injustificados vetos presidenciais à lei 11.382/06 · qual surgiu a lei 11.382/06. pode estar o...
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Injustificados vetos presidenciais à Lei 11.382/06
1. Introdução; 2. A limitação patrimonial como resultado da humanização da
execução; 3. Bens impenhoráveis – razões de natureza humanitária; 4.
Impenhorabilidade total dos vencimentos, subsídios, soldos, salários,
remunerações, ganhos do trabalhador autônomo e os honorários de profissional
liberal (art. 649, IV, CPC); 5. Impenhorabilidade do bem de família,
independentemente do valor do imóvel; 6. Conclusões.
Daniel Amorim Assumpção Neves, mestre e doutor em Processo Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Professor de Processo Civil na Universidade Instituto Presbiteriano Mackenzie e no Curso Praetorium – Belo Horizonte.
1. Introdução
É de conhecimento pleno dos estudiosos e operadores do direito processual que
dentre os vários pontos de estrangulamento do procedimento civil que impedem a
prestação jurisdicional de boa qualidade situa-se a execução. As dificuldades
práticas são sentidas tanto na execução de títulos executivos judiciais como
também de títulos extrajudiciais, sendo constatação advinda do dia-a-dia forense a
incapacidade da maioria dos exeqüentes em obter a plena satisfação de seu
direito.
Essa dificuldade foi naturalmente sentida pelos aplicadores do direito processual,
o que motivou uma ampla e profunda reforma na execução, iniciada com a
execução de título executivo judicial (Lei 11.232/05) e agora finalizada com a
execução de título extrajudicial (Lei 11.382/06). Ainda que nem todas as reformas
gerem os resultados benéficos programados, são invariavelmente positivas
modificações que busquem conceder ao jurisdicionado uma tutela mais eficaz e
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rápida, como parece ter sido a preocupação do legislador reformista com as
referidas leis.
O presente artigo, entretanto, não tem como objetivo a análise das modificações
advindas da onda reformista atual que atingiu a execução, mais especificamente o
processo de execução de título extrajudicial. A análise será feita com relação a
dois pontos que poderiam ter sido novidades significativas no tocante à
impenhorabilidade de bens, mas que infelizmente em virtude de veto presidencial
ficaram somente na vontade dos estudiosos que prepararam o Projeto de Lei do
qual surgiu a Lei 11.382/06.
Pode estar o leitor imaginando qual seria a utilidade de um artigo versar sobre
questões que não serão aplicadas no dia-a-dia forense em virtude do veto
presidencial. Sinceramente, até mesmo eu cheguei a pensar a respeito desse
assunto quando convidado a participar da presente obra coletiva. A importância, a
meu ver, reside na necessidade da comunidade jurídica dizer em alto e bom tom
que os vetos presidenciais são injustificáveis, não encontrando qualquer razão de
ser plausível. É como um grito de revolta contra aqueles que continuam a
entender o princípio da dignidade humana de forma absolutamente imprópria. É
um desabafo contra o atraso disfarçado de modernidade. É, acima de tudo, uma
tentativa de demonstrar que o veto presidencial não pode ser aceito
pacificamente, sendo necessário que os operadores e estudiosos do processo civil
façam nova pressão nos responsáveis para que as modificações vetadas sejam o
mais rápido possível transformas em lei.
2. A limitação patrimonial como resultado da humanização da execução
É indubitável que as regras de impenhorabilidade de determinados bens têm
estreita ligação com a atual preocupação do legislador em criar freios na busca da
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satisfação do exeqüente, como forma de se manter a mínima dignidade humana
do executado, valor protegido constitucionalmente. Essa preocupação, entretanto,
nem sempre esteve presente na história do Direito e, mais especificamente, do
processo. Basta lembrar que no direito romano a execução era extremamente
violenta, permitindo-se a privação corporal e até mesmo a morte do executado.
A famosa Lei das XII Tábuas choca o leitor ao estabelecer que em determinadas
condições se possa “dividir o corpo do devedor em tantos pedaços quantos sejam
os credores” ou ainda “vender o devedor a um estrangeiro, além do Tigre”, o que
significaria morte ou vida de extrema penúria, considerando que além do Tigre
estavam os fenícios, que à época eram inimigos capitais dos romanos.
O direito romano passou por uma tímida, mas nítida humanização da execução a
partir do momento em que passou a regular limites à atuação do exeqüente no
processo executivo, em especial no tocante a limitação da morte e da divisão do
corpo do exeqüente.1 Enquanto não abandou a idéia de vingança privada,
entretanto, o direito romano não conseguiu se desvincular do excesso nos meios
executivos visando a satisfação do direito do exeqüente.
A doutrina que enfrentou o tema é unânime em apontar que a Lex Poetelia, do ano
326 a.C., representou o início da transformação da responsabilidade pessoal para
a patrimonial.2 Passou-se a proibir a morte e o acorrentamento do executado e a
prever de forma institucionalizada a satisfação do crédito mediante a prestação de
trabalhos forçados, o que, se hoje em dia parece inaceitável, à época representou
1 Assim foi reconhecido por Cândido Rangel Dinamarco, Execução civil, 6. ed., São Paulo, Malheiros, 1998, p. 33: “Da execução corporal passou-se à patrimonial e mesmo esta principiou incidindo sobre todo o patrimônio do executado, para num estágio ulterior restringir-se ao necessário à satisfação do direito violado” (Luiz Carlos de Azevedo, Da penhora, São Paulo, Resenha Tributária, 1994, p. 137-138, faz interessante análise histórica de tal evolução). 2 Nesse sentido Paulo Henrique dos Santos Lucon, Embargos à execução, São Paulo, Saraiva, 1996, p. 18.
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grande avanço. A idéia de vingança privada, entretanto, ainda continuava
fortemente arraigada na mentalidade romana da época.
É interessante notar que mesmo dentro da responsabilidade patrimonial, que veio
a se verificar de forma mais concreta no período clássico e pós-clássico do direito
romano, houve uma evolução. Basta lembrar que a bonorum venditio representava
uma execução universal e coletiva, na qual o executado respondia por sua dívida
com a integralidade de seu patrimônio, em procedimento muito parecido com a
atual falência e insolvência civil. A partir do advento do período clássico (com os
novos institutos aí previstos) passou-se em alguns casos à limitação patrimonial,
com o valor dos bens expropriados correspondente ao da dívida, o que se
aproxima de nosso atual esquema de responsabilidade na execução forçada.
É nessa fase do direito romano que se passa a notar os primeiros traços de
preocupação do legislador com a preservação do mínimo necessário para a
manutenção do executado. Segundo informa Cândido Rangel Dinamarco,
excluíam-se da responsabilidade patrimonial “os bens pessoais necessários à
subsistência deste, o dote, os bens pertencentes aos filhos, as insígnias
honoríficas, os bens de terceiro”.3 Ainda que de forma embrionária, percebe-se
algo próximo à impenhorabilidade de certos bens como previsto atualmente.
Não cabe nos estreitos limites do presente artigo a análise minuciosa da evolução
do tema durante a história, com todas as idas e vindas verificadas no que tange à
humanização da execução. Basta asseverar que com a queda de Roma e a
fragmentação do Império Romano, muitas conquistas científicas no campo do
3 Cf. Execução civil, ob. cit., p. 46. Nesse sentido, apontando a esse momento histórico o início da execução patrimonial, temos Araken de Assis, 7. ed., São Paulo, RT, 2001, p. 383. Leonardo Greco, Processo de execução, Rio de Janeiro, Renovar, 2001, vol. II, p. 13: “Essa complacência com a dignidade humana do devedor foi a origem da moderna impenhorabilidade, que, sem perder sua inspiração inicial, passou a ser justificada pela doutrina com as mais variadas razões, como a ordem pública, o interesse do executado ou de terceiro, a decência etc.”.
