a coragem em andré comte-sponville e paul tillich

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Revista Eletrônica Correlatio nº 15 - Junho de 2009 “Coragem, coragem, se o que você quer é aquilo que pensa e faz Coragem, coragem, que eu sei que você pode mais” Raul Seixas RESUMO Este artigo analisa o conceito da palavra “coragem” nas filosofias de André Comte-Sponville e de Paul Tillich, e a implicação em seus pensa- mentos. Apesar das diferentes interpretações, cada uma importante a seu modo, os dois filósofos dizem que precisamos mergulhar nosso ser na solidão e no vazio para descobrirmos quem somos – e para isso eles afirmam que precisamos primeiro de coragem. Para André Comte- Sponville, coragem é o ato que leva a pessoa ao aspecto moral da vida; para Paul Tillich, coragem está além de qualquer ato moral porque está enraizada na totalidade da existência humana e na estrutura do ser em si, que está fundamentada na alma. Sem o intuito de desmerecer os estudos e pontos de vista de André Comte-Sponville ou de Paul Tillich, este ar- tigo apresenta as semelhanças e diferenças sobre coragem entre os auto- res no contexto da pós-modernidade. Palavras-chave: coragem, ser, pós-modernidade, Paul Tillich, André Comte-Sponville. A coragem em André Comte-Sponville e Paul Tillich 1 Vitor Chaves de Souza 2 1 Comunicação no 15° Seminário em Diálogo com o pensamento de Paul Tillich: Paul Tillich e a pós-modernidade: possibilidades e limitações. 2 Mestrando em Ciências da Religião. E.mail: [email protected].

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Artigo de Vitor Chaves de Souza.

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  • Revista Eletrnica Correlatio n 15 - Junho de 2009

    Vitor Chaves de Souza92

    Coragem, coragem, se o que voc quer aquilo que pensa e fazCoragem, coragem, que eu sei que voc pode mais

    Raul Seixas

    RESUMOEste artigo analisa o conceito da palavra coragem nas filosofias deAndr Comte-Sponville e de Paul Tillich, e a implicao em seus pensa-mentos. Apesar das diferentes interpretaes, cada uma importante a seumodo, os dois filsofos dizem que precisamos mergulhar nosso ser nasolido e no vazio para descobrirmos quem somos e para isso elesafirmam que precisamos primeiro de coragem. Para Andr Comte-Sponville, coragem o ato que leva a pessoa ao aspecto moral da vida;para Paul Tillich, coragem est alm de qualquer ato moral porque estenraizada na totalidade da existncia humana e na estrutura do ser em si,que est fundamentada na alma. Sem o intuito de desmerecer os estudose pontos de vista de Andr Comte-Sponville ou de Paul Tillich, este ar-tigo apresenta as semelhanas e diferenas sobre coragem entre os auto-res no contexto da ps-modernidade.Palavras-chave: coragem, ser, ps-modernidade, Paul Tillich, AndrComte-Sponville.

    A coragem emAndr Comte-Sponville

    e Paul Tillich1

    Vitor Chaves de Souza2

    1 Comunicao no 15 Seminrio em Dilogo com o pensamento de Paul Tillich:Paul Tillich e a ps-modernidade: possibilidades e limitaes.

    2 Mestrando em Cincias da Religio. E.mail: [email protected].

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    Courage in Andr Comte-Sponville and Paul Tillich

    ABSTRACTThe present article analyses the concept of the word courage in thephilosophy of Andr Comte-Sponville and Paul Tillich, and its implicationon their thoughts. Despite the different interpretations, important in theirseveral ways, both philosophers says that we must dissolve our being intonothingness in order to know who we are and for that both agree we needcourage in the first place. For Andr Comte-Sponville, courage is the actthat leads someone to the moral aspect of life; for Paul Tillich, courage isbeyond any moral act because it is rooted in the whole breadth of humanexistence and ultimately in the structure of being itself, which is instilledin the soul. Far be it from us to think of belittling the admirable studies andviewpoints from Andr Comte-Sponville or Paul Tillich, this article showsthe similarities and differences about courage between the authors in thecontext of postmodernism.Keywords: courage, being, postmodernism, Paul Tillich, Andr Comte-Sponville.

