a construção dos números reais e suas extensões

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A Construção dos Números Reais e suas Extensões IVAN AGUILAR & MARINA SEQUEIROS DIAS Universidade Federal Fluminense 4 o Colóquio da Região Centro-Oeste Novembro de 2015

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Page 1: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

A Construção dos Números Reais e suas Extensões

IVAN AGUILAR

&

MARINA SEQUEIROS DIAS

Universidade Federal Fluminense

4o Colóquio da Região Centro-Oeste

Novembro de 2015

Page 2: A Construção dos Números Reais e suas Extensões
Page 3: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

Sumário

1 Introdução 11.1 Noções básicas sobre conjuntos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1

1.1.1 Conjuntos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11.1.2 Conjuntos numéricos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31.1.3 Operações entre conjuntos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41.1.4 Famílias ou coleções . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51.1.5 Produto cartesiano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5

1.2 Relações de equivalência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61.3 Funções . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81.4 Corpos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101.5 Corpos ordenados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12

1.5.1 Corpos ordenados são infinitos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141.5.2 Intervalos de um corpo K . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141.5.3 Valor absoluto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15

1.6 Supremo e ínfimo de um conjunto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151.6.1 Subconjuntos limitados de um corpo . . . . . . . . . . . . . . . . . 151.6.2 Supremo e ínfimo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16

1.7 Corpos arquimedianos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 171.8 Corpo ordenado e completo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 181.9 Exercícios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19

2 Os Números Naturais 212.1 O conceito de número . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 212.2 Definição axiomática dos Naturais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22

2.2.1 Axiomas de Peano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 222.2.2 Princípio de Indução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23

2.3 Operações de adição e multiplicação em N . . . . . . . . . . . . . . . . . 242.3.1 A Adição em N . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 242.3.2 A multiplicação em N . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26

2.4 Relação de ordem em N . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 282.5 Conjuntos finitos e infinitos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 292.6 Conjuntos enumeráveis e não-enumeráveis . . . . . . . . . . . . . . . . . 292.7 Exercícios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30

3 Os Números Inteiros 333.1 Definição axiomática dos inteiros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 333.2 Construção dos Números Inteiros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35

iii

Page 4: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

3.3 Operações em (N×N)/∼ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 353.3.1 Adição e multiplicação em (N×N)/∼ . . . . . . . . . . . . . . . 353.3.2 A substração em Z = (N×N)/∼ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40

3.4 Relação de ordem em Z = (N×N)/∼ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 403.5 Exercícios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41

4 Os Números Racionais 434.1 Os Números Racionais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43

4.1.1 Q como estrutura algébrica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 434.1.2 Z como subconjunto de Q . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 444.1.3 Q é corpo ordenado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 44

4.2 Construção dos Números Racionais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 454.3 Operações em (Z×Z∗)/∼ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46

4.3.1 Adição e multiplicação (Z×Z∗)/∼ . . . . . . . . . . . . . . . . . 464.3.2 A substração e divisão em Q = (Z×Z∗)/∼ . . . . . . . . . . . . 50

4.4 Q = (Z×Z∗)/∼ como corpo ordenado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 514.4.1 Propriedades da relação de ordem . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52

4.5 Exercícios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52

5 Os Números Irracionais 535.1 Números comensuráveis e incomensuráveis . . . . . . . . . . . . . . . . 535.2 Existência de números não racionais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 555.3 Números algébricos e números transcendentes . . . . . . . . . . . . . . . 555.4 Exercícios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56

6 Os Números Reais e sua Construção 576.1 Definição axiomática do conjunto dos números reais . . . . . . . . . . . . 576.2 A construção de Cantor (sequências de Cauchy) . . . . . . . . . . . . . . 596.3 O método de Dedekind (cortes de Dedekind) . . . . . . . . . . . . . . . . 666.4 O método das expansões decimais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 756.5 R é um corpo ordenado e completo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 866.6 A unicidade de R . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 876.7 R é não-enumerável . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 896.8 A densidade dos racionais e irracionais em R . . . . . . . . . . . . . . . . 926.9 Exercícios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92

7 Extensões dos Números Reais 957.1 Extensões multidimensionais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95

7.1.1 Os Números Complexos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 957.1.2 Quaternions . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97

7.2 Extensões unidimensionais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 987.2.1 Os Números Hiper-reais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 98

Referências Bibliográficas 103

Page 5: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

Capítulo 1

Introdução

1.1 Noções básicas sobre conjuntos

A atual Matemática, como é conhecida em pleno século XXI, tem praticamentetodos os seus conceitos formalizados na linguagem dos conjuntos. A noção intuitivade conjunto é tão antiga quanto a noção de número. Mesmo sendo uma noção antiga,foi apenas no século XIX que foi amplamente estudada e usada na formalização dediversos conceitos matemáticos por Cantor, Frege, Russell, etc. Existe a chamada Teoriade Conjuntos que trata seu estudo de modo rigoroso. Para os nossos propósitos serásuficiente uma abordagem ingênua de conjuntos, no estilo de Halmos [13].

1.1.1 Conjuntos

O noção primitiva de conjunto é um conceito indefinido. Intuitivamente podemosdizer que um conjunto é uma coleção de objetos. Note que ao dizer que é uma coleção,precisaríamos definir o que é uma coleção, e assim sucessivamente iríamos utilizandoapenas sinônimos, sem tê-la definido concretamente. Mesmo assim, intuitivamente,conseguimos conceber a ideia de um conjunto. Outro conceito primitivo, são os objetosque formam um conjunto, esses objetos são chamados elementos do conjunto.

Os conjuntos, costumam ser indicados por letras maiúsculas: A, B, C, etc. Oselementos, em geral, são indicados por letras minúsculas: a, b, c, etc.

O principal conceito primitivo entre um elemento x e um conjunto A é o depertinência.

Se x pertence a A (ou x é um elemento de A, ou x está contido em A), denotamos

x ∈ A.

Caso contrário, dizemos que x não pertence a A, o que denotamos por x 6∈ A.

Um conjunto A é bem definido se sempre é possível determinar se um elementoqualquer x, pertence ou não pertence a A.

Existem varias formas de representar ou descrever um conjunto.Por exemplo, para representar o conjunto formada pelas vogais a, e, i, o, u

escrevemosA = {a, e, i, o, u}.

1

Page 6: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

2 Capítulo 1: Introdução

O conjunto B dos ímpares positivos

B = {1, 3, 5, 7, . . .}.

Nem sempre é possível descrever um conjunto A colocando um a um cadaelemento. Se conhecermos alguma propriedade P comum aos elementos de A.Podemos definir A como o conjunto dos elementos x tal que goza (ou tem) apropriedade P. Denota-se

A = {x tal que x tem a propriedade P}

Usualmente a frase "tal que" é substituída pelos símbolos "|", "/", ":" ou ";". Se afrase "x tem a propriedade P" é substituída por P(x) então, A pode ser escrito como

{x | P(x)} ou {x / P(x)} ou {x : P(x)} ou {x; P(x)}.

Quando a propriedade P refere-se a um conjunto U, então o conjunto A escreve-se

{x ∈ U | P(x)} ou {x ∈ U / P(x)} ou {x ∈ U : P(x)} ou {x ∈ U; P(x)}

e lê-se A é o conjunto dos x pertencentes a U tais que têm a propriedade P.

Exemplo 1.1 (Conjunto vazio e conjunto unitário). O conjunto vazio é o conjunto semelementos e é representado pelo símbolo ∅ ou { }. Um conjunto que possua apenasum único elemento x e denotado por {x} é chamado conjunto unitário. Exemplos deconjuntos unitários são {{ }} ou {∅}.

Sejam A e B conjuntos. Diz-se que A é subconjunto de B, se todo elemento de A,também é um elemento de B. Também costuma-se dizer: A está incluído em B; A estácontido em B; A é parte de B; B inclui A ou B é contém A. Escrevemos tal situação como

A ⊂ B ou B ⊃ A.

Dizemos que A não é subconjunto de B, quando existe x ∈ A tal que x 6∈ B. Talsituação denota-se A 6⊂ B.

Proposição 1.1. Para todo conjunto A, ∅ ⊂ A.

Demonstração. Se existisse A tal que ∅ 6⊂ A, deveria existir x ∈ ∅ tal que x 6∈ A.O que é absurdo. �

Um conjunto A é igual a B, se, e somente se, A ⊂ B e B ⊂ A. Esse fato é denotadopor A = B.

Se não é verdade que A = B, dizemos que A não é igual a B e denota-se: A 6= B. Istoé, quando A 6⊂ ou B 6⊂ A. Um conjunto que não é igual a ∅ é chamado não-vazio.

Se A ⊂ B e A 6= B dizemos que A é subconjunto próprio de B. Às vezes, tal situaçãodenota-se por A B.

Definição 1.1. Dado um conjunto A, o conjunto potência de A é o conjunto de todos ossubconjuntos de A. Denota-se: P(A) ou 2A. Em particular, sempre temos ∅ ∈ P(A) eA ∈ P(A).

Page 7: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

1.1: Noções básicas sobre conjuntos 3

1.1.2 Conjuntos numéricos

Os exemplos mais importantes de conjuntos são aqueles formados por números.Historicamente, esses conjuntos surgiram por razões práticas ou de necessidade. Taisconjuntos podem ser definidos axiomaticamente. Isto é, como conjuntos gozando decertas propriedades (axiomas). Uma outra abordagem é construí-los a partir de algumoutro com estrutura "mais simples". Os exemplos de conjuntos numéricos que seguem,são bem conhecidos e poderão ser utilizados em diversos exemplos ao longo do texto,mesmo, antes de tê-las construído formalmente.

Conjunto dos Números Naturais. N = {1, 2, 3, 4, 5, . . .}

Aparecem como uma abstração do processo de contagem (número cardinal) ouordenamento (número ordinal). Diversos autores preferem incluir o zero entre osnaturais. Isso dependerá do gosto do autor, praticidade ou circunstância. Em nossoestudo, o zero não será considerado natural. Aparecendo apenas ao construirmos Z.Para uma opinião a respeito, recomendamos a leitura de [21].

Conjunto dos Números Inteiros. Z = {. . .− 3,−2,−1, 0, 1, 2, 3, 4, 5, . . .}

Constituído pelos naturais; os simétricos dos naturais (negativos) e o zero. Osímbolo Z vem do alemão Zahlen, que significa: número. Esse conjunto faz que tenhamsentido equações do tipo x + 2 = 1, que não têm solução no conjunto dos naturais.

Conjunto dos Números Racionais. Q = {a/b ; a ∈ Z, b ∈ Z, b 6= 0}

Constituído, além dos inteiros, por números que representam partes ou frações.O conjunto dos racionais faz que equações do tipo 2x = 1 possuam solução. Taisequações no ão têm soluções em Z. O símbolo Q provém da palavra quociente.

Conjunto dos Números Reais R = {a ; a = limn→∞

xn, onde xn ∈ Q}

R é formado pelos limites de todas as sequências convergentes de númerosracionais. O conjunto dos números reais faz que equações do tipo x2 = 2 tenhamsolução. Tais equações não possuem solução em Q. O conjunto dos reais servepara representar a ideia do contínuo (continuum), por exemplo podem representarcomprimentos de segmentos de reta. Um números real que não é racional é chamadoirracional. O conjunto dos irracionais é denotado por R−Q. Assim, R = Q∪ (R−Q).

Conjunto dos Números Complexos C = {a + ib ; a, b ∈ R, i2 = −1}

Os complexos fazem que equações do tipo x2 + 1 = 0 tenham solução.

Temos as seguintes inclusões próprias: N ⊂ Z ⊂ Q ⊂ R ⊂ C.

Page 8: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

4 Capítulo 1: Introdução

1.1.3 Operações entre conjuntos

Definição 1.2. A reunião ou união dos conjuntos A e B é o conjunto A∪ B formado peloselementos de A junto aos elementos de B. Desse modo, podemos escrever

A ∪ B = {x; x ∈ A ou x ∈ B}.

Definição 1.3. A interseção dos conjuntos A e B é conjunto A ∩ B formado peloselementos em comum de A e B. Desse modo, podemos escrever

A ∩ B = {x; x ∈ A e x ∈ B}.

Proposição 1.2 (Propriedades da reunião e interseção de conjuntos). Sejam A, B, C, Dconjuntos

∪1) A ∪∅ = A,

∪2) A ∪ A = A,

∪3) A ∪ B = B ∪ A,

∪4) (A ∪ B) ∪ C = A ∪ (B ∪ C),

∪5) A ∪ B = A⇔ B ⊂ A,

∪6) A ⊂ B, C ⊂ D⇒ A ∪ C ⊂ B ∪ D

∪7) A ∪ (B ∩ C) = (A ∪ B) ∩ (A ∪ C)

∩1) A ∩∅ = A,

∩2) A ∩ A = A,

∩3) A ∩ B = B ∩ A,

∩4) (A ∩ B) ∩ C = A ∩ (B ∩ C),

∩5) A ∩ B = A⇔ A ⊂ B,

∩6) A ⊂ B, C ⊂ D⇒ A ∩ C ⊂ B ∩ D

∩7) A ∩ (B ∪ C) = (A ∩ B) ∪ (A ∩ C)

Demonstração. Exercício. �

Definição 1.4 (Diferença de conjuntos). A diferença entre os conjuntos A e B é o conjuntoA− B formado pelos elementos de A que não estão em B. Ou seja,

A− B = {x; x ∈ A e x 6∈ B}.

Outra notação para a diferença é A \ B. Dizemos que A e B são disjuntos quandoA ∩ B = ∅.

Se existe um conjunto U que contém todos os conjuntos A ⊂ U com os quaistrabalhamos, então a diferença U − A é chamada o complemento de A ou complementarde A e escreve-se

Ac = U − A

Desse modo, para x ∈ U,x ∈ Ac ⇔ x 6∈ A,

Também, é imediato verificar que para todo A, B ⊂ U,

A− B = A ∩ Bc

Page 9: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

1.1: Noções básicas sobre conjuntos 5

Proposição 1.3 (Propriedades do complementar de um conjunto). Se A, B ⊂ U então

(C1) (Ac)c = A,

(C2) A ⊂ B⇔ Bc ⊂ Ac,

(C3) A = ∅⇔ Ac = U,

(C4) (A ∪ B)c ⇔ (Ac ∩ Bc),

(C5) (A ∩ B)c ⇔ Ac ∪ Bc).

Demonstração. Exercício. �

As propriedades (C3) e (C4) são conhecidas como identidades de De Morgan.

1.1.4 Famílias ou coleções

Quando queremos trabalhar com conjuntos cujos elementos são conjuntos,frequentemente usamos as palavras família ou coleção como sinônimo de conjunto.

Definição 1.5. Seja F uma família de conjuntos. Definimos a reunião de F , denotadopor

⋃A∈F

A, como sendo o conjunto de elementos que pertencem pelo menos a algum

conjunto de F . A interseção de F , denotado por⋂

A∈FA é conjunto de elementos que

pertencem a cada um dos conjuntos de F . A família ou coleção F é dita disjunta se ainterseção de dois conjuntos quaisquer de F é vazia.

Quando F é de forma {A1, A2, . . . An} ou {A1, A2, A3, . . .} a reunião e interseçãode F escreve-se, respectivamente

n⋃i=1

Ai ,n⋂

i=1

Ai ou∞⋃

i=1

Ai ,∞⋂

i=1

Ai.

Também são válidas a identidades de De Morgan. Se os elementos F de F são talque F ⊂ U então [ ⋃

F∈FF

]c

=⋂

F∈FFc e

[ ⋂F∈F

F

]c

=⋃

F∈FFc.

1.1.5 Produto cartesiano

Sejam a e b dois elementos, introduzimos um novo objeto (como conceito nãodefinido) que chamamos par ordenado e denotamos por

(a, b)

onde a é o primeira coordenada e b é a segunda coordenada.

Diremos que dois pares ordenados (a, b) e (c, d) são iguais se, e somente se, suasprimeiras coordenadas são iguais e suas segundas coordenadas também o são. Isto é

(a, b) = (c, d) ⇔ a = c e b = d.

Page 10: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

6 Capítulo 1: Introdução

Definição 1.6. O produto cartesiano dos conjuntos A e B é conjunto A × B dos paresordenados tal que a primeira coordenada está em A e a segunda em B. Assim,

A× B = {(a, b); a ∈ A e b ∈ B}

Definimos, A×∅ = ∅ e ∅× A = ∅.Para o caso A× A também podemos escrever A2. O conjunto dos pares (a, a) ∈ A2

é chamado diagonal de A2.

1.2 Relações de equivalência

Dizemos que um subconjunto R de A2 define uma relação de equivalência em A se

a) (a, a) ∈ R, para todo a ∈ A,

b) (a, b) ∈ R⇒ (b, a) ∈ R,

c) (a, b) ∈ R e (b, c) ∈ R⇒ (a, c) ∈ R,

Em lugar de tratar as relações de equivalência como subconjuntos do produtocartesiano A2 as redefinimos como sendo uma relações binárias em A (isto é, como umarelação entre dois elementos de A). Diremos que a está relacionado com b se (a, b) ∈ R.Desse modo as propriedades acima são reescritas como segue.

Definição 1.7. A relação binária ∼ sobre A, é uma relação de equivalência sobre A se

a) a ∼ a, ∀a ∈ A, (reflexividade)

b) a ∼ b⇒ b ∼ a, (simetria)

c) a ∼ b e b ∼ c ⇒ a ∼ c (transitividade)

As relações de equivalência são de extrema importância. Elas permitem classificarou agrupar elementos de um conjunto A em subconjuntos contendo elementosequivalentes ou relacionados entre eles.

Definição 1.8. Se A é um conjunto e∼ uma relação de equivalência em A, então a classede equivalência de a ∈ A é o conjunto

[a] = {x ∈ A; x ∼ a}.

Outras notações para [a] são: a, Ca ou Aa.

Exemplo 1.2. No conjunto dos inteiros Z definimos a relação ∼ entre dois elementosa, b ∈ Z como

a ∼ b ⇔ a− b é par.

Como a− a = 0 é par, temos a ∼ a. Se a ∼ b então a− b é par. Como −(a− b) = b− aé par, logo b ∼ a. Finalmente, se a ∼ b e b ∼ c, então a − b e b − c são pares.Como a − c = (a − c) + (c − b) é par, obtemos a ∼ c. Portanto, ∼ é uma relaçãode equivalência.

Page 11: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

1.2: Relações de equivalência 7

Note que

[0] = {. . . ,−4,−2, 0, 2, 4, . . .} e [1] = {. . . ,−5,−3,−1, 1, 3, 5, . . .}.

Desse modo, em Z a relação de equivalência ∼ determina exatamente duas classes deequivalência: o conjunto dos pares e dos ímpares.

Exemplo 1.3. Seja T o conjunto dos triângulos do plano e ∼ a relação de semelhançaentre triângulos (isto é, triângulos com ângulos correspondentes iguais). Verifica-seque ∼ é uma relação de equivalência.

Exemplo 1.4. SejaR2 o conjunto formado pelos pontos da forma (x, y). Dois pontos sãorelacionados se eles são equidistantes da origem. É imediato concluir que tal relação éde equivalência. As classes de equivalência são, além da origem, circunferências comcentro na origem.

[(0, 0)] = {(0, 0)} e [(r, 0)] = {(x, y); x2 + y2 = r2}, (r > 0).

Nesses três exemplos, as classes de equivalência decompõem os conjuntos Z, T eR2 em subconjuntos disjuntos. Essa propriedade é a principal caraterística das relaçõesde equivalência.

Definição 1.9. Uma família P de subconjuntos de X é uma partição de X se

1. ∅ /∈ P

2.⋃

A∈PA = X

3. Se A, B ∈ P e A 6= B então A ∩ B = ∅

Exemplo 1.5. Seja X = {a, b, c} então

{{a}, {b}, {c}}, {{a, b}, {c}} e {X}

são exemplos de partições de X. Por outro lado,

{{a, b}, {b}, {c}}, {{a}, {b}} e {X, ∅}

não podem ser partições de X.

Page 12: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

8 Capítulo 1: Introdução

Exemplo 1.6. Todo conjunto não vazio A admite as partições triviais:

P1 = {{a}; a ∈ A} e P2 = {A}.

Proposição 1.4 (Partições e relações de equivalência). Para cada relação de equivalência∼em um conjunto X, o conjunto das classes de equivalência é uma partição de X. Reciprocamente,cada partição P de X induz a relação de equivalência ∼, tal que a ∼ b se, e somente se a, b ∈ Apara algum A ∈ P.

Demonstração. Exercício. �

Definição 1.10. O conjunto das classes de equivalência de uma relação de equivalência∼ em A é chamado conjunto quociente de A respeito a ∼ e é denotado por A/∼.

Exemplo 1.7. No exemplo 1.2, em Z é definida a relação de equivalência: a ∼ b ⇔a− b é par. O conjunto quociente é

Z/∼ = {[0], [1]} ={{. . . ,−4,−2, 0, 2, 4, . . .}, {. . . ,−3,−1, 1, 3, . . .}

}.

Exemplo 1.8. No exemplo 1.6, as partições triviais de A

P1 = {{a}; a ∈ A} e P2 = {A},

induzem, respectivamente, as relações R1 e R2 dadas por

aR1b⇔ a = b e aR2b⇔ a, b ∈ A.

Portanto, os conjuntos quocientes respectivos, são

A/R1 = {{a}; a ∈ A} e A/R2 = {A}.

1.3 Funções

Definição 1.11 (Função). Dados dois conjuntos A e B, uma função f : A → B de A emB é uma relação que a cada elemento x de A lhe faz corresponder um único elementof (x) de B. Costuma-se escrever

f : A→ Bx 7→ f (x)

O conjunto A é chamado domínio de f , B o contradomínio de f e f (x) é o valor quef assume em cada x ∈ A. Desse modo, para definir uma função, são necessários:um domínio A, um contradomínio B e uma regra x 7→ f (x). Quando A e B estãosubentendidos, é costume denotar essa função simplesmente por f .

Duas funções f : A → B e g : M → N são iguais, se e somente se, A = M, B = N ef (x) = g(x) para todo x ∈ A. Denotamos por f = g.

Page 13: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

1.3: Funções 9

Definição 1.12 (Imagem e imagem inversa de um conjunto). Seja X ⊂ A, o conjunto

f (X) = { f (x); x ∈ A}

é a imagem de X por f .Se Y ⊂ B, o conjunto

f−1(Y) = {x ∈ A; f (x) ∈ Y}

é a imagem inversa de Y por f .

Proposição 1.5 (Propriedades da imagem e imagem inversa). Seja f : A → B umafunção. Se X, Y ⊂ A e V, W ⊂ B então,

(a) f (X ∪Y) = f (X) ∪ f (Y),

(b) f (X ∩Y) ⊂ f (X) ∩ f (Y),

(c) X ⊂ Y ⇔ f (X) ⊂ f (Y),

(d) f (∅) = ∅,

(e) f−1(V ∪W) = f−1(V) ∪ f−1(W),

(f) f−1(V ∩W) = f−1(V) ∩ f−1(W),

(g) f−1(Vc) = [ f−1(V)]c,

(h) f−1(B) = A,

(i) f−1(∅) = ∅.

Demonstração. Exercício. Veja o libro de Elon Lima [20]. �

Definição 1.13. Dizemos que uma função f : A→ B é injetiva quando dados quaisquerx, y ∈ A, f (x) = f (y)⇒ x = y; é sobrejetiva quando f (A) = B e é bijetiva se for injetivae sobrejetiva.