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Direito foram esquecidas, prevalecendo o direito do povo conquistador,
nitidamente inferior àquele vigente quando da queda do Império. De qualquer
forma, o direito romano ainda sobreviveu, misturado ao direito bárbaro ou ainda
preservado no direito canônico, voltando a ser aplicado na execução medieval e
no Reino de Portugal, por meio de suas Ordenações.4
O mais interessante na presente análise é o reconhecimento de uma evolução,
nem sempre contínua, da responsabilidade do executado na execução forçada,
iniciando-se com a possibilidade de sua morte e após certo tempo de sua
escravização temporária, para a execução patrimonial, desde a expropriação da
totalidade do patrimônio até a restrição patrimonial ao valor da dívida e a
determinados bens, já que alguns estariam garantidos de forma ora absoluta, ora
relativa.5
Como se percebe, a impenhorabilidade de bens é a última das medidas no trajeto
percorrido pela humanização da execução. A garantia de que alguns bens jamais
sejam objetos de expropriação judicial aparenta ser a tentativa mais moderna do
legislador de preservar a pessoa executado, preservando-se nesse caso sua
dignidade humana. Tais garantias concedidas ao executado são saudadas como
representativas de apuração científica da ciência do Direito, afastando-nos dos
4 Cf. Miguel Teixeira de Souza, Estudos sobre o novo processo civil, Lex, Lisboa, 1997, p. 643-644, tais previsões vinham previstas nas Ordenações Afonsinas (3.97.1 e 2), nas Ordenações Manuelinas (3.71.10 e 11) e Ordenações Filipinas (3.86.23 e 24). 5 Nas palavras de Paulo Henrique dos Santos Lucon, Embargos à execução, ob. cit., p. 28-29: “De outro lado, percebe-se a gradativa humanização da execução do período das ações da lei, passando pelo período formulário, até a cognitio extra ordinem, com a possibilidade cada vez maior de o devedor participar de um processo em contraditório. Da violenta execução pessoal passa-se a satisfação do crédito por meio da execução sobre o patrimônio do devedor. Essa passagem se dá na medida em que organizações semelhantes ao que viria a ser o Estado moderno se consolidam e em que o poder de fazer cumprir o direito de jurisdicionalizar em pessoas por assim dizer investidas desse poder. A evolução mostra-se ainda mais importante quando, em momento ulterior, através da bonorum distractio, a execução atinge não somente aqueles bens suficientes ao pagamento do débito. Gradativamente passou a haver uma saudável e justa proporcionalidade entre a obrigação devida e os atos executivos destinados ao seu cumprimento”.
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despropositados meios de satisfação previstos no direito romano (onde já se viu
dividir o corpo do executado e entregá-los ao exeqüente?!).
Parece, entretanto, e nesse tocante é provável que o pensamento receba críticas
daqueles que ainda não entenderam a devida extensão do princípio da dignidade
humana, que tanto nossa legislação como sua aplicação por nossos magistrados
criam em certos momentos demasiada proteção ao executado, esquecendo-se até
mesmo da função pública do processo que é a entrega de prestação jurisdicional
de qualidade. Não se está, certamente, a defender a extinção dos casos de
impenhorabilidade previstos pelo Código de Processo Civil e leis extravagantes,
mas em meu sentir chegou o momento de uma releitura de tais normas protetoras,
já que a exacerbação na preservação do executado verificada na interpretação de
tais dispositivos tem levado a um grau cada vez menor de efetividade nas ações
de execução por quantia certa.
Dentro dessa premissa é que os vetos presidenciais aos arts. 649, § 3º e 650,
parágrafo único, ambos do CPC, se mostram em equivocado exagero na busca da
preservação da dignidade humana do executado, objeto principal da crítica contida
no presente artigo.
3. Bens impenhoráveis – razões de natureza humanitária
A doutrina é concorde em afirmar que razões de cunho humanitário levaram o
legislador às previsões contidas no art. 649 do CPC e em algumas leis
extravagantes. A preocupação em preservar o executado – e quando existente
também sua família – fez com que o legislador passasse a prever formas de
dispensar o mínimo necessário à sobrevivência digna do devedor.
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Segundo nos informa Araken de Assis, a impenhorabilidade de certos bens está
ligada a uma “exigência de humanidade na execução”,6 mesma opinião
expressada por José Frederico Marques quando afirma que “os deveres de
solidariedade humana e de assistência social é que impedem o ato
expropriatório”.7 A preservação da pessoa do executado e, em especial, a
manutenção de um estado minimamente capaz para sua sobrevivência digna
acabam por nortear tal instituto.
E não só no direito brasileiro existem tais espécies de normas, sendo constante
em ordenamentos modernos de Estados estrangeiros tal preocupação do
legislador. Na verdade, constata-se que a existência de bens impenhoráveis é
uma realidade em praticamente todos os ordenamentos, sendo interessante notar
que os limites específicos dessa impenhorabilidade são traçados de forma distinta,
levando-se em conta primordialmente aspectos históricos e conjunturais
(econômicos, políticos e culturais) de cada país.8
No direito português, os bens relativa e absolutamente impenhoráveis encontram-
se previstos nos arts. 821 a 824 do CPC. No direito francês, existem previsões
espalhadas por diversas leis extravagantes, valendo citar os arts. 13 a 15 e 41 e
42 da Lei 91-650, de 1991, que estabelece o Procédures Civiles d’exécution. No
Codice di Procedura Civile italiano as previsões sobre bens impenhoráveis
encontram-se nos arts. 513 e 514.9 Também na ZPO existe previsão de bens
6 Comentários ao Código de Processo Civil, São Paulo, RT, 2000, vol. 9, p. 75. 7 Instituições de direito processual civil, Campinas, Millennium, 2001, vol. V, p. 172. Para Cândido Rangel Dinamarco, Execução civil, ob. cit., se trata de limite político da execução. No entendimento de Eduardo Cambi, Tutela do patrimônio mínimo necessário à dignidade do devedor e de sua família, Processo de execução, coord. Sérgio Shimura e Teresa Arruda Alvim Wambier, São Paulo, RT, 2001, p. 253, a limitação representa que o processo de execução não pode buscar a satisfação do direito de crédito a qualquer preço, “sob pena de não tutelar a dignidade do ser humano e de sua família, construindo-se uma justa limitação política à execução forçada”. 8 Nesse sentido José Garberí Llobregat, El proceso de ejecución forzosa en la Nueva Ley de Enjuiciamiento Civil, Madrid, Civitas, 2003, p. 439. 9 Para Pasquale Catoro, Il processo di esecuzione nel suo aspetto pratico, Giuffrè, Milão, 1985, p. 299, tais disposições são motivadas “ora per ragioni spirituali o sentimentali, ora per ragioni di
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impenhoráveis no art. 811 e em leis extravagantes.10 Semelhante disposição é
encontrada nos arts. 831 a 833 do CPC da Polônia.
A impenhorabilidade de determinados bens também é realidade em países da
América do Sul. Na Argentina, a previsão tocante ao tema encontra-se no art. 219
do Código Procesal Civil y Comercial Nacional e em diversas leis nacionais.11 No
direito uruguaio a previsão encontra-se no art. 885 do CPC. No Chile os bens
impenhoráveis vêm previstos no art. 445 do CPC.