    Introduo

    O filsofo Andr Comte-Sponville3 tratou do tema da coragem numcaptulo de seu livro O pequeno tratado das grandes virtudes4. PaulTillich5, referncia base para os estudos do grupo de pesquisa que levaseu nome na ps-graduao da Universidade Metodista de So Paulo,tambm tratou deste tema, com exclusividade, na obra A coragem de ser6.A pesquisa sobre a coragem em Andr Comte-Sponville e Paul Tillich

    3 Andr Comte-Sponville nasceu em Paris, Frana, em 1952. professor de filo-sofia. Considera sua filosofia materialista, racionalista e humanista. Prope umametafsica materialista e uma espiritualidade sem Deus. Possui diversos livrospublicados sobre filosofia e religio.

    4 COMTE-SPONVILLE, Andr. Pequeno tratado das grandes virtudes. So Pau-lo: WMF Martins Fontes, 2004, 392p.

    5 Paull Tillich (1886-1965), filsofo e telogo e talvez o mais notvel telogodo sculo XX , foi professor de teologia na Alemanha e Estados Unidos elivros de teologia, filosofia e cultura.

    6 TILLICH, Paul. A coragem de ser. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, 146p.

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    prxima. A abordagem do primeiro essencialmente filosfica, e a dosegundo um estudo exigente e competente no mbito da filosofia, psi-cologia e teologia. Enquanto Andr Comte-Sponville analisa a coragemcomo virtude, moral e verdade, Paul Tillich analisa questes psicolgicas(ansiedade, medo, culpa e desespero), filosficas (existencialismo, auto-afirmao, no-ser e o aspecto ontolgico relativo coragem de ser) eteolgicas (experincia mstica e f que ajudam a ser). Os autores emquesto possuem similaridades e divergncias: nas similaridades,complementam-se; nas divergncias, enriquecem-se. O presente textoprope refletir, no contexto da ps-modernidade, pontos capitais da ques-to da coragem entre os dois filsofos.

    Ps-modernidade e coragem

    A ps-modernidade, o niilismo, a vida sem sentido, o tempo dodesespero7, a morte de Deus, o perecimento das Igrejas, o fim das ide-ologias; tudo isto permeia e ameaa o ser humano (e a religio atual). Aterra tinha sido expulsa do centro do mundo8: com Coprnico, o homemdeixou de estar no centro do Universo; com Darwin, o homem deixou deser o centro do reino animal; com Marx, o homem deixou de ser o centroda histria e, com Freud, o homem deixou de ser o centro de si mesmo,notou Eduardo Prado Coelho. Andr Comte-Sponville inicia seu livro Otratado do desespero e da beatitude9 com estas temticas da situaohumana atual. O homem do sculo XX perdeu um mundo significantee um eu10, nota Paul Tillich, que no viveu a ps-modernidade, mas deuma certa forma a previu pela perda de Deus do sculo XIX11, comFeuerbach e Nietzsche, e, sobretudo, pelo existencialismo (que o pro-blema e a resposta atual). O ser humano na ps-modernidade perdeu seumundo (desespero), suas referncias de ser (insignificao) e todas asgarantias dos esquemas explicativos (como a cincia e a religio). S

    7 COMTE-SPONVILLE, Andr, Tratado do desespero e da beatitude, 2006, p. 7.8 TILLICH, Paul. A coragem de ser, 1976, p. 82.9 COMTE-SPONVILLE, Andr. Tratado do desespero e da beatitude. So Pau-

    lo: WMF Martins Fontes, 2006, 370p.10 TILLICH, Paul. A coragem de ser, 1976, p. 109.11 Ibid, p. 111.

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    lhe restam a ansiedade, a insignificao, o medo e o desespero diante dascoisas da vida, como nota Andr Comte-Sponville. Este o cenrio parareflexo da ps-modernidade.

