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A CONTRIBUIÇÃO DO NEGRO PARA A IDENTIDADE BRASILEIRA - I Flávio Flora 1 Resumo Este ensaio traz a primeira parte de uma revisão de literatura e de documentos sobre a contribuição do negro para a identidade brasileira. Vai em busca do início da escravatura portuguesa, em 1419, enfatizando a trajetória dos africanos no Brasil, a partir de 1530 até 1695, na queda do Quilombo dos Palmares. Os fatos mais significativos da história e seus personagens mais importantes são apresentados com informações até hoje pouco divulgadas, porque contraria (em alguns pontos) o que popularmente se sabe sobre o subjugamento de uma raça, em razão da cor da pele; a grotesca forma de exploração do trabalho humano; os heróis da “Nova Guiné” - Calabar, Henrique Dias, Ana de Sousa (Njinga), Aqualtune, Ganga Zumba e Zumbi - e a posição do negro na sociedade brasileira do século XVII. A história do escravagismo no Brasil surge e morre com Zumbi, quando deveria reconhecer e enaltecer outros valores históricos, que também contribuiram na construção antropológica do negro brasileiro, e que a lente eurocentrista não considera por motivos óbvios. Palavras-chave: escravidão, negros, quilombo, Calabar, Zumbi Introdução 1 Jornalista, bacharel em Direito, pesquisador de História, editor/autor da revista A Prova, segunda fase. Email: [email protected]

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A CONTRIBUIÇÃO DO NEGRO PARA A IDENTIDADE BRASILEIRA - I

Flávio Flora1

Resumo

Este ensaio traz a primeira parte de uma revisão de literatura e de documentos sobre a contribuição do negro para a identidade brasileira. Vai em busca do início da escravatura portuguesa, em 1419, enfatizando a trajetória dos africanos no Brasil, a partir de 1530 até 1695, na queda do Quilombo dos Palmares. Os fatos mais significativos da história e seus personagens mais importantes são apresentados com informações até hoje pouco divulgadas, porque contraria (em alguns pontos) o que popularmente se sabe sobre o subjugamento de uma raça, em razão da cor da pele; a grotesca forma de exploração do trabalho humano; os heróis da “Nova Guiné” - Calabar, Henrique Dias, Ana de Sousa (Njinga), Aqualtune, Ganga Zumba e Zumbi - e a posição do negro na sociedade brasileira do século XVII. A história do escravagismo no Brasil surge e morre com Zumbi, quando deveria reconhecer e enaltecer outros valores históricos, que também contribuiram na construção antropológica do negro brasileiro, e que a lente eurocentrista não considera por motivos óbvios.

Palavras-chave: escravidão, negros, quilombo, Calabar, Zumbi

Introdução

Conhecer melhor o processo de escravização é essencial para se compreender a longa

história de africanos no Brasil-Colônia-Império e os ressentimentos que derivam dessa

relação cruel de senhores e escravos.

O comércio de escravos uniu a África e as Américas e redesenhou a demografia do

Brasil, mas deixou um legado de problemas ligados ao preconceito racial, ao desdém

pelo estudo da história africana e ao desprezo pelos que tentam valorizar a presença

desses trabalhadores de pele preta na sustentação da economia nacional e européia por

mais de 200 anos.

O que se pretende com esta exploração inicial é conhecer como se deu a escravatura no

Brasil, no período de 1530 (chegada dos primeiros escravos) a 1695 (queda do

1 Jornalista, bacharel em Direito, pesquisador de História, editor/autor da revista A Prova, segunda fase. Email: [email protected]

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Quilombo dos Palmares), enfatizando os principais eventos e os personagens

envolvidos. Paralelamente, aos traços históricos já disseminados pela literatura escolar e

obras conhecidas, foram acrescentados dados e informações contidas em documentos

(ou em partes desses documentos) pouco mencionados. Na história do Brasil, o negro de

valor social e moral sempre foi o que não reclamava ou reagia; o que sofria e não se

vingava; o erudito; o talentoso; o leal; e a mulher de notável beleza ou índole maternal,

entre outros atributos e capacidades raras.

A presente versão se posiciona um pouco distante dessa abordagem e busca valorizar os

feitos de escravos que fizeram a diferença em seus contextos e épocas. É um passo na

desconstrução da historia da escravidão no Brasil e o abandono de preconceitos nutridos

pela ignorância, que só fazem aumentar o fosso entre as pessoas de culturas diferentes.

Subjugamento de uma raça, em razão da cor da pele

O príncipe português Henrique, o Navegador, que explorou as costas da África

Ocidental, ao início do século XV, foi o responsável pela capacitação de Portugal para

as grandes navegações (Escola de Sagres) e pela introdução do negro escravo em sua

sociedade: no trabalho doméstico e na lavoura, a partir de 1419, quando da conquista de

Ceuta (Marrocos).

Nessa fase do reinado de D. João I, grandes áreas de Portugal achavam-se despovoadas

e abandonadas, porque grande parte da população estava envolvida nas viagens

exploratórias e muitos não voltavam devido aos naufrágios, doenças e mortes em

conflitos. Assim, para ocupar essas terras “desertas” do sul da Lusitânia, só os negros

cativos fariam melhor que os escravos mouros, podendo ser empregados no saneando

das florestas, na drenagem dos pântanos e no cultivo da terra. Essa constatação do

temperamento e da adaptação dos negros ao trabalho intenso foi um dos sustentáculos

da história de consolidação de Portugal.

Em 1441, Antão Gonçalves, mordomo da casa do Príncipe, e Nuno Tristão, voltaram da

África com o primeiro carregamento de negros cativos, sob os auspícios do Papa

Nicolau V, que pretendia expandir o catolicismo para as terras invadidas pelos mouros e

resgatar almas perdidas na selva, cativando-os com indulgências e ostentação.