É interessante o caso da Bolívia, que prevê o instituto do benefício de
competência, instituto muito próximo das regras de impenhorabilidade de bens,
mas que trata diretamente do pagamento parcial da dívida pelo devedor quando
seu pagamento total possa levá-lo a um estado de extrema dificuldade em sua
sobrevivência12. O instituto é baseado em duas principais características: o
pagamento parcial, mantendo-se assim com o devedor o mínimo para sua
sobrevivência digna, e a suspensão da cobrança do restante para um momento
em que o devedor apresente melhora em sua condição econômica e possa fazer
frente a sua obrigação sem sofrer privações mais sérias.13
umanitá, ora per ragioni di opportunitá político-amministrativa”. Também Enrico Tullio Liebman, Processo de execução, 2. ed., São Paulo, Saraiva, 1973, p. 73, fala em motivos de “ordem jurídica e humanitária”. 10 James Goldschmidt, Direito processual civil, Campinas, Bookseller, 2003, t. II, p. 155-156, se referindo sobre instituto chamado de benefício de competência público: “A finalidade deste benefício é deixar livres na execução sobre móveis por dívidas líquidas a uma série de objetos, por razões político-sociais”. A confusa redação dá-se em virtude de problemas na tradução, mas é possível entender a idéia do texto. 11 Segundo Lino Enrique Palacio, Manual de derecho procesal civil, 14. ed., Abeledo-Perrot, Buenos Aires, 1998, p. 679, “fuera de los mencionados por el art. 219, existen numerosos bienes que han sido declarados inembargables por leyes nacionales”. 12 A moratória legal no pagamento da dívida é uma novidade no direito brasileiro – art. 745-A, CPC. Nada tem a ver, entretanto, com o tema da impenhorabilidade de bens ou a manutenção digna do executado. 13 Como nos informa Nelson R. Mora, Procesos de ejecucion, 2. ed., Temis, Bogotá, 1973, t. I, p. 35, “la excepción tiene su fundamento en razones superiores de humanidad, equidad y de solidariedad social”. James Goldschmidt, Direito processual civil, ob. cit., p. 159, aponta existir previsão semelhante no direito alemão, com concessão de verdadeira moratória ao devedor. Existe
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Propor a exclusão pura e simples de tais regras de nosso ordenamento seria,
portanto, rumar contra tendência mundialmente aceita de necessidade de
preservação de um mínimo necessário à continuação da vida do executado com
dignidade. Ocorre, entretanto, que esse “mínimo” deve ser efetivamente o
necessário à sobrevivência digna, e não a manutenção do padrão de vida do
executado, muitas vezes impossível de ser mantido quando diante da
obrigatoriedade de honrar seu compromisso.
Atualmente, diante do manifesto fracasso do processo de execução por quantia
certa, pergunta-se se não estaria o legislador pátrio exagerando na proteção do
executado, em evidente e injusto detrimento do credor. Obviamente que não se
pretende com tal afirmação glorificar ou ainda justificar métodos ultrapassados na
busca da satisfação do direito, como a responsabilidade pessoal da Lei das XII
Tábuas ou os métodos de infâmia conhecidos na Idade Média. O que preocupa é
se não haveria atualmente exagero na humanização da execução, esquecendo-se
por muitas vezes que o exeqüente também é humano, e sofre ao não receber seu
crédito diante da ineficácia do processo executivo.
Nesse sentido as lições de Luiz Rodrigues Wambier, quando afirma que
“contribuiu sensivelmente para o descrédito do processo de execução e, portanto, para o incremento de sua crise, o saudável (e imprescindível, para o Estado de Direito) crescimento dos mecanismos de defesa dos direitos fundamentais. Talvez de modo desequilibrado, muito provavelmente em razão da grande novidade que ainda representa entre nós (vitimados por sucessivas quebras da estabilidade institucional, ao longo do século XX), a defesa dos direitos fundamentais trouxe ‘efeitos colaterais’, como, por exemplo, o da intangibilidade cada vez mais acentuada (e, a nosso ver, exagerada) do patrimônio do devedor”.14
proposta semelhante de parcelamento de pagamento na proposta apresentada pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual ao Congresso Nacional. 14 Cf. A crise da execução e alguns fatores que contribuem para a sua intensificação – propostas para minimizá-la, RePro 109/138.
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Sempre pareceu que o temor do legislador em se divorciar das práticas pouco
aconselháveis em termos de responsabilidade do devedor pelo pagamento de
dívidas acabou por criar proteções excessivas. O veto presidencial aos art. 649, §
3º e 650, parágrafo único, ambos do CPC, rumam nesse sentido. Teria ocorrido
como Barbosa Moreira já teve oportunidade de perceber na análise que fez da
passagem da livre apreciação das provas pelo juiz para o sistema da prova
tarifada, quando para se afastar um sistema radical (em que o juiz não encontrava
limites em nada) criou-se outro também radical (o juiz estava engessado por lei
prévia na valoração das provas), em sentido contrário. A figura criada pelo
doutrinador carioca era do pêndulo, que quando segurado num extremo e solto
livremente irá fatalmente chegar à mesma altura no outro extremo. Não teria sido
soltado o pêndulo de forma tão livre no tocante à proteção do executado, de forma
a criar-se exagerada proteção?
É preciso atingir um ponto de real equilíbrio, como bem apontado por Cândido
Rangel Dinamarco ao afirmar que
“a percepção do significado humano e político das impenhorabilidades impõe uma interpretação teleológica das disposições contidas nos arts. 649 e 650 do Código de Processo Civil, de modo a evitar, de um lado, sacrifícios exagerados e, de outro, exageros de liberalização; a legitimidade dessas normas e de sua aplicação está intimamente ligada à sua inserção em um plano de indispensável equilíbrio entre os valores da cidadania, inerentes a todo o ser humano, e os da tutela jurisdicional prometida constitucionalmente, ambos dignos do maior realce na convivência social, mas nenhum deles capaz de conduzir à irracional aniquilação do outro”.15
Não parece que o veto presidencial a duas providenciais modificações no tema da
impenhorabilidade de bens tenha contribuído para o desejado equilíbrio. Pelo
contrário, mantém injustificada e exagerada proteção ao executado, o que se
passa a demonstrar de forma bastante clara.
15 Cf. Instituições de direito processual civil, vol. IV, ,São Paulo, Malheiros, 2004, p. 342.
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4. Impenhorabilidade total dos vencimentos, subsídios, soldos,
salários, remunerações, ganhos do trabalhador autônomo e os
honorários de profissional liberal (art. 649, IV, CPC).
Segundo a regra disposta no inciso ora objeto de exame, os vencimentos,
subsídios, soldos, salários, remunerações, ganhos do trabalhador autônomo e os
honorários de profissional liberal, além dos proventos de aposentadoria, pensões,
pecúlios e montepios são impenhoráveis porque ligados à própria subsistência do
executado e de sua família. A justificativa para tal impenhorabilidade reside
justamente na natureza alimentar de tais verbas, donde a penhora e futura
expropriação significariam uma indevida invasão em direitos mínimos da dignidade
do executado, interferindo diretamente em sua manutenção, no que tange a
necessidades mínimas de habitação, transporte, alimentação, vestuário,
educação, saúde etc..16
Não parece, entretanto, que uma previsão genérica como essa deva ser
interpretada de forma meramente literal, sob pena de se verificarem evidentes
distorções e como conseqüência uma indevida proteção ao executado. A
impossibilidade de penhora na totalidade dos vencimentos, inclusive, é exceção
em diversos outros países, que certamente se preocupam com a dignidade do
executado, mas não se esquecem do exeqüente, que também tem direitos que
devem ser respeitados.