Exemplo 1.9. Seja f : A → B, com B contendo mais de um elemento. Fixado umc0 ∈ B, dado por f (x) = c0. Assim definida, f não é sobrejetiva nem injetiva. Exemplosclássicos de funções injetivas são as inclusões i : A → B, i(x) = x, para todo x ∈ A,onde A ⊂ B. As projeções, π1 : A× B→ A, π1(x, y) = x e π2 : A× B→ A, π2(x, y) = ysão os exemplos canônicos de funções sobrejetivas. A função bijetiva mais simples é afunção identidade idA : A→ A, idA(x) = x, para todo x ∈ A.

Definição 1.14 (Composição de funções). Sejam f : A → B e g : C → D duas funçõestal que f (A) ⊂ C então, a composição g ◦ f : A → D de f com g é definida por[g ◦ f ](x) = g( f (x)), para todo x ∈ A.

Page 14: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

10 Capítulo 1: Introdução

Definição 1.15 (Inversa de uma função). Dizemos que uma função f : A→ B tem umainversa se existe g : B→ A tal que

g ◦ f = IdA e f ◦ g = IdB.

Quando existe a inversa de f denotamos ela por g = f−1. Nesse caso, temos

f−1 ◦ f = IdA e f ◦ f−1 = IdB.

Se f : A→ B é bijetiva significa que para cada b de B existe um único a de A tal quef (a) = b. Ou seja, para cada b ∈ B existe um único a ∈ A que denotaremos por g(b).Isso define uma função g : B → A, b 7→ a = g(b), onde a = g(b) ⇔ f (a) = b. Ou seja,g ◦ f = IdA e f ◦ g = IdB. Portanto, mostramos a seguinte proposição:

Proposição 1.6. Uma função f : A→ B possui inversa se, e somente se, é bijetiva.

1.4 Corpos

Definição 1.16. Uma operação binária ∗ sobre um conjunto A é uma regra que a cada par(a, b) ∈ A2 faz corresponder um único a ∗ b ∈ A. Ou seja, é uma função ∗ : A2 → A.

Definição 1.17. Um corpo (K,+, ·) é um conjunto K 6= ∅ junto a duas operaçõesbinarias: + e ·, chamadas respectivamente adição e multiplicação, satisfazendo noveaxiomas,

Axiomas da adição

(A1) Para todo x, y, z ∈ K,

(x + y) + z = x + (y + z),

(A2) Para todo x, y ∈ K,

x + y = y + z,

(A3) Existe 0 ∈ K tal que

x + 0 = x, ∀x ∈ K,

(A4) Para todo x ∈ K, existe −x ∈ K,

x + (−x) = 0.

Axiomas da multiplicação

(M1) Para todo x, y, z ∈ K,

(x · y) · z = x · (y · z),

(M2) Para todo x, y ∈ K,

x · y = y · z,

(M3) Existe 1 ∈ K, 1 6= 0 tal que

x · 1 = x, ∀x ∈ K,

(M4) Para todo x 6=0 em K, existe x−1∈ K,

x · x−1 = 1.

Axioma da distributividade

(D1) Para todo x, y, z ∈ K tem-se x · (y + z) = x · y + x · z.

Observações.

• Os axiomas acima costumam ter nomes próprios: (A1) e (M1) associatividade;(A2) e (M2) comutatividade; em (A3) o elemento neutro 0 é chamado zero; em(M3) o elemento neutro 1 ou identidade multiplicativa é chamada um; (A4) e(M4) garantem, respectivamente, a existência do inverso aditivo (ou simétrico) eo inverso multiplicativo.

Page 15: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

1.4: Corpos 11

• Se x, y ∈ K, então x + y e x · y são chamados, respectivamente, soma e produtode x e y. Muitas vezes, em lugar de x · y, escrevemos simplesmente xy.

• Por (M3) todo corpo possui pelo menos dois elementos distintos, a saber 0 e 1.

• A diferença entre x e y é definida e denotada por x− y := x + (−y). A operação(x, y) 7→ x− y é chamada substração.

• O quociente entre x e y, onde y 6= 0, definimos e denotamos por x/y := xy−1. Aoperação (x, y) 7→ x/y é chamada divisão.

• O uso dos símbolos conhecidos + e ·, para as duas operações binárias do corpo K,e o fato de chamarmos elas de: adição e multiplicação; é apenas por comodidade.Poderíamos ter usado quaisquer outros símbolos; por exemplo: ⊕ e �. A mesmaobservação vale para os símbolos conhecidos 0 e 1.

Exemplo 1.10. O conjunto Z2 = {0, 1} com as operações + e · dadas por

+ 0 10 0 11 1 0

· 0 10 0 01 0 1

é um corpo.

Exemplo 1.11. O conjuntoQ dos racionais com as operações de adição e multiplicaçãousuais é um corpo.

ab+

cd=

ad + bcbd

ab· c

d=

acbd

Exemplo 1.12. O conjunto Q[√

2] = {a + b√

2; a, b ∈ Q} com as operações

(a + b√

2) + (c + d√

2) = (a + c) + (b + d)√

2

(a + b√

2) · (c + d√

2) = (ac + 2bd) + (ad + bc)√

2

é um corpo. Os elementos neutros para cada operação são

0 = 0 + 0√

2 e 1 = 1 + 0√

2.

O simétrico de z = a + b√

2 é −z = −a + (−b)√

2.O inverso de z = a + b

√2 6= 0 é:

z−1 =1

a + b√

2=

aa2 − 2b2 +

(−b)a− 2b2

√2.

Exemplo 1.13 (Conjunto das funções racionais Q(t)). Seja Q[t] o conjunto das funçõespolinomiais com coeficientes racionais. Definimos o conjunto das funções racionais

Q(t) ={

f ; f (t) =p(t)q(t)

, p, q ∈ Q[t], q 6= 0}

Page 16: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

12 Capítulo 1: Introdução

Com as operações

p(t)q(t)

+r(t)s(t)

=p(t)s(t) + q(t)r(t)

q(t)s(t),

p(t)q(t)· r(t)

s(t)=

p(t)q(t)q(t)s(t)

,

onde 0 ∈ Q e 1 ∈ Q são os elementos neutros; − f é o simétrico de f ∈ Q(t),dado por (− f )(t) = − f (t). O inverso multiplicativo f−1 de f 6= 0 é definido por( f−1)(t) = 1/ f (t). Desse modo, Q(t) é um corpo.

Seguem alguns resultados clássicos de corpos

Proposição 1.7. Seja K um corpo e x, y, z ∈ K

(a) Os elementos neutros 0 e 1 são únicos.

(b) Os elementos: simétrico e inverso, são únicos. Isto é, para cada x ∈ K, −x é único, e cadax 6= 0, x−1 é único.

(c) x · 0 = 0, para todo x ∈ K.

(d) x + z = y + z⇒ x = y e

para z 6= 0, x · z = y · z⇒ x = y. (leis de corte)

(e) x · y = 0 ⇒ x = 0 ou y = 0.

(f) (−x) · y = x · (−y) = −(x · y) e (−x) · (−y) = x · y. (regras dos sinais)

Demonstração. Exercício. �

1.5 Corpos ordenados

Definição 1.18. Um corpo ordenado é um corpo K, com as operações + e ·, del tal formaque existe um subconjunto P ⊂ K com as propriedades seguintes:

P1) ∀x, y ∈ P⇒ x + y ∈ P e x · y ∈ P.

P2) ∀x ∈ K ocorre apenas uma das seguintes alternativas:

ou x ∈ P ou x = 0 ou − x ∈ P.

O conjunto P é chamado o conjunto dos elementos positivos de K.Se −P = {−x; x ∈ P}, decorre dos axiomas

K = −P ∪ {0} ∪ P (dois a dois disjuntos).

O conjunto −P é chamado o conjunto dos elementos negativos de K.

Page 17: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

1.5: Corpos ordenados 13

Observações.

• Um corpo ordenado, isto é, um corpo (K,+·) e um conjunto de positivos P ⊂ Ké denotado por: (K,+, ·, P). Quando não houver confusão, um corpo ordenadodenotaremos simplesmente por K.

• Para todo elemento a 6= 0 de um corpo ordenado temos a2 ∈ P.

• Como 1 = 12 ∈ P, segue que num corpo ordenado o elemento 1 é semprepositivo. Em particular, como −1 ∈ −P, em corpos ordenados, ∀a ∈ K, a2 6= −1.

Exemplo 1.14. O corpo Z2 não é ordenado. Se fosse ordenado, existiria P tal que 1 ∈ Pe assim 1 + 1 ∈ P. Mas 1 + 1 = 0 6∈ P. Também o conjunto dos números complexos Cnão pode ser ordenado, pois existe i ∈ C tal que i2 = −1.

Exemplo 1.15. O conjunto dos racionais Q é um corpo ordenado. O conjunto dospositivos é dado por P = {r ∈ Q; r > 0}.Exemplo 1.16. O conjunto das funções racionais Q(t) é um corpo ordenado. Oconjunto dos positivos P é formado pelos elementos p(t)/q(t) ∈ Q(t), distintos de 0,tal que os coeficientes dos termos de maior grau de p e q, têm o mesmo sinal. Verifica-se, sem dificuldade, as propriedades (P1) e (P2). Portanto, Q(t) é um corpo ordenado.

Definição 1.19. Em um corpo ordenado K, definimos as relações

a < b ⇔ b− a ∈ P,a > b ⇔ b < a, (ou a− b ∈ P)a ≤ b ⇔ b < a, ou a = b,a ≥ b ⇔ b > a, ou a = b.

Essas relações são lidas,

a < b : a é menor do que b,a > b : a é maior do que b,a ≤ b : a é menor ou igual do que b,a ≥ b : a é maior ou igual do que b.

Proposição 1.8. A relação de ordem < tem as seguintes propriedades:

(O1) Transitividade. x < y e y < z ⇒ x < z.

(O2) Tricotomia. Se x, y ∈ K, apenas uma das seguinte alternativas ocorre

ou x < y ou x = y ou x > y

(O3) Monotonicidade da adição ∀z ∈ K, x < y ⇒ x + z < y + z.

(O4) Monotonicidade da multiplicação.

∀z > 0, x < y ⇒ xz < yz, e ∀z < 0, x < y ⇒ xz > yz.

Demonstração. Exercício. �

Fazendo as mudanças adequadas, resultados análogos podem ser enunciados paraas outras três relações: ≤, ≥ e >.

Page 18: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

14 Capítulo 1: Introdução

1.5.1 Corpos ordenados são infinitos

Uma consequência muito importante da definição de corpo ordenado é que elessão necessariamente infinitos e contêm de modo natural (a menos de isomorfismo) oconjunto dos números naturais N.

Seja K um corpo ordenado e P seu conjunto de números positivos. Sabemos que1 ∈ P. Como 1− 0 = 1 ∈ P, por definição, podemos escrever

1 > 0

Usando a monotonicidade da adição obtemos

0 < 1 < 1 + 1 < 1 + 1 + 1 < 1 + 1 + 1 + 1 < · · ·

Note queN = {1, 1+1, 1+1+ 1, 1+1+1+1, . . .},

e um conjunto infinito (verifique isso!). Como N ⊂ K, então o corpo ordenado Ké necessariamente infinito. Não é difícil ver que a aplicação ϕ : N → N dada porϕ(n) = 1 + · · ·+ 1 (n vezes) é uma bijeção. Pode-se provar ainda que as operações deN são preservadas por ϕ. Isto é, ϕ(n + m) = ϕ(n) + ϕ(m) e ϕ(nm) = ϕ(n)ϕ(m) (nessecaso, dizemos que ϕ é um isomorfismo ou homomorfismo bijetivo). Isso mostra quetodo corpo ordenado contém o subconjunto ϕ(N) = N , que é identificado com N.

1.5.2 Intervalos de um corpo K

Em corpo ordenado K, onde a, b ∈ K e a < b, definem-se os seguintes conjuntoschamados intervalos (de extremos a e b)

[a, b] = {x ∈ K; a ≤ x ≤ b} ( intervalo fechado)[a, b) = {x ∈ K; a ≤ x < b} ( intervalo fechado à esquerda)(a, b] = {x ∈ K; a < x ≤ b} ( intervalo fechado à direita)(a, b) = {x ∈ K; a < x < b} ( intervalo aberto)

Os quatro intervalos, de extremos a e b, são limitados (veja a definição 1.21). Temosmais cinco possibilidades:

(−∞, b] = {x ∈ K; x ≤ b} ( interv. ilimitado fechado à direita)(−∞, b) = {x ∈ K; x < b} ( interv. ilimitado aberto à direita)[a,+∞) = {x ∈ K; a ≤ x} ( interv. ilimitado fechado à esquerda)(a,+∞) = {x ∈ K; a < x} ( interv. ilimitado aberto à esquerda)

(−∞,+∞) = K

Se a = b, temos [a, b) = (a, b] = (a, b) = ∅ e [a, b] = {a}. Neste último caso, dizemosque [a, a] é um intervalo degenerado.

Todo intervalo com extremos a < b (ou ilimitado) é infinito (usando x < x+y2 < y).

Page 19: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

1.6: Supremo e ínfimo de um conjunto 15

1.5.3 Valor absoluto

Definição 1.20. Em um corpo ordenado K, definimos o valor absoluto de x ∈ K como

|x| ={

x, se x ≥ 0−x, se x < 0

Da definição, |x| = x ≥ 0 ou |x| = −x > 0. Portanto, |x| ≥ 0 para todo x ∈ K.Note que, |x| = x (se x ≥ 0) ou |x| = −x > x (se x < 0). Ou seja, |x| = max{x,−x}.

Proposição 1.9. Se K é um corpo ordenado e x, a ∈ K.

−a ≤ x ≤ a ⇔ |x| ≤ a.

Demonstração. Exercício. �

Resultado análogo vale para <.

Corolário 1.1. Se a, x, ε ∈ K

x ∈ (a− ε, a + ε) ⇔ a− ε < x < a + ε ⇔ |x− a| < ε.

Proposição 1.10 (Propriedades do valor absoluto). Seja K um corpo ordenado. Se x, y, z ∈K então

(i) |x + y| ≤ |x|+ |y|; (desigualdade triangular)

(ii) |x · y| = |x| · |y|;

(iii) |x| − |y| ≤∣∣|x| − |y|∣∣ ≤ |x− y|;

(iv) |x− z| ≤ |x− y|+ |y− z|.Demonstração. Exercício. �

1.6 Supremo e ínfimo de um conjunto

1.6.1 Subconjuntos limitados de um corpo

Definição 1.21. Dizemos que um subconjunto X de um corpo ordenado K é limitadosuperiormente se existe b ∈ K tal que x ≤ b para todo x ∈ X. O elemento b ∈ K é cotasuperior de X. Analogamente, X é limitado inferiormente se existe a ∈ K tal que a ≤ x. Oelemento a é dito, uma cota inferior de X. Diz-se que X é limitado se é limitado inferiore superiormente. Cotas superiores ou inferiores não são necessariamente únicas.

Exemplo 1.17. O conjunto dos naturais N como subconjunto do corpo ordenado Q élimitado inferiormente e não é limitado superiormente. Qualquer subconjunto finitode um corpo é limitado. Os intervalos com extremos a, b ∈ K também são limitados.

Exemplo 1.18 (N como subconjunto Q(t) é limitado). No exemplo anterior, osubconjunto dos naturais, como subconjunto do corpo dos racionais, não é limitadosuperiormente. Entretanto, o conjunto dos naturais N como subconjunto do corpo dasfunções racionais Q(t) é limitado. Uma cota inferior é 0 e uma cota superior é t (veja oexemplo 1.23).

Page 20: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

16 Capítulo 1: Introdução

1.6.2 Supremo e ínfimo

Definição 1.22 (Supremo). Seja K um corpo ordenado e X ⊂ K limitado superiormente.Dizemos que um elemento β ∈ K é supremo de X (denotado por β = sup X) se é amenor das cotas superiores.

Ou seja, β é supremo de X se:

(S1) x ≤ β, ∀x ∈ X

(S2) Se ∃c ∈ K tal que x ≤ c, ∀x ∈ X, então β ≤ c.

A condição (S2) pode ser reescrita como:Se c < β então c não é cota superior de X. Isto é, se c < β então ∃x ∈ K tal que c < x.

Analogamente, definimos

Definição 1.23 (Ínfimo). Seja K um corpo ordenado e X ⊂ K limitado inferiormente.Dizemos que um elemento α ∈ K é chamado ínfimo de X (denotado por α = inf X) se éa maior das cotas inferiores.

Assim, α é ínfimo de X se

(I1) α ≤ x, ∀x ∈ X

(I2) Se ∃c ∈ K tal que c ≤ x, ∀x ∈ X, então c ≤ α.

A condição (I2) pode ser reescrita como:Se α < c então c não é cota inferior de X. Isto é, se α < c então ∃x ∈ K tal que x < c.

Exemplo 1.19. Seja F = {x1, x2, . . . , xn} subconjunto de um corpo ordenado K. Nestecaso, o ínfimo e supremo de F é, respectivamente, o menor e maior elemento de F,

inf F = min F e sup F = max F.

Em particular, inf F ∈ F e sup F ∈ F.

Exemplo 1.20. Seja X = {1/n; n ∈ N} subconjunto do corpo dos racionais Q, então

inf X = 0 e sup F = 1.

O elemento 0 é cota inferior de X, pois 0 ≤ 1/n, ∀n ∈ N. Resta verificar que 0 é amaior das cotas inferiores. Para isto, usamos o fato de N ser ilimitado superiormenteem Q (veja o exemplo 1.22). Seja c > 0, então existe n ∈ N tal que n > 1/c. Logo,0 < 1/n < c. Isto é, existe 1/n ∈ X maior do que c. Assim, inf X = 0. Observe queinf X /∈ X. O outro caso, sup X = 1, é de verificação imediata.

Nos exemplos acima o ínfimo e supremo existem, no sentido de o ínfimo e osupremo serem elementos do corpo ordenado. Pode acontecer de eles não existirem.

Exemplo 1.21 (Não existência de supremo). Seja A = {x ∈ Q; x > 0 e x2 < 2}

A é limitado superiormente. Afirmamos que, ∀x ∈ A, x ≤ 2. De fato, se existissealgum y ∈ A tal que y > 2 então y2 > 4. Nesse caso, y /∈ A, o que é absurdo.

Afirmamos que

Page 21: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

1.7: Corpos arquimedianos 17

não existe o supremo de A (em Q).

De fato, suponha que existe c = sup A em Q. Por tricotomia temos uma das seguintespossibilidades:

ou c2 < 2 ou c2 > 2 ou c2 = 2.

• Suponha que c2 < 2. Seja d ∈ Q o positivo dado por d =12

min{

2− c2

2c + 1, 1}

.

Em particular,

d ≤ 2− c2

2(2c + 1)e d ≤ 1

2. De onde, d(2c + 1) ≤ 2− c2

2< 2− c2 e d2 ≤ d

2< d.

Portanto, d2 < d e d(2c + 1) < 2− c2.

Seja y = c + d. Mostraremos que y ∈ A. De fato,

y2 = c2 + 2cd + d2 < c2 + 2cd + d = c2 + d(2c + 1) < c2 + (2− c2) = 2

Assim, existe y ∈ A tal que y = c + d > c = sup A. Tal contradição nos diz que nãoexiste um supremo c ∈ Q de A tal que c2 < 2.

• Suponha que c2 > 2. Seja d =c2 − 2

2cum racional positivo. Logo c2 − 2cd = 2

Se β = c− d, mostraremos que β é uma cota superior de A. De fato,

β2 = c2 − 2cd + d2 > c2 − 2cd = 2. Ou seja, β2 > 2.

Afirmamos que β ≤ x, ∀x ∈ A. Caso contrário, existiria y ∈ A tal que y > β. Logoy2 > β2 > 2. Ou seja y /∈ A. O que é absurdo.

Desse modo, β é uma cota superior A, menor do que o supremo de A. Pois,β = c− d < c. Tal contradição, implica que não pode existir supremo de A, c ∈ Q, talque c2 > 2.• O terceiro caso, c2 = 2, também é impossível. Existe o seguinte resultado conhecido:

não existe r ∈ Q tal que r2 = 2 (veja o Lema 5.1).

Concluímos, portanto, que não existe o supremo de A em Q.

1.7 Corpos arquimedianos

Na seguinte definição, N denota o conjunto clássico dos naturais.

Definição 1.24. Um corpo ordenado K é arquimediano se, para todo cada x ∈ K existen ∈ N tal que

x <

n vezes︷ ︸︸ ︷1 + 1 + · · ·+ 1

Observação. Como todo corpo ordenado contém um subconjunto isomorfo a N, semperda de generalidade, denotaremos tal subconjunto de K por N. Assim, teríamosn = 1 + 1 + · · · + 1 (n vezes). Com isso, podemos dizer que: um corpo ordenado K éarquimediano, se, e somente se, o conjunto dos naturais N ⊂ K é ilimitado superiormente.

Page 22: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

18 Capítulo 1: Introdução

Proposição 1.11 (Propriedade arquimediana). As seguintes propriedades num corpoordenado arquimediano K são equivalentes:

(i) N ⊂ K é ilimitado superiormente;

(ii) dados a, b ∈ K, com a > 0, existe n ∈ N tal que n · a > b;

(iii) para cada a > 0 de K, existe n ∈ N tal que 0 <1n< a.

Demonstração.

(i)⇒(ii) Sendo a > 0, por (i), existe n ∈ N tal que n > b/a. Ou seja, n · a > b.

(ii)⇒(iii) Em (ii) fazemos b = 1, obtemos n · a > 1, isto é,1n< a. Logo, 0 <

1n< a.

(iii)⇒(i) Para todo a ≤ 0 existe 1 ∈ N tal que a < 1. Se a > 0 então1a> 0. Por (iii) existe

n ∈ N tal que1n<

1a

. Portanto, n > a. Isto é, N é ilimitado superiormente em K.

Exemplo 1.22. O conjunto dos números racionais Q é arquimediano, pois o conjuntodos naturais N ⊂ Q é ilimitado superiormente.

Exemplo 1.23 (conjunto não arquimediano). O corpo ordenado das funções racionaisQ(t) não é arquimediano. Com efeito, o conjunto dos naturais em Q(t) é limitadosuperiormente. Para todo n ∈ N, existe f ∈ Q(t) dado por f (t) = t tal que n < f .Lembrando que n < f se, e somente se, f − n ∈ P (veja o exemplo 1.16). Note que ocoeficiente de maior grau de t− n é 1.

1.8 Corpo ordenado e completo

No Exemplo 1.21 vimos que o corpo ordenado Q contém um subconjunto Alimitado superiormente, porém, não existe sup A no corpo Q. Se pretendemostrabalhar com corpos ordenados, de tal forma que todos seus conjuntos limitadossuperiormente possuam supremo no corpo, precisamos definir um corpo ordenadoespecial com essa propriedade.

Definição 1.25. Um corpo ordenado K é chamado corpo ordenado completo, se todosubconjunto não-vazio de K limitado superiormente possui supremo em K.

Exemplo 1.24. Com essa definição e o Exemplo 1.21, concluímos que o corpo ordenadoQ não é completo.

Proposição 1.12. Todo corpo ordenado completo e arquimediano.

Page 23: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

1.9: Exercícios 19

Demonstração. Seja K um corpo ordenado completo. Suponha que K não éarquimediano, então o conjunto N ⊂ K é limitado superiormente. Afirmamos queN não possui supremo em K. De fato, suponha que existe β = supN. Logo, n + 1 ≤ βpara todo n ∈ N (pois n + 1 ∈ N) o que implica que n ≤ β− 1 para todo n ∈ N. Istoé, β− 1 é cota superior de N. Ou seja, existe uma cota superior de N menor do que osupremo de N, o que é absurdo.