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A história registra, na crônica de Gomes de Zurara, chefe de uma expedição lusitana de

1446, a descrição de um assalto no litoral centro-oeste da África:

Olharam em direção ao povoado e viram que os negros, com suas mulheres e crianças, já saiam tão rapidamente quanto podiam de suas habitações, porque haviam visto seus inimigos. Mas eles, bradando “São Jaime”, “São Jorge” e ”Portugal” atacaram-nos imediatamente. Então se poderiam ver mães abandonando filhos, e maridos as mulheres, cada qual lutando para escapar como pudesse. (ZURARA apud ALENCAR et al. 1985)2

Essa forma de exploração, entretanto, durou pouco, pois os portugueses encontraram

uma maneira mais sofisticada de aprisionamento. Corrompidos pelos mercadores

europeus, os sobas (chefes locais) passaram a aceitar tecidos, jóias de ouro, prata e

cobre, armas, tabaco, algodão, bagaceira e até búzios, apresentados como coisas

sagradas, em troca de aprisionamento de outras tribos. Começava a funcionar assim um

comércio de escravos aparentemente menos cruel (para a sociedade mercantil

portuguesa) e mais aceito socialmente nas cortes européias. Aproveitava-se de um

costume tradicional de algumas tribos de punirem os violadores das suas normas,

reduzindo-os à escravidão ou vendendo-os a outro povo, em vez de aplicar a pena de

morte.

Com a expansão portuguesa pela costa africana ocidental e as visitas anuais à Guiné e

Mina para negociar escravos e ouro, logo começaram a funcionar um cativeiro e um

armazém de produtos da Guiné e Mina, na região de Lagos (Nigéria), conhecido como

Casa da Guiné, transferida depois para Lisboa, em 1482.

A chegada regular dos escravos mudou o panorama lusitano para melhor, deixando os

portugueses livres para a missão de explorar os mares e conquistar novas terras em

caminho alternativo para o Oriente. Entretanto, milhares de portugueses se

estabeleceram pelo caminho ou pereceram em naufrágios nas primeiras tentativas, o que

alterou significativamente a fisionomia da população de Portugal. Na época do

descobrimento (1500), por exemplo, em Lisboa, viviam cerca de 80 mil pessoas, sendo

10 mil delas negras (maioria) e mouras, em decorrência do crescente comércio de

africanos cativos.

2 ALENCAR, Francisco; RIBEIRO, Marcus Venicio Toledo; RAMALHO, Lucia Carpi. História da

sociedade brasileira. 3.ed. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1985.

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Mas o sucesso do negro na sociedade portuguesa ultrapassou as fronteiras do país e

alcançou as cortes de Espanha, Inglaterra, Alemanha, Veneza, Holanda e França,

fazendo fervilhar um promissor e rendoso tráfico praticado por Portugal e, por

concessão especial deste, pela Espanha. A escravidão, que vinha arrefecendo-se desde o

fim do Império Romano (séc. V) reaparecia em formato inédito. Antes, originava-se das

guerras entre as nações ou de punições intertribais, cujos vencedores subjugavam os

povos conquistados ou as pessoas incriminadas, tornando-os escravos com

possibilidades de redenção. Nas Américas, depois de Cristóvão Colombo (1492), a

escravidão tomou outros rumos, baseando-se no subjugamento de uma raça, em razão

da cor da pele e de sua primitiva e precária existência.

Por essa época, já se uniformizara na cultura popular da Europa latina uma falsa

imagem do “negro da África” como um tipo único, de cor preta, cabelos

encarapinhados, nariz chato, mandíbula saliente, de “cultura inferior”, religião atrasada

(fetichista), vida social em estado de barbárie (antropofagia) etc. Não se fazia

diferenciação antropológica e cultural dos grupos humanos capturados no continente,

que se constituíam de diversas raças e povos com níveis diferentes de evolução e

cultura. Estes aspectos só vieram fazer diferença, quase um século depois, ao se

constatar que cada etnia tinha seus talentos e suas especialidades, como os jagas e minas

na mineração, os congoleses na agricultura, os sudaneses nas fábricas etc.

Grotesca forma de exploração do trabalho humano

Possivelmente visitado pelas naus de Henrique, o Navegador, na segunda década do

século XV, como se percebe de um mapa de 1436, em que aparece um continente com o

nome de “Mbrasil”, estas terras, entretanto, só foram oficializadas em 1500, depois que

a Espanha anunciou as suas viagens pelo Novo Mundo. Mas, mesmo assim, ficaram

precariamente exploradas até a chegada de Martin Afonso de Souza (1530), que deu

novos rumos ao descoberto.

O sucesso parcial da expedição de Martin Afonso, apesar dos parcos recursos

financeiros disponíveis, levou o rei D. João III (1502-1557) a implementar no Brasil as

capitanias hereditárias, dividindo o território da costa brasileira em 15 faixas horizontais

e entregando-as ao governo de membros da pequena nobreza de Portugal, que se

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destacaram nas conquistas da África e Índia (1534), e a alguns funcionários graduados e

de confiança da Coroa.

Até então, a economia de Portugal estava envolvida com o comércio de especiarias da

Índia e com sua fixação na costa ocidental da África; e do Brasil apenas interessava o

pau-brasil, extraído da Mata Atlântica com a ajuda dos selvagens (1511). Mas os nativos

sul-americanos, ao contrário dos africanos, não aceitavam (e não entendiam) o trabalho

forçado e a autoridade de estranhos, colocando em risco as lavouras de cana-de-açúcar e

a produção de rapadura, que marcavam o início da colonização, em São Vicente. A idéia

de escravização dos selvagens foi, aos poucos, abandonada para dar lugar aos grandes

contingentes de negros africanos que começaram a chegar.