No direito alemão há previsão expressa na ZPO sobre a possibilidade de penhora
parcial dos salários, já que no art. 811, n. 8, considera-se impenhorável apenas o
mínimo para preservar as necessidades básicas e imediatas do executado, sendo
16 Tal entendimento é bastante arraigado no direito brasileiro, notando-se já nos Códigos de Processo Civil estaduais tal previsão: São Paulo (art. 1.003); Minas Gerais (art. 1.350); Santa Catarina (art. 1.751); Pernambuco (art. 1.341); Rio de Janeiro (art. 1.350); Bahia (art. 1.118); Rio Grande do Sul (art. 907) e Distrito Federal (art. 1.013).
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impenhoráveis somente os valores necessários para suprir o lapso temporal entre
a penhora e o próximo pagamento. Os valores são arbitrados pelo próprio
magistrado no caso concreto, levando-se em consideração o valor dos ganhos
advindos do trabalho pelo executado e suas necessidades. No direito polonês há
previsão no art. 833, § 1.º, preservando-se dois salários mínimos
(impenhorabilidade absoluta) e a partir daí permitindo-se a penhora de até um
quinto dos vencimentos.
No direito português, existe previsão no Código de Processo Civil, art. 823, n. 1,
letra e, de que somente 2/3 do salário são impenhoráveis, admitindo-se que a
penhora incida sobre o 1/3 restante.17 A penhorabilidade parcial do salário é
encarada com tamanha naturalidade no direito português que José Alberto dos
Reis assim se manifestou sobre o nosso sistema de isenção total, mantido com o
absurdo veto:
“O sistema brasileiro parece-nos inaceitável. Não se compreende que fiquem inteiramente isentos os vencimentos e soldos, por mais elevados que sejam. Há aqui um desequilíbrio manifesto entre o interesse do credor e do devedor; permite-se a este que continue a manter o seu teor de vida, que não sofra restrições algumas no seu conforto e nas suas comodidades, apesar de não pagar aos credores as dívidas que contraiu”.18
Na Espanha existe interessante disposição na Ley de Enjuiciamiento Civil, que
determina uma progressão de percentagens dos vencimentos, determinando-se a
penhora dependendo do valor do salário do executado.19 O art. 607 cria um valor
17 J. P. Remédio Marques, Curso de processo executivo comum à face do código revisto, Coimbra, Almedina, 2000, p. 181. Em Portugal temos as lições de Miguel Teixeira de Souza, Estudos sobre o novo processo civil, ob. cit., p. 644: “No entanto, atendendo à natureza da dívida exeqüenda e às necessidades do executado, o juiz pode isentar totalmente esses rendimentos de penhora, tendo em conta a natureza da dívida e as necessidades do executado e do seu agregado familiar (art. 824, n. 3)”. 18 Cf. Processo de execução, Coimbra, 1982, vol. 2, p. 78. Também aplaudindo a impenhorabilidade parcial temos Fernando Amâncio Ferreira, Curso de processo de execução, 2. ed., Coimbra, Almedina, 2000, p. 134-135. 19 José Garberí Llobregat, El proceso de ejecución forzosa en la nueva Ley de Enjuiciamiento Civil, ob. cit., p. 452: “En los casos en que, por carecer el ejecutado de cualesquiera otros elementos patrimoniales susceptibles de ser embargados para hacer frente a la satisfacción del crédito que le
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mínimo, absolutamente impenhorável, e a partir desse valor estabelece a
possibilidade de penhora de 30% a 90%, dependendo da faixa em que se verifica
o valor total dos vencimentos. Assim, tomando-se, por exemplo, um executado
que ganhe um salário mínimo, tem a garantia de impenhorabilidade absoluta,
porém aquele que ganha até dois salários mínimos poderá ter penhorado 30% do
valor que supere um salário mínimo, e outro devedor, que receba três salários
mínimos, terá com relação ao valor do “segundo” salário mínimo a penhora de
30% e com relação ao “terceiro” salário mínimo, a penhora de 50%.
No direito argentino existe previsão expressa de possibilidade de penhora em até
20% do valor do salário que exceder o valor estritamente necessário para a
subsistência do executado. A porcentagem no caso concreto encontra um teto
máximo na legislação, devendo o juiz levar em consideração as circunstâncias do
caso sub judice para fundamentar sua decisão.20
Também nos países da família da commom law é possível a penhora de parte do
salário do executado. Nos Estados Unidos existe verdadeira discricionariedade
judicial no arbitramento da porcentagem do salário que pode ser objeto de
penhora, levando o juiz em consideração as necessidades mínimas do executado
e de sua família no caso concreto. Apesar dessa margem de atuação do juiz, que
sea reclamado, la traba haya de recaer sobre los emolumentos que el mismo reciba como contraprestación por el ejercicio de su profesión, arte u oficio (o ingresos asimilados, como lo son las pensiones), resulta del todo punto evidente que, de la misma forma que en aras al respeto de su dignidad personal no se le priva del mobiliario y manaje no superfluo (art. 606. 1º LECiv), tampoco puede privársele de la totalidad de dichos ingresos, una parte de los cuales necesitará aquél afectar inexcusablemente a sua alimentación y demás gastos básicos inherentes al normal desarrollo de su vida y la de su familia o la de quienes de él dependan”. 20 Lino Enrique Palacio, Manual de derecho procesal civil, 14. ed., Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1998, p. 679: “En materia de sueldos, salarios, jubilaciones y pensiones rige la ley 14.443, cuyo art. 1.º excluye del embargo los salarios, sueldos, jubilaciones y pensiones que no excedan de determinada cantidad, con la salvedad de las cuostas por alimentos y litisexpensas, que deben ser fijadas dentro de un mínimo que permita la subsistencia del alimentante. En el caso de los sueldos, jubilaciones y pensiones que excedan de aquella suma, el embargo podrá efectuarse, de acuerdo con el art. 2.º de dicha ley, hasta llegar a un porcentaje del 20% sobre el importe mensual percibido” (Enrique M. Falcón, Procesos de ejecución, Buenos Aires, Rubinzal-Culzoni, 2001, t. I, vol. A, p. 46-48, traz interessante compilação da legislação sobre o tema).
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aparentemente não teria limitações na fixação da porcentagem a ser penhorada e
por conseqüência a ser preservada, existe lei federal que limita tal desconto,
exigindo que na fixação da penhora o devedor mantenha no mínimo 75% ou 30
vezes o valor do salário mínimo vigente, o que for maior.21
Dentre todos os ordenamentos estrangeiros estudados parece que a previsão
mais adequada é aquela contida na Ley de Enjuiciamiento Civil da Espanha. Leva
em consideração a garantia mínima já que torna absolutamente impenhorável um
valor teto (claro que no Brasil seria irrisório fixar tal teto tão-somente um salário
mínimo) e considera também o valor do salário e dos vencimentos, aumentando a
percentagem de penhorabilidade conforme o aumento do valor dos ganhos do
executado22 Preserva-se, dessa forma, um mínimo para a sobrevivência do
executado, mas ao mesmo tempo entrega-se a prestação jurisdicional pleiteada
pelo exeqüente. Todos os interesses são preservados, é claro que com certo
sacrifício do executado, que como já se teve oportunidade de asseverar é
conseqüência natural do processo executivo.
