo o fenômeno que eles reputam como a

expansão do direito, eis que o direito está, cada vez mais, disciplinando novas relações, que

eram até então por ele ignoradas, desde aspectos políticos, até os ligados à intimidade das

pessoas; e tudo que é disciplinado pelo direito, numa eventualidade de ameaça ou violação,

salvo nos casos de recurso aos imprescindíveis meios alternativos de resolução de litígios,

vai parar no Poder Judiciário, para a apreciação do Estado-juiz.

Segundo Kazuo Watanabe, a expansão do direito se liga também “ao problema da

falência do Estado-providência, que, para poder estabelecer o controle da sociedade,

administrando as contradições sociais, políticas e regionais, e os conflitos delas resultantes,

tem procurado ampliar os direitos sociais, mesmo sem ter a certeza da existência de

recursos financeiros necessários para tanto, consagrando-os inclusive nas cartas políticas”,

sendo que tais “direitos ou não são efetivamente implementados ou, embora

implementados, não são cumpridos a contento ou de modo completo pelo Estado, o que

gera conflitos sócio-jurídicos, que vão parar na Justiça”.5

Além disso, embora seja cediço que em muitas ocasiões a simples existência de

verba não resulta na produtividade e na qualidade da tutela do serviço jurisdicional, o

Estado, conforme amplamente divulgado pelos meios de comunicação6, sequer dispõe de

condições financeiras para investir na compra de computadores para implementar os

pedidos de execução eletrônica, recentemente instituída em Portugal, no âmbito da reforma

da execução.

Mário Tavares Mendes, Diretor do Centro de Estudos Judiciários de Portugal, ao

citar estudo realizado por Margarida Proença, Catedrática de Economia da Universidade do

Minho, salienta que “o ambiente legal (compreendendo a eficácia da justiça) contribui de

5 Kazuo Watanabe, Processo civil e interesse público: o processo como instrumento de defesa social, São

Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 19-20. 6 A título exemplificativo, reportagem consignou que a falta de equipamentos obrigou as secretarias a

recorrerem às execuções manuais, o que inviabiliza a necessária implantação da importante reforma realizada e que deve ser otimizada, independentemente dos problemas que se afiguram (O ESTADO de sítio das execuções, Jornal Público, Lisboa, 12 fev. 2005, Caderno Nacional, p. 18).

11

forma activa e significativa para a actividade económica agregada, ou seja, que é possível

aumentar o nível de bem-estar numa economia melhorando e aumentando o nível de

eficácia dos tribunais. Sistemas judiciários ineficientes permitem a distorção de decisões

individuais e empresariais, e nessa medida são uma chave para assimetrias de crescimento

e desenvolvimento económico”.7

Em que pesem os problemas de ordem financeira para investir no aparelhamento

tecnológico, o Estado não tem se mostrado alheio aos problemas de ineficácia do processo

de execução, ao contrário, a partir da década de 90, tanto no Brasil8 quanto em Portugal9,

observou-se um movimento conducente ao incremento de ações tendentes à redução das

injustificáveis formalidades que emolduram o quadro da burocracia que, ao cabo,

afiguram-se como um escudo para aqueles que se esquivam do cumprimento das suas

obrigações.

Nesse diapasão, no curso do nosso estudo, abordaremos a desjudicialização do

processo de execução hipotecária como uma alternativa viável para se garantir, por um

lado, a efetividade da execução e, por outro, a redução dos “custos da justiça” e dos

contratos de financiamento, eis que é notório que os riscos inerentes ao descumprimento

dos contratos compõem uma parte dos chamados spreads praticados pelas instituições

financeiras.

7 Margarida Proença, apud Mário Tavares Mendes, Custos da justiça, in COLÓQUIO INTERNACIONAL

OS CUSTOS DA JUSTIÇA, Coimbra, 2002, Os custos da justiça: actas do Colóquio Internacional, Coimbra, 25-27 de setembro de 2002, coordenação de João Álvaro Dias, Coimbra: Almedina, 2003, p. 33.

8 Recentemente, com o advento das Leis 11.232, de 22 de Dezembro de 2005 e n. 11.382, de 6 de Dezembro de 2006, veio de ser aprovado, parcialmente, a reforma do processo de execução, todavia, não houve qualquer alteração no quadro da execução extrajudicial hipotecária brasileira, mantendo-se intangível o Decreto-Lei n. 70/66, que adiante será motivo de análise detalhada.

9 “Em Portugal, as principais reformas foram no sentido da criação de instrumentos novos, como os centros de arbitragem, a mediação, os julgados de paz e a atribuição de competências aos conservadores do registo civil para a realização de divórcios por mútuo consentimento. Uma das reformas mais recentes foi, ainda neste domínio, a criação de uma nova profissão jurídica, o solicitador de execução, no âmbito da reforma da acção executiva, com o objecto de desjudicializar e tornar o processo executivo mais eficaz. Na área das reformas processuais tivemos, no caso do processo civil, reformas significativas no que respeita à simplificação da fase dos articulados e da fase do recurso e, sobretudo, à criação de novas formas especiais de processo, com destaque para a injunção”. (Boaventura de Sousa Santos, A Justiça em Portugal: diagnóstico e terapêuticas, cit., p. 80-81).

12

De antemão, podemos afirmar que a desjudicialização dos atos da execução nada

tem de novo10, pois, como adiante veremos, perdurou durante centenas de anos no direito

romano, somente vindo a sucumbir quando do fortalecimento do Estado. Contudo, temos

que verificar a sua viabilidade prática no atual momento socioeconômico da sociedade de

consumo em que estamos inseridos.

A par disso, e não menos importante, pretendemos abordar no nosso trabalho,

focando precipuamente a doutrina e a jurisprudência portuguesas, brasileiras e espanholas

(sobretudo a chamada ejecución directa sobre bienes inmuebles hipotecados prevista na

Ley de Enjuiciamiento Civil 1/2000 da Espanha)11, o problema decorrente da adoção do

procedimento extrajudicial de execução hipotecária.

Para alcançarmos uma conclusão acerca da viabilidade ou não do aludido

procedimento, pretendemos enfrentar os questionamentos costumeiramente suscitados pela

doutrina e que há pouco serviram de fundamento para ceifar a proposta de adoção da

execução hipotecária extrajudicial em Portugal.

Imprescindível se mostrará compatibilizar a desjudicialização dos atos tendentes à

expropriação do bem imóvel com os princípios da igualdade de tratamento das partes e do

contraditório, bem como se mostrará imperiosa a superação dos princípios do monopólio

de jurisdição e da reserva ou inafastabilidade da apreciação por parte do agente judicial.

10 “Contudo, a execução extrajudicial tem sido tema de diversos projetos visando a efetividade e a segurança

da recuperação do crédito ou das garantias prestadas em negócios envolvendo valores de vulto. É o caso, por exemplo, dos dois projetos elaborados pelo Instituto pela Unificação do Direito Privado – UNIDROIT, que visam o aditamento da Convenção sobre o Reconhecimento Internacional dos Direitos sobre Aeronaves de 1948, visando assegurar a concessão de crédito internacional pela implantação do chamado direito de “sequela” (asset-based financing and leasing), através da pronta disposição dos bens subjacentes ao empréstimo como fator primordial à apreciação do risco financeiro. Note-se que a iniciativa é assaz relevante para se viabilizar o necessário aparelhamento da aviação civil a nível mundial nos próximos vinte anos, posto que o investimento custará 1,2 trilhões de dólares norte-americanos e as instituições financeiras não se dispõem a arcar com os prejuízos que adviriam da necessidade de recorrer a um judiciário moroso e mergulhado em ações envolvendo a cobrança de valores de pequena monta.” (José M. V. Rocha, Pelo fornecimento de aeronaves!, Revista Brasileira de Direito Aeroespacial, Rio de Janeiro, n. 76, 1999, disponível em: <www.sbda.org.br/revista/Anterior/1661.htm>, acesso em: 27 abr. 2005.

11 Para uma abordagem acerca da execução extrajudicial hipotecária espanhola, ver: Juan José Jurado Jurado, Procedimiento de ejecución directa sobre bienes inmuebles hipotecados, Barcelona: Bosch, 2001.

13

São essas algumas interrogações que pretendemos responder, e que, ao cabo desta

dissertação, servirão de norte para uma reflexão madura e um diálogo profícuo acerca da

necessidade premente de se buscar soluções técnicas e pragmáticas para os problemas que

se apresentam.

Ao responder a tais indagações, decerto depararemos com mudanças de

paradigmas que aparentemente para nós permaneceriam imutáveis, mas que, face ao

quadro socioeconômico em que vivemos, inevitavelmente nos induzirão à superação de

antigas discussões doutrinárias acerca, por exemplo, da natureza administrativa dos atos de

execução, do caráter jurisdicional ou satisfativo dos atos executivos.12

Em virtude disso, faz todo o sentido ao moderno processo civil a premissa “novos

tempos, novas soluções”. Contudo, no decorrer do nosso estudo também constataremos

que muitas das ditas “novas” soluções propostas nos remetem a soluções encontradas no

direito romano e medieval que, respeitando as marchas e contramarchas da história,

intrigantemente voltam a fazer sentido nos tempos modernos.

Portanto, ao esboçarmos a evolução histórica do processo de execução,

pretendemos obter as bases necessárias para compreendermos o momento contemporâneo

e os desafios que se nos apresentam na busca de novas ou o resgate de antigas soluções

tendentes a proporcionar uma maior eficácia do processo de execução da hipoteca.

A sociedade plural, fruto da revolução tecnológica e dos meios de comunicação,

clama pela eficiência da justiça13, respeitando-se, por óbvio, o direito ao acesso a um

processo equitativo; pretendemos demonstrar que ele também poderá ser alcançado por

12 Com relação à mudança de paradigmas e de mentalidades, compartilhamos das palavras de António Santos

Abrantes Geraldes, no sentido de que “de pouco valerão as inovações que foram introduzidas (no processo civil português) se continuarem a ser interpretadas tendo como pano de fundo a hipervalorização das normas processuais relativamente aos direitos subjectivos; de nada valerá o esforço tendente a alcançar a simplificação processual e acelerar o andamento dos processos se não for exercitada uma verdadeira cooperação entre os vários sujeitos; constituirão simples elementos decorativos as normas bem intencionadas integradas no novo Código de Processo Civil se não forem interpretadas por todos como um verdadeiro instrumento de realização do direito ao serviço do cidadão (…) e, apesar de não ser fácil a mudança de atitudes ou de comportamentos, é salutar que se ultrapasse a natural inércia resultante de hábitos consolidados pela aplicação, durante décadas, de normas processuais distintas” (Temas da reforma do processo civil, 2. ed., Coimbra: Almedina, 2003, v. 1, p. 46-47).

13 A Justiça portuguesa, à luz do diagnóstico do Observatório Permanente da Justiça, possui quatro grandes problemas, quais sejam: investigação, ineficiência, morosidade, inacessibilidade e desperdício. (Boaventura de Sousa Santos, A Justiça em Portugal: diagnóstico e terapêuticas, cit., p. 82).

14

meio de chamada execução hipotecária extrajudicial, muito embora, repita-se, a questão já

tenha sido debatida quando da reforma da ação executiva em Portugal e, naquela altura,

não tenha sido aprovada por vários motivos, dentre os quais a proibição do pacto

comissório, estampada no artigo 694º do Código Civil.

Sucede que, sem prejuízo de entendermos ser absolutamente viável a retomada do

diálogo acerca da desjudicialização da execução hipotecária no âmbito acadêmico, o

Decreto-Lei português n. 105/2004, de 8 de maio, relativizou o pacto comissório, ao

admitir que, nos contratos de alienação fiduciária e de penhor previstos no referido

diploma legal, as garantias financeiras poderão ser revertidas aos credores. Portanto, o

problema em tela, sob a nossa ótica, também não se afigura como intransponível em sede

legislativa.

Diante disso, afigura-se a presente dissertação como uma reflexão acerca da

viabilidade de se desjudicializar, na sua plenitude ou não, os atos tendentes à expropriação

do bem hipotecado, para que se reserve ao Judiciário as questões que efetivamente são de

relevo para a sociedade e que também, devido ao atoleiro de processos decorrentes dos

contratos de financiamento em massa, lamentavelmente se distancia a passos largos do seu

desiderato de promover a pacificação social e o bem comum.

A morosidade do Judiciário é a própria negação da justiça e, como adiante

veremos, a aplicação do princípio ibi commoda ubi incommoda àqueles que auferem os

maiores lucros no mercado, embora não seja a única solução para os problemas do

Judiciário, decerto é uma das medidas que melhor se adequarão às necessidades da

coletividade e da manutenção do Estado Democrático de Direito numa sociedade moderna.

1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA JURISDIÇÃO E DO

PROCESSO DE EXECUÇÃO – BREVE CONSPECTO

1.1 Da autotutela à execução estatal – Jurisdição no direito

romano

Ao abordar a desjudicialização do processo de execução num contexto histórico14,

irremediavelmente chegaremos à conclusão de que não estamos percorrendo o caminho do

inusitado, ou quiçá logrando alcançar uma grande descoberta jurídica. Tal conclusão

decorre do fato de que aproximadamente em 450 a.C., com a paulatina evolução das civitas

romanas e com a crescente condição ético-social do povo, alcançou-se a convicção de que

a autotutela15 era ineficiente para viabilizar a pacificação social.16

Se atualmente alguém não cumpre voluntariamente a sua obrigação de pagar, o

direito impõe que o lesado chame o Estado-juiz para fazer com que as coisas se disponham

na realidade prática, conforme a vontade do ordenamento jurídico para o caso concreto.

Entretanto, à falta de normas gerais e abstratas impostas pelo Estado aos particulares, bem

14 Considerando ser imperioso, preliminarmente à abordagem propriamente dita da evolução do conceito de

jurisdição e do processo executivo no direito romano, obter uma visão histórica e, no particular, do direito romano, mesmo que não reconhecidos com unanimidade entre os historiadores, há um certo consenso entre os estudiosos em aceitar a divisão da história do direito de Roma em três períodos distintos, quais sejam, o arcaico, que vai da fundação de Roma, em aproximadamente 753 a.C., ao segundo século antes de Cristo; segue-se o período clássico, que atravessa a República tardia, enfrenta o início do Principado e prossegue até antes da chamada anarquia militar, que ocorreu entre os anos 235-285, já de nossa era; o último ciclo, conhecido como período tardio ou pós-clássico, encerra-se com o fim do Império, após o saque de Roma pelos vândalos e a deposição de Rômulo Augústulo, último imperador do Império Romano do Ocidente, por Odoacro, chefe dos hérulos, o que ocorreu no ano de 476 e que, para muitos, marca o fim da Idade Antiga e o início da Idade Média. No que diz respeito especificamente à história do processo civil romano, que nos interessa mais de perto, podemos dividi-la da seguinte forma: ao referido período arcaico do direito romano corresponde a prática do processo segundo as ações da lei (legis actiones); a fase clássica convive com o processo formular (per formulas); e, finalmente, a cognitio extra ordinem, que predominou durante o período pós-clássico. Entendemos ser de relevo para o desenvolvimento deste estudo também o conhecimento dos períodos correspondentes aos regimes políticos que subsistiram em Roma, visto que, conforme adiante se demonstrará, a estatização da execução tem relação direta com o desenvolvimento do Estado e a concentração do poder na figura do imperador. Destarte, podemos afirmar, mesmo com a ressalva de parte da doutrina, que o primeiro regime foi o da realeza ou monarquia, que tem início com a fundação da cidade, em 753 a.C., e se extinguiu em 509 a.C., quando implantada a República. Com a tomada do poder por parte da classe nobre, após uma série de reformas instituídas favoravelmente às classes populares, implantou-se uma oligarquia republicana.

15 Note-se que o artigo 1º do Código de Processo Civil português rejeita o recurso à autodefesa. 16 Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover; Cândido Rangel Dinamarco; Teoria geral do

processo, 9. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 24.

16

como diante da inexistência de um terceiro independente e imparcial com credibilidade

suficiente para impor a decisão aos litigantes, torna-se perfeitamente compreensível a

prevalência de uma litigiosidade, que se afigura como o recurso à força por parte daquele

que, impossibilitado de obter por si mesmo, pretende alguma coisa que outrem o obsta de

conseguir.

Conforme lecionado por Antunes Varela, o sistema da autodefesa (ou autotutela)

“falha naturalmente sempre que a força, de facto, não se encontra do lado do ofendido, mas

de quem prevarica. Por outro lado, quando a vis não falta a quem é injustamente

prejudicado, a debilidade do sistema provém do perigo constante de excesso da reacção

decretada pelo mais forte. Por último, mesmo quando haja equilíbrio individual ou social

de forças entre os opositores, exsurge a fraqueza do regime da justiça unilateral de cada um

deles, como juiz em causa própria”.17

E, iniciando o processo de publicização do processo de execução em

contraposição à autodefesa, a Lei das XII Tábuas enunciava a condição da confessio in iure

(confissão em juízo) e a iudicatio (sentença) para que se promovesse a execução de

dívidas.

Consoante Sebastião Cruz18, “a confessio in iure das dívidas em dinheiro e a

iudicatio sobre qualquer débito não davam direito a uma execução imediata da dívida, a

efectuar pelas próprias mãos do credor. Eram apenas título para o credor agarrar o

responsável manus iniectio – manus iniectio de facto ou, sob certo aspecto directa –, e

levá-lo a um novo juízo, acção executiva”. Esse procedimento executivo se realizava

mediante a legis actio per manus iniectionem19, que mais tarde, sob nova roupagem, e

mesmo sem desaparecer por completo, foi sucedida pela actio iudicati.

Portanto, assiste razão à melhor doutrina quando ressalta que “no direito romano,

a jurisdição (jurisdictio, dicção do direito) não abrangia o poder do juiz in executivis; a

17 João de Matos Antunes Varela, O direito de acção e a sua natureza jurídica, Revista de Legislação e de

Jurisprudência, ano 125, n. 3.824, p. 326-327, 1992-1993. 18 Sebastião Cruz, Direito romano, 4. ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1984, v. 1, p. 188. 19 Na fase cognitiva, as actio legis eram essencialmente solenes e processavam-se primeiramente perante o

magistrado que, juntamente com as partes, escolhia um juiz popular (iudex privatus) para dirimir as questões controvertidas, ficando a citação a cargo do autor, que deveria conduzir o devedor ao juízo (in iure).

17

pouca participação que inicialmente tinha o juiz na execução forçada fundava-se em outro poder (imperium) e não na jurisdição”.20

Em linhas gerais, preceituava a 1ª Lei da Tábua III o seguinte:

“Aquele que confessa dívida perante o magistrado ou é condenado, terá 30 dias para pagar. Esgotados os 30 dias e não tendo pago, que seja agarrado e levado à presença do magistrado. Se não paga e ninguém se apresenta como fiador, que o devedor seja levado pelo seu credor e amarrado pelo pescoço e pés com cadeias com peso até ao máximo de 15 libras; ou menos, se assim o quiser o credor. O devedor preso viverá à sua custa, se quiser; se não quiser, o credor que o mantém preso dar-lhe-á por dia uma libra de pão ou mais, a seu critério. Se não há conciliação, que o devedor fique preso por 60 dias, durante os quais será conduzido em três dias de feira ao comitium, onde se proclamará em altas vozes o valor da dívida. Se são muitos os credores, é permitido, depois do terceiro dia de feira, dividir o corpo do devedor em tantos pedaços quantos sejam os credores, não importando cortar mais ou menos; se os credores preferirem21, poderão vender o devedor a um estrangeiro, além Tibre.”22

20 Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover; Cândido Rangel Dinamarco; Teoria geral do

processo, cit., p. 120. 21 Embora a execução civil romana tenha cumprido a sua função de forçar a vontade do litigante vencido a

acatar a sentença e não tanto de proporcionar ao vencedor a satisfação dos seus direitos, ressalva-se que não se tem conhecimento histórico de que tenha ocorrido algum caso de morte do devedor em virtude da previsão estampada na Tábua III. Segundo Cândido Rangel Dinamarco, esse sistema de ameaça de um mal maior em virtude do inadimplemento, que não dá efetividade aos preceitos jurídicos, mas somente põe o obrigado em verdadeiro dilema, traduzindo-se em medida de pressão psicológica sobre o devedor para que cumpra a sua obrigação, corresponde ao que hoje se chama execução indireta. A execução indireta traduz-se “nas sanções de direito material, multas inclusive, bem como da prisão admissível em certos casos e das astreintes (multas cominatórias ou sanções pecuniárias), que não se integram no conceito técnico-processual de execução ou execução forçada” (Execução civil, 8. ed., São Paulo: Malheiros, 2002, p. 106). José Lebre de Freitas afirma que, em relação às medidas que visam a coacção indireta do devedor ao cumprimento de obrigações impostas, mas susceptíveis de execução específica (art. 829-A do CC), em outros sistemas jurídicos a ameaça pode ser não apenas de uma sanção pecuniária, mas também de uma sanção pessoal (detenção coercitiva): é o que acontece no direito anglo-saxônico com a contempt of Court, consequentemente à violação de uma injuction judicial, e no direito alemão (§§ 888 e 890 da ZPO), em que o juiz tem a escolha entre as duas sanções, que pode aplicar sucessivamente e repetir, independentemente de prova da culpa do devedor (visto não se tratar de penas criminais, mas de meios coercitivos) e com o limite, para a segunda, de seis meses de duração. (José Lebre de Freitas, A ação de execução: depois da reforma, 4. ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 19). Salienta-se ainda que no direito romano, em razão da falta de dignidade daquele que não cumpria o decisum, apenas admitia-se que um terceiro o substituísse para defendê-lo (vindex), com o intuito de resgatar a dívida ou apresentar oposição, tornando-se, contudo, obrigado pelo processo daí para frente, visto que “a recusa de atendimento à sentença era havido como ato de má-fé e daí não se considerar o inadimplente digno de se defender por si próprio” (Humberto Theodoro Júnior, Execução de sentença e a garantia do devido processo legal, Rio de Janeiro: Aide, 1987, p. 89). Convém esclarecer, valendo-nos do escólio de Santos Justo, que na época das legis actiones, o objeto sobre o qual recai primordialmente a execução da sentença é a pessoa do devedor, justamente porque à época considerava-se infame aquele que descumprisse o veredicto, razão pela qual o magistrado o entrega ao litigante vencedor através duma addictio. A execução pessoal subsiste na época clássica do direito romano, porém, a partir do século II a.C., o pretor começou a admitir a execução sobre os bens do vencido, oferecendo ao demandante vencedor a faculdade de optar entre a execução pessoal e a execução patrimonial. E a partir duma Lex Iulia de bonis cedendis (do ano 17 a.C.), o litigante vencido podia evitar a execução pessoal, cedendo todos os seus bens (cessio bonorum) ao vencedor, que devia proceder à sua venda e ressarcir-se com a pecunia obtida.

22 Dinamarco, Cândido Rangel, Execução civil, cit., p. 35.

18

A propósito da evolução havida no direito a partir do advento da legis actio per

manus iniectionem, Sebastião Cruz assevera que “vê-se claramente que a vindicta privata

(isto é, a faculdade de poder o titular dum direito executá-lo pelas suas próprias mãos) não

era admitida na Lei das XII Tábuas, pelo menos como princípio geral. Isto representa um

grande avanço em relação aos estágios primitivos das antigas sociedades”.23

Foi com o advento da Lex Poethelia Papiria de nexis de 326 a.C. que “a

incidência da vis coactiva e executiva sobre a pessoa do devedor se começa a transferir

para os seus bens (bona debitoris non corpus obnoxium, nas palavras de Tito Lívio)”24. A

evolução do carácter estritamente pessoal da obligatio para o carácter patrimonial, iniciada

mas não completada com a Lex Poethelia25 – a execução pessoal continuou, na verdade,

até fins da República – avançou celeremente com o cristianismo, graças aos princípios da

caridade e da fraternidade.

Por conseguinte, podemos depreender que no direito romano, sobretudo

anteriormente ao período pós-clássico, o exercício da função jurisdicional por parte do

agente judicial não ia além dos poderes que detinha no processo de conhecimento, sendo

certo que, conforme adiante se demonstrará, no direito luso-brasileiro, até tempos recentes,

a reserva do juiz não se colocaria em causa.26

23 Sebastião Cruz, Direito romano, cit. ,v. 1, p. 188. 24 João Calvão Silva, Sanção e pena pecuniária compulsória, 4. ed., Coimbra: Almedina, 2002, p. 210. 25 Na Lex Poetelia, verificamos a concorrência de normas atenuadoras da execução, a saber: a) proibiu a

morte e o acorrentamento do devedor; b) institucionalizou o que antes era simples alternativa oferecida ao credor, ou seja, a satisfação do crédito mediante a prestação de trabalhos forçados; c) permitiu que o executado se livrasse da manus iniectio, repelindo a mão que o prendia mediante juramento de que tinha bens suficientes para satisfazer o crédito; e, acima de tudo isso, extinguiu o nexum, passando então o devedor a responder por suas obrigações com o património que tivesse, não mais com o próprio corpo (Cândido Rangel Dinamarco, Execução civil, cit., p. 46).

26 A título ilustrativo, para demonstrar a mudança de paradigma em curso, Casalta Nabais, ao analisar o atual procedimento de execução fiscal português, leciona que a execução tramita perante a administração tributária (nos serviços de finanças do domicílio ou sede do devedor ou da situação dos bens e, em parte, nos Tribunais tributários de 1ª instância): “Nos termos do artigo 151º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (Decreto-Lei n. 433/99, de 26 de outubro), cabe a estes decidir os embargos, a oposição, incluindo quando incida sobre os pressupostos da responsabilidade subsidiária, a graduação e verificação dos créditos e as reclamações dos actos materialmente administrativos praticados pelos órgãos da administração tributária em sede de execução fiscal. Cabendo, por conseguinte, à administração tributária a prática de todos os demais actos, designadamente a instauração da execução, a citação dos executados, a reversão da execução contra terceiros, a penhora dos bens, a venda dos bens penhorados, a anulação da venda, a anulação da dívida, a extinção da execução, etc.” (Direito fiscal, 2. ed., Coimbra: Almedina, 2003, p. 246).

19

Segundo João Lace Kuhn27, a decisão do iudex, tal qual se verifica hoje no

processo ordinário, era uma exortação ao devedor/réu para cumprir o julgado no prazo de

trinta dias da decisão, somente após, tal qual hoje sucede com o trânsito em julgado,

poderia o autor promover a execução do seu título, para ver satisfeito o direito.

E a execução ocorria tão-somente no âmbito privado, responsabilizando-se o

credor pela realização dos atos tendentes à satisfação do seu direito, todavia, estando

sempre vinculado ao texto normativo, e sob a supervisão do iudex privatus.28

Portanto, sob a nossa ótica, o simples fato de ao credor haver sido conferido o

cumprimento dos atos executivos não se traduziu no exercício da autotutela por parte do

mesmo, uma vez que deveria sempre atuar nos estritos limites do permissivo legal, sendo a

lei a dosagem permitida da sua atuação.

Dessa forma, ao submeter o antigo regime da autotutela aos estritos limites da lei,

pode-se afirmar que a superação da vindicta privata encontrou supedâneo no avanço

político-social havido na correlação sociedade e direito, isto é, na credibilidade alcançada

por este, a ponto de assumir uma função ordenadora, na busca da pacificação social e do

bem comum.

De fato, inegavelmente o direito foi paulatinamente assumindo a função de

coordenar eficazmente os interesses que se manifestam na vida social, de modo a organizar

a cooperação entre as pessoas e a composição dos conflitos que se verificavam entre os

seus membros.

27 João Lace Kuhn, O princípio do contraditório no processo de execução, Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 1998, p. 36. 28 Ultrapassados os períodos arcaico e clássico, que reunidos formam a fase conhecida por ordo iudiciorum

privatorum, veio outro “que se caracterizou pela invasão da área que antes não pertencia ao pretor: contrariando a ordem estabelecida, passou este a conhecer ele próprio do mérito dos litígios entre os particulares, proferindo sentença inclusive, ao invés de nomear ou aceitar a nomeação de um árbitro que o fizesse. Esta nova fase, iniciada no século III d.C., é, por isso mesmo, conhecida por período da cognitio extra ordinem. Com ela completou-se o ciclo histórico da chamada justiça privada para a justiça pública: o Estado, já suficientemente fortalecido, impõe-se sobre os particulares e, prescindindo da voluntária submissão destes, impõe-lhes autoritariamente a sua solução para os conflitos de interesse” (Antônio Carlos de Araújo Cintra; Ada Pellegrini Grinover; Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, cit., p. 26).

20

Ao pautar a sua atuação na harmonização das relações intersubjetivas, valendo-se

sempre dos valores do justo e do eqüitativo prevalentes em determinado momento e lugar,

naquilo que Ulpianus já apregoava como a “vontade constante e perpétua de atribuir a cada

um o que é seu”, a superação da autotutela, que teve lugar num primeiro momento, e a

superação da execução pessoal pela patrimonial, ocorrida num segundo momento, soa-nos

como o norte a ser perseguido pela humanidade, qual seja, o de viabilizar a máxima

realização dos valores humanos, com o mínimo de sacrifício e desgaste.

No entanto, somos impelidos a discordar da respeitável posição adotada por

Cândido Rangel Dinamarco que, ao referir que “os atos de sub-rogação exercidos no

processo executivo são, por sua própria natureza, substitutivos da atividade unilateral do

sujeito que se diz credor, a qual se resolveria em ilegítima autotutela e é punida por lei”,

relaciona a atividade executiva realizada pelo exeqüente como autotutela.

Em que pese todo o respeito ao posicionamento adotado pelo representante da

escola paulista de direito processual civil, consoante o que estudamos até o presente

momento, estamos convencidos de que a eventual realização de atos executivos por parte

do credor, desde que balizados nos limites da lei, em nada se concilia com a idéia de

autotutela, justamente em razão da exata dosagem previamente prevista no texto legal.

Portanto, para que pudéssemos vislumbrar qualquer relação da atividade do credor

contra o devedor com a autotutela, preliminarmente deveríamos verificar se a ação é

compatível com o ordenamento jurídico.

Assim, por exemplo, desde que autorizado a realizar a venda particular de

determinado bem, como no caso de um contrato de penhor, desde que o credor realize o

leilão nos estritos limites da lei, isso em nada se traduz em autotutela, justamente pela

vedação do livre-arbítrio na consecução do fim almejado pelo credor que, provavelmente,

prescindiria da realização de um leilão para, com o resultado, satisfazer o seu crédito

inadimplido.

Na sequência da publicização do processo executivo, no período pós-clássico

chega o direito romano à fase da cognitio extra ordinem, quando “já não era o credor, nem

um ou alguns credores, por autoridade própria ou autorizado pelo magistrado, quem

21

procedia à guarda ou à venda dos bens do executado. Disso eram incumbidos os órgãos

auxiliares do magistrado (chamados apparitores), correspondentes ao oficial de justiça dos

tempos modernos”.29

Note-se que tal sistema foi criado inicialmente para apreciar as causas

consideradas não civis, como as de natureza administrativa, que não se subordinavam à

regra do ordo iudiciorum privatorum.

O feito desenvolvia-se integralmente perante o magistrado, o que proporcionou o

incremento do caráter publicístico do processo, passando então o réu a ser chamado ao

processo através do magistrado, que detinha o poder da evocatio, que posteriormente

Constantino aprimorou na figura da litis denuntiatio, sempre por meio de órgão público.

Nessa fase, no procedimento conhecido por pignus in causa iudicati captum, os

apparitores apanhavam algum bem do devedor, suficiente para cobrir o débito, não mais

todo o patrimônio, e sobre esse bem se constituía um penhor em benefício do exeqüente –

pignus; se não ocorresse o pagamento até que decorridos dois meses da apreensão, o bem

seria vendido em hasta pública. Com o penhor nascia para o exeqüente um direito de

prelação sobre o objeto, de modo que, salvo resíduos, ele não poderia servir à satisfação de

outros credores (prior tempore postior iure).

É nesse período, quando já se conhecia a execução para a entrega de coisa certa,

de quantia certa contra devedor solvente e insolvente, que a execução toma a forma de um

verdadeiro processo jurisdicional. Surge mais tarde a chamada execução in natura,

destinada à entrega de coisa determinada, com a conversão em pecunia apenas em caso de

impossibilidade de execução direta.

Na fase derradeira do Império Romano do Ocidente, o Imperador Justiniano

incumbiu Tribuniano de sistematizar o direito, naquilo que posteriormente foi designado

por Godofredo, em 1583, como Corpus Iuris Civilis.

29 Cândido Rangel Dinamarco, Execução civil, cit., p. 49-50.

22

Uma vez elaborada a compilação, o Estado definitivamente assumia os atos

executivos “pela sua própria autoridade e pelos seus próprios meios”, graças à

consolidação do poder público e à gradativa mudança socioeconômica. A execução pessoal

persistiu apenas residualmente, mas com a característica de que o devedor era recolhido a

cárcere público, mas não mais privado, motivo pelo qual se pode aplicar à execução

justinianéia o conceito atual de execução forçada, qual seja, o de concreta “aplicazione

della sanzione a sequito dell’accertamento di una violazione dell’ordine giuridico”.30

1.2 A execução no direito intermédio

Com a queda do Império Romano do Ocidente, no século V d.C., muitas das

conquistas alcançadas no direito romano passaram ao esquecimento, tendo em vista que os

bárbaros invasores viviam predominantemente em estágio rude, predominando a força,

especialmente no meio jurídico, pois o Estado não tinha meios e muito menos autoridade

para interferir nas contendas envolvendo particulares.

Por isso, houve um regresso à prática da autotutela e à execução pessoal como

formas ordinárias de solução dos litígios, pois, a essa altura, o inadimplemento de uma

obrigação era tido como uma ofensa à pessoa do credor, e não mais uma infâmia contra o

julgado, como sucedia em Roma.

Contudo, adiante verificaremos que a índole prática e menos formalista trazida

pelos bárbaros, a partir da paulatina fusão com o conhecimento advindo do direito romano,

possibilitou o alcance de soluções úteis e de inegável alcance que, mutatis mutandis,

predominam até hoje nos países integrantes da família romano-germânica do direito.

Denotando o retrocesso havido após a invasão bárbara, na execução longobarda, o

“devedor respondia ainda com a sua pessoa pelas obrigações, podendo ser mantido em

cárcere privado pelo credor, à espera de pagamento; ficava ao critério do credor a escolha

da execução corporal ou patrimonial, sendo que, a assembléia dos homens livres (detentora

do poder de jurisdição) se limitava a apenas realizar um juízo incidental sobre a

30 Humberto Theodoro Júnior, Execução de sentença e a garantia do devido processo legal, cit., p. 113.

23

admissibilidade da execução em curso, sem que a penhora, que se fazia por autoridade

privada, tivesse por pressuposto qualquer condição ou autorização prévia do órgão

jurisdicional”.31

Ressalte-se que se em Roma a execução dependia de cognição prévia, entre os

bárbaros somente após a penhora podia o devedor pedir um pronunciamento por parte do

órgão jurisdicional32, que se limitava a verificar se o contrato (instrumenta) estava

formalmente constituído com cláusula executiva aceita pelo devedor e estabelecida perante

o magistrado competente (iudex chartularius).

Caso o credor não dispusesse do título, a assembléia dos homens livres poderia ser

invocada para ordenar que o devedor ofertasse uma declaração de vontade a esse respeito,

sob pena de perda da sua paz pública.

Os instrumenta guarentigiata afiguravam-se como confissões de dívida que

possibilitavam a execução forçada, sem a exigência de nova cognição e, indubitavelmente,

com a ulterior fusão do direito germânico com o direito romano, representaram um grande

avanço para a viabilização da transferência de riquezas.

Note-se que se caso lograsse comprovar a inexistência do crédito, o exeqüente

seria condenado a pagar ao executado a mesma quantia indevidamente cobrada, tal qual

atualmente sucede no direito brasileiro.

Por volta do ano 1000, com o aumento da fusão dos povos e o avanço do

comércio, estabeleceram-se populações urbanas, dando origem às chamadas “comunas”,

como unidades política, social e economicamente fortalecidas, o que viabilizou o

aperfeiçoamento das instituições jurídicas e o surgimento de legislações comunais, que

proporcionaram o crescimento da autoridade, a mitigação de sanções corporais contra o

31 Cândido Rangel Dinamarco, Execução civil, cit., p. 56. 32 Ao analisar a recente reforma havida no processo de execução português, Paula Costa e Silva, ao

reconhecer que houve um alargamento no leque de situações em que o executado só tem contato e, consequentemente, conhecimento da execução após a concretização da penhora, lamenta que o legislador não tenha levado até o fim esse princípio de reserva de execução, quando se verifique receio da perda da garantia patrimonial, caso o executado seja citado antes de efetuada a penhora (A reforma da acção executiva, 3. ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 19).

24

devedor, com a substituição do cárcere privado pela prisão em cárceres públicos, às

expensas do credor.

A partir da evolução política das “comunas” e por uma exigência de caráter social,

foram proibidos os atos de violência privada, sendo que somente no século XIII alcançou-

se o procedimento segundo o qual é inerente ao próprio ofício do juiz a efetivação dos atos

de invasão patrimonial, em que consiste a execução forçada, até a final satisfação do

credor.

A execução deveria ser mero prosseguimento do processo após a condenação

(officium judicis), e o seu exercício independeria da propositura de uma nova ação pelo

vencedor.33

A citação do devedor teria tão-somente lugar após ultimada a constrição do bem

objeto da execução forçada. Se a execução fosse lastreada num título extrajudicial

(instrumenta), o devedor deveria ser citado logo no início do processo, e posteriormente

teria lugar uma cognição sumária, com possibilidade de defesa e de decisão ao fim: já se

está diante do chamado processus sumarius executivus.

A essa altura, os atos executivos eram realizados por intermédio de executores,

restaurando-se, por conseguinte, “aquele estágio de publicização atingido no processo

romano extra ordinem e instituído o sistema que, em linhas gerais, haveria de subsistir até

os tempos modernos, com a feitura de avaliação, publicação de editais e venda do bem pela

melhor oferta, restituindo-se ao executado a diferença que eventualmente lhe aproveitasse

entre o valor do débito e o alcançado na alienação judicial”.34

33 A chamada execução de ofício foi objeto do Projeto de Lei n. 4.497/2004, todavia, ao término dos

trabalhos legislativos, não integrou o quadro da chamada execução por título judicial, atualmente reputada como “cumprimento da sentença” pela Lei n. 11.232, de 22 de dezembro de 2005, vez que no Brasil compete ainda ao vencedor, por meio de requerimento endereçado ao juízo a quo, a iniciativa para que se inicie tal execução ou cumprimento. Entretanto, convém destacar que, segundo Athos Gusmão Carneiro, o idealizador da reforma havida no Brasil, para a superação do processo formalista, demorado e sofisticado, realizado de forma autônoma, réplica da actio iudicati do direito romano, a reforma contempla um “parcial retorno aos tempos medievais, mediante a restauração do bom princípio de que sententia habet paratam executionem” e o parcial retorno à execução per officium iudicis, na medida em que não mais se cogita da formação de um novo processo para o cumprimento da sentença (Novas reformas do Código de Processo Civil. Do cumprimento da sentença, conforme a Lei n. 11.232/2005. Parcial retorno ao medievalismo? Por que não?, Revista do Advogado, São Paulo, Associação dos Advogados de São Paulo, ano 26, n. 85, p. 13, maio 2006).

34 Cândido Rangel Dinamarco, Execução civil, cit., p. 63-64.

25

Consoante o que sucede até hoje no direito português, relativamente à proibição

do pacto comissório – que, sob a nossa ótica, foi recentemente foi relativizado em relação a

contratos de garantia financeira, consoante as disposições do Decreto-Lei n. 105/2004, de 8

de maio35 –, não podia o próprio exeqüente, em princípio, participar da licitação, mas na

ausência de licitantes, o bem lhe seria adjudicado.

Em França, por influência do direito consuetudinário, no século XVI outorgou-se

legislativamente a plena eficácia executiva às lettres obligatio ius e, por conseguinte,

unificou-se o processo executivo36, sem cognição, sendo a execução feita pelo sergent, que

se afigurava como um órgão da Administração, e não da Justiça, destituído de jurisdição e

que por isso mesmo não podia julgar da procedência ou improcedência da pretensão do

portador do título.