Um dos registros mais antigos da presença de escravos negros no Brasil, fala dos

escravos capturados por Martin Afonso de Souza, na caravela Santa Maria do Cabo, que

foi aprisionada e incorporada à sua esquadra. Uma parte dos escravos foi desembarcada

na Bahia (1531) e a outra, nas lavouras de cana-de-açúcar iniciadas na Capitania de São

Vicente (1532). Poucos anos depois, em 1535, o donatário de Pernambuco, Duarte

Coelho, importou alguns “escravos de Guiné” (como eram chamados os africanos),

marcando o início do tráfico negreiro, primeiramente, destinado aos engenhos de

açúcar, que se desenvolviam em Pernambuco, Bahia e São Vicente. A escravidão, que se

tornara uma forma secundária e decadente de produção na Europa, assumia um papel

decisivo no Brasil. Levando aos extremos as tendências existentes na escravidão

clássica, deu lugar a uma das mais grotescas formas de exploração do trabalho humano.

A partir de então, os escravos negros eram incluídos na enumeração de bens móveis do

engenho ou para descrever uma tarefa que por ele era cumprida naquela “fábrica”.

Assim, eles se tornaram não homens, mas coisas, peças; e eram avaliados com o valor

das coisas, pela procura e pela aplicação da força de trabalho de seu corpo, que superava

a de quatro ou cinco índios. Arrancados de sua terra natal apenas para trabalhar de sol a

sol, num lugar estranho, tinham uma vida útil média de sete a dez anos. Sem contar que

de 100 escravos (malungos), embarcados nos tumbeiros (navios negreiros) na Guiné, 40

deles pereciam na viagem, devido às miseráveis condições de transporte.

As primeiras estatísticas sobre o número de negros no país foram apresentadas pelo

missionário jesuíta José de Anchieta, entre 1553 (chegada ao Brasil) e 1597 (morte), em

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suas Cartas e Sermões. Em 1584, menciona uma rebelião de escravos, e, no ano

seguinte, revela que, em Pernambuco, chegaram cerca de 10 mil negros da Guiné e

Angola, alojados em sessenta e seis fazendas; enquanto, na Bahia, havia mais uns 3 mil,

não incluídos os 150 do convento jesuíta Meninos de Jesus, da Bahia.

Eram proibidos de praticar sua religião de origem ou de realizar suas festas e rituais

tradicionais, devendo seguir a religião católica, imposta pelos senhores de engenho, e

adotar a língua portuguesa na comunicação. Mesmo com todas as imposições e

restrições, representados pelo açoite e uma série de instrumentos – o tronco, o vira

mundo, o cepo, as correntes, as algemas, o libambo, a gargalheira, a gonilha, a peia, o

colete de couro, os anjinhos, a máscara, as placas de ferro – não deixaram suas culturas

se apagar. Escondidos, realizavam seus rituais de macumba, praticavam suas festas,

batuques, cantos e danças, mantinham suas representações artísticas e até aperfeiçoaram

a forma africana de resistência, adotada pelos povos Jagas, na região do Congo e de

Angola.

Em 1578, instalada a crise sucessória em Portugal, com a morte do ousado rei D.

Sebastião I, na batalha de Alcacer-Quibir (Marrocos), e de seu sucessor D. Henrique,

dois anos depois, o país viu extinguir-se a Dinastia de Aviz e a independência lusitana.

Aproveitando-se da fragilidade do país sem rei, a Espanha invadiu Portugal e constituiu

a desastrosa União Ibérica ou Dinastia Filipina (1580-1640), que abriu guerra contra a

Holanda (parceira de Portugal na produção de açúcar), a Inglaterra e os turcos-

otomanos, sem poder sustentar os sonhos hegemonistas dos Habsburgos. A partir daí,

deflagrou-se um período de declínio político, de endividamento e de dependência

econômica, que diminuíram consideravelmente o poderio lusitano no continente e no

mundo colonial, sem que o monarca espanhol mostrasse especiais aptidões de

governação.

No Brasil, a União Ibérica voltou as suas atenções para os rendosos engenhos de açúcar

do Nordeste, constituindo o Estado do Brasil (incluindo o Grão-Pará, ao norte),

deixando abandonadas as terras e fazendas do Sul, constituídas como uma Repartição a

ser explorada pelos jesuítas. Como não havia interesse econômico no emprego de

escravos negros nesta região, a saída foi tentar novamente submeter os selvagens e

incorporá-los ao trabalho, o que contrariava os missionários jesuítas, que já haviam

colonizado milhares deles, sem escravizá-los. Nessa época, surgem os primeiros

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bandeirantes vicentinos (portugueses) e paulistas, em sua maioria mamelucos

(descendentes de homens portugueses e mulheres índias) que entraram pelo sertão, pelas

mãos de guaranis e carijós, em busca de índios catequizados pelos jesuítas e de minas de

ouro e prata.

O historiador Basílio de Magalhães relatou em Expansão Geográfica do Brasil Central

(1935), um estudo sobre o roteiro de William Glimmer apresentado pelo geógrafo

Orville Derby (1875), informando que o bandeirante português André de Leão chegou

às cabeceiras do rio São Francisco, em 1601, com o objetivo de encontrar as minas de

ouro das “Serras do Sabarabussu”. Na opinião do historiador Alfredo Ellis Junior (O

Bandeirantismo paulista, 1928), a bandeira de Andre de Leão, depois de avançar para

além dos rios Paraíba e Grande, em direção Noroeste, havia estacado em algum ponto

entre os dois maiores afluentes do Alto São Francisco (Pará e Paraopeba).