Assim, num corpo não-arquimediano K o conjunto N ⊂ K, que é limitadosuperiormente, não possui supremo em K. Portanto, K não é completo. Essacontradição demonstra a proposição. �

Ainda não demos um exemplo concreto de um corpo ordenado e completo. Apenasestamos mostrando algumas consequências ou propriedades que esse tipo de conjuntodeveria ter. Normalmente, a existência do conjunto dos números reais R é aceito comoaxioma. Em particular, aceita-se que R tem a propriedade do supremo. Tambémconhecido como Axioma do supremo. Desse modo, a rigor, não podemos afirmarque realmente exista um corpo ordenado completo. Os próximos capítulos, serãodedicados justamente a demonstrar que esse tipo de conjunto, de fato, existe. Seráum longo caminho (pois antes devemos passar pelos, naturais, inteiros e racionais).Demonstraremos ainda que (a menos de isomorfismo) esse conjunto (o conjunto dosreais) é único.

1.9 Exercícios

1. Demonstre as propriedades de reunião e interseção da Proposição 1.2.

2. Demonstre as propriedades do complementar da Proposição 1.3.

3. Demonstre a Proposição 1.4 sobre partições e relações de equivalência.

4. Seja R uma relação em um conjunto M, tal que

(i) Se aRb, então bRa.

(ii) Se aRb e bRc, então aRc.

(iii) Para todo a ∈ M, existe b ∈ M tal que aRb.

Prove que R é uma relação de equivalência.

5. Demonstre a Proposição 1.5, sobre a imagem e imagem inversa de uma função.

6. Demonstre a Proposição 1.7 sobre propriedades dos corpos.

7. Sex1

y1=

x2

y2= . . . =

xn

ynnum corpo K, prove que, dados a1, . . . , an ∈ K tais que

a1y1 + . . . anyn 6= 0, tem-sea1x1 + . . . anxn

a1y1 + . . . anyn=

x1

y1.

8. Sejam K, L corpos. Uma função f : K → L chama-se um homomorfismo quandose tem f (x + y) = f (x) + f (y) e f (x.y) = f (x). f (y), quaisquer que sejamx, y ∈ K.

Page 24: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

20 Capítulo 1: Introdução

(a) Dado um homomorfismo f : K → L, prove que f (0) = 0.

(b) Prove também que,

ou f (x) = 0 para todo x ∈ K, ou então f (1) = 1 e f é injetiva.

9. Num corpo ordenado K, se a ∈ K e a 6= 0, então a2 > 0.

10. Seja K um corpo ordenado com identidade multiplicativa u. Mostre que oconjunto

{u < u + u < u + u + u < u + u + u + u < · · · }é infinito e , portanto, K é infinito.

11. Num corpo ordenado K, prove que: a2 + b2 = 0⇔ a = b = 0.

12. Todo corpo ordenado contém um subconjunto isomorfo ao conjunto dos naturais.

13. Sejam X um conjunto qualquer e K um corpo. Indiquemos com F (X; K) oconjunto de todas as funções f : X → K. Definamos em F (X; K) as operaçõesde adição e de multiplicação de modo natural: dadas f , g : X → K, as funçõesf + g : X → K e f · g : X → K são dadas por ( f + g)(x) = f (x) + g(x) e( f · g)(x) = f (x) · g(x). Verifique quais axiomas de corpo são válidos e quais nãosão válidos no conjunto F (X; K), relativamente a essas operações.

14. Se n ∈ N e x < 1 num corpo ordenado K, prove que (1− x)n ≥ 1− nx.

15. Demonstre as propriedades de ordem da Proposição 1.8.

16. Demostre as propriedades do valor absoluto da Proposições 1.9 e 1.10.

17. Prove por indução que, dados x1, . . . , xn num corpo ordenado K, tem-se

|x1 + · · ·+ xn| ≤ |x1|+ · · ·+ |xn| e |x1 · x2 · · · xn| = |x1| · |x2| · · · |xn|.

18. Mostre que todo intervalo com extremos a < b (ou ilimitado) é infinito.

Page 25: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

Capítulo 2

Os Números Naturais

2.1 O conceito de número

Os algarismos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 0 são, atualmente, de uso tão amplo ecomum, que, conhecê-los e saber usá-los aparenta ser uma aptidão inata dos humanos.Entretanto, historicamente, sabemos que o conceito de número é uma abstração damente humana. Tiveram que passar muitos milênios até os primeiros humanosperceberem que há "algo comum" num conjunto de: sete pessoas; de sete dias; de seteárvores; sete meses; etc. No caso, a ideia ou conceito abstrato desse "algo comum"é oque representamos pelo símbolo: 7. Nas palavras de Georges Ifrah no seu livro: Osnúmeros [15], cuja leitura recomendamos,

". . . No entanto, o fato é certo: houve um tempo em que o ser humano não sabia contar. . . "

Houve um tempo em que o número era apenas sentido. Ainda existem tribos que sótêm dois nomes próprios para números (um, dois e . . . muitos). Outros para se referirao três ou quatro, usam algo como: dois-um e dois-dois. Para um número maior aesses, usam termos como: muitos. Para eles, o número não é concebido como algoabstrato, para eles, é sentido e percebido, como se fosse um cheiro, uma cor ou umsom. Nos humanos, existe uma aptidão natural que é a percepção ou sensação numérica,(por exemplo, algo ser menor ou maior) que não pode ser confundida com a capacidadeabstrata de contar, a qual constitui uma faculdade bem recente da humanidade.

Embora o conjunto dos naturais, N = {1, 2, 3, . . .}, intuitivamente, pareça serbem simples de concebê-lo, faz-se necessário formalizar sua definição, de tal formaque a partir dele seja possível construir praticamente quase toda a matemática queconhecemos.

Para tal formalização, diversos matemáticos se debruçaram. Destaca-se a realizadapelo italiano Giuseppe Peano em 1889 em Arithmetices principia, nova methodo exposita(uma tradução pode ser achada em [24]) e também o trabalho de Dedekind [8].

21

Page 26: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

22 Capítulo 2: Os Números Naturais

2.2 Definição axiomática dos Naturais

O conjunto dos números naturais N e todas suas propriedades podem serdeduzidos a partir de alguns postulados, conhecidos como Axiomas de Peano. Paraesta seção podem ser consultados os livros de Halmos [13] e E. Lima [19], [20].

2.2.1 Axiomas de Peano

Assumimos o conjunto dos naturais, N, como um objeto não definido, onde seuselementos são chamados números naturais, gozando dos seguintes axiomas:

(P1) 1 é um número natural

(P2) Se n é um natural, então seu sucessor s(n) também é um natural.

(P3) O natural 1, não é sucessor de nenhum outro natural.

(P4) Se dois naturais m e n têm o mesmo sucessor, isto é, s(m) = s(n), então m = n.

(P5) (Princípio de Indução) Seja X ⊂ N, tal que

• 1 ∈ X e

• se n ∈ X então o sucessor s(n) ∈ X.

Então X = N.

No trabalho original de Peano de 1889 [24] foram considerados, além dos cincoaxiomas, outros quatro sobre a relação de igualdade. Três, indicando que a igualdade"=" é uma relação de equivalência ( x = x; x = y ⇒ y = x; x = y e y = z⇒ x = z). Euma quarta, afirmando que, se x ∈ N e x = y então y ∈ N. Deixar de colocá-los na listaacima não atrapalha em nada na definição de N. Nos livros de Elon Lima [19] e [20] aoinvés dos cinco axiomas acima, são apresentados três axiomas, a qual coincide com aproposta de Dedekind [8]. De qualquer forma esses axiomas, seja na forma de Peanoou a de Dedekind, são equivalentes.

Observações. Seguem algumas observações importantes sobre os Axiomas de Peano.

• No momento de definir o conjunto dos naturais pelos axiomas de Peano, fomoslogo utilizando a notação N. O que pode nos induzir a pensar que estamostrabalhando com o conjunto {1, 2, 3, . . .} (que costumamos denotar por N) e queos axiomas apenas descrevem N. Não é esse o caso. Neste momento deveríamosesquecer que se trata do conhecido {1, 2, 3, . . .}. Devemos ter em conta queapenas estamos tomando emprestado o símbolo N por conveniência.

• O axioma (P1) diz que N 6= ∅. Assim, a única certeza que temos sobre N, é queele deve conter pelo menos um elemento, que denotamos por 1. Poderíamos terusado qualquer outro símbolo. O resto dos números, deve ser induzido a partirdos axiomas (ou regras do jogo).

Page 27: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

2.2: Definição axiomática dos Naturais 23

• (P2) define uma função s : N → N tal que a cada n ∈ N lhe associa s(n) ∈ Nchamado sucessor de n. Observe que nada foi dito sobre como opera a função s.

• O axioma (P4) afirma que s é injetiva. Assim, sabemos que cada elemento temapenas um

• O axioma (P3) diz que s não é sobrejetiva (note que s(N) 6= N).

• Os quatro primeiros axiomas implicam que

X = {1, s(1), s(s(1)), s(s(s(1))), . . .} ⊂ N

• X é infinito e, portanto, N também é infinito. (prove isto!)

• Sabemos que X (acima definido) está contido em N. A princípio, o conjunto denaturais N poderia conter elementos que não estão em X. Mas, o axioma (P5)nos garante que na verdade, X = N. Como isso, agora sabemos, como são oselementos de N. Além do 1, qualquer outro natural é sempre sucessor de algumnatural. Veja o Teorema 2.1

• Será que existe algum outro conjunto distinto de N gozando dos axiomas dePeano? A resposta é: qualquer outro conjunto gozando dos Axiomas de Peano éisomorfo a N. Não demonstraremos isso aqui. Provas disso podem ser achadasna literatura, veja [25]. Portanto, podemos assumir que N é único.

2.2.2 Princípio de Indução

O Princípio de Indução algumas vezes é enunciado como segue,

Suponha que P é alguma propriedade ou predicado sobre naturais, tal que

• P(1) é verdadeiro

• se P(n) ser verdadeiro, implica que P(s(n)) também é verdadeiro.

Então, P(n) é verdadeiro para todo n ∈ N.

Qualquer demonstração, usando esse princípio é chamada: demonstração porindução. Quando for definida a operação soma em N o s(n) será trocado por n + 1.

Teorema 2.1. Se n ∈ N então, n = 1 ou ∃m ∈ N tal que n = s(m).

Demonstração. Seja

A = {n ∈ N; n = 1 ou ∃m ∈ N, n = s(m)} = {n ∈ N; n = 1 ou n é um sucessor}.

Por definição de A, 1 ∈ A. Suponha que n é um sucessor, isto é, n = s(m) para algumn ∈ N. Como s(n) = s(s(m)), segue que s(n) é sucessor de s(m). Ou seja, se n ∈ Aentão s(n) ∈ A. Pelo princípio de indução, A = N. �

Page 28: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

24 Capítulo 2: Os Números Naturais

Corolário 2.1. Se n ∈ N e n 6= 1 então, existe um único m ∈ N tal que n = s(m).

Demonstração. Se n ∈ N e n 6= 1, o teorema 2.1 implica que existe m ∈ N tal quen = s(m). Para a unicidade de m, suponha que existe m′ ∈ N tal que n = s(m′). Peloaxioma (P4), s é injetiva, portanto, m = m′. �

O corolário acima, permite definir o antecessor ou predecessor de um natural n 6= 1como sendo o único natural m tal que n = s(m).

2.3 Operações de adição e multiplicação em NAntes de definirmos as operações paraN explicamos o que entendemos por iteração.Dada uma função f : X → X suponha que a cada n ∈ N lhe corresponde uma única

função f n : X → X, tal que

f 1 = f e f s(n) = f ◦ f n.

A função f n é chamada a n-ésima iterada de f .A n-ésima iterada da função s : N→ N ficaria

s1 = s e ss(n) = s ◦ sn. (1)

2.3.1 A Adição em NDefinição 2.1 (Adição em N). Seja s : N→ N a função dada pelo axiomas de Peano.

Dados m, n ∈ N, sua soma m + n ∈ N é definida por

m + n := sn(m)

A definição diz que somar m com n é tomar o natural m e iterá-la n vezes. Dadefinição de soma e (1) temos,

m + 1 = s1(m) = s(m).

Essa igualdade nos indica que a notação do sucessor de m, s(m), pode ser substituídapela notação m + 1. Ainda da definição 2.1 e (1) temos

m + s(n) = ss(n)(m) = (s ◦ sn)(m) = s(sn(m)) = s(m + n).

Desse modo, obtemos duas importantes igualdades que utilizaremos diversas vezes,

m + 1 = s(m), (2)m + s(n) = s(m + n). (3)

O Teorema 2.1 diz que qualquer natural ou é 1 ou é o sucessor s(n) de algum n ∈ N.Desse modo, as equações (2) e (3), na verdade, são as regras de como devemos somarum número m com qualquer outro natural arbitrário. Muitos autores definem a somade dois naturais pelas equações (2) e (3).

A igualdade (3), usando (2), é equivalente a escrever

m + (n + 1) = (m + n) + 1 (4)

Essa equação não permitirá demonstrar que a adição é associativa.

Page 29: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

2.3: Operações de adição e multiplicação em N 25

Proposição 2.1 (Associatividade). Para todo m, n, p ∈ N,

m + (n + p) = (m + n) + p.

Demonstração. Seja, X = { p ∈ N; ∀m, n ∈ N, m + (n + p) = (m + n) + p }.Demonstramos por indução em p.

• Por (4), 1 ∈ X.

• Suponha que p ∈ X, provaremos que s(p) ∈ X.

Usando a hipótese m + (n + p) = (m + n) + p e (3),

m+(n+ s(p)) = m+ s(n+ p) = s(m+(n+ p)) = s((m+n)+ p) = (m+n)+ s(p).

Assim, s(p) ∈ X. Segue, do princípio de indução, que X = N. Ou seja,m + (n + p) = (m + n) + p, para todo m, n, p ∈ N.

Para demonstrar que a adição goza da propriedade da comutatividade mostramosum lema.

Lema 2.1. Para todo m ∈ N, m + 1 = 1 + m.

Demonstração. Seja Y = {m ∈ N; m + 1 = 1 + m}. De 1 + 1 = 1 + 1, temos 1 ∈ Y.Suponha que m ∈ Y. Ou seja, m + 1 = 1 + m. Usando (3), s(m) + 1 = s(m + 1) =s(1 + m) = 1 + s(m). Assim, s(m) ∈ Y. Pelo princípio de indução, Y = N. �

Proposição 2.2 (Comutatividade). Para todo m, n ∈ N,

m + n = n + m.

Demonstração. Seja,

X = {n ∈ N; ∀m ∈ N, m + n = n + m}.

Demonstraremos por indução em n.

• Pelo Lema 2.1, m + 1 = 1 + m. Assim, 1 ∈ X.

• Suponha que n ∈ X, provaremos que s(n) ∈ X.

Usando (3), a hipótese de indução m + n = n + m, (2), o Lema 2.1 e aassociatividade,

m + s(n) = s(m + n) = s(n + m) = n + s(m)

= n + (m + 1) = n + (1 + m) = (n + 1) + m= s(n) + m.

Assim, s(n) ∈ X. Segue, do princípio de indução, que X = N.Ou seja, m + n = n + m, para todo m, n ∈ N.

Page 30: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

26 Capítulo 2: Os Números Naturais

Proposição 2.3 (Lei do corte da adição). Para m, n ∈ N,

m + n = m + p =⇒ n = p.

Demonstração. Seja,

X = {m ∈ N; m + n = m + p⇒ n = p}

para quaisquer n, p ∈ N. Demonstraremos por indução em m.

• 1 ∈ X. De fato, da injetividade de s e comutatividade,

1 + n = 1 + p⇒ n + 1 = p + 1⇒ s(n) = s(p)⇒ n = p.

• Suponha que m ∈ X, provaremos que s(m) ∈ X.

Usando a comutatividade, (3), a injetividade de s e a hipótese de indução,

s(m) + n = s(m) + p⇒ n + s(m) = p + s(m)

⇒ s(n + m) = s(p + m)

⇒ n + m = p + m⇒ m + n = m + p⇒ n = p.

O que mostra que s(m) ∈ X.

Pelo princípio de indução, X = N. A proposição está provada. �

Proposição 2.4 (Tricotomia). Para m, n ∈ N, apenas uma e somente uma alternativa é valida:

(i) ou m = n;

(ii) ou existe p ∈ N tal que m = n + p;

(iii) ou existe q ∈ N tal que n = m + q

Demonstração. Exercício. �

2.3.2 A multiplicação em NIntuitivamente, o produto m · n é somar m vezes o mesmo número n.

Definição 2.2 (Multiplicação em N). O produto de dois números é definido por

m · 1 = m, (5)m · s(n) = m · n + m (6)

Page 31: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

2.3: Operações de adição e multiplicação em N 27

Essas duas equações, são as regras para multiplicar um natural m com qualqueroutro natural que, pelo Teorema 2.1, ou é 1 ou é um sucessor s(n) de algum n ∈ N.

Proposição 2.5 (Distributividade). Para todo m, n, p ∈ N, m · (n + p) = m · n + m · p.

Demonstração. Seja X = { p ∈ N; ∀m, n ∈ N, m · (n + p) = m · n + m · p }.

• 1 ∈ X. De fato, de (5) e (6) obtemos m · (n + 1) = m · n + m · 1.

• Suponha que p ∈ X. Provaremos que s(p) ∈ X.

Usando a hipótese de indução m · (n + p) = m · n + m · p, a associatividade ecomutatividade da adição, e (6), temos

(m + n) · s(p) = (m + n) · p + (m + n)= (m · p + n · p) + (m + n)= m · p + (n · p + m) + n= m · p + (m + n · p) + n= (m · p + m) + (n · p + n)= m · s(p) + n · s(p).

Assim, s(p) ∈ X.

Segue do princípio de indução que X = N. O que prova a proposição. �

Proposição 2.6 (Associatividade). Para todo m, n, p ∈ N, m · (n · p) = (m · n) · p.

Demonstração. Seja X = { p ∈ N; ∀m, n ∈ N, m · (n · p) = (m · n) · p }.

• 1 ∈ X. De fato, usando (5) temos m · (n · 1) = m · n = (m · n) · 1.

• Suponha que p ∈ X. Provaremos que s(p) ∈ X.

Usando (6), a hipótese de indução m · (n · p) = (m · n) · p e a distributividade,

m · (n · s(p)) = m · (n · p + n)= m · (n · p) + m · n= (m · n) · p + m · n= (m · n) · s(p).

Assim, s(p) ∈ X.

Segue do princípio de indução que X = N. O que prova a proposição. �

Proposição 2.7 (Lei de corte do produto). Para m, n, p ∈ N, m · p = n · p⇒ m = n.

Demonstração. Seja X = { p ∈ N; ∀m, n ∈ N, m · p = n · p⇒ m = n }.

• 1 ∈ X. De fato, por (5) temos m · 1) = n · 1⇒ m = n.

Page 32: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

28 Capítulo 2: Os Números Naturais

• Suponha que p ∈ X. Provaremos que s(p) ∈ X.

Usando (6), a hipótese de indução m · (n · p) = (m · n) · p e a lei de corte da adição,

m · s(p) = n · s(p)⇒ m · p + m = n ·+n⇒ m · p + m = m · p + n⇒ m = n.

Assim, s(p) ∈ X.

Pelo princípio de indução, X = N. A proposição está provada. �

2.4 Relação de ordem em NDefinição 2.3. Sejam m, n ∈ N, dizemos que m é menor do que n, o que denotamos por

m < n,

se, e somente se, existe p ∈ N tal que n = m + p.

Proposição 2.8 (Propriedades da relação de ordem). Sejam m, n, p ∈ N. A relação < temas seguintes propriedades

(1) Transitividade. m < n e n < p⇒ m < p.

(2) Tricotomia. Dados m, n ∈ N, uma e apenas uma das seguintes alternativas é valida

ou m = n ou m < n ou n < m.

(3) Monotonicidade da adição. m < n⇒ m + p < n + p, para todo p ∈ N.

(4) Monotonicidade da multiplicação. m < n⇒ m · p < n · p, para todo p ∈ N.

Demonstração.

(1) Existem r1, r2 ∈ N tal que m + r1 = n e n + r2 = p. Assim, existe (r1 + r2) ∈ N talque m + (r1 + r2) = (m + r1) + r2 = n + r2 = p. Portanto, m < p.

(2) Segue imediatamente da Proposição 2.4.

(3) Existe q ∈ N tal que m + q = n,

(m + p) + q = (m + q) + p = n + p. Ou seja, m + p < n + p.

(4) Existe q ∈ N tal que m + q = n,

m · p + q · p = (m + q) · p = n · p. Portanto, m · p < n · p.

Page 33: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

2.5: Conjuntos finitos e infinitos 29

2.5 Conjuntos finitos e infinitos

Definição 2.4. Para cada n ∈ N definimos o conjunto In como

In = {1, 2, . . . , n}

Definição 2.5 (conjunto finito). Dizemos que um conjunto X é finito quando for vazioou, para algum n ∈ N, existir uma bijeção

ϕ : In → X,

Se X = ∅ dizemos que X tem zero elementos. Se existir uma bijeção com In dizemosque X tem n elementos.

Um conjunto X que não é finito é chamado infinito.Enunciamos alguns resultados sobre conjuntos finitos (sem demonstração).

Proposição 2.9. Se X é finito e Y ⊂ X então Y é finito

Proposição 2.10. Se X e Y é finito, então X ∪Y é finito.

Proposição 2.11. Se X e Y são finitos, então X×Y é finito.

2.6 Conjuntos enumeráveis e não-enumeráveis

Definição 2.6. Dizemos que um conjunto X é enumerável se for finito ou então existiruma bijeção ϕ : N→ X.

Quando o conjunto enumerável X não é finito, dizemos que é um conjunto infinitoenumerável. Um conjunto X que não for enumerável é dito não-enumerável.

Exemplo 2.1. A bijeção f : N → P, f (n) = 2n, mostra que o conjunto P dos númerosnaturais pares é infinito enumerável. Analogamente, g : N → I, g(n) = 2n − 1define uma bijeção de N sobre o conjunto I dos números ímpares, o qual é, portanto,enumerável.

Exemplo 2.2. O conjunto Z dos números inteiros é enumerável, pois a função h : Z→N definida por h(n) = 2n, quando n é positivo e h(n) = −2n + 1 quando n é negativoou zero, é um bijeção.

Proposição 2.12. Todo subconjunto X ⊂ N é enumerável.

Demonstração. Se X é finito nada há para demonstrar. Caso contrário,enumeramos os elementos de X pondo x1 = menor elemento de X, e supondodefinidos x1 < x2 < . . . < xn, escrevemos An = X − {x1, . . . , xn}. Observandoque An 6= ∅, pois X é infinito, definimos xn+1 = menor elemento de An. EntãoX = {x1, x2 . . . , xn, . . .}. Com efeito, se existisse algum elemento x ∈ X diferente detodos os xn, teríamos x ∈ An para todo n ∈ N, logo x seria um número natural maiordo que todos os elementos do conjunto infinito {x1, x2 . . . , xn, . . .}, ou seja, o conjunto{x1, x2 . . . , xn, . . .}, seria limitado e, portanto, finito. Contradição. �

Page 34: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

30 Capítulo 2: Os Números Naturais

Corolário 2.2. Seja f : X → Y é injetiva. Se Y é enumerável então X é enumerável.

Com efeito, basta considerar o caso em que existe uma bijeção ϕ : Y → N. Entãoϕ ◦ f : X → N é uma bijeção de X sobre um subconjunto de N, o qual é enumerável.

Corolário 2.3. Seja f : X → Y sobrejetiva. Se X é enumerável então Y é enumerável.