1.3 A evolução da ação de execução em Portugal

As coordenadas históricas que envolveram a gênese e o processo evolutivo da

ação de execução no direito português inegavelmente deixaram e continuam a deixar a sua

marca histórica no direito brasileiro, a par das suas exuberantes particularidades, sobretudo

a partir do século XIII, quando Portugal incorporou o substrato comum dos direitos

pertencentes à família romano-germânica do direito, acrescido do elemento cristão.

O processo evolutivo do direito português, embora sem pressupor um critério

homogêneo, segundo Almeida Costa, pode ser reduzido, desde os alvares da nacionalidade,

pouco antes dos meados do século XII, até à época presente, a três ciclos básicos, bem

35 O referido decreto-lei transpôs para a ordem jurídica portuguesa a Diretiva n. 2002/47/CE do Parlamento

Europeu e do Conselho, de 6 de junho, relativa aos acordos de garantia financeira, inserindo-se no âmbito de objetivos genéricos de limitação dos riscos sistêmicos inerentes ao funcionamento dos sistemas de pagamento e de liquidação de valores mobiliários. De fato, uma das novidades mais significativas do diploma em tela respeita ao contrato de penhor financeiro, e corresponde à aceitação do pacto comissório, em desvio da regra consagrada no artigo 694º do Código Civil português, que expressamente dispõe que “é nula, mesmo que seja anterior ou posterior à constituição da hipoteca, a convenção pela qual o credor fará sua a coisa onerada no caso de o devedor não cumprir”.

36 Tal unificação de procedimentos foi mantida no Código Napoleônico e influenciou largamente os países europeus. Inclusive, em Portugal não se diferencia a eficácia da sentença condenatória e dos títulos de crédito, contrariamente ao que ainda sucede no direito brasileiro, onde, mesmo após a reforma, permanece a dualidade de tratamentos.

26

distintos, com duração, perspectiva e significado muito diversos. São eles: a) período de

individualização do direito português; b) o período do direito português de inspiração

romano-canônica; c) o período de formação do direito português moderno.37

No que concerne especificamente ao objeto do nosso estudo, causa especial

interesse o período de inspiração romano-canônica que, iniciando-se em meados do século

XIII38, apenas se encerrou na segunda metade do século XVII, correspondendo-lhe a força

de penetração avassaladora do chamado ius commune.

Em meados do século XV, com o início da codificação oficial, as Ordenações

Afonsinas caracterizaram a independência, ao menos formal, do direito próprio do Reino

em face do direito comum, esse subalternizado ao posto de fonte subsidiária.

Contudo, o sistema jurídico português dos nossos dias tem seu começo em

meados do século XVII, coincidindo com o consulado do Marquês de Pombal, e se

consubstanciou a partir do advento da chamada Lei da Boa Razão, de 1769, e os Estatutos

da Universidade, de 1772.

Um marco histórico na linha evolutiva do direito português e, consequentemente

do processo de execução, foi que, desde Afonso III, a lei deixou de constituir uma fonte

esporádica e transformou-se no modo corrente de criação do direito, elaborada sem

necessidade do suporte político das Cortes, destacando-se a atenção dedicada à matéria de

processo, visto que, a essa altura, “a defesa da ordem jurídica tornou-se encargo exclusivo

do Estado, que aparece como titular único do ius puniendi”39, em oposição a todas as

manifestações de justiça privada ou autotutela do direito.

37 Mário Júlio de Almeida Costa, História do direito português, Coimbra: Almedina, 1989, p. 174. 38 Desde o início do século XIII, começaram a escassear as referências ao Código Visigótico nos documentos

portugueses, como reflexo de uma progressiva perda da sua autoridade e à medida que a legislação geral e a eficácia do direito romano-canônico se foram incrementando. De fato, com a redescoberta do Corpus Iuris Civilis e o impulso dado por Irnério ao seu estudo na Escola de Bolonha, o recém-criado Reino de Portugal, feudatário da Santa Sé, encaminhou estudantes e procurou atrair mestres para disseminar o conhecimento e a aplicação da obra justinianéia às matérias temporais. No entanto, a recepção do direito justinianeu em Portugal ocorreu de forma progressiva e morosa ao longo do século XIII, quando houve uma paulatina penetração das normas e da ciência do direito romano com o canônico, com progressiva substituição do empirismo que predominava.

39 Mário Júlio de Almeida Costa, História do direito português, cit., p. 265-266.

27

Nas Ordenações Afonsinas, mantendo a tradição que, conforme estudado, remonta ao Corpus Iuris Civilis, a execução era estatal40, realizada com base em sentença, tendo em vista que o direito das Ordenações ignorou os títulos executivos extrajudiciais41, que somente foram introduzidos no ordenamento jurídico do país quando da edição do Código de Processo Civil de 1876, ou seja, após a independência do Brasil.

Nas Ordenações Manoelinas, a execução das sentenças era feita ex officio iudicis,

sendo que alguns negócios (aqueles que no direito medieval habent paratam executionem) conduziam a uma ação cognitiva sumária designada assinação de dez dias, que vigorou também no Brasil após as Ordenações, e que, pela doutrina geralmente é assimilada à actio iudicati romana.42

O mesmo regime das execuções previsto nos diplomas jurídicos antecessores

também foi mantido nas Ordenações Filipinas, inclusive no tocante à “assinação de dez dias para as dívidas contraídas mediante escritura pública, ou alvarás, ou dotes, ou mesmo para as sentenças, quando o condenado houvesse mudado de domicílio, ou tivesse bens penhoráveis fora do território do juiz que houvesse proferido a decisão”.43

A ação executiva, que era um processo autônomo face ao de conhecimento, era

realizada pelo órgão jurisdicional, sendo competente em geral o juiz que tivesse julgado a causa em primeira instância, regra que ainda permanece vigente no Código de Processo Civil brasileiro (art. 575 do CPC).44

40 Sob a influência do direito germânico, continuava-se a admitir a prisão do devedor, que era mantido em

cárcere público, caso não cumprisse a obrigação de natureza infungível; em regra, após a sentença, todavia, aboliu-se a tradição visigótica de possibilitar a penhora do devedor, que se submetia à escravidão.

41 Em Espanha, o juicio sumario ejecutivo, lastreado em título executivo extrajudicial (instrumenta), remonta ao ano 1360, quando passou a ser utilizado em Sevilha, que à época era um importante centro comercial e necessitava de instrumentos seguros e credíveis pela sociedade e que possibilitassem a pronta recuperação dos créditos, bem como a transferência de riquezas.

42 José Alberto dos Reis, Processo de execução, Coimbra: Coimbra Editora, 1957, p. 27. 43 Cândido Rangel Dinamarco, Execução civil, cit., p. 70. 44 José Alberto Reis, ao comentar o artigo 90º do Código de Processo Civil português de 1939, sublinha que a

competência para a execução do título judicial era do tribunal de 1ª instância em que a causa foi julgada para a tramitação da execução (atração do foro executivo pelo foro declarativo), vez que seria mais vantajoso que a execução se fizesse estando à vista o próprio título executivo (Código de Processo Civil anotado, 3. ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1948, reimpr. de 2004, p. 230). Com a reforma introduzida pelo Decreto-Lei n. 38/2003, de 8 de março, verificou-se a substituição, quanto à execução de título judicial, do princípio da coincidência da competência declarativa com a competência executiva, em prol de uma coincidência apenas territorial. “Se antes da reforma, o tribunal que proferia a sentença condenatória seria o tribunal que faria a execução, o que se estabelece agora é que será sempre um tribunal do mesmo lugar em que a causa tenha sido julgada, tribunal que poderá ser um juízo de execução ou, na sua inexistência, o próprio tribunal que proferiu a sentença” (Rui Pinto, A acção executiva depois da reforma, Lisboa: Lex, 2004, p. 54).

28

A penhora era realizada por tabelião ou escrivão, se o importe da dívida passasse

de mil-réis, ou pelo porteiro, em caso contrário (Ordenações, L. 3, T. LXXXIX, pr.).

Não havia avaliação dos bens penhorados45, após a penhora tinham lugar os

pregões e finalmente a alienação pela maior oferta. Existia a possibilidade de adjudicação

do bem ao credor, desde que concorresse cobrindo os lances oferecidos, bem como

admitia-se a remição da dívida pelo devedor.

A execução específica iniciava-se também por citação, sendo que o executado

tinha o prazo de dez dias para entregar a coisa, e uma vez ultrapassado o prazo sem entrega

e sem embargos, a coisa era retirada imediatamente do poder da parte condenada, sem mais

para isso ser citada, entregando-se, em seguida, o bem ao credor.

Indubitavelmente, a partir da abordagem histórica do processo executivo,

constatamos que foi da tradição portuguesa – como latina em geral, à exceção da França –

o juiz guardar a direção formal do processo.

Por conta disso, compartilhamos do entendimento de José Lebre de Freitas,

quando afirma que “a jurisdicionalização deste processo é tida como uma aquisição

democrática: o juiz é nele o guardião dos direitos individuais, o garante – poderá dizer-se –

da própria garantia da norma jurídica, visto que é a garantia da norma jurídica, na

perspectiva subjectiva de quem ela tutela, que está fundamentalmente em causa no

processo executivo”.46

45 Na vigência das Ordenações Filipinas, seguindo a tendência evolutiva da execução em Portugal, a Lei de

20 de junho de 1774, a fim de limitar a agressão patrimonial aos limites estritos do necessário, instituiu a avaliação dos bens penhorados e a impossibilidade, em sede da primeira hasta pública, de arrematação do bem penhorado por valor abaixo do avaliado; sendo adjudicado ao exeqüente, em caso de ausência de licitantes.

46 À guisa de contraposição ao regime exclusivamente jurisdicional de índole latina, Lebre de Freitas nos informa que em outro extremo encontramos a Suécia, país que conta com um serviço administrativo (o Serviço Público de Cobrança Forçada) que é encarregado da execução e só em caso de litígio é que se recorre ao juiz. Os atos executivos praticam-se fora do tribunal, tendo o serviço administrativo que os pratica acesso a grandes bases de dados que fornecem toda a informação útil sobre o devedor, tornando mais fácil a penhora. Acrescenta o processualista que “outros países há que, não conhecendo um sistema tão radical, tão pouco têm o sistema tradicional de direcção do processo pelo juiz. É o caso da França, da Bélgica, do Luxemburgo, da Holanda, da Grécia ou da Escócia. Ao huissier, na designação francesa, cabe, nomeadamente, efectuar a penhora de bens móveis e de créditos e vender os primeiros. Contratado pelo exeqüente, é, porém, de nomeação oficial e considerado um funcionário público. Solicita informações ao executado, recorre ao Ministério Público quando carece de informações que, por si, não consegue obter (entre elas, as relativas às contas bancárias e à entidade empregadora do executado), desencadeia a hasta pública quando o executado não vende, num prazo curto de que dispõe para o efeito, os bens móveis

29

Dando um salto na análise da evolução do processo de execução português,

verificamos que, diante da ineficácia do quadro processual emoldurado em 1939, e visando

assegurar a concreção do direito declarado no título judicial ou extrajudicial, no bojo da

reforma processual iniciada a partir da metade dos anos 90 do século passado, iniciou-se a

desjudicialização de diversos atos que anteriormente não discutia serem inerentes à reserva

de jurisdição e do juiz.47

Além do advento da ação de injunção, houve a inserção no ordenamento jurídico

do país da figura do “agente de execução”, frutos de uma audaciosa estratégia de

reorganização judiciária, que irremediavelmente abriram caminho, ainda que longo e

sujeito às marchas e contramarchas da história, para a flexibilização da tradição secular do

monopólio estatal no processo de execução.

O Decreto-Lei n. 38/2003 de 8 de março, que entrou em vigor em 15 de setembro

de 2003, representa, a nosso ver, um marco na mudança de paradigma do processo de

execução no direito luso-brasileiro, sobretudo porque viabilizou a desjudicialização dos

atos típicos do processo de execução.48

Conforme assevera Paula Costa e Silva49, “até à reforma, todos os actos de

execução deviam ser praticados ou pelas partes ou pelo tribunal”, todavia, no presente

penhorados e é responsável, não só perante o exeqüente, mas também perante o executado e terceiros. (José Lebre Freitas, Aspectos duma apreciação geral do anteprojecto de reforma do processo executivo, in PORTUGAL. Ministério da Justiça. Gabinete de Política Legislativa e Planeamento, Reforma da acção executiva: trabalhos preparatórios: Conferência de Coimbra (29 de junho de 2001), Conferência realizada em 29 de junho de 2001 na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Lisboa: Gabinete de Política Legislativa e Planejamento, 2001, v. 3. p. 9-16).

47 Consoante Abrantes Geraldes, já antes do advento do Decreto-Lei n. 38/2003, que aperfeiçoou o sistema, o Decreto-Lei n. 269/98, de 1º de setembro, foi assaz relevante, pois, “para além da modificação do regime da injunção, introduziu uma nova forma de processo especialmente destinado a servir a cobrança de dívidas contratuais de valor não superior à alçada do tribunal de 1ª instância. Esta nova forma processual, além de permitir que, na ausência de oposição, o juiz se limite a atribuir força executiva à petição inicial, introduz medidas inequivocamente simplificadoras de tramitação processual e potenciadoras de uma efectiva aceleração (...).” (António Santos Abrantes Geraldes, Temas da reforma do processo civil, cit., v. 1, p. 45).

48 Segundo Teixeira de Sousa, “a Reforma da acção executiva foi iniciada pela Lei n. 2/2002, de 2/1, que autorizou o Governo a legislar sobre o regime jurídico da acção executiva e o estatuto da Câmara dos Solicitadores. Esta autorização legislativa caducou com a cessação de funções do XIV Governo Constitucional (cfr. art. 165º, n. 4, CRP), mas foi substituída pela autorização concedida pela Lei n. 23/2002, de 21/8. Foi esta autorização que possibilitou a elaboração do principal diploma da Reforma da acção executiva, que é o Decreto-lei n. 38/2003, de 8/3 (rectificado pela Declaração de Rectificação n. 5/2003, de 30/4), entretanto alterado pelo Decreto-Lei n. 199/2003, de 10/9 (rectificado pela Declaração de Rectificação n. 16-B/2003, de 31/10)” (Miguel Teixeira de Sousa, A reforma da acção executiva, Lisboa: Lex, 2004, p. 12).

49 Paula Costa e Silva, A reforma da acção executiva, cit., p. 13.

30

momento, é ao agente de execução (solicitador) que compete “a realização de todas as

diligências do processo de execução, nestas se incluindo citações, notificações,

publicações, actos de penhora, venda e pagamento (art. 808-1 e 6), devendo estas funções

ser exercidas sob o controlo do juiz de execução (art. 808-1), de tal forma que agora o

Tribunal só intervém quando é de todo impossível negar a natureza jurisdicional do acto a

praticar”.

No entanto, concordando com José Lebre de Freitas, convém esclarecer que antes

da reforma, embora muito limitadamente, a intervenção do tribunal era dispensada em

alguns atos do processo executivo, quais sejam, “a venda extrajudicial só carecia da

intervenção do tribunal para a determinação inicial da modalidade a seguir e do valor-base

dos bens a vender (anterior art. 886-A), bem como para os posteriores depósito do preço

(anteriores arts. 897, 905-4 e 906-2) e ordem de cancelamento dos registos respeitantes aos

direitos reais que caducam com a venda (anterior art. 888); quanto à administração dos

bens pelo depositário judicial (art. 843), tinham naturalmente lugar fora do tribunal”.50

Note-se que, conforme dispõe a atual redação do artigo 465º do Código de

Processo Civil português, o processo executivo comum segue forma única, suplantando o

regime anterior, quando vigoravam duas formas de execução, a ordinária e a sumária,

sendo que a primeira se fundava em título executivo extrajudicial e a segunda em sentenças

que condenassem em obrigações ilíquidas, cuja liquidação não dependesse de simples

cálculo aritmético. Portanto, o critério determinativo da forma do processo executivo

comum “não radicava no valor da causa, outrossim, na espécie do título que servia de base

à execução”.51

Convém ressaltar que no bojo da reforma da ação executiva em Portugal também

se enfrentou uma das grandes dificuldades sentidas pelos operadores do direito, e que por

vezes se revela motivo de angústia, aflição e de instabilidade àquele que se apresenta como

credor, qual seja a inexistência de um cadastro que previamente lhe permitisse conhecer da

viabilidade ou não da propositura da ação de execução.

50 José Lebre de Freitas, A ação de execução: depois da reforma, cit., p. 28. 51 António Montalvão Machado; Paulo Pimenta, O novo processo civil, 6. ed., Coimbra: Almedina, 2004, p.

57.

31

A desjudicialização de atos executivos, encampada na reforma havida veio acompanhada de outras medidas tendentes a proporcionar maior eficácia à execução.

De fato, consoante sublinhado por Paula Costa e Silva52, a reforma também impôs

a criação de um registro informático de execuções, que é atualizado diariamente pela secretaria e sem despacho que a autorize, do qual devem constar, dentre outras informações, a identificação do executado, dos bens penhorados, o rol de execuções findas, pendentes, e as suspensas por falta de bens penhoráveis.

Considerando que o registro conterá dados pessoais, “prevê-se que a respectiva

consulta seja apenas deferida irrestritamente ao titular dos dados e a magistrado judicial ou do Ministério Público. Qualquer outro sujeito que pretenda consultar o registo tem de fazer prova da existência de uma ligação especial com o titular dos dados (assim sucede com o mandatário constituído nos autos, com pessoa que exiba título executivo contra o titular dos dados e pretenda consultar o registo antes de propor a execução, com pessoa que demonstre ter obtido o consentimento do titular dos dados), ou do exercício das funções na execução (v.g., o agente da execução designado, para que esse acesso lhe seja deferido)”. Portanto, na esteira das lições de Miguel Teixeira de Sousa, “os órgãos da execução são o agente de execução (art. 808º) e o juiz de execução (art. 809º)”.53

Além disso, alargou-se o leque de oportunidades em que pode o exeqüente pedir a

chamada reserva de execução, ou seja, em que pode requerer a dispensa de citação prévia com fundamento em receio de perda da garantia patrimonial (note-se o retorno à solução processual praticada no direito intermédio), estabelecendo inexorável analogia entre o conhecimento dessa pretensão e a providência cautelar de arresto.54

52 Paula Costa e Silva, A reforma da acção executiva, cit., p. 18. 53 Miguel Teixeira de Sousa, A reforma da acção executiva, cit., p. 47. 54 A opção legislativa de o executado ser citado antes da penhora somente nos casos previstos em lei foi

objeto de crítica por parte de Paula Costa e Silva que, ao analisar o artigo 812-B/2 do Código de Processo Civil português, lamentou que o legislador não tenha levado até o fim o princípio de reserva de execução “quando se verifique receio de perda da garantia da penhora” (A reforma da acção executiva, cit., p. 19). A crítica suscitada ganha relevo quando nos deparamos com a evidência de que, no artigo 870º do anteprojeto de reforma, estava previsto, em qualquer processo executivo, o diferimento do contraditório (a possibilidade de eventual oposição por parte do executado) para um momento concomitante ou ulterior ao da penhora, o que, sob a ótica de Carlos Lopes do Rego, à época, Procurador Geral Adjunto do Tribunal Constitucional, seria “dificilmente compatibilizável com o princípio constitucional da proibição da indefesa e com a garantia do processo eqüitativo que o Tribunal Constitucional vem reiteradamente afirmando” (Conferência de Coimbra (29 de junho de 2001): intervenção, in PORTUGAL. Ministério da Justiça. Gabinete de Política Legislativa e Planeamento, Reforma da acção executiva: trabalhos preparatórios: Conferência de Coimbra (29 de junho de 2001), Conferência realizada em 29 de junho de 2001 na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Lisboa: Gabinete de Política Legislativa e Planejamento, 2001, v. 3, p. 33).

32

De acordo com a atual enunciação da cláusula geral de reserva de execução

portuguesa prevista no artigo 810-3-f do Código de Processo Civil, o exeqüente pode pedir

a dispensa de citação prévia nos termos do n. 2 do artigo 812-B do mesmo diploma

processual civil, que se limita a prever que, nas execuções em que haja despacho liminar,

bem como naquelas em que seja demandado o devedor subsidiário, pode o exeqüente

requerer a dispensa de citação prévia, desde que haja risco de perda da garantia

patrimonial. Portanto, quedaram excluídas as execuções que não admitem liminar e que

não são instauradas contra o devedor subsidiário.

1.3.1 O agente de execução

Considerando que o objeto do estudo alude à viabilidade ou não de se

desjudicializar os atos da execução hipotecária, ou seja, de se refletir acerca da

desnecessidade da atuação do agente judicial no âmbito da realização de tal garantia real,

entendemos ser de relevo abordar, mesmo que de forma perfunctória, a nova figura

encampada pelo ordenamento jurídico português, qual seja, a do agente de execução.

Indubitavelmente, ao reconhecer a figura do agente de execução em seu

ordenamento jurídico, Portugal, inserido num contexto maior, qual seja, o da União

Européia, realizou uma opção legislativa, em um contexto que possibilitava diferentes

soluções para a desjudicialização do processo de execução, mesmo que de forma parcial.

Dentro desse espectro das opções legislativas, foram analisados precipuamente o

modelo sueco que, através de um serviço administrativo especializado, prescinde do

tribunal e assegura o processo de execução, e genericamente é seguido nos países nórdicos,

e o sistema do huissier55 de justiça, que vigora, entre outros países, na França, Bélgica,

Holanda, Suíça, Grécia, Luxemburgo, Polônia, Eslováquia, Romênia, Hungria e que está

para ser implementado em países como a República Checa, Lituânia, Bulgária e Albânia.56

55 Cuja tradução para o português poderia ser “porteiro do tribunal”. 56 José Carlos Resende, Conferência de Coimbra (29 de junho de 2001): intervenção, in PORTUGAL.

Ministério da Justiça. Gabinete de Política Legislativa e Planeamento, Reforma da acção executiva: trabalhos preparatórios: Conferência de Coimbra (29 de junho de 2001), Conferência realizada em 29 de junho de 2001 na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Lisboa: Gabinete de Política Legislativa e Planejamento, 2001, v. 3, p. 67-72.

33

No que diz respeito à atuação do huissier de justice em França, segundo

Christophe Lefort57, eles são efetivamente considerados auxiliares da justiça e devem

pautar os seus atos nos estritos limites do permissivo legal, tratando-se de uma atuação em

que, consoante as disposições do artigo 18 da Lei de 9 de julho de 1991, se atribui somente

aos huissiers de justice a realização da execução forçada e as apreensões de bens para a

conservação.

Em Portugal, reconheceu-se ao agente de execução (solicitador)58, mesmo que sob

controle judicial a posteriori, a competência para a realização de todas as diligências do

processo de execução, nelas se incluindo citações, notificações, publicações, atos de

penhora, venda e pagamento (art. 808-1 e 6).

Até a reforma processual de 2003, tal qual ainda sucede no direito brasileiro, era

de competência exclusiva do juiz a direção de todo o processo executivo português.

O comando do artigo 265-1 do Código de Processo Civil português preceituava

que cumpria ao juiz “providenciar pelo andamento regular e célere do processo,

promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao seu normal prosseguimento”.59

57 Christophe Lefort, Procédure civile, Paris: Dalloz, 2005, p. 123. 58 Consoante José Lebre de Freitas, o agente de execução é um solicitador recrutado em concurso, preparado

para o exercício da função de solicitador de execução e inscrito na comarca do círculo judicial (preferindo a da execução e suas limítrofes), ou um oficial de justiça, mas este só na falta de solicitador de execução ou quando se trate de execução por custas (art. 808, ns. 2 e 3)”, em qualquer caso sujeitando-se a um regime de impedimentos, como os juízes, os peritos e os funcionários da secretaria (art. 121 do Estatuto da Câmara dos Solicitadores), e a algumas incompatibilidades (art. 120 do mesmo estatuto). (A reforma da acção executiva: agente de execução e poder jurisdicional, Themis, Lisboa, Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, ano 4, n. 7, p. 26-27, 2003).

59 A esse respeito, José Lebre de Freitas ressalta que a jurisdicionalização da ação executiva acarretava, no modelo de competência e direção exclusivas do juiz (agente judicial), “igualmente vigente em Espanha e Itália, o proferimento de numerosos despachos judiciais, que, na sua grande maioria, não constituíam actos de exercício da função jurisdicional. Com a reforma o modelo foi abandonado e, seguiu-se o exemplo de outros sistemas jurídicos europeus, optou-se pelo que o juiz exerce funções de tutela, intervindo em caso de litígio surgido na pendência da execução (art. 809-1-b), e de controlo, proferindo nalguns casos despacho liminar (controlo prévio aos actos executivos: arts. 809-1-a, 812 e 812-A) e intervindo para resolver dúvidas (art. 809-1-d), garantir a proteção de direitos fundamentais ou matéria sigilosa (arts. 833-3, 840-2, 842-A, 847-1, 848-3, 850-1, 861-A-1) ou assegurar a realização dos fins da execução (arts. 856-5, 862-A, ns. 3 e 4, 886-C-1, 901-A, ns. 1 e 2, 905-2), mas deixou de ter a seu cargo a promoção das diligências executivas, não lhe cabendo, nomeadamente, em regra (ao invés do que até então acontecia, ordenar a penhora, a venda ou o pagamento, ou extinguir a instância executiva. A prática desses actos, eminentemente executivos, bem como, em geral, a realização das várias diligências do processo de execução, quando a lei não determine diversamente, passaram a caber ao agente de execução (art. 808, ns. 1 e 6)” (José Lebre de Freitas, A ação de execução: depois da reforma, cit., p. 25-27).

34

No entanto, conforme referido, agora é ao agente de execução que incumbe a

tarefa de realizar os atos eminentemente executivos em nome do tribunal, sem prejuízo,

caso seja invocado, do subsequente poder geral de controle por parte do juiz.

Leciona José Lebre de Freitas que “tal como o huissier francês, o solicitador de

execução é um misto de profissional liberal e funcionário público, cujo estatuto de auxiliar

da justiça implica a detenção de poderes de autoridade no processo executivo. A sua

existência, sem retirar a natureza jurisdicional do processo executivo, implica a sua larga

desjudicialização (entendida como menor intervenção do juiz nos actos processuais) e

também a diminuição dos actos praticados pela secretaria. Não impede a responsabilidade

do Estado pelos actos ilícitos que o solicitador de execução pratique no exercício da

função, nos termos gerais da responsabilidade do Estado pelos actos dos seus funcionários

e agentes”.60

O regime jurídico do agente de execução está previsto na Portaria n. 946/2003, de

6 de setembro, que define que o agente é o escrivão de direito, titular da secção onde

tramita o processo de execução, no Decreto-Lei n. 88/2003, de 26 de abril, que aprovou o

Estatuto da Câmara dos Solicitadores, e na Portaria n. 708/2003, de 4 de agosto, que

estabelece a remuneração e o reembolso das despesas do solicitador de execução no

exercício da atividade de agente de execução.

Em continuidade, ao analisar o artigo 808º, n. 1 do Código de Processo Civil,

Miguel Teixeira de Sousa61 alude que “a competência para a prática das diligências

relativas ao processo de execução pertence, em regra, ao agente de execução, que, no

entanto, actua sempre sob o controlo do juiz de execução (cfr. também art. 809º, n. 1

proémio; art. 116º ECS)”, motivo pelo qual a competência do juiz de execução para a

prática de diligências no processo de execução deve ser considerada residual, perante a

competência do agente de execução e, independentemente do poder geral de controle do

processo que incumbe a esse juiz, aquela competência requer uma disposição legal

específica que a preveja.

60 José Lebre de Freitas, A ação de execução: depois da reforma, cit., p. 27-28. 61 Miguel Teixeira de Sousa, A reforma da acção executiva, cit., p. 47.

35

Questão crucial para o reconhecimento da viabilidade da competência funcional

do agente de execução é a que concerne à matéria de conhecimento oficioso, ou seja, que

poderá conhecer pela sua própria iniciativa.

A esse respeito, esclarece Miguel Teixeira de Sousa que por conhecimento

oficioso deve-se considerar as matérias que o agente poderá submeter à apreciação do juiz

de execução, que serão “todas as questões relacionadas com as diligências do processo de

execução (cfr. art. 808º., n. 1), mas não parece que possa suscitar a intervenção do juiz

quanto a outras questões além daquelas que o art. 811, n. 1, permite que sejam conhecidas

pela secretaria ou que o art. 812-A, n. 3, faculta que, não havendo despacho liminar, sejam

conhecidas pelo funcionário judicial”.62

Nesse sentido, além das diligências próprias do processo de execução (penhora,

venda e pagamento), também incumbe ao agente de execução a tomada de decisões que,

embora não se confundam com a resolução de um litígio, ou seja, que não envolvam a

função jurisdicional típica (dizer o direito e zelar pelo cumprimento do ordenamento

jurídico vigente), decerto resultarão numa necessária cognição, mesmo que superficial,

típica da natureza do próprio procedimento executivo.

Não é por outro motivo que compete ao agente de execução “avaliar a prova

documental que lhe é apresentada para demonstração de que a condição se verificou ou de

que o exequente efectuou ou ofereceu prestação (cfr. art. 804º, n. 1); deferir, se não houver

oposição do exequente, o requerimento do herdeiro para o levantamento da penhora sobre

bens próprios (cfr. art. 827º, n. 2); reduzir, segundo certos critérios, a penhora que foi

efectuada em várias contas bancárias de que o executado seja titular (cfr. art. 861º-A, ns. 3

e 4); deferir o requerimento de suspensão da instância apresentado pelo exequente e pelo

executado com base no acordo para o pagamento em prestações da dívida exequenda (cfr.

art. 882º, n. 1)”.63

Esclarece-se que, no que diz respeito à avaliação da prova documental, “sendo a

prova inteiramente documental, a verificação da condição ou da prestação é feita pelo

agente de execução; não sendo assim, a produção da prova tem lugar perante o juiz, que

62 Miguel Teixeira de Sousa, A reforma da acção executiva, cit., p. 47. 63 Ibidem, p. 49-50.

36

decidirá; se, porém, o juiz entender que deve ser ouvido o devedor, este é logo citado,

podendo contestar em aposição à execução”.64

Portanto, nos casos de execução sem despacho liminar, basta que, não se opondo

o executado à execução nem à penhora, não havendo embargos de terceiro nem reclamação

de créditos (art. 809-1-b), não sendo ao longo do processo suscitada a intervenção do juiz

(art. 809-1-c/d), nem ocorra nenhuma das situações em que ele deve por lei intervir,

inexoravelmente o procedimento terminará sem a intervenção do agente judicial.65

1.3.2 O juiz de execução

Conforme sublinhado, no direito português anterior ao Decreto-Lei n. 38/2003,

“cabia ao juiz a direcção de todo o processo executivo, em paralelismo com o que acontece

na acção declarativa, aplicando-se o artigo 265-1 sem especiais restrições: cumpria-lhe

providenciar pelo andamento regular e célere do processo, promovendo oficiosamente as

diligências necessárias ao seu normal prosseguimento”.66 Contudo, como vimos, na atual

moldura do processo executivo português, o juiz exerce “funções de tutela, intervindo em

caso de litígio surgido na pendência da execução, e de controlo, proferindo nalguns casos

despacho liminar (controlo prévio aos actos executivos) e intervindo para resolver dúvidas,

garantir a protecção de direitos fundamentais ou assegurar a realização dos fins da

execução, mas deixou de ter a seu cargo a promoção das diligências executivas”.67

Não é por outro motivo que, consoante dispõe o artigo 809º do Código de

Processo Civil, compete ao juiz de execução o poder geral de controle da execução, sendo

absolutamente pertinente a reflexão de Miguel Teixeira de Sousa, no sentido de que

“enquanto o agente de execução executa mas não decide, o juiz de execução decide mas

não executa”, atuando, por conseguinte, de forma separada, mas com funções

complementares.

64 José Lebre de Freitas; Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil anotado, Coimbra: Coimbra

Editora, 2003, v. 3, p. 248. 65Ibidem, v. 3, p. 277. 66 Ibidem, v. 3, p. 273. 67 Ibidem, mesma página.

37

A respeito da necessária articulação entre o labor desempenhado pelo agente de

execução – note-se que ao referirmos a figura do agente, também poderíamos alargar a

idéia para a figura do notário, ou de qualquer outro ente que porventura desempenhe uma

função análoga – e pelo juiz de execução, entendemos ser perfeitamente adequado atribuir

ao juiz o exercício de um poder geral de controle ex post sobre o processo executivo (art.

809º, n. 1, proêmio), bem como sobre o agente de execução.68

Outro aspecto que reputamos importante na atuação do juiz de execução é o que

concerne à sua função sancionatória, tendo em vista que é a ele que compete a aplicação de

multa àquele que, de forma temerária e injustificada, a qualquer momento reclame de atos

realizados pelo agente de execução ou insurja-se contra a execução.

Inexoravelmente, quando o artigo 809º, n. 2 do Código de Processo Civil dispõe

que pode o juiz aplicar multa quando o requerimento da parte seja manifestamente

injustificado, estamos diante do ato caracterizador da má-fé processual, “por negligência

grave (ou, eventualmente, dolo), subsumível, conforme os casos, na alínea a) ou na alínea

d) do artigo 456-1. A multa a aplicar contém-se entre 2 e 100 unidades de conta (art. 102

CCustas)”.69

Portanto, insistimos em afirmar que de nada adiantarão reformas processuais,

investimentos em equipamentos e formação de entes paralegais se o agente judicial não se

comprometer com os objetivos perseguidos pela sociedade, quais sejam, a realização de

justiça com efetividade e eficácia.

Um juiz descompromissado com o resultado do processo decerto permitirá o uso

de chicanas processuais por parte do devedor, e isso lamentavelmente colocará em causa a

própria viabilidade da reforma.70

68 Adverte Miguel Teixeira de Sousa que o “controlo do juiz de execução sobre os actos do agente de

execução pode ser exercido a requerimento de qualquer interessado, mediante a apresentação da respectiva reclamação perante aquele juiz (cfr. art. 809º, n. 1, al. c)”, sendo certo que “isto não obsta à iniciativa oficiosa do juiz de execução no exercício desse controlo, tanto mais que, como se estabelece no artigo 116º ECS, o solicitador de execução exerce as suas competências na dependência funcional do juiz de execução” (A reforma da acção executiva, cit., p. 61).

69 José Lebre de Freitas; Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil anotado, cit., v. 3, p. 275. 70 Para uma maior reflexão acerca da necessária atuação do agente judicial, ver: António Castanheira Neves,

O direito hoje e com que sentido?, Lisboa, Instituto Piaget, 2002.

38

Diante disso, no desempenho das suas funções de controle e de sanção, impende

ao juiz, para evitar a vulgarização da defesa do ofendido, o dever de utilizar os

instrumentos legais que lhes foram conferidos pelo legislador para coibir todos os desvios

que porventura sejam cometidos pelas partes e pelo agente de execução.

Aliás, a reflexão que ora se apresenta, por óbvio, como adiante veremos, também

terá lugar no controle da execução extrajudicial hipotecária.

2 A EXECUÇÃO DA GARANTIA HIPOTECÁRIA

2.1 O atual regime português

Tomando-se como referência o sempre oportuno entendimento de Antunes

Varela71, a hipoteca, face ao elevado grau de segurança que confere ao credor, bem como

por proporcionar um crédito pouco oneroso e facilidades de pagamento ao devedor, pode

ser considerada “a rainha das garantias das obrigações”. E a sua aplicação, inclusive no

direito português, mormente está relacionada com o crédito imobiliário72, viabilizando a

consecução de infindáveis contratos de massa.

Sob o ponto de vista do sistema adotado após a reforma do processo executivo

português em 2003, mais precisamente no que diz respeito à execução da garantia real da

hipoteca, mesmo que ainda submetida ao monopólio estatal73, tendo em vista o alto grau de

certeza e liquidez do título, atualmente já se admite inclusive a citação do devedor sem

despacho liminar (art. 812-7-c do CPC), ou seja, sem a prévia participação do agente

judicial.

Embora desde o advento do Código de Processo Civil de 1939 não exista em

Portugal um processo especial e autônomo para a execução hipotecária, o titular da

garantia satisfaz o seu direito por meio do processo comum, com as adaptações devidas,

quando está em causa a realização de uma garantia real.

Em Portugal, a penhora de bens imóveis, consoante dispõe o artigo 838º do

Código de Processo Civil, “sem prejuízo de também poder ser feita nos termos gerais do

71 João de Matos Antunes Varela, Constituição de hipotecas a favor de bancos prediais – Parecer, Colectânea

de Jurisprudência, t. 3, p. 46 e ss., 1991. 72 Maria Isabel Helbling Menéres Campos, Da hipoteca: caracterização, constituição e efeitos, Coimbra:

Almedina, 2003, p. 11. 73 Independentemente de a coisa, à luz do artigo 886º, ns. 1 e 3 do Código de Processo Civil, ser vendida

extrajudicialmente no âmbito de um processo judicial. A justificativa para a venda ocorrer sob o controle judicial, consoante o escólio de Manuel Henrique Mesquita, decorre da necessidade de “resguardar o devedor contra os abusos a que poderia dar origem a alienação do objecto da garantia, se ao credor fosse permitido realizá-la directamente. Com o mesmo objectivo (proteger o devedor) se proíbe, como é sabido, a convenção que atribua ao credor o direito de fazer sua a coisa onerada no caso de o devedor não cumprir” (Obrigações reais e ónus reais, Coimbra: Almedina, 1997, p. 77).

40

registo predial, a penhora de coisas imóveis realiza-se por comunicação electrónica à

conservatória do registo predial competente, a qual vale como apresentação para o efeito

da inscrição no registo”, sendo que, uma vez inscrita a penhora, “a conservatória do registo

predial envia ao agente de execução o certificado do registo e a certidão dos ónus que

incidam sobre os bens penhorados”.

Em que pese, como adiante veremos, sermos favoráveis à desnecessidade de

realização de penhora de bens imóveis hipotecados, reconhecemos que a solução adotada

após a reforma de 2003 em Portugal está adequada à sociedade contemporânea da

informação, vez que o processo deve, a passos largos, se socorrer dos instrumentos céleres

de comunicação entre os diversos entes para viabilizar a consecução do direito.

Ao revés disso, mesmo após a recente reforma na execução de títulos

extrajudiciais introduzida pela Lei n. 11.382, de 6 de dezembro de 2006, no Brasil ainda se

impõe ao exeqüente o dever de providenciar, para a presunção absoluta de conhecimento

por terceiros, a averbação de certidão de inteiro teor do ato de penhora no ofício

imobiliário (art. 659, § 4º do CPC). Isso, a nosso ver, se contrapõe à busca da celeridade e

da segurança que todos pretendem obter no processo executivo.

2.2 O projeto de execução extrajudicial hipotecária

português

Embora tenhamos verificado que no atual regime da execução hipotecária

portuguesa, em que pese ser judicial o procedimento, certos atos já foram delegados a

terceiros, e independentemente da inovação havida com a introdução da execução

conduzida precipuamente pelo agente de execução, impõe-se uma reflexão acerca dos

motivos que inviabilizaram a adoção de uma solução desjudicializante da execução

hipotecária em Portugal.

Conquanto rejeitada em virtude de motivos que adiante serão melhor esmiuçados,

o projeto de execução extrajudicial hipotecária portuguesa merece ser revisto em sede

41

acadêmica, pois é inevitável que carece de uma melhor abordagem, perante o necessário

diálogo com as soluções havidas há tempos em Espanha e no Brasil.

O Projeto de Lei autorizado de janeiro de 2001 regulava, em seus artigos 946º a

955º, a desjudicialização da execução hipotecária em Portugal74. Tal inovação, largamente

discutida em conjunto com outras que colidiam frontalmente com conceitos, como

retratado, enraizados há séculos no direito luso, foi muito questionada em diversos

colóquios relacionados com a reforma do processo de execução que ultimou-se em 2003, e

que não a encampou.