21 Jack H. Friedenthal; Mary Kay Kane; Arthur R. Miller, Civil procedure, St. Paul, West Publishing, 1985, p. 713: “Regardless of wich form of income execution is used, the judgment debtor should be given an opportunity to demonstrate his reasonable needs and those of his family. The exact amount to be deducted from the judgment debtor’s wage is discritionary with the court. Indeed, it has been held that even the judgment debtor’s stipulation to pay a specified amount is not controlling, especially if the debtor’s circunstances change after the stipulation. However, some state legislatures have limited the court’s discrition by declaring that no more than a certain percentge or a fixed dollar amount may be deducted from a wage earner’s income, and Congress has enacted a statute providing that no court – state or federal – may authorize a deduction from a judgment debtor’s wages that will leave his remaining income less than 75% of his take home pay or 30 times the minimum hourly wage, wichever is greater”. 22 Essa é a redação do art. 607 na parte em que nos interessa: “607. Embargo de sueldos y pensiones – 1. Es inembargable el salario, sueldo, pensión, retribución o su equivalente, que no exceda de la cuantía señalada para el salario mínimo interprofesional (593). 2. Los salarios, sueldos, jornales, retribuciones o pensione que sean superiores al salario mínimo interprofesional se embargarán conforme a esta escala: 1.º Para la primera cuantía adicional hasta la que suponga el importe del doble del salario mínimo interprofesional, el 30 por 100. 2.º Para la cuantía adicional hasta el importe equivalente a un tecer salario mínimo interprofesional, el 50 por 100. 3.º Para la cuantía adicional hasta el importe equivalente a un cuarto salario mínimo interpofesional, el 60 por 100. 4º. Para la cunatía adicional hasta el importe equivalente a un quinto salario mínimo interpofesional, el 75 por 100. 5º. Para cualquier cantidad que exceda de la anterior cuantía, el 90 por 100”.
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Era nesse sentido a ponderada modificação constante no Projeto de Lei do qual
adveio a Lei 11.382/06, que passava a prever a impenhorabilidade absoluta dos
ganhos do trabalho do executado até 40 salários mínimos, sendo penhorável 40%
do excedente a esse valor. Observem-se dois pontos fundamentais: a garantia de
impenhorabilidade de alto valor, atualmente de R$ 7.000,00, e a penhorabilidade
parcial do excedente a esse considerável valor. Como se pode notar, uma
modificação preocupada com a dignidade humana, mas também preocupada com
a necessária satisfação do direito de crédito do exeqüente.
Infelizmente assim não entendeu o Presidente da República, que aparentemente
preservando a dignidade humana do executado – na realidade mantendo o
exagero dessa proteção – vetou a modificação legislativa. O mais impressionante
foram as razões do veto:
“A proposta parece razoável porque é difícil defender que um rendimento líquido de vinte vezes o salário mínimo vigente no País seja considerado como integralmente de natureza alimentar. Contudo, pode ser contraposto que a tradição jurídica brasileira é no sentido da impenhorabilidade, absoluta e ilimitada, de remuneração. Dentro desse quadro, entendeu-se pela conveniência de opor veto ao dispositivo para que a questão volte a ser debatida pela comunidade jurídica e pela sociedade em geral”.
Mais debate a respeito de um tema já tão debatido, superado pelas legislações
estrangeiras da maioria dos países?
É preciso deixar claro que a modificação legislativa não levaria à situação em que
qualquer assalariado pudesse ter parte de sua renda mensal penhorada. Num
país pobre como o nosso, com um salário mínimo muito abaixo das necessidades
reais do trabalhador, a penhora do “quase nada” obtido com o esforço de seu
trabalho seria totalmente inadequada. Por isso, a preocupação em estabelecer um
valor mínimo e a partir de valores que superassem tal piso seria possível a
penhora. Será mesmo que pessoas bem colocadas no mercado de trabalho, como
executivos exercendo altos postos em empresas comerciais, jogadores de futebol,
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artistas etc., não teriam condições plenas de sobreviver com dignidade, ainda que
comprometida uma determinada porcentagem de seus vencimentos?23
Aliás, o próprio inciso já traz uma exceção à regra, mantida pelo art. 649, § 2°,
CPC, permitindo-se a penhora dos ganhos descritos no art. 649, IV, CPC quando
o executado estiver obrigado a pagar prestação alimentícia.24 A doutrina entende
que apesar de não existir expressa previsão nesse sentido, não pode a totalidade
dos ganhos advindos do trabalho ser penhorada, devendo o executado manter
algum produto de seu trabalho para sua sobrevivência. Fala-se até mesmo em
30% dos vencimentos como valor máximo de penhora, mas tudo dependerá do
caso concreto.
Para Eduardo Cambi,
“por evidente, a penhora dos rendimentos para a satisfação de prestação alimentícia não pode ser integral, mas deve ser limitada pelo critério da necessidade-possibilidade, previsto no art. 400 do CC, compatibilizando meios que assegurem, na medida do possível, tanto as necessidades do alimentante quanto as do alimentado. Isso nada mais é que a busca, pela observância do princípio da proporcionalidade, da justa medida ou da relação adequada entre o meio ‘mais idôneo’ e o fim desejado, gerando a menor ‘restrição possível’ ao bem jurídico cujo conteúdo sofre limitação.”25
Não se desconhece que os motivos que levaram o legislador a prever tal exceção
derivam da própria natureza da dívida alimentar. Tratando-se de meio de
sobrevivência do alimentado, seria absurdo vê-lo minguar até a morte ou passar 23 Assim se manifestou Luiz Carlos de Azevedo, Da penhora, ob. cit., p. 146, ao comentar a legislação estrangeira: “São critérios que mais se ajustam à realidade, permitindo não se vejam frustradas as execuções: se o salário mínimo deve ficar integralmente resguardado, o mesmo não se diga a respeito de salários dos grandes executivos das empresas, muitas vezes estabelecidos com base em moeda estrangeira, sequer na nacional; ademais, se aqueles são alcançados em percentagens extremamente significativas pelo fisco, não se compreende não possam ser submetidos, embora em parte, à constrição judicial, em execução movida por particular”. 24 Também no direito italiano, onde em regra os salários são impenhoráveis, há previsão de penhora de vencimentos para pagamento de dívida alimentar, conforme nos informa Marco Tullio Zanzucchi, Diritto processuale civile, ob. cit., p. 43. 25 Cf. Tutela do patrimônio mínimo necessário à manutenção da dignidade do devedor e da sua família, ob. cit., p. 273. No mesmo sentido Araken de Assis, Processo de execução, p. 390.
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por sérias privações para preservar a sobrevivência do alimentante. Colocando-se
de lado tal peculiar característica da dívida alimentar, tal situação demonstra de
forma evidente que a penhora de parte dos salários e vencimentos não
impossibilita ao executado que se mantenha vivo, com uma maior carga de
esforço e limitações, é verdade, mas vivo e com o mínimo de dignidade. Ou seja,
apesar de naturais privações, o executado mantém o mínimo para sobreviver com
dignidade.