Posteriormente, durante todo o século XVII, essa região foi penetrada por inúmeros

bandeirantes que, discretamente, se tornaram ricos, sem revelar claramente as

localizações das minas. Na época, os bandeirantes se serviam do trabalho escravo de

guaranis, tupis e carijós, havendo poucos negros nos grupos, e as expedições eram

apenas para confirmar roteiros indígenas, sendo o mais famoso deles o do “peabiru”,

que ia de São Vicente, por dois largos caminhos, até algum ponto do Império Inca.

O Tratado Descritivo do Brasil, escrito por Gabriel Soares de Souza, em 1587, refere-se

pouco ao negro, assim mesmo entre descrições da fauna e da flora brasileiras,

dedicando-se mais ao índio. Mas dos negros do Nordeste foram realçados o seu valor

econômico e seu pitoresco. Informa que eram alimentados com milho, mandioca e

outras “drogas” nativas, como os cavalos e outros animais, tinham uma desordenada

propensão à bananas e muitos piolhos, devido a vida imunda a que eram relegados.

Em 1618, no Diálogo das Grandezas do Brasil, atribuído ao cristão-novo Ambrósio

Fernandes Brandão, dois interlocutores, Brandônio (colonizador bem informado) e

Alviano (recém-chegado de Portugal), mencionam o negro diversas vezes e são os

primeiros a narrar episódios, considerando a individualidade dos caracteres: da mulata

favorita, do envenenador enciumado, do conhecedor de ervas e do praticante de

feitiçaria. Ao final, reconhecem a importância da raça negra como suporte da economia

do país e concordam que no Brasil foi criado um Novo Guiné.

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Heróis do Nova Guiné

Nas lutas contra os holandeses, que agitaram o nordeste do Brasil (Bahia e

Pernambuco), entre 1621 e 1654, o negro aparece ora lutando ao lado dos espanhóis

contra o domínio holandês, ora ao lado dos holandeses. Ao fim da guerra, foram

publicadas, em Madrid (Espanha), as Memórias Diárias de la Guerra Del Brasil,

escritas pelo comandante espanhol encarregado da expulsão dos holandeses, Duarte de

Albuquerque Coelho - Marques de Bastos. Em seu diário, menciona o fato de que

alguns soldados negros eram preguiçosos e tão desinteressados na campanha quanto

Portugal, que mandara apenas 27 soldados para a guerra. O autor introduz duas figuras

que se tornariam lendárias na história do Brasil. Do lado holandês, o mulato Domingos

Fernandes Calabar, comerciante e contrabandista; e do lado hispânico, Henrique Dias,

chefe negro famoso por sua bravura e inteligência. Daquele, pouco relatou, mas de

Henrique disse o bastante para torná-lo o exemplo do negro nobre: bravo, expedito,

inteligente, altivo, leal e culto, sendo o primeiro negro letrado da história brasileira.

A atuação de Calabar, que se revelara um grande sertanista, em um primeiro momento,

foi decisiva na guerra de guerrilhas contra os holandeses, principalmente na reconquista

de Olinda, mas seu mérito foi desdenhado pelo comandante espanhol. Desgostoso com a

indiferença e supondo que os colonizadores holandeses trariam maiores progressos à

terra do que a Espanha mudou de lado, em 1632, levando consigo dezenas de cristãos-

novos, negros, índios e mulatos que liderava. Altivo, sagaz, empreendedor,

entusiasmado, profundo conhecedor da costa e do sertão, tornou-se uma vantagem para

as forças holandesas, que logo conquistaram as vilas de Goiana e de Igaraçu, a ilha de

Itamaracá e os fortes do Rio Formoso e dos Três Reis Magos (no Rio Grande do Norte).

Derrotado pela estratégia de Calabar, o Marquês de Bastos, depois de cinco anos de

lutas sem tréguas, emprega um ardiloso plano para capturar o líder mulato. Servindo-se

de um morador, que se infiltrara na tropa inimiga e armara uma cilada, finalmente, o

comandante espanhol acabou vencendo-o numa batalha em Porto Calvo, onde foi

capturado vivo. Tratado como o mais vil traidor dos espanhóis foi punido com a morte:

garroteado e esquartejado, com as suas partes expostas na paliçada da fortaleza, numa

alusão ao destino de quem muda de lado (1635). Os holandeses, às escondidas

recolheram seus restos e prestaram-lhe honras fúnebres, reconhecendo seu mérito no

sucesso das conquistas flamengas, que de certo modo tinha a complacência de Portugal,

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sufocado pelo domínio da dinastia filipina (1580 a 1640) – esta sim, inimiga de

Holanda, a maior compradora de açúcar do Brasil e parceira comercial há mais de dois

séculos.

As invasões holandesas contra o domínio espanhol no Brasil (1624-1654) trouxeram

grande perturbação social nas rotinas das lavouras e engenhos de açúcar da região

nordeste, desorganização na vida oficial e instabilidade política e social. As pessoas não

entendiam direito o que estava acontecendo. Fazendas eram abandonadas, a produção

de açúcar (sobre a qual se assentava a economia do XVII) estava comprometida, a

importação de negros ficou dificultada (porque os holandeses tomaram também os

pontos de embarques portugueses na Guiné) e a crueldade com os escravos foi

intensificada. Toda essa situação representava um desassossego a mais na vida desses

sofredores, que não viam futuro naquela guerra de brancos e nativos perigosos. O estado

de insegurança e os maus tratos levavam os escravos a fugir das fazendas e povoados,

formando mocambos dentro da mata e em serras de difícil acesso, sob o governo de um

mestre-feiticeiro, cujo território passavam a chamar de Quilombo, à semelhança dos

redutos Jagas do Congo.