Com efeito, no que concerne especificamente à execução hipotecária, embora

proposta pelo XIV Governo Constitucional, não foi levada a cabo pelo XV Governo, que

entendeu por afastá-la, devido aos seus supostos aspectos de constitucionalidade duvidosa.

O então indigitado processo especial de execução hipotecária teria como âmbito

de aplicação a execução de obrigação, líquida ou liquidável por simples cálculo aritmético

e garantida por hipoteca sobre bem imóvel, baseada em sentença judicial ou documento

autêntico ou particular legalmente equiparado.

O procedimento correria perante a conservatória do registro predial da situação do

bem hipotecado, a partir do recebimento de um requerimento executivo que, além de ser

instruído com o próprio título executivo, conteria os seguintes elementos indispensáveis:

qualificação completa das partes, domicílio profissional do mandatário judicial, indicação

da forma de processo, do título e do fim da execução, exposição sucinta dos fatos que

fundamentam o pedido e a planilha de atualização e composição do débito.

A apreciação da admissibilidade do requerimento executivo e do documento que

instruiria o procedimento caberia ao conservador, designadamente no que toca à certeza e à

exigibilidade da obrigação. A esse propósito, Maria José Capelo75 afirma que a opção do

74 Em termos de sistematização do processo executivo, segundo José Lebre de Freitas, a execução hipotecária

estaria disposta de forma equivocada no anteprojeto, pois, ao invés de aparecer no capítulo da execução, deveria ter o seu lugar nos processos especiais, onde se continuou a tratar da execução de alimentos e de formas processuais mistas de declaração e de execução, havendo, à época, de ser inserida no âmbito da expurgação de hipotecas. (Aspectos duma apreciação geral do anteprojecto de reforma do processo executivo, cit., p. 15-16).

75 Maria José Capelo, Conferência de Coimbra (29 de junho de 2001): intervenção, in PORTUGAL. Ministério da Justiça. Gabinete de Política Legislativa e Planeamento, Reforma da acção executiva:

42

legislador em desvalorizar o papel do juiz na ação executiva não foi surpresa, posto que

durante “as jornadas sobre a execução de decisões judiciais, promovidas pela Association

Henri Capitant, na década de 80” já se criticava o excès de judiciaire que caracteriza a

execução das decisões judiciais, enaltecendo, por isso, as vantagens de uma

desjudicialização.

O requerimento inicial seria indeferido pelo conservador nas seguintes hipóteses:

i) quando não contivesse os referidos elementos fundamentais para a apresentação do

pedido, como por exemplo a falta de qualificação do executado ou do exeqüente; ii) a

hipoteca executada não esteja inscrita na conservatória; iii) quando o requerimento não

estivesse assinado, ou não estivesse redigido em língua portuguesa, ou não fosse

apresentado o título executivo ou fosse manifesta a insuficiência do título apresentado.

Além disso, a fim de evitar indesejáveis desvios de interpretação dos

requerimentos executivos, todos constariam de impresso de modelo aprovado por decreto-

lei, que também deveria ser integralmente respeitado, sob pena de indeferimento do

requerimento.

Note-se que do despacho que indeferisse liminarmente o requerimento executivo,

haveria recurso para o juiz de execução, cuja decisão seria irrecorrível.

Após o recebimento do requerimento executivo, o conservador verificaria se o

bem já se encontrava penhorado num processo de execução comum; sendo que, uma vez

verificada a anterior penhora do bem, o conservador remeteria o requerimento executivo

para o processo em que a penhora fosse anterior, valendo o requerimento como reclamação

do crédito.

Caso o bem não se encontrasse penhorado, o conservador procederia à inscrição

do processo no registro informático de execuções, justamente para evitar alegações de

desconhecimento e dilações desnecessárias em outras eventuais execuções envolvendo o

mesmo executado.

trabalhos preparatórios: Conferência de Coimbra (29 de junho de 2001), Conferência realizada em 29 de junho de 2001 na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Lisboa: Gabinete de Política Legislativa e Planejamento, 2001, v. 3, p. 18.

43

Por conseguinte, não havendo fundamentos legais que inviabilizassem o pedido

estampado no requerimento, o conservador procederia ao registro da penhora e promoveria

a afixação do auto de penhora na porta ou noutro local visível do imóvel penhorado, e faria

publicar um anúncio, cujo modelo seria normatizado através de portaria do Ministro da

Justiça. Além disso, o conservador efetuaria a citação do executado para proceder ao

pagamento do débito em 20 dias, com a expressa indicação de que, caso não o fizesse, se

executaria a hipoteca.

Também seriam citados os titulares de direitos reais de garantia inscritos sobre o

imóvel e as entidades referidas nas leis fiscais, com vista à defesa dos possíveis direitos da

Fazenda Nacional, sem prejuízo da eventual reclamação espontânea dos eventuais titulares

de direitos reais de garantia que não tivessem sido citados, que poderiam reclamar os seus

créditos até a transmissão dos bens penhorados.

Ressalta-se que no texto do projeto de lei alude-se à citação do executado por

meio de carta registrada com aviso de recepção, o que, no nosso entendimento, se aplicaria

aos demais interessados, que, conforme visto, a teor do mesmo projeto também seriam

citados.

Na esteira da desjudicialização dos atos tipicamente executivos – penhora, venda

e pagamento –, em caso de requerimento por parte do exeqüente ou do executado, caberia

ao conservador nomear depositário a si próprio ou pessoa por ele designada, salvo na

hipótese de o imóvel penhorado ser a casa de habitação do executado, caso em que ele

seria o depositário, ou quando o bem estivesse arrendado, hipótese em que o depositário

seria o próprio arrendatário76, ou no caso de o bem ser objeto de direito de retenção, caso

em que o depositário seria o retentor.

Segundo o texto do projeto em apreço, a desjudicialização dos atos executivos

cessaria nos casos de o executado deduzir oposição à execução ou à penhora, se fossem

deduzidos embargos de terceiro ou se fosse impugnado algum crédito reclamado. Nessas

76 Nesse caso, as rendas em dinheiro seriam depositadas em instituição de crédito, à ordem do conservador, à

medida que se venceriam ou se cobrariam. Caso o imóvel estivesse arrendado a mais de uma pessoa, de entre elas se escolheria o depositário, que cobraria a renda dos demais arrendatários.

44

hipóteses, o processo seria remetido ao tribunal competente, ficando na conservatória o

respectivo traslado, de modo a permitir o prosseguimento da execução.

A venda do imóvel teria lugar na própria conservatória, por propostas em carta

fechada, procedendo-se à sua publicação nos termos da venda feita em processo comum; o

valor base seria decidido por acordo das partes, ou, na falta dele, pelo conservador, sendo

que, na ausência de proponentes ou de aceitação das propostas, teria lugar a oitiva dos

interessados presentes, para posterior decisão de como deveria se realizar a venda do bem.

Uma vez adjudicado ao exeqüente ou ao credor reclamante que o tenha requerido,

ou ao comprador que efetivamente depositou o preço, do que seria elaborada ata, o

conservador emitiria título de transmissão do bem, do qual constariam as diligências

essenciais efetuadas no processo, bem com a eventual dispensa de depósito do preço e

isenção de obrigações fiscais. Emitido o título por parte do conservador, ele procederia

oficiosamente ao cancelamento das inscrições dos direitos que tenham caducado com a

venda.

Quando o produto da venda fosse insuficiente para o pagamento da dívida

exeqüenda, o conservador emitiria título em que constasse o valor da dívida remanescente,

que poderia ser objeto de processo comum de execução, na qual o executado, caso

houvesse sido citado na execução hipotecária, não seria novamente citado, mas apenas

admitido a opor-se à penhora.

No que diz respeito à entrega efetiva do bem, tanto o depositário quanto o

adquirente, caso tivessem dificuldade em tomar posse efetiva do imóvel, requereriam ao

conservador a remessa do processo ao tribunal de execução, a fim de nele ser judicialmente

ordenada a apreensão.

2.3 Dos problemas identif icados para a adoção da

execução hipotecária em Portugal

45

Conforme alhures relatado, entendeu o XV Governo Constitucional português,

quando da reforma da ação executiva, afastar aspectos de praticabilidade e

constitucionalidade duvidosas que haviam sido invocados quando da apresentação do

anteprojeto de reforma por parte do XIV Governo, de onde se destacou a tramitação das

execuções hipotecárias nas conservatórias de registro predial e a base de dados de pessoas

com patrimônio desconhecido.

De fato, deixando de lado os aspectos de índole política, que em termos de

reforma processual tendem a beneficiar as soluções próximas ao consenso, mister se faz

identificar aqui as razões ou os principais motivos que levaram parte considerável da

doutrina portuguesa a divergir acerca da viabilidade ou não da adoção da execução

hipotecária nos moldes preconizados no projeto de reforma.

E é justamente nesse diapasão que passaremos a abordar, sem ainda tecer

comentários profundos, as considerações de ilustres processualistas portugueses durante a

chamada Conferência de Coimbra, que teve lugar em 29 de junho de 2001, cujos

contributos dos eméritos especialistas que analisaram o projeto realizado pelo XIV

Governo, mas que, como visto, não foi encampado pelo que lhe sucedeu, foi publicado

pelo Gabinete de Política Legislativa e Planejamento do Ministério da Justiça de Portugal.

Durante a intervenção de Maria José Capelo, restou consignado que o projeto

português havia se inspirado provavelmente no regime espanhol, visto que, antes da

entrada em vigor da Ley 1/2000 de Enjuiciamento Civil, de 7 de janeiro, que pretendeu

regular unitariamente a execução forçosa, comum ou de garantia hipotecária, a lei

hipotecária previa tanto um procedimento sumário judicial como a possibilidade de uma

execução extrajudicial, esta a cargo do notário, sendo ambos os meios destinados a

executar bens hipotecados. Todavia, na aludida intervenção também se frisou que em

Espanha, “em torno da constitucionalidade da execução extrajudicial, suscitou-se um

grande debate, havendo muitas vozes que propugnavam que a actividade exercida pelo

notário consubstanciava uma agressão ao princípio da reserva de jurisdição”.77

77 Maria José Capelo, Conferência de Coimbra (29 de junho de 2001): intervenção, cit., v. 3, p. 28-31.

46

Por conseguinte, dever-se-ia problematizar se a desjurisdicionalização não

contenderia com o princípio da reserva de juiz, mesmo na hipótese de se respeitar uma

reserva mínima de jurisdição, ou seja, restringindo-se a intervenção judicial àqueles casos

em que há oposição. Outro aspecto mencionado foi o de que no regime espanhol, dentro do

contexto de proibição do pacto comissório, sancionado no artigo 1.859º do Código Civil

espanhol, admite-se a venda extrajudicial do bem perante o notário, o que não encontrava

correspondente respaldo em Portugal.

Hoje, contudo, a venda, após a introdução da reforma da ação executiva, ainda

que continue por propostas em carta fechada dirigidas ao tribunal, carece de ordem judicial

e por vezes é presidida pelo agente de execução, com ausência do juiz (arts. 876-3 e 901-

A-2). Diante da inovação havida, o fato de haver sido atribuída ao agente de execução a

capacidade de presidir a venda de bens para a satisfação do crédito exeqüendo, entendemos

que não se mostra insuperável a transmissão ao conservador ou a terceiros da tarefa de

alienar a garantia.78

Àquela altura, outro problema suscitado pela eminente processualista de Coimbra

dizia respeito ao controle da regularidade da instância quanto aos pressupostos processuais,

visto que a ocorrência de exceções dilatórias insupríveis ou sanáveis ficaria fora do alcance

do juiz, até o momento em que o executado suscitasse a sua apreciação. Portanto, estaria

derrogado o poder-dever do juiz providenciar, mesmo que oficiosamente, o suprimento da

falta de pressupostos processuais (arts. 265º, n. 2 e artigo 495º, ambos do CPC português).

78 Até a reforma, conforme Paula Costa e Silva, “o artigo 886-A/1 dispunha que a competência para a decisão

sobre a venda fosse tomada pelo juiz, que deveria proferir despacho ordenatório de venda, com a reforma passa a prever-se, no mesmo preceito legal, que seja o agente de execução, mediante decisão que é reclamável para o juiz da execução, a decidir sobre a venda”, sendo que “a modalidade de venda em que a respectiva realização depende de autorização judicial é a venda antecipada.” (A reforma da acção executiva, cit., p. 124). Segundo o escólio de José Lebre de Freitas, “a indicação da modalidade de venda cabe ao agente de execução, que se limita, porém, em regra, a verificar os requisitos de que a lei faz depender e em dois casos, previstos no artigo 886-A-2-a, tem possibilidade de escolha (entre a venda por negociação particular e a venda em estabelecimento de leilão, quando se frustre a venda de coisa móvel em depósito público; entre a venda por propostas em carta fechada e a venda por negociação particular, quando seja anulado o leilão, não haja outro estabelecimento de leilão na comarca e se trate de bem imóvel”. Adverte porém o processualista que “a venda por propostas em carta fechada constitui a forma normal da venda executiva de bens imóveis e de estabelecimentos comerciais de valor consideravelmente elevado (arts. 848-1 e 907-A-1), e a venda em depósito público a forma normal da venda executiva de bens móveis (arts. 848-1 e 907-A-1), constituindo as restantes formas excepcionais” (A ação de execução: depois da reforma, cit., p. 328).

47

Em continuidade, Maria José Capelo criticava a solução indicada no anteprojeto

em termos da legitimidade passiva, quando fossem penhorados bens alheios (onerados com

uma garantia real) aos do devedor.

Ao revés da faculdade prevista no anteprojeto, que viabilizaria ao credor optar

pelo chamamento ou do devedor ou do responsável pelo pagamento, ou de ambos,

sustentava a professora, em respeito ao princípio do contraditório, que deveria ter sido

imposta a citação conjunta do dono dos bens onerados e do devedor, tendo em vista que

isso proporcionaria a possibilidade de pagamento voluntário ou de oposição por parte

daquele contra quem é dirigida a obrigação de pagar, como também, em que pese de menor

amplitude, por parte daquele que é o titular dos bens onerados.

Por seu turno, Lopes do Rego, à época Procurador Geral Adjunto do Tribunal

Constitucional, reconheceu virtualidades na proposta de desjudicialização da execução

hipotecária, particularmente no que concerne à fase de venda dos bens, visto que o agente

poderia “eventualmente tomar decisões sobre a modalidade de venda, inclusivamente

sobre o valor dos bens, com a garantia de que, havendo reclamações ou litígios suscitados

pelas partes, haveria naturalmente uma reclamação ou um recurso para o juiz dessas

decisões”.79

Além de levantar dúvidas quanto à praticabilidade de se transferir às

conservatórias do registro predial uma tarefa para a qual não estariam vocacionadas e

preparadas, podendo inclusive o maciço incremento de trabalho prejudicar a eficiência do

objeto da prestação dos serviços notariais80, entendia Lopes do Rego que afigurar-se-ia

79 Carlos Lopes do Rego, Conferência de Coimbra (29 de junho de 2001): intervenção, cit., v. 3, p. 36-37. 80 A propósito da praticabilidade de se transferir às conservatórias a tramitação e a condução das execuções

hipotecárias, o notário Mouteira Guerreiro corroborou o entendimento de Carlos Lopes do Rego, ao salientar que “nas actuais circunstâncias, que conhecemos, as conservatórias não têm os recursos humanos necessários para assegurar a aplicação desta ideia do legislador. Não porque o conservador não esteja habilitado a qualificar a validade formal e substancial do título (e diga-se, o conservador exerce uma função jurisdicional com independência semelhante à que é própria do juiz), mas sim porque não tem meios de facto, designadamente uma secretaria de apoio, nem tempo, para poder dar cumprimento ao normativo em causa. E a implementação deste sistema, sem prévia dotação de meios às conservatórias, poderia dar lugar a graves atrasos não só no serviço normal dos registos como também nos destas execuções hipotecárias” (Mouteira Guerreiro, Reflexões no âmbito registral, in PORTUGAL. Ministério da Justiça. Gabinete de Política Legislativa e Planeamento, Reforma da acção executiva: trabalhos preparatórios: Conferência de Coimbra (29 de junho de 2001), Conferência realizada em 29 de junho de 2001 na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Lisboa: Gabinete de Política Legislativa e Planejamento, 2001, v. 3, p. 88-89).

48

problemática a articulação entre a tramitação do processo no tribunal e na conservatória,

tendo em vista que começaria num, para, em caso de oposição, ser transferido para o outro.

Nessa senda, a principal crítica formulada por Lopes do Rego se cingiu àquilo que

reputou a evidência de que nunca poderia ser transferida ao conservador uma tarefa

materialmente jurisdicional, seja no tocante à prolação do despacho liminar, ou no que diz

respeito à graduação de créditos reclamados, visto que não poderia ser devolvida a uma

entidade administrativa “a formulação de um juízo global sobre a hierarquização dos vários

créditos que estão reclamados em determinada execução, mesmo no caso desses créditos

individualmente não terem sido objecto de impugnação”.81

Portanto, embora tenha admitido uma desjudicialização do processo executivo

na fase da venda, o à época Procurador Geral Adjunto do Tribunal Constitucional

rechaçou a total desjudicialização do processo executivo nas fases liminar e da penhora82,

tendo em vista a imediata agressão patrimonial, que deveria passar “por um crivo do juiz

que elimine e deite fora aquelas execuções que não estão devidamente estruturadas, ou

que vá sanar de imediato deficiências, irregularidades ou excepções que inquinam a

acção executiva”.83

Assumindo posição diametralmente oposta, o advogado Armindo Ribeiro Mendes

sustentou, em relação ao problema da reserva de juiz em matéria de execução, que, àquela

altura, o ordenamento jurídico português já contemplava a tramitação das execuções fiscais

sem a presença de um juiz togado, conduzida pelo Chefe da Repartição de Finanças,

81 Carlos Lopes do Rego, Conferência de Coimbra (29 de junho de 2001): intervenção, cit., v. 3, p. 38. 82 Note-se que, em termos da participação do juiz no ato de penhora de um bem gravado por hipoteca, o

conservador Mouteira Guerreiro sustentou que se ultrapassasse a fase de penhora em casos que tais, pois “o credor hipotecário tem já, no momento em que intenta a execução, uma garantia real sobre o imóvel. Deste modo, é praticamente supérfluo que decorra, no processo executivo, a fase precisamente destinada a conseguir que, relativamente ao prédio hipotecado e antes poder ser efectuada a venda coactiva, tenha que ser constituída sobre o mesmo um novo direito – o da penhora – como se não existisse já uma anterior garantia, igualmente de natureza real, a sujeitá-lo ao pagamento do crédito”. Tudo isto se nos afigura desnecessário. De facto, “o poder sobre a coisa, a sequela própria do direito real, ficou a existir com o registo da hipoteca. Mais: a debatida característica de o credor poder ser pago preferencialmente pelo valor da coisa também se verifica com a hipoteca. No caso de cobrança coerciva do crédito, o grau prioritário do direito acha-se definido pela hipoteca. A ulterior penhora não lhe vai acrescentar nem retirar nada. E também não há uma maior ou menor garantia para o credor ou para terceiros”. Portanto, “existindo hipoteca e posterior penhora sobre um prédio, para garantia do cumprimento da mesma obrigação, a graduação do crédito é dada pela ordem prioritária da hipoteca e não pela penhora”, razão pela qual, a penhora pode ser considerada consequência da hipoteca, sendo que seqüela é fruto da hipoteca, e não da penhora (Mouteira Guerreiro, Reflexões no âmbito registral, cit., v. 3, p. 90).

83 Carlos Lopes do Rego, Conferência de Coimbra (29 de junho de 2001): intervenção, cit., v. 3, p. 38.

49

todavia sendo assegurado o recurso ao juiz, quando da existência de questões jurídicas

controvertidas.

Nessa linha de pensamento, o que de fato deveria ser assegurado “é a

possibilidade do juiz ter a última palavra quando estejam em causa direitos fundamentais,

quando estejam em causa litígios”, razão pela qual a reserva do juiz não vai a um ponto tal

“que impeça actos materiais de execução feitos pelos conservadores ou oficiais de

execução. Agora, quando há controvérsia, obviamente, aliás, como na execução fiscal, tem

de manter-se intransigentemente a reserva do juiz”84, o que não estava repudiado no

anteprojeto.

Importante intervenção decorreu de Ferreira Girão, à época Presidente da

Associação Sindical dos Juízes Portugueses, que asseverou a satisfação da Associação em

razão de o anteprojeto, na sua essência, refletir os anseios da instituição que representava,

posto que defendiam que a manutenção da ação executiva nos tribunais, “com o juiz a

deter a direcção da totalidade do processo, seria persistir numa das principais causas do

congestionamento processual e no desperdício da formação dos juízes em tarefas

meramente burocráticas, com o concomitante prejuízo da actividade jurisdicional”, vez

que “os juízes não podem continuar absorvidos por 75% dos processos que são

execuções”.85

Sob a sua ótica, tal qual defendido por Armindo Ribeiro Mendes, a intervenção

jurisdicional somente teria lugar nas situações em que fosse deduzida oposição por parte

dos executados.

Outro aspecto de suma importância, que diz respeito ao acréscimo de poderes ao

terceiro não juiz togado – contrariamente a muitos dos entendimentos até o momento

84 Armindo Ribeiro Mendes, Conferência de Coimbra (29 de junho de 2001): intervenção, in PORTUGAL.

Ministério da Justiça. Gabinete de Política Legislativa e Planeamento, Reforma da acção executiva: trabalhos preparatórios: Conferência de Coimbra (29 de junho de 2001), Conferência realizada em 29 de junho de 2001 na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Lisboa: Gabinete de Política Legislativa e Planejamento, 2001, v. 3. p. 44.

85 Ferreira Girão, Conferência de Coimbra (29 de junho de 2001): intervenção, in PORTUGAL. Ministério da Justiça. Gabinete de Política Legislativa e Planeamento, Reforma da acção executiva: trabalhos preparatórios: Conferência de Coimbra (29 de junho de 2001), Conferência realizada em 29 de junho de 2001 na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Lisboa: Gabinete de Política Legislativa e Planejamento, 2001, v. 3. p. 53.

50

analisados – é a defesa de Ferreira Girão à inclusão das competências oficiosas do juiz ao

agente de execução e ao conservador, para que, até a fase de pagamento, pudessem

conhecer várias questões, tais como a falta ou insuficiência do título executivo, a

ocorrência de exceções dilatórias não supríveis, e outras.

2.4 O modelo espanhol de execução extrajudicial

hipotecária

Considerando a repercussão do regime espanhol de execução extrajudicial no

âmbito do primeiro anteprojeto de reforma da ação executiva elaborado em Portugal no

ano de 2001, mister se faz analisar, sobretudo à luz dos princípios da reserva do juiz e do

acesso ao judiciário, o modelo vigente em Espanha.

Nesse diapasão, considerando que os atos executivos previstos no anteprojeto de

execução extrajudicial hipotecária português efetivamente tiveram por inspiração a solução

havida em Espanha, entendemos que é absolutamente desnecessária a descrição do modo

como se desenrolam os atos executivos no âmbito da execução extrajudicial hipotecária

espanhola.

Seria, mutatis mutandis, repetir o conteúdo do já analisado anteprojeto português

e isso pouco – ou nada – acrescentaria ao nosso objetivo, que é o de descortinar a

viabilidade ou não da adoção de uma execução extrajudicial, no caso hipotecária, face aos

problemas identificados em Portugal, quando da discussão da reforma da ação executiva.

Por outro lado, dados os indigitados problemas suscitados em Portugal acerca da

viabilidade ou não da adoção do procedimento extrajudicial de execução hipotecária

conduzido pelo notário, entendemos ser fundamental uma abordagem mais aprofundada

acerca do debate doutrinário e o entendimento jurisprudencial havido em Espanha, acerca

da constitucionalidade do procedimento extrajudicial, o que, indubitavelmente, poderá

nortear uma nova reflexão acerca dos institutos que regem a matéria.

51

Outro aspecto que consideramos de relevo abordar é o relativo à articulação que

deve existir no momento em que surge uma oposição capaz de originar a necessária

intervenção do agente judicial no exercício da jurisdição.

Entretanto, preliminarmente, convém esclarecer que a execução extrajudicial

hipotecária espanhola que, conforme mencionado, efetivamente serviu de paradigma para o

anteprojeto de reforma não encampado pelo XV Governo português, coincidentemente

com o que sucede no ordenamento jurídico brasileiro, afigura-se como um procedimento

alternativo à via judicial de execução hipotecária em Espanha86, diferenciando-se, tão-

somente no seu alcance.

É que a execução extrajudicial hipotecária espanhola, dissonantemente do que

sucede no Brasil, não se aplica somente aos contratos de financiamento imobiliário,

podendo, desde que preenchidos os seus requisitos legais, ser aplicada a qualquer espécie

de contrato garantido por hipoteca.87

Note-se que o procedimento espanhol conduzido pelo notário se notabilizou a

partir de contratos celebrados entre particulares durante o século XIX, cujo costume foi

objeto de regulação posterior, especificamente no Reglamento Hipotecario de 1915, sendo

mantido nas reformas havidas em 1947 e 1992.

Diante disso, ao revés das conservatórias portuguesas, que irremediavelmente, à

altura da discussão do anteprojeto no país, não estavam aparelhadas em termos materiais e

de pessoal qualificado para a condução da execução extrajudicial hipotecária, torna-se

perfeitamente crível conceber a especialização dos registradores espanhóis para a condução

do procedimento, sobretudo a partir da tradição existente no país.

86 Jaime Guasp, antes da recente reforma da Ley de Enjuiciamiento Civil, ao reconhecer a superioridade da

execução especial hipotecária sobre a comum, defendeu a elevação dos preceitos daquela a pressupostos de caráter geral, a fim de ordenar um tipo único de execução sobre bens imóveis (La ejecución procesal en la Ley Hipotecaria, Barcelona: Bosch, 1951, p. 64).

87 A respeito da amplitude da execução extrajudicial no processo civil espanhol, o artigo 682.1. da Ley de Enjuiciamiento Civil preceitua que “las normas del presente capítulo sólo serán aplicables cuando la ejecución se dirija exclusivamente contra bienes pignorados o hipotecados en garantía de la deuda por la que se proceda”. Entretanto, ressalva que na hipótese de uma vez realizada a garantia hipotecária por meio do procedimento extrajudicial e o crédito não tenha sido completamente satisfeito, poderá o credor continuar a executar o patrimônio do devedor, todavia por meio da via comum executiva (art. 579 da LEC).

52

Além disso, o simples fato de a execução extrajudicial espanhola persistir ao

longo do tempo, levando inclusive o legislador da Ley de Enjuiciamiento a adotar todas as

cautelas para não perturbar a segurança do mercado imobiliário, quando da edição do novo

diploma processual civil espanhol que a encampou, nos leva à convicção de que a

execução hipotecária extrajudicial possui inequívoca credibilidade no âmbito

socioeconômico espanhol.

A Ley 1/2000, de Enjuiciamiento Civil, de 7 de janeiro, pretendendo regular

unitariamente tudo o que se relacionasse com a execução forçosa88, em virtude das suas

especificidades, dedicou à execução hipotecária um capítulo especial, que abarca os seus

artigos 68189 a 698 (Título IV, da Ejecución dineraria do Livro III, com as especificações

previstas no Capítulo V, que se intitula De las particularidades de la ejecución sobre

bienes hipotecados o pignorados), mantendo substancialmente o regime anterior que

vigorava na legislação hipotecária especial (arts. 129 a 135 da Ley Hipotecaria).90

88 Ressalta Victorio Magarinos Blanco que mais do que uma execução forçosa sobre o patrimônio do devedor

por inadimplemento, se trata a execução hipotecária do exercício do direito que consiste a garantia hipotecária, de vender a propriedade e satisfazer o credor com o seu produto, ainda que tal exercício se afigure na forma de um procedimento de execução, eis que o ius vendendi, ou seja, o direito do credor proceder à venda do bem sobre o qual recai a garantia, se atua pelo credor por ato próprio, independentemente do meio que se adote para levá-lo a efeito (El procedimiento extrajudicial de realización de la hipoteca.: su viabilidad, Revista Critica de Derecho Inmobiliario (RCDI), n. 641, jul./ago. 1997, p. 1.264).

89 Dispõe o artigo 681 da Ley de Enjuiciamiento Civil que “la acción para exigir el pago de las deudas garantizadas por prenda o hipoteca podrá ejercitarse directamente contra los bienes hipotecados o pignorados, sujetando su ejercicio a lo dispuesto en este título, con las especialidades que se establecen en el presente capítulo”, sendo que a atual redação do artigo 129 da Ley Hipotecaria, após a reforma processual, quedou com a seguinte redação: “La acción hipotecaria podrá ejercitarse directamente contra los bienes hipotecados sujetando su ejercicio a lo dispuesto en el Título IV del Libro III de la Ley de Enjuiciamiento Civil, con las especialidades que establecen en su capítulo V.”

90 Nesse sentido, o apartado XVII da Exposição de Motivos da Ley de Enjuiciamiento esclarece o seguinte: “En cuanto a la ejecución propiamente dicha, esta Ley, a diferencia de la de 1881, presenta una regulación unitária, clara y completa. Se disena un proceso de ejecución idóneo para cuanto puede considerarse genuino título ejecutivo, sea judicial o contractual o se trate de una ejecución forzosa común o de garantía hipotecaria, a la que se dedica una especial atención. Pero esta sustancial unidad de la ejecución forzosa no debe impedir las particularidades que, en no pocos puntos, son enteramente lógicas (...). La Ley dedica un capítulo especial a las particularidades de la ejecución sobre bienes hipotecados o pignorados. En este punto, se mantiene en lo sustancial, el régimen precedente de la ejecución hipotecaria, caracterizado por la drástica limitación de las causas de oposición del deudor a la ejecución y de los supuestos de suspensión de ésta. El Tribunal Constitucional ha declarado reiteradamente que este régimen no vulnera la Constitución e introducir cambios sustanciales en el mismo podría alterar gravemente el mercado del crédito hipotecario, lo que no parece en absoluto aconsejable. La nueva regulación de la ejecución sobre bienes hipotecados o pignorados supone un avance respecto de la situación precedente ya que, en primer lugar, se trae a la Ley de Enjuiciamiento Civil la regulación de los procesos de ejecución de créditos garantizados con hipoteca, lo que refuerza el carácter propiamente jurisdiccional de estas ejecuciones, que ha sido discutido en ocasiones; en segundo término, se regulan de manera unitaria las ejecuciones de créditos con garantía real, eliminando la multiplicidad de regulaciones existente en la actualidad; y, finalmente, se ordenan de manera más adequada las actuales causas de suspensión de la ejecución, distinguiendo las que contituyen verdaderos supuestos de oposición a la ejecución (extinción de la garantía

53

Embora atualmente inserida em capítulo especial da Ley de Enjuiciamiento Civil,

conforme afirmado, o procedimento da execução hipotecária espanhola manteve, no

essencial, as características que delimitavam os contornos do anterior procedimento

sumário de execução hipotecária, não sendo por outro motivo que Juan José Jurado Jurado,

ao sustentar a viabilidade do recurso aos entendimentos doutrinários e jurisprudenciais que

preexistiam anteriormente ao advento da Ley de Enjuiciamiento Civil, assevera que o

regime continua sendo:

“1) Una vía de apremio o proceso de ejecución especial que conlleva la realización de valor de la finca hipoteca. 2) De base estrictamente registral. 3) En el que se ejercita la acción real hipotecaria. 4) Con fundamento en el título hipotecario, que está revestido de una excepcional fuerza ejecutiva y; 5) No cabe pacto para alterar sus trámites, dado el carácter de ordem público de las normas reguladoras del mismo.”91

Entendemos ser perfeitamente justificável a execução hipotecária extrajudicial ser

englobada no âmbito da Ley de Enjuiciamiento Civil, pois, em termos da sua natureza

jurídica, é um verdadeiro procedimento de execução que, embora inserido no contexto da

execução forçada, possui caráter especial, que se aplica aos casos específicos de créditos

hipotecários, devidamente constantes na imprescindível escritura de hipoteca, desde que no

título estejam presentes, entre outros requisitos, a taxa de juros e a forma de cobrança

especial, domicílio para notificações e requerimentos fixados pela parte devedora.

A propósito, Guasp92, ao reconhecer a escritura de hipoteca com cláusula de

execução extrajudicial um verdadeiro título executivo extrajudicial, afirma que o

procedimento de execução hipotecária especial não deixa de ser um processo, pois se pede

algo que se pediria do juiz perante uma outra pessoa (devedor, proprietário não devedor).

hipotecaria o del crédito y disconformidad con el saldo reclamado por el acreedor), de los supuestos de tercería de dominio y prejudicialidad penal, aunque manteniendo, en todos los casos, el carácter restrictivo de la suspensión del procedimiento (...).”

91 Juan José Jurado Jurado, Procedimiento de ejecución directa sobre bienes inmuebles hipotecados, cit., p. 11.

92 Jaime Guasp, La ejecución procesal en la Ley Hipotecaria, cit., p. 43 e ss.

54

A constitucionalidade do procedimento extrajudicial de execução hipotecária

espanhol, anteriormente previsto no artigo 12993 e seguintes da Ley Hipotecaria, como não

poderia deixar de ser, suscitou exaustivo debate doutrinário e jurisprudencial, sendo que,

embora ainda sujeita a críticas e a ponderações em contrário, o fato de a execução especial

haver sido encampada no seio da Ley de Enjuiciamiento, a nosso ver, sinaliza que o

procedimento criado no século XIX, além de mantido, foi absolutamente legitimado como

meio processual de realização do direito material espanhol.

Reitera-se que a execução hipotecária extrajudicial, tal qual advertido por Maria

José Capelo, não está imune a críticas em Espanha.

São diversos os respeitados doutrinadores, que a exemplo de Juan Montero

Aroca94 e Antonio Robledo Villar95, sustentam que o procedimento extrajudicial

hipotecário poderia ser inconstitucional, por se tratar de uma execução forçada, realizada

por alguém não dotado de poder jurisdicional, ainda que tal procedimento tivesse o seu

fundamento no direito do credor e na expropriação da coisa executada, tendo em vista que,

em tese, tal direito não poderia ser obtido excluindo-se a jurisdição.

De fato, são dois os aspectos mais polêmicos do procedimento extrajudicial, desde

a perspectiva de sua constitucionalidade, que são aqueles relativos, respectivamente, ao da

unidade jurisdicional e ao da tutela judicial efetiva por parte do agente judicial.

De acordo com Fernando de la Puente Alfaro e Juan María Díaz Fraile96, com

relação à unidade jurisdicional, o artigo 117.3 da Constituição espanhola estabelece que o

exercício do poder jurisdicional em qualquer tipo de processo, julgando e fazendo executar

93 O artigo 129 da Ley Hipotecaria, demonstrando ser o procedimento apenas uma forma de controle da

realização da essência privada da hipoteca, previa que na escritura de constituição da hipoteca poderiam as partes validamente pactuar um procedimento executivo extrajudicial para fazer efetiva a ação hipotecária, em respeito aos trâmites fixados no Regulamento Hipotecário, desde que, em respeito ao princípio da informação, tendo em vista a restrição ao direito do mutuário, a estipulação da execução extrajudicial fosse formalizada separadamente das demais estipulações.

94 Juan Montero Aroca, Las ejecuciones hipotecarias y la tutela judicial privilegiada. La constitucionalidad de algunas tutelas judiciales efectivas, Revista Crítica de Derecho Inmobiliario (RCDI), año 72, n. 633, p. 254 e ss., mar./abr. 1996.

95 Antonio Robledo Villlar, La inconstitucionalidad del procedimiento extrajudicial de ejecución hipotecaria (a propósito de la STS, Sala 1ª de 4 de mayo de 1998 y sus repercusiones en la realización forzosa de bienes, Revista General de Derecho, Valencia, v. 55, n. 655, p. 3.593 e ss., 1999.

55

o julgado, corresponde aos juízes e aos tribunais previstos em lei, tratando-se, por

conseguinte, de reserva de jurisdição em sentido positivo, e o artigo 117.4, por sua parte,

dispõe que os juízes não exercerão mais funções do que as expressamente previstas em lei

(exclusividade em sentido negativo).

Tomando-se como fundamental saber em que consiste o jurisdicional e se o

procedimento extrajudicial é ou não uma variante daquele conceito, compartilhamos do

entendimento de Fernando de la Puente Alfaro e Juan María Díaz Fraile, no sentido de que

“a realização hipotecária não é mais do que a realização de um direito privado que

constitui a essência da hipoteca”, sendo que “esta realização está submetida a um controle

de legalidade que tradicionalmente é realizado pela autoridade judicial, mas que

igualmente pode realizar-se por outras autoridades ou funcionários legalmente habilitados

para ela”.

Portanto, a execução extrajudicial hipotecária não se trata de uma execução

forçada em seu sentido estrito, qual seja, o de impor ao executado, por meio do ius imperii,

o cumprimento de uma obrigação ou a excussão de tantos bens quantos bastem para a

efetiva satisfação do crédito exeqüendo. Nesse caso, inevitavelmente a expropriação teria

que se realizar perante outros órgãos que não as conservatórias de registros prediais.

Por outro lado, o fundamento da hipoteca radica justamente na idéia de evitar a

execução forçada sobre o patrimônio do devedor, mediante a atribuição ao credor da

faculdade de alienar a coisa hipotecada não através de um ato coativo de imperium, mas

por meio de um ato próprio, submetido ao controle de legalidade por parte do Estado (ato

registral realizado pelo notário). Isso se dá em virtude de um pacto de sujeição ao

procedimento judicial ou extrajudicial incorporado à escritura de constituição da hipoteca,

o que está perfeitamente compatível com a natureza e a essência do direito real de

hipoteca.

Portanto, a hipoteca assenta numa base contratual que, pelo seu reconhecido

elevado grau de certeza, inclusive dispensa a cognição prévia por parte do agente judicial.

96 Fernando de la Puente Alfaro; Juan María Díaz Fraile, El procedimiento extrajudicial de ejecución

hipotecaria, Revista Crítica de Derecho Inmobiliario (RCDI), año 72, n. 635, p. 1.348, jul./ago. 1996.

56

De acordo com Juan José Jurado Jurado97 e José Manuel García García98, o

procedimento de execução extrajudicial hipotecária espanhol, devido à natureza

constitutiva do registro da hipoteca, com todos os contornos que estabelecem o direito real

de garantia, aliada a uma série de garantias, como por exemplo as notificações endereçadas

ao devedor, ao garante não devedor, a terceiros possuidores e aos titulares de direitos reais

posteriores, são fundamentos suficientes para que a execução se inicie, eis que, não se está

diante de um procedimento caracterizado pela “ausencia se la fase de audiencia o de

contradicción procesal”.99

Outrossim, no que diz respeito ao princípio da inafastabilidade de apreciação por

parte do Judiciário, os contrários à execução extrajudicial afirmam que a possibilidade de

por pacto privado expresso prescindir-se da atividade jurisdicional na execução – que se

reveste de coação e imposição – vulnera a Constituição espanhola, eis que desviaria a

intervenção do juiz, dando à escritura o valor de sentença transitada em julgado e, portanto,

executável.

Diante disso, reputamos de relevo o escólio de Fernando de la Puente Alfaro e

Juan María Díaz Fraile que, ao tratar da matéria, se alicerçou no entendimento do Tribunal

Constitucional exposado desde 17 de janeiro de 1991, segundo o qual, face à alegação de

ofensa ao conceito do princípio da tutela judicial efetiva, “o direito judicial consagrado no

artigo 24 equivale ao direito que têm todas as pessoas ao acesso aos órgãos jurisdicionais

no exercício dos seus direitos e interesses legítimos, formulando quaisquer pretensões, e a

obter dos mesmos uma resolução fundada em direito, após um processo em que se garanta

o direito de defesa e se respeite o contraditório e o direito de igualdade de armas

processuais. No entanto, segundo sublinhado pelo Tribunal Constitucional, o referido

acesso tem lugar em todo caso, inclusive na execução extrajudicial hipotecária,

respeitando-se as normas de competência e procedimentos legalmente estabelecidos”.100

Compartilhando do entendimento do referido autor, não haverá – como aliás a lei

garante – ofensa ao direito de acesso ao Judiciário se ao devedor ou ao terceiro prejudicado

97 Juan José Jurado Jurado, Procedimiento de ejecución directa sobre bienes inmuebles hipotecados, cit., p.

28. 98 José Manuel García García, El procedimiento judicial sumario de ejecución de hipoteca, Madrid: Civitas,

1994, p. 47. 99 José Manuel García García, El procedimiento judicial sumario de ejecución de hipoteca, Madrid: Civitas,

1994, p. 47. (Ibidem.Qual? Jurado ou García? ambos). Conferir?Repeti o último por causa da citação “ ”.