Essa exceção à regra é a prova maior de ser absolutamente possível a penhora
de parte dos ganhos advindos do trabalho ou de aposentadoria, o que apesar de
gerar algum esforço maior à manutenção do executado e conseqüentemente levá-
lo a algumas privações, não o impossibilita a continuar a viver com dignidade. Ora,
se a norma existe para preservar a dignidade humana do executado, e comprova-
se claramente que tal valor é preservado com a manutenção de parte de seus
vencimentos, e não necessariamente a totalidade, é inadmissível permitir-se tal
penhora tão-somente nos casos de dívidas de natureza alimentar.
Nada disso, entretanto, sensibilizou o Presidente da República e impediu o
absurdo veto a modificação legislativa. Diante da triste manutenção da
impenhorabilidade absoluta, continua-se a recorrer a melhor doutrina na tentativa
interpretativa na limitação da proteção legal.
Para Celso Neves, os valores obtidos a título de salário e vencimentos são
impenhoráveis somente nos limites do eventual comprometimento da receita
mensal necessária à subsistência do executado e de sua família. Uma vez
recebidos valores e sendo os mesmos incorporados ao patrimônio do executado,
podem ser livremente penhoráveis.26
26 Comentários ao Código de Processo Civil, ob. cit., p. 17: “Não diz o texto que o dinheiro resultante de vencimentos, soldos e salários seja impenhorável. Antes, assenta a impenhorabilidade dessas contraprestações de serviços no sentido inequívoco de não subordiná-
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Cândido Rangel Dinamarco tem preocupação semelhante, afirmando, porém, que
o juiz deve nortear-se pela razoabilidade na penhora de tais valores, não devendo
fazê-lo quando estes não sejam de grande monta, e sim suficientes e necessários
para manutenção do executado e de sua família por algum período de tempo. Não
basta, portanto, que tais valores tenham sido aplicados ou não gastos pelo
devedor no mês do recebimento, devendo-se levar em consideração a efetiva
quantia economizada pelo devedor.27
Para Leonardo Greco somente seriam impenhoráveis os valores ganhos em um
mês de trabalho e efetivamente gastos nesse mesmo período. Qualquer valor
obtido em razão do trabalho ou aposentadoria que não sejam integralmente
utilizados pelo executado em sua subsistência e na manutenção de sua família
perderia automaticamente sua natureza alimentar. Sem necessidade daqueles
valores para sua manutenção digna – tanto não foram necessários que nem ao
menos foram utilizados pelo devedor –, a penhora deve ser permitida. 28
las, antecipadamente, à execução. Depois de percebidas, passam a integrar o patrimônio ativo de quem as recebe e se aí forem encontradas, como dinheiro ou convertidas em outros bens, são penhoráveis”. No mesmo sentido José da Silva Pacheco, Tratado das execuções, ob. cit., p. 464: “A impenhorabilidade não abrange o produto indireto do trabalho. Assim, se o salário, o vencimento já recebido é depositado em banco, ou investido em outra atividade empresarial ou financeira, nada há que impeça a penhora” e Ernane Fidélis dos Santos, Curso de processo civil, São Paulo, Saraiva, 1987, vol. 3, p. 143-144: “Assim, a impenhorabilidade só se verifica quando vencimento, soldo ou salário estiverem ainda sem poder da fonte pagadora. Muito comum é o pagamento de salários, soldos e vencimentos por via bancária. A partir do depósito, a importância perde tal característica, transformando-se em simples numerário, e, em conseqüência, penhorável”. 27 Instituições de direito processual civil, ob. cit., item 1.548: “São de alguma freqüência as dúvidas sobre a penhorabilidade de aplicações ou depósitos bancários oriundos de vencimentos, soldos ou salários, as quais devem ser resolvidas segundo um critério de razoabilidade e levando em conta os fundamentos que levam a lei a estabelecer impenhorabilidades. Enquanto esses valores forem de monta apenas suficiente para prover ao sustento durante um tempo razoável, eles são impenhoráveis porque privar deles o trabalhador seria privá-lo do próprio sustento; mas quando os valores se avultam a ponto de se converterem em verdadeiro patrimônio, é natural que se submetam à penhora e execução, tanto quanto o patrimônio mobiliário ou imobiliário adquirido com o fruto do trabalho (cada caso comportará um exame segundo as circunstâncias e as necessidades do devedor e sua família)”. Com pensamento semelhante Araken de Assis, Processo de execução, ob. cit., p. 390. 28 Processo de execução, ob. cit., p. 21: “Tal como a lei estabelece o limite de um mês para os alimentos e combustíveis (inciso II), aqui também esse limite se impõe. Até a percepção da remuneração do mês seguinte, toda a remuneração mensal é impenhorável e pode ser consumida pelo devedor, para manter padrão de vida compatível com o produto de seu trabalho. Mas a parte
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São, naturalmente, bem vindas tais interpretações que visam limitar a
desmesurada proteção do executado. Nada disso, entretanto, afasta o absurdo do
veto presidencial, que em nada colabora para o aperfeiçoamento da qualidade da
prestação jurisdicional executiva.
5. Impenhorabilidade do bem de família, independentemente do
valor do imóvel
Apesar de louvável a preocupação do legislador pátrio com a preservação da
moradia do jurisdicionado devedor, é inegável que a redação atribuída ao art. 1.º
da Lei 8.009 não favorece à primeira vista uma interpretação restritiva no que
tange ao valor do bem imóvel que se sujeita à proteção legal. Não fez a lei
qualquer distinção entre imóveis de elevado ou baixo valor, entre a mansão e o
casebre, entre o palacete e o barraco. O tratamento único dispensado a situações
tão diferentes é totalmente inadequado, fonte de evidentes injustiças.
Alguns doutrinadores, inclusive, chegaram até mesmo a entender que tal norma
seria inconstitucional, justamente pelo indevido tratamento idêntico dispensado a
situações tão díspares. Defensor da inconstitucionalidade formal da Medida
Provisória 143/1990, e por conseqüência também da Lei 8.009, Ênio Moraes da
Silva corretamente afirma que a ausência de maiores critérios quanto ao valor do
bem “coloca na ‘vala-comum’ milionários e falidos, ricos e pobres. Um proprietário
de modesto imóvel terá a mesma proteção que aquele que tenha mansão cujo
valor é equivalente ao de vários imóveis pequenos ou médios”.29
da remuneração que não for utilizada em cada mês, por exceder as necessidades de sustento suas e de sua família, será penhorável como qualquer outro bem de seu patrimônio”. 29 Cf. Considerações críticas sobre o novo bem de família, Curitiba, Juruá, 1993, p. 30. No mesmo sentido Carlos Callage, Inconstitucionalidade da Lei 8.009 de 29 de março de 1990, RT 662/59, 1990, que elenca quatro aspectos que gerariam a inconstitucionalidade da norma: “O quarto aspecto diz respeito à total ausência de um critério de distinção quanto ao valor do imóvel. Ao contrário do que aparenta ser, a lei não protege apenas os economicamente débeis. Basta que
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A redação do dispositivo legal comentado de fato proporciona injustificáveis
privilégios a certos executados, bastando para tanto se imaginar a situação em
que todas as economias que poderiam fazer frente à cobrança sejam “investidas”
na compra de um único e grandioso imóvel. O exeqüente somente poderá passar
de carro – e algumas vezes até mesmo a pé – pela frente da residência do
executado e imaginar como é confortável a vida daquele que lhe deve. Piscina,
churrasqueira, quadra poliesportiva, forno para pizza e sauna; tudo à disposição
do executado e inalcançável para o exeqüente.