    A ansiedade que determina nosso perodo, diz Paul Tillich, aansiedade da dvida e insignificao12: perdeu-se a significao daprpria existncia. Na perda do significado da existncia, o ser humano,frente ao seu vazio interior, busca sentido para a vida. Mas, motivadaspelo desespero, e no pela coragem, as atitudes podem ser traidorascom o prprio ser. A sociedade aproveita da falta de sentido na vidapara associar a idia de existncia com a de consumo: consumir dsentido vida e nos faz cidados da ps-modernidade13 e no so-mente o consumo material, mas tambm o ideolgico. Consumir produ-tos e ideologias, consumir o outro como objeto de prazer em relaciona-mentos desairosos, no obstante a ansiedade e o medo, fuga mentale existencial. Nesta fuga negamos o prprio ser procura de sentidosque evitem a solido: vestimos a realidade de sentidos para podersuport-la14. necessrio, pois, olhar para estes problemas e dar oprimeiro passo: mergulhar no vazio do ser, na insignificao e na an-gstia; na noite da alma. Para mergulhar dentro de ns, temos de aceitarquem somos. Aceitar o primeiro passo, como indica Paul Tillich,aceitar-se como sendo aceito, a despeito de ser inaceitvel15. Angstiae desespero, preciso iniciar pela solido16. Solido o lugar parapurificar-se17, j dizia Martin Buber. E preciso tempo para chegarnesta solido, e muita coragem18. A coragem o passo decisivo do serhumano para ser. Devemos comear pela ps-modernidade, pois nopodemos escapar dela. Devemos comear dentro de ns, pois no po-demos escapar de ns mesmos. Devemos comear pela coragem, pois

    12 TILLICH, Paul. A coragem de ser, 1976, p. 135.13

    CANCLINI, Nestor Garcia. Consumidores e cidados. Rio de Janeiro: UFRJ,1999, 290p., p. 83.

    14 Andr Comte-Sponville, Viver, 2000, p. 189.

    15 TILLICH, Paul. A coragem de ser, 1976, p. 128.

    16 COMTE-SPONVILLE, Andr, Tratado do desespero e da beatitude, 2006, p. 14.

    17 BUBER, Martin. Eu e Tu. 2001, p. 120.

    18 COMTE-SPONVILLE, Andr, Tratado do desespero e da beatitude, 2006, p. 13.

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    sem ela no podemos ser. Esta a abordagem bsica e comum deAndr Comte-Sponville e Paul Tillich para a reflexo sobre a coragem.

    Andr, o desesperado

    O passo inicial dado: um domnio de si e do medo condiosine qua non de toda moralidade e ser. Precisamos de coragem paraviver e para morrer, suportar e enfrentar, resistir e perseverar. Coragemno a ausncia do medo, a capacidade de enfrent-lo, de domin-lo,de super-lo19. Na nobre atitude de enfrentar as ansiedades e medoscultivados na ps-modernidade, a coragem tem a ver com a moral e oser da pessoa mais com a primeira (a moral) do que o segundo (o ser),para Andr Comte-Sponville. Janklvitch disse que a coragem no um saber, mas uma deciso, no uma opinio, mas um ato20. Nobasta saber o que bom ou ruim, o que verdadeiro ou falso, o que sedeve ou no fazer; precisa-se da vontade de ser, determinada, necessriadiante do perigo ou do sofrimento. Aqui, Andr Comte-Sponville adi-anta e introduz o que veremos em Paul Tillich. Esta coragem que tema ver com o ser da pessoa ontolgica. Andr Comte-Sponville, apesarde indic-la, no a aprofunda, pois opta por outro caminho: consideraa coragem como uma virtude estritamente moral e tica. Coragem aquilo sem o que, sem dvida, qualquer moral seria impossvel ou semefeito21, diz ele. As virtudes so nossos valores morais, e a coragem,sendo uma virtude, mais um valor moral. Para Andr Comte-Sponville, coragem a condio de qualquer virtude, uma virtude ea condio de todas toda virtude coragem.