Existem muitas lendas referentes a esse povo guerreiro, mas a notícia do italiano

Graziano Saccardo, Congo e Angola: con la storia dell‘antica missione dei Cappuccini

1, Venezia-Mestre (1982, p. 60) informa que possuiam um único líder (Zimbo); que

seguiam uma determinada lei (Kigila) imposta por uma rainha proveniente de outra

região; e que matavam inicialmente os próprios filhos masculinos, adotando aqueles

aprisionados dos povos atacados. Com os restos de meninos queimados vivos faziam a

pomada "Magi-a-Samba", com a qual os guerreiros ungiam os seus corpos nas batalhas.

Mais tarde, a prática do assassínio dos próprios filhos teria sido substituída por uma

cerimônia de resgate simbólico, que lhes dava o direito de considerá-los como presa de

guerra. O Pe. João Antonio (de Montecuccolo) Cavazzi, em sua Descrição Histórica

dos Três Reinos: Congo, Matamba e Angola, publicado em Lisboa (1687), explica esse

rito de iniciação de meninos:

Quando o chefe do quilombo, que é ordinariamente o comandante militar, quer conceder este privilégio, determina o dia da função. No intervalo de tempo precedente à data, os pais, que são sempre numerosos, suplicam insistentemente a concessão desta graça, persuadidos de que seus filhinhos, antes da admissão, são abominados pela autora da lei, e só depois de purificados serão benzidos por ela.

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O dia é de grande festa, com o concurso de muitos homens armados e enfeitados o melhor possível. Aparecem na praça em boa ordem e com muito decoro os cofres em que se conservam os ossos de algumas pessoas principais e que são guardados nas suas casas por pessoas qualificadas. Depois aparecem os cofres com os ossos dos antigos chefes do quilombo e de seus parentes. Todos são colocados sobre montões de terra, na presença do povo, rodeados por guardas e por uma multidão de tocadores e de dançadores, que festejam e honram os ossos daqueles falecidos.

Por fim chega o comandante com a sua favorita, chamada tembanza, ou 'senhora da casa', ambos festejados pela música e pela comitiva dos seus familiares. Ambos untam os seus corpos e as suas armas e se sentam, ela à esquerda e ele à direita dos ditos cofres. Então, todos os presentes, divididos em grupos, fingem uma batalha, acometendo-se furiosamente. Acabada a batalha e as danças, que são bastante demoradas, até todos perderem o fôlego, saem, de algumas moitas predispostas, as mães que nelas estavam escondidas, com os meninos, e, mostrando-se muito preocupadas, com mil gestos vão ao encontro dos maridos, indicando-lhes o lugar em que cada menino está escondido.

Então eles correm para lá com os arcos flechados e, descobrindo a criatura, tocam levemente nela com a seta, para demonstrar que não a consideram como filho, mas como preso de guerra, e que, portanto, a lei não fica violada. Depois, usando uma perna de galinha (nunca pude descobrir a razão disso), untam a criança com aquele ungüento no peito, nos lombos e no braço direito. Dessa maneira, os pequenos são julgados e purificados e podem ser introduzidos pelas mães no quilombo na noite seguinte" (CAVAZZI, p. 182).

Durante o grande ataque ao Reino do Congo (1571-1573), foram os jagas combatidos

pelos congoleses com auxílio de exército português enviado por D. Sebastião. Os jagas,

ao invés de retornarem à sua terra de origem, se refugiaram junto a povos afins ao Sul

do Congo, ocupando Matamba e a região do alto Cuanza e penetrando no reino de

Ndongo. Com isso, a história de Angola se mistura com a dos Jagas, sobretudo sob a

ação da rainha Njinga-Mbandi-Ngola (1582-1663). Batizada sob o nome de D. Ana de

Sousa, essa guerreira "Senhora de Ndongo" passou posteriormente à lei dos jagas,

também vivendo em "quilombo" e mantendo um corpo de jovens vestidos com saias, na

guarda pessoal.3

3 Mocambo, em língua buntu, significa “lugar de refúgio, esconderijo” (moca algum lugar; mbo refúgio). Normalmente, era uma pequena aldeia de 10 a 15 famílias. No Brasil, depois de Canga Zumba, passou a ser uma subdivisão administrativa do quilombo (no caso, o de Palmares).

Quilombo, em buntu, quer dizer “refúgio escondido, avançado” (quilo escondido; mbo refúgio). A palavra "kilombo" (Quimbundo) e "ochilombo" (Umbundo) significavam “acampamento de pouso, transitório”). Parece que foi D. Ana de Souza, a Senhora do Ndongo, quem transformou os quilombos centro-africanos de seu domínio em fortificações, onde se reuniam (em segurança) os líderes de mocambos jagas acolhidos em seu reino. Esse conceito de defesa foi trazido para o Brasil pela princesa Aqualtune, de cuja linhagem surgiram Canga Zumbá e Zumbi, entre outros. Entretanto, a palavra “quilombola” teve origem numa expressão do tupi (língua dos bandeirantes): canha mbora (aquele que foge), que por semelhança de sons e de sentido transformou-se em quilombora (aquele que vive em quilombo).

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A resistência de Njinga à ocupação estrangeira e ao tráfico de escravos no seu reino

durou cerca de quarenta anos. Usava de várias táticas e estratégias que vão desde a

conversão ao cristianismo até as práticas jagas, o que a tornou uma heroína que se

impôs como símbolo de luta contra a opressão e a escravatura. Sua influência era muito

forte entre os malungos (negros aprisionados) que desembarcavam no Brasil, o que

estimulou a formação de mocambos por todas as partes.