57

for assegurado o direito de discutir fora do procedimento extrajudicial, por exemplo, a

falsidade do título hipotecário e o cancelamento da hipoteca.

Tal discussão, como adiante será melhor esmiuçado, terá lugar numa ação

declaratória de cunho ordinário que, dependendo da matéria e da pessoa do opositor,

acarretará na suspensão imediata do procedimento extrajudicial, até que a questão seja

decidida pelo tribunal de primeira instância.

Nessa senda, Victorio Magarinos Blanco, Fernando de la Puente Alfaro, José

Manuel Garcia Garcia e Poveda Diaz, cada qual a seu modo, mas de forma uníssona,

defendem a constitucionalidade do procedimento extrajudicial de execução hipotecária,

pois, em linhas gerais, através do aludido procedimento, o notário exerce uma função de

garantia de direitos prevista no artigo 117.4 da Constituição espanhola, mas não uma

função jurisdicional (art. 117.3), pois tal atuação, a princípio, carece de competência

específica para desvirtuar o conteúdo dos assentos registrais, nos quais efetivamente se

baseiam os procedimentos de realização dos débitos em comento.

Em função disso, não haveria função jurisdicional onde o juiz não pode conhecer

de alegações e nem pode declarar com firmeza de coisa julgada um direito, eis que o

procedimento está sujeito a anotação registral de assentos que estão submetidos à

presunção de legalidade.

Ademais, como visto, o controle jurisdicional de legalidade não ocorre no seio do

procedimento extrajudicial, mas somente por meio de uma ação de cunho declaratório, na

qual teria lugar toda classe de alegações sobre a existência ou nulidade da hipoteca, ou

sobre a nulidade da tramitação do próprio procedimento, seja em função do valor cobrado

ou de equívocos registrais.

Não é por outro motivo que Manuel Peña y Bernaldo de Quirós, 101 defende que a

execução extrajudicial hipotecária é compatível com a Constituição espanhola porque a

realização do direito de hipoteca pode, em rigor, desenvolver-se sem enfrentamentos entre

100 Fernando de la Puente Alfaro; Juan María Díaz Fraile, El procedimiento extrajudicial de ejecución

hipotecaria, cit., p. 65.

58

as partes e, portanto, sem verdadeiro processo, tendo em vista que o direito de hipoteca

confere ao credor não só a atuação processual, mas o próprio direito sobre a coisa

hipotecada.

A intervenção do notário em substituição à do juiz é uma cautela legal que

tradicionalmente se impõe ao exercício do direito real de garantia, com o fim de evitar

fraudes e a proibição do pacto comissório.

E continua o jurista, afirmando que a função do notário não possui caráter

jurisdicional, porque não se está diante de um enfrentamento das partes, nem de

julgamento por parte do juiz, e muito menos de execução de sentença.

Durante a mesa redonda realizada em 27 de maio de 1998 no Colegio de los

Registradores de la Propiedad y Mercantiles de España sobre a constitucionalidade do

procedimento extrajudicial de execução hipotecária, da qual foram partícipes,

representando os registradores Fernando de la Puente Alfaro e Angulo Rodríguez e, de

outro lado, a magistratura, na figura do juiz do Tribunal Constitucional Gimeno Sendra,

chegou-se à conclusão da validez e constitucionalidade do procedimento, estabelecendo-se,

inclusive, na ocasião, as seguintes conclusões:

“A) No hay en nuestra Constitución un inflexible principio de exclusividad jurisdiccional de las ejecuciones (téngase en cuenta, por ejemplo, la ejecución por la Administración de sentencias de la Sala de lo contencioso-administrativo del Tribunal Supremo). El artículo 1.872 del Código Civil rompe igualmente esa pretendida unidad. B) Estamos en presencia de un supuesto de disponibilidad y ejercicio de un derecho privado y, por tanto, en el campo de la autonomía de la voluntad, dentro del cual cabe que las partes acudan a equivalentes jurisdiccionales en materia de ejecución. C) La tutela judicial efectiva no se extiende a la ejecución: la ejecución civil es materia en la que puede tener su manifestación la autonomía de la voluntad. D) El procedimiento de ejecución extrajudicial no es supuesto de autodefensa, prohibida por la Constitución, ni puede equiparse al pacto comisorio. E) Por tanto, ya se niegue carácter procesal a la ejecución extrajudicial y se considere que se trata de un supuesto de ejercicio de un derecho de realización con la garantía de la intervención de un funcionario público

101 Manuel Peña y Bernaldo de Quirós, Derechos reales. Derecho hipotecario, 3. ed., Madrid: Centro de

Estudios Registrales del Colegio de Registradores de la Propriedad y Mercantiles de Espana, 1999, v. 2 (Derechos reales de garantía. Registro de la Propriedad), p. 164.

59

independiente, ya se considere que la ejecución extrajudicial es un verdadero proceso pero que no existe en nuestra Constitución una reserva judicial de la ejecución civil, debe concluirse que la ejecución extrajudicial no incurre en inconstitucionalidad (así lo ha entendido el Tribunal Supremo en sentencias de la sala de lo contenciso-administrativo de 16 y 23 de octubre de 1995). F) En cuanto al alcance de la sentencia de 4 de mayo de 1998, se llegó a la conclusión de que por tratarse la sentencia en cuestión de doctrina ‘contra legem’, no vincula a ningún otro Juzgado o Tribunal, sino que se trata de un fallo dado para un caso concreto y sobre materia en la que la Sala de lo Civil del Tribunal Supremo carece de competencia para crear doctrina legal.”102

2.4.1 Das causas de suspensão da execução no regime

executivo da hipoteca em Espanha

Depreende-se da exposição de motivos da Ley de Enjuiciamiento Civil,

notadamente em seu inciso XVII que a nova regulação da execução hipotecária buscou

uma ordenação mais adequada das causas de suspensão da execução, distinguindo as que

constituem verdadeiras oposições da execução (extinção da garantia hipotecária ou do

crédito e a desconformidade com o saldo devedor), das alegações de transferência de

domínio, ainda que mantendo em todas as situações o caráter restritivo da suspensão do

procedimento.

O artigo 695 da Ley de Enjuiciamiento Civil, intitulado “Oposição à execução”,

não contempla como causa de suspensão da execução tanto a morte quanto a eventual

insolvência do devedor; tal previsão guarda correlação, respectivamente, com os artigos

540 e 568 da Ley de Enjuiciamiento Civil, que prelecionam que em tais hipóteses a

execução prosseguirá com as especificações que a própria lei regula.

Contudo, em termos de prosseguimento do nosso estudo, que visa, no presente

momento, verificar as causas de suspensão do procedimento e, por conseguinte, constatar o

caráter restritivo das mesmas, basta-nos a constatação de que a morte e a insolvência do

devedor, até mesmo em virtude da essência da garantia hipotecária, não são suficientes

para a suspensão da cobrança.

102 Juan José Jurado Jurado, Procedimiento de ejecución directa sobre bienes inmuebles hipotecados, cit., p.

36-37.

60

Por outro lado, o artigo 695 dispõe que será admitida a oposição do executado

quando ela se pautar na extinção da garantia ou da obrigação, desde que se prove, por meio

de certidão do notário, o cancelamento da hipoteca, ou, através de escritura pública, o

pagamento ou o cancelamento da garantia.

Outra hipótese de oposição é a que diz respeito ao excesso de execução, ou seja,

quando o valor cobrado está acima daquilo que efetivamente é devido.

Nessa hipótese, caberá ao executado fazer acompanhar as suas alegações da

planilha de débito que demonstre com precisão as eventuais discrepâncias praticadas pelo

credor na elaboração dos seus cálculos e, por conseguinte o valor efetivamente devido.

Não haverá tal obrigatoriedade na hipótese de a dívida decorrer de contratos

mercantis outorgados por entidades de crédito, sendo certo que nesse caso, ao menos,

deverá o devedor apontar os pontos discrepantes utilizados para a composição do débito,

como por exemplo uma taxa de juros em desconformidade com a pactuada

contratualmente.

A terceira e última hipótese de oposição à execução no regime espanhol é a que

diz respeito à nulidade da hipoteca, em virtude de anteriormente à sua instituição já existir

uma outra hipoteca ou algum outro compromisso que porventura já comprometesse a

garantia.

Formulada a oposição embasada na extinção da obrigação ou na nulidade do

gravame instituído, liminarmente se suspenderá a execução, sendo que o tribunal, mediante

determinação encaminhada ao notário, convocará as partes a comparecer a uma audiência,

quando as ouvirá e receberá os documentos cabíveis para, no prazo de dois dias, decidir

acerca da pretensão deduzida pelo devedor.

Caso se apure documentalmente a extinção da obrigação, considerando a base

essencialmente registral da hipoteca, imediatamente o procedimento será interrompido,

cabendo tão-somente nesse caso recurso de apelação ao credor.

61

Na ocorrência de oposição por erro de cálculo na cobrança, ela terá lugar através

de um juízo declarativo ordinário, de cuja decisão não caberá apelação. Portanto, havendo

divergência entre o valor cobrado e o efetivamente devido, o procedimento será retomado

pelo valor apurado em sede ordinária, não havendo qualquer possibilidade de recurso

contra tal decisão.

É de relevo sublinhar que no regime espanhol, como medida para proporcionar

maior celeridade e efetividade ao procedimento, optou-se por somente conferir ao credor a

possibilidade de recorrer da decisão que inviabilizar a cobrança, razão pela qual ao devedor

somente foi garantido o direito de discutir, em instância única, a eventual nulidade do

procedimento.

O artigo 696 da Ley de Enjuiciamiento Civil versa sobre as restritas hipóteses em

que se admite a interferência do terceiro que se apresenta como titular do direito real de propriedade do bem hipotecado.

De fato, na legislação espanhola, dada a índole eminentemente registral da

hipoteca e do sistema de circulação de bens imóveis no país, para que o terceiro demonstre a viabilidade do seu direito, mister se faz comprovar que anteriormente à constituição da hipoteca era o verdadeiro titular dos direitos de propriedade do bem, não se admitindo como meio de prova o documento particular não registrado.103

E isso somente será admitido se juntar o registro prévio do título e a comprovação

de ausência da sua anulação ou extinção no assento de domínio correspondente, provando, por conseguinte, que o seu título é anterior à constituição da hipoteca.

103 Em relação à inadmissibilidade de documento privado não registrado, como meio de prova para a

oposição do terceiro, convém transcrever parte da decisão exarada pelo Tribunal Supremo em 26 de setembro de 1991, ou seja, antes mesmo do advento da atual Ley de Enjuiciamiento Civil – portanto, tratando da interpretação da lei derrogada –, na qual restou consignado o seguinte: “Por último, el motivo cuarto acusa la infracción de los artículos 1537 y 1535 de la Ley de Enjuiciamiento Civil, por entender que tales preceptos legales no exigen para el éxito de la tercería de domínio que el título del tercerista se halle inscrito en el Registro, bastando con que se presente el título en que se funda. El motivo no puede prosperar, al basarse en unos hechos en que en la sentencia recurrida no se consignan como probados, así el hecho de que D. Albino R. no quiso o no pudo otorgar escritura pública de venta a favor de los terceristas, y basarse en una conducta dolosa de la que no hay prueba, ni esta Sala puede ahora investigar (...). Por último, es de toda evidencia que la Ley Hipotecaria (...) exige no suspender el procedimiento ejecutivo por reclamaciones de un tercero si no estuviesen fundadas en un título anteriormente inscrito, condición que no reúnen los recurrientes, norma que ratifica de manera expresa el artículo 132, n. 2, de la

62

Na prática, a alegação terá lugar quando se verificar algum erro praticado pelo cartório de registro de imóveis, como no caso de ofensa ao princípio da prioridade ou anterioridade do registro notarial, quando indevidamente se inscreve em primeiro lugar a constituição da hipoteca e, somente após, a anterior venda efetuada.

A título exemplificativo, podemos mencionar como hipótese de oposição do

terceiro o caso em que porventura existe uma duplicidade de matrículas do mesmo imóvel e o terceiro prove que o seu título é anterior ao da constituição da hipoteca.

A tramitação da oposição de terceiro prosseguirá consoante o procedimento

ordinário e, caso a mesma seja julgada procedente, o juiz decretará o cancelamento do

gravame hipotecário.

O artigo 697 da Ley de Enjuiciamiento Civil, ao remeter para o artigo 569 do

mesmo diploma, contempla a hipótese de suspensão da execução, quando se verificar a

ocorrência de ilícito penal ou qualquer outra causa de aparência delitiva que determine a

falsidade do título, a invalidez ou ilicitude do ato praticado pelo notário que deu

continuidade à execução.

O artigo 569 explicita que a simples apresentação de alegação de conduta delitiva

por parte do devedor ou do notário não será suficiente para a decretação da suspensão da

execução hipotecária.

É necessária a apuração caso a caso, de acordo com as regras de experiência do

juiz, e somente após ouvidas as partes e o Ministerio Fiscal, para que finalmente se afira a

viabilidade ou não da suspensão do procedimento.

Por oportuno, deve-se ressaltar que se porventura aquele que causar o incidente

não lograr demonstrar a viabilidade das suas alegações, estará sujeito a pagar a competente

reparação por perdas e danos. Tal medida é perfeitamente compatível com a necessidade

misma Ley”. (Boletim Aranzadi de Jurisprudência, compreendendo o período de 1992 a 1999, “Tribunales Superiores de Justicia y Audiencias Provinciales”, Navarra, 2000). completar

63

de se provocar no devedor e no terceiro um dilema, caso apresente evasivas para

indevidamente provocar a procrastinação da cobrança por meio de ardis processuais.

Independentemente disso, em qualquer hipótese de oposição, o exeqüente poderá

prosseguir na execução se, a teor do artigo 529 da Ley de Enjuiciamiento Civil, prestar

caução suficiente para prevenir os eventuais prejuízos que eventualmente sejam

ocasionados ao executado ou ao terceiro, em virtude da continuidade da execução caso, ao

término do incidente, seja vencido.

2.4.2 A reclamação pela via ordinária

O artigo 698 da Ley de Enjuiciamiento Civil contempla as reclamações não

previstas nos artigos 695 a 697 do mesmo diploma processual.

Dessa forma, estabelece o referido artigo 698 que qualquer reclamação que o

devedor, o terceiro possuidor e qualquer outro interessado possam formular e que não

estejam compreendidas nos artigos 695 a 697, inclusive as que versem sobre a nulidade do

título ou sobre o vencimento, certeza, extinção ou quantia devida, tramitarão perante o

juízo competente (que será apurado de acordo com as regras ordinárias de fixação da

competência), sem ocasionar a suspensão do procedimento.

Eis aí o motivo para que tanto a doutrina quanto a jurisprudência espanhola

inclinem-se pela constitucionalidade do procedimento executivo em apreço.

Com efeito, sob a nossa ótica, embora defendamos que a verificação da

regularidade dos cálculos apresentados pelo credor poderia ser perfeitamente realizada pelo

notário, o procedimento espanhol assegura plenamente o controle jurisdicional da

execução hipotecária.

O fato de o legislador haver restringido, a partir de uma experiência centenária, os

casos de suspensão do procedimento e haver deslocado o controle jurisdicional para as

hipóteses em que efetivamente há uma provocação, formulada através de uma oposição,

64

isso em nada resulta na nulidade ou inconstitucionalidade do procedimento, eis que

somente houve uma modificação da cognição do agente judicial para o momento em que

há a necessidade da resolução de uma controvérsia instaurada pelo devedor, pelo possuidor

ou pelo terceiro interessado.

Inexoravelmente, no procedimento espanhol está aberta a oportunidade para que o

devedor, o hipotecante não devedor, o terceiro possuidor, os demais credores ou qualquer

outro interessado formule qualquer pretensão não compreendida nas causas previstas nos

artigos 695 a 697; todavia, as eventuais oposições não previstas, como sublinhado,

necessariamente não terão o condão de suspender o curso regular da execução.

A fim de viabilizar a efetividade do provimento jurisdicional, ao tempo da

formulação da reclamação não compreendida no artigo 695 da Ley de Enjuiciamiento Civil

ou durante a sua tramitação, poderá o interessado requerer a retenção do todo ou de uma

parte do pagamento que porventura receberia o credor.

Por outro lado, também se assegura ao credor a possibilidade de oferecer caução

idônea ao juízo ordinário, quando se terá como satisfeita a retenção requerida.

2.5 A evolução da execução no Brasil

No âmbito do direito processual civil brasileiro, o Livro III das Ordenações

Filipinas foi gradativamente sendo derrogado, visto que, conforme é cediço, as Ordenações

vigoraram no país até 1916, ou seja, até o advento do Código Civil.

Cândido Rangel Dinamarco salienta que o direito processual positivo brasileiro

somente foi constituído quando, em 1850, o Regulamento n. 737 traçou a nova disciplina

do processo comercial, e quando o Decreto n. 763, de 1890, estendeu ao processo civil em

geral as disposições daquele diploma.104

104 Cândido Rangel Dinamarco, Execução civil, cit., p. 74.

65

Seguindo a influência portuguesa, no Brasil a execução continuou sendo uma

atividade estatal, sendo competente para os atos expropriatórios o juiz que tivesse

conduzido originariamente o processo de conhecimento, já admitindo-se a expedição de

carta precatória nos moldes hodiernamente praticados. Em continuidade ao entendimento

acerca da autonomia do processo de execução, fazia-se necessária a citação do executado

ao início do processo executivo, sob pena de nulidade absoluta. No entanto, não se

cogitava em medidas corporais destinadas a convencer o executado a cumprir as

obrigações.

No Regulamento n. 737 também já se admitia a execução fundada em títulos

extrajudiciais, nos moldes da referida assinação de dez dias, desde que consubstanciados

em atos de comércio. Posteriormente, foi estendido o procedimento sumário da assinação

de dez dias à cobrança judicial dos créditos hipotecários (Lei n. 1.237, de 1864), dispondo

que aí teria cabimento o seqüestro inicial (arresto em Portugal), realizado através do

aparelho estatal, tendo como requisito apenas a falta de pagamento.

Perfilando a tradição ibérica no direito processual civil brasileiro, “nunca

ocorreram fenômenos que tiraram a função executiva da órbita do Poder Judiciário”.

No Brasil, tal qual sucedeu em Portugal e em Espanha, não foi criada a figura do

oficial de justiça ligado ao Poder Executivo, como em outros ordenamentos.

O processo de execução no Brasil sempre foi dotado de uma índole estritamente

judiciária, sendo uma ação autônoma; conceitos esses que paulatinamente vêm perdendo

terreno, diante das necessidades de se oferecer maior efetividade e celeridade ao processo

expropriatório na sociedade contemporânea.

Exemplo disso foi aquilo que Araken de Assis105 reputou como o reconhecimento

muito recente das eficácias mandamental e executiva dos provimentos jurisdicionais “e a

aparente simplicidade do seu cumprimento (execução ‘forçada’), que induziram o

legislador, nas reformas parciais do processo civil brasileiro, a eliminar a necessidade de

um novo processo – o processo de execução previsto no Livro II do Código de Processo

105 Araken de Assis, Cumprimento de sentença, Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 11.

66

Civil – para o efeito de executá-las”. No concernente à eficácia mandamental, salienta o

professor gaúcho que os meios executivos disponíveis para realizar as ordens do juiz se

cingem a expedientes de pressão psicológica, ameaçando com a imposição de prisão ou de

multa.

De fato, a partir do advento da Lei n. 11.232, de 22 de dezembro de 2005 (Da

sentença e da coisa julgada; Da liquidação de sentença; Do cumprimento da sentença; Dos

embargos à execução contra a Fazenda Pública), vigente desde 23 de junho de 2006, a

nova redação do artigo 475-B, caput do Código de Processo Civil dispõe que obrigado o

condenado a prestar em dinheiro, “o credor requererá o cumprimento da sentença, na

forma do artigo 475-J desta Lei”.

O artigo 475-J, caput preleciona que, uma vez intimado o devedor na pessoa de

seu advogado e não solvendo o condenado a dívida em quinze dias, sofrerá multa no

percentual de 10% e, a requerimento do credor, expedir-se-á mandado de penhora e

avaliação.

Note-se que embora a iniciativa do exeqüente tenha sido designada

“requerimento” em lugar de “petição inicial”, sem mudança substancial no regime – exceto

no que concerne à intimação do devedor na pessoa do seu advogado, desnecessitando a

citação para pagamento – compartilhamos do entendimento de Araken de Assis no sentido

de que “a fonte provável em que se abeberou o legislador reformista, para impressionar os

incautos com o elevado grau de informações colhidas no direito estrangeiro, é o artigo 810

do Código de Processo Civil português, que desde a reforma de 1995/1996 alude a

‘requerimento executivo’. Antes disto, chamava-se ‘requerimento inicial’, correspondendo

à petição inicial do processo de conhecimento, e ao qual os seus requisitos se aplicam

subsidiariamente”.106

Portanto, a recente reforma havida no processo executivo brasileiro não derrogou

o artigo 583 do Código de Processo Civil, que proclama que toda execução tem por base

um título judicial ou extrajudicial, tendo em vista que ela contemplou especificamente as

106 Araken de Assis, Cumprimento de sentença, cit., p. 243.

67

espécies de título judicial, cujo elemento comum é a condenação a prestar uma quantia em

dinheiro (artigo 475-N e P).

Entretanto, para o desenvolvimento do nosso estudo, importa ressaltar que tanto a

execução de título extrajudicial quanto a de título judicial no Brasil continuam dependentes

de iniciativa da parte, prevalecendo o princípio da demanda, no sentido de se reservar ao

exeqüente a faculdade de avaliar as probabilidades de êxito na sua empreitada, quedando,

por conseguinte, inviabilizada a execução ex officio.

Ademais, a execução de título extrajudicial continua a ser regulada pelo Livro II

do Código de Processo Civil107, enquanto que a execução de título judicial, atualmente

denominada de cumprimento da sentença, após a reforma introduzida pela Lei n. 11.232,

passou a possuir regramento próprio, aplicando-lhe, subsidiariamente, o regime anterior. E,

ao invés de seguir a tendência de unificação das espécies de execução, no Brasil, após o

advento da recente Lei n. 11.382, de dezembro de 2006, realçou-se a opção legislativa pela

dicotomia entre a execução de título judicial e extrajudicial.

Independentemente disso, importa ressaltar que no Brasil subsiste o entendimento

de que “à jurisdição como relevante serviço público prestado pelo Estado se reconhecem

três funções. A tutela jurídica do Estado visa, sobretudo, à efetiva realização dos direitos

consagrados no ordenamento jurídico”, e para tal “os litigantes pretendem do Estado as

seguintes providências: (a) a formulação de uma regra jurídica concreta, decidindo qual

deles tem razão; (b) a atuação prática desse comando vinculativo, sempre que necessário e

na hipótese de o vencido não cumpri-lo espontaneamente; e (c) perante situações de

urgência, a rápida e eficaz asseguração ou satisfação desses objetivos”.108

E é justamente em virtude da função executiva, de proporcionar a realização

prática dos direitos outorgados em provimentos jurisdicionais ou em outros títulos

executivos, que entende-se haver sido superado o adágio jurisditio in sola notio consist.

107 Inclusive, é de se ressaltar que mesmo após o advento da Lei n. 11.382, de 6 de dezembro de 2006,

compete exclusivamente ao juiz a condução do processo executivo. 108 Araken de Assis, Cumprimento de sentença, cit., p. 13.

68

Nada obstante ser considerada uma atividade jurisdicional que, sob a nossa ótica,

indevidamente ainda é considerada de exclusividade do Estado-juiz, os meios técnicos

disponíveis para executar ainda não evoluíram suficientemente para se adaptar a uma

sociedade de consumo de massas, com enorme volatilidade no tráfego de bens, visto que

somente recentemente, e após muito debate jurisprudencial, surgiu a chamada penhora on

line, ou seja, a constrição dos ativos financeiros pertencentes ao devedor e que estejam

depositados em contas bancárias de sua titularidade, a partir de uma ordem expedida pelo

próprio juiz da execução ao Banco Central do Brasil que, por sua vez, a retransmite às

instituições financeiras cadastradas. Esclarece-se que não estamos diante da penhora e/ou

bloqueio da conta bancária, mas tão-somente dos ativos financeiros suficientes à satisfação

do crédito exeqüendo.

Independentemente disso, mister se faz reconhecer que sequer existe no Brasil um

banco de dados que conte com informações rápidas e precisas acerca dos resultados

práticos provenientes das ações propostas contra o devedor e de seus eventuais bens

passíveis de constrição.

Embora concordemos que no Brasil vive-se hoje “o terceiro momento

metodológico do direito processual, cuja marca característica é a mais pura consciência de

sua instrumentalidade em relação ao direito material: o processo, diz-se, vale não tanto

pelo que ele é, mas fundamentalmente pelos resultados que produz”109, o fato é que,

comparativamente, a execução brasileira está no mínimo uma década atrasada em relação

àquilo que já foi discutido e implementado em Portugal.

Nessa senda, concordamos com Araken de Assis que, ao reconhecer a grave crise

presente na execução, assinalou que “reformas cosméticas, limitadas a aperfeiçoamentos

da verba legislativa, nada resolverão neste contexto”.110

2.5.1 A execução extrajudicial hipotecária brasileira

109 Débora Inês Kram Baumohl, A nova execução civil: a desestruturação do processo de execução, São

Paulo: Atlas, 2006, p. 1. 110 Araken de Assis, Cumprimento de sentença, cit., p. 16.

69

No Brasil, a partir da libertação dos escravos (1888), que anteriormente a isso

viviam precipuamente em abrigos coletivos (senzalas), sem disporem de dignas condições

de habitabilidade, houve um incremento populacional nas cidades, pois os desvalidos, em

geral passaram a viver em habitações individuais, que sequer eram dotadas de saneamento

básico, o que, aliás, lamentavelmente ainda se verifica num país que detém uma das

maiores economias mundiais, mas que atualmente ostenta a lamentável quarta posição

mundial entre aqueles com pior distribuição de renda.

Inexoravelmente, considerando que os orçamentos governamentais –

normalmente pessimamente geridos – no mais das vezes foram revertidos em favor

daqueles que menos necessitavam do auxílio público para prover as suas necessidades, não

houve espaço para se investir na aquisição da casa própria por parte dos menos afortunados

(que não são poucos!).

Nessa senda, em 1964, com o escopo de captar recursos para viabilizar a criação

de um amplo projeto para tornar possível aquisição da casa própria, visto que à altura não

havia mais espaço para mais delongas por parte do governo, pois, diante da falta de

saneamento básico em milhares de moradias, já era latente o problema de saúde pública

que permeava a sociedade brasileira, surgiu o chamado Sistema Financeiro da Habitação

brasileiro que, entre outras coisas, dependia para a sua implantação da captação de recursos

para o financiamento habitacional.

Para viabilizar a participação da iniciativa privada e a segurança quanto ao retorno

dos valores mutuados em caso de inadimplência, foi conferido aos entes financeiros um

instrumento que seria célere e desjurisdicionalizado, pois a execução seria realizada por

um agente privado e sem o risco de permanecer por tempo indeterminado aguardando a

satisfação do crédito perante o Judiciário.

Consoante preconizado por Araken de Assis, “o advento da Lei n. 4.380, de

21.8.1964, implicou extraordinário desenvolvimento do mercado imobiliário por cerca de

três lustros. Foi, no período, a pedra de toque de todo sistema de concessão de

financiamento para aquisição da casa própria atrelado a uma cláusula móvel, tanto o capital

70

mutuado quanto o valor das prestações destinadas a amortizá-lo, sob garantia de hipoteca

do próprio imóvel”.111

Além disso, considerando a necessidade de reduzir os trâmites da pretensão a

executar os créditos, haja vista se cuidar de negócios de massa, e a fim de resguardar os

interesses dos investidores, na ocasião também foi criada a chamada a execução

extrajudicial hipotecária112, prevista no Decreto-Lei n. 70/66, de 21.11.1966, que instituiu a

figura do agente fiduciário – trustee113 –, visando a realização extrajudicial do crédito (arts.

29 e 38).114

111 Araken de Assis, Manual da execução, 9. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 928. 112 “A Lei n. 11.382, de 6 de dezembro de 2006, encampou o Projeto de Lei n. 4.497/2004, que propunha

alterações no processo de execuções extrajudiciais. O projeto foi uma das medidas elaboradas pela Secretaria de Reforma do Judiciário como parte da reforma infraconstitucional (processual) do Judiciário. Outros treze projetos foram enviados em 15 de dezembro de 2004 ao Congresso Nacional, sendo sete com alterações ao Código de Processo Civil e seis com alterações no processo trabalhista. Uma das principais mudanças sugeridas pelo projeto, no que concerne à execução extrajudicial, mas que ainda não foi objeto de votação pelo Legislativo, atende a uma das críticas que outrora formulamos à sistemática jurisprudencial quando o mutuário pretendia a revisão da dívida, é que, de acordo com a proposta, o devedor não precisará mais fazer o pagamento em juízo para recorrer de uma ação de execução hipotecária extrajudicial. Contudo, visando evitar a morosidade na recuperação do imóvel por parte da instituição financeira, visto que no Estado de São Paulo, atualmente, um recurso de apelação demora aproximadamente cinco anos para ser distribuído a um relator, os recursos não terão mais efeito suspensivo, ou seja, não impedirão que o credor inicie ou retome a execução para reaver os seus direitos. Tal medida, a nosso ver, atende às nossas exigências de não se criar óbices artificiais para que o consumidor aceda ao Judiciário, visto que os bancos preliminarmente apontavam o valor da dívida que lhes aprouvesse e a parte contrária era impingida a depositar integralmente o valor cobrado para que pudesse discutir o débito, o que, por vezes, inviabilizava a propositura da ação, resultando em grave injustiça. De outro lado, evitou-se que aqueles que porventura queiram se valer da extrema morosidade do Judiciário para protelar a execução da dívida ingressem com ações absolutamente temerárias, fazendo com que a instituição financeira aguarde, em muitos casos, cerca de dez anos para reaver o seu investimento. Outro aspecto importante da proposta de aperfeiçoamento da execução extrajudicial hipotecária também contempla as críticas por nós formuladas em outra ocasião, relativa ao risco latente de se proceder à temerária alienação da garantia hipotecária por preço vil. Nesse aspecto, entendemos que a reforma contempla, de forma adequada, o interesse das partes. É que a hasta púbica (leilão), deixará de ser a principal maneira de transformar os bens penhorados em dinheiro para o pagamento da dívida que deu origem ao processo. Com isso, abre-se a possibilidade de o credor adquirir diretamente o bem do devedor, desde que com a sua anuência e por preço não inferior ao de avaliação. Caso o devedor se oponha à adjudicação do bem pelo credor, deverá, sob a fiscalização do agente judicial, efetuar a venda particular do bem, passando o leilão a ser a última opção para a alienação de um bem.” (EXECUTIVO propõe mudanças no processo de execução extrajudicial, disponível em: www.aasp.org.br, acesso em: 20 dez. 2004).

113 Como é de conhecimento, no sistema da common law, é recorrente o recurso ao trustee, pessoa singular ou coletiva, que contratualmente se obriga, por meio do dever fiduciário, a salvaguardar uma garantia (trust), em benefício de um ou mais indivíduos ou organizações (beneficiary), que detêm o título da garantia (beneficial ou equitable title). O trust é gerido de acordo com os termos do contrato que se submete à lei do local onde for estabelecido, posto que é um desdobramento da lei de equity (de séc. XII), ou seja, da idéia de que em determinados casos, a mera aplicação da lei poderia ocasionar a própria iniqüidade.

114 A partir de 1988, com advento da Constituição da República Federativa do Brasil, surgiram diversos questionamentos relacionados com a constitucionalidade do Decreto-Lei n. 70/66, que mais adiante passaremos a esmiuçar. Todavia, parte considerável da doutrina entende que, tendo em vista a anterioridade

71

Na doutrina brasileira, Cândido Rangel Dinamarco defende peremptoriamente a

indispensabilidade do controle jurisdicional das execuções e, de forma enfática, critica as

execuções extrajudiciais, como a prevista no Decreto-Lei n. 70, de 21.11.1966.

Nas palavras do processualista brasileiro, não obstante a tendência de

humanização da execução e a busca de equilíbrio, a execução extrajudicial hipotecária foi

“instituída em favor do Banco Nacional da Habitação e das entidades ligadas ao Sistema

Financeiro da Habitação” e traz abertura para a injustiça.

Os problemas identificados por Cândido Rangel Dinamarco resultam do fato de a

execução ser conduzida por um agente fiduciário estranho ao Poder Judiciário e caminha

sem possibilidade de embargos pelo executado, sem avaliação do bem e sem necessidade

da correspondência entre o valor da alienação e o valor real deste.

Por outro lado, entendemos que Cândido Rangel Dinamarco acena com a

possibilidade da execução ser realizada por entidades privadas, quando afirma que “a

efetividade do controle jurisdicional poderá tornar perdoável a outorga de poderes de

expropriação a entidades privadas”.115

Desse modo, seguindo a sinalização ofertada pelo processualista, podemos

afirmar que desde que haja a possibilidade de o devedor se socorrer do agente judicial, não

haveria motivo para se eivar de nulidade um procedimento realizado perante o ente

privado.

O problema aparentemente estaria na articulação entre a oposição que seria

realizada perante o ente privado e a remessa da mesma ao agente judicial.

Considerando a solução espanhola, estamos inclinados a dizer que não se

demonstra uma tarefa das mais complicadas viabilizar o controle jurisdicional na execução

extrajudicial hipotecária, motivo pelo qual o problema identificado na legislação brasileira

da norma inquinada de ilegalidade, não se estaria diante de uma discussão relativa à inconstitucionalidade, mas tão-somente à ilegalidade.

115 Cândido Rangel Dinamarco, Execução civil, cit., p. 324-325.

72

não se revela intransponível, o ponto de eivar de nulidade o eventual projeto de

desjudicialização da execução.

Sem embargo, Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart propugnam que

a execução extrajudicial hipotecária brasileira atenta contra o princípio da igualdade, vez

que permite aquilo que reputam “execução privada”, na medida que autoriza o credor a

providenciar privadamente, em caso de inadimplemento do devedor, o leilão público do

bem dado em garantia, sem a prévia autorização do Poder Judiciário, pois visa que o

direito do credor (instituições financeiras) seja realizado de forma bastante célere.

Além disso, os aludidos juristas asseveram que “a Constituição da República só

permite que alguém seja privado dos seus bens após o devido processo legal, enquanto que

o referido procedimento permite o leilão do bem que foi dado em garantia pelo devedor

sem sequer a instauração do processo”.116

Em que pese todo o respeito ao sempre oportuno escólio dos eméritos

processualistas brasileiros, entendemos ser imperioso estabelecer um diálogo, mesmo que

ainda incipiente, acerca das suas ponderações.

É que, a nosso ver, a eventual desjudicialização dos atos executivos, tal qual

sucede na execução conduzida pelo agente fiduciário, ou até mesmo a realizada pelo

agente de execução em Portugal, ou pelo notário em Espanha, nada tem de ilegal, pois se

assim o fosse, as execuções fiscais também deveriam ser consideradas inconstitucionais,

bem como a liquidação extrajudicial das instituições financeiras, isso sem falar nos casos

em que a função jurisdicional sequer se encontra no Poder Judiciário, como no caso de

processo de impedimento do Presidente da República.

O problema não está no fato de se atribuir ao agente privado poderes que

tradicionalmente seriam considerados exclusivos do Estado, ou no fato de desjudicializar

os atos que anteriormente estavam sob a condução do agente judicial. A questão fulcral

está em como se viabilizar a garantia do controle jurisdicional nos procedimentos

116 Luiz Guilherme Marinoni; Sérgio Cruz Arenhart, Manual do processo de conhecimento, 4. ed., São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2005, p. 72.

73

realizados administrativamente, pois, no nosso entendimento, o Estado, por si só, não

possui condições para gerir as demandas sociais da sociedade moderna.

Artigo de periódico recentemente publicado, ao analisar a visão de David Osborne

acerca do reinventing the government, consignou que o que mais importa na sociedade

moderna é “reposicionar o Estado como pivot central da organização, monitorização e

funcionamento adequado das nações e aproveitar as dimensões qualificadoras do

conhecimento inovação e competitividade como atributos capazes de fazer reganhar a

confiança estratégica do cidadão naqueles que o representem e têm uma responsabilidade

superior na garantia de patamares adequados de qualidade de vida e desenvolvimento

social”.117

E para revigorar a sua posição de operador de modernidade, compete ao Estado

proporcionar uma verdadeira parceria estratégica democrática, em que Estado e sociedade

civil protagonizam uma batalha conjunta pela modernidade como garante do futuro. Para

tanto, sob a nossa ótica, compete aos processualistas modernos a árdua tarefa de enfrentar

dogmas, que pela sua própria natureza não são imutáveis.

Exemplo clássico disso está na própria realização dos atos executivos que, como

pudemos constatar, durante séculos foram realizados pelo próprio credor, sob o controle do

iudex e, acima de tudo, com atuação pautada na legislação.

Ora, nem sempre os agentes judiciais conduziram os processos de execução!

A propósito, consideramos um equívoco considerar a execução extrajudicial

hipotecária conduzida pelo agente fiduciário uma forma de autotutela da pretensão

executiva por parte do credor.118

De fato, conforme amiúde pudemos constatar a partir do estudo da evolução da

execução no direito romano, desde o advento da Lei das XII Tábuas, o direito passou a

117 A CONSTRUÇÃO do novo estado não se pode fazer sem a sociedade civil, Jornal Público, Lisboa, de 4

fev. 2006, Caderno Economia, p. 38. 118 A título de ilustração, a referência à execução extrajudicial hipotecária como forma de autotutela pode ser

encontrada numa peça de autoria de Airton Abreu Rocha e Pedro Augusto Vivas A. dos Santos, corroborada pela decisão oriunda do Supremo Tribunal Federal, cuja relatoria foi do Ministro Paulo Brossard (ADIN n. 337, j. 11.3.1992, disponível em: www.jusnavigandi.com.br, acesso em: 13.11.2006).

74

limitar a atuação do credor no desempenho dos seus atos de cobrança, razão pela qual a

legislação passou a controlar os atos executivos.

Como o Decreto-Lei n. 70 impõe ao credor a submissão da cobrança a um

terceiro, sem permitir que realize por si só a expropriação do bem, não vemos qualquer

sentido em relacionar a autotutela com a desjudicialização dos atos executivos. Aliás,

contrariamente ao que já é aceito no ordenamento jurídico brasileiro, a partir do advento da

Lei n. 11.382, de 6 de dezembro de 2006, que reformulou o processo de execução, o

Decreto-Lei n. 70 sequer autoriza ao credor a possibilidade de realizar a venda particular

do bem hipotecado.

Sem prejuízo, mesmo que hipoteticamente fosse permitido ao credor realizar os

atos executivos, inclusive a venda do bem, desde que seguindo-se a um rito

preestabelecido na legislação própria, nem por isso se cogitaria da existência de autotutela

em tal situação, pois ao credor somente lhe seria autorizado se impor ao devedor nos

estritos limites da lei, o que de fato não se perquire na autotutela.