Com efeito, para cada y ∈ Y podemos escolher um x = g(y) ∈ X tal que f (x) = y.Isto define uma aplicação g : Y → X tal que f (g(y)) = y para todo y ∈ Y. Segue-se daíque g é injetiva. Pelo corolário 2.2, Y é enumerável.

Corolário 2.4. O produto cartesiano de dois conjuntos enumeráveis é um conjuntoenumerável.

Com efeito, se X e Y são enumeráveis então existem sobrejeções f : N → X eg : N → Y, logo ϕ : N×N → X × Y, dada por ϕ(m, n) = ( f (m), g(n)) é sobrejetiva.Portanto, basta provar que N× N é enumerável. Para isto, consideremos a aplicaçãoψ : N× N → N, dada por ψ(m, n) = 2m3n. Pela unicidade da decomposição de umnúmero em fatores primos, ψ é injetiva. Logo, N×N é enumerável.

Corolário 2.5. A reunião de uma família enumerável de conjuntos enumeráveis é enumerável.

Com efeito, dados X1, X2, . . . , Xn, . . . enumeráveis, existem sobrejeções f1 : N →X1, f2 : N → X2, . . . , fn : N → Xn, . . . Tomando X = ∪∞

n=1Xn, definimos a sobrejeçãof : N×N→ X pondo f (m, n) = fn(m).

Pelos resultados anteriores, podemos mostrar que Q = {m/n; m, n ∈ Z, n 6= 0}é enumerável. Escrevendo Z∗ = Z − {0}, podemos definir uma função sobrejetivaf : Z×Z∗ → Q pondo f (m, n) = m/n.

Proposição 2.13. Todo conjunto infinito X contém um subconjunto infinito enumerável.

Demonstração. Basta definir uma função injetiva f : N→ X. Para isso, escolhemospara cada subconjunto não vazio A ⊂ X, um elemento xA ∈ A. Em seguida, definimosf por indução. Pomos f (1) = xX e, supondo já definidos f (1), f (2), . . . , f (n),escrevemos An = X − { f (1), f (2), . . . , f (n)}. Como X é infinito, An é não vazio.Definimos então f (n + 1) = xAn . Isto completa a definição indutiva da função f : N→X. Afirmamos que f é injetiva. Com efeito, dados m 6= n emN tem-se, digamos m < n.Então f (m) ∈ { f (1), . . . , f (n − 1)} enquanto que f (n) ∈ X − { f (1), . . . , f (n − 1)}.Logo, f (m) 6= f (n). A imagem f (N) é, portanto, um subconjunto infinito enumerávelde X. �

2.7 Exercícios

1. Demonstre que se um conjunto P goza das propriedades dadas pelos Axiomasde Peano, então, P é infinito enumerável.

2. O princípio da Boa Ordenação diz que todo subconjunto não-vazio de N possuielemento mínimo. Demonstre que N, com a relação ≤, verifica o Princípio da BoaOrdenação.

Page 35: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

2.7: Exercícios 31

3. Dados os números naturais a, b prove que existe um número natural m tal quem · a > b.

4. Usando o princípio de indução, demonstre a propriedade de tricotomiaenunciada na Proposição 2.4.

5. Use indução para demonstrar os seguintes fatos:

(a) (a− 1)(1 + a + . . . + an) = an+1 − 1, seja quais forem a, n ∈ N;

(b) n ≥ 4⇒ n! > 2n

Page 36: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

32 Capítulo 2: Os Números Naturais

Page 37: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

Capítulo 3

Os Números Inteiros

3.1 Definição axiomática dos inteiros

Antes de procedermos com a construção do conjunto dos inteiros, a definiremosaxiomaticamente. Desse modo, saberemos quais as propriedades que devemos atingirao construí-lo.

Definição 3.1. O conjunto dos números inteiros, denotado por Z, é um conjunto ondesão definidas duas operações binárias; a adição + : Z × Z → Z, (x, y) 7→ x + y e amultiplicação · : Z×Z→ Z, (x, y) 7→ x · y, as quais gozam dos seguintes axiomas.

Sejam x, y, z ∈ Z,

(1) Associatividade. (x + y) + z = x + (y + z) e (x · y) · z = x · (y · z).

(2) Comutatividade. x + y = y + x e x · y = y · x.

(3) Existência do elemento neutro.

Existe 0 ∈ Z tal que x + 0 = x para todo x ∈ Z.

Existe 1 ∈ Z (1 6= 0) tal que x · 1 = x para todo x ∈ Z.

(4) Existência do simétrico. Para cada x ∈ Z, existe −x ∈ Z tal que x + (−x) = 0.

(5) Distributividade. x · (y + z) = x · y + x · z.

(6) Z não tem divisores de zero. x · y = 0⇒ x = 0 ou y = 0.

Um conjunto D junto a duas operações binárias gozando dos seis axiomas acima échamado domínio de Integridade.

Todo corpo é um domínio de integridade.O seguinte resultado afirma que todo domínio de integridade admite uma extensão

chamada corpo de frações.

Proposição 3.1. Se D é um domínio de integridade então, existe um corpo K, D ⊂ K , tal queos elementos de K podem ser escritos da forma a/b, onde a, b ∈ D.

33

Page 38: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

34 Capítulo 3: Os Números Inteiros

Ordem em Z

Muitas propriedades em Z se originam do fato de escrevermos elas na ordem usual

. . .− 3,−2,−1, 0, 1, 2, 3, . . .

Tal ordem pode ser expresso pela relação a < b, que se lê: a é menor do que b.Significando que, a está à esquerda de b. A relação a < b é equivalente a dizer queb− a é um inteiro positivo (ou natural). Toda propriedade da relação a < b pode serderivada da existência de um conjunto de inteiros positivos (neste caso N) gozandodas seguintes propriedades (ou axiomas)

(1) (Fechadura) se x, y são positivos então x + y e x · y são positivos.

(2) (Tricotomia) para cada a ∈ Z vale uma e somente uma das seguintes alternativas:

ou a é positivo, ou a = 0, ou −a é positivo.

Desse modo, a < b se e somente se b− a ∈ N. Ou equivalentemente,

a < b ⇔ existe n ∈ N tal que, b + n = a.

Há outras três relações de ordem denotadas por: >; ≥ e ≤.Dizemos que:

• a é maior do que b, denotado por a > b, se e somente se b < a;

• a é maior ou igual do que b, denotado por a ≥ b, se e somente se a > b ou a = b;

• a é menor ou igual do que b, denotado por a ≤ b, se e somente se a < b ou a = b.

Seguem algumas propriedades decorrentes da ordem em Z. Ae demonstração éimediata e são baseadas na ordem definida em N.

Proposição 3.2 (Propriedades da ordem em Z). Sejam a, b, c ∈ Z então valem,

(1) Para todo a ∈ Z− {0}, a2 > 0 (portanto, 1 > 0)

(2) Transitividade. Se a < b e b < c então a < c.

(3) se a < b então a + c < b + c

(4) Se a < b e c > 0 então ac < bc.Se a < b e c < 0 então ac > bc.

(5) Tricotomia. Para quaisquer a, b ∈ Z vale apenas uma e somente uma das relações

ou a < b ou a = b ou a > b.

Demonstração. Exercício. �

Page 39: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

3.2: Construção dos Números Inteiros 35

3.2 Construção dos Números Inteiros

Proposição 3.3. A relação ∼ em N×N definida por

(a, b) ∼ (c, d) ⇔ a + d = b + c

é uma relação de equivalência.

Demonstração.

Reflexividade. Para todo (a, b) ∈ N×N, (a, b) ∼ (a, b)⇔ a + b = b + a.

Simetria. Se (a, b), (c, d) ∈ N×N,

(a, b) ∼ (c, d)⇔ a + d = b + c⇔ c + b = d + a⇔ (c, d) ∼ (a, b).

Transitividade. Se (a, b), (c, d), (e, f ) ∈ N×N tal que (a, b) ∼ (c, d) e (c, d) ∼ (e, f )Portanto,

a + d = b + c e c + f = d + e⇒ a + d + c + f = b + c + d + e.

Cancelando c e d, obtemos a + f = b + e. Isto é, (a, b) ∼ (e, f ).

A relação de equivalência ∼ induz uma partição em N × N. Assim, temos oconjunto quociente

(N×N)/∼ = {[(a, b)]; (a, b) ∈ N×N}

No conjunto (N×N)/∼ definiremos uma adição e uma multiplicação.

3.3 Operações em (N×N)/∼

3.3.1 Adição e multiplicação em (N×N)/∼Proposição 3.4 (Adição). Em (N×N)/∼, a operação + definida por

[(a, b)] + [(c, d)] := [(a + c, b + d)]

é bem definida.

Demonstração. Sejam [(a, b)] = [(a′, b′)] e [(c, d)] = [(c′, d′)]. Precisamos mostrarque [(a + c, b + d)] = [(a′ + c′, b′ + d′)]. De fato, (a, b) ∼ (a′, b′) e (c, d) ∼ (c′, d′)implicam a + b′ = b + a′ e c + d′ = d + c′. Somando e associando adequadamentetemos (a + c) + (b′+ d′) = (b + d) + (a′+ c′). Ou seja, (a + c, b + d) ∼ (a′+ c′, b′+ d′).Portanto, [(a + c, b + d)] = [(a′ + c′, b′ + d′)]. �

Note que, sem perda de generalidade, estamos usando o mesmo símbolo + para aadição em (N×N∗)/∼ e para adição em N. Faremos o mesmo para a multiplicação.

Page 40: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

36 Capítulo 3: Os Números Inteiros

Proposição 3.5 (Multiplicação). Em (N×N)/∼, a operação · definida por

[(a, b)] · [(c, d)] := [(ac + bd, ad + bc)]

é bem definida.

Demonstração. Sejam [(a, b)] = [(a′, b′)] e [(c, d)] = [(c′, d′)]. Assim, (a, b) ∼ (a′, b′)e (c, d) ∼ (c′, d′) implicam

a + b′ = b + a′ e c + d′ = d + c′. (1)

Precisamos mostrar que

[(ac + bd, ad + bc)] = [(a′c′ + b′d′, a′d′ + b′c′)],

que é equivalente a mostrar

ac + bd + a′d′ + b′c′ = a′c′ + b′d′ + ad + bc. (2)

A verificação de (2), usando as identidades (1), segue de

ac + bd + a′d′ + b′c′ + b′c = (a + b′)c + bd + a′d′ + b′c′

= (a′ + b)c + bd + a′d′ + b′c′

= a′c + bc + bd + b′c′ + a′d′

= a′(c + d′) + bc + bd + b′c′

= a′(c′ + d) + bc + bd + b′c′

= a′c′ + a′d + bc + bd + b′c′

= a′c′ + (a′ + b)d + bc + b′c′

= a′c′ + (a + b′)d + bc + b′c′

= a′c′ + ad + b′d + bc + b′c′

= a′c′ + ad + b′(d + c′) + bc= a′c′ + ad + b′(d′ + c) + bc= a′c′ + ad + b′d′ + b′c + bc= a′c′ + b′d′ + ad + bc + b′c.

As duas proposições anteriores mostram que + e · são operações binárias.

Observação. Como pretendemos construir o conjunto dos inteiros, justificaremos,grosso modo, como cada classe de equivalência (i.e., cada elemento de (N × N)/∼ )se identifica com um elemento de Z, onde Z é o conjunto definido axiomaticamente naDefinição 3.1.

Sejam a, b, c, d ∈ N e seja Z o conjunto da Definição 3.1. Como N ⊂ Z entãoa, b, c, d ∈ Z. Sejam [(a, b)], [(c, d)] ∈ (N×N)/∼ tal que [(a, b)] = [(c, d)].Considerando a, b, c, d ∈ Z então

[(a, b)] = [(c, d)]⇔ a + d = b + c⇔ a− b = a− d.

Assim, cada classe [(a, b)] ∈ (N×N)/∼ pode ser identificada com a diferença a− b ∈ Z.Aproveitamos essa identificação para definir o conjunto dos números inteiros comosendo o conjunto (N×N)/∼.

Page 41: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

3.3: Operações em (N×N)/∼ 37

Figura 3.1: Obtenção de Z = (N×N)/∼

Definição 3.2. O conjunto dos números inteiros, denotado por Z, é definido como sendoo conjunto das classes de equivalência [(a, b)] dos elementos (a, b) de N×N respeito àrelação de equivalência ∼. Ou seja,

Z = (N×N)/∼ .

A adição + e multiplicação · em Z é são definidas, respectivamente, por

[(a, b)] + [(c, d)] = [(a + c, b + d)] e [(a, b)] · [(c, d)] = [(ac + bd, ad + bc)].

Teorema 3.1 (Propriedades da adição +). A adição + emZ = (N×N)/∼ tem as seguintespropriedades:

(1) é associativa;

(2) comutativa;

(3) 0 := [(1, 1)] é o elemento neutro e

(4) existe simétrico. Para cada x = [(a, b)] ∈ Z existe −x := [(b, a)] tal que x + (−x) = 0.

Demonstração.

(1) Sejam x = [(a, b)], y = [(c, d)] e z = [(e, f )]

(x + y) + z =([(a, b)] + [(c, d)]

)+ [(e, f )]

= [(a + c, b + d)] + [(e, f )]

=[((a + c) + e, (b + d) + f

)]=[(

a + (c + e), b + (d + f ))]

= [(a, b)] + [(c + e, d + f )]

= [(a, b)] +([(c + e, d + f )]

)= [(a, b)] +

([(c, d)] + [(e, f )]

)= x + (y + z).

Page 42: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

38 Capítulo 3: Os Números Inteiros

(2) Sejam x = [(a, b)] e y = [(c, d)]

x + y = [(a, b)] + [(c, d)]= [(a + c, b + d)]= [(c + a, d + b)]= [(c, d)] + [(a, b)]= y + x.

(3) Se x = [(a, b)] ∈ Z, existe 0 = [(1, 1)] tal que x + 0 = x. Como (a+1, b+1)∼ (a, b),

x + 0 = [(a, b)] + [(1, 1)]= [(a + 1, b + 1)]= [(a, b)]= x.

(4) Dado x = [(a, b)] ∈ Z seja −x = [(b, a)].Observando que para todo n ∈ N, (n, n) ∼ (1, 1), temos

x + (−x) = [(a, b)] + [(b, a)]= [(a + b, b + a)]= [(a + b, a + b)]= [(1, 1)]= 0.

�Teorema 3.2 (Propriedades da multiplicação). A multiplicação · em Z = (N× N)/∼tem as seguintes propriedades:

(1) é associativa;

(2) comutativa;

(3) 1 := [(2, 1)] é elemento neutro e

(4) é distributiva sobre a adição.

Demonstração.

(1) Sejam x = [(a, b)], y = [(c, d)] e z = [(e, f )].

(x · y) · z =([(a, b)] · [(c, d)]

)· [(e, f )]

= [(ac + bd, ad + bc)] · [(e, f )]

=[((ac + bd)e + (ad + bc) f , (ac + bd) f + (ad + bc)e

)]= [(ace + bde + ad f + bc f , ac f + bd f + ade + bce)]= [(ace + ad f + bc f + bde, ac f + ade + bce + bd f )]

=[(

a(ce + d f ) + b(c f + de), a(c f + de) + b(ce + d f ))]

= [(a, b)] · [(ce + d f , c f + de )]

= [(a, b)] ·([(c, d)] · [(e, f )]

)= x · (y · z).

Page 43: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

3.3: Operações em (N×N)/∼ 39

(2) Sejam x = [(a, b)] e y = [(c, d)]

x · y = [(a, b)] · [(c, d)]= [(ac + bd, ad + bc)]= [(ac + bd, bc + ad)]= [(ca + db, cb + da )]

= [(c, d)] · [(a, b)]= y · x.

(3) Se x = [(a, b)] ∈ Z e 1 = [(2, 1)]. Usando(a + (a + b), b + (a + b)

)∼ (a, b),

x · 1 = [(a, b)] · [(2, 1)]= [(a · 2 + b · 1, a · 1 + b · 2)]= [(2a + b, a + 2b)]

=[(

a + (a + b), b + (a + b))]

= [(a, b)]= x.

(4) x = [(a, b)], y = [(c, d)] e z = [(e, f )]

x · (y + z) = [(a, b)] ·([(c, d)] + [(e, f )]

)= [(a, b)] · [(c + e, d + f )]

=[(

a(c + e) + b(d + f ), a(d + f ) + b(c + e))]

= [(ac + ae + bd + b f , ad + a f + bc + be)]

=[((ac + bd) + (ae + b f ), (ad + bc) + (a f + be)

)]= [(ac + bd, ad + bc)] + [(ae + b f , a f + be)]= [(a, b)] · [(c, d)] + [(a, b)] · [(e, f )]= x · y + x · z.

Teorema 3.3 (Z não possui divisores de zero). Para x = [(a, b)] e y = [(c, d)]

[(a, b)] · [(c, d)] = 0 =⇒ [(a, b)] = 0 ou [(c, d)] = 0.

Demonstração. Suponha que [(a, b)] · [(c, d)] = 0 e [(c, d)] 6= 0.Ou equivalentemente,

[(a, b)] · [(c, d)] = [(1, 1)] e [(c, d)] 6= [(1, 1)].

Por um lado,

[(a, b)] · [(c, d)] = [(1, 1)]⇔ [(ac + bd, ad + bc)] = [(1, 1)]⇔ ac + bd + 1 = ad + bc + 1⇔ ac + bd = ad + bc. (3)

Page 44: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

40 Capítulo 3: Os Números Inteiros

Por outro lado, [(c, d)] 6= 0 implica que c 6= d.Por tricotomia em N temos duas possibilidades

c >N d ou c <N d,

onde <N denota a ordem definida em N.

Suponha c >N d.Existe p ∈ N tal que c = d + p. Usando o valor de c em (3)

ac + bd = ad + bc⇒ a(d + p) + bd = ad + b(d + p)⇒ ad + ap + bd = ad + bd + bp⇒ ap = bp⇒ a = b.

Portanto, [(a, b)] = 0.Para o caso, c <N d de modo análogo, existe p ∈ N tal que d = p + c e substituindo

o valor de d em (3) obtemos b = a, ou seja [(a, b)] = 0. . �

Os resultados dos Teoremas 3.1, 3.2 e 3.3 mostram as propriedades que caracterizamo conjunto dos inteiros Z. Ou seja, Z = (N×N)/∼ é um domínio de integridade.

3.3.2 A substração em Z = (N×N)/∼Definição 3.3. Sejam x = [(a, b)] e y = [(c, d)] elementos de Z. A operação substração,−, é definida por

x− y := x + (−y).

Desse modo

[(a, b)]− [(c, d)] = [(a, b)] + ([(d, c)]) = [(a + d, b + c)].

Em N, a substração não é bem definida (ou seja, não é operação binária). Em Z asubstração é uma operação binária.

3.4 Relação de ordem em Z = (N×N)/∼Definição 3.4. Dizemos que x = [(a, b)] é menor do que y = [(c, d)], o que denotamospor x < y se, e somente se, a + d <N b + c. Ou seja,

x < y ⇔ a + d <N b + c,

onde <N é a relação de ordem definida em N.

A relação < está bem definida. Isto é, não depende da escolha dos representantesdas classes de equivalência.

De fato, [(a, b)] = [(a′, b′)] e [(c, d)] = [(c′, d′)] é equivalente a

a + b′ = b + a′ e c + d′ = d + c′ (4)

Page 45: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

3.5: Exercícios 41

Usando (4)

[(a, b)] < [(c, d)]⇔ a + d <N b + c⇔ ∃p ∈ N tal que (a + d) + p = b + c⇔ (a′ + b′ + c′ + d′) + a + d + p = (a′ + b′ + c′ + d′) + b + c⇔ (a′ + d′) + p + [a + b′] + {c + d′} = (b′ + c′) + [a′ + b] + {c + d′}⇔ (a′ + d′) + p = b′ + c′

⇔ a′ + d′ <N b′ + c′

⇔ [(a′, b′)] < [(c′, d′)].

As propriedades da Proposição 3.2, sobre a ordem < dos inteiros inicialmentedefinidos axiomaticamente, também são válidas para o conjunto Z = (N × N)/∼.A demonstração decorre da boa definição da relação de ordem < definida em Z =(N×N)/∼. Note que a forma como foi definida a relação de ordem emZ = (N×N)/∼é exatamente a mesma da da relação de ordem da Proposição 3.2, pois dependemexclusivamente da relação <N definida em N.

3.5 Exercícios

1. Um conjunto que goze das propriedades da definição 3.1 é chamado domínio deintegridade. Quais dos seguintes conjuntos são domínios de integridade?

(a) Os inteiros pares;(b) Os inteiros ímpares;

(c) Os números da forma a + b√

2, onde a, b ∈ Z.(d) Os inteiros positivos.

2. Demonstre as propriedades de ordem em Z enunciadas na Proposição 3.2.

3. Seja a ∈ Z, prove que, se b ∈ Z é tal que a ≤ b ≤ a + 1 então b = a ou b = a + 1.

4. Prove que não existe inteiro entre 0 e 1.

5. Um elemento a ∈ Z diz-se inversível se existe um outro elemento a′ ∈ Z tal queaa′ = 1. Mostrar que os únicos elementos inversíveis de Z são 1 e −1.

6. Provar que todo conjunto não-vazio de inteiros limitado superiormente contémum elemento máximo.

7. Provar que, se um conjunto de inteiros tem elemento mínimo, então este é único.Fazer o mesmo, em relação ao máximo.

8. Se a ∈ Z, a potência de an é definida por: a1 = a, an+1 = ana. Prove por induçãoque as leis seguintes para expoentes positivos valem em Z.

(i) (am)n = amn, (ii) (ab)n = anbn, (iii) 1n = 1.

9. Prove que Z é enumerável.

Page 46: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

42 Capítulo 3: Os Números Inteiros

Page 47: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

Capítulo 4

Os Números Racionais

Antes de procedermos com a construção formal do conjunto dos números racionaisQ a partir do conjunto dos inteiros Z. O apresentaremos como é usual, ou seja, comoum conjunto junto a duas operações binárias gozando axiomas que fazem dele umcorpo.

4.1 Os Números Racionais

Um número racional é um número que pode ser expresso como o quociente ou fraçãoa/b de dois números inteiros a e b, com b 6= 0. O conjunto de todos os racionais édenotado por

Q ={ a

b; a ∈ Z, b ∈ Z, b 6= 0

}.

Notação devida a Guiseppe Peano em 1895, do italiano quoziente. O termo racionalprovém do fato de a/b representar a razão ou proporção entre dois inteiros a e b.

4.1.1 Q como estrutura algébrica

Em Q são definidas duas operações binárias

Adição

Sejamab

,cd∈ Q então a adição, +, lhes associa o elemento

ab+

cd=

ad + bcbd

∈ Q.

Multiplicação

Sejamab

,cd∈ Q então a multiplicação, ·, lhes associa o elemento

ab· c

d=

acbd∈ Q.

Diremos queab=

cd⇔ ad = bc.

43

Page 48: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

44 Capítulo 4: Os Números Racionais

(Q,+·) é um corpo

Proposição 4.1. O conjunto dos racionais Q com as duas operações de adição e multiplicação,acima definidas, é um corpo.

Demonstração. Exercício. Use a definição 1.17 da seção 1.5. �

A Proposição 4.1 nos diz que as duas operações em Q gozam das seguintespropriedades.

1. Associatividade. Para todo x, y, z ∈ Q valem

(x + y) + z = x + (y + z) e (xy)z = x(yz)

2. Comutatividade. Para todo x, y ∈ Q

x + y = y + x e xy = yx

3. Existência de elementos neutros. Existem 0 =01∈ Q e 1 =

11∈ Q tais que

x + 0 = x e x · 1 = x, ∀x =ab∈ Q.