    No entanto, eis o problema da reflexo da coragem somente nocampo da virtude e da coragem de ser como si prprio: se a coragemserve tanto para o bem como para o mal, como pode ela ser umavitude? O que esta virtude que pode servir para o mal?22, pergunta

    19 COMTE-SPONVILLE, Andr. Pequeno tratado das grandes virtudes, 2004, p. 58.20 Ibid., p. 59.21 COMTE-SPONVILLE, Andr. Pequeno tratado das grandes virtudes, 2004, p. 55.22 Ibid., p. 52.

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    Andr Comte-Sponville. O filsofo sugere uma sada para este proble-ma: a coragem, enquanto nome de uma virtude entre outras, torna-seestatuto moral, por isso ela no deve servir para o mal; ento, a cora-gem est alm da disposio de se fazer o bem, mas o prprio bem,em esprito e verdade23, o esforo para se portar bem. Este problemada coragem servir tanto ao bem como ao mal no acontece, para PaulTillich, quando a coragem associada ao ser-em-si. A coragem, enquan-to participao na auto-afirmao do ser no ser-em-si, em sua dimensoontolgica, no uma virtude24, como observou Voltaire, mas umaqualidade comum aos grandes homens, ou seja, o ato do eu indivi-dual em tomar a ansiedade do no-ser sobre si, afirmando-se, ou comoparte do todo global, ou em sua condio do eu individual25. A cora-gem desconectada do ser-em-si precisa de um gancho e este, paraAndr Comte-Sponville, a virtude: quando a servio de outrem ou deuma causa geral e generosa, a coragem, como virtude, supe sempreuma forma de desinteresse, de altrusmo ou de generosidade26, supeum bem primeiro, uma fora da alma27 para o bem. Poderiamos dizerque Andr Comte-Sponville pressupe um tipo de ontologia da coragem(sendo a priori um bem e um ato), mas ele prprio no aprofunda estetema: prefere a reflexo de que a coragem em sua gnese somente atotico e moral (para justificar sua virtude).

    A despeito de Andr Comte-Sponville definir sua filosofia comomaterialista e irreligiosa28, sua interpretao sobre a coragem aproxima-se consideravelmente da de Paul Tillich. Ambos vo ao vazio humano,insignificao do ser, ansiedade e desespero da alma para contextualizaro motivo da coragem. Este o ponto comum entre os dois filsofos emquesto, e coincidentemente o ponto de partida da filosofia deles. Noentanto, h uma diferena capital que veremos agora.

    23 Ibid., p. 9.24 Ibid., p. 52.25 TILLICH, Paul. A coragem de ser, 1976, p. 121.26 COMTE-SPONVILLE, Andr. Pequeno tratado das grandes virtudes, 2004, p. 57.27 Ibid., p. 57.28 COMTE-SPONVILLE, Andr. Viver. So Paulo: Martins Fontes, 2000, 371p., p. 8.

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    Paul, o corajoso

    Sobre a coragem, somos capazes, diz Andr Comte-Sponville.29Temos a capacidade natural do amor, da coragem, da inteligncia, dacompaixo e de tantas outras virtudes coragem uma entre tantasoutras virtudes. Podemos usar coragem como o nome de uma virtudeentre outras30, diz Paul Tillich, ou usar a coragem para reinterpretar af. Coragem como um ato humano, como matria de avaliao, umconceito tico. Coragem como auto-afirmao do ser de algum umconceito ontolgico31. Paul Tillich prope uma ontologia da cora-gem32. O contraste entre a concepo de coragem de Paul Tillich eAndr Comte-Sponville que para Tillich coragem no somente umavirtude tica. Ele no descarta a coragem na participao da tica, masvaloriza a coragem como auto-afirmao do ser de algum o conceitoontolgico. Aqui temos diferenas decisivas na interpretao da cora-gem. O ser humano precisa de coragem e no de mero otimismo, notaTillich, para ser em meio ansiedade de no-ser que ameaa o homemcomo um todo, isto , ameaa tanto sua auto-afirmao espiritual comoa ntica.33 A coragem de Andr Comte-Sponville, apesar do ponto departida comum de reflexo, limita-se dimenso tica e por limitar-se tica, no h afirmao nem mudana do ser, podendo a coragemservir para tudo, para o bem como para o mal, e no altera a naturezadeste ou daquele34, como bem observa o prprio Andr Comte-Sponville. Ser a ps-modernidade que impede Andr Comte-Sponvilledo salto existencial corajoso de Tillich? Andr Comte-Sponville temSpinoza como um dos referencias bsicos para sua filosofia, enquantoTillich critica a dualidade do conceito de coragem de Spinoza35: para