Em virtude das notórias resistências ao regime da execução extrajudicial

hipotecária, cujo controle judiciário, conforme retratado, se efetiva a posteriori e a

instância do executado, consoante lecionado por Araken de Assis, “sobreveio, à guisa de

tentame conciliatório, a Lei n. 5.741, de 1.12.1971, pela qual, a par daquele regime

extrajudicial, surgiu um procedimento especial para cobrança de crédito hipotecário

vinculado ao Sistema Financeiro da Habitação (art. 1º da Lei n. 5.741/71)”.119

Uma inovação trazida pela Lei n. 5.741 foi a possibilidade da adjudicação, pelo

valor integral da dívida, do bem hipotecado à instituição financeira, caso o imóvel não

fosse arrematado durante a praça que seria realizada por um leiloeiro particular, mas

devidamente habilitado para tal.

Então, embora seja usual constar dos contratos de financiamento imobiliário a

previsão da adoção da execução extrajudicial hipotecária com fundamento no Decreto-Lei

70/66, no presente momento, no direito brasileiro o credor dispõe de três caminhos para

realizar o seu crédito: a) execução extrajudicial fundada no Decreto-Lei n. 70/66; b)

119 Araken de Assis, Manual da execução, cit., p. 928-929.

75

execução consoante o rito especial previsto na Lei n. 5.741/71 que, embora submetida ao

crivo do Judiciário, diverge do rito comum previsto no Código de Processo Civil, no

tocante aos requisitos específicos, tópicos da inicial e a alguns aspectos do

procedimento120; c) execução segundo o rito comum do Código de Processo Civil, tendo

em vista que, à luz do artigo 585, inciso III, a hipoteca constitui título executivo

extrajudicial.121

Sublinha-se, portanto, que, em se tratando de hipoteca decorrente de contrato de

financiamento imobiliário, o credor terá o concursos eletivus, podendo optar livremente

por qualquer dos procedimentos, desde que também possua a anuência do consumidor. Nos

demais casos, a execução hipotecária seguirá o rito comum previsto no Código de Processo

Civil.

Conforme pudemos verificar, em Espanha, após o advento da Ley de

Enjuiciamiento Civil de 2001, como medida de simplificação e a fim de privilegiar a

unidade do sistema, houve a unificação de todos os procedimentos que previam a execução

hipotecária no país. Tal opção, em nosso entendimento, é perfeitamente compatível com a

busca de um processo claro, eficiente e consonante com as aspirações de segurança jurídica

e de maior eficiência do ordenamento jurídico.

120 A execução prevista na Lei n. 5.741/71 tem lugar tão-somente quando o mutuário não liquidar três ou

mais parcelas do financiamento imobiliário (conforme previsto no art. 21 da Lei n. 8.004/90), sendo que nesse caso ocorrerá o vencimento antecipado da dívida (conforme o art. 29, parágrafo único do Dec.-Lei n. 70/66). A petição inicial deverá ser instruída com pelo menos dois avisos de cobrança, dos quais, independentemente da forma utilizada pelo credor, deverá advir a certeza de que foram recebidos pelo devedor ou por todos os devedores. Embora deflua do artigo 95 do Código de Processo Civil que as ações reais devem correr no foro da situação do imóvel, ressalva feita aos direitos de garantia, o que poderia proporcionar às partes a eleição de foro diverso, o artigo 3º, parágrafo 2º da Lei n. 5.741/71 remete para a subordinação das partes ao foro da situação do bem hipotecado, sobretudo quando a eleição de foro provocar prejuízo à defesa do consumidor. Ponto de relevo na tramitação da execução hipotecária especial perante o Judiciário é o que trata da adjudicação do bem hipotecado, tendo em vista que, frustrada a segunda licitação, independentemente da vontade do credor e diferentemente do que preconiza o artigo 714 do Código de Processo Civil (que, em seu § 1º, faculta ao credor hipotecário a adjudicação do bem pelo valor da avaliação realizada), o juiz adjudicará o imóvel ao credor hipotecário, dentro de quarenta e oito horas, “ficando exonerado o executado da obrigação de pagar o restante da dívida” (art. 7º da Lei n. 5.741/71). Nessa mesma linha, o legislador inovou no novo Código Civil brasileiro ao, no artigo 1.484, autorizar a adjudicação do imóvel pelo credor hipotecário quando se dá a falência ou insolvência do devedor, facultando-lhe adjudicá-lo, quando avaliado em quantia inferior ao crédito, desde que dê plena quitação pela sua totalidade.

121 A nova redação conferida pela Lei n. 11.382, de 6 de dezembro de 2006, ao inciso III do artigo 585 do Código de Processo Civil, manteve como títulos executivos extrajudiciais “os contratos garantidos por hipoteca, penhor, anticrese e caução, bem como os de seguro de vida”.

76

Sem prejuízo da crítica ora declinada, convém ressaltar que a opção brasileira pela

execução extrajudicial hipotecária, diferentemente daquilo que vem sucedendo em

Portugal, não decorreu de uma estratégia de reorganização do aparelho judiciário e do

processo executivo que visasse proporcionar maior eficácia e efetividade à execução. Ao

revés, afigurou-se como uma tentativa de incentivar a captação de recursos para o sistema

habitacional, à altura, criado por uma opção de cunho político-econômico.

Em virtude disso, podemos afirmar que no Brasil tudo decorreu de uma

necessidade de cariz econômico, decorrente da inexistência de meios para o governo

custear isoladamente o programa habitacional do país.

De modo que, se em Portugal a proposta pela desjudicialização da execução

hipotecária decorreu, ao menos aparentemente, de uma opção de cunho organizacional,

visando a maior eficácia e celeridade da execução e o conseqüente desafogamento do

Judiciário, no Brasil, a execução extrajudicial hipotecária decorreu de uma exigência de

garantia de retorno do capital investido, por parte da iniciativa privada, o que, de certa

forma, também se coaduna com o espírito contratualista da execução hipotecária

espanhola.

Nesse diapasão, também é correto afirmar que a execução extrajudicial

hipotecária brasileira possui índole mais liberal que a espanhola, eis que no Brasil sequer

se prevê expressamente a hipótese de o devedor poder se insurgir contra a execução

durante a tramitação do procedimento ou, ao menos, recorrer ao controle jurisdicional.

O aludido Decreto-Lei n. 70/66 dispõe em seu artigo 29 que, nos contratos de

empréstimo habitacional com garantia hipotecária, as hipotecas, quando não pagas no

vencimento, poderão, à escolha do credor, ser objeto de execução na forma preconizada no

processo de execução previsto no Código de Processo Civil (execução judicial) ou nos

artigos 31 a 38 do próprio indigitado decreto.

O artigo 31 do decreto-lei prevê que vencidas e não pagas três parcelas da dívida

hipotecária, o credor que houver preferido executá-la formalizará ao agente fiduciário122 a

122 O agente fiduciário é uma pessoa coletiva autorizada a funcionar pelo Banco Central do Brasil, portanto

relacionado com o Poder Executivo, que não possui formação jurídica e não está subordinada ao controle

77

solicitação de execução da dívida, instruindo o pedido com o título da dívida devidamente

registrado, a indicação discriminada do valor das prestações e encargos não pagos123, o

demonstrativo do saldo devedor discriminando as parcelas relativas ao principal, juros,

multa e outros encargos contratuais e legais, e a cópia de dois avisos extrajudiciais

reclamando a dívida.

A partir disso, o agente fiduciário, nos dez dias subseqüentes ao recebimento do

pedido de execução da dívida, promoverá a notificação do devedor, por intermédio do

notário, para que purgue a mora no prazo de vinte dias.

Quando o devedor encontrar-se em local incerto e não sabido, o oficial certificará

o fato, cabendo então ao agente fiduciário promover a notificação por edital124, publicado

por três dias pelo menos, em um dos jornais de maior circulação local, ou noutro de

comarca de fácil acesso, se no local não houver imprensa diária.

Não acudindo o devedor à purgação do débito, independentemente de pedido

expresso do credor, o agente fiduciário estará de pleno direito autorizado a publicar editais

e a efetuar, no decurso dos quinze dias imediatos, o primeiro público leilão do imóvel

hipotecado.

Se no primeiro leilão o maior lance obtido for inferior ao saldo devedor no

momento, acrescido das despesas de intermediação por parte do agente fiduciário e do

leiloeiro, mais as do anúncio e da contratação da praça, será realizado o segundo público

leilão, nos quinze dias seguintes, no qual será aceito o maior lance apurado, ainda que

inferior à soma das aludidas quantias.

direto do Poder Judiciário, recebendo diretamente do agente financeiro a sua remuneração; sendo certo que a sua atuação durante o procedimento de execução extrajudicial deve estar previsto no contrato de financiamento.

123 Note-se que a instituição financeira, para que possa ofertar ao consumidor a oportunidade para bem conhecer a extensão da cobrança a que poderá ser submetido, deverá fazer constar, de forma discriminada, na sua planilha de composição do débito, o principal, os juros, as multas, o saldo devedor e os demais encargos contratuais que porventura estejam compondo o valor cobrado.

124 Ressalva-se que, embora a norma permita a citação extrajudicial por meio de editais, o Superior Tribunal de Justiça do Brasil tem firmado o entendimento de que a citação editalícia depende de uma análise criteriosa acerca dos fatos que levam à convicção do desconhecimento do paradeiro do devedor e da impossibilidade de o mesmo ser encontrado de outra forma, o que somente poderá ser alcançado através do

78

Se o maior lance do segundo público leilão for inferior àquela soma, serão pagas

inicialmente as despesas componentes da mesma soma, e a diferença entregue ao credor,

que poderá cobrar do devedor, por via executiva judicial, o valor remanescente de seu

crédito, sem nenhum direito de retenção ou indenização sobre o imóvel alienado.

Caso o lance de alienação do imóvel, em qualquer dos dois públicos leilões, seja

superior ao total das importâncias cobradas, o que de fato não se tem conhecimento de que

em algum momento tenha ocorrido, a diferença afinal será entregue ao devedor.

O artigo 33 do decreto-lei em exame dispõe que é lícito ao devedor, a qualquer

momento, até a assinatura do auto de arrematação, purgar o débito, acrescido de todas as

despesas decorrentes do procedimento administrativo de cobrança realizado.

Sublinha-se que todos os valores porventura decorrentes do procedimento serão

recebidos diretamente pelo agente fiduciário, que por sua vez incumbir-se-á de remeter aos

entes de direito os valores que eventualmente lhes sejam devidos.

Entretanto, caso o credor-fiduciário leve a efeito o leilão em duas oportunidades e

não consiga a venda, ficará ele com o imóvel, extinguindo-se a dívida, mesmo que não

alcançada a quantia equivalente ao total da dívida.125

Uma vez tendo sido o imóvel arrematado durante a realização do leilão

extrajudicial, será imediatamente expedida a respectiva carta de arrematação, assinada pelo

leiloeiro, pelo credor, pelo agente fiduciário e por cinco pessoas singulares idôneas,

absolutamente capazes, como testemunhas, o documento servindo como título para

transcrição no Registro Geral de Imóveis.

Transcrita no Registro Geral de Imóveis a carta de arrematação, poderá o

adquirente, caso o imóvel ainda esteja sendo ocupado, requerer ao Poder Judiciário a

competente imissão de posse no imóvel, que lhe será concedida liminarmente, após

agente judicial (juiz), razão pela qual a forma de citação ficta vem sendo denegada pelo Judiciário. A título de exemplo ver o RESP n. 652.782 (Disponível em: <www.stj.gov.br>. Acesso em: 27 abr. 2005).

125 Arnaldo Rizzardo, Contratos de crédito bancário, 4. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 211.

79

decorridas 48 horas da citação do devedor que não comprovou judicialmente que resgatou

o valor do seu débito, até a assinatura do auto de arrematação.

Após o deferimento liminar da imissão de posse, o feito prosseguirá em rito

ordinário, para o debate das alegações que o devedor porventura aduza em contestação,

sendo que, no período que mediar entre a transcrição da carta de arrematação no Registro

Geral de Imóveis e a efetiva imissão do arrematante na posse do imóvel alienado em

público leilão, o juiz arbitrará uma taxa mensal de ocupação compatível com o rendimento

que deveria proporcionar o investimento realizado na aquisição, cobrável por meio de ação

executiva.

2.6 Os problemas decorrentes da execução extrajudicial

hipotecária brasileira

Diversos problemas podem ser enfocados por conta da instituição da execução

extrajudicial hipotecária, dentre os quais os de maior relevo cingem-se à atuação do

chamado agente fiduciário, à falta de controle das contas apresentadas pela instituição

financeira, à forma precária de contestação dos cálculos elaborados, às dificuldades para o

consumidor acessar o Judiciário, e, por fim, àquilo que diz respeito à retomada física do

bem por parte do credor hipotecário.

Iniciando a análise pormenorizada da problemática existente no Brasil,

intrigantemente não se verifica na doutrina brasileira um autor, inclusive entre os maiores

críticos da execução hipotecária extrajudicial126, que faça uma análise crítica acerca da

atuação do chamado agente fiduciário.

A nosso ver, por ser autorizado a exercer as suas funções a partir de autorização

do Banco Central do Brasil que, conforme é de conhecimento, não é autônomo, estando

126 Em sua célebre obra Execução civil, Cândido Rangel Dinamarco, apesar de criticar o procedimento de

cobrança extrajudicial, em momento algum tece comentários acerca da figura do agente fiduciário, restringindo-se, conforme já referido, a sinalizar a aceitação da execução extrajudicial, caso se garanta a efetividade do controle jurisdicional, todavia, sem indicar como isso sucederia, se a priori ou a posteriori. (Execução Civil, cit.).

80

submetido ao Poder Executivo, a figura do agente fiduciário, mutatis mutandis, remete-nos

aos auxiliares da justiça que em outros ordenamentos jurídicos estão vinculados ao Poder

Executivo, o que, como vimos, não se alinha à tradição processual luso-brasileira.

Independentemente disso, podemos afirmar que a atuação do agente fiduciário

está vinculada aos atos procedimentais previstos em lei, portanto não possui

discricionariedade alguma sequer para revisar os cálculos elaborados unilateralmente pela

instituição financeira, cabendo-lhe tão-somente, uma vez instado a cobrar o débito do

mutuário, a adotar as medidas tendentes a viabilizar o pagamento do crédito invocado.

A partir de uma visão crítica acerca daquilo que efetivamente sucede no quadro da

cobrança extrajudicial hipotecária brasileira, salta-nos aos olhos a evidente necessidade de

que o agente fiduciário tenha a capacidade técnica para apurar a regularidade dos valores

cobrados do consumidor, sabidamente parte mais vulnerável da relação decorrente do

financiamento imobiliário.

Note-se que a nossa preocupação, embora decorrente de uma relação patrimonial

de cunho particular, também se reveste de interesse público, pois é notório que os contratos

de financiamento imobiliário são realizados em massa, por meio de contratos de adesão, e

iniludivelmente tendem a sufocar o Judiciário, em decorrência de demandas revisionais de

saldos devedores e pedidos de liminares para a sustação da execução hipotecária

extrajudicial, em virtude da abusividade dos valores cobrados.

Embora inexistam estatísticas a respeito, não são raras as vezes em que deparamos

com ações tramitando no Judiciário em que se contestam a regularidade dos créditos

invocados pelas instituições financeiras nas execuções hipotecárias extrajudiciais.

Nesse diapasão, a atuação do agente fiduciário poderia ser mais especializada e

crítica, a ponto de sinalizar a regularidade dos cálculos apresentados, inclusive a fim de

evitar a realização de onerosas perícias e discussões absolutamente desnecessárias perante

o Judiciário.

81

É evidente que os meios eletrônicos estão disponíveis para, através de programas

específicos, viabilizarem a pronta resposta acerca da regularidade ou não das planilhas de

atualização de débito fornecidas pelas instituições financeiras.

Bastaria aos agentes fiduciários, valendo-se dos sistemas existentes, preencher as

informações necessárias (variáveis), tais como taxa de juros, índice de correção monetária,

multa, prazo (data de valor presente e futuro), além de outros encargos contratuais

comumente verificados nos contratos de adesão, para que o próprio sistema operacional

instalado realizasse a imediata apuração do desenvolvimento da dívida.

Sob a nossa ótica, considerando que estamos diante de um procedimento

extrajudicial, que visa justamente a pronta satisfação da execução, a manutenção do

sistema interdependente de fomento ao crédito habitacional e o desafogamento do

Judiciário, a simples verificação da regularidade dos valores cobrados, diretamente por

aquele que possui formação técnica para tal, em nada prejudicaria a celeridade do

procedimento.

Ao contrário, desde que aliada a uma multa para o eventual desvio de conduta na

elaboração da conta por parte da instituição financeira, seria um importante fator

dissuasório daqueles que, à falta de argumentos sérios e jurídicos para obstar a satisfação

do crédito, de forma genérica e aviltante, por vezes se dirigem ao Judiciário contestando os

cálculos apresentados pelas instituições financeiras, para, em decorrência da reconhecida

morosidade do Judiciário, se perpetuarem na posse do bem por anos, sem nada pagar.

Sem embargo, a realização da verificação da regularidade da cobrança pelo agente

de execução coaduna perfeitamente com a necessária proteção do consumidor.

Indubitavelmente, dada a complexidade dos cálculos a serem realizados, por vezes

de dificílima compreensão por parte do consumidor, é imperioso reconhecer nele a

vulnerabilidade que lhe põe em situação absolutamente desfavorável para se opor a uma

eventual incorreção existente nos cálculos apresentados.

82

Sob a nossa ótica, seria mais condizente com o espírito dos princípios

constitucionais processuais e das normas de defesa do consumidor permitir ao consumidor

a realização de uma nova conta de atualização de débito, diretamente perante o agente de

execução (que poderá ser o notário ou o agente fiduciário, independentemente da

nomenclatura a ser utilizada), para a simples verificação da regularidade do cálculo

apresentado.

Ora, se o procedimento extrajudicial coaduna perfeitamente com os interesses das

instituições financeiras, no que diz respeito à celeridade e a eficácia da cobrança, a análise

prévia da planilha, ou preferencialmente a posteriori, mediante provocação por parte do

devedor, decerto seria amplamente compatível com o interesse do credor em minimizar

qualquer possibilidade de discutir e/ou rediscutir a cobrança perante o Judiciário.

Por outro lado, a simples revisão dos cálculo por parte do agente de execução

também evitaria levar ao Judiciário uma série de demandas revisionais de saldo devedor,

que no mais das vezes revelam um censurável ato de procrastinação da realização do

direito.

Entendemos que, após a realização dos cálculos por parte do agente de execução,

caso os mesmos voltem a ser questionados, seja pelo credor ou pelo devedor, tal

questionamento se dará perante o juiz de execução, sendo que, na hipótese da provocação

demonstrar-se totalmente impertinente, deverá ser aplicada à parte que atuou de forma

temerária a imposição da necessária multa processual, justamente para dissuadi-la a não

mais incidir em condutas deletérias que tais.

Destarte, desde que se garanta ao devedor o direito de se contrapor aos cálculos

realizados unilateralmente pelo credor, entendemos ser perfeitamente concorde com os

princípios constitucionais e infraconstitucionais de garantia de justiça que a conferência de

regularidade da cobrança se dê extrajudicialmente.127

127 Compartilhamos do entendimento de Luiz Guilherme Marinoni e de Sérgio Cruz Arenhart, no sentido de

que a doutrina processual civil e os operadores do direito devem extrair do ordenamento jurídico e sobretudo das normas processuais “um resultado que confira ao processo o máximo de efetividade, desde, é claro, que não seja pago o preço do direito de defesa” (Manual do processo de conhecimento, cit., p. 33).

83

Um outro problema que se verifica diz respeito à credibilidade daquele que

verificará a regularidade dos cálculos apresentados pelas instituições financeiras.

É sabido que, ao exigir do agente fiduciário a verificação dos cálculos

apresentados pelas instituições financeiras, por mais que a apuração da elevação do débito

seja realizada por meio eletrônico, será imperioso que o profissional tenha alguma

intimidade com os critérios contábeis a serem utilizados, bem como tenha a capacidade de

reconhecer no contrato os elementos imprescindíveis para a verificação que terá lugar.

Ora, o juiz também não dispõe de tal conhecimento técnico e, independentemente

dos altos custos que disso decorre, costumeiramente recorre ao perito judicial para aclarar a

situação!

Portanto, o mais importante é que se garanta a independência, a imparcialidade e

o reconhecimento conhecimento técnico para a realização do trabalho de conferência de

cálculos aritméticos.

A solução adotada em Portugal, relativa ao agente de execução, que deve possuir

formação específica de três anos para o seu labor, sob a nossa ótica, pode se revelar um

meio deveras profícuo para viabilizar a qualidade dos serviços que serão realizados.

Por outro lado, não se distanciando da realidade brasileira, é cediço que no país

existe um excesso de faculdades de direito, e que o mercado é absolutamente diminuto,

face à latente oferta de serviços jurídicos.

Em virtude disso, a formação de agentes fiduciários – independentemente da

nomenclatura que recebam – poderia se revelar um meio alternativo na carreira jurídica,

inclusive em termos de desafogo de mercado de trabalho.

Outra questão a ser divisada diz respeito à viabilidade ou não dos serviços dos

agentes de execução – ou fiduciários – serem ou não realizados no âmbito dos cartórios de

registro de imóveis.

84

Tal questão, a nosso ver, está submetida tão-somente a uma decisão estratégica de

cunho organizacional e operacional, eis que tudo dependerá da formação adequada para a

realização dos serviços de forma profícua.

Indubitavelmente, para que a execução hipotecária seja eficaz, mister se faz

amparar o sistema de profissionais qualificados e dotados do aparato material adequado

para o melhor desempenho das suas funções.

No entanto, conforme adiante veremos, entendemos ser descabida a prevalência

do monopólio ou da reserva de juiz na realização dos atos executivos tendentes à satisfação

do direito do credor hipotecário.

2.7 A interpretação jurisprudencial e doutrinária favorável à

execução extrajudicial

Quando nos referimos a um procedimento extrajudicial de execução de hipoteca,

desde logo podem se suscitar questões relacionadas com a sua constitucionalidade, face

aos princípios constitucionais processuais, tais como o do acesso ao Judiciário, do

contraditório, da igualdade e do monopólio de jurisdição, entre outros.

A princípio, consoante ao estudado quando da evolução histórica dos atos

executivos, uma vez delineados em lei os contornos atinentes aos procedimentos a serem

adotados pelo credor para o exercício do seu legítimo direito de cobrança, e uma vez

mantendo-se nos estritos termos do permissivo legal, sob a nossa ótica, não haverá lugar

para a costumeira alegação de que a execução extrajudicial constitui um meio de

autodefesa ou autotulela da pretensão da instituição financeira.

A propósito, a execução extrajudicial hipotecária preconizada pelo Decreto n.

70/66 foi julgada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal, que pronunciou-se no

sentido de que, à luz da norma estatuída, a intervenção judicial só se dá para o fim de obter

o arrematante a imissão de posse do imóvel, que lhe será liminarmente concedida pelo juiz,

sendo que a defesa do devedor, salvo se consistir em prova de pagamento ou consignação

85

anterior ao leilão, será debatida após a imissão de posse, por conseguinte não havendo que

se falar em supressão do controle judicial, vez que se estabeleceu apenas uma deslocação

do momento em que o Poder Judiciário é chamado a intervir.

No julgamento de recurso extraordinário128 mais de trinta anos após o advento do

decreto-lei em exame, o Ministro Ilmar Galvão, ao mencionar o entendimento

anteriormente exarado pelo Ministro Décio Miranda129, ressaltou que “no sistema

tradicional, ao Poder Judiciário se cometia em sua inteireza o processo de execução,

porque dentro dele se exauria a defesa do devedor”.

No novo procedimento, a defesa do devedor sucede ao último ato da execução, a

entrega do bem excutido ao arrematante.

No procedimento judicial, o receio de lesão ao direito do devedor tinha

prevalência sobre o temor de lesão ao direito do credor. Adiava-se a satisfação do crédito,

presumivelmente líquido e certo, em atenção aos motivos de defesa do executado,

quaisquer que fossem.

No novo procedimento, inverteu-se a ordem, deu-se prevalência à satisfação do

crédito, conferindo-se à defesa do executado não mais condição impediente da execução,

mas força rescidente, pois, se prosperarem as alegações do executado no processo judicial

de imissão de posse, desconstituirá a sentença não só a arrematação, como também a

execução que a antecedeu.

Antes, a precedência no tempo processual dos motivos do devedor; hoje, a dos

motivos do credor, em atenção ao interesse social da liquidez do Sistema Financeiro da

Habitação.

Sob a ótica do Supremo Tribunal, essa mudança, em termos de política legislativa,

pôde ser feita, na espécie, sem inflexão de dano irreparável às garantias de defesa do

devedor. Teria ele aberto a via da reparação não em face de um credor qualquer, mas em

128 STF – RE n. 223.075-1, rel. min. Ilmar Galvão, j. 23.6.1998 (Disponível em: <www.stf.gov.br>). 129 Estava o Ministro do Excelso Pretório referindo-se aos acórdãos provenientes dos Recursos

Extraordinários ns. 148.872 e 240.361, ambos disponíveis em: <www.stf.gov.br>.

86

relação a credores credenciados pela integração num sistema financeiro a que a legislação

confere específica segurança.

Se, no novo procedimento, viesse a sofrer detrimento o direito individual

concernente à propriedade, a reparação poderia ser preventivamente procurada no Poder

Judiciário (o que tem sido largamente efetuado na prática forense, através de medidas

cautelares em que se requer a sustação do leilão), seja pelo efeito rescidente da sentença na

ação de imissão de posse, seja por ação direta contra o credor ou o agente fiduciário.

Assim, segundo a orientação jurisprudencial, a eventual lesão ao direito individual

não ficaria excluída de apreciação judicial.

Igualmente desamparadas de razões dignas de apreço, segundo o entendimento do

Supremo, as alegações de ofensa ao direito de igualdade perante a lei e ao direito de

propriedade, visto que, na execução extrajudicial, todos que obtiverem empréstimo do

sistema estão a ele sujeito, e a excussão não se faz sem causa, pois reside na necessidade

de satisfazer-se o crédito, em que também se investe direito de propriedade do ente

financeiro, assegurado constitucionalmente.

Por outro lado, segundo o entendimento jurisprudencial, também não prospera

qualquer alegação de que a execução extrajudicial vulnera o princípio da autonomia e

independência dos poderes, visto que o procedimento não transfere do Poder Judiciário

para o agente fiduciário parcela alguma do poder jurisdicional, eis que o agente fiduciário

executa somente uma função administrativa, não necessariamente judicial.

A possibilidade dessa atuação administrativa resulta de uma nova especificação

legal instituída no contrato hipotecário, que assumiu, nesse particular, feição anteriormente

aceita no contrato de penhor, a previsão contratual de excussão por meio de venda

amigável por parte do agente econômico.

O mesmo passou a suceder em relação à hipoteca contratada com o agente do

Sistema Financeiro da Habitação, e, portanto, quem adere ao sistema aceita a hipoteca com

essa virtualidade, razão pela qual o litígio eventualmente surgido entre o credor e o

87

devedor fica, num como noutro caso, separado do procedimento meramente administrativo

da excussão.

O Ministro Ilmar Galvão, ao firmar convencimento acerca da constitucionalidade

da execução extrajudicial hipotecária, asseverou que a venda efetuada pelo agente

fiduciário (leilão), na forma prevista em lei e no contrato, como meio imprescindível à

manutenção do indispensável fluxo circulatório dos recursos destinados à execução do

programa da casa própria, é um ato que não refoge ao controle judicial.

Está, por isso, longe de configurar uma ruptura no monopólio do Poder Judiciário,

não sendo por outro motivo que “prestigiosa corrente doutrinária, com vistas ao desafogo

do Poder Judiciário, preconiza que a execução forçada relativa à dívida do Estado seja

processada na esfera administrativa, posto reunir ela, na verdade, na maior parte, uma série

de atos de natureza simplesmente administrativa. Reservar-se-ia ao Poder Judiciário tão-

somente a apreciação e julgamento de impugnações, deduzidas em forma de embargos,

com o que estaria preservando o princípio do monopólio do Poder Judiciário”.

A visão exarada pela mais alta corte de justiça brasileira, em termos de

constitucionalidade da execução extrajudicial hipotecária, vai ao encontro daquilo que

defendeu o então Ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Velloso, por ocasião da

abertura das III Jornadas Brasileiras de Direito Processual Civil, ocorrida na cidade de

Salvador, em junho de 1999, quando salientou a importância da criação de um aparato

extrajudicial para operacionalizar a execução forçada, na tentativa de solucionar a grave

crise por que passa o processo de execução.130

A doutrina brasileira, apesar de escassa em relação ao tema, e merecendo uma

melhor apreciação da matéria à luz dos princípios constitucionais da reserva do juiz e da

jurisdição, bem como em relação ao contraditório e da igualdade jurídica, tem em Arnold

Wald131 a maior expressão na defesa da execução extrajudicial hipotecária.

130 Débora Inês Kram Baumohl, A nova execução civil: a desestruturação do processo de execução, cit., p. 25. 131 Arnold Wald, Execução hipotecária extrajudicial, Revista de Ciência Jurídica, São Paulo, n. 70, p. 309-

324, 1996.

88

Em seu entendimento, existe uma simetria incontestável entre a alienação por

agente fiduciário e a própria alienação fiduciária, no ponto em que, em ambos os casos,

atribui-se a alguém o direito de vender um determinado bem como se fosse o seu

proprietário, para que, com o produto da venda, se possa extinguir o débito relativo ao

financiamento que possibilitou a aquisição do dito bem.

A diferença resume-se ao fato de que, no primeiro caso, a fidúcia, para a venda do

bem móvel, contempla o próprio credor, enquanto que, no segundo, é estabelecida para a

venda do imóvel em favor de um agente do Sistema Financeiro da Habitação, destinando-

se o produto da venda, em ambos os casos, à extinção da obrigação do devedor em mora.

Para o jurista, pode-se afirmar que a alienação extrajudicial por agente fiduciário é

uma forma especial de alienação fiduciária em garantia, destinada à pronta recuperação dos

créditos por garantia imobiliária, havendo sido instituída como um instrumento

indispensável para o funcionamento razoável do Sistema nacional de habitação, do mesmo

modo que a alienação fiduciária permitiu a explosão construtiva do crédito ao consumidor.

3 FUNDAMENTOS PARA A DESJUDICIALIZAÇÃO DA

EXECUÇÃO HIPOTECÁRIA

3.1 A essência da execução hipotecária e a

desnecessidade do ato de penhora

Uma vez verificado que a superação da autotutela por meio de normas que

restringiram a atuação do credor nos atos de cobrança não tem necessariamente relação

direta com a atribuição ao Estado do poder de se impor entre as partes litigantes para

dirimir o litígio, passamos agora a buscar a essência da hipoteca, vez que, consoante o

escólio de Victorio Magarinos Blanco, “para entender o significado ou transcendência do

chamado procedimento extrajudicial de execução hipotecária, convém deixar claro qual é a

essência da hipoteca”.132

Como constatado a partir da evolução histórica da execução no direito romano,

houve uma evolução no sentido de separar a vinculação pessoal do devedor da

responsabilidade pelo descumprimento da obrigação, que paulatinamente foi recaindo

sobre o patrimônio do devedor e centrando na coatividade ou efetividade da obrigação.

Dessa forma, passou-se a compatibilizar a liberdade individual com a segurança

das transações econômicas.

Sublinha Ramón Maria Roca Sastre133 que no direito romano, ainda que imperasse

a proibição do pacto commissorium, se facultava ao credor a proceder por si próprio a

venda da coisa pignorada, no caso de não pagamento do crédito garantido, o que, aliás,

mutatis mutandis, intrigantemente veio de ser reeditado no direito português, a partir do

advento do Decreto-Lei n. 105/2004, de 8 de maio, que, em desvio da regra consagrada no

artigo 694º do Código Civil, aceita o pacto comissório nos contratos de garantia financeira

previstos na Diretiva n. 2002/47/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de junho.

132 Victorio Magarinos Blanco, El procedimiento extrajudicial de realización de la hipoteca: su viabilidad,

Revista Critica de Derecho Inmobiliario, cit., p. 1.257. 133 Ramón Maria Roca Sastre, Derecho hipotecario, Barcelona: Bosch, 1968, t. 4, v. 2, p. 1.000.

90

No direito romano, inclusive permitiu-se que o próprio credor ficasse com a

garantia pelo seu valor estimado à altura do vencimento do débito e descontando aquilo

que porventura houvesse sido pago.

Com a evolução do instituto, foram concedidos ao credor meios de auto-satisfação

do crédito por meio de duas vias: o pacto comissório e o pacto de vendendo.

O primeiro tinha o perigo de provocar o enriquecimento injusto, e por isso o

Imperador Constantino proibiu a utilização da lex commisoria com esse fim.

Permaneceu, entretanto, o ius vendendi como meio de fortalecimento do credor, e

o pacto que lhe estabelecia se mostrou tão corriqueiro que a jurisprudência de fins do

século II d.C. o considerou como elemento natural do negócio.

Por conseguinte, permanecia incólume o regime que imperava na cedência, ao

credor, da detenção de uma res, que se obrigava a conservar e a restituir após a satisfação

do seu crédito, sob pena de alienação direta pelo credor, com a eventual devolução do

superfluum do preço obtido ao devedor.134

Na evolução da hipoteca, o último passo representa a substituição da posse

necessária pela venda por publicidade registral, já em uma fase avançada, em que se

permitia, tal qual hodiernamente se admite, a alienação do bem sem a prévia entrega da

posse, graças aos mecanismos registrais de publicidade e a proteção dos interesses em

jogo, mediante o controle estatal daquela alienação.

Segundo Victorio Magarinos Blanco, “atualmente a hipoteca aparece conformada

sobre a base do ius vendendi, e a sua essência radica nesse direito de proceder à venda do

bem em que recai a garantia. Se trata de um senhorio sobre a coisa que a si está sujeitada

frente a todos e consiste na realização do seu valor, por meio da sua alienação. O direito de

alienar a coisa hipotecada é o centro de energia da hipoteca, seu núcleo, sua essência. E,

em tal possibilidade reside também sua utilidade: face ao descumprimento da obrigação, o

134 Note-se que, no preâmbulo do Decreto-Lei português n. 105/2004, de 8 de maio, quedou consignado que

permite-se excepcionalmente “que o beneficiário execute a garantia por apropriação do objecto desta, ficando obrigado a restituir o montante correspondente à diferença entre o valor do objecto da garantia e o montante da dívida. Este ‘direito de apropriação’ visa dar resposta à necessidade de existência de mecanismos de execução das garantias sobre activos financeiros que, não pressupondo necessariamente a venda destes, permitam ver reduzidos os riscos decorrentes da potencial desvalorização do bem”.

91

credor não necessitar recorrer à execução forçada sobre o patrimônio do devedor, com os

problemas judiciais que sabidamente advêm. Basta ao credor realizar a garantia, vendendo

a coisa, em virtude de um direito específico e pactuado, que é a hipoteca, e sem

necessidade de invocar a responsabilidade patrimonial universal do devedor. O credor

realiza, dessa forma, uma execução pactuada e não forçada”.135

Nesse sentido, sob a nossa ótica, é indiscutível que quando o credor hipotecário é

impelido a realizar a sua garantia, ela não pode ser reputada como qualquer garantia, mas

sim uma garantia real, registrada na conservatória e dotada dos mecanismos de publicidade

registral, fruto de um labor independente e imparcial realizado pelo notário que,

efetivamente nesses casos, também exerce uma função jurisdicional, realizada no interesse

do Estado na pacificação social, proporcionada pela segurança dos negócios jurídicos

relativos à transmissão de bens imóveis.

Em decorrência disso, a nosso ver, razão assiste a Mouteira Guerreiro quando,

durante o 10º Congresso Internacional de Direito Registral, realizado em Paris, no ano de

1994, ao apresentar um estudo sobre a hipoteca e a penhora, defendeu que “é praticamente

supérfluo que decorra, no processo executivo, a fase precisamente destinada a conseguir

que, relativamente a prédio hipotecado e antes de poder ser efectuada a venda coactiva,

tenha que ser constituída sobre o mesmo um novo direito – o da penhora – como se não

existisse já uma anterior garantia, igualmente de natureza real, a sujeitá-lo ao pagamento

do crédito. Tudo isso se nos afigura desnecessário. De facto, o poder sobre a coisa, a

sequela própria do direito real, ficou a existir com o registo da hipoteca. Mais: a debatida

característica de o credor poder ser pago preferencialmente pelo valor da coisa também se

verifica com a hipoteca. No caso de cobrança coercitiva do crédito, o grau prioritário do

direito acha-se definido pela hipoteca. A ulterior penhora não lhe vai acrescentar nem

retirar nada136. E também não há uma maior ou menor garantia para o credor ou para

terceiros. Na verdade existe, não só em termos do direito substantivo, como não menos

135 Victorio Magarinos Blanco, El procedimiento extrajudicial de realización de la hipoteca: su viabilidad,

cit., p. 1.261. 136 Na esteira dos ensinamentos de Humberto Theodoro Júnior também se deflui a impropriedade de se

realizar a penhora no caso de uma execução hipotecária, pois se a penhora importa na criação, para o credor, de uma preferência, “um direito real sobre os bens penhorados, conferindo-lhe uma garantia pignoratícia equivalente ao penhor convencional ou legal, como terceira espécie do direito de penhor (de direito material), de cuja natureza participa, e cujos princípios informativos podem ser-lhe aplicados por analogia”, entendemos que seria desnecessária a realização de um ato para se atingir efeitos que já defluem da própria garantia exeqüenda, independentemente da realização da afetação judicial (Processo de execução, 23. ed., São Paulo: LEUD, 2005, p. 326).

92

claramente nos do direito registral, um princípio que tem sido designado como o da

‘eficácia real’, segundo o qual, existindo hipoteca e posterior penhora sobre um prédio,

para garantia do cumprimento da mesma obrigação, a graduação do crédito é dada pela

ordem prioritária da hipoteca e não pela da penhora”.137

Consequentemente, se pudermos identificar na penhora as funções de

individualizar e apreender bens destinados à execução, a prevenção de desvio do bem

penhorado e a criação da preferência para o exeqüente, entendemos que não se justificam

tais cuidados diante da eficácia e da preferência erga omnes decorrentes da hipoteca

anteriormente estabelecida.138

Inclusive, a possibilidade de o credor hipotecário fazer valer o seu direito,

gozando da faculdade de realizar a garantia prioritariamente em relação aos demais

credores, revela o caráter de seqüela139 que à própria hipoteca já é inerente,

desnecessitando, por conseguinte, de ratificação da prelação decorrente da penhora.

Diante das suas funções, sob a nossa ótica, carece de justificativa teleológica a

realização da penhora no caso da execução hipotecária. Considerando as peculiaridades da

garantia real hipotecária e contrapondo-as com o sentido estrito da penhora, qual seja, o de

apreender a coisa, no caso da execução hipotecária, somos amplamente favoráveis à

desnecessidade da realização da penhora por termo, independentemente de a coisa

encontrar-se em poder de um terceiro.140

137 E a título de exemplo, Mouteira Guerreiro relembra que “no caso de o devedor da coisa hipoteca a vender

a um terceiro, que registe, se a execução do crédito hipotecário prosseguir e a mesma vier a ser penhorada, nenhum obstáculo tabular surgirá pelo facto de, nesse entretanto, ela ter sido registada a favor desse terceiro. É que a penhora era conseqüência da hipoteca e a seqüela é dada pode esta e não pela penhora. Donde que, mesmo em termos puramente tabulares, se pode concluir que a penhora nada veio acrescentar à penhora. Quase se diria que, pelo contrário, até confunde uma vez que não é o grau prioritário da penhora que vai relevar, tanto para o registo como para o processo executivo, ele é, evidentemente, o da hipoteca” (Mouteira Guerreiro, Reflexões no âmbito registral, cit., v 3, p. 89-90).

138 Acerca dos efeitos da penhora, vide: Humberto Theodoro Júnior, Processo de execução, cit., p. 326. Segundo José Lebre de Freitas, “dada a função que lhe é própria, a penhora envolve a constituição dum direito real de garantia a favor do exequente”, sendo que, como tal, “tem direito o atributo da preferência (ou prevalência): o exequente fica com o direito de ser pago com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior (art. 822-1 CC)” (” (A ação de execução: depois da reforma, cit., p. 269-270).