4. Existência dos inversos.

Para todo x =ab∈ Q, existe −x =

−ab∈ Q tal que x + (−x) = 0.

Para todo x =ab∈ Q, x 6= 0, existe x−1 =

ba∈ Q tal que x · x−1 = 1.

5. Distributividade. Para todo x, y, z ∈ Q

x(y + z) = xy + xz

4.1.2 Z como subconjunto de Q

Cada inteiro n pode ser identificado com o racionaln1

. De fato, pelo algoritmo da

divisão n =n1⇔ n = n · 1. Portanto, de modo natural, os elementos de Z fazem

parte de Q.

4.1.3 Q é corpo ordenado

Para a definição de corpo ordenado, veja a seção 1.5. Definimos um conjunto depositivos P ⊂ Q como

P ={ a

b∈ Q; ab >Z 0

}

Page 49: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

4.2: Construção dos Números Racionais 45

Observação. A relação >Z é a relação de ordem "maior do que" definida no conjuntodos inteiros Z.

Proposição 4.2. O conjunto Q junto ao conjunto P ={ a

b∈ Q; ab >Z 0

}é um corpo

ordenado.

Demonstração. Seab

,cd∈ P então ab >Z 0 e cd >Z 0. Com isso, a adição e

multiplicação é fechada em P. De fato,

ab+

cd=

ad + bcbd

∈ P⇔ (ad + bc)bd = abd2 + cdb2 >Z 0 e

ab· c

d=

acbd∈ P⇔ acbd >Z 0.

Seab∈ Q então ab ∈ Z, segue da tricotomia em Z que

ou ab >Z 0 ou ab = 0 ou ab <Z 0.

Portanto,

ouab∈ P ou

ab= 0 ou − a

b∈ P.

Desse modo, Q é um corpo ordenado. �

4.2 Construção dos Números Racionais

A construção dos números racionais é realizada a partir do domínio de integridadedos inteiros (Z,+, ·). O conjunto dos inteiros diferentes de zero, denotamos porZ∗ = Z \ {0}.Proposição 4.3. A relação ∼ em Z×Z∗ definida por

(a, b) ∼ (c, d) ⇔ ad = bc

é uma relação de equivalência.

Demonstração. Para todo (a, b) ∈ Z× Z∗ (a, b) ∼ (a, b) ⇔ ab = ba de onde segueque ∼ é reflexiva. Para a simetria, se (a, b), (c, d) ∈ Z×Z∗ temos

(a, b) ∼ (c, d)⇔ ad = bc⇔ cb = da⇔ (c, d)⇔ (a, b).

Finalmente, sejam (a, b), (c, d), (e, f ) ∈ Z×Z∗ tal que (a, b) ∼ (c, d) e (c, d) ∼ (e, f ).Assim, ad = bc e c f = de. Com isso

ad = bc⇒ ad f = bc f ⇒ (a f )d = b(c f )⇒ (a f )d = b(de)⇒ (a f )d = (be)d.

Como d 6= 0 e a lei do corte sendo válida em Z então, (a f )d = (be)d implica a f = be.Ou seja, (a, b) ∼ (e, f ). O que mostra a transitividade. �

A relação de equivalência ∼ induz uma partição em Z × Z∗. Assim, obtemos oconjunto quociente

(Z×Z∗)/∼ = {[(a, b)]; (a, b) ∈ Z×Z∗}

Page 50: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

46 Capítulo 4: Os Números Racionais

4.3 Operações em (Z×Z∗)/∼

4.3.1 Adição e multiplicação (Z×Z∗)/∼Proposição 4.4 (Adição). Em (Z×Z∗)/∼, a operação dada por

[(a, b)] + [(c, d)] := [(ad + bc, bd)]

é bem definida.

Demonstração. Sejam [(a, b)] = [(a′, b′)] e [(c, d)] = [(c′, d′)]. Mostraremos que

[(a, b)] + [(c, d)] = [(a′, b′)] + [(c′, d′)].

De fato, (a, b) ∼ (a′, b′) e (c, d) ∼ (c′, d′) implicam

ab′ = ba′ e cd′ = dc′. (1)

Multiplicando os termos dd′ e bb′ em (1)

(ab′)(dd′) = (ba′)(dd′) e (cd′)(bb′) = (dc′)(bb′). (2)

Usando (2) temos

(ad + bc)(b′d′) = adb′d′ + bcb′d′

= (ab′)(dd′) + (cd′)(bb′)= (ba′)(dd′) + (dc′)(bb′)= bda′d′ + bdb′c′

= (bd)(a′d′ + b′c′).

Como (ad + bc)(b′d′) = (bd)(a′d′ + b′c′) ⇔ (ad + bc, bd) ∼ (a′d′ + b′c′, b′d′). Logo,[(ad + bc, bd)] = [(a′d′ + b′c′, b′d′)]. Ou seja, [(a, b)] + [(c, d)] = [(a′, b′)] + [(c′, d′)]. �

Proposição 4.5. Em (Z×Z∗)/∼, a operação dada por

[(a, b)] · [(c, d)] := [(ac, bd)]

é bem definida.

Demonstração. Se [(a, b)] = [(a′, b′)] e [(c, d)] = [(c′, d′)], então (a, b) ∼ (a′, b′) e(c, d) ∼ (c′, d′) o que implica

ab′ = ba′ e cd′ = dc′. (3)

Usando (3) obtemos (ab′)(cd′) = (ba′)(dc′).Desse modo,

[(a, b)] · [(c, d)] = [(a′, b′)] · [(c′, d′)]⇔ [(ac, bd)] = [(a′c′, b′d′)]⇔ (ac)(b′d′) = (bd)(a′c′)⇔ (ab′)(cd′) = (ba′)(dc′).

Portanto, o produto independe dos representantes das classes de equivalência. �

Page 51: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

4.3: Operações em (Z×Z∗)/∼ 47

Observação. Como estamos construindo o conjunto dos racionais, grosso modo,justificaremos como cada elemento de (Z× Z∗)/∼ se identifica com um elemento deQ (onde Q é o conjunto definido na Seção 4.1.1).

Sejam m, a ∈ Z; n, b ∈ Z∗ e seja Q o conjunto definido na Seção 4.1.1. Como Z ⊂ Q(veja a subseção 4.1.2) então m, n, a, b ∈ Q. Sejam [(m, n)], [(a, b)] ∈ (Z× Z∗)/∼ talque [(m, n)] = [(a, b)].Considerando m, n, a, b ∈ Q então

[(m, n)] = [(a, b)]⇔ mb = na⇔ mn

=ab

.

Cada elemento [(m, n)] de (Z×Z∗)/∼ pode ser identificado com o quociente m/n ∈ Q.Note que a classe [(m, n)] é o conjunto solução da equação

xy=

mn

onde (x, y) ∈ Z×Z∗.

Assim, as classes de equivalência [(m, n)] são retas de Z × Z∗. Cada classe [(m, n)]representa o racional m/n. Aproveitamos tal identificação para definir o conjunto dosnúmeros racionais como sendo o conjunto (Z×Z∗)/∼.

Figura 4.1: Obtenção de Q = (Z×Z∗)/∼

Definição 4.1. O conjunto dos números racionais, denotado porQ, é definido como sendoo conjunto das classes de equivalência [(a, b)] dos elementos (a, b) de Z× Z∗ respeitoà relação de equivalência. Ou seja,

Q = (Z×Z∗)/∼ .

A adição + e multiplicação · em Q é definido, respectivamente, por

[(a, b)] + [(c, d)] = [(ad + bc, bd)] e [(a, b)] · (c, d)] = [(ac, bd)].

Page 52: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

48 Capítulo 4: Os Números Racionais

Teorema 4.1 (Propriedades da adição em Q = (Z× Z∗)/∼). A adição + em Z tem asseguintes propriedades:

(1) Associativa.

(2) Comutativa.

(3) Existência do elemento neutro da adição 0 := [(0, 1)].

(4) Existência do inverso aditivo. Para cada x = [(a, b)] ∈ Z existe −x := [(b, a)] tal quex + (−x) = 0. O elemento −x é o inverso aditivo de x.

Demonstração.

(1) Sejam x = [(a, b)], y = [(c, d)] e z = [(e, f )].

(x + y) + z =([(a, b)] + [(c, d)]

)+ [(e, f )]

= [(ad + bc, bd)] + [(e, f )]

=[((ad + bc) f + (bd)e , (bd) f

)]=[(

ad f + bc f + bde , bd f)]

=[(

a(d f ) + b(c f + de) , b(d f ))]

= [(a, b)] + [(c f + de, d f )]

= [(a, b)] +([(c, d)] + [(e, f )]

)= x + (y + z).

(2) Sejam x = [(a, b)] e y = [(c, d)]

x + y = [(a, b)] + [(c, d)]= [(ad + bc, bd)]= [(cb + da, db)]= [(c, d)] + [(a, b)]= y + x.

(3) Existe 0 := [(0, 1)] tal que x + 0 = x, para todo x = [(a, b)] ∈ Q. De fato,

x + 0 = [(a, b)] + [(0, 1)] = [(a · 1 + b · 0, b · 1)] = [(a, b)] = x.

(4) Dado x = [(a, b)] ∈ Q seja −x := [(−a, b)].

Considerando que [(0, n)] = 0, para todo n ∈ Z∗

x + (−x) = [(a, b)] + [(−a, b)] = [(ab + b(−a), bb)] = [(0, bb)] = 0.

Page 53: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

4.3: Operações em (Z×Z∗)/∼ 49

Teorema 4.2 (Propriedades da multiplicação em Q = (Z× Z∗)/∼ ). A multiplicação ·em Q tem as seguintes propriedades:

(1) é associativa;

(2) comutativa;

(3) 1 := [(1, 1)] é elemento neutro da multiplicação;

(4) existe o inverso multiplicativo. Isto é,para cada x = [(a, b)] ∈ Q \ {0}, existe x−1 = [(b, a)] ∈ Q tal que x · x−1 = 1, é

(5) é distributiva sobre a adição.

Demonstração.

(1) Sejam x = [(a, b)], y = [(c, d)] e z = [(e, f )].

(x · y) · z =([(a, b)] · [(c, d)]

)· [(e, f )]

= [(ac, bd)] · [(e, f )]

=[((ac)e, (bd) f

)]=[(

a(ce), b(d f ))]

= [(a, b)] · [(ce, d f )]

= [(a, b)] ·([(c, d)] · [(e, f )]

)= x · (y · z).

(2) Sejam x = [(a, b)] e y = [(c, d)]

x · y = [(a, b)] · [(c, d)]= [(ac, bd)]= [(ca, db)]= [(c, d)] · [(a, b)]= y · x.

(3) Se x = [(a, b)] ∈ Q e 1 = [(1, 1)].

x · 1 = [(a, b)] · [(1, 1)]= [(a · 1, b · 1)]= [(a, b)]= x.

(4) Se x = [(a, b)] ∈ Q \ {0}, se x−1 = [(b, a)] (x−1 ∈ Q, pois a 6= 0)

x · x−1 = [(a, b)] · [(b, a)] = [(ab, ba)] = [(ab, ab)] = [(1, 1)] = 1.

Note que ab 6= 0 e (ab, ab) ∼ (1, 1).

Page 54: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

50 Capítulo 4: Os Números Racionais

(5) Sejam x = [(a, b)], y = [(c, d)] e z = [(e, f )]. Como b 6= 0, 1 = [(b, b)], segue

x · (y + z) = [(a, b)] ·([(c, d)] + [(e, f )]

)= [(a, b)] · [(c f + de, d f )]

=[(

a(c f + de), b(d f ))]

= [(ac f + ade + bd f , bd f )]= [(ac f + ade + bd f , bd f )] · 1= [(ac f + ade + bd f , bd f )] · [(b, b)]

=[((ac f + ade + bd f )b, (bd f )b

)]=[(

ac f b + adeb + bd f b, bd f b)]

=[((ac)(b f ) + (bd)(ae), (bd)(b f )

)]= [(ac, bd)] + [(ae, b f )]= [(a, b)] · [(c, d)] + [(a, b)] · [(e, f )]= x · y + x · z.

Proposição 4.6. O conjunto Q = (Z×Z∗)/∼ junto às duas operações, + e · é um corpo.

Demonstração. A prova segue dos teoremas 4.1 e 4.2 �

Definição 4.2. A estrutura algébrica Q = (Z× Z∗)/∼ junto às operações de adição emultiplicação definidas é chamada corpo dos números racionais.

4.3.2 A substração e divisão em Q = (Z×Z∗)/∼Definição 4.3. Sejam x = [(a, b)] e y = [(c, d)] elementos de Q. A operação substração,−, é definida por

x− y := x + (−y).

O elemento x− y ∈ Q é chamado a di f erena e de x e y. Desse modo

[(a, b)]− [(c, d)] = [(a, b)] + ([(d, c)]) = [(a + d, b + c)].

Definição 4.4. Sejam x = [(a, b)] e y = [(c, d)] 6= 0 elementos de Q. A divisão, de x e yé definida por

x/y := x · y−1.

Desse modo[(a, b)]/[(c, d)] = [(a, b)] · ([(d, c)]) = [(ad, bc)].

O elemento x/y ∈ Q é chamado o quociente de x e y.

Em Q a substração é divisão são operações binárias. Em Z, a divisão não é binária.

Page 55: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

4.4: Q = (Z×Z∗)/∼ como corpo ordenado 51

4.4 Q = (Z×Z∗)/∼ como corpo ordenado

Precisamos definir, em Q, um conjunto de positivos P de tal forma que os axiomasde ordem sejam satisfeitos. Isto é, a adição e multiplicação seja fechada em P e sejaválida a tricotomia. Veja a seção 1.5, definição 1.18. O símbolo >Z é a relação de ordem:maior do que, no conjunto dos inteiros Z.

Proposição 4.7 (Q é ordenado). Seja P = {[(a, b)] ∈ Q; ab >Z 0}. O conjunto P faz de Qum corpo ordenado.

Demonstração. Sejam x = [(a, b)] e y = [(c, d)] elementos de P. Assim,

ab >Z 0 e cd >Z 0 (4)

Usando (4), d 6= 0 (e assim d2 >Z 0) e as propriedades da ordem em Z verifica-se

x + y = [(ad + bc, bd)] ∈ P ⇐⇒ (ad + bc)bd = (ab + cd)d2 >Z 0,

x · y = [(ac, bd)] ∈ P ⇐⇒ (ac)(bd) = (ab)(cd) >Z 0

Portanto, a adição e multiplicação são fechadas em P. Resta mostrar a tricotomia.

Seja [(a, b)] ∈ Q. Então ab ∈ Z. Da tricotomia em Z

ou ab >Z 0 ou ab = 0 ou ab <Z 0.

Como b 6= 0 então

ou ab >Z 0 ou a = 0 ou (−a)b = −ab >Z 0.

Assim,

ou [(a, b)] ∈ P ou [(a, b)] = [(0, b)] = 0 ou [(−a, b)] ∈ P.

Ou seja

ou [(a, b)] ∈ P ou [(a, b)] = 0 ou −[(a, b)] ∈ P.

Portanto, Q é corpo ordenado. Isso permite definir em Q a relação de ordem >como segue

Definição 4.5. Dados x, y ∈ Q, dizemos que x é maior do que y se, e somente, x− y ∈ P,e denotamos por x > y.

Como x > 0 se, e somente se x− 0 = x ∈ P. Nesse caso, sendo que P é chamado oconjunto de positivos, diremos que x é positivo, quando x > 0.

Dizemos que

i) x é menor do que y, denotado por x < y se, e somente se, y > x

ii) x é maior ou igual do que y, denotado por x ≥ y se, e somente se, x > y ou x = y, e

iii) x é menor ou igual do que y, denotado por x ≤ y se, e somente se, x < y ou x = y.

Page 56: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

52 Capítulo 4: Os Números Racionais

4.4.1 Propriedades da relação de ordem

Como Q = (Z×Z∗)/∼ é um corpo ordenado. Então automaticamente são válidastodas as propriedades de ordem da Proposição 1.8. Essas propriedades dependemapenas da existência de conjunto de positivos P de positivos no corpo.

Por exemplo, a relação de ordem < em Q = (Z × Z∗)/ ∼ tem as seguintespropriedades:

(a) Transitividade. x < y e y < z ⇒ x < z.

(b) Tricotomia. Se x, y ∈ Q, apenas uma das seguinte alternativas ocorre

ou x < y ou x = y ou x > y

(c) Monotonicidade da adição x < y ⇒ x + z < y + z, ∀z ∈ Q.

(d) Monotonicidade da multiplicação.

x < y e z > 0 ⇒ xz < yz.

x < y e z < 0 ⇒ xz > yz.

4.5 Exercícios

1. Demonstre que o conjunto Q da Proposição 4.1 é um corpo.

2. Seja α ∈ Q. Prove que existe um único n ∈ Z tal que n ≤ α ≤ n + 1.

3. Mostrar com um exemplo que nem todo conjunto não-vazio de númerosracionais limitado superiormente tem máximo.

4. Prove que, num corpo ordenado K, as seguintes afirmações são equivalentes: (i)K é arquimediano; (ii) Z é ilimitado superior e inferiormente; (iii) Q é ilimitadosuperior e inferiormente.

5. Sejam a, b racionais positivos. Prove que√

a +√

b é racional se, e somente se,√

ae√

b forem ambos racionais. (Sugestão: multiplique por√

a−√

b.)

6. Prove que não existe número racional cujo quadrado seja 12.

7. Mostre que em Q valem

(i) 0 < 1/a⇔ a > 0,

(ii) a/b < c/d⇔ abd2 < b2cd0,

(iii) 0 < a < b⇒ 0 < 1/b < 1/a,

(iv) a < b < 0⇒ 0 > 1/a > 1/b,

(v) a21 + a2

2 + · · ·+ a2n ≥ 0.

8. Mostre que Q é um conjunto enumerável.

Page 57: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

Capítulo 5

Os Números Irracionais

5.1 Números comensuráveis e incomensuráveis

Os antigos gregos, intuitivamente, acreditavam que dados dois objetos quaisquer,de comprimentos a e b, sempre existia alguma unidade u, suficientemente pequena, detal forma que ambos objetos pudessem ser medidos de modo "exato"com essa unidadeu. Ou seja,

∀ a e b, ∃ u tal que a = m · u e b = n · u, onde m, n ∈ N.

Desse modo, usando a medida u, um objeto mediria m vezes u e o outro n vezesu. Os objetos (números) a e b são ditos comensuráveis. Para os antigos gregos, doiscomprimentos quaisquer eram sempre comensuráveis. Em outras palavras, tudo sepodia comparar ou medir utilizando números inteiros.

Dizer que dois números a e b são sempre comensuráveis implica que o quocientede dois números a e b quaisquer é sempre racional.

ab=

m · un · u =

mn

,

sendo m, n ∈ N, entãoab∈ Q.

Seria grande a surpresa desses gregos ao descobrirem que pudessem existirnúmeros não comensuráveis ou incomensuráveis. Acredita-se que foi Hípaso deMetaponto, membro da escola pitagórica, quem demonstrara (provavelmente pormétodos geométricos) que a hipotenusa de um triângulo retângulo isósceles e um dosseus catetos não eram comensuráveis. Ou, equivalentemente, que a diagonal d de umquadrado e um dos seus lados l são incomensuráveis.

53

Page 58: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

54 Capítulo 5: Os Números Irracionais

Sem perda de generalidade, suponha l = 1. Pelo teorema de Pitágoras

d2 = 12 + 12 = 2.

Se d e l = 1 fossem comensuráveis então teríamos quedl= d é racional.

Portanto, deveríamos admitir que,

∃ d ∈ Q tal que d2 = 2

Mostraremos que tal conclusão é absurda.

Lema 5.1. Não existe racional d tal que d2 = 2.

Demonstração. Suponha que existe d ∈ Q tal que d2 = 2. Ou seja, d =mn

, onde me n são primos relativos (isto é, m e n não têm fatores em comum). Logo,

(mn

)2= 2 ⇔ m2 = 2n2.

Significa que m2 é par. Logo, necessariamente m é par (se m fosse ímpar, o produtom ·m = m2 seria ímpar). Sendo m par, existe k ∈ Z tal que m = 2k.

Assim, m2 = 4k2 e, portanto, n2 = 2k2. O que implica que n2 é par. Desse modo,necessariamente, n é par. Isto é, existe r ∈ Z tal que n = 2r. Isso mostra que m e n nãopodem ser primos relativos, pois têm como fator comum o 2. Tal contradição prova olema. �

Portanto, deve-se concluir que existem números incomensuráveis. Note que a diagonald pode ser "levada"até a reta onde encontra o cateto do quadrado (rotando π/4 nosentido horário). Ou seja, o comprimento d corresponde a um ponto da reta, portanto,existe. Mas, quem era esse número d? Antes dessa descoberta, achavam que todoponto da reta poderia ser representado por um racional.

Conta a lenda que essa descoberta teria levado a uma crise da matemáticapitagórica. Na época, a escola pitagórica tratava os números como entidades místicas(números: amigáveis; primos; perfeitos; deficientes; abundantes; etc).

Page 59: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

5.2: Existência de números não racionais 55

5.2 Existência de números não racionais

O Lema 5.1 mostra que deve existir número d não racional cujo quadrado é 2.Mostra também que o conjunto dos racionais é um conjunto incompleto, no sentidode que existe número (pelo menos o d) que não é racional.

O número d, tal que d2 = 2, é chamado raiz quadrada de 2 e é denotado por√

2.

Definição 5.1. Um número que não é racional é chamado irracional.

No próximo capítulo será construído o conjunto dos números reais, denotado por R.

Definição 5.2. O conjunto dos números irracionais é o conjunto formado pelos númerosreais que não são racionais. Denotamos

R \Q = {a ∈ R; a /∈ Q}

Pode parecer estranho termos definido os irracionais como sendo elementos doconjunto dos reais R, conjunto que ainda não foi construído nem definido. Não háproblema com isso; se fossemos definir um irracional como sendo um número que nãoé racional, não estaríamos sendo muito claros. Por exemplo, a unidade imagináriai é irracional? Sabemos que i não pertence aos reais, e que todo racional é real,então é lógico concluir que o número i não é racional. Então isso significa que i éirracional? Para resolver esse dilema, devemos lembrar que, os gregos, mesmo queainda não soubessem quem eram os reais, quando se referiam aos irracionais estavamse referindo a pontos de reta.

Infinitude dos irracionais

Note que para cada n ∈ N, o número n√

2 é irracional. De fato, se r = n√

2 fosse

racional, teríamos que concluir que√

2 = r · 1n∈ Q. O que é absurdo. Portanto,

necessariamente: n√

2 ∈ R \Q, ∀n ∈ N. Se S = {n√

2, n ∈ N} temos S ⊂ R \Q. Aaplicação ϕ : N→ S, dada por ϕ(n) = n

√2 é uma bijeção. Portanto, S é infinito.

Os mesmos argumentos da demonstração do Lema 5.1 servem para mostrarmostrar que

Proposição 5.1. Para todo primo p, não existe d ∈ Q tal que d2 = p.

Isto mostra que números da forma√

p, onde p é primo, são irracionais (este seriaum outro modo de verificar a existência de infinitos irracionais).

Os exemplos de números irracionais, mostrados até agora, fazem parte de um tipoespecial de irracionais chamados números algébricos.

5.3 Números algébricos e números transcendentes

Definição 5.3. Um número α é chamado algébrico se for raiz de algum polinômio comcoeficientes inteiros. Ou seja, raiz de um polinômio da forma

anxn + an−1xn−1 + · · ·+ a1x + a0,

onde ai ∈ Z, i ∈ {0, 1, . . . , n} e an 6= 0.