A injustiça contida na generalidade da norma é manifesta, já que afasta a proteção
legal de seu verdadeiro intuito, qual seja a preservação da dignidade humana, por
meio da manutenção de uma moradia digna. Digna significa apta a cumprir com as
funções mínimas de uma residência, e não a manutenção de um estilo de vida
mantida pelo executado antes de contrair dívidas. Ainda que piore sensivelmente
de situação com a substituição de tal imóvel por outro mais simples e
conseqüentemente de menor valor, mantidas estarão as condições necessárias
para a preservação de sua dignidade e de sua família.
Como bem apontado pela maioria da doutrina, o bem de família brasileiro encontra
suas raízes na lei texana do Homestead, de 1839. No Brasil, a preocupação foi
realçada na década de 90 em razão da eterna crise econômica por que passava
nosso país. O objetivo sempre foi bastante claro: a garantia de imóvel que sirva
como moradia ao executado e a sua família, nada mais do que isso. Lembre-se de
que a retirada de bem do rol dos penhoráveis é exceção à regra, devendo,
portanto, ser interpretada de forma restritiva.
Preservar uma moradia, evitando assim a inevitável eclosão do núcleo familiar –
ainda que na família de só um indivíduo – não pode significar a preservação de seja residencial familiar para que esteja o imóvel imune a penhoras, não importando seu valor, localização ou metragem”.
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nítidas situações de injustiça e descompasso entre o valor protegido pela restrição
e o direito do exeqüente à entrega da tutela jurisdicional. Não há como discordar
de Cândido Rangel Dinamarco, quando afirma que “
não se legitima, p. ex., livrar da execução um bem qualificado como impenhorável mas economicamente tão valioso que deixar de utilizá-lo in executivis seria um inconstitucional privilégio concedido ao devedor. Pense-se na hipótese de um devedor milionário mas sem dinheiro visível ou qualquer outro bem declarado, e que viva em luxuosa mansão; esse é o seu bem de família, em tese impenhorável por força da lei, mas que, em casos como esse, não se justificaria ficar preservado por inteiro”.30
Era justamente nesse sentido a segunda modificação vetada indevidamente pelo
Presidente da República, tornando impenhorável o imóvel até o valor de 1.000
salários mínimos, o que atualmente representaria uma morada de R$ 350.000,00!
Acima desse valor o bem seria penhorável, o que significa que em casos nos
quais o valor da morada superasse esse teto, seria objeto de expropriação –
adjudicação; alienação por iniciativa particular; hasta pública – sendo o valor de
1.000 salários mínimos entregue ao executado com cláusula de
impenhorabilidade. Como esse considerável valor poderia adquirir um imóvel mais
modesto, o que certamente não afetaria sua dignidade humana31.
Novamente o que mais surpreende no veto presidencial é sua justificativa:
“Na mesma linha, o Projeto de Lei quebrou o dogma da impenhorabilidade absoluta do bem de família, ao permitir que seja alienado o de valor superior a mil salários mínimos, ‘caso em que, apurado o valor em dinheiro, a quantia até aquele limite será entregue ao executado, sob cláusula de impenhorabilidade’. Apesar de razoável, a proposta quebra a tradição surgida com a Lei no 8.009, de 1990, que ‘dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família’, no sentido da impenhorabilidade do bem de família independentemente do valor. Novamente, avaliou-se que o vulto da controvérsia em torno da matéria torna conveniente a reabertura do debate a respeito mediante o veto ao dispositivo”
30 Cf. Instituições de direito processual civil, ob. cit., item 1.541. 31 A mesma idéia de Cândido Rangel Dinamarco, Instituições de direito processual civil, ob. cit., item 1.541: “Solução razoável: penhorar o bem, levá-lo à arrematação e reservar parte do dinheiro obtido para a compra de uma habitação razoável para esse devedor ‘pobre’”. Segundo nos informa Álvaro Villaça Azevedo, Bem de família, ob. cit., p. 80, após análise de inúmeros ordenamentos estrangeiros, é essa a regra na grande maioria deles: “Assim, a idéia de proteção vincula-se ao fato de a família reservar, para sua segurança, um imóvel limitado na sua extensão e no seu valor (...)”.
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Bem ao estilo do atual governo, que tal formar uma comissão para estudar o tema,
prática recorrente para “empurrar com a barriga” o problema?
Registre-se que o art. 553.2 do CPC da Província de Quebec dispõe:
“É também impenhorável um imóvel que sirva de residência principal ao devedor, quando o crédito for inferior a 10.000 dólares canadenses, salvo nos casos seguintes: 1. tratando-se de crédito garantido por um privilégio ou uma hipoteca legal ou convencional sobre tal imóvel, excluída a hipoteca legal que garanta crédito resultante de sentença; 2. tratando-se de crédito alimentar; 3. achando-se o imóvel já penhorado. Para os fins do presente artigo, o montante do crédito é aquele do julgamento em virtude do qual o imóvel poderia ser penhorado, incluídos os juros até a data da sentença, mas não as despesas”.32
Ainda que o veto presidencial não deixe qualquer margem para dúvidas
interpretativas, continuo a expor idéia já anteriormente defendida, mesmo sabendo
das dificuldades de sua aplicação prática. Situações em que nada deve ser
garantido ao executado, passando a ser totalmente penhorável seu bem, o que,
naturalmente, demanda modificação legislativa, o que dificilmente ocorrerá. De
qualquer forma, fica a idéia como sugestão, ou ao menos como embrião de
discussão do tema.
A situação imaginada exporá novamente o inevitável conflito de direitos
fundamentais dos sujeitos envolvidos no processo executivo. De um lado o
executado, que além de ter a seu lado a proteção do art. 620 (a execução deve
seguir a forma menos onerosa), não pode ser afrontado em sua dignidade
humana (regra dos bens impenhoráveis). De outro o exeqüente, crédulo na
promessa que lhe foi feita pelo Estado de que o Poder Judiciário lhe entregaria
uma tutela jurisdicional de qualidade, o que para ele significa o bem material da
vida perseguido, ou seja, satisfação efetiva.33
32 Cf. José Raimundo Gomes da Cruz, Revista de Processo nº98, p.115. 33 Tal conflito foi assim descrito por Luiz Rodrigues Wambier, Curso avançado de processo civil, 4. ed., São Paulo, RT, 2001, vol. 2, p. 134: “O órgão jurisdicional poderá deparar com situações de
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Na solução de tal conflito a doutrina vem entendendo que se deve aplicar o
princípio – ou regra – da proporcionalidade, buscando-se uma execução efetiva,
mas sem abusos demasiados na esfera pessoal do executado. A doutrina vem
classificando tal regra como forma de solução de conflito de dois princípios ou
garantias, sacrificando-se um deles nos limites do estritamente necessário.34 Tudo
dependeria da análise do caso concreto, para então se optar por um dos caminhos
possíveis.