139 Para um maior aprofundamento do caráter de sequela da hipoteca, vide: Maria Isabel Helbling Menéres Campos, Da hipoteca: caracterização, constituição e efeitos, cit.

140 Para um maior aprofundamento do sentido estrito da penhora e das repercussões que poderão suceder a partir apreensão de bens que se encontram em poder de terceiros, ver: Miguel Mesquita, Apreensão de bens em processo executivo e oposição de terceiro, 2. ed., Coimbra: Almedina, 2001.

93

A propósito, a penhora porventura realizada em sede judicial, entre outros

atributos, tem o condão de deixar a coisa penhorada à disposição do tribunal para que, por

meio do exercício do ius imperii estatal, realize-se o desapossamento e, por conseguinte, a

sua expropriação a favor do credor, o que em nada nos induz ao convencimento da sua

indispensabilidade.

É que, como adiante veremos, a sujeição do adjudicante (de recorrer ao Estado) e

do devedor (de ser privado do bem de forma forçosa) à força estatal para o desapossamento

do bem em nada repercute na manifesta prescindibilidade do ato de penhora do bem

hipotecado.141

Para tanto, conforme visto, além de considerarmos despicienda a penhora por

nada acrescer à eficácia real que decorre da própria garantia hipotecária, entendemos ser

uma construção por demasiado formalista e contrária ao instrumentalismo que deve

decorrer do processo; assim, não se relaciona a penhora com a possível e não certa

necessidade do credor ser impelido a recorrer ao poder coercitivo do juiz para desapossar o

devedor ou o terceiro que porventura se negue a desocupar o imóvel executado.

Entendemos que na quadra histórica em que nos encontramos, preliminarmente ao

recurso da força pública, que deve ser relegado a um último momento – somente para

aqueles casos em que não mais houvesse alternativa –, devemos nos socorrer de

instrumentos jurídicos de pressão psicológica para dissuadir a parte inadimplente a cumprir

as suas obrigações.

De fato, na falta de desocupação espontânea do bem executado num prazo

determinado em lei, poder-se-ia impor ao infrator a multa ou a cominação pecuniária diária

que porventura fosse fixada pela legislação própria, sendo certo que somente ultrapassada

tal situação é que o adjudicante teria interesse em invocar a tutela jurisdicional para, sem

maiores delongas ou dilação processual, requerer liminarmente a imediata imissão na posse

do imóvel.

141 Nesse aspecto, merecedora de crítica a recentíssima reforma havida no processo executivo brasileiro (Lei

n. 11.382, de 6 de dezembro de 2006), que manteve, no parágrafo 1º do artigo 655 do Código de Processo Civil, a previsão de que a penhora recairá preferencialmente sobre a coisa dada em garantia na execução por crédito com garantia hipotecária.

94

Além disso, poder-se-ia proporcionar ao executado um incentivo ao cumprimento

espontâneo do dever de desocupar o bem, como por exemplo a redução do pagamento de

custas pela metade, ou até mesmo a própria isenção de custas, ficando a cargo do credor,

com a imposição do princípio ubi commoda ibi incommoda, o ônus de suportá-las.142

Note-se que em caso de arrematação ou de adjudicação do imóvel, seja perante o

notário ou por qualquer outro entre privado ou não, desde que legitimado pelo Estado para

o ato, tal qual sucede no Brasil, o mesmo poderia constar de uma certidão que, por sua vez,

poderia ser registrada na conservatória do local da situação do imóvel.

Aliás, não podemos olvidar que o simples averbamento perante o notário também

ocorre quando do arresto de um bem imóvel que, conforme é cediço, prescinde da penhora

do bem como prévia manobra processual para o desiderato.

Por conseguinte, em termos de hipoteca, podemos concluir que o eventual recurso

ao poder coercitivo do Estado para a desocupação do imóvel arrematado ou adjudicado não

decorre da penhora propriamente dita, mas tão-somente do cumprimento do comando legal

proveniente do ato de satisfação do direito do terceiro arrematante ou do credor

adjudicante, todavia decorrente da venda do bem, e não do ato de penhora.

Sem prejuízo, no caso da execução hipotecária, a nosso ver, não se aplicaria ao

caso o conhecido princípio de proporcionalidade da penhora, que nas precisas lições de

Miguel Teixeira de Sousa, significaria que “não devem ser penhorados mais bens do que

os necessários para a satisfação da pretensão exequenda”.143

Na execução hipotecária, a garantia é que será objeto de expropriação, e tomando-

se como assente que o fruto da sua alienação para o pagamento ao credor hipotecário por

vezes poderá gerar um excedente favorável a ser revertido ao devedor, dependendo da

142 Recentemente, por ocasião do advento da Lei n. 11.382, de 6 de dezembro de 2006, no ordenamento

jurídico brasileiro, introduziu-se no Código de Processo Civil o artigo 652-A, que dispõe no sentido de que ao despachar a inicial, o juiz fixará, de plano, os honorários de advogado a serem pagos pelo executado, estes nunca superiores a 20% do valor da causa, sendo que, no caso de integral pagamento no prazo de três dias, a verba honorária será reduzida pela metade.

143 Miguel Teixeira de Sousa acrescenta que “a agressão ao patrimônio do executado só é permitida numa medida que seja adequada e necessária para a satisfação da pretensão do exeqüente, o que conduz a uma indispensável ponderação dos interesses do exeqüente na realização da prestação e do executado na salvaguarda do seu patrimônio” (Estudos sobre o novo processo civil, 2. ed., Lisboa: Lex, 1997, p. 641).

95

amortização havida no financiamento, entendemos que o equilíbrio a ser perseguido estará

na forma de venda do bem, para que não seja ocasionada injustiça àquele que porventura

tenha pago parte considerável da dívida e que, através de uma arrematação por preço vil,

perca parte considerável daquilo que pagou.

Em virtude disso, consideramos plenamente descartável a fase de penhora na

execução hipotecária, o que, indubitavelmente, ocasiona maior celeridade ao procedimento

e a superação de discussões que não se alinham com a sua sobejada eficácia real.

Sem embargo, analisando a superação do pacto comissório e a persistência do ius

vendendi, podemos constatar que desde o direito romano subsiste a preocupação de não se

ocasionar prejuízos ao devedor, o que, face as vulnerabilidades socioeconômicas

existentes, merece ser adequadamente regulamentada pelo Estado, inclusive em termos de

execução hipotecária.

Entretanto, em que pese ser imperiosa a regulamentação da forma de venda do

bem hipotecado, somos absolutamente favoráveis ao entendimento de Victorio Magarinos

Blanco, no sentido de que o controle do ius vendendi “não tem motivo para ser

necessariamente judicial, basta com que se forneça as garantias necessárias para evitar

abusos e excessos que o seu exercício possa ocasionar”.144

O artigo 1.858 do Código Civil espanhol inclusive permite ao credor o direito de

realizar o valor do imóvel hipotecado, mediante a sua venda pelo próprio credor, enquanto

que o artigo 1.872 do mesmo diploma reconhece a viabilidade de a venda se dar perante o

notário, não sendo por outro motivo que o artigo 129 da Ley Hipotecaria estabelecia que

competia ao controle notarial a realização do ius vendendi.

144 Victorio Magarinos Blanco, El procedimiento extrajudicial de realización de la hipoteca: su viabilidad,

cit., p. 1.261.

96

Não é por outro motivo que Magarinos Blanco145 defende que a execução

hipotecária espanhola não se confunde com a chamada execução forçada146, pois não é

adequado afirmar-se que seja forçoso recorrer à via judicial para a realização da pretensão.

Ademais, considerando a superação da fase de penhora no procedimento, sob a

nossa ótica não se mostra razoável fazer com que o Estado notifique o devedor a cumprir a

sua obrigação no prazo legal, sob pena de penhora.

Ora, a simples realização da garantia por parte do credor hipotecário perante o

notário (inclusive perante terceiro que porventura seja legitimado para o ato) não se alinha

ao imprescindível recurso à força pública para a satisfação do crédito exeqüendo.

Não estamos aqui discorrendo sobre o caráter publicístico ou privatístico da

execução, ou do retorno à vindicta privata. Pelo contrário, estamos simplesmente tecendo

comentários acerca de um fato: a realização da garantia hipotecária pode perfeitamente

prescindir da força estatal, pois a transferência da propriedade, desde que realizada nos

estritos limites da lei, pode se dar por simples ato notarial, quedando, em caso de

necessidade, o recurso à força policial para o desapossamento do bem restrito a

determinação judicial.

Não obstante, a execução hipotecária consiste no exercício do direito decorrente

da garantia, qual seja, de vender o bem e satisfazer o crédito com o produto resultante (ius

vendendi), ainda que o referido exercício se dê por meio do procedimento executivo.

Portanto, considerando a verdadeira essência da hipoteca, em linhas gerais, pode-

se dizer que se o devedor não cumpre com o pagamento das parcelas do financiamento, o

credor fica investido da faculdade de satisfazer o seu direito de crédito com um ato de sua

iniciativa, invocando a venda da garantia individualizada, através do registro da hipoteca

145 O autor afirma que quando o crédito garantido por hipoteca está vencido “no hay ejecución sino,

sencillamente, realización de la garantía mediante apropición por acto unilateral” (Victorio Magarinos Blanco, El procedimiento extrajudicial de realización de la hipoteca: su viabilidad, cit., p. 1262)

146 De acordo com Cândido Rangel Dinamarco, poder-se-ia afirmar que a execução forçada é a que se faz por meio do processo e do exercício da jurisdição estatal, no caso de inadimplemento. (Execução civil, cit., p. 104-105).

97

perante a conservatória competente, não se confundindo tal alienação com a excussão da

universalidade dos bens do devedor, ou seja, o seu patrimônio.

Se no processo executivo lato sensu existe a responsabilidade genérica da

submissão dos bens do devedor à satisfação do crédito exeqüendo, em sede de execução

hipotecária, conforme retratado, isso não se mostra pertinente, sendo esse mais um motivo

para que se prescinda da necessidade de penhora para a afetação e individualização de

bens.

O estabelecimento da garantia hipotecária que, consoante o sempre preciso

escólio de Antunes Varela, é a “rainha” das garantias, visa justamente tutelar eficazmente o

interesse do credor, que poderia frustrar-se a partir da dilapidação do patrimônio do

devedor por ato próprio ou pelas contingências decorrentes dos riscos vividos em

sociedade.

É cediço que a instituição de garantias para o cumprimento das obrigações surgem

como um modo específico de reforçar a posição jurídica do credor, ampliando o seu poder

e afigurando-se como um novo direito subjetivo ou uma nova faculdade que se justapõe ao

direito de crédito, pois interessa ao direito, acima do cumprimento forçoso com a

intervenção dos órgãos jurisdicionais, a satisfação voluntária do crédito, a partir do

pagamento por parte do devedor.

E por atualmente haver um certo desapreço pelo crédito pessoal, devido,

conforme asseverado por Almeida Costa147, ao ritmo de circulação de bens e à fácil

deslocação de pessoas, a garantia real, embora menos ampla que a garantia pessoal, pois

cria uma relação de preferência sobre uma coisa determinada, diante da segurança que

proporciona, é amplamente realizável.

Consoante a essência da garantia hipotecária e a sua importância para o mundo

dos negócios, hoje sabidamente realizados em massa, o processualista civil não pode e não

deve ficar alheio à necessidade de aperfeiçoar o sistema, com soluções hábeis a bem tutelar

o crédito, sob pena de injustificadamente torná-lo oneroso e de difícil acesso, o que, de

147 Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das obrigações, 7. ed., Coimbra: Almedina, 1998, p. 811.

98

certa forma, trata-se de mais uma forma de exclusão, aqui traduzida em exclusão de

acessibilidade ao crédito.

Conforme sublinhado por Vaz Serra, a hipoteca é um dos meios, acaso o mais

valioso, de incrementar a economia “facilitando ao proprietário com base nos seus bens

imobiliários, a aquisição de crédito, que lhe permita, com o mínimo de encargos e pelo

prazo conveniente, dispor dos capitais de que carece para desenvolver o aproveitamento do

solo”.148

E é justamente visando a superação de determinados dogmas de cunho

eminentemente processual, a partir de uma análise mais acurada da própria garantia real

em apreço, que podemos perfeitamente concluir que a execução hipotecária prescinde da

fase de penhora.

A propósito, por se tratar a execução hipotecária da própria realização da garantia

real por parte do credor diretamente perante o notário (ou outro ente legitimado), dela se

pode dissociar a idéia de cumprimento coercitivo da obrigação, ou seja, de execução

forçada.

Uma vez instado a purgar a mora no prazo legal, e ultrapassado tal lapso temporal

sem o devido pagamento por parte do devedor, automaticamente poderá o credor realizar a

garantia ofertada, motivo pelo qual não há que se falar na excussão de bens indeterminados

(patrimônio) do devedor em sede hipoteca, pois a realização do direito do credor se dará

sobre um bem certo e determinado, graças a realização de um negócio solene, no qual

foram obedecidas as prescrições legais para a sua formação.

3.2 Da realização adequada dos atos executivos

A partir da essência da garantia real de hipoteca, sob a nossa ótica, mostrou-se

absolutamente aceitável a sua realização perante o notário ou terceiro adequadamente

legitimado e preparado para tal mister.

148 Adriano Paes da Silva Vaz Serra, Hipoteca, Separata do Boletim do Ministério da Justiça, Lisboa, n.

62/63, p. 5 e ss., 1957.

99

Portanto, independentemente da necessária superação dos problemas relacionados

com os princípios constitucionais-processuais, que adiante merecerão o devido enfoque, as

únicas preocupações de cunho processual que a nosso ver poderiam exsurgir da execução

extrajudicial hipotecária, remetem-nos a algumas das que subsistiam antes do advento das

execuções realizadas perante o agente de execução português.

Os problemas poderiam decorrer da forma de notificação do devedor

(considerando a instituição de uma hipoteca impeditiva de transmissão do bem a terceiros

sem a anuência do credor hipotecário, o que, aliás, costumeiramente se infere dos contratos

com cláusulas de adesão), da venda por preço vil do bem hipotecado e do eventual saldo

credor remanescente, e, por fim, da necessária articulação entre o notário (ou particular) e

o agente judicial, que será o responsável pelo deslinde das oposições que terão lugar.

A partir da experiência havida com as inovações introduzidas no ordenamento

jurídico português após a reforma de 2003, as aludidas preocupações não se revelam

intransponíveis.

Ao revés, são perfeitamente superáveis, a partir da adoção de soluções análogas às

já adotadas em Portugal para a viabilização do exercício do trabalho do agente de

execução.

3.2.1 Da citação do executado

De acordo com as disposições do artigo 864 do Código de Processo Civil,

independentemente das formalidades previstas nos artigos 233 e seguintes, todos do

Código de Processo Civil português, a citação do executado é feita nos termos gerais,

podendo se dar na forma de edital.

Diante do fato de que, em nosso entendimento, não se justifica a realização de

penhora na execução hipotecária, defendemos que o momento adequado para a citação do

devedor para pagamento será aquele imediatamente posterior ao ingresso do credor com o

seu requerimento executivo.

100

A ponderação em apreço está absolutamente condizente com os ditames do artigo

812-B-1, que faz uma restrição à regra da coincidência entre dispensa de liminar e de

citação prévia, o que significa que, apesar de não ser proferido despacho liminar e de não

se cogitar da realização da penhora do bem hipotecado, mesmo assim a execução

hipotecária cuidará para que o executado tome conhecimento da cobrança e que tenha a

possibilidade de purgar a mora com prazo razoável, anteriormente à sua alienação.

Nesse diapasão, entendemos que a sistemática utilizada no regime da execução

extrajudicial brasileira pode ser, no que couber, adequada à legislação portuguesa,

inclusive porque esta admite a citação por edital, quando o devedor estiver em local incerto

e não sabido.

Independentemente de a execução tramitar perante o notário ou diante de um

terceiro particular, deverão ser envidados esforços para localizar o devedor no local em que

o mesmo declinar como sendo o seu domicílio ou a sua residência na escritura de hipoteca,

sobretudo quando se tratar de contratos de financiamento imobiliário para a aquisição da

casa própria garantidos por hipoteca.149

Se o devedor adquiriu o imóvel hipotecado para a sua moradia e com cláusula de

não alienar a terceiros sem a anuência da instituição financeira, é perfeitamente exigível

que as diligências tendentes à sua localização fiquem restritas ao endereço do próprio

imóvel.

Entretanto, ressaltamos que o marco para a determinação do endereço para a

localização do devedor ou daquele não devedor, mas garante da dívida, deverá ser o

fornecido quando da outorga da escritura de hipoteca, sendo que, em caso de sua alteração,

será ônus da parte interessada fazer a comunicação devida ao notário, bem como, por

medida de lealdade e boa-fé, também ao credor hipotecário.

149 O fato de se imporem determinadas obrigações ao credor e ao devedor, notadamente no que diz respeito à

informação do endereço para localização, mesmo que de forma tímida, veio de ser acolhido no direito brasileiro a partir do advento da Lei n. 11.382, de 6 de dezembro de 2006, pois, segundo a atual redação do artigo 238 do Código de Processo Civil, presumem-se válidas as comunicações e intimações dirigidas ao endereço residencial ou profissional declinado na inicial, contestação ou embargos, cumprindo às partes atualizar o respectivo endereço, sempre que houver modificação temporária ou definitiva.

101

Portanto, recebido o requerimento de execução da dívida, o notário ou o terceiro

encarregado da cobrança, nos dez dias subseqüentes, promoverá a notificação do devedor

ou do terceiro garante, que deverá ser necessariamente, e com o escopo de se evitar

fraudes, sempre realizada por alguém que disponha de fé pública, concedendo-lhe o prazo

de vinte dias para a purgação da mora.

Quando o devedor ou o terceiro garante se encontrar em lugar incerto e não

sabido, ou de alguma maneira se ocultando de receber a notificação, uma solução possível

seria o oficial (ou qualquer agente, independentemente da nomenclatura que se dê)

certificar o fato, cabendo então ao agente promover a notificação por edital, que deverá ser

publicado por três dias pelo menos, em um dos jornais de maior circulação local, ou noutro

de comarca de fácil acesso, se no local não houver imprensa diária.

Ultrapassado o lapso temporal previsto no edital de notificação sem que o devedor

acuda à purgação do débito, diferentemente daquilo que sucede no Brasil, onde, quando o

devedor não é localizado para receber a notificação para purgação do débito, o agente está

autorizado a publicar editais e a efetuar no decurso dos quinze dias imediatos o primeiro

público leilão do imóvel hipotecado, entendemos que no segundo caso, uma vez aprazadas

as datas para a praça e leilão, por medida de equilíbrio, persiste a necessidade de que,

independentemente da publicação dos editais, novamente se tente localizar o devedor no

endereço da sua residência.

No entanto, tendemos a defender que o caráter obrigacional que resulta da própria

essência da garantia hipotecária e o dever de lealdade exigem que o devedor assuma os

ônus decorrentes da sua incúria, caso não atualize o seu endereço residencial no cartório de

registro.

Em virtude disso, caso o devedor não seja localizado no endereço declinado na

escritura de hipoteca, deverá ser presumidamente considerado citado para pagamento. Para

tanto, bastaria ao agente responsável pela cobrança dirigir-se ao endereço fornecido em

três oportunidades distintas e, em caso de não localização do devedor, realizar a sua citação

por “hora certa”.

102

Outra questão que se coloca é a do litisconsórcio facultativo na execução

hipotecária. Ao analisar o n. 2 do artigo 821º do Código de Processo Civil português,

Maria José Capelo salienta que quando forem penhorados bens alheios aos do devedor,

mas onerados com uma garantia real, “é necessário assegurar a presença, na execução, dos

seus legítimos proprietários ou possuidores. O terceiro não é titular da obrigação

exequenda, mas é responsável pelo facto de ter um bem onerado em favor de dívida alheia.

Nos termos do n. 2 do artigo 56º, se o credor quiser fazer actuar a garantia real, promove a

execução contra o terceiro garante, concedendo-se ao exequente a faculdade de optar por

demandar só aquele, ou os dois (simultaneamente)”.150

Entretanto, no caso sob exame, considerando as peculiaridades da garantia real

hipotecária e, sobretudo, a sua índole manifestamente contratual, entendemos que a

cobrança necessariamente deverá ser realizada exclusivamente contra o terceiro garante

que, por sua vez, poderá, se assim entender, suscitar o benefício de ordem de pagamento,

para que o devedor também seja instado ao pagamento, no mesmo procedimento de

cobrança.

De fato, considerando que o objetivo do credor se traduz na realização da garantia

hipotecária, inclinamo-nos no sentido de que, face ao inexorável liame de confiança

existente entre o terceiro garante e o devedor, caberá ao próprio garante o ônus de decidir

pelo chamamento ou não do devedor, sendo que, nesse caso, a participação do devedor se

cingirá apenas e tão-somente à possibilidade de pagar a dívida ou apresentar alguma

questão prejudicial quanto ao excesso de cobrança.

3.2.2 Da venda da garantia hipotecária e da dispensa da

sua avaliação

No que diz respeito à venda do bem hipotecado, tal qual hoje sucede no sistema

português, a mesma teria lugar quando terminado o prazo para as reclamações de crédito,

sem prejuízo de eventualmente correr em paralelo o apenso de verificação e graduação (art.

873-1).

150 Maria José Capelo, A reforma da acção executiva: pressupostos processuais gerais na acção executiva.

Themis: Revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, ano 4, n. 7, p. 101, 2003.

103

Nesse passo, proceder-se-ia à venda da garantia hipotecária (note-se que não nos

referimos a bem penhorado, tendo em vista que defendemos a exclusão da penhora no

procedimento) para, com o produto nela apurado, se efetuar o pagamento da obrigação e,

de acordo com o eventual excedente, liquidar as obrigações constantes no apenso de

verificação e graduação.

Quanto à sua forma, a venda poderia ser realizada, por aplicação da medida

menos onerosa para o devedor, prioritariamente por propostas em carta fechada151 ou, uma

vez frustrada tal modalidade de venda, por intermédio do profissional leiloeiro, mas

sempre com ausência de determinação (art. 886-1) e participação do juiz, tal qual previsto

nos artigos 876-3 e 901-A-2.

Portanto, não estamos de acordo com a forma de venda do imóvel hipotecado

utilizada no regime da execução extrajudicial hipotecária brasileira, tendo em vista que o

custo da contratação do profissional leiloeiro – 5% do valor da venda ou adjudicação –

ocasiona grave oneração às partes.

Nessa senda, independentemente de discordarmos da necessidade de avaliação do

bem, somos impelidos a concordar com a crítica formulada por Cândido Rangel

Dinamarco, quando aponta a injustiça praticada na execução extrajudicial brasileira, que

não prevê a avaliação do bem e a desnecessidade de correspondência entre o valor da

alienação e o valor real dele.152

Entendemos que, uma vez frustrada a tentativa de venda a terceiros em duas

oportunidades, deve-se abrir prazo para o credor adjudicar o bem hipotecado pelo valor

declarado na escritura de constituição hipoteca, restituindo-se ao devedor o eventual saldo

remanescente entre o valor da dívida e o valor de aquisição do imóvel.

Sabe-se perfeitamente que o valor médio dos imóveis não sofre demasiadamente

com as intempéries decorrentes do chamado “mau humor” do mercado, o que, de certa

151 Conforme o escólio de José Lebre de Freitas, “a venda por propostas em carta fechada constitui a forma

normal da venda executiva de bens imóveis e de estabelecimentos comerciais de valor consideravelmente elevado (arts. 889-1 e 901-A-1)” (A ação de execução: depois da reforma, cit., p. 328).

152 Cândido Rangel Dinamarco, Instituições de direito processual civil, São Paulo: Malheiros, 2004, v. 4, p. 59-60.

104

forma, já seria motivo de precaução contra o desgaste do valor declarado do bem quando

da feitura da escritura.

Contudo, no próprio instrumento de hipoteca também já se poderia fazer constar

uma cláusula prevendo a utilização de algum índice atrelado à variação de valor dos bens

imóveis, para que se realizasse o reajuste da garantia e, concomitantemente, se evitasse a

realização de avaliação, o que, inexoravelmente também resulta, muitas vezes, em enorme

dilação probatória e elevados custos.

Reportando-nos especificamente aos contratos de hipoteca, privilegiando os

princípios da economia e da celeridade, bem como os interesses do credor e do devedor,

somos favoráveis à possibilidade de se outorgar ao credor hipotecário, mesmo quando

terceiros licitem na praça ou leilão, a preferência para adjudicar preço-a-preço o bem.

Tal medida se justificaria em relação ao credor, em virtude de o mesmo não poder

se ver preterido num certame, a partir de propostas de valores que considera

desproporcionais ao valor que acredita possuir o bem, ou até mesmo pelo seu real interesse

em se tornar proprietário do imóvel, somente em razão da fase de arrematação dever

preceder a da adjudicação.

Em contrapartida, com o escopo de evitar fraudes, se garantiria a execução da

forma menos gravosa ao devedor, vez que, independentemente do valor de adjudicação, o

credor lhe outorgaria a plena quitação do seu débito, bem como lhe restituiria a eventual

diferença verificada entre o valor declarado do bem e o valor da dívida, mas nunca pelo

valor da adjudicação preço-a-preço, pois ali o credor somente exerceu a sua preferência.

Estamos diante da preocupação com o ius vendendi que, conforme estudado, é da

própria essência da hipoteca, dadas as suas peculiaridades.

A nosso ver, mesmo que subsistissem alegações restritivas à idéia ora defendida,

face à restrição do pacto comissório, do que respeitosamente discordamos, tendo em vista

que o credor hipotecário, em nosso sistema, em hipótese alguma executaria a garantia por

apropriação do objeto dela, não podemos olvidar que a regra consagrada no artigo 694º do

Código Civil português já foi desviada quando do advento do Decreto-Lei n. 105/2004, de

105

8 de maio, que transpôs para a ordem jurídica portuguesa a Diretiva n. 2002/47/CE do

Parlamento Europeu e do Conselho, relativa aos acordos de garantia financeira.

Portanto, ao que transparece, a vedação ao pacto comissório no seio do

ordenamento jurídico português já admite restrições por parte do legislador.

Caso o valor da adjudicação ou da arrematação fosse superior ao da dívida, não

haveria óbices para que o devedor fosse restituído das diferenças apuradas.

No caso de o bem haver sido arrematado por terceiros por valor inferior daquele

que o credor tinha a receber, a solução que efetivamente se impõe é a de que o responsável

pela execução confira ao credor hipotecário uma certidão com valor de título executivo

extrajudicial, para que continue a buscar a satisfação do seu crédito perante o órgão

competente.

A referida certidão teria lugar caso a execução extrajudicial estivesse tramitando

perante o notário ou perante terceiro particular que não se confundisse com o agente de

execução, pois se por este estivesse a cargo, por medida de economia e celeridade, o curso

da execução seria imediatamente retomado na busca de bens passíveis de penhora, todavia,

dessa feita, regulando-se a execução segundo os ditames do novo processo executivo

português.

3.3 A necessária superação do dogma da reserva de

jurisdição e da inafastabil idade do juiz

Hodiernamente, diante dos inúmeros problemas jurídicos, sociais e políticos que a

sociedade globalizada se depara, é indispensável que o direito processual se caracterize

como instrumento em relação ao direito material, pois “a preocupação do processo como

instrumento na busca de resultados põe em destaque as necessidades e objetivos

preconizados pelo direito substancial. Significa dizer que a eficácia do sistema processual

106

tem como exata medida a utilidade que dele seja possível extrair para o ordenamento

jurídico material e, em última análise, para a pacificação social”.153

Consoante Debora Inês Kram Baumohl, “são três os escopos da jurisdição. O

escopo social, que visa à eliminação de conflitos e à pacificação social. O escopo político,

que consiste no poder jurisdicional do Estado de decidir imperativamente os conflitos que

lhe são submetidos. E, por fim, o escopo jurídico, que equivale à atuação da vontade

concreta da lei, revelando a íntima e profunda interdependência entre o direito material e o

processo”.154

A partir de uma concepção instrumentalista, aqui encartada na figura de Cândido

Rangel Dinamarco155, que reputa como muito pobre a fixação de um escopo

exclusivamente jurídico ao processo, pois o que há de mais importante é a destinação

social e política do exercício da jurisdição, o processualista contemporâneo tem a

responsabilidade de conscientizar esses três planos, recusando-se a permanecer num só,

sob pena de esterilidade nas suas construções, timidez ou endereçamento destoante das

diretrizes do próprio Estado Social.

E é justamente a partir do destaque ofertado ao escopo social da jurisdição que

Cândido Rangel Dinamarco informa que o exercício da jurisdição tem conduzido à

valorização de certos meios alternativos de solução de conflitos, entre eles a conciliação e

a arbitragem.

O princípio de inafastabilidade do controle jurisdicional, que por vezes também é

rotulado de acesso ao Poder Judiciário ou acesso à ordem jurídica justa, é amplamente

amparado nos diversos ordenamentos jurídicos dos chamados Estados Democráticos de

Direito, razão pela qual, cada um da sua maneira assegura à sociedade que “a lei não

excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.156

153 Débora Inês Kram Baumohl, A nova execução civil: a desestruturação do processo de execução, cit., p. 1. 154 Ibidem, p. 2. 155 Cândido Rangel Dinamarco, A instrumentalidade do processo, 7. ed., São Paulo: :Malheiros, 1999, p. 153

e 317. 156 Artigo 5º, inciso XXXV da Constituição da República do Brasil.

107

Com efeito, a garantia do direito de ação ou de petição, que permite ao

jurisdicionado provocar a tutela jurisdicional estatal através de uma ação, para que, por

meio da substituição das partes, seja aplicada a lei ao caso concreto, obrigando, por

conseguinte, o vencido ao cumprimento da ordem proferida, em nada se revela como dever

de ação, mas tão-somente como direito de ação.

Ao analisar a figura da mediação na administração judicial, Renato Siqueira De

Pretto157 reitera que não se pode confundir garantia do direito de ação e garantia de dever

de ação.

E o aludido autor alicerça a sua conclusão no fato de que o Supremo Tribunal

Federal do Brasil, ao apurar a constitucionalidade dos artigos 6º, parágrafo único, 7º e 41

da Lei de Arbitragem (Lei n. 9.307/96), assentou que o artigo 5º, inciso XXXV da Lei

Maior assegura o direito de ação, e não o dever de ação.158

Assim, em matérias patrimoniais, a lei de arbitragem revela-se constitucional, ao

impor que as partes tenham que cumprir a convenção de arbitragem, estando, por

conseguinte, inviabilizada a provocação da tutela jurisdicional estatal, visto que a

competência para a apreciação do litígio é exclusiva do árbitro, munido de jurisdição e do

poder de prolatar sentença caracterizada como título executivo judicial.

Não é por outro motivo que, ao analisar a constitucionalidade dos meios

alternativos de resolução de litígios, Cândido Rangel Dinamarco assevera que “é tão

grande a convergência teleológica entre estes e a jurisdição estatal, que já se chegou a

sustentar, sem qualquer heresia sistemática, a natureza jurisdicional dos processos

arbitrais159. Na medida de sua legitimidade social e política, que certos órgãos alternativos

cumprem também a missão que em sede jurisdicional o Estado por longo tempo

monopolizou”.160

157 Renato Siqueira De Pretto; José Pio Tamassia Santos, Mediação na administração judicial, Revista do

Advogado, São Paulo, Associação dos Advogados de São Paulo, ano 26, n. 87, p. 146, set. 2006. 158 STF –RE n. 5.206, Pleno, rel. Min. Sepúlveda Pertence, m.v., j. 12.12.2001, DJU, de 30.4.2004. 159 E, a partir do advento da Lei n. 11.441, de 4 de janeiro de 2007, tal entendimento poderá também ser

aplicado à atividade do notário que realizar o inventário, a partilha, a separação consensual e o divórcio consensual, eis que recentemente admitida no ordenamento jurídico brasileiro a utilização da via administrativa para a resolução das referidas questões, desde que não envolvendo interesse de menores.

160 Cândido Rangel Dinamarco, Execução civil, cit., p. 191.

108

Entretanto, especificamente no que diz respeito à efetividade da execução, que

iniludivelmente também tem como pressuposto o acesso aos direitos num prazo razoável,

compatível e proporcional à tutela jurisdicional invocada, dada a morosidade que grassa

em nossos tribunais, parafraseando Giuseppe Chiovenda161, entendemos que,

especificamente no processo executivo, no Brasil o processo não proporciona a quem tem

um direito tudo aquilo e precisamente aquilo que ele tem o direito de obter.

É de conhecimento que o “direito a ter direitos”, como assevera Hannah

Arendt162, somente tem lugar a partir do acesso pleno à ordem jurídica que só a cidadania

oferece. E como “acesso integral” não podemos nos contentar com uma sentença com

resolução de mérito em tempo razoável, mas também com a realização no mundo fático

dos direitos conferidos no título judicial ou espelhados no título extrajudicial.

Por outro lado, ao defendermos uma solução mais ágil e compatível, sobretudo

com a realidade da contratação em massa dos contratos imobiliários, mister se faz ponderar

acerca do postulado do equilíbrio, sobretudo porque é perfeitamente crível que aquele que

contratará com a instituição financeira mormente é uma pessoa desprovida de

conhecimentos técnicos relacionados com os empréstimos bancários.

Além disso, é plenamente considerável a hipótese de o consumidor contratar

através de contratos de adesão, sem que lhe seja proporcionada a informação adequada

acerca do meio de cobrança a que se sujeitará em caso de inadimplemento.

Contudo, não podemos olvidar que no processo executivo, que visa a satisfação

duma das partes contra a outra, como adiante veremos, “os princípios da igualdade das

armas e do contraditório não tem o mesmo alcance que no processo declarativo”.163

Dessa forma, qualquer meio alternativo de recuperação de créditos que porventura

seja ventilado, inexoravelmente deverá compatibilizar a devida segurança jurídica e, no

161 Segundo Giuseppe Chiovenda, “o processo deve proporcionar a quem tenha um direito, na medida do

possível, tudo aquilo e exatamente aquilo a que tem direito”. (Instituições de direito processual civil, 2. ed., Campinas: Bookseller, 2000, v. 1, p. 67).

162 Hannah Arendt, apud Renato Siqueira De Pretto; José Pio Tamassia Santos, Mediação na administração judicial, cit., p. 146-147.

163 José Lebre de Freitas, A ação de execução: depois da reforma, cit., p. 21.

109

que couber, a igualdade de armas daqueles que ocuparão a posição de devedores com os

credores.

Esclarece-se que não estamos pura e simplesmente nos referindo ao declínio do

conhecido princípio do favor debitoris, que adiante será devidamente enfocado.

Estamos sim nos referindo a uma série de garantias constitucionais processuais

que na sociedade contemporânea se impõem como condição de até mesmo viabilizar um

dos escopos da jurisdição, qual seja, o respeito à ordem jurídica instituída.

Por outro lado, tendo-se em mente que um outro escopo da jurisdição é o

fornecimento, num prazo razoável, de um provimento a fim de dirimir a controvérsia,

devemos refletir sobre a viabilidade ou não da máxima de Francesco Carnelutti que, ao

defender a dilação do processo, asseverou que “se a justiça é segura não é rápida e se é

rápida não é segura”.

Considerando que a sociedade da informação exige soluções práticas e rápidas

para os múltiplos, interdependentes e cada vez mais complexos problemas que se

apresentam, na esteira do instrumentalismo processual, entendemos ser inevitável que o

processualista moderno alinhe a sua atuação na busca da efetividade do provimento

jurisdicional e a segurança que se impõe numa sociedade de juízos probabilísticos, sem que

isso repercuta em morosidade na obtenção da ordem jurídica justa.

O momento vivido pela sociedade contemporânea exige, tal qual se verifica nas

artes em geral, um sistema claro e funcional, endereçado a bem atender as necessidades do

nosso tempo.

Não mais se justifica a edificação de um complexo sistema alicerçado por um

conjunto de institutos e princípios emoldurados por regras de difícil compreensão, que

somente repercutem negativamente aos vulgarmente chamados consumidores da justiça,

que a nosso turno preferimos reputar simplesmente como cidadãos.

Em sentido oposto ao da execução estritamente estatal que, conforme estudado, é

fruto de uma longa tradição jurídica, que remonta à fase da cognitio extra ordinem,

110

concretizada na sua plenitude na legislação justinianéia e posteriormente encampada no

direito medieval, após a redescoberta e a disseminação do Corpus Iuris Civilis no século

XII, no atual momento vivido pela sociedade “de risco”, notabilizada muito mais por

juízos probabilísticos do que pela lei de causa e efeito, o direito luso-brasileiro depara-se

com o problema da necessária desjudicialização164 dos atos tendentes à expropriação da

garantia hipotecária, para dotar de eficácia o direito substantivo do credor, tendo em vista

que é visível a revisitação do conceito do favor debitoris.

Não é por outro motivo que a doutrina moderna, ao relacionar a menor

onerosidade possível com a efetividade da execução, defende que a moderação nos meios

processuais a empregar, como limite político à execução, não deve mascarar um descaso

em relação ao dever de oferecer tutela jurisdicional a quem tiver um direito insatisfeito,

sob pena de afrouxamento do sistema executivo.

Assim, Cândido Rangel Dinamarco assevera que “quando não houver meios mais

amenos para o executado, capazes de conduzir à satisfação do credor, que se apliquem os

meios mais severos”, pois o favor debitoris “não pode ser manipulado como um escudo a

serviço dos maus pagadores nem como um modo de renunciar o Estado-juiz a cumprir seu

dever de oferecer tutela jurisdicional a quem tem razão”.165

Em virtude disso, o favor debitoris deverá ser interpretado à luz da garantia de

acesso à justiça, sob pena de colocar em risco a efetividade do processo executivo e, por

conseguinte, do próprio crédito como um todo, vez que é cediço que os negócios no mundo

moderno são realizados de forma interdependente, e a frustração de pagamento de um

negócio necessariamente ocasionará na elevação do risco do negócio, podendo inclusive,

dependendo do grau de inadimplência, provocar o colapso do próprio fomento.

Valendo-nos das valorosas e atualíssimas lições de José Lebre de Freitas,

“diferentemente da acção declarativa, a acção executiva tem por finalidade a reparação

164 Seguindo o entendimento formulado por Maria José Capelo, mencionamos a expressão

“desjudicialização” para “designar os casos em que determinados atos são retirados da esfera de actuação do juiz no contexto de um processo judicial, e de ‘desjuridicionalização’ para referir os casos em que a tutela de determinadas pretensões é retirada dos tribunais” (Maria José Capelo, Conferência de Coimbra (29 de junho de 2001): intervenção, cit., v. 3, p. 19).

165 Cândido Rangel Dinamarco, Instituições de direito processual civil, cit., v. 4, p. 58.

111

efectiva dum direito violado. Não se trata já de declarar direitos, pré-existentes ou a

constituir. Trata-se, sim, de providenciar pela reparação material coactiva do direito do

exequente”.166

De fato, não é uma tarefa fácil reconsiderar conceitos enraizados por séculos no

inconsciente dos juristas e dos operadores do direito. Entretanto, a história demonstra que

quando tratamos de assuntos que envolvem a evolução social, econômica, política e

cultural de um povo – muitas vezes entrelaçado naquilo que comumente se chama “aldeia

global” –, não estaremos diante de proposições imutáveis. Pelo contrário, na incansável

busca de soluções para viabilizar o seu projeto político e econômico, a sociedade avança

ou recua, de acordo com as marchas e contramarchas da história, todavia permanece

sempre disposta a aprimorar os mecanismos destinados a proporcionar, de um lado, maior

segurança jurídica e, de outro, a realização da justiça e a pacificação social.

Conforme explanado nas notas introdutórias do presente estudo, a sociedade

contemporânea clama pelo aprimoramento do processo de execução, nem que para isso se

discuta a desjudicialização da cobrança dos créditos decorrentes dos negócios de “massa”.