Page 60: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

56 Capítulo 5: Os Números Irracionais

Exemplo 5.1. Todo número racional α = p/q é algébrico, pois é raiz de qx− p.

Exemplo 5.2. Os números irracionais α =√

p, onde p é primo, são algébricos. De fato,são raízes de x2 − p.

Definição 5.4. Um número que não é algébrico é chamado transcendente.

Os números transcendentes mais conhecidos e famosos são:

• π = C/D, onde C é o perímetro de uma circunferência de diâmetro D,

π = 3, 1415926535897932 . . .

• e =10!

+11!

+12!

+13!· · ·

e = 2.71828182846 . . .

Recomendamos a leitura do livro de Eli Maor: e : a história de um número [22], dedicadointegramente a esse importante número e o livro de Beckman: A History of π [6]dedicado a outro número famoso: π.

Pelo Exemplo 5.1, todo racional é algébrico, é equivalente a dizer que se um númeronão for algébrico então ele não é racional. Ou seja,

todo número real transcendental é irracional.

Para um estudo mais detalhado sobre números transcendentes recomendamos olivro de Marques [23].

Um texto excelente que se dedica de forma exclusiva aos irracionais é o livro deHavil: The Irrationals [14].

5.4 Exercícios

1. Mostre que qualquer intervalo de R contém algum irracional.

2. Mostre que um número real da forma 0, 1010010001000010000010 . . . é irracional.

3. Se p é primo, mostre que√

p é irracional. (Proposição 5.1).

4. Se m, a ∈ N, prove que n√

a é irracional ou então é inteiro.

5. Mostre que log10 2 e log10 3 são irracionais.

6. Sejam a racional diferente de zero, e x irracional. Prove que a + x e ax sãoirracionais. Dê um exemplo de dois números irracionais x, y tais que x + y ex · y são racionais.

Page 61: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

Capítulo 6

Os Números Reais e sua Construção

Vários matemáticos do século XIX apresentaram construções dos números reais,entre eles: Karl Weierstrass, Charles Méray, Richard Dedekind e Georg Cantor. Nestecapítulo, estudamos os métodos de Cantor, de Dedekind e as expansões decimais.

6.1 Definição axiomática do conjunto dos números reais

O conjunto dos números reais e suas propriedades são apresentados ao aluno desdemuito cedo em diversas disciplinas de matemática. Ele é associado, geometricamente,à reta. Com o advento da geometria analítica e o uso de coordenadas, os números reaispodem ser vistos como pontos da reta.

Existem vários caminhos para abordar o estudo dos Números Reais. Temos ossintéticos e os rigorosos (árduos). Ambas abordagens têm vantagens e desvantagens.Os caminhos curtos tem a vantagem da praticidade, pois é suficiente defini-los comoum conjunto que satisfaz certos axiomas de tal forma que seja um corpo ordenado ecompleto e pronto. Ou então, simplesmente afirmar algo como: o conjunto dos númerosreais é o conjunto formado pelos números decimais, se a parte decimal do númerofor periódica, então é um racional; se a parte decimal não for periódica, então é umirracional. Em geral, é desse último modo que os estudantes têm seu primeiro contatocom os números reais. Já num nível universitário, por exemplo, quando o alunocomeça o estudo do Cálculo Diferencial e Integral, os reais costumam ser definidosaxiomaticamente. Desse modo, não precisamos nos preocupar em demonstrar suaexistência. Aliás, é esse o caminho recomendado para qualquer estudante.

Entretanto, é válido sim se questionar sobre a existência desse tal conjunto definidoapenas axiomaticamente. Como demonstrar que esse conjunto existe? E se ele existe,

57

Page 62: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

58 Capítulo 6: Os Números Reais e sua Construção

é único? Existem outros corpos ordenados e completos? Nas próximas seções destecapítulo serão respondidas essas questões.

Para iniciar o estudo dos números reais, primeiramente adotaremos a formasintética. Isto é, apresentaremos os números reais como um conjunto gozando de certaspropriedades ou axiomas. Feito isso, teremos claro quais são as propriedades quedevemos procurar, quando de fato estivermos construindo o conjunto dos númerosreais.

Axioma Fundamental. Existe um corpo ordenado e completo, denotado por R, chamado ocorpo dos números reais.

Os elementos de R são chamados números reais.O Axioma Fundamental nos diz que em R existem duas operações binárias + :R× R → R; · : R× R → R e um conjunto de positivos P, com os seguintes trezeaxiomas

A. Axiomas de Corpo. Para x, y, z ∈ R temos

(A.1) x + y = y + x.

(A.2) (x + y) + z = x + (y + z).

(A.3) ∃ 0 ∈ R tal que x + 0 = x, ∀x ∈ R.

(A.4) ∀x ∈ R, ∃y ∈ R tal que x + y = 0.

(A.5) xy = yx.

(A.6) (xy)z = x(yz).

(A.7) ∃ 1 ∈ R tal que 1 6= 0 e x · 1 = x, ∀x ∈ R.

(A.8) ∀x ∈ R− {0}, ∃y ∈ R tal que xy = 1.

(A.9) x(y + z) = xy + xz.

B. Axiomas de Ordem. Existe um conjunto P ⊂ R tal que

(B.1) x, y ∈ P⇒ x + y ∈ P.

(B.2) x, y ∈ P⇒ xy ∈ P.

(B.3) ∀x ∈ R⇒ ou −x ∈ P ou x = 0 ou x ∈ P.

C. Axioma de Completitude. Todo subconjunto não vazio de R, limitado superiormente,possui supremo.

A partir desses axiomas é possível derivar todas as propriedades conhecidas de R.Veja a seção 1.4 do capítulo 1.

Page 63: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

6.2: A construção de Cantor (sequências de Cauchy) 59

6.2 A construção de Cantor (sequências de Cauchy)

Suponha que os números racionais e suas propriedades são conhecidos. No métodode Cantor, cada número real é definido como uma classe de equivalência de sequênciasde Cauchy de números racionais. Assim, primeiramente definiremos sequência denúmeros racionais, sequência de Cauchy e seguiremos a construção dos números reaispor sequências de Cauchy, conforme feita em Kemp(2014) [17].

Definição 6.1. Uma sequência de números racionais (ou uma sequência racional) é umafunção x : N → Q. Para cada n ∈ N o valor x(n) ∈ R representamos por xn echamamos termo de ordem n da sequência x.

A sequência x também representamos por (x1, x2, . . . , xn, . . .) ou (xn)n∈N ou (xn).

Definição 6.2. Seja (xn) uma sequência de números racionais. Ela se chama umasequência de Cauchy se, dado arbitrariamente um número racional ω > 0, pode-se obtern0 ∈ N tal que m, n > n0 implicam |xm − xn| < ω.

Definição 6.3. Uma sequência (xn) de números racionais é dita ser convergente emQ se existe L ∈ Q tal que, para todo ω > 0, existe n0 ∈ N com a propriedade,|xn − L| < ω, ∀n > n0.

O número L definido acima, se existir, será chamado de limite da sequência (xn).Neste caso, diremos que a sequência (xn) converge para L e indicaremos por xn → L.

Exemplo 6.1. A sequência de números racionais (xn) definida por xn = 1/n convergepara zero. De fato, dado ω > 0 emQ, tome n0 inteiro com n0 > 1

ω , (isto é possível pelapropriedade arquimediana de Q). Então, para n > n0, temos que:∣∣∣∣ 1n − 0

∣∣∣∣ = 1n<

1n0

< ω.

Definição 6.4. Seja (xn) uma sequência de números racionais. Dizemos que (xn) tendea 0 se, dado arbitrariamente ω > 0, existe n0 ∈ N tal que n > n0 implica |xn| < ω.Simbolicamente, denotamos xn → 0.

Para que (xn) seja uma sequência de Cauchy, é preciso que seus termos xm, xn, paravalores suficientemente grandes dos índices m, n se aproximem arbitrariamente unsdos outros. Ou seja, se impõe uma condição sobre os termos da própria sequência.Uma sequência de Cauchy também é chamada sequência fundamental.

Note que existem tantas sequências de Cauchy quantos são os números racionais,pois, qualquer que seja o número racional r, a sequência constante (rn) = (r, r, r, . . .)é de Cauchy. Dentre as sequências de Cauchy, algumas são convergentes: como assequências constantes; uma como (1/2, 2/3, 3/4, . . .) e uma infinidade de outras mais.Mas há também uma infinidade de sequências de Cauchy que não convergem, como asequência das aproximações decimais de π,

(rn) = (3, 3.1, 3.14, 3.141, 3.1415, 3.14159, . . .), (1)

Page 64: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

60 Capítulo 6: Os Números Reais e sua Construção

ou a sequência xn = (1 + 1/n)n , que converge a e = 2.718281 . . . , ou ainda, asequência (yn) = (1, 1.4, 1.41, 1.414, 1.4142, . . .), que aproxima

√2 por falta.

Essas sequências não convergem em Q pois π, e ou√

2 não são racionais. Naconstrução dos números reais, a ideia de Cantor é definir os reais como o conjuntode todas as sequências de aproximações racionais e definir operações algébricas eordenação linear para essas sequências.

Vejamos alguns resultados envolvendo sequências de Cauchy de númerosracionais.

Teorema 6.1. Se (xn) é uma sequência convergente de números racionais (i.e., xn → r, paraalgum número racional r) então (xn) é uma sequência de Cauchy.

Demonstração. Temos que xn → r. Dado ω > 0, existe n0 ∈ N tal que n > n0 ⇒|xn − r| < ω/2. Então, se m, n > n0, temos

|xn − xm| = |(xn − r) + (xm − r)| ≤ |xn − r|+ |xm − r| < ω

2+

ω

2= ω.

Portanto, (xn) é uma sequência de Cauchy. �

Intuitivamente: se para valores grandes de n, os termos (xn) se aproximam de r,então eles devem necessariamente aproximar-se uns dos outros. É natural pensar quese os termos estão mais próximos uns dos outros então eles devem estar próximosde algum número. Esta intuição motivou Cauchy a usar sequências para definiros números reais. Embora a sequência 3, 3.1, 3.14, 3.141, 3.1415, 3.14159, . . . sejade Cauchy ela não converge para um número racional; portanto, deve haver algumnúmero irracional para o qual ela convirja. Desse modo, completaremos os racionaisadicionando esse número.

O teorema seguinte nos mostra que mesmo que uma sequência de Cauchy nãoconvirja, ela não pode se tornar arbitrariamente grande.

Teorema 6.2. Se (xn) é uma sequência de Cauchy, então ela é limitada; isto é, existe algumM > 0 tal que |xn| ≤ M para todo n.

Demonstração. Seja (xn) uma sequência de Cauchy. Tomando ω = 1, obtemosn0 ∈ N tal que m, n ≥ n0 ⇒ |xm − xn| < 1. Em particular, n ≥ n0 ⇒ |xn0 − xn| < 1,ou seja, n ≥ n0 ⇒ xn ∈ (xn0 − 1, xn0 + 1). Sejam α o menor e β o maior elemento doconjunto X = {x1, x2, . . . , xn0 − 1, xn0 + 1}. Então xn ∈ [α, β] para cada n ∈ N, logo (xn)é limitada. �

Deve-se observar que diferentes sequências definem o mesmo número irracional.Por exemplo, a sequência racional

(qn) =

(3,

227

,333106

,355

1,

10399333102

, . . .)

,

também aproxima π. A sequência das aproximações decimais por excesso de√

2,define

√2. Para lidar com esse problema, uma relação de equivalência é imposta no

conjunto das sequências. Ou seja, todas as sequências que têm o mesmo limite devem

Page 65: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

6.2: A construção de Cantor (sequências de Cauchy) 61

pertencer a mesma classe. Em seguida, uma estrutura de corpo é construída.

Definiremos uma relação de equivalência no conjunto das sequências de Cauchy.Para a definição e propriedades das relações de equivalência veja a seção 1.2

Definição 6.5. Sejam as sequências de Cauchy de números racionais x = (xn) ey = (yn). No conjunto das sequências de Cauchy racionais, definimos a relação ∼como

x ∼ y ⇔ (xn − yn)→ 0.

Teorema 6.3. A relação ∼ definida no conjunto das de sequências de Cauchy de númerosracionais é uma relação de equivalência.

Demonstração. Vamos provar que esta relação é reflexiva, simétrica e transitiva.

(a) Reflexiva: xn − xn = 0, e a sequência cujos termos são 0 claramente convergepara 0. Logo, x ∼ x.

(b) Simétrica: Suponha x ∼ y, então xn − yn → 0. Mas yn − xn = −(xn − yn), e,|yn − xn| = |xn − yn|, logo, yn − xn → 0, isto é, y ∼ x.

(c) Transitiva: Suponha que x ∼ y e y ∼ z. Isto significa que xn − yn → 0 eyn − zn → 0. Dado ω > 0, existe n1 ∈ N tal que |xn − yn| < ω/2 para todon > n1. Também existe n2 ∈ N tal que |yn − zn| < ω/2 para todo n > n2. Sejan0 = max{n1, n2}, então para todo n > n0, temos

|xn − zn| = |(xn − yn) + (yn − zn)| ≤ |xn − yn|+ |yn − zn| <ω

2+

ω

2= ω.

Portanto, xn − zn → 0, isto é, x ∼ z.

Definição 6.6. O conjunto dos números reais R é o conjunto das classes de equivalência[(xn)] das sequências de Cauchy de números racionais. Isto é, cada classe deequivalência é um número real.

Note que o conjunto dos números racionaisQ estão contidos emR como sequênciasconstantes. Isto é, um número racional qualquer r, está representado em R como aclasse de equivalência [r] da sequência constante (r, r, r, . . .).

Considere a classe à qual pertencem as sequências que aproximam π. É fácilperceber que nenhuma sequência rn = r, com r racional, pode pertencer a essa classe,senão r − rn teria de tender a zero, o que é impossível. Essas classes que não contémsequências do tipo rn = r são precisamente aquelas que corresponderão aos númerosirracionais a serem criados.

É preciso determinar a estrutura algébrica de R. Para isso, definiremos na classede equivalências as operações de adição e multiplicação, e suas inversas, a subtraçãoe a divisão; quem é o elemento neutro 0 e o 1 e, determinar quando uma classe deequivalência é menor do que outra. Ou seja, definir uma relação de ordem.

Page 66: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

62 Capítulo 6: Os Números Reais e sua Construção

Definição 6.7 (adição e multiplicação). Sejam s, t ∈ R. Então existem sequências deCauchy (xn), (yn) de números racionais com s = [(xn)] e t = [(yn)].

(a) s + t é a classe de equivalência da sequência (xn + yn).

(b) s · t é a classe de equivalência da sequência (xn · yn).

Precisamos verificar que as operações de adição e multiplicação no conjuntode classes de equivalência está bem definida. Isto é feito no teorema a seguir, oqual mostra que sequências equivalentes adicionadas a sequências equivalentes sãoequivalentes e sequências equivalentes multiplicadas por sequências equivalentes sãoequivalentes.

Teorema 6.4. Se (xn) e (x′n) são sequências de Cauchy equivalentes, da mesma forma que (yn)e (y′n), então (xn) + (yn) e (x′n) + (y′n) são equivalentes, do mesmo modo que, (xn) · (yn) e(x′n) · (y′n) são equivalentes.

Demonstração. Temos [(xn)] = [(x′n)] e [(yn)] = [(y′n)]. Assim, xn − x′n → 0 eyn − y′n → 0. Então (xn + yn)− (x′n + y′n) = (xn − x′n) + (yn − y′n). É fácil perceber que(xn − yn) + (x′n − y′n)→ 0 e, portanto, [(xn + yn)] = [(x′n + y′n)].

Queremos mostrar que [(xn)(yn)] = [(x′n)(y′n)], isto é, xnyn − x′ny′n → 0.Assim,

xn · yn − x′n · y′n = xn · yn + (yn · x′n − yn · x′n)− x′n · y′n= (xn · yn − yn · x′n) + (yn · x′n − x′n · y′n)= yn · (xn − x′n) + x′n · (yn − y′n).

Portanto, |xn · yn− x′n · y′n| ≤ |yn| · |xn− x′n|+ |x′n| · |yn− y′n|. Pelo teorema 6.2, existemM, L tais que |yn| ≤ M e |x′n| ≤ L, para todo n. Tomando R (por exemplo, R = M + L)maior do que M e L, temos:

|xn · yn − x′n · y′n| ≤ |yn| · |xn − x′n|+ |x′n| · |yn − y′n| ≤ R · (|xn − x′n|+ |yn − y′n|).

Como xn − x′n → 0 e yn − y′n → 0, então xn · yn − x′n · y′n → 0. �

Portanto, as duas operações, + e ·, estão bem definidas. É preciso mostrar que R,equipado com essas operações, é um corpo.

Lema 6.1. Se (xn) é uma sequência de Cauchy que não tende a 0, então existe um n0 ∈ N talque para n > n0, xn 6= 0.

Teorema 6.5. Dado qualquer número real s 6= 0, existe um número real t tal que s · t = 1.

Demonstração. Temos s 6= 0, isto significa que s não está na classe de equivalênciade (0, 0, 0, . . .). Em outras palavras, s = [(xn)] onde xn − 0 não converge para 0.Devemos mostrar que existe um número real t = [(yn)] tal que s · t = [(xn · yn)] éa mesma classe de equivalência de [(1, 1, 1, . . .)]. Isto decorre do fato de que númerosracionais não nulos possuem inversos multiplicativos. Como xn − 0 não convergepara 0, pelo lema anterior, existe n0 tal que xn 6= 0, para n > n0. Defina uma

Page 67: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

6.2: A construção de Cantor (sequências de Cauchy) 63

sequência (yn) de números racionais onde yn = 0, para n ≤ n0 e yn = 1/xn, paran > n0; (yn) = (0, 0, . . . , 0, 1/xn0+1, 1/xn0+2, . . .). Então xn · yn é igual a xn · 0 = 0para n ≤ n0 e igual a xn · yn = xn · 1/xn = 1 para n > n0. Observando a sequência(1, 1, 1, . . .), temos que (1, 1, 1, . . .) − (xn · yn) é a sequência a qual é 1 − 0 = 1 paran ≤ n0 e igual a 1− 1 = 0, para n > n0. Desde que esta sequência é a partir de n0+1igual a 0, ela converge para 0 e então [(xn · yn)] = [(1, 1, 1, . . .)] = 1 ∈ R. Isto mostraque t = [(yn)] é o inverso multiplicativo de s = [(xn)]. �

Teorema 6.6. R é um corpo.

A demonstração fica como exercício. Basta mostrar a definição e propriedades deum corpo para o conjunto das classes de equivalência das sequências de Cauchy denúmeros racionais. Após mostrar que (R,+, .) é um corpo, o próximo passo consisteem mostrar que R é um corpo ordenado, isto é, que existe uma relação de ordem <em R que respeita as operações de corpo. Definiremos o conceito de uma sequênciapositiva e de classes de equivalência de sequências positivas.

Definição 6.8. Uma sequência de Cauchy de números racionais (xn) é chamada positivase existem inteiros positivos M e n0 tais que, se n > n0 então xn > 1/M. Se s ∈ R,dizemos que s é positivo se uma das sequências em s é positiva. Dados dois númerosreais s, t, dizemos que s > t se s− t é positiva.

A boa definição dessas relações de ordem definidas é garantida pelo próximoteorema.

Teorema 6.7. Se uma sequência de Cauchy na classe de equivalência de s no final tem apenastermos positivos, então qualquer outra sequência de Cauchy na mesma classe de equivalênciano final tem apenas termos positivos.

Fica a cargo o leitor, verificar que todos os axiomas de ordem valem para R.Mostraremos apenas uma propriedade e as demonstrações das demais são similares.

Teorema 6.8. R é um corpo ordenado.

Teorema 6.9. Considere s, t números reais tais que s > t, e seja r ∈ R. Então s + r > t + r.

Demonstração. Seja s = [(xn)], t = [(yn)], e r = [(zn)]. Como s > t, isto é, s− t > 0,então existe um n0 tal que, para n > n0, xn − yn > 0. Assim, xn > yn para n > n0.Adicionando zn a ambos os lados desta desigualdade (pois isto pode ser feito paranúmeros racionais), obtemos xn + zn > yn + zn para n > n0, ou (xn + zn)− (yn + zn) >0 para n > n0. Note também que (xn + zn)− (yn + zn) = xn − yn não converge parazero, pois, por hipótese, s − t > 0. Portanto, pela definição de número real positivo,s + r = [(xn + zn)] > [(yn + zn)] = t + r. �

Vamos provar que R é um corpo arquimediano. Em seguida, mostraremos que Rpossui a propriedade da menor cota superior, característica que o distingue de Q.

Teorema 6.10. R tem a propriedade arquimediana. Isto é, existe m, n0 ∈ N tal que mxn > ynpara todo n > n0.

Page 68: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

64 Capítulo 6: Os Números Reais e sua Construção

Demonstração. Sejam s, t números reais. Vamos obter um número natural m tal quem.s > t. Neste contexto, m = [(m, m, m, . . .)]. Considere ainda s = [(xn)] e t = [(yn)].Vamos provar que existe m tal que

[(m, m, m, . . .)].[(x1, x2, x3, x4, . . .)] = [(mx1, mx2, mx3, mx4, . . .)] > [(y1, y2, y3, y4, . . .)].

Para mostrar que [(mxn)] > [(yn)], ou [(mxn− yn)] é positiva, basta mostrar que existeum n0 tal que mxn − yn > 0 para todo n > n0, e que mxn − yn 9 0.

Suponha, por absurdo, que para todo m e n0, existe um n > n0 tal que mxn ≤ yn.Como (yn) é uma sequência de Cauchy, é limitada, isto é, existe um número racional Mtal que yn ≤ M para todo n. Pela propriedade arquimediana para números racionais,dado qualquer número racional pequeno ω > 0 existe um m tal que M/m < ω/2.Fixemos tal m. Então, se mxn ≤ yn, temos xn ≤ yn/m ≤ M/m < ω/2.

Como (xn) é uma sequência de Cauchy, existe n0 tal que para n, k > n0, |xn − xk| <ω/2. Por hipótese, assumimos que para n > n0 temos mxn ≤ yn, o que significa quexn < ω/2. Mas, para todo k > n0, temos xk − xn < ω/2, assim, xk < xn + ω/2 <ω/2 + ω/2 = ω. Portanto, xk < ω para todo k > n0. Isto prova que xk → 0, o quecontradiz o fato de que [(xn)] = s > 0.

Portanto, existe de fato algum m ∈ N tal que mxn − yn > 0 para todo nsuficientemente grande. Para concluir, devemos mostrar que mxn − yn 9 0. Naverdade, é possível que mxn − yn → 0 (por exemplo, se (xn) = (1, 1, 1, . . .) e (yn) =(m, m, m, . . .)). Neste caso, basta simplesmente tomar um valor grande para m. Isto é,seja m um número natural qualquer obtido como descrito anteriormente, de modo quemxn − yn > 0 para todo n suficientemente grande. Se é verdade que mxn − yn 9 0,então a demonstração está completa. Por outro lado, se mxn − yn → 0, então toma-se o inteiro m + 1. Desde que s = [(xn)] > 0, temos xn > 0 para n grande, então(m+ 1)xn− yn = mxn− yn + xn > xn > 0 para todo n grande, então m+ 1 funciona tãobem quanto m; e, desde que mxn− yn → 0, temos (m+ 1)xn− yn = (mxn− yn)+ xn 90 desde que s = [(xn)] > 0 (então xn 9 0).

A seguir, mostramos que Q é denso em R.

Teorema 6.11. Dado qualquer número real r, e qualquer número racional (pequeno) ω > 0,existe um número racional q tal que |r− q| < ω.