Esses redutos de negros fugidos, que existiram no Nordeste desde 1580 a 1695, fizeram

a primeira revolta de negros (1584), resistiram aos ataques dos holandeses e portugueses

e reuniram-se no Quilombo dos Palmares, a partir de 1670, considerado pelo historiador

Sebastião da Rocha Pita (1660-1738), uma república inteligente, autogovernada por

negros, com um príncipe eletivo e escravos, código de leis e magistrados.

O primeiro líder de Palmares foi Ganga Zumba ou Grande Senhor, que organizou o

quilombo como uma federação e o governou até 1678. Era um negro alto e forte, um

dos filhos da princesa Aqualtune, que chegou à região por volta de 1630, trazendo

consigo os costumes de sua linhagem, um dos quais referente a sucessão, que não se

fazia de pai para filho e sim de tio para sobrinho. Nessa tradição, Ganga Zumba deve ter

substituído um irmão da princesa Aqualtune, que viera a ter filhas no Brasil. A mais

velha, chamada Sabina, deu-lhe um neto, nascido em meio às atribulações de um

iminente ataque holandês, descoberto e desfeito a tempo. Para os quilombolas foi um

presságio, que eles receberam com cantos, danças e rezas, pedindo às suas entidades

espirituais que aquele recém-nascido, sobrinho de Ganga Zumba, crescesse forte e

corajoso, como Zumbi, o deus da guerra. Nessa época, em Palmares viviam mais de 10

mil foragidos e algumas centenas de escravos que serviam nas plantações locais.

A prosperidade do Palmares incomodava os colonizadores e as tentativas de invasão dos

mocambos tornaram-se incessantes, obrigando os moradores a viverem sempre na

expectativa de guerra. Diante das pressões, Ganga Zumba, em 1678, decidiu negociar

uma paz duradoura com os brancos, em um acordo proposto pelo governador de

Pernambuco D. Pedro de Almeida, segundo o qual os negros e índios nascidos em

Palmares se tornariam livres e os que estivessem foragidos deveriam voltar a seus

donos.

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O acordo de Ganga Zumba não agradava seu jovem sobrinho Zumbi e a maioria do

povo do quilombo, que não acreditavam na “paz” dos portugueses, criando a primeira

discórdia dentro do quilombo. Ganga Zumba, já idoso, cansado de lutar, viu seu

reinado ameaçado pela influência de Zumbi junto aos guerreiros e por sua valentia na

defesa do quilombo; mas já tinha dado a palavra ao governador de Pernambuco e não

faltaria com ela. Em 5 de fevereiro de 1678, acompanhado de 400 quilombolas, rumou

para uma localidade próxima à Serra da Barriga, e ao passar por Recife para assinar os

termos, vem a perceber que caíra numa armadilha. Sem saber o que fazer, despediu-se

de seus homens, mandando-os de volta aos seus mocambos, e voltou à Cerca dos

Macacos. Ao chegar, encontrou a sede do quilombo em festas, comemorando uma luta

vitoriosa de Zumbi e seus guerreiros contra as forças de Pernambuco, que

descumpriram o acordo.

Ganga Zumba foi criado para ser um grande estadista, um nobre da casa de Aqualtune,

adepta da paz entre os povos, que implantou a organização de mocambos para acolher a

população escrava e pobre, fugitiva da violência e crueldade dos senhores e feitores.

Mas estava decepcionado consigo mesmo, por ter acreditado nas autoridades de

Pernambuco e causado tantos sacrifícios aos seus guerreiros. Nesse mesmo dia, nos

Macacos, reuniu o povo local e proclamou Zumbi, o Rei de Palmares (1680), dizendo

que se retirava com seu povo para formar outro quilombo no Vale do Cacua, sob o

governo de seu irmão Ganga Zona (também adepto da paz com os portugueses).

Os desentendimentos surgidos entre os guerreiros, sobre a liberdade dos negros, levou

um deles a envenenar Ganga Zumba, tentando matá-lo, para liberar o povo que o seguia

para onde fosse. Recuperado dos efeitos do vinho envenenado, o mestre deixou a região

e foi viver em Salvador, com outros mestres-feiticeiros.

De fato, depois do desaparecimento de Zumba, a grande maioria dos guerreiros e suas

famílias voltaram para o Palmares, reforçando a causa de Zumbi, de lutar em defesa da

liberdade dos escravos e o fim da servidão. O novo rei de Palmares resistiu a várias

tentativas de acordo com as autoridades portuguesas e a doze ou treze sangrentas

batalhas, até sua morte, aos quarenta anos, em 20 de novembro de 1695. Informado na

traição de Antônio Soares, o capitão André Furtado de Mendonça atacou de surpresa o

seu refúgio, apunhalando-o e matando dezenove dos seus vinte guerreiros. Depois, teve

a cabeça cortada, salgada e levada, com o pênis dentro da boca, ao governador de

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Pernambuco, que mandou expor a cabeça em praça pública, visando desmentir a crença

da população sobre a lenda da imortalidade de Zumbi e seus ideais libertários.

O negro na sociedade brasileira do século XVII

Contemporâneos de Calabar, Henrique Dias, Ganga Zumba e Zumbi foram o jesuíta

Antônio Vieira (1608-1697) – diplomata, descendente de mulata e negro africano, o

maior prosador do século XVII e o primeiro escritor genuinamente brasileiro – e

Gregório de Matos Guerra (1633-1696), o “boca do inferno”, considerado o fundador da

literatura brasileira.

Antônio Vieira defendia, em suas Cartas e Sermões, a liberdade dos cristão-novos e dos

naturais do Brasil, a igualdade racial entre brancos e negros, o descanso semanal aos

domingos e a humanização do tráfico negreiro, sobre o qual sustentar-se-ia a retomada

de desenvolvimento econômico da colônia e da metrópole.