Em que pese em Portugal, a partir da metade da década de 90, haver se iniciado

um importante movimento de reforma da ação executiva, que culminou com a

desjudicialização, em 2003, dos atos executivos, a partir da adoção da figura do agente de

execução no ordenamento jurídico do país, compete-nos no presente momento verificar se

há espaço para a relativização da reserva de jurisdição167 nas execuções envolvendo

créditos hipotecários.

166 José Lebre de Freitas, A ação de execução: depois da reforma, cit., p. 9. 167 “A jurisdição designa o poder (de julgar) genericamente atribuído, dentro da organização do Estado, ao

conjunto dos tribunais (art. 205º da Constituição da República) (...) no domínio restrito dos conflitos de intervenção entre as diversas autoridades do Estado, o termo jurisdição assume um alcance mais amplo. Inclui-se na esfera da jurisdição, não só o poder globalmente reconhecido aos tribunais em confronto com os demais órgãos do Estado, de modo especial com os que integram a administração pública ou o Poder Executivo, mas também o poder genericamente atribuído a certa categoria de tribunais ou em face das restantes categorias” (João de Matos Antunes Varela; J. Miguel Bezerra; Sampaio e Nora, Manual de processo civil, 2. ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 195-196). De acordo com Jorge Miranda, “na função jurisdicional define-se o direito (juris dictio) em concreto, perante situações da vida (litígios entre particulares, entidades públicas e entre particulares e entidades públicas, e aplicação de sanções), e em abstracto, na apreciação da constitucionalidade e da legalidade de actos jurídicos (maxime, de actos normativos)” (Manual de direito constitucional, 2. ed. reimp., Coimbra: Coimbra Editora, 2000, v. 4, p. 29).

112

Preliminarmente, defende Maria José Capelo o caráter jurisdicional da execução,

tendo em vista que “é neste tipo de processo que o exercício do poder mais contende com

os direitos e liberdades dos cidadãos: os tribunais recorrem ao uso da força com o

objectivo de realizar os direitos violados. O exercício dos ius imperium é apanágio dos

tribunais enquanto órgãos de soberania”.

No entanto, ao apreciar as mudanças de paradigmas na realização dos atos

tendentes à expropriação dos bens do devedor e à satisfação do crédito exeqüendo pelo

agente de execução ou pelo conservador, observa a processualista de Coimbra que “as

condições actuais de justiça arrastam-nos inelutavelmente para a problematização do

princípio da reserva de juiz. A adoção de uma política de justiça, que pressuponha o

recurso a autoridades não jurisdicionais, exigirá, sobretudo dos constitucionalistas, uma

reflexão”.168

Ao refletir acerca da exclusividade da atividade jurisdicional por parte do Poder

Judiciário, Nelson Nery Junior leciona que atualmente no direito brasileiro não subsistem

dúvidas acerca do caráter jurisdicional da atividade do árbitro (regulada pela Lei n.

9.307/96, Lei de Arbitragem), isto é, de aplicar o direito ao caso concreto.

Embora reconheça que “a atividade jurisdicional é típica, mas não exclusiva do

Poder Judiciário”, o processualista da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

assume que o “conceito de jurisdição não tem sido desenvolvido pela doutrina brasileira,

no sentido de acompanhar a evolução que o instituto vem sofrendo nos ordenamentos mais

modernos, visto que a visão brasileira ainda está centrada na influência estática da noção

chiovendiana de jurisdição, de atuação da lei no caso concreto e função substitutiva da

vontade das partes”.169

Cândido Rangel Dinamarco reconhece que a jurisdição é um conceito em crise,

pois a doutrina moderna ressente-se de “insuficiência do exame puramente jurídico de

168 Maria José Capelo, Conferência de Coimbra (29 de junho de 2001): intervenção, cit., v. 3, p. 18. 169 Nelson Nery Junior, Princípios do processo civil na Constituição Federal, 8. ed., São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2004, p. 109. Inclusive, podemos afirmar que a partir da introdução da via administrativa para a realização de inventário, partilha, separação consensual e divórcio consensual no direito brasileiro (Lei n. 11.441, de 4 de janeiro de 2007), desde que não envolvendo interesses de menores, urge a necessidade de se superar a idéia de que somente os atos meramente administrativos poderiam ser realizados por terceiros, que não o Estado-juiz.

113

institutos jurídicos, dada a incapacidade desse método para explicar os fenômenos do

direito em face da significação social e política de cada um”.170

Com efeito, se a atividade jurisdicional é típica mas não exclusivamente estatal, a

nosso ver, torna-se absolutamente despicienda qualquer discussão acerca da natureza

administrativa, satisfativa ou jurisdicional, dos atos essencialmente executivos (penhora,

venda e pagamento). Não é o simples critério funcional, ou seja, o órgão incumbido de

exercer uma atividade jurisdicional que vai determinar se a natureza dos atos a serem

realizados no processo de execução é administrativa, satisfativa ou jurisdicional.

Se a arbitragem é reconhecidamente uma atividade jurisdicional, na qual ao

árbitro é conferido poder de dirimir controvérsias que seriam objeto de uma ação de

conhecimento, por que ao agente de execução também não pode ser reconhecido que

desempenha uma função jurisdicional?

Nesse ponto, discordamos de Debora Inês Kram Baumohl, quanto à correlação do

caráter jurisdicional da execução forçada com a atividade substitutiva, exclusivamente

desempenhada pelo Estado, tendo em vista que, sob a sua ótica, a atividade deste “não se

limita a dirimir o conflito de interesses individuais, mas está voltada para garantir a

observância da lei”, que terá lugar tão-somente em caso de inobservância do preceito

legal.171

Sustentamos ao longo deste estudo, e mais precisamente no presente momento,

que independentemente de a tutela executiva, grosso modo, ser de cunho satisfativo ou

jurisdicional, ou até mesmo de índole administrativa ou estatal, o fato é que, dada a

instrumentalidade de que se reveste o processo civil, a realização dos atos tipicamente

executivos (penhora, venda e pagamento), sem prejuízo de outros (v.g. verificação dos

pressupostos da execução, citação, entre outros) na atual quadra histórica em que vivemos,

pode ser perfeitamente realizada por um ente (seja particular ou funcionário público, ou até

uma figura híbrida) que não o juiz estatal.

170 Cândido Rangel Dinamarco, Execução civil, cit., p. 190. 171 Débora Inês Kram Baumohl, A nova execução civil: a desestruturação do processo de execução, cit., p.

25-26.

114

Embora “rarefeita”, é indiscutível que na ação de execução existe cognição acerca

da verificação do preenchimento dos pressupostos para a cobrança, todavia não devemos

olvidar que a hipoteca assenta numa base contratual que, pelo seu reconhecido grau de

certeza, dispensa a cognição prévia por parte do agente judicial.172

Nessa senda, voltamos ao direito romano para sustentar que a participação do juiz

na execução hipotecária deve se fundar no poder de imperium e não na jurisdição, visto

que ao direito compete, tal qual sucedeu após a superação da autotutela, a função de

coordenar eficazmente os interesses que se manifestam na vida social, de modo a organizar

a cooperação entre as pessoas e a composição dos conflitos que se verificarem entre os

seus membros.

E, para viabilizar a cooperação e a composição dos conflitos, basta que a atividade

do agente “paralegal” legitimado pelo Estado seja submetida ao controle sancionatório do

Estado, que poderá ser exercido a posteriori, tal qual já sucede no regime da execução

conduzida pelo agente de execução português, ou pelo notário, no caso da execução

hipotecária espanhola.

Valendo-nos do precioso escólio de Miguel Teixeira de Sousa, a atribuição da

função executiva a um órgão não estatal, que permanece sujeito à supervisão e ao controle

do tribunal de execução, pressupõe que a ação de execução possui caráter jurisdicional e,

por isso, não é equiparável a um procedimento administrativo, todavia “os actos de

apreensão e de venda de bens – deixam de ser praticados pelo juiz de execução e passam a

ser entregues a uma entidade não jurisdicional”.173

É nesse sentido que se posiciona José Lebre de Freitas, ao esclarecer que, em

Portugal, tal qual em França e na Alemanha, houve a opção pela desjurisdicionalização

relativa do processo executivo, vez que “nas diligências do processo de execução cabem os

actos executivos fundamentais (a penhora, a venda e o pagamento) e outros que,

172 Kazuo Watanabe acrescenta que enquanto a cognição no processo de execução é rarefeita, os embargos à

execução, devido à amplitude da controvérsia que ali haverá, podem ser considerados como ação de cognição. (Da cognição no processo civil, 3. ed., São Paulo: Perfil, 2005, p. 139.

173 Miguel Teixeira de Sousa, A reforma da acção executiva, cit., p. 14.

115

relativamente a esses, exercem função meramente instrumental”, incluídas a citação, a

notificação e as publicações.174

A esse propósito, considerando a importância do método comparativo no estudo

do direito, na medida que na sociedade globalizada os povos se intercomunicam com maior

frequência e rapidez, e considerando ser o modelo processual civil português, como vimos,

um ascendente do direito brasileiro vigente175, a reforma na ação de execução havida em

Portugal em 2003 tornou-se mais um fator de grande utilidade para a construção e prática

da inevitável futura reforma na ação executiva que terá lugar no Brasil.

Portanto, para um maior incremento do conhecimento e do necessário diálogo

entre as diversas soluções jurídicas encontradas para problemas comuns, urge a

necessidade de se revisarem os manuais brasileiros176 que versem sobre a execução, para

que se evitem equívocos do tipo afirmar-se que em todos os países ibéricos ainda prevalece

o monopólio de jurisdição estatal e da reserva do juiz.

A incensurável crítica formulada por Nelson Nery Junior é assaz relevante para

que se viabilizem na doutrina brasileira as bases necessárias para que se justifique um

maduro e profícuo diálogo com os direitos português e espanhol.

A partir daí, torna-se necessário superar questões que já foram amplamente

discutidas em diversos colóquios e conferências em Portugal, inclusive com a participação

de eméritos processualistas provenientes de diversos países que compõem a União

Européia, a fim de avançarmos nas conquistas havidas, com a superação da restrita idéia de

reserva de juiz e, por que não dizer, do monopólio estatal em sede de execução.

174 José Lebre de Freitas, A reforma da acção executiva: agente de execução e poder jurisdicional, cit., p. 24-

25, 2003. 175 É evidente que a partir da independência política do Brasil, o direito brasileiro foi ganhando personalidade

própria, de modo que hoje, embora filiado à família romano-germânica do direito e especialmente ao seu ramo ibérico, afigura-se com particularidades próprias, como por exemplo um maior diálogo com o direito anglo-saxão de índole norte-americana.

176 Urge a necessidade de revisar a idéia de que a exclusividade da competência da realização dos atos executivos, tal qual ainda regulada no Brasil, é puramente estatal (incluindo-se aí a reserva do juiz), tratando-se tal solução de um fenômeno tipicamente ibérico, ligado à idéia medieval do officium judicis, como se tal modelo fosse estático e sem nuances de relevo, para que se alcance uma maior reflexão em termos de busca de novas soluções.

116

Como visto, a declaração de constitucionalidade da execução extrajudicial

hipotecária brasileira – independentemente das suas deficiências ou não e de se alicerçar

em bases amplamente liberais – é mais um fator que torna indispensável uma reavaliação

do conceito de jurisdição como atividade exclusivamente estatal, tendo em vista a

constatada insuficiência do conceito.

Não basta pura e simplesmente afirmar que a execução extrajudical brasileira – ou

qualquer outro modelo de execução que porventura desjudicialize os atos executivos – é

inconstitucional por, em tese, afrontar os conceitos de monopólio estatal e de reserva de

jurisdição.

Na presente quadra histórica em que vivemos, exige-se uma nova abordagem

daquilo que parecia ser imutável, mas que efetivamente não é. E torna-se ainda mais

instigante a análise comparativa das soluções havidas em Espanha e no Brasil para a

desjudicialização da execução hipotecária, face ao fato de que em Portugal, mesmo após o

advento da figura do agente de execução, haver sido mantida a solução judicial para a

execução da hipoteca, justamente a partir do receio de que, em caso de aprovação do

anteprojeto analisado, houvesse afronta a preceitos constitucionais.

Diante disso, torna-se absolutamente necessário recorrer à indispensável reflexão

acerca da superação do conceito clássico de jurisdição, incensuravelmente tracejada por

José Joaquim Gomes Canotilho, que sublinha que “a forma tradicional de solução de

litígios através dos tribunais e mediante decisão de um juiz imparcial é considerada, hoje,

como incapaz de assegurar, só por si, a paz jurídica e de garantir em tempo razoável alguns

direitos e interesses das pessoas”.

Outrossim, o constitucionalista leciona que a “formação constitucional da

jurisdição assenta, em grande medida, no modelo clássico de juízes, tribunais e

jurisprudência. Não há, porém, obstáculos incontornáveis à institucionalização de formas

alternativas (ou complementares) de justa composição dos conflitos por acordo das partes

e/ou com auxílio de um mediador (cfr. Lei n. 78/2001, de 13.7, que criou os julgados de

paz). Tratar-se-ia de uma forma de prestação de justiça própria de um estado cooperativo”.

117

E, especificamente no que diz respeito à viabilidade de desjudicializar os atos

decorrentes do processo expropriatório, o jurista informa que “é possível distinguir no

processo dimensões processuais materialmente jurisdicionais e dimensões processuais que

não exigem intervenção do juiz, podendo ser dinamizadas por outros agentes ou

operadores jurídicos (cf. por ex., o Decreto-Lei n. 38/2003, de 8.3, que confia ao agente de

execução importantes funções no âmbito da ação executiva)”.177

A esse propósito, Jorge Miranda178 defende que no direito constitucional

português não se aplica o princípio do “monopólio estadual da função jurisdicional” ou

exclusividade da “justiça pública”, tendo em vista a possibilidade de surgirem normas que

institucionalizem instrumentos e formas de composição não jurisdicional de conflitos (art.

205º, n. 4, após 1989), sem se diminuir o postulado da tutela jurisdicional dos direitos.

Inclusive já se decidiu em Portugal que é possível um órgão administrativo

declarar a nulidade de um ato administrativo realizado por um órgão distinto da própria

Administração, visto que ambos os atos são de natureza administrativa e passíveis de

recurso para os tribunais estatais, por parte do particular eventualmente prejudicado, não se

configurando, em virtude disso, vício de usurpação de poderes.179

Ao criar a chamada reserva de jurisdição, o Estado visou garantir que as normas

de direito substantivo contidas no ordenamento jurídico efetivamente fossem respeitadas e,

consequentemente, conduzissem aos efeitos enunciados, fazendo o agente judicial aplicar

em cada caso concreto os objetivos sociais firmados na norma.

Por conseguinte, prosseguindo numa visão que nos remete ao momento pós-

Revolução Francesa e que ensejou o positivismo, seria preservado o ordenamento jurídico

177 José Joaquim Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da Constituição, 7. ed., Coimbra:

Almedina, 2003, 664. Acrescentamos à ponderação do constitucionalista o próprio interesse estatal no recurso aos meios alternativos de resolução de litígios, em termos de tornar efetivo o processo de execução. Isso pode ser aferido a partir da desjudicialização parcial da execução fiscal no direito português (Decreto-Lei n. 433/99, de 26 de outubro) e a tendência para alargar o espaço de reserva de juiz arbitral à resolução de litígios jurídico-administrativos no Código de Processo dos Tribunais Administrativos de 2002.

178 Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, cit., p. 29. 179 A propósito, no Acórdão n. 319/03, de 2 de julho de 2003, a 1ª Secção do Tribunal Constitucional não

considerou inconstitucional o ato administrativo de uma Câmara que revogou um alvará concedido por outra Câmara Municipal. Por conseguinte, considerou constitucional o n. 2 do artigo 134º do Código de Procedimento Administrativo, que dispõe no sentido de que “a nulidade é invocável a todo o tempo, por qualquer órgão administrativo ou por qualquer tribunal”.

118

em sua autoridade e promover-se-ia a paz social e a ordem na sociedade através da atuação

estatal.

Contudo, partilhamos do entendimento de que o extraordinário fortalecimento do

Estado, ao qual se aliou a consciência da sua essencial função pacificadora, lastreada no ius

imperii, conduziu, a partir da cognitio extra ordinem romana e ao longo dos séculos, à falsa

convicção da quase absoluta exclusividade estatal do exercício dela.

Nos últimos vinte anos tal concepção vem sendo colocada em xeque no ambiente

da ciência processual, posto que a passos largos ganha volume a conscientização de que

para se obter a efetividade processo, é imperioso que se garanta o devido processo legal, o

contraditório e a ampla defesa, mas que tais garantias podem ser preservadas por meio de

soluções alternativas, que não aquela que conduz exclusivamente ao monopólio da

jurisdição ou da reserva do juiz.

O simples monopólio de jurisdição e da reserva do juiz não são por si só

suficientes para superar aquilo que Cândido Rangel Dinamarco afirmou serem as “mazelas

da execução forçada no dito direito moderno brasileiro”, visto que, “são demasiadas as

oportunidades de defesas e retardamentos que a lei oferece ao executado, beneficiando

inúmeras vezes o mau pagador, sendo indulgente com chicanas em detrimento da plena

satisfação do credor e do correto exercício da jurisdição. Sem dizer do mau funcionamento

da Justiça, cartórios desaparelhados, juízes pouco participativos”.180

Se a reserva de jurisdição afigura-se como uma limitação de atos legislativos e

administrativos, eivando de inconstitucionalidade aqueles que a afrontam, a mesma sugere

a reserva de juiz imparcial e independente para determinados assuntos, como se verifica no

brocardo nulla poena sine judicio, quando ao juiz caberá “não apenas a última palavra mas

também a primeira”.

No entanto, compartilhamos do entendimento de Gomes Canotilho, no sentido de

que situações há em que afigura-se legítima e, conforme alhures salientamos, necessária “a

intervenção de outros poderes (designadamente administrativos) desde que seja

180 Cândido Rangel Dinamarco, Execução civil, cit., p. 104.

119

assegurado, mesmo que a posteriori e em situações restritas para se evitar as indesejáveis

chicanas processuais, o direito de acesso aos tribunais”.181

Iniludivelmente, numa sociedade com instituições fortes e dotada de cidadãos

democraticamente responsáveis, cientes de que o Estado por si só não é capaz de resolver a

multiplicidade dos litígios envolvendo questões sem a menor complexidade jurídica, tem-

se por assente que o acesso à ordem jurídica justa também poderá ser garantido por meio

de agentes imparciais e independentes, que não estritamente os juízes estatais.

Certo é que as garantias constitucionais processuais também poderão ser

mantidas, desde que aquele que receba a incumbência para a execução dos bens

hipotecados tenha a credibilidade, a independência e a imparcialidade necessárias para bem

desempenhar as suas funções, nos estritos termos daquilo que é preceituado pelo

ordenamento jurídico.

Ao analisarem a mudança de paradigma que anteriormente nos induzia ao

monopólio da função jurisdicional, Antônio Carlos de Araújo e Cintra, Ada Pellegrini

Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, já no início da década de 90 do século passado,

haviam identificado que àquela altura ia “ganhando corpo a consciência de que, se o que

importa é pacificar, torna-se irrelevante que a pacificação venha por obra do Estado ou por

outros meios, desde que eficientes. Por outro lado, cresce também a percepção de que o

Estado tem falhado muito na sua missão pacificadora, que inexoravelmente ele tenta

realizar mediante o exercício da jurisdição”.182

A propósito da atual restrição à idéia da reserva de jurisdição e do monopólio

estatal da função jurisdicional em Portugal, Paulo Castro Rangel alude que “não sobejam

dúvidas, em face da letra do texto constitucional saído da Revisão de 1982, de que a nossa

Constituição prevê a arbitragem como um modo legítimo de composição dos conflitos. Se

181 Ademais, ao distinguir a reserva de juiz da reserva de tribunal, Canotilho refere que a primeira terá lugar

quando houver a participação do tribunal do início ao fim do processo, enquanto na segunda, o apelo à atuação do agente judicial, no mais das vezes, somente terá lugar em grau de recurso. Mutatis mutandis, podemos dizer que, na execução hipotecária extrajudicial, terá lugar a reserva de tribunal, relativizando-se a reserva de juiz para os atos que assim o justifiquem, como por exemplo, no caso de apreciação da citação editalícia e no uso da força pública para a desocupação do imóvel (José Joaquim Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da Constituição, cit., p. 664-665).

182 Antônio Carlos de Araújo Cintra; Ada Pellegrini Grinover; Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, cit., p. 29.

120

dúvidas haviam, elas aí se dissiparam, consoante resulta, de resto, do actual artigo 209º, n.

2, da CRP 76. Esta admissão consubstancia, aliás, um indício forte de um fenômeno de

alcance bem mais largo e que aponta para uma progressiva desintegração do carácter

estadual dos tribunais”.183

Aliás, não poderia ser diferente a relativização ao princípio da reserva de

jurisdição perante a arbitragem, diante do fato de que o recurso à mesma já na Grécia

antiga foi defendido, inclusive por Aristóteles184, como uma forma de se fazer justiça de

forma mais eficaz e independente no ambiente de corrupção endêmica que à época corroía

os tribunais gregos.

Ora, se a justificativa para a defesa da arbitragem como meio alternativo de

resolução de litígios na atual quadra em que vivemos também se justifica na necessidade

de se desafogar o Judiciário, independentemente do motivo, é inelutável que não é de hoje

que se defende a sua utilização.

Independentemente disso, naquilo que conhecemos como um Estado cooperativo,

e considerando ser uma realidade a superação do dogma da inafastabilidade do controle

jurisdicional por parte do agente judicial, mister se faz o Estado assumir uma atitude de

mobilização ativa e empreendedora da revolução do tecido social.

Nesse diapasão, compete ao Estado ser o protagonista na coordenação de meios

alternativos, não apenas de resolução de litígios, na seara daquilo que conhecemos como

processo de conhecimento, mas também no que concerne à realização do direito

corporificado num título judicial ou extrajudicial.

183 Paulo Castro Rangel também sublinha que os tribunais arbitrais decorrem de uma “idéia-vectora” de

autonomia privada no âmbito dos direitos disponíveis, que já se incrustavam na tradição jurídica, razão pela qual, pelo fato de as decisões arbitrais não fundarem a sua auctoritas no Estado, não poderem ser qualificados como órgãos de soberania; isso não significa que não sejam verdadeiros tribunais, vez que “percebe-se bem que o princípio de reserva de jurisdição se satisfaça com a possibilidade de as partes pleitearem perante um tribunal arbitral voluntário. Aliás, o Tribunal Constitucional reconheceu, no Acórdão n. 506/96, que ‘para a Constituição, não há apenas tribunais estatais’”. (O direito ao poder, in Repensar o poder judicial: fundamentos e fragmentos, Porto: Universidade Católica, 2001, p. 291-292 e 294).

184 Aristóteles, Ética a Nicómaco, tradução de António C. Caeiro, Lisboa: Quetzal, 2004, p. 48.

121

Para tanto, somos amplamente favoráveis à participação dos diferentes atores

sociais, desde que fiáveis e maduros para tal, na condução de atos executivos

descentralizados do Estado.

Caso típico disso seria a descentralização das execuções de contratos de leasing

de aeronaves, que poderiam ser facilmente conduzidos pelos diversos departamentos de

aviação civil espalhados pelos diversos países. Por que não a adoção de uma legislação

única para a realização do direito previsto em contratos internacionais de tal índole?

Ultrapassada tal provocação, interessa-nos agora ressaltar que, no Estado

Democrático de Direito, prevalece o princípio da soberania popular, que impõe a

participação efetiva e operante do povo na coisa pública, participação que não se exaure na

simples formação das instituições representativas, que constituem um estágio da evolução

do Estado Democrático, mas não o seu completo desenvolvimento. Conforme José Afonso

da Silva185, visa assim a realizar o princípio democrático como garantia geral dos direitos

fundamentais da pessoa humana.

3.3.1 Da inafastabil idade do agente judicial no controle e

nos atos sancionatórios

Embora estejamos plenamente convencidos de que a realização dos atos

executivos não é função reservada aos agentes judiciais, o mesmo não podemos dizer do

controle e dos atos sancionatórios da execução.

Sucede que, ao analisarmos o artigo 809º, n. II do Código de Processo Civil

português, verificamos ser imprescindível que o juiz de execução possua a legitimidade

para controlar, mediante provocação do interessado, e mesmo que a posteriori, a

regularidade dos atos realizados no curso do processo executivo, tendo em vista que, como

vimos, um dos escopos da jurisdição é a preservação da própria ordem jurídica.

185 José Afonso da Silva, Curso de direito constitucional positivo, 10. ed., São Paulo: Malheiros, 1994, p.

118.

122

Se por um lado defendemos que o Estado assuma um papel de arquiteto e

promotor da participação social no cumprimento do ordenamento jurídico, por outro lado,

também defendemos que o próprio Estado também se encarregue do controle do

funcionamento do órgão que exerça uma função jurisdicional.

Nesse passo, ao agente judicial, juiz, compete a palavra final para dirimir dúvidas

ou litígios que decorram da realização dos atos executivos.

Além disso, deve ser entregue ao magistrado o poder de aplicar multas àqueles

que criam chicanas processuais com o manifesto propósito protelatório, bem como aos que

ingressam com execuções infundadas.

Sem prejuízo, a atuação do chamado ente paralegal, independentemente da

atuação dos eventuais órgãos de classe, deve estar subordinada ao juiz de execução,

enquanto representante do Estado, que por uma decisão estratégia abriu mão da aparente

sua função jurisdicional exclusiva em prol de interesses maiores, relacionados com o

acesso aos direitos na distribuição da justiça.

Portanto, ao exercer a sua função de “gerenciador” da estratégia estatal, caberá ao

juiz da execução um papel fulcral para a viabilização do procedimento, eis que deverá estar

comprometido com a efetividade e a celeridade que tanto se almeja. Caso contrário, mais

uma vez estaremos diante da necessidade de se criar um órgão de controle da atuação

judicial na execução, que por sua vez deveria controlar a realização da própria execução.

3.4 Da compatibi l idade da natureza jurisdicional dos atos

processuais executivos com a desjudicial ização da

execução

Entendemos que para dissipar eventuais dúvidas que porventura ainda subsistam

acerca da inviabilidade da desjudicialização da execução hipotecária, quando estiverem

presentes atos estrita ou essencialmente jurisdicionais, mister se faz realizar a

123

compatibilização da natureza jurisdicional da execução com a realização extrajudicial da

garantia hipotecária.186

Consoante o escólio de Afonso Rodrigues Queiró, a especificidade do ato

jurisdicional decorre do fato de que ele não pressupõe, “mas é necessariamente praticado

para resolver uma questão de direito. Se, ao tomar-se uma decisão, a partir de uma situação

de facto traduzida numa questão de direito (na violação de direito objectivo ou na ofensa

de um direito subjectivo), se actua, por força da lei, para conseguir um resultado prático

diferente da paz jurídica decorrente da resolução dessa questão de direito, então não

estaremos perante um acto jurisdicional; estaremos perante um acto administrativo”.187

De acordo com Paulo Castro Rangel188, o Tribunal Constitucional português

enumera da seguinte forma as características para a existência de um ato materialmente

jurisdicional: a) a resolução de um interesse num caso concreto; b) de acordo com os

cânones ou critérios normativos jurídicos (e, portanto, de acordo com um direito

pressuposto); c) que não tenha outro fim senão esse mesmo de dar solução jurídica ao

conflito, sendo jurisdicionais, por conseguinte, não “apenas os atos que se traduzem na

directa resolução de questões jurídicas de acordo com o direito material ou substantivo.

São-no também os actos preparatórios dessa resolução, os quais, no seu conjunto,

constituem o processo de declaração ou cognição – ligados como encontram àquele final

objectivo que é a resolução de uma questão de direito. O processo, pois, na sua fase

declaratória, é um conjunto de actos jurisdicionais”, incluindo-se aí as decisões atinentes à

aplicação das chamadas multas processuais, que dependem de uma indagação relativa à

postura adotada pela parte durante a realização dos atos processuais.

186 Valendo-nos das lições de Artur Anselmo de Castro, consideramos que para alcançar o sentido dos atos

decorrentes da função jurisdicional, temos que ter em mente que eles tendem a viabilizar a atuação prática das normas abstratas que integram o direito objetivo, quando inobservadas pelos seus destinatários, “cabendo à função jurisdicional dirimir dúvidas e eliminar incertezas mediante a aplicação do direito vigente. Ademais, mesmo considerando a necessidade do preenchimento de determinados pressupostos processuais no processo de execução, eles não coincidem em toda a linha com os do processo declaratório; mesmo porque, em razão do seu objeto, é uma ação autónoma da ação declarativa, prescindindo de uma cognição judicial para além do simples exame do título exequível” (Lições de processo civil, Coimbra: Almedina, 1964, p. 225-226).

187 Afonso Rodrigues Queiró, A função administrativa, Revista de Direito e Estudos Sociais, ano 24, n. 1/2/3, p. 31.

188 Paulo Castro Rangel, O direito ao poder, cit., p. 274-275.

124

Ao constatarmos que a satisfação do credor na ação executiva é alcançada

mediante a substituição do tribunal ou do agente de execução ao devedor, essa atuação

“visa a efetivação do direito e corresponde assim à realização duma função jurisdicional,

sendo de rejeitar as concepções que, como a de Allorio, tendem a enquadrar a execução

forçada fora do âmbito da jurisdição e, porque fundamentalmente realizada através de

actos materiais que não conduzem ao caso julgado, a qualificá-la como exercício duma

função administrativa, no âmbito da chamada jurisdição voluntária”.189

Em continuidade, as lições de Afonso Rodrigues Quiró e Paulo Castro Rangel são

assaz relevantes para alcançar aquilo que chamamos de função jurisdicional típica, voltada

para a resolução de litígios e a preservação da ordem jurídica vigente, realizada através de

atos jurisdicionais específicos tendentes à declaração ou não de um direito, ou o controle

sobre determinado ato, ou a sanção decorrente da afronta ao ordenamento.

Mas não é somente em virtude de os atos executivos não se confundirem com os

atos jurisdicionais típicos a razão pela qual entendemos ser absolutamente despicienda

qualquer discussão acerca da eventual natureza administrativa, ou satisfativa ou

jurisdicional dos atos executivos.

O labor realizado pelo árbitro, exemplificadamente, não se discute na doutrina

moderna também decorrer de um poder jurisdicional que lhe é conferido para resolver

controvérsias envolvendo questões de cunho patrimonial. Por conseguinte, podemos

afirmar que a natureza do ato a ser realizado não é motivo suficiente para impedir a sua

desjudicialização, pois se assim fosse, a atuação do árbitro estaria inviabilizada desde a

Grécia antiga.

Embora nos filiemos à corrente que defende serem jurisdicionais os atos

executivos, qualquer que seja o ponto de vista adotado, uma vez identificado que tais atos

não se destinam à realização de uma função jurisdicional típica do Estado, agora, por

exclusão, entendida como a destinada à resolução de questões de interesse público, isso em

189 José Lebre de Freitas, A ação de execução: depois da reforma, cit., p. 17.

125

nada terá o condão de pôr em causa a adoção de soluções desjudicializantes em termos de

processo executivo.190

E, para não quedar no vazio a nossa idéia daquilo que estaria compreendido no

processo de interesse público, ou seja, o que efetivamente seria de competência exclusiva

do Estado-juiz, no âmbito específico do nosso estudo, poderíamos afirmar que o Estado

não pode e não deve abrir mão do seu poder coercitivo.

Indubitavelmente, no caso de resistência na desocupação do bem hipotecado, o

recurso à força pública, aqui reconhecido como uma das expressões máximas do ius

imperii, não pode ser delegado a particulares, sob pena de colocar em risco a ordem

pública. O problema resulta, por um lado, dos abusos que porventura poderiam ser

realizados pelo exeqüente para a desapropriação do bem, e que dificilmente seriam

controlados a tempo pelo Estado-juiz.

Por outro lado, a própria resistência do devedor para sair do bem poderia se dar

através de meios que iniludivelmente poderiam suscitar o recurso a meios extremados para

viabilizar a sua retirada, como, por exemplo, a utilização de armas de fogo.

E é justamente no risco de se recrudescer a vindicta privata, que defendemos o

monopólio do Estado no recurso à força pública para a desocupação do bem.

Portanto, a despeito de respeitabilíssimas opiniões em contrário191, identificamos

na ação hipotecária extrajudicial, seja a realizada pelo agente fiduciário brasileiro ou a

190 A propósito do estudo das premissas teóricas necessárias à melhor compreensão do papel, das funções e

das implicações sociais dos mecanismos judiciais de resolução de controvérsias, que resvala necessariamente no estudo das funções jurisdicionais do Estado e suas múltiplas repercussões, seja no campo da análise constitucional, seja ligada a uma abordagem relacionada à sociologia ou à teoria geral do direito, centrado nas premissas pelas quais se pode compreender o fenômeno processual contemporâneo, ver: Owen Fiss, Um novo processo civil: estudos norte-americanos sobre jurisdição, constituição e sociedade, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

191 Cândido Rangel Dinamarco entende que é de sujeição o vínculo que se estabelece entre o Estado e os sujeitos litigantes no processo de execução, como em qualquer outro. No seu entendimento, a relação é sempre de direito público, razão pela qual sustenta ser “ser constitucionalmente ilegítima a execução extrajudicial dos créditos hipotecários do Sistema Financeiro da Habitação, Lei n. 5741, de 1.12.1971; Decreto-Lei n. 70, de 21.11.1966, arts. 31-32”. Sustenta ainda o processualista que nessa execução realizada por um agente fiduciário, evidentemente não está presente a jurisdicionalidade, no entanto, o imóvel é levado a leilão e expropriado ao mutuário, por “autoridade” privada, fora do numerus clausus dos órgãos que a Constituição prevê para o exercício da jurisdição. No entanto, aparentemente o professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo admite a existência de uma execução extrajudicial, ao

126

conduzida pelo notário espanhol, além da realização de uma atividade de cunho

jurisdicional, a integral desnecessidade de se recorrer ao agente judicial para a realização

dos atos eminentemente executivos, ainda mais quando verificamos que a essência da

hipoteca (ius vendendi) por si só já exclui a necessidade de realização de penhora e de

avaliação, restando tão-somente a realização da venda e do pagamento como atos a serem

formalmente realizados.

Embora Miguel Teixeira de Sousa192 defenda que “a atividade de execução, no

sentido de actividade de penhora, apreensão e venda de bens, não é uma actividade

jurisdicional e, por isso, ela pode ser realizada por órgãos não jurisdicionais (como é o caso

do agente de execução)”193, defendemos que esses atos efetivamente são jurisdicionais, no

entanto, por uma estratégia de descentralização de poder na figura do Estado, não estão

inseridos naqueles que consideramos exclusivos da função jurisdicional estatal, realizada

pelo seu agente típico, o juiz.

De fato, os atos executivos estão inseridos no contexto de um processo que é

jurisdicional, mas que pelas suas particularidades, por justamente não corresponderem a

atos jurisdicionais típicos, no sentido de não se destinarem à resolução de uma controvérsia

que o próprio Estado reconhece como de interesse público, podem ser

desjurisdicionalizados.

afirmar que “a efetividade do controle jurisdicional poderá tornar perdoável a outorga de poderes de expropriação a entidades privadas” (Execução civil, cit., p. 203-204, e na parte final transcrita, p. 325). Miguel Teixeira de Sousa, antes da reforma havida em 2003, defendia que, embora na ação declarativa aceite-se a convenção de arbitragem, o mesmo não sucede na ação de execução, “para a qual o Estado goza de um monopólio absoluto”, vez que somente este dispõe dos meios coativos para a realização das prestações não cumpridas, sendo certo que, sob a sua ótica, atos como a penhora e a venda executiva dos bens penhorados são manifestações do ius imperii do ente estatal, sob pena de ofensa ao direito de propriedade assegurado no artigo 62., n. 1 da Constituição da República Portuguesa (Acção executiva singular, Lisboa: Lex, 1998, p. 24). Ao manifestar-se acerca da reforma do processo de execução em Portugal, Maria José Capelo, apesar de considerar viável a desjudicialização de determinadas diligências, nomeadamente as destinadas a proceder a citação ou notificação, a identificar e a localizar os bens, ou a determinar a modalidade da venda, manifesta, entre outras questões, a sua preocupação com o controle da regularidade da instância quanto aos pressupostos processuais, que ficam fora do poder-dever do juiz providenciar, mesmo oficiosamente, pelo suprimento da falta de pressupostos processuais (Maria José Capelo, Conferência de Coimbra (29 de junho de 2001): intervenção, cit., v. 3, p. 20 e 28).

192 Miguel Teixeira de Sousa, A reforma da acção executiva, cit., p. 16. 193 Retomamos aqui a idéia de que os atos realizados pelo árbitro efetivamente são de cunho jurisdicional, no

entanto, podem ser realizados por outro que não o agente judicial por uma estratégia estatal, pois a jurisdição decorre do poder, e esse poder é exclusivo do Estado que, conforme prelecionam as diversas cartas políticas, “emana do povo e em seu nome será exercido”.

127

É o que aliás indiretamente corrobora José Lebre de Freitas, ao mencionar que em

Portugal houve uma desjurisdicionalização relativa do processo de execução, ou seja,

determinados atos que se encontravam no bojo de um processo jurisdicional passaram a ser

realizados por outro ente que não o agente judicial, dotado de jurisdição específica para

dirimir controvérsias e zelar pela manutenção da ordem jurídica.

Mas que não se olvide que ao agente judicial também foi conferida pelo Estado

parcela de poder que outrora competia exclusivamente ao juiz, razão pela qual se pode

afirmar que a sua atuação foi adequadamente legitimada pelo Estado, que lhe outorgou, de

forma condicional e com reservas, uma parcela de jurisdição. Portanto, se o agente de

execução realiza uma função jurisdicional, decerto que os atos que compõem tal atividade

também o serão em seu conjunto.

Contudo, no mundo contemporâneo continua a ter lugar a atuação exclusiva do

agente judicial (juiz), nos casos de oposições formalizadas pelo mutuário, pelo garante não

devedor e pelo terceiro prejudicado.

Sem prejuízo, pelas razões já expostas, reiteramos a defesa da aludida

exclusividade na hipótese de se indagar da necessidade de remoção do ocupante em caso

de resistência194. Nos demais atos, consideramos ser integralmente dispensável a atividade

do agente judicial na execução da hipoteca.195

Decerto não se vislumbra na execução hipotecária, uma vez estando o título

devidamente registrado e acompanhado da planilha detalhada do débito, a necessidade de

apreciação liminar por parte do magistrado, bem como da declaração de existência ou não

194 Compartilhamos do posicionamento de Christophe Lefort, no sentido de que a remoção do ocupante do

imóvel somente ocorrerá com o concurso da força pública, sob pena de causar indesejáveis distúrbios à ordem e à tranquilidade pública (Procédure civile, cit., p. 31).

195 Em sentido oposto ao defendido por Cândido Rangel Dinamarco, Celso Neves, Professor Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, defendia que só existe jurisdição onde houver iuris dictio, ou seja, a atividade consistente em mostrar o direito. Na sentença constitutiva só haveria jurisdição enquanto o juiz declara o direito à modificação jurídica; na segunda parte, quando o juiz opera essa modificação, ter-se-ia atividade jurisatisfativa e, portanto, não jurisdicional (consequentemente, sem o apoio da autoridade da coisa julgada material). O saudoso professor paulista defendia, pelos mesmos fundamentos, a ausência de jurisdicionalidade na atividade estatal executiva – jurisatisfativa e não jurisdicional (Apostila do Departamento de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, mas que ainda carece da necessária publicação). podemos excluir?

128

de um direito, visto que o mesmo já está inquestionavelmente corporificado no título que

aparelha a execução.

É notório que a própria hipoteca registrada transmite ao agente executor um grau

de certeza que por si só se impõe, tonando-se tão-somente necessário verificar se os

documentos apresentados preenchem os requisitos formais de constituição do intrumenta,

para que se dê início ao procedimento de cobrança.

Note-se que mais uma vez não estamos defendendo nada de novo, apenas nos

cindimos a uma solução que já era pratica pelos notários no direito medieval, quando do

surgimento dos chamados instrumenta guarentigiata, e que face à credibilidade alcançada

ao longo da história, perdura até os tempos modernos.