    29 COMTE-SPONVILLE, Andr. O esprito do atesmo: introduo a umaespiritualidade sem Deus. So Paulo: WMF Martins Fontes, 2007, 191p., p. 116.

    30 TILLICH, Paul. A coragem de ser, 1976, p. 7.31 Ibid., p. 3.32 Ibid., p. 28.33 Ibid., p. 36.34 COMTE-SPONVILLE, Andr, Pequeno tratado das grandes virtudes, 2004, p. 51.35

    TILLICH, Paul. A coragem de ser, 1976, p. 16.

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    este, a coragem no modificaria o ser todo da pessoa, seu estatutoontolgico; em Paul Tillich a coragem do ser o ato tico no qual ohomem afirma seu prprio ser a despeito daqueles elementos de suaexistncia que entram em conflito com sua auto-afirmao essencial36.

    Podemos sintetizar a coragem, para Tillich, em trs dimenses: acoragem de aceitar o mundo que nos cerca, a coragem da solido e acoragem de participar do poder criador que est em toda pessoa. Apartir do problema da ansiedade do destino e da morte, da ansiedade davacuidade e da insignificao, da ansiedade da culpa e da condenao,coragem auto-afirmao a despeito de, isto , a despeito daquiloque tende a impedir o eu de ser e se afirmar em sua existncia.37 Sexiste coragem se existir este aquilo que se impe auto-afirmaodo eu, e este aquilo o problema moderno de ser, tanto em partici-pao como em individualizao, buscando a transcendncia. O primei-ro passo, conforme mencionado, aceitar: a coragem de ser a cora-gem de aceitar-se como sendo aceito, a despeito de ser inaceitvel38,sem nada condenar e sem nada encobrir. Somente esta aceitao ca-paz de incorporar a ansiedade da culpa e condenao; e ao incorpor-la, somos corajosos para a solido, onde nos purificamos, para entopermitir a potncia criadora do ser-em-si em nosso ser. Aqui AndrComte-Sponville no chega. Para Tillich, a coragem est enraizada noser-em-si. A pessoa corajosa est apoderada pela potncia de ser quetranscende tudo que . Este estado de ser apoderado pela potncia doser-em-si a condio da f. F a base da coragem de ser39. Aceitara insignificao o primeito ato significativo; um ato de f, poisaceita-se a aceitao pela potncia do ser-em-si, da qual se participa eque d ao ser coragem de tomar sobre si as ansiedades do destino, daculpa e do desespero.

    A coragem participa da auto-afirmao do ser-em-si, participa dapotncia do ser que prevalece contra o no-ser40. Coragem, paraTillich, est longe de ser somente um ato ou uma virtude. A coragem

    36 Ibid., p. 3.

    37 Ibid., p. 23.

    38 Ibid., p. 129.

    39 TILLICH, Paul. A coragem de ser, 1976, p. 134.

    40 Ibid., p. 140.

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    como virtude, mediante uma espiritualidade sem Deus, cair na fdistorcida, como Paul Tillich nota em Dinmica da F41. Coragemenquanto ato tico somente, fecha-se em si mesma; enquanto manifes-tao do fundamento do ser, a coragem abre-se para a vida e no ali-menta o vazio da ps-modernidade. A manifestao do ser vai dependerde at onde a pessoa pode incorporar em si seus medos e ansiedades deinsignificao. As diversas formas de coragem, como a de AndrComte-Sponville, esto reafirmadas na dualidade da vida humana. Acoragem que est enraizada no Deus acima de Deus, transcendendo acoragem de ser como uma parte e a coragem de ser como si prprio,participa da potncia do ser-em-si e permite ao ser humano ser.