Como já dito, é sabido que a proteção do bem de família deriva historicamente do
Homestead norte-americano, mais precisamente de uma lei do Estado do Texas
de 1839. Tal proteção surgiu após uma fase de desenvolvimento sem freios, na
qual a especulação era praticada por todos e sobre tudo. O sonho dourado do
lucro fácil fez com que houvesse abuso de empréstimos de elevadíssimos valores,
o que veio a gerar grave crise financeira nos anos de 1837 a 1839. A Lei do
Homestead surgiu justamente nesse período de crise econômica aguda para
salvaguardar uma morada ao devedor.35
A idéia sempre esteve estreitamente relacionada a pobres devedores, que nada
tinham além de sua própria residência, sendo demandados pelos donos do capital,
invariavelmente instituições financeiras ou mesmo grandes fornecedores, que de
posse de grande e inegável poderio econômico faziam todos reféns de sua
vontade e de sua insaciável sede por lucros. Daí a justificativa histórica social da
proteção do bem de família – e na verdade de todos os outros bens impenhoráveis
conflitos de valores: de um lado, a preocupação em não se imporem sacrifícios excessivos ao devedor; de outro, a exigência de que se satisfaça de maneira rápida e completa o direito do credor”. 34 Marcelo Lima Guerra, Os direitos fundamentais e o credor na execução, São Paulo, RT, 2003, p. 81-99, faz interessante análise da regra da proporcionalidade aplicada ao processo de execução, baseando-se principalmente nas lições de Robert Alexy. No direito nacional ver com proveito Paulo Bonavides, Curso de direito constitucional, 10. ed., São Paulo, Malheiros, 2000, p. 356-376. 35 Álvaro Villaça Azevedo, Bem de família, ob. cit., p. 24-28.
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analisados no presente estudo –, protegendo-se o hipossuficiente pobre contra o
poderoso rico. Essa motivação acompanha o instituto até os dias atuais.36
Foi certamente dentro dessa visão que Eduardo Cambi, após fazer considerações
sobre um capitalismo selvagem, que considera as pessoas como mercadorias,
esquecendo-se de sua qualidade de seres humanos, assevera que a teoria do
patrimônio mínimo
“opera dentro de uma perspectiva humanista, norteada pelos princípios constitucionais da igualdade em sentido substancial e da dignidade da pessoa humana, o que representa uma reação à proposta capitalista neoliberal de assegurar a acumulação desmedida de capitais, reduzindo o papel do Direito à simples mediação das relações comerciais e dos sujeitos a meros consumidores”.37
Ocorre, entretanto, que nem sempre a situação verificada na ação de execução
demonstra tal batalha entre o “bem e o mal”, já que em diversas oportunidades o
credor não é grande fornecedor, tampouco rico ou acumulador de capitais. Por
vezes o exeqüente também passa por dificuldades, vive com sacrifícios, que
certamente se intensificarão se não for satisfeito o crédito que tem com o
executado. Em alguns casos, a situação econômica do exeqüente é tão crítica
quanto a do executado, e em outros, ainda pior.
Não se duvida que a preservação da dignidade humana do executado em casos
onde se encontra demandado no processo executivo por sujeito detentor do
capital, grande fornecedor, é medida que se impõe, até mesmo como intervenção
36 Nesse sentido Antonio de Pádua Ferraz Nogueira, Fundamentos sociojurídicos do bem de família, Lex – Jurisprudência dos Tribunais de Alçada Civil de São Paulo 141/10, 1993: “Objetivou, desse modo, ao declarar a sua impenhorabilidade, preservá-la de transtornos econômicos ou financeiros, impedindo a extensão da miséria à classe média em decadência, protegendo os integrantes da família, inclusive das penhoras vexatórias dos bens que a guarneçam, até porque o estado de inadimplência, a que quase sempre são levados os seus chefes, decorre do induzimento da reinante propaganda consumista, ou do insucesso em negócios mirabolantes, os quais, muitas vezes, o próprio governo chega a incentivar”. 37 Cf. Tutela do patrimônio mínimo necessário a manutenção da dignidade do devedor e da sua família, ob. cit., p. 274.
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estatal na preservação de certa garantia mínima do hipossuficiente. É de fato no
mínimo antipático defender a idéia de penhorabilidade absoluta do bem de família,
qualquer que seja o credor. Ocorre, entretanto, que tal disparidade de condição
econômica entre as partes nem sempre se verifica no caso concreto.
Sendo o bem de família instituto que visa a garantia mínima de preservação da
dignidade humana do executado, mantendo-o com no mínimo uma moradia para
seguir adiante com sua vida, a mesma preocupação deve ser também estendida
ao exeqüente, que também tem dignidade humana, aliás, na mesma medida
daquela que se procurou preservar para o devedor. É claro que um exeqüente
rico, cuja não satisfação do crédito representará tão-somente um desfalque
patrimonial, não estará sofrendo qualquer restrição à sua dignidade humana. Mas
e o exeqüente que se não receber o valor da dívida contraída passará por
evidentes privações e sacrifícios, por vezes até mesmo sendo levado a mais
absoluta miserabilidade?
Entendo que nesse caso não se pode afastar a preocupação constitucional de
garantir a todos o mínimo de dignidade humana, sem se esquecer, é lógico, da
pessoa do exeqüente. Seria aplicar o melhor direito deixar que um exeqüente
morra de fome, juntamente com sua família, enquanto o executado mantém-se
confortavelmente instalado em sua residência, pois a mesma constitui-se bem de
família? Não me parece que a aplicação da regra da proporcionalidade nos leve a
tal conclusão.
Afasta-se da confortável situação em que o rico pretende ficar ainda mais rico
tornando o pobre miserável, numa situação em que a justificativa da proteção se
mostra de forma inequívoca. Agora se está enfrentando situação em que o
sacrifício será inevitável, considerando-se que se o exeqüente não receber o que
lhe é devido passará por inevitáveis privações, em afronta inclusive à sua
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dignidade pessoal.38 Imagine-se um exeqüente, sem imóvel em seu nome,
morando de favor na casa de familiares ou amigos, sem qualquer fonte de renda
expressiva, diante de um executado, que, não tendo nenhum outro bem a garantir
sua dívida, opõe a alegação de bem de família para seu único patrimônio – o
imóvel que serve de morada para ele e sua família.
Estando diante de uma situação de inevitável sacrifício à dignidade de uma das
partes, não nos resta qualquer dúvida que o sacrificado deva ser o executado, já
que esse se encontra em posição desprivilegiada na relação de direito material.
Se a dignidade humana de uma das partes vai ser agredida, que seja então
daquele que deve, que, afinal, contraiu a dívida e deve nesse caso honrar seu
compromisso, inclusive com a perda do bem de família.
Tenho plena consciência de que tal entendimento é inaplicável diante da atual
disposição do bem de família em nosso direito, mas lanço a proposta para debate,
até mesmo como sugestão de lege ferenda. Poder-se-ia até mesmo se pensar em
aspectos objetivos para que o bem de família do devedor pudesse ser penhorado
e futuramente expropriado: o credor no caso concreto deveria comprovar não ter
imóvel em seu nome e estar em estado de necessidade (utilizando termo
empregado no art. 588, § 2.º, do CPC como um dos requisitos para dispensar a
caução na execução provisória). Como já apontado, apenas sugestões para um
maior e mais profundo debate.
38 Marcelo Lima Guerra, Direitos fundamentais e a proteção do credor na execução civil, ob. cit., p. 168, já havia pensado algo nesse sentido, apesar de se referir aos bens móveis que guarnecem o imóvel: “Ademais, tais limites deverão ser determinados levando-se em consideração a situação do próprio credor, e não apenas do devedor. Assim, hão de ser diferentes os limites, tratando-se o credor de uma instituição financeira ou de uma pessoa física de modestas posses. Isso, aliás, nada mais é do que um reflexo de que, na determinação dos limites entre ‘penhorável’e ‘impenhorável’, não se está diante de mera aplicação de regra, mas da ponderação entre dois princípios (mandados de otimização) em conflito”.
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6. Conclusões
Em resumo, absolutamente lamentável o veto presidencial ao art. 649, § 3° e 650,
parágrafo único, ambos do CPC.