Além disso, a evolução histórica apresentada demonstrou que os atos

expropriatórios realizados extrajudicialmente – como vimos, a experiência não se aplica à

tradição luso-brasileira, visto que os atos do processo de execução até bem recentemente

eram realizados exclusivamente sob o comando do juiz – quais sejam, a citação para

pagamento, a penhora, a avaliação, os editais e os demais atos atinentes à alienação do

bem, desde que expressamente regulados no ordenamento jurídico, e operados por

instituições respeitáveis, em nada fragilizarão as garantias atualmente destinadas a evitar o

excesso de execução e a dignidade do executado.196

Por óbvio, surgirão aqueles que sublinharão que a execução extrajudicial

hipotecária é um meio de outorgar no mais das vezes à instituição financeira a primazia na

designação do quantum debeatur do mutuário. Diante disso, pergunta-se: o juiz, quando do

196 José Casalta Nabais leciona que muito embora a Lei Geral Tributária portuguesa, no seu artigo 103º,

disponha que o processo de execução fiscal tem natureza judicial, o certo é que estamos diante um processo que somente será judicial em certos casos e, mesmo nesses, apenas em parte, já que um tal processo só será judicial se e na medida em que tenha de ser praticado algum ato de natureza judicial, quais sejam: os embargos, a oposição, incluindo quando incida sobre os pressupostos da responsabilidade subsidiária, a graduação e verificação de créditos e as reclamações dos atos materialmente administrativos praticados pelos órgãos da administração tributária. “Por isso, não admira que muitos processos de execução fiscal se iniciem e se concluam nos órgãos da execução fiscal sem qualquer intervenção dos tribunais tributários” (Direito fiscal, cit., p. 321-322). A propósito, em termos de execução fiscal, conforme verificamos quando da substituição da ordo iudiciorum privatorum pela cognitio extra ordinem, foi justamente o Estado que impôs aos particulares a adoção do processo executivo eminentemente estatal, todavia, no presente momento histórico-social, é o próprio Estado que recorre à desjudicialização da execução para viabilizar a pronta recuperação da obrigação fiscal.

129

recebimento da planilha contendo a composição do débito realiza ou manda realizar

alguma espécie de controle em relação aquilo que está sendo cobrado? Há verificação

judicial prévia da regularidade da conta de débito apresentada pela instituição financeira?

A experiência na prática forense em questões que tais nos inclina à convicção de

respondermos negativamente, visto que a verificação contábil somente sucederá na

hipótese de o mutuário embargar a execução, mas disso, como adiante veremos, com

fundamento no direito constitucionalmente assegurado de acesso ao Judiciário, jamais

estará tolhido o devedor no sistema que defendemos, pois o controle de regularidade do

procedimento, em caso de desvio, poderá ser realizado a posteriori ou até mesmo em sede

cautelar.

Cingindo-nos exclusivamente ao que nos interessa neste momento, podemos

concluir que não sobejam dúvidas de que a atividade realizada no seio do processo de

execução hipotecária, embora de cunho jurisdicional, se traduz essencialmente em atos

sem a complexidade jurídica que porventura justificasse a intervenção do juiz.

A própria realização da garantia hipotecária já possui o condão de oferecer

maiores garantias de existência do direito invocado, pois, como estudado, a hipoteca

registrada pelo notário possui fé pública e proporciona o direito de sequela ao credor.

Resulta disso que a preferência conferida pela instituição da garantia real da

hipoteca já reduz sobremaneira os riscos de causação de prejuízo, com o objetivo de se

respeitar a correta aplicação da ordem jurídica justa, a pacificação social e, por

conseguinte, o bem comum.

Some-se a isso o pronunciamento de José Lebre de Freitas que, ao comentar a

recente reforma havia no processo de execução português, salientou que antes cabia

exclusivamente ao juiz a “direcção de todo o processo executivo, em paralelismo com o

que acontece na acção declarativa, aplicando-se o artigo 265-1 sem especiais restrições:

cumpria-lhe providenciar pelo andamento regular e célere do processo, promovendo

oficiosamente as diligências necessárias ao seu normal prosseguimento. A

jurisdicionalização da acção executiva acarretava, neste modelo do processo executivo,

igualmente vigente (ainda hoje) em Espanha e Itália, o proferimento de numerosos

130

despachos judiciais que, na sua grande maioria, não constituíam actos de exercício da

função jurisdicional. No modelo atualmente adotado, o juiz exerce funções de tutela,

intervindo em caso de litígio surgido na pendência da execução (art. 809-1-b), e de

controlo, proferindo nalguns casos despacho liminar (controlo prévio aos actos executivos:

arts. 809-1, 812 e 812-A)197 e intervindo para resolver dúvidas (art. 809-1-d)”.198

Assim, atribuímos um caráter subsidiário ou até mesmo secundário à intervenção

estatal na execução hipotecária, tendo em vista que, conforme sublinhado, a atuação do

juiz somente teria lugar quando o executado ou um terceiro opusessem alguma questão que

porventura suscitasse a cognição e a apreciação de uma questão inequivocamente de

direito199; ou na hipótese de, uma vez alienado o bem hipotecado em sede de leilão

extrajudicial, o mutuário ou o ocupante ainda resistisse à desocupação do imóvel. Nesse

caso, competiria ao interessado (aquele que adjudicou o bem) requerer a imissão na posse

perante a Justiça comum estatal.

Corroborando o entendimento ora exarado, a jurisprudência dos tribunais

superiores, no Brasil (em relação à execução extrajudicial hipotecária), em Portugal (em

relação ao processo de injunção e do novo regime da execução) e em Espanha

(relativamente à execução sumária hipotecária) têm admitido e asseverado a importância

197 Especificamente no âmbito das execuções extrajudiciais hipotecárias, face às garantias de regularidade do

título registrado em cartório, discordamos das lições de António Santos Abrantes Geraldes, quando o jurista defende que no processo executivo se justifica o despacho liminar “como medida destinada a evitar o avanço de execuções injustas, designadamente, quando estas se fundam em títulos executivos extrajudiciais consubstanciadores de uma mera presunção legal quanto à existência do direito de crédito e consequente obrigação do executado, justificação que se compreende ainda pelo facto de a tramitação geral do processo de execução não comportar, como ocorre no processo declarativo, uma fase de saneamento” (Temas da reforma do processo civil, cit., v. 1, p. 246-247). Contudo, em que pese ser salutar a preocupação exarada pelo doutrinador, entendemos que a execução hipotecária, face às suas peculiaridades, já largamente apresentadas no excurso deste estudo, prescinde da apreciação liminar por parte do agente judicial, visto que as formalidades a serem verificadas quando do requerimento de cobrança apenas dirão respeito ao registro do título e à planilha de evolução do débito, o que, sob a nossa ótica, não pressupõe a atividade jurisdicional, que ao menos neste momento não se cingirá a uma abordagem atinente à viabilidade do valor cobrado.

198 José Lebre de Freitas, A ação de execução: depois da reforma, cit., p. 26. 199 Convém ressaltar que na ação executiva não subjaz um conflito a ser dirimido pelo Poder Judiciário, mas

tão-somente “uma obrigação a perseguir efectiva e coercitivamente, isto é, uma obrigação a executar” (António Montalvão Machado; Paulo Pimenta, O novo processo civil, cit., p. 42). Entretanto, Cândido Rangel Dinamarco, defendendo o carácter jurisdicional do processo de execução, assinala que “embora não voltando ao conhecimento como objetivo específico, nem comporte julgamento da pretensão deduzida (mérito), o processo executivo também não se desenvolve sem qualquer atividade decisória. Exercício do poder, a jurisdição inclui sempre decisão, ainda quando se trate de decisão realizada somente com a finalidade de orientar atos materiais. As atividades executivas seriam cegas e possivelmente injustas, se nada competisse ao juiz decidir no processo de execução” (A instrumentalidade do processo, cit., p. 311).

131

da realização de atos executivos extrajudiciais, a fim de desafogar o sistema, mergulhado

num sem-número de ações de execução para a cobrança de dívidas, sem a menor

complexidade, e que somente inviabilizam o verdadeiro exercício da jurisdição nas ações

de cunho declarativo, tendo em vista a morosidade indevidamente acarretada.

3.5 O necessário respeito aos princípios da igualdade de

partes e do contraditório

De acordo com as lições de Manuel de Andrade, o princípio da igualdade das

partes “consiste em as partes serem postas no processo em perfeita paridade de condições,

desfrutando, portanto, idênticas possibilidades de obter a justiça que lhes seja devida; e

isso não deve se cingir apenas ao plano formal da igualdade jurídica, é necessário também

realizar entre eles, no processo, a igualdade prática (substancial, factual, real); impedir,

quanto possível, que a igualdade jurídica seja frustrada em consequência duma grave

desigualdade de facto”200, a fim de suprir a inferioridade da parte mais débil da relação.

A partir daí torna-se palpável o entendimento acerca do artigo 10 da Declaração

Universal dos Direitos do Homem, que preleciona que “todos têm direito, em plena

igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal

independente e imparcial, que decida sobre os seus direitos e obrigações”.

A esse propósito, José Lebre de Freitas201 assinala que o artigo 20º da

Constituição, ao estabelecer que a todos é assegurado o direito de acesso aos tribunais para

defesa dos seus direitos, deve ser integrado, de forma a assegurar também o direito, que lhe

é complementar, ao tratamento equitativo das partes no processo civil, nas suas duas

vertentes: o direito à discussão contraditória e o direito à igualdade de armas (ou seja,

equilíbrio entre as partes na apresentação das respectivas teses, na perspectiva dos meios

processuais de que para o efeito dispõem).

200 Manuel Augusto Domingues de Andrade, Noções elementares de processo civil, nova ed. rev. e ampl.

com a colaboração do professor João de Matos Antunes Varela, Coimbra: Coimbra Editora, 1976, p. 378. 201 José Lebre de Freitas, Estudos sobre direito civil e processo civil, cit., p. 27-28.

132

Contudo, quando pensamos em termos de adequação do princípio da igualdade

das partes no âmbito do processo executivo, não podemos olvidar que embora o título

executivo, sobretudo o extrajudicial, não garanta em absoluto a existência dos créditos,

face ao seu alto grau de fiabilidade jurídica, por aplicação do princípio da abstração, a

posse do título é requisito suficiente ao exercício da ação executiva, motivo esse que

justifica a sua autonomia para o início do processo de expropriação, sendo, por

conseguinte, um direito autônomo e independente do direito substancial.202

Disso decorre a convicção de que em sendo o processo executivo um meio

processual destinado à satisfação do direito conferido a uma das partes através do título

judicial ou extrajudicial, é evidente que os princípios da igualdade das partes e do

contraditório não terão o mesmo alcance esperado no processo declarativo que, conforme

estudado, requer a devida cognição por parte do agente judicial, para que se viabilize a

resolução do objeto da demanda.

Portanto, o processo executivo prescinde do princípio da igualdade de tratamento

das partes, na medida que no mesmo não se exige um tratamento equitativo na

apresentação de teses contrapostas, decorrentes da dialética processual, somente fazendo

sentido invocá-lo em termos das compensações que devem proporcionar o equilíbrio

global do processo.

É em respeito ao princípio da igualdade de tratamento das partes que decorre o

dever de se proporcionar ao credor a recuperação da garantia oferecida, contudo da forma

menos onerosa para o devedor, e é justamente nesse guião que o agente privado,

responsável pela tramitação do procedimento expropriatório, deverá se esmerar no

desempenho das suas funções.

A título exemplificativo, o respeito à igualdade das partes foi mantido no processo

de injunção203 português que, diversamente do que sucede em Itália, França, Espanha e no

202 Fernando Amâncio Ferreira, Curso de processo de execução, 6. ed., Coimbra: Almedina, 2004, p. 18. 203 A injunção surgiu em Portugal a partir do advento do Decreto-Lei n. 404/93, de 10 de dezembro, sendo

posteriormente revogado pelo Decreto-Lei n. 269/98, de 1º de setembro, sendo que se considera injunção a providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1ª instância (art. 7º), ou seja, de valor não superior a 3.740,98 euros, por ser esse valor presentemente a alçada desse tribunal (art. 24º, n. 1 da LOFTJ, na redação do Decreto-Lei n. 323/2001, de 17 de dezembro). Independentemente do valor da dívida, também se considera injunção a providência visando conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de transações comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n. 32/2003, de 17 de fevereiro.

133

Brasil, não enseja qualquer ordem e a intervenção do juiz para se determinar o início da

execução, caso não ocorra a oposição por parte do requerido, no prazo legal.

Tal qual sucede na Alemanha, em Portugal, a ordem de pagamento emana do

administrador do tribunal, que a emite sem exame da pretensão formulada, devendo apenas

verificar o preenchimento dos pressupostos processuais, se se preenchem os requisitos do

processo monitório, se o pedido tem conteúdo necessário e, quando prescrito, se o

impresso próprio para o ato foi utilizado, sob pena de “na falta de um elemento, o pedido

ser rejeitado por despacho, com fulcro em qualquer das hipóteses previstas no n. 1 do

artigo 11º do RRCOP”.204 ou RPCOP?

A garantia ao processo equitativo, a nosso ver, também decorre da possibilidade

de o requerido, ou até mesmo de um terceiro (nas hipóteses legalmente admitidas), uma

vez notificado, poder invocar, por meio da oposição ou dos embargos, a tutela

jurisdicional, para ulteriormente exercer de forma livre o contraditório e a ampla defesa,

pois, nessa hipótese, os autos serão remetidos ao tribunal competente para conhecer da

matéria e julgar a controvérsia, aplicando-se ao processo forma de rito ordinário.

Entretanto, para a viabilização da efetividade processual e a eficácia da execução

extrajudicial hipotecária, diante da própria essência da garantia a ser cumprida, é imperioso

que se restrinjam as hipóteses de oposição. Inclusive, em termos de respeito aos princípios

da igualdade das partes e do contraditório, os tribunais superiores do Brasil e de Portugal,

talvez acautelando-se de desnecessárias e prematuras definições em relação a um tema

contemporâneo, não demonstram uma excessiva preocupação com a precisão e a pureza

científica na construção argumentativa.

Em virtude disso, em que pese os tribunais superiores versarem os problemas sob

uma perspectiva multidimensional, em linhas gerais, limitam-se a exarar o entendimento

de que a simples deslocação do contraditório para uma fase posterior à extrajudicial em

nada prejudica o princípio do acesso ao direito (art. 20º da CRP/76), a reserva de jurisdição

(art. 202º da CRP/76), bem como os princípios constitucionais processuais, como o da

igualdade de tratamento das partes.205

204 Fernando Amâncio Ferreira, Curso de processo de execução, cit., p. 42. 205 Acórdão n. 375/95, de 27 de junho de 1995, do Tribunal Constitucional de Portugal.

134

O exercício do contraditório, conforme bem esclarecido por José Lebre de Freitas,

“não se confunde com o direito de defesa (art. 3º-1), não só implica que o mesmo jogo de

ataque e resposta em que consistem a acção e a defesa deve ser observado ao longo de todo

o processo, de tal modo que qualquer posição tomada por uma parte deve ser comunicada à

contraparte para que essa possa responder, mas também que às partes deve ser fornecida,

ao longo do processo, a possibilidade de influírem em todos os elementos que se

encontrem em efectiva ligação com o objecto da causa e em qualquer fase do processo se

pressinta serem potencialmente relevantes para a decisão”.206

Portanto, em sede de execução extrajudicial hipotecária, como exteriorização do

princípio do contraditório, mister se faz garantir ao mutuário que tome conhecimento

inequívoco da cobrança extrajudicial a que está sendo submetido, sob pena de nulidade do

procedimento.

Outrossim, caso o devedor em oportunidades distintas não seja localizado no

endereço do imóvel financiado para a sua habitação própria, desde que previsto contratual

e previamente, não haverá óbice para que seja notificado por edital para pagar o débito

invocado pelo credor.

De outro lado, caso a hipoteca ofertada não se resuma à aquisição da casa própria,

daí caberá a notificação do devedor no endereço que porventura tenha sido consignado

pelo mutuário na escritura registrada para o recebimento de notificações, ou no novo

endereço que eventualmente o próprio mutuário tenha aditado ao registro anteriormente

realizado. Caso por qualquer motivo se fruste a localização do devedor no endereço pelo

mesmo fornecido, daí terá lugar a sua citação editalícia.

Portanto, a superação dos problemas decorrentes da eventual ocultação ou não

localização do devedor decorrerá da sua responsabilização pelo fornecimento do endereço

correto para a sua localização.

206 José Lebre de Freitas, A ação de execução: depois da reforma, cit., p. 21-22.

135

Com fulcro no princípio da boa-fé, que deve reger os contratos e os atos

processuais em geral, torna-se perfeitamente adequada ao procedimento a exigência para

que o devedor se responsabilize pela sua regularidade cadastral, sobretudo quando

encontra-se em mora perante o credor.

Destarte, quando da adoção de um procedimento extrajudicial de execução

hipotecária, preliminarmente se deve atentar para uma necessária articulação entre o ente

privado e o judicial, a fim de se evitar danos irreparáveis às partes, seja em relação à

deficitária notificação, seja em função da celeridade que deverá ter lugar quando da

distribuição do pedido.

4 CONCLUSÕES

No desenvolvimento do estudo pudemos constatar que a maior parte das ações em

curso perante o Judiciário versam sobre a cobrança de dívidas decorrentes de contratos “de

massa”, celebrados entre instituições financeiras e consumidores.

Tal fenômeno ocasiona graves prejuízos à função jurisdicional típica do Estado,

que praticamente se vê impossibilitado de atender às demandas sociais em complexas

questões que emanam das ações declarativas, essas sim carecedoras de uma adequada

cognição por parte do agente judicial.

De fato, a passos largos os tribunais vêm sendo “privatizados” por aqueles poucos

responsáveis (sobretudo as prestadoras de serviços públicos, as seguradoras e os agentes

financeiros) pelo acúmulo desenfreado das ações de cobrança, muitas vezes relacionadas

com valores ínfimos e que sequer justificam os elevados custos que ocasionam ao Estado e

que, por fim, são suportados pela sociedade.

Nesse sentido, tem-se notado o surgimento de elogiáveis iniciativas visando o

desafogo do Poder Judiciário, cuja imagem inexoravelmente é relacionada com adjetivos

como “inoperante”, “ineficaz”, “moroso”, entre outros.

Irremediavelmente, a morosidade do Judiciário é um insulto ao Estado de Direito,

pois priva o cidadão do salutar acesso aos direitos consagrados na Constituição e em outros

textos normativos, sendo esse um problema contra o qual a sociedade democraticamente

responsável deve lutar com todas as suas forças.

Sob a nossa ótica, àqueles poucos que “estrangulam” a prestação da tutela

jurisdicional dever-se-ia aplicar o célebre brocardo ubi commoda, ibi incommoda, ou seja,

os poucos que obtêm o salutar benefício econômico no exercício das suas respectivas

atividades empresariais também devem arcar com os encargos decorrentes dessa atuação,

inclusive em termos de custeio da recuperação de créditos ou garantias.

137

Por outro lado, a falta de efetividade na cobrança das dívidas por parte dos

agentes financeiros faz com que, por exemplo, o capital empregado na construção civil

para a edificação de moradias seja dificilmente recuperado.

Isso produz dois efeitos perversos, a saber: o primeiro diz respeito à escassez de

empregos num dos setores da economia que mais fornece postos de trabalho, visto que as

instituições financeiras se demonstram avessas ao risco de investir num mercado que não

oferece as garantias necessárias para o retorno do capital investido; o segundo efeito se

cinge ao aumento do custo para se concretizar o sonho da casa própria, pois é notório que a

falta de capital disponível para o financiamento e o próprio risco que subjaz à operação são

fatores para o incremento do spread bancário. Ou seja, os juros cobrados nos contratos de

financiamento tendem a ser maiores no caso de a realização da garantia hipotecária, em

caso de inadimplemento, ser de difícil execução.

Por conseguinte, é a própria sociedade consumidora do crédito bancário que arca

com as consequências nefastas dos riscos ocasionados em virtude da inexistência de

instrumentos jurídicos hábeis a viabilizar a eficaz recuperação da hipoteca garantidora do

negócio.

Frise-se que a falta de investimento privado na construção civil poderá ocasionar

o colapso desse tão importante setor da economia, eis que o Estado, após a tão decantada

decadência do welfare state, há anos está imerso no comprometimento das suas receitas

com o custeio da segurança social, não dispondo sequer de meios suficientes para prover

os investimentos necessários em outros setores da economia.

Diante disso, entendemos que a desjudicialização do processo de execução deve

ser analisada sob o enfoque jurídico, econômico e social, pois a sociedade não pode

aguardar em “berço esplêndido” que o Poder Judiciário ou o Executivo resolvam de per si

os problemas que dizem respeito ao tecido social como um todo.

Vivemos um momento em que precisamos reforçar as nossas instituições civis e

democráticas, pois não é nada utópico que no curto prazo ocorram ou continuem a ocorrer

flagelos como fome, genocídios, perseguições políticas, discriminação de credo e de raça,

138

entre outras. Aliás, assiste razão aos que defendem que também vivemos um momento de

discriminação econômica, sobretudo no tocante à concessão de crédito.

E, para viabilizar o Estado de Direito, sob a nossa ótica, é imperioso que o Poder

Judiciário esteja pronto para dar, com a urgência necessária, a resposta aos cada vez mais

complexos problemas vividos numa sociedade de risco, eminentemente urbana e plural.

Entretanto, é forçoso reconhecer que o Judiciário, com seus órgãos imersos em

ações de cobrança de dívidas, não dispõe de meios para fazer frente às demandas que

diuturnamente lhe colocam em causa.

Dada a complexidade dos problemas que afligem o Judiciário, certo é que não

haverá uma única solução “mágica”, capaz de, por si própria, promover a celeridade e a

eficiência do processo.

Tal qual verificado a partir de meados dos anos 90 do século passado, também em

virtude do tráfego de bens e capitais se deslocar à velocidade da luz entre os diversos

países inseridos num mundo globalizado, o legislador iniciou um movimento de reforma

do processo executivo.

Em que pese em Portugal embora ainda não tenha sido incorporada no

ordenamento jurídico a execução extrajudicial hipotecária, entendemos que o movimento

de reforma do processo executivo como um todo já está em patamares bastante evoluídos.

A conclusão disso decorre da introdução da figura do agente de execução, da

criação do banco de dados, da dispensa de citação prévia em diversas hipóteses, enfim, de

um arcabouço de inovações, fruto do intenso e profícuo diálogo e duma valorosa troca de

experiências na evolução do ius commune europeu.

A desjurisdicionalização relativa do processo executivo português é

iniludivelmente assaz relevante para o início de uma reflexão no ambiente dos estudiosos

do direito processual no Brasil, vez que é cediço que o país, desde as Ordenações, recebeu

forte influência da dogmática eminentemente estatal da realização dos atos executivos.

139

Contudo, como vimos, quando da aprovação do anteprojeto de reforma da ação

executiva, não foi adotado em Portugal uma execução hipotecária extrajudicial, justamente

em virtude do receio das eventuais argüições de inconstitucionalidade que adviriam.

Eis aí um dos motivos a justificar o necessário diálogo entre os direitos luso e

brasileiro.

Mas não é só! No desenvolvimento do nosso tema, foi fulcral a abordagem da

atual Ley de Enjuiciamiento Civil de Espanha, pois a experiência desse país com a

execução hipotecária conduzida pelo notário há aproximadamente um século demonstrou-

se relevantíssima para que melhor pudéssemos apurar a viabilidade da desjudicialização do

procedimento.

Além disso, o estudo do direito espanhol, no tocante à própria essência da garantia

hipotecária, viabiliza o convencimento de que a execução dessa garantia real dispensa as

fases de penhora e de avaliação do bem, que sabidamente são causadores de inúmeras

discussões no curso do processo executivo.

E, justamente por estarmos convencidos de que a cobrança de dívidas decorrentes

de contratos de “massa” constitui um dos grandes entraves ao acesso a uma decisão de

mérito num prazo razoável, decidimos por nos concentrar no estudo de soluções que

consideramos viáveis para o caso específico das execuções hipotecárias.

Assim, verificamos que para a superação do regime da autodefesa, a solução

adotada na Tábua III da Lei das XII Tábuas (450 a.C.) passou pela execução extrajudicial,

que sucedia uma cognição sumária acerca da existência do direito do credor.

Note-se que embora os atos executivos fossem realizados pelo próprio credor, os

mesmos se desenvolviam nos limites preceituados no texto na norma, que efetivamente

serviu para delinear os contornos dos direitos do credor face ao devedor.

Dada a sua inquestionável eficácia, o procedimento foi paulatinamente sendo

aprimorado no desenvolvimento do direito romano, inclusive no momento em que se

trasladou o foco da execução da pessoa do devedor para o seu patrimônio.

140

Ora, é evidente que se o procedimento extrajudicial não fosse eficaz, não teria

permanecido no sistema jurídico romano por mais de oito séculos, somente sendo

relativizado na fase da cognito extra ordinem, ou seja, quando o Estado, na figura do

imperador, codificou o entendimento pretoriano e chamou para si a competência para a

realização da justiça.

Com efeito, conforme os poderes estatais foram se concentrando na pessoa do

imperador, a auctoritas para dizer o direito foi paulatinamente sendo retirada do pretor em

prol da codificação (norma), que assumiu o seu ápice durante o império de Justiniano,

quando da realização do Digesto ou Pandecta (séc. VI).

Constatamos que foi justamente no momento em que o direito foi se estatizando

que a execução forçada perdeu terreno e assumiu um caráter eminentemente estatal, que,

de forma intrigante, anteriormente só era destinado aos processos envolvendo a

administração pública.

Contudo, a estatização da execução perdeu terreno durante a invasão bárbara,

quando, numa cristalina contramarcha da história, retomou força a autotutela.

Consoante a paulatina fusão dos povos e o crescimento das cidades (comunas), o

recurso à execução estatal praticada nos fins do Império, que ainda permanecia na memória

dos latinos, foi se proclamando.

Inexoravelmente, a execução estatual foi restabelecida na Europa continental,

quando da redescoberta e da divulgação do Corpus Iuris Civilis pela Escola de Bolonha, a

partir do século XII, trazendo a lume o direito comum.

Em Portugal, sobretudo a partir do século XIII, os atos executivos já estavam

submetidos ao monopólio do Judiciário, sendo que o seu status permaneceu incorporado à

tradição jurídica até muito recentemente.

Conforme retratado, a partir da reforma processual iniciada, sobretudo a partir de

meados da década de 90 do século passado, diversos atos do processo executivo foram

sendo desjudicializados na pessoa do solicitador de execução.

141

Apesar das dificuldades logísticas (sobretudo no tocante aos meios tecnológicos

de acesso) até o momento verificadas para a adequada implantação do sistema

computadorizado nas secretarias de execução em Portugal, constatamos que os operadores

do direito, em sua maioria, reconhecem que a reforma, independentemente dos naturais

reparos que a prática demonstra serem necessários, foi um avanço que precisa ser

implementado e levado adiante.

O Brasil, herdeiro da tradição jurídica portuguesa, também vem se debatendo com

a necessidade de alterar o estado calamitoso dos tribunais, motivo pelo qual, no bojo da

reforma do processo civil, não são poucas as propostas tendentes a aprimorá-lo. Inclusive,

durante a abordagem histórica que fizemos, no tocante ao processo de execução, não foram

as correlações realizadas entre as soluções recentemente sugeridas e/ou adotadas e os

momentos históricos em que as mesmas foram experimentadas na evolução do instituto.

E, com o escopo de proporcionar um diálogo profícuo com o direito português, no

que diz respeito à execução hipotecária, trouxemos à baila a execução extrajudicial

hipotecária brasileira, experiência legislativa que remonta aos anos 60 do século passado, e

que aparentemente foi negligenciada durante as discussões anteriores ao advento da

reforma do processo de execução em Portugal, tendo em vista que os eminentes

processualistas portugueses, àquela altura, concentraram as suas atenções na análise do

procedimento de execução hipotecária extrajudicial espanhol.

Entendemos que a experiência espanhola, aliada à brasileira, é assaz relevante

para o avanço da discussão acerca da viabilidade da desjudicialização da execução

hipotecária, pois apesar de ainda subsistirem correntes de entendimento acerca de questões

pontuais relacionadas com os institutos que regem a execução extrajudicial hipotecária, o

fato é que a doutrina espanhola já está bastante avançada na matéria, sobretudo no que diz

respeito à essência da garantia real de hipoteca.

De fato, para que possamos alcançar a força da garantia hipotecária, reconhecida

como a “rainha das garantias”, mister se faz compreender que ao credor compete tão-

somente exercer o seu ius vendendi, que permaneceu após a superação do pacto comissório

no direito romano.

142

No entanto, também pudemos verificar que em Portugal, o Decreto-Lei n.

105/2004, de 8 de maio, aceitou o pacto comissório, em desvio da regra consagrada no

artigo 694º do Código Civil, desde que as partes o convencionem e acordem a forma de

avaliação dos instrumentos financeiros dados em garantia.

Além disso, também constatamos que, ao incorporar a Ley de Enjuiciamiento

Civil a execução extrajudicial hipotecária conduzida pelo notário, o legislador espanhol

realçou o caráter jurisdicional do procedimento, que inclusive foi unificado. Por

conseguinte, é inequívoca a credibilidade alcançada pela execução extrajudicial hipotecária

em Espanha.

Por outro lado, sob a nossa ótica, embora o Supremo Tribunal Federal do Brasil já

tenha reiteradas vezes julgado constitucional o texto do Decreto-Lei n. 70/66, que preceitua

a execução extrajudicial hipotecária, entendemos que a legislação merece reparo.

Talvez inspirando-se no regime espanhol, poder-se-ia alcançar no Brasil o

aprofundamento do recurso à execução extrajudicial hipotecária e a superação de

discussões, que, a nosso ver, possuem fundamento, como por exemplo as hipóteses em que

se garantiria ao consumidor um controle jurisdicional efetivo por parte do agente estatal –

juiz.

Outrossim, consideramos inaceitável existirem três procedimentos para a

execução da garantia hipotecária no Brasil. Tal qual sucedeu em Portugal, quando da

recente reforma, bem como ocorreu em Espanha, há que se unificar todos os

procedimentos em um só, para que inclusive não haja ofensa ao princípio da isonomia, já

que somente às instituições financeiras é assegurada a execução extrajudicial hipotecária.

Consequentemente, o acesso ao meio mais eficaz de execução da garantia

hipotecária deveria ser assegurado a todos, desde que preenchidos os pressupostos legais.

Por outro lado, a legislação brasileira de execução extrajudicial hipotecária, de

índole mais liberal que a espanhola, indiscutivelmente transfere para o suposto devedor o

ônus de ingressar no Judiciário com uma ação declarativa, ou seja, não houve qualquer

preocupação do legislador com a matéria que porventura poderia ser invocada em sede de

143

oposição, o que, de certa forma, proporcionou a morosidade da execução, quando o

Judiciário é instado a se pronunciar. Portanto, indiretamente o legislador proporcionou a

realização de infindáveis oposições e recursos em sede judicial.

E o pior, sequer houve qualquer preocupação relativa aos casos em que o

Judiciário é indevidamente provocado pelo devedor, com manifesto propósito

procrastinatório. E o mesmo se pode dizer nos casos em que a cobrança se revela

absolutamente abusiva.

Entendemos que em tais casos mister se faz proporcionar ao juiz a possibilidade

de aplicar multas à parte considerada culpada, para dissuadi-la a não mais incidir em

condutas deletérias que, ao cabo, afrontam os interesses da própria sociedade em obter uma

prestação jurisdicional num prazo razoável.

No entanto, sublinhamos que deve ser resguardado ao devedor e ao terceiro

interessado a possibilidade de oferecer oposição, cujas hipóteses devem estar previstas no

ordenamento jurídico para a hipótese de suspensão do procedimento de execução, sendo

certo que as demais reclamações, tal qual sucede em Espanha, seguirão a via ordinária,

sem o condão de suspender o curso da expropriação.

Sem prejuízo, tal qual sucede em Portugal em termos do labor desempenhado pelo

agente de execução, para que se proporcione a celeridade do procedimento, ele deve estar

de tal forma articulado entre o agente fiduciário (ou notário) e o juiz de execução, para que

se proporcione a celeridade do procedimento, em caso de dúvidas e oposições.

Além disso, desde que se proporcione profícuo controle jurisdicional a posteriori,

o procedimento extrajudicial poderá ser realizado por qualquer ente, desde que tenha a sua

atividade devidamente regulamentada e sobretudo tenha a sua atividade submetida ao

poder de controle e de sanção do Estado, representado na figura do agente judicial.

Em termos de atuação do agente judicial, ela se justificaria no poder de imperium

e não na jurisdição, motivo pelo qual não haveria delegabilidade do poder coercitivo para a

retomada do bem imóvel, em caso de resistência.

144

Embora tenhamos inclinação a conceber como mais atraente a solução espanhola,

que reconhece no notário a capacidade para a condução do procedimento, não haveria o

menor problema em que, por exemplo, um agente privado (agente fiduciário, por exemplo)

realizasse a execução, bem como o ulterior controle dos cálculos apresentados pelo credor

hipotecário, no caso de haver reclamação por parte do devedor ou do terceiro garante.

O fato é que, independentemente de aprimoramentos do procedimento, é de pleno

aceitável a realização da garantia hipotecária por intermédio de terceiros que não se

confundem com o agente judicial, desde que a execução seja conduzida com

independência, imparcialidade e nos estritos termos do permissivo legal.

A propósito da independência e da imparcialidade, estamos convictos de que,

desde que os atos executivos estejam adequadamente delineados na legislação própria,

vinculando o agente a cumpri-los todos na forma prevista em lei, não subsistiriam

problemas para que a execução extrajudicial fosse custeada pelo próprio credor, sobretudo

quando pensamos, por exemplo, na hipótese de o devedor desocupar voluntariamente o

bem hipotecado.

No que diz respeito aos atos a serem realizados no bojo da execução extrajudicial,

entendemos que diante da natureza eminentemente contratual da execução hipotecária, não

resulta grande complexidade para a aferição dos pressupostos processuais por parte do

agente de execução.

A título exemplificativo, a citação do devedor ou do terceiro garante deverá

ocorrer no endereço declinado na escritura registrada de hipoteca, sendo que, no caso de

alteração de endereço, deverá o interessado comunicar o fato ao cartório competente, sob

pena de arcar com os prejuízos decorrentes da sua incúria.

A esse propósito, em linhas gerais, firmamos o convencimento de que a execução

hipotecária prescinde da intervenção do agente judicial a priori, visto que o título

registrado confere ao credor um alto grau de certeza em relação ao seu direito, assim como

a planilha detalhada de composição do débito permitirá ao mutuário, devidamente

notificado, se assim entender, solicitar a realização de uma revisão dos cálculos ao próprio

agente de execução.

145

Aliás, no que pertine à apreciação liminar de regularidade do título, devido ao seu

aspecto meramente formal, mesmo no direito português, de acordo com o artigo 812º, n. 7,

“c” do Código de Processo Civil, a execução com garantia real espelhada numa hipoteca

prossegue com a citação do executado sem despacho liminar.

Sem embargo, ao aprofundarmos o estudo da essência da hipoteca e a sua índole

contratual, concluímos que, além da penhora, também não se justifica a realização de

avaliação da garantia, visto que ela poderá estar prevista no próprio contrato, tal qual já

sucede em Espanha.

No que diz respeito à verificação de regularidade da execução, entendemos que o

regime espanhol da execução hipotecária, ao invés de determinar que compete ao juiz

apreciar a contestação dos cálculos formulada pelo devedor, poderia perfeitamente

transmitir ao próprio notário os poderes para realizar a revisão dos cálculos, eis que tal

operação, no mais das vezes, sequer é realizada pelo magistrado.

De fato, na prática, em virtude de não possuir uma formação adequada para tal,

costumeiramente o magistrado confere ao perito contábil a tarefa de apreciar a regularidade

dos cálculos formulados.

Em virtude disso, entendemos que o agente de execução, valendo-se inclusive dos

meios eletrônicos disponíveis, e aplicando as premissas avençadas contratualmente entre as

partes, poderia de forma simples realizar a aferição da regularidade do saldo devedor.

Em que pese a divisão doutrinária acerca da reserva de jurisdição no processo de

execução, entendemos que os novos tempos, notabilizados especialmente pela sociedade

de consumo e pela revolução dos meios de comunicação, ensejam novas soluções (ou o

restabelecimento de antigas soluções) no sistema de organização judiciária, que não pode

ficar circunscrito aos quadrantes da estatização burocrática do processo, que diuturnamente

se revela ineficaz.

O exercício da jurisdição (no sentido de iuris dictio e de defesa da ordem jurídica

estabelecida) nas inúmeras e complexas questões que envolvem uma sociedade pluralista

não pode e não deve prescindir dos meios alternativos de resolução de litígios hoje

146

conhecidos e de outros que porventura se afigurem adequados aos princípios

constitucionais e infraconstitucionais processuais. E o recurso aos referidos meios

alternativos não se prende ao processo de conhecimento, podendo se expandir ao processo

de execução, nas variadas vertentes que envolvem as particularidades de cada título

executivo, no contexto do direito material.

Ademais, considerando que a importância conferida pelos processualistas ao

processo de execução até bem recentemente foi pouca, face ao processo declarativo,

entendemos que ainda podemos ser mais audaciosos na busca de soluções criativas

envolvendo a cobrança de créditos nos chamados contratos de massa, como por exemplo

os de financiamento imobiliário garantidos com hipoteca registrada em conservatória.

Além disso, numa sociedade democraticamente responsável, a busca de novas

soluções para o processo de execução, sob a nossa ótica, também deverá passar pela

atribuição de responsabilidades às instituições de natureza civil, pois a realização do

Estado cooperativo decerto requer a indispensável atuação da sociedade organizada para a

sua estratégia de funcionamento.

Exemplo típico disso é a proposta formulada pela UNIDROIT, no sentido de

atribuir às instituições responsáveis pela administração aeroportuária nos diversos países a

competência para a realização dos atos de execução dos contratos de arrendamento de

aeronaves, vez que poderiam, com maior eficácia do que o Judiciário, realizar tais atos a

custo muito menor e com maior celeridade.

Destarte, considerando assaz relevante o debate relativo ao tema apresentado,

inclusive no tocante à desjudicialização dos atos executivos por agentes e instituições

fiáveis, imparciais e independentes, entendemos que futuramente será de relevo um maior

diálogo com o direito proveniente da common law, para que possamos aventar a

possibilidade de se introduzir nos demais sistemas jurídicos a figura do trustee, de índole

contratual e fruto de uma experiência que remonta ao desenvolvimento dos tribunais de

equity no século XII.

147

Independentemente disso, em qualquer circunstância, o Estado deverá ser o

indutor da necessária parceria a ser realizada com a participação da sociedade organizada,

o que, como salientado, é um dos pressupostos para a viabilização de um Estado

Democrático de Direito num ambiente cooperativo.

Obviamente, não existe uma solução única para o desafogo do Poder Judiciário,

todavia tem-se como assente que é preciso prosseguir na busca de soluções, para que ao

juiz sejam proporcionados instrumentos para que possa se debruçar sobre as inúmeras

questões, inclusive de política governamental, que a passos largos lhe são confiadas para

dirimir.

Não se pode, pura e simplesmente, atribuir aos juízes do sistema escrito a

responsabilidade pela ineficácia do processo executivo, por conta do recebimento da

herança das funções outrora destinadas ao iudex privatus romano, que lhes ofertou a

condição de “buche de la loi”. A ação descompromissada e desvinculada dos objetivos da

sociedade decorre precipuamente de fatores históricos que, por opção legislativa,

relacionada com fatores de índole política e social, induziram os juízes a tal acomodação.

O Estado deve proporcionar, como gestor do poder que lhe foi conferido pelo

povo, outorgar tal função àqueles que mereçam e demonstrem-se hábeis a serem

legitimados dentro de uma estratégia organizacional voltada para resultados efetivos, sem

perder o norte da preservação dos direitos fundamentais, para realizar as tarefas balizadas

na norma procedimental.

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