São todos pretos, mas somente neste acidente se distinguem dos europeus. Tem grande juízo e habilidade, e toda a política que cabe em gente sem fé e sem muitas riquezas, que vem a ser o que ensina a natureza.

Aqui há clérigos e cônegos tão negros como azeviche, mas tão grandes músicos, tão discretos e bem morigerados que podem fazer invejas aos que lá vemos nas nossas catedrais.

No Sermão pregado em 1657, ele dá uma realista descrição do contraste verificado na

sociedade colonial brasileira:

Já se depois de chegados olharmos para estes miseráveis e para os que se chamam senhores, o que se viu nos dois estados de Job, é o que aqui se representa a fortuna, pondo juntas a felicidade e a miséria no mesmo teatro.

Os senhores poucos, os escravos muitos; os senhores rompendo galas, os escravos despidos e nus; os senhores banqueteando, os escravos perecendo a fome; os senhores nadando em oiro e prata, os escravos carregados de ferros; os senhores tratando-os como brutos, os escravos adorando-os e temendo-os como deuses; os senhores em pé apontando para o açoite, como estátuas da soberba e da tirania, os escravos prostrados, com as mãos atadas atrás como imagens vivíssimas da servidão e espetáculos da extrema miséria.

O poeta Gregório de Matos, boêmio rebelde da decadente aristocracia rural, filho de

fazendeiro abastado, criado num grande engenho de cana da Bahia, rodeado de escravos

e mucamas, revela aspectos interessantes da sociedade baiana, principalmente sobre a

parcela negra feminina. Mas nem todas as mulheres de pele escura são belas e

encantadoras, pois existem versos dedicados às irritantes, ambiciosas (muitas), sujas

(outras), doentes e velhas, que ele não poupa. Nos seus poemas, há uma galeria de belas

Page 14: A contribuição do negro para a identidade brasileira - 1

mulatas a que paga tributo, ajuda nas dificuldades, oferece festas e raramente satiriza.

Em um poema de amor a Catona, ele a compara a um astro no crepúsculo, tão talentosa

quanto escura

[...] que a mais branca e a mais bela / Poderá trocar com ela / A cor pelo entendimento: / É um prodígio, um portento; / E se vos espanta ver / Que adrede me ando a perder,/ Dá-me por desculpa amor, / Que é fêmea trajada em flor, /E sol metido em mulher.

Sua poesia diferencia o negro escravo do mulato brasileiro, que critica por tentar subir

na sociedade, aproveitando-se do nivelamento urbano que se vê na Bahia e em

Pernambuco, onde ricos e pobres ficam à merce de mulatos espertos e de imigrantes

portugueses que nada têm, além de piolhos e a roupa do corpo.

O rebelde boêmio Gregório de Matos frequentava todos os cantos da Bahia, onde

compôs seus minuciosos e realistas versos que ajudam a reconstruir a trajetória do negro

na sociedade brasileira com suas festas e rituais negros. Relata uma grande festa para a

qual foram convidadas todas as mulatas da cidade e uma festa de negros de Nossa

Senhora do Rosário, cujos participantes saíam mascarados pela cidade numa atmosfera

carnavalesca. Também descreve um mocambo, que para ele não era um refúgio de

negros foragidos, mas um local de encontros para danças e feitiçaria. Segundo Gregório,

os mocambos eram dirigidos por ”mestres do cachimbo”, empenhados em manter

tradições africanas e ensinar danças lascivas, “calundus e feitiços”. Numa das

cerimônias a que compareceu, testemunha ter visto os piores “excessos” praticados por

“Cazumbá, Ambrósio e outros pretinhos”.

Aliás, este relato permite inferir que o jovem Ambrósio, estava na Bahia, no final do

século XVII, como discípulo do mestre-feiticeiro Ganga Zumba. Anos depois, recebeu

educação e conhecimentos do jesuíta Catura, no Rio de Janeiro, mas preferiu fugir com

um grupo de escravos para Minas Gerais (Tengo-Tengo) e formar o mais longo e

resistente quilombo de que se tem notícia no Brasil, o Quilombo do Ambrósio ou

Quilombo do Campo Grande.

O calundú era uma dança cerimonial promovida pelos mestres-feiticeiros, ao som de

atabaques, pandeiros, canzás, botijas e castanhetas, que começava com barulho e

dissonância, gritos e alaridos furiosos, que, aos poucos, iam harmonizando-se até

transformar-se numa música mágica “que não há cousa mais sonora para dormir com

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sossego”, como relatou Marques Pereira, em sua obra Compêndio Peregrino da

América. Segundo o autor, repetindo explicação de um morador,

[...] calundus são uns folguedos, ou adivinhações que dizem esses pretos que costumam fazer nas suas terras, e quando se acham juntos também usam deles cá para saberem várias cousas; como as doenças de que procedem; e para adivinhar algumas cousas perdidas; e também para terem ventura em suas caçadas e lavouras; e para muitas outras cousas. (MARQUES PEREIRA, 1728)

O autor de O Peregrino corrobora o que disse Gregório de Matos, antes, sobre os chefes

quilombolas, de serem mestres do cachimbo, feiticeiros, ou mestres dos calundus.

Outro aspecto apontado por Marques Pereira é que os escravos rurais eram obrigados a

trabalhar mais do que deviam e que os urbanos eram muitas vezes considerados como

rendosa inversão de capital (investimento). O autor referia-se aos escravos-ganhadores,

que tinham completa liberdade de ação, desde que pagasse certa soma de dinheiro

(diária, semanal ou mensalmente), não importando a origem ou o modo de conseguir

dinheiro. E os escravos, aproveitando-se da sensualidade das mulatas, montavam

bordéis e pontos de reunião de feiticeiros, curandeiros e ladrões, enquanto algumas

proprietárias (na maioria brancas) até forçavam as mulatas e crioulas à prostituição,

vestindos-as com sedas, telas e jóias, o que foi proibido pelas autoridades “para que

assim lhes tire a ocasião de poderem incitar para os pecados...”, como noticia Marques

Pereira.