Demonstração. O número real r é representado por uma sequência de Cauchy(x1, x2, x3, . . .). Como esta sequência é de Cauchy, dado ω, existe n0 tal que, paratodo m, n > n0, |xm − xn| < ω. Tome algum l > n0 fixo, podemos tomar o númeroracional q dado por q = [(xl, xl, xl, . . .)]. Então temos r − q = [(xn − xl)

∞n=1], e

q− r = [(xl − xn)∞n=1]. Desde que l > n0, para n > n0, temos xn− xl < ω e xl − xn < ω,

o que significa que r− q < ω e q− r < ω; portanto, |r− q| < ω.�

Antes de mostrar que R é completo, precisamos mostrar alguns resultados que nosauxiliarão nessa demonstração.

Sejam S ⊂ R um subconjunto não vazio e M uma cota superior para S. Vamosconstruir duas sequências de números reais (un) e (ln). Como S é não vazio, existealgum elemento s0 ∈ S. Usaremos indução para obter os elementos das sequências(un) e (ln).

Page 69: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

6.2: A construção de Cantor (sequências de Cauchy) 65

• Seja u0 = M e l0 = s0;

• Suponha que já definimos un e ln. Considere o número mn = (un + ln)/2, a médiaentre un e ln.

• Se mn é uma cota superior para S, defina un+1 = mn e ln+1 = ln;

• Se mn não é uma cota superior para S, defina un+1 = un e ln+1 = mn;

Como s0 < M, é fácil provar por indução que (un) é uma sequência não-crescente(un+1 ≤ un)e (ln) é uma sequência não-decrescente (ln+1 ≥ ln).

Lema 6.2. (un) e (ln) como definidos anteriormente são sequências de Cauchy de númerosreais.

Demonstração. Note que ln ≤ M para todo n. Como (ln) é não-decrescente, temosque (ln) é de Cauchy. Para (un), temos un ≥ s0, para todo n, e então −un ≤ −s0. Como(un) é não-crescente, (−un) é não-decrescente, e, como já vimos, (−un) é de Cauchy.Logo, é fácil verificar que (un) é de Cauchy. �

Lema 6.3. Existe um número real u tal que un → u.

Demonstração. Fixe um termo un na sequência (un). Pelo teorema 6.11, existe umnúmero racional qn tal que |un − qn| < 1/n. Considere a sequência (q1, q2, q3, . . .) denúmeros racionais. Mostraremos que esta sequência é de Cauchy. Fixe ω > 0. Pelapropriedade arquimediana, escolha N tal que 1/N < ω/3. Como (un) é de Cauchy,existe n, m > M; |un − um| < ω/3. Então, contanto que n, m > max{N, M}, temos:|qn − qm| = |(qn − un) + (un − um) + (um − qm)| ≤ |qn − un|+ |un − um|+ |um −

qm| < ω3 + ω

3 + ω3 = ω.

Portanto, (qn) é uma sequência de Cauchy de números racionais, logo, representaum número real u = [(qn)]. Devemos mostrar que un − u → 0, mas isto épraticamente construído na definição de u. Para ser preciso, considere q̃n um númeroreal [(qn, qn, qn, . . .)], vemos que q̃n− u→ 0. Mas, un− q̃n < 1/n por construção. Logo,se q̃n → u e un − q̃n → 0, então un → u. �

Temos que (un) é uma sequência não-crescente de cotas superiores para S, tendea um número real u, o qual é a menor cota superior para o conjunto S, conformedemonstrado no lema seguinte.

Lema 6.4. ln → u.

Demonstração. Note que no primeiro caso acima, temos

un+1 − ln+1 = mn − ln =un + ln

2− ln =

un − ln2

.

No segundo caso, temos:

un+1 − ln+1 = un −mn = un −un + ln

2=

un − ln2

.

Page 70: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

66 Capítulo 6: Os Números Reais e sua Construção

Isto significa que u1 − l1 = 12(M − s), e então u2 − l2 = 1

2(u1 − l1) =(

12

)2(M − s),

e, pode-se provar por indução que, un − ln = 2−n(M − s). Desde que M > s temosM− s > 0, e desde que 2−n < 1/n, pela propriedade arquimediana para R, temos quepara qualquer ω > 0, 2−n(M− s) < ω para todo n suficientemente grande. Portanto,un − ln < 2−n(M − s) < ω e, então un − ln → 0. Logo, desde que un → u, temostambém ln → u.

Teorema 6.12. R tem a propriedade da menor cota superior.

Demonstração. Primeiramente, devemos mostrar que u é uma cota superior.Suponha, por absurdo, que u não é cota superior. Assim, u < s, para algum s ∈ S.Então ω ≡ s− u é > 0 e, desde que un → u e é não-crescente, deve haver um n tal queun − u < ω, o que significa que un < u + ω = u + (s− u) = s. Mas, un é uma cotasuperior para S. Contradição. Portanto, u é cota superior para S.

Sabemos também que, para cada n, ln não é uma cota superior, significando quepara cada n, existe um sn ∈ S tal que ln ≤ sn. Pelo lema 6.4, temos que ln → u, e, comoa sequência (ln) é não-decrescente, isto significa que para cada ω > 0, existe um n0 talque, para n > n0, ln > u− ω. Portanto, para n > n0, sn ≥ ln > u− ω. Em particular,para cada ω > 0, existe um s ∈ S tal que s > u−ω. Isto significa que nenhum númeromenor do que u pode ser uma cota superior para S. Portanto, u é a menor cota superiorpara S, isto é, sup s existe. �

Portanto, o conjunto R, cujos elementos são classes de equivalência de sequênciasracionais de Cauchy é um corpo ordenado e completo.

6.3 O método de Dedekind (cortes de Dedekind)

Richard Dedekind (1831-1916) na metade do século XIX, ao preparar suas aulasde Cálculo Diferencial e tentar demonstrar que toda sequência monótona limitada éconvergente, percebeu a necessidade de uma fundamentação adequada de númeroreal. Ele foi buscar inspiração para sua construção dos números reais na teoria deproporções de Eudoxo. Para entender essa construção, vamos considerar conhecidosos números racionais e seguir os passos dados no livro de Rudin (1971) [28]. Nestemétodo, os elementos de R são certos subconjuntos de Q, chamados cortes.

Cortes de Dedekind

Definição 6.9. Diz-se que um conjunto α de números racionais é um corte se:

(i) α 6= ∅ e α 6= Q;

(ii) Seja q ∈ Q. Se p ∈ α e q < p então q ∈ α.

(iii) Se p ∈ α então p < r, para algum r ∈ α.

Page 71: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

6.3: O método de Dedekind (cortes de Dedekind) 67

A primeira afirmação implica que α contém pelo menos um racional, mas nãotodos. A segunda afirma que todo número racional do conjunto é menor do que todonúmero racional que não pertence ao conjunto. A última implica que, em α, não existeracional máximo.

Notação: As letras p, q, r, . . . denotam números racionais e α, β, γ, . . . denotamcortes.

Exemplo 6.2. Qualquer número racional r determina um corte em que α é o conjuntode todos os números racionais menores do que r.

É claro que α satisfaz os itens (i) e (ii) da definição 6.9. Para provar o item (iii),basta observar que qualquer que seja p ∈ α, tem-se

p <p + r

2< r,

e, portanto, (p + r)/2 ∈ α.Note que r 6∈ α. Este corte dado pelo exemplo 6.2 é chamado corte racional. Para

indicar que um corte α é o corte racional relacionado a r escreveremos α = r∗.

Teorema 6.13. Se p ∈ α e q 6∈ α, então p < q.

Demonstração. Suponha que p ∈ α e q ≤ p, conclui-se de (ii) que q ∈ α.Contradição. Logo, p < q. �

Os elementos de α são, às vezes, chamados números inferiores de α e os númerosracionais que não estão em α são chamados números superiores de α. No exemplo 6.2,r é o número superior mínimo de α.

Uma vez entendido o conceito de corte, é preciso definir ordem, isto é, o quesignifica um corte ser menor do que outro; definir adição e multiplicação de cortese demonstrar as propriedades para essas operações com base nas propriedades jáestabelecidas para os racionais.

Definição 6.10. Sejam α, β cortes. Escrevemos α = β se de p ∈ α resulta p ∈ β ede q ∈ β resulta q ∈ α, isto é, se os dois conjuntos são idênticos. Caso contrário,escrevemos α 6= β.

Observação. A igualdade nem sempre é identidade. Por exemplo, dados doisracionais p = a/b e q = c/d, onde a, b, c, d ∈ Z, p = q significa ad = bc e nãonecessariamente a = c e b = d.

Definição 6.11. Sejam α, β cortes. Escrevemos α < β( ou β > α) para significar que α ésubconjunto próprio de β, isto é, existe um racional p tal que p ∈ β e p 6∈ α.

Observação.

1. α ≤ β significa α = β ou α < β.

2. α ≥ β significa β ≤ α.

3. Se α > 0∗, dizemos que α é positivo; se α ≥ 0∗, dizemos que α não é negativo.Analogamente, se α < 0∗, α é negativo, e se α ≤ 0∗, α não é positivo.

Page 72: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

68 Capítulo 6: Os Números Reais e sua Construção

Teorema 6.14. Sejam α, β cortes. Então α = β ou α < β ou β < α.

Demonstração. Pelas definições 6.10, 6.11, se α = β então nenhuma das outras duasrelações é válida. Vamos mostrar que α < β e β < α se excluem mutuamente. Paraisso, suponha que ambas as relações sejam válidas. Como α < β, existe um racional ptal que p ∈ β e p 6∈ α. Como β < α, existe um racional q tal que q ∈ α e q 6∈ β. Peloteorema 6.13,de p ∈ β e q 6∈ β resulta p < q, enquanto que, q ∈ α e p 6∈ α resulta q < p.Contradição, pois não pode ser p < q e q < p. Assim, provamos que, no máximo,uma das três relações é válida. Suponhamos que α 6= β. Então, ou existe um númeroracional p em α mas não em β e, neste caso, β < α ou existe um racional q em β, masnão em α, e, neste caso, α < β. �

Teorema 6.15. Sejam α, β, γ cortes. Se α < β e β < γ, então α < γ.

Demonstração. Como α < β, existe um racional p tal que p ∈ β e p 6∈ α. Comoβ < γ, existe um racional q tal que q ∈ γ e q 6∈ β. Mas, se p ∈ β e q 6∈ β então p < q.Como p 6∈ α, então q 6∈ α. Logo, q ∈ γ e q 6∈ α, o que significa que α < γ. �

Portanto, o conjunto de cortes é um conjunto ordenado. Vamos definir a adiçãonesse conjunto.

Teorema 6.16. Sejam α, β cortes. Seja γ o conjunto de todos os racionais r tais que r = p + q,com p ∈ α e q ∈ β. Então γ é um corte.

Demonstração. Precisamos provar que γ cumpre as três condições da definição 6.9.

(i) É claro que γ é não vazio. Consideremos s 6∈ α, t 6∈ β, onde s, t ∈ Q. Temos ques > p, para todo p ∈ α e t > q, para todo q ∈ β. Assim, s + t > p + q e s + t 6∈ γ.Logo, γ não contém todos os racionais.

(ii) Suponhamos r ∈ γ, s < r, sendo s racional. Logo, r = p + q, com p ∈ α e q ∈ β.Como s < r, temos que s− q < p, assim, s− q ∈ α e s = (s− q) + q ∈ α + β.

(iii) Suponhamos r ∈ γ. Logo, r = p + q, com p ∈ α e q ∈ β. Existe um racional s > ptal que s ∈ α. Portanto, s + q > r e r não é o maior racional em γ.

Definição 6.12. Se α, β são cortes, então

γ = α + β = {r + s; r ∈ α e s ∈ β}

é um corte e chama-se soma de α e β.

Vejamos algumas propriedades da operação de adição no conjunto dos cortes.

Teorema 6.17. Sejam α, β, γ cortes. Então,

(i) α + β = β + α;

(ii) (α + β) + γ = α + (β + γ);

Page 73: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

6.3: O método de Dedekind (cortes de Dedekind) 69

(iii) α + 0∗ = α;

Demonstração.

(i) α + β é o conjunto de todos os racionais da forma p + q, onde p ∈ α e q ∈ β. Nadefinição de β + α, consideramos q + p, em vez de p + q. Pela comutatividade daadição de racionais, p + q = q + p. Portanto, α + β = β + α.

(ii) resultado da propriedade associativa da adição de números racionais.

(iii) Seja r ∈ α + 0∗. Logo, r = p + q com p ∈ α e q ∈ 0∗( isto é, q < 0). Assim,p + q < p, de modo que, p + q ∈ α e r ∈ α. Portanto, α + 0∗ ⊂ α.

A seguir, suponhamos r ∈ α e tomemos s ∈ α com s > r. Então, r − s ∈ 0∗, er = s + (r− s) ∈ α + 0∗. Portanto, α ⊂ α + 0∗. Assim, α + 0∗ = α.

Teorema 6.18. Seja α um corte e r > 0 um racional dado. Existem racionais p, q tais quep ∈ α, q 6∈ α, q não é o número superior mínimo de α e q− p = r.

Demonstração. Consideremos um racional s ∈ α. Para n = 0, 1, 2, . . . seja sn =s + nr. Então existe um único inteiro m tal que sm ∈ α e sm+1 6∈ α. Se sm+1 não for onúmero superior mínimo de α, consideremos p = sm, q = sm+1.

Se sm+1 for o número superior mínimo de α, consideremosp = sm + r

2 , q = sm+1 +r2 . �

Teorema 6.19. Seja α um corte. Existe um único corte β tal que α + β = 0∗.

Demonstração. Primeiramente, provaremos a unicidade. Se α + β1 = α + β2 = 0∗,temos das propriedades da adição de cortes que, β2 = 0∗ + β2 = (α + β1) + β2 =(α + β2) + β1 = 0∗ + β1 = β1.

Para provar a existência do corte, seja β o conjunto de todos os racionais p taisque −p é um número superior de α, mas não o número superior mínimo. Temos queverificar que este conjunto β satisfaz as três condições da definição 6.9. A primeiracondição é óbvia. Vamos provar a segunda condição. Se p ∈ β e q < p (q racional),então −p 6∈ α e −q > −p, de modo que −q é um número superior de α, mas não omínimo. Portanto, q ∈ β. Por fim, se p ∈ β,−p é um número superior de α, mas nãoo mínimo, de modo que existe um racional q tal que −q < −p e −q 6∈ α. Seja r = p+q

2 .Logo,−q < −r < −p, de modo que−r é um número superior de α, mas não o mínimo.Portanto, encontramos um racional r > p tal que r ∈ β, o que prova a terceira condição.Assim, mostramos que β é um corte, precisamos verificar se α + β = 0∗.

Suponhamos p ∈ α + β. Logo, p = q + r, com q ∈ α e r ∈ β. Portanto,−r 6∈ α,−r > q, q + r < 0 e p ∈ 0∗.

Suponhamos p ∈ 0∗. Portanto, p < 0. Podemos determinar racionais q ∈ α, r 6∈ α(e tal que r não seja o número superior mínimo de α), de modo que r− q = −p. Como−r ∈ β, temos p = q− r = q + (−r) ∈ α + β, o que completa a demonstração.

Page 74: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

70 Capítulo 6: Os Números Reais e sua Construção

Observação. Designamos por −α o corte β do teorema 6.19.

Teorema 6.20. Sejam α, β, γ cortes.

(i) Se α + β = α + γ então β = γ.

(ii) Se β < γ então α + β < α + γ. Em particular, (para β = 0∗) temos α + γ > 0∗, seα > 0∗ e γ > 0∗.

Demonstração.

(i) Pelo teorema 6.17, β = 0∗ + β = (−α) + (α + β) = (−α) + (α + γ) = 0∗ + γ = γ

(ii) É óbvio que α + β ≤ α + γ; se α + β = α + γ, pelo item anterior, β = γ.

Teorema 6.21. Sejam α, β cortes. Existe um único corte γ tal que α + γ = β.

Demonstração. Se γ1 6= γ2 então α + γ1 6= α + γ2. Assim, existe no máximo um γnas condições enunciadas.

Seja γ = β + (−α), então α + γ = α + [β + (−α)] = α + [(−α) + β] = [α + (−α)] +β = 0∗ + β = β. �

Observação.

1. Em vez de β + (−α) escrevemos β− α;

2. Pode-se verificar pelos resultados apresentados que o conjunto dos cortes é umgrupo comutativo em relação à adição.

Vamos definir a multiplicação no conjunto dos cortes e mostrar que se obtém umcorpo. Nessa operação temos que considerar os diferentes casos correspondentes aossinais dos fatores em questão.

Teorema 6.22. Sejam α, β cortes tais que α ≥ 0∗, β ≥ 0∗. Seja γ o conjunto de todos osracionais r tais que r = pq, em que p ∈ α, q ∈ β, p ≥ 0, q ≥ 0. Então γ é um corte.

Definição 6.13. Chamamos o corte γ do teorema 6.22 de produto de α e β erepresentamos por αβ.

Definição 6.14. Sejam α, β cortes. Definimos

αβ =

−[(−α)β] se α < 0∗, β ≥ 0∗,−[α(−β)] se α ≥ 0∗, β < 0∗,(−α)(−β) se α < 0∗, β < 0∗.

Teorema 6.23. Quaisquer que sejam os cortes α, β, γ temos:

(i) αβ = βα;

(ii) (αβ)γ = α(βγ);

Page 75: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

6.3: O método de Dedekind (cortes de Dedekind) 71

(iii) α(β + γ) = αβ + αγ;

(iv) α0∗ = 0∗;

(v) αβ = 0∗ somente se α = 0∗ ou β = 0∗;

(vi) α1∗ = α;

(vii) Se 0∗ < α < β e γ > 0∗, então αγ < βγ.

Demonstração. São análogas as demonstradas para a adição, exceto quando se faznecessário considerar vários casos, correspondentes aos sinais dos fatores em questão.Como exemplo, vamos provar o item (iii). Para isso, é preciso considerar diferentescasos. Suponha α > 0∗, β < 0∗, β + γ > 0∗. Então γ = (β + γ) + (−β). Comoa lei distributiva vale para os racionais, temos que αγ = α(β + γ) + α(−β). Mas,α(−β) = −(αβ). Portanto, αβ + αγ = α(β + γ). Os outros casos são análogos.

Definição 6.15. A cada corte α associamos um corte |α|, que chamamos o valor absolutode α, definido por:

|α| ={

α, se α ≥ 0∗,−α, se α < 0∗.

É claro que |α| ≥ 0∗ para todo α e |α| = 0∗ somente se α = 0∗.

Teorema 6.24. Se α 6= 0∗, para cada corte β existe um único corte γ (que designamos porβ/α) tal que αγ = β.

Teorema 6.25. Quaisquer que sejam os racionais p e q, temos:

(i) p∗ + q∗ = (p + q)∗

(ii) p∗q∗ = (pq)∗

(iii) p∗ < q∗ se, e somente se, p < q.

Demonstração.

(i) Se r ∈ p∗ + q∗, temos r = s + t, com s < p, t < q, de modo que r < p + q.Portanto, r ∈ (p + q)∗. Se r ∈ (p + q)∗, então r < p + q. Sejam h = p + q− r, s =

p− h2 , t = q− h

2 . Logo, s ∈ p∗, t ∈ q∗ e r = p + q− h = (p− h2 ) + (q− h

2 ) = s + t,de modo que r ∈ p∗ + q∗, o que prova (i).

(ii) análoga ao item (i).

(iii) Se p < q, então p ∈ q∗, mas p 6∈ p∗, de modo que p∗ < q∗. Se p∗ < q∗, existe umracional r tal que r ∈ q∗, r 6∈ p∗. Portanto, p ≤ r < q, de modo que p < q.

Teorema 6.26. Se α, β são cortes e α < β, existe um corte racional r∗ tal que α < r∗ < β.

Page 76: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

72 Capítulo 6: Os Números Reais e sua Construção

Demonstração. Se α < β, existe um número racional p tal que p ∈ β e p 6∈ α.Escolhemos r > p de modo que r ∈ β. Como r ∈ β e r 6∈ r∗, temos r∗ < β. Como p ∈ r∗

e p 6∈ α, temos α < r∗. �

Teorema 6.27. Qualquer que seja o corte α, p ∈ α se, e somente se, p∗ < α.

Demonstração. Qualquer que seja o racional p, p 6∈ p∗. Portanto, p∗ < α, pois p ∈ α.Reciprocamente, se p∗ < α, existe um racional q tal que q ∈ α e q 6∈ p∗. Assim, q ≥ p,donde concluímos que p ∈ α, pois q ∈ α. �

Os números reais como cortes de Dedekind

Consideramos certos conjuntos racionais, chamados cortes, definimos uma relaçãode ordem, duas operações - adição e multiplicação, definimos as propriedades dessasoperações e demonstramos que a aritmética dos cortes satisfaz as mesmas leis daaritmética dos racionais. Assim, mostramos que o conjunto dos cortes é um corpoordenado.

Mostramos ainda que a substituição dos números racionais r pelos cortes racionaisr∗ correspondentes preserva somas, produtos e ordens. Desse modo, podemos dizerque o corpo ordenado de todos os números racionais é isomorfo ao corpo ordenado detodos os cortes racionais, o que permite identificar o corte racional r∗ com o númeroracional r. Isto é, do ponto de vista das operações de adição, multiplicação e darelação de ordem, não há por que distinguir Q do conjunto de cortes determinadospor racionais, bem como, não há razão para distinguir o número 5 e o corte queele determina, já que os dois têm o mesmo comportamento do ponto de vista dasoperações e da relação de ordem. Essa identificação foi feita por Dedekind e usadana construção dos números reais.

Definição 6.16. Os cortes serão chamados números reais. Cortes racionais serãoidentificados com números racionais e chamados de números racionais. Todos os demaiscortes serão chamados números irracionais.

Consideramos, assim, os racionais como subconjunto do conjunto dos númerosreais. O teorema 6.26 mostra que entre dois reais quaisquer existe um número racionale o teorema 6.13 mostra que cada número real α é o conjunto de todos os racionais ptais que p < α.

Teorema 6.28 (Dedekind). Sejam A e B conjuntos de números reais tais que:

(a) todo número real está em A ou em B;

(b) nenhum número real está simultaneamente em A e em B;

(c) nem A nem B é vazio;

(d) se α ∈ A e β ∈ B, temos α < β.

Page 77: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

6.3: O método de Dedekind (cortes de Dedekind) 73

Então, existe um e somente um, número real γ, tal que α ≤ γ para todo α ∈ A, e γ ≤ β,para todo β ∈ B.

Demonstração. (Unicidade) Suponhamos que existam dois números γ1 e γ2, paraos quais a conclusão é válida e que γ1 < γ2. Pelo teorema 6.26, existe γ3 tal queγ1 < γ3 < γ2. De γ3 < γ2 resulta γ3 ∈ A, enquanto que γ1 < γ3 resulta γ3 ∈ B, oque contradiz (b). Não pode, pois, existir mais de um número γ com as propriedadesdesejadas.

(Existência) Seja γ o conjunto de todos os racionais p tais que p ∈ α para algumα ∈ A. Temos que verificar se γ satisfaz as condições da definição 6.9.

(i) Como A 6= ∅, γ 6= ∅. Se β ∈ B e q 6∈ β então q 6∈ α qualquer que seja α ∈ A (poisα < β); portanto q 6∈ γ.

(ii) Se p ∈ γ e q < p, então p ∈ α, para algum α ∈ A e, por conseguinte, q ∈ α; logoq ∈ γ.

(iii) Se p ∈ γ, então p ∈ α, para algum α ∈ A; logo, existe q > p tal que q ∈ α; logoq ∈ γ.