    Concluso

    Andr Comte-Sponville, apesar de indicar a prtica, fica na exa-cerbao da razo, como Spinoza42; e Tillich, apesar de ser extrema-mente racional, completamente prtico devido ao aspecto ontolgicoda coragem. Coragem, conforme nota Paul Tillich, uma realidadetica, mas se enraza em toda a extenso da existncia humana e ba-sicamente na estrutura do prprio ser43. Se lermos a coragem conformeAndr Comte-Sponville a leu, atravs da via da moral/tica, podemosno perceber o ser e ficar num ciclo de virtudes, valores e verdades e, como Scrates conclui, falhamos em descobrir o que coragem realmente44, porque o fracasso est em encontrar uma definio decoragem como uma virtude entre outras virtudes45. Mas, se lermos acoragem conforme Paul Tillich indica, como aquela que deve ser con-siderada ontologicamente a fim de ser entendia eticamente46, teremosa uma interessante chave de referncia para a reflexo da coragem.

    41 TILLICH, Paul. Dynamics of Faith, 1957, p. 38.42

    O homem livre, segundo Spinoza, aquele que vive conduzido unicamente pelarazo. COMTE-SPONVILLE, Andr. Pequeno tratado das grandes virtudes,2004, p. 323.

    43 TILLICH, Paul. A coragem de ser, 1976, p. 1.44 Scrates apud TILLICH, Paul. A coragem de ser, 1976, p. 2.45 TILLICH, Paul. A coragem de ser, 1976, p. 2.46 Ibid., p. 1.

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    O pensamento ps-moderno sobre a coragem est representado nafilosofia de Andr Comte-Sponville. Ps-modernidade quando o velhono mais, mas o novo ainda no ; quando algo deixou de ser, masoutro algo ainda no veio a ser, nota Vitor Westhelle. A coragem ps-moderna no mais a coragem dos filsofos clssicos e esticos, masainda no coragem dos ps-modernos. A vida ps-moderna perdeuseus fundamentos e significados. Dar sentido a algo sinal de ausncia:ausncia do ser. Aristteles disse que a forma mais elevada de coragem sem esperana47, pois necessrio ser corajoso, sobretudo, quandofalta esperana. Num mundo onde falta o ser, o sentido e a esperana,verdade silncio48 e opnio tagarelice. preciso abandonar osrefgios oferecidos pela sociedade e entrar dentro de si. Pois a verdadeest do lado do ser, e no do lado do discurso 49. Mas, para chegar aeste ser, precisa-se de coragem. Coragem de ser.

    RefernciaCANCLINI, Nestor Garcia. Consumidores e cidados. Rio de Janeiro: UFRJ,1999, 290p.

    CARVALHAES, Cludio. Uma Crtica das Teologias Ps-Modernas Teolo-gia Ontolgica de Paul Tillich. Revista Correlatio, nmero 3, 2003, SoBernardo do Campo.

    COMTE-SPONVILLE, Andr. Pequeno tratado das grandes virtudes. SoPaulo: WMF Martins Fontes, 2004, 392p.

    COMTE-SPONVILLE, Andr. O esprito do atesmo: introduo a umaespiritualidade sem Deus. So Paulo: WMF Martins Fontes, 2007, 191p.

    COMTE-SPONVILLE, Andr. Tratado do desespero e da beatitude. SoPaulo: WMF Martins Fontes, 2006, 370p.

    COMTE-SPONVILLE, Andr. Viver. So Paulo: Martins Fontes, 2000, 371p.

    TILLICH, Paul. A coragem de ser. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, 146p.

    TILLICH, Paul. Dynamics of Faith. New York: Harper, 1957, 147p.TILLICH, Paul. Teologia sistemtica. So Leopoldo: Sinodal, 2005, 868p.

    47 GAUTHIER, R. A., JOLIF, J. Y. Lthique Nicomaque, 1970, II, 1, pp. 233-

    234.48

    COMTE-SPONVILLE, Andr. Viver, 2000, p. 185.49

    Ibid., p. 245.