Em seu minucioso tratado da vida rural brasileira do século XVII, o jesuíta italiano João

Antônio Andreoni (1650-1721), conhecido por Andre João Antonil, ressalta a

importância do negro, mostrando-o como sendo a base do capital do proprietário – mãos

e pés do senhor. Apresenta uma relação de preços de bens móveis de uma fazenda,

indicando o valor dos diferentes tipos de escravos. Um negro forte, que fosse inteligente

e desembaraçado (ladino), valia trezentas oitavas de ouro (pouco mais de um quilo);

enquanto um crioulo (afrodescendente), hábil no seu ofício e em negócios, valia

quinhentas oitavas, e uma mulata de partes podia ser vendida até por seiscentas ou mais

oitavas. Um bom cavalo valia apenas cem oitavas.

Antonil, repercutindo a ética dos jesuítas, dizia que os escravos mereciam ser tratados

com humanidade, revelando que, mesmo doente, o escravo tinha de trabalhar e produzir

o que dele era esperado nas tarefas. Defendia o casamento dos escravos e que os casais

não fossem separados, como até então se fazia, com o fito de desestruturar qualquer

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organização dos cativeiros. Observava o jesuíta italiano como os escravos eram mal

alimentados, vestidos e alojados – tratados como animais inferiores ao cavalo, apesar de

valerem muito mais.

Duas etnias brasileiras, que merecem destaque entre os autores brasileiros do séc. XVII

são as dos mulatos (miscigenação de africanas e brancos) e crioulos (miscigenação de

etnias africanas). Enquanto os negros eram apenas bens móveis com alma, os mulatos

começavam a mostrar uma personalidade própria, difíceis no trato, bons negociantes,

espertos, sabendo tirar vantagem dos senhores, não raro seus irmãos e pais. Gregório de

Matos dizia que eles eram bons atores, mas condenava sua ascensão social,

concordando com Antonil, que não considerava salutar a influência do mulato na vida

do país. Repetia com freqüência o ditado popular, surgido à época: “o Brasil é o inferno

dos negros, purgatório dos brancos e o paraíso dos mulatos e das mulatas” (que eram

capazes de causar a perdição de um homem).

Os crioulos, por outro lado, por sua proximidade com seus ancestrais e ascendentes (que

nem sempre eram da mesma etnia), manteve na memória os sofrimentos acumulados no

cativeiro, e seu espírito era de revolta, de desconfiança e artimanhas, pois não tinham o

mesmo prestígio social do mulato. Pobres, tristes, semidesnudos nas fazendas e

ridiculamente vestidos nas vilas e arraiais, a única diversão que lhes restava e aos

demais africanos cativos era o calundu..

Considerações finais

Apoiado em eventos registrados pela história eurocentrista do Brasil (mais disseminada)

e em referências contidas em estudos de literatura brasileira, ainda assim este trabalho

deixa muito por dizer, mas cumpre seu papel de evidenciar os grandes nomes da “Nova

Guiné”. Nesse novo país que se formara por gente anônima vinda de todos os cantos da

Europa, da África e Oriente, os africanos e afrodescendentes apareceram com traços

identitários próprios, marcando a vida social e fazendo a diferença, num mundo

desajustado e estrangeiro.

Tentando responder à pergunta inicial sobre a contribuição do negro para a identidade

brasileira, verificou-se que no período pesquisado houve vários eventos significativos

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que valorizam a memória dos escravos de pele preta, mas são pouco ou superficialmente

estudados.

A análise do material permitiu compreender a importância de Calabar (inteligente

guerreiro), Henrique Dias (inteligente intelectual), da rainha Njinga, da princesa

Aqualtune e sua filha Sabina (membros de uma linhagem superior), Ganga Zumba

(grande estadista) e Zumbi (valente guerreiro), todos na luta contra a opressão e a

escravatura. A comparação entre as biografias desses personagens reais da história

proporciona uma visão diferente dos feitos e das responsabilidades de cada um, como se

estivessem seguindo um roteiro estratégico.

A heroicização do chefe Zumbi relegou a segundo e terceiro planos os elementos mais

significativos da formação da cultura negra do Brasil. Zumbi popularizou-se como o

herói negro, usurpou o poder de mestre “Cá-Zumbá” e morreu humilhado por ato de um

traidor, de surpresa, depois de ter vencido tantas batalhas.

Os movimentos de consciência negra no Brasil deveriam focar suas atenções também

nesses outros grandes afrobrasileiros, que aqui mencionamos, e superar essa visão

distorcida e nefasta do “escravo valente morto e humilhado”, que não merece mais que

essa lembrança.

Além disso, para se entender melhor a trajetória dos escravos no Brasil, é preciso

reconhecer e enaltecer a importância da militância de Rei Ambrósio, o mais temido dos

quilombolas do sec. XVIII, fundador e inspirador de uma confederação de quilombos

em Minas Gerais, que denominou “pátria negra”, e que resistiu e lutou contra o maior

genocídio cometido na América luso-espanhola contra negros e nativos caiapó, que

ainda assim matou mais de 50 mil pessoas.

Um pouco da história de Ambrósio, que se desenrolou em Minas Gerais, será objeto da

segunda parte desta pesquisa que busca conhecer melhor as contribuições dos

afrobrasileiros na construção da identidade nacional.