Assim, γ é um número real.É claro que α ≤ γ qualquer que seja α ∈ A. Se existisse algum β ∈ B tal que β < γ,

haveria um racional p que satisfaria as condições p ∈ γ e p 6∈ β; mas, se p ∈ γ, entãop ∈ α para algum α ∈ A, do que resulta ser β < α, em contradição com (d). Assim,γ ≤ β qualquer que seja β ∈ B, o que completa a demonstração. �

Corolário 6.1. Nas condições do teorema 6.28, ou existe, em A, um número máximo, ou, emB, um número mínimo.

Com efeito, se γ ∈ A então γ é o maior número de A. Se γ ∈ B então γ é omenor número de B. Pelo item (i) do teorema 6.28, um desses dois casos deve ocorrer,enquanto, pelo item (ii), eles não podem ocorrer simultaneamente.

É a existência de γ a parte importante do teorema, que mostra que as lacunasencontradas no conjunto Q estão agora preenchidas.

Definição 6.17. Seja E um conjunto de números reais. Se existe um número y tal quex ≤ y para todo x ∈ E, dizemos que E é limitado superiormente e y é uma cota superiorde E.

Analogamente, definem-se cotas inferiores. Se E é limitado superior einferiormente, dizemos que E é limitado.

Definição 6.18. Seja E limitado superiormente. Suponhamos que y tenha as seguintespropriedades:

(a) y é uma cota superior de E;

(b) se x < y, então x não é uma cota superior de E.

Nestas condições, y é chamado o supremo de E e escreveremos y = sup E.

Page 78: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

74 Capítulo 6: Os Números Reais e sua Construção

Analogamente, define-se o ínfimo de qualquer conjunto E limitado inferiormente.Tanto o conjunto Q quanto R são corpos ordenados, mas apenas R satisfaz o

teorema a seguir, o que permite caracterizar R como corpo ordenado completo.

Teorema 6.29. Seja E um conjunto não vazio de números reais, limitado superiormente.Existe, então, o sup E.

Demonstração. Seja A o seguinte conjunto de números reais: α ∈ A se, e somentese, existe x ∈ E tal que α < x. Seja B o conjunto de todos os números reais que nãoestão em A. É claro que nenhum elemento de A é cota superior de E, e todo elementode B é cota superior de E. Para provar a existência do sup, basta, portanto, provar queB possui um mínimo.

Vamos verificar que A e B satisfazem as hipóteses do teorema 6.28. Evidentemente,(a) e (b) são válidas. Como E é não vazio, existe y tal que x ≤ y qualquer que sejax ∈ E; portanto, y ∈ B e a condição (c) é válida. Se α ∈ A, existe x ∈ E tal que α < x.Se β ∈ B, x ≤ β. Assim, α < β para todo α ∈ A, β ∈ B e a condição (d) é válida.

Portanto, pelo corolário do teorema 6.28, ou A possui máximo, ou B possui mínimo.Vamos provar que a primeira alternativa não pode ocorrer.

Se α ∈ A, existe x ∈ E tal que α < x. Consideremos α′ tal que α < α′ < x. Sendoα′ < x, α′ ∈ A, de modo que α não é o maior número em A. �

O resultado do teorema 6.29 é a criação dos números irracionais.Os cortes de Dedekind são definidos como um par de classes A e B de racionais,

tais que: A e B são conjuntos não vazios cuja união é o conjunto Q dos númerosracionais; todo número menor que algum elemento de A pertence a A, e todo númeromaior que algum número de B pertence a B. Dedekind postulou, de um modo geral,que todo corte possui um elemento de separação (supremo da classe A e ínfimo daclasse B). Isto equivale a dizer que A tem supremo ou B tem ínfimo. E o efeitodesse postulado é a criação dos números irracionais. É importante observar que não énecessário trabalhar com as duas classes de cada corte, podemos trabalhar somentecom as classes da esquerda ou somente com as classes da direita, pois umas ououtras bastam para caracterizar os números que elas definem. Se usamos as classesda esquerda, postulamos a existência de supremo em cada classe; se usamos as dadireita, postulamos que cada classe possui ínfimo. A construção dos números reaisfica completa com a identificação de Q com o conjunto dos cortes determinados pornúmeros racionais juntamente com a afirmação de que todo corte possui um elementode separação.

Em resumo, o que Dedekind essencialmente fez foi definir um número realcomo um corte no conjunto de números racionais. Este procedimento nos permite“construir” o conjunto dos números reaisR a partir do conjunto dos números racionaisQ.

Pode-se pensar em considerar o conjunto de todos os cortes de números reais erepetir a postulação de que todo corte deve ter um elemento separador, para tentarampliar o conjunto dos números reais. Entretanto, isso não é possível pois todosesses cortes possuem elemento separador, diferente do que acontecia com os cortesde números racionais. Por esse motivo, diz-se que o conjunto dos números reais é umcorpo completo, justamente porque todo corte tem elemento separador, ou seja, todoconjunto não vazio e limitado superiormente possui supremo. Mostraremos ainda

Page 79: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

6.4: O método das expansões decimais 75

que quaisquer dois corpos ordenados com a propriedade da menor cota superior sãoisomorfos, ou seja, na seção 6.6 provaremos um teorema que afirma que qualquercorpo ordenado completo é necessariamente isomorfo ao corpo dos números reais.Como o conjunto dos números reais é único, muitos autores admitem a existência deum corpo ordenado completo, que é chamado o corpo dos números reais.

6.4 O método das expansões decimais

Stevin, em 1585, foi responsável pela fundamentação da notação decimal. Apesarde não ter produzido uma construção rigorosa dos números reais, ele afirmou quenão existe na natureza nada significativamente diferente entre números racionais eirracionais. Essa construção é interessante devido a ênfase dada às expansões decimaisno ensino de Matemática. Nesta seção, será definida formalmente a expansão decimal,segundo trabalho de Aragona (2010) [2].

Vamos mostrar que os números reais podem ser aproximados, com erroarbitrariamente pequeno, por números racionais do tipo p.10−m, com p ∈ Z e m ∈ N.Para isso, primeiramente, definiremos os reais usando um conceito intuitivo, isto é, umnúmero real (racional ou irracional, que por simplicidade suporemos não negativo)será dado por uma expressão decimal.

Considere x > 0 real. Seja n0 o maior inteiro tal que n0 ≤ x e 0 ≤ ni ≤ 9, ∀i ∈ N.Então

x = n0 +n1

10+

n2

102 +n3

103 + . . . +nk

10k + . . .

Como a construção deQ é bastante simples, o caso x ∈ Q não será considerado porenquanto, de modo que consideraremos o caso em que x não é racional (como

√2).

Neste caso, x 6∈ Q, assim, sempre teremos

x 6= n0 +n1

10+

n2

102 +n3

103 . . . +nm

10m

mas cada expressão finita

xm := n0 +n1

10+

n2

102 +n3

103 . . . +nm

10m

será uma aproximação de x e esta aproximação será melhor quanto maior for onúmero m de somandos. Logo, podemos considerar sequências de números racionaisque aproximam um dado número real. Por exemplo, considere a sequência de númerosracionais:

x1 = 1, 4 = 1 + 410

x2 = 1, 41 = 1 + 410 +

1102

x3 = 1, 414 = 1 + 410 +

1102 +

4103

x4 = 1, 414 = 1 + 410 +

1102 +

4103 +

2104

...

A sequência de números racionais anterior aproxima-se de√

2.

Page 80: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

76 Capítulo 6: Os Números Reais e sua Construção

Já vimos que se pode aproximar números reais por sequências de racionais e, estassequências são as sequências de Cauchy. Uma sequência de Cauchy de númerosracionais arbitrária pode aproximar um número irracional, como por exemplo

√2,

ou um número racional, como 1/3 (que é aproximado pela sequência de Cauchy0, 3; 0, 33; 0, 333; . . .). Como já sabemos definir os números racionais, não é necessáriousar sequências de Cauchy em Q para isso, pois todo r ∈ Q é aproximado pelasequência de Cauchy em Q constante: x0 := r, x1 := r, x2 := r, . . . , xm := r, . . . , ouseja, recairíamos no caso trivial. O interesse está, portanto, em definir os irracionais. Jáestudamos a construção dos reais por sequências de Cauchy, veremos que ela nos levade forma rápida e natural à representação decimal dos números reais, que foi a formaem que estes números foram conhecidos durante muito tempo antes de ter sua teoriadevidamente estruturada pelos trabalhos de Dedekind, Cantor e outros. Além disso, arepresentação decimal é a forma tradicional de apresentar os números reais no ensinomédio.

O objetivo é a aproximação dos números reais por decimais e a representaçãoresultante de números reais por desenvolvimentos decimais ilimitados. O resultadoa seguir nos mostra uma aproximação dos reais por números racionais.

Proposição 6.1. Quaisquer que sejam α ∈ R e m ∈ N, existe um único pm ∈ Z tal que

pm.10−m ≤ α < (pm + 1).10−m.

Demonstração. Pela propriedade arquimediana de R, existe m ∈ N tal quem.10−m > |α|, ou seja, −m.10−m < α < m.10−m, donde resulta que o conjuntoX := {q ∈ Z; q.10−m ≤ α} é não vazio pois −m ∈ X e, além disto, X é majoradopor m. Em consequência, X admite um máximo pm que evidentemente satisfaz adesigualdade que queremos demonstrar, o que prova a afirmação relativa à existência.Se existisse um outro p′m ∈ Z tal que p′m.10−m ≤ α < (p′m + 1).10−m teríamos asdesigualdades estritas p′m.10−m < (pm + 1).10−m e pm.10−m < (p′m + 1).10−m queimplicam p′m < pm + 1 e pm < p′m + 1, ou seja, p′m ≤ pm e pm ≤ p′m, donde pm = p′m, oque prova a unicidade. �

Definição 6.19. Seja α ∈ Z arbitrário. Para cada m ∈ N, o número ζm := pm10−m

determinado pela proposição 6.1 é chamado valor decimal aproximado por falta deordem m de α.

Exemplo 6.3. Se α = 0, 333 . . . , então as sequências (pm) e (ζm) são (pm)m∈N =(0, 3, 33, 333, . . .) e (ζm) = (0; 0, 3; 0, 33; . . .)

A proposição 6.1 associa a cada α ∈ R duas sequências, (pm) e (ζm) em Z e Qrespectivamente. O resultado seguinte mostra a estrutura da sequência (pm).

Proposição 6.2. Sejam α ∈ R arbitrário e (pm)m∈N a sequência em Z determinada por α naproposição 6.1. Então pm é o número de dezenas de pm+1, para cada m ∈ N (em outros termos,(pm) é o quociente da divisão inteira de (pm+1) por 10).

Demonstração. Substituindo m por m + 1 na desigualdade da proposição 6.1obtemos:

Page 81: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

6.4: O método das expansões decimais 77

pm+1.10−m−1 ≤ α < (pm+1 + 1)10−m−1

o que junto com a desigualdade da proposição 6.1 implica as desigualdades estritas

pm.10−m < (pm+1 + 1)10−m−1 e pm+1.10−m−1 < (pm + 1)10−m

donde resultam as desigualdades seguintes:

10pm ≤ pm+1 < 10(pm + 1)

ou seja,pm ≤

pm+1

10< pm + 1.

Fixado α ∈ R arbitrário, sejam (pm)m∈N e (ζm)m∈N as sequências determinadas porα a partir da proposição 6.1 e da definição 6.19. Para cada m ∈ N, vamos indicar comαm+1 o resto da divisão inteira de pm+1 por 10. Como pm é o quociente da divisãointeira de pm+1 por 10, é claro que a definição acima de αm+1 equivale a seguintedefinição:

αm+1 := pm+1 − 10pm ∀m ∈ N e portanto 0 ≤ αm+1 ≤ 9). (2)

Multiplicando (2) por 10−m−1 obtemos

ζm+1 = ζm + αm+110−m−1 (m ∈ N).A expressão (2) define uma sequência de números inteiros (αm+1)m∈N =

(α1, α2, α3, . . .) tal que 0 6 αj ≤ 9 para cada j ∈ N∗ (pois αj é o resto de uma divisãointeira por 10). A seguir, definimos, com as notações da proposição 6.1: α0 := p0, istoé, p0 ≤ α ≤ p0 + 1. O inteiro α0 junto com a sequência (αm+1)m∈N acima determinamuma nova sequência (αm)m∈N = (α0, α1, α2, . . .).

As considerações precedentes mostram que a cada α ∈ R podemos associar osímbolo:

α0, α1α2α3 . . . αm . . . (3)

onde αm ∈ Z para cada m ∈ N e 0 ≤ αm ≤ 9 para cada m ∈ N∗. O símbolo (3)é chamado desenvolvimento decimal ilimitado de α. O resultado seguinte mostra arelação existente entre as sequências (ζm) e (αm) :

Proposição 6.3. Sejam α ∈ R, (pm)m∈N a sequência definida pelas desigualdades pm.10−m ≤α < (pm + 1).10−m, (ζm)m∈N a sequência dos valores decimais aproximados por falta deα (isto é, ζm = pm.10−m ∀m ∈ N)) e (αm)m∈N a sequência definida por αm+1 :=pm+1 − 10pm ∀m ∈ N e α0 := p0. Então, para cada m ∈ N vale a igualdade

ζm =m

∑k=0

10−k.αk (4)

Demonstração. Exercício. Basta usar indução em m. �

A proposição 6.3 mostra que ζm fica determinado pela sequência (α0, α1, . . . , αm), oque sugere usar o símbolo α0, α1α2 . . . αm para denotar ζm.

Page 82: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

78 Capítulo 6: Os Números Reais e sua Construção

Definição 6.20. Dados m ∈ N e uma sequência (αi)0≤i≤m em Z tal que 0 ≤ αi ≤ 9 paracada i = 1, 2, . . . , m, definimos

α0, α1α2 . . . αm :=m

∑k=0

10−k.αk (5)

Observação. Considere a notação anterior.

1. A desigualdade em 6.1 pode ser definida como:

α0, α1α2 . . . αm ≤ α < α0, α1α2 . . . αm + 10−m.

2. ∀m ∈ N, o número decimal ζm+1 = pm+1.10−m−1 se deduz do número decimalζm = pm.10−m, somando a este αm+1.10−m−1.

3. Fixados α ∈ R e r ∈ N arbitrários, se ζr = α0, α1α2 . . . αr denota o valordecimal aproximado por falta de ordem r de ordem α, então é fácil ver que odesenvolvimento decimal ilimitado de ζr é: α0, α1α2 . . . αr000 . . . 0 . . .

4. Considere o número decimal ζ = α0, α1α2 . . . αm, onde vamos supor m ∈ N (no caso m = 0, a sequência (αi)1≤i≤0 é vazia e definimos α0, α1α2 . . . αm := α0).Comecemos examinando α0 ∈ N∗. É fácil ver que podemos expressar α0 de modoúnico, como soma de múltiplos naturais de potências não negativas de 10 comcoeficientes β j tais que 0 ≤ β j ≤ 9 para cada índice j; em outros termos, existeuma única sequência (β j)0≤j≤n em N tal que 0 ≤ β j ≤ 9 para cada j = 0, 1, . . . , ne

α0 =n

∑k=0

10kβn−k.

Assim, podemos denotar β0β1 . . . βn := α0 e usar o símbolo

β0β1 . . . βn, α1α2 . . . αm (6)

para denotar o decimal ζ = α0, α1α2 . . . αm, que também pode ser representadodo seguinte modo:

n

∑k=0

10kβn−k +m

∑l=1

10−lαl.

Em particular, se m ≥ 1 e α1 = . . . = αm = 0, obtemos

β0β1 . . . βn, 00 . . . 0 = β0β1 . . . βn = α0.

Se α0 = 0, escrevemos 0, α1α2 . . . αm e podemos convencionar que neste caso asequência (β j)0≤j≤n tem apenas um elemento β0 = 0. Desta forma, podemos usara notação (6) sempre que α0 ∈ N. Precisamos considerar o caso α0 ∈ Z∗−(α0 ≤−1) então, como 0 < 0, α1α2 . . . αm < 1, é claro que ζ := α0, α1α2 . . . αm =α0 + 0, α1α2 . . . αm < 0 que implica 0 < −ζ = −α0 − 0, α1α2 . . . αm = |α0| −0, α1α2 . . . αm = α′0, α′1α′2 . . . α′m, onde |α′0| = |α0| − 1 ≥ 0 e 0 ≤ α′j ≤ 9 para

Page 83: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

6.4: O método das expansões decimais 79

cada j = 1, 2, . . . , m ( a existência dessa sequência (α′j)0≤tj≤m fica como exercício).Como α′0 ∈ N, pelo que precede existe uma única sequência (β′j)0≤j≤n em Z talque 0 ≤ β′j ≤ 9 para cada j = 1, 2, . . . , n de modo que:

−ζ = α′0, α′1α′2 . . . α′m = β′0β′1 . . . β′n, α′1α′2 . . . α′m

dondeζ = α0, α1α2 . . . αm = −β′0β′1 . . . β′n, α′1α′2 . . . α′m

Resumindo, todo decimal do tipo ζ = α0, α1α2 . . . αm admite uma representaçãoúnica por um símbolo do tipo (6) se α0 ∈ N e por um símbolo do tipo−β′0β′1 . . . β′n, α′1α′2 . . . α′m se α0 ∈ Z∗−, onde (αi) e (β j) são sequências de inteirosentre 0 e 9.

Definição 6.21. Chama-se desenvolvimento decimal ilimitado a qualquer símbolo dotipo

β0, β1 . . . βm . . . (7)

determinado por uma sequência (βm)m∈N em Z tal que 0 ≤ βm ≤ 9 para cada m ∈ N∗e, neste caso, para cada m ∈ N∗, βm é chamado m−ésima casa decimal de (7).

O desenvolvimento decimal de (7) é dito próprio se contém uma infinidade decasas decimais βm diferentes de 9. Indicamos com o símbolo D o conjunto de todosos desenvolvimentos decimais ilimitados próprios.

A expressão “número decimal” é frequentemente utilizada para indicar umdesenvolvimento decimal ilimitado (próprio ou não). Já vimos que é possível associara cada α ∈ R o seu desenvolvimento decimal ilimitado, o qual é único e dado por:

J(α) = α0, α1α2 . . . αm . . .

Assim, fica definida uma aplicação

J : α ∈ R→ J(α) = α0, α1α2 . . . αm . . . ∈ D0,

onde D0 denota o conjunto de todos os desenvolvimentos decimais ilimitados.

Teorema 6.30. A aplicação

J : α ∈ R→ J(α) = α0, α1α2 . . . αm . . . ∈ D

é bijetora e, para cada α ∈ R, a sequência (Jm(α))m∈N definida por J0(α) := α0 e (Jm(α)) :=α0, α1α2 . . . αm para cada m ∈ N∗, é uma sequência de Cauchy em Q que representa α.

Demonstração. A demonstração será omitida e pode ser encontrada em Aragona(2010) [2]. �

A bijeção J := R → D sugere naturalmente não fazer distinção entre α e o seudesenvolvimento decimal ilimitado J(α) = α0, α1α2 . . . αm . . . ∈ D, isto é,

α = J(α) = α0, α1α2 . . . αm . . . ∈ D ∀α ∈ R

Page 84: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

80 Capítulo 6: Os Números Reais e sua Construção

o que implica na identificação R = D.A identificação R = D mostra que é possível definir diretamente os números reais

usando os desenvolvimentos decimais ilimitados próprios sem passar pelas sequênciasde Cauchy. A teoria assim construída é tão rigorosa quanto as outras e permite definirmuito facilmente a relação de ordem em R que é a ordem lexicográfica, pois é fácil verque

x0, x1x2 . . . xm . . . < y0, y1y2 . . . ym . . .

se para o menor m ∈ N tal que xm 6= ym se verifica xm < ym. Entretanto, esta forma deconstruir a teoria dos números reais apresenta algumas dificuldades técnicas no estudoda estrutura algébrica de R.

Vamos explicar o significado de igualdades do tipo seguinte: 1 = 0, 99 . . . 9 . . . ou2, 13 = 2, 1299 . . . 9 . . . . Suponhamos que β = β0, β1 . . . βm . . . ∈ D0 ∩ CD o que significaque existe v ∈ N tal que βm = 9 para m > v, onde podemos evidentemente supor quev é o menor número natural que tem esta propriedade, isto é,

v = 0 ou βv < 9 se v ≥ 1.

Definimos o símboloβ∗ := β0, β1 . . . βv−1β′v00 . . . 0 . . .

por β′v := βv + 1 (observe que se v = 0 então β∗ = β′0, 00 . . . 0 . . .). É claro que β∗ ∈ De portanto, o teorema 6.30 assegura que existe um único β ∈ R tal que J(β) = β∗.Queremos mostrar que β é um desenvolvimento ilimitado legítimo de β.

De fato, m > v, consideremos os números decimais:

βm := β0, β1 . . . βv

m−v︷ ︸︸ ︷99 . . . 9 =

v

∑j=0

β j10−j + 9m

∑l=v+1

10−l

β∗m := β0, β1 . . . βv−1β′v

m−v︷ ︸︸ ︷00 . . . 0 =

v−1

∑j=0

β j10−j + β′v.10−v.

Então como β′v − βv = 1, pode-se mostrar (exercício) que β∗v − βm = 10−m

o que implica

|β− βm| ≤ |β− β∗m|+ |β∗m − βm| = |β− β∗m|+ 10−m ∀m > v.

Pode-se mostrar que limn→∞ β∗m = β e então, a desigualdade anterior acarretaráque limm→∞ βm = β ( e, portanto, (βm)m∈N é uma sequência de Cauchy).

Convencionamos identificar β com β∗ (exemplos: 1 = 0, 99 . . . 9 . . . ; 2, 13 =2, 1299 . . . 9 . . . ; 0, 3126 = 0, 312600 . . . 0 . . . = 3, 12599 . . . 9 . . .).

Define-se número decimal como qualquer elemento de D0 (lembrar que D0 % D).Podemos usar a bijeção J : R → D para obter a estrutura de corpo totalmente

ordenado deD a partir deR por meio das seguintes definições de adição, multiplicaçãoe ordem em D.

J(α) + J(β) := J(α + β) ∀α, β ∈ RJ(α).J(β) := J(αβ) ∀α, β ∈ R

J(α) < J(β) se e só se α < β, ∀α, β ∈ R

Page 85: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

6.4: O método das expansões decimais 81

que evidentemente definem uma estrutura de corpo totalmente ordenado sobreD tal que J é isomorfismo estritamente crescente de R sobre D. O número decimalJ(α) ∈ D é chamado a representação decimal de α ∈ R.

Existem dois tipos de desenvolvimentos decimais ilimitados próprios, um delescaracterizando os racionais e o outro os irracionais. Na escola, aprendemos a distinguiros racionais dos irracionais a partir de suas representações decimais. Os racionais sãoaqueles números decimais que, a partir de uma certa casa decimal, são periódicos como2, 32541 258︸︷︷︸ 258︸︷︷︸ 258︸︷︷︸ ou, em particular, os estacionários como 1, 1500 . . . 0 . . . . Estes

números decimais são chamados dízimas periódicas. Já os irracionais são apresentadoscomo aqueles números decimais sem nenhum tipo de periodicidade. Antes dedemonstrar esses fatos precisamos definir os conceitos de divisão aproximada.

Definição 6.22. Dados a, b ∈ N∗ com a < b, chamamos de divisão aproximada de a porb de ordem v ∈ N quando obtemos dois números inteiros q e r que satisfazem

a.10v = bq + r e 0 ≤ r < b. (8)

Se dividirmos a igualdade (8) por b.10v :

ab= q.10−v +

( rb

)10−v ( e 0 ≤ r

b< 1). (9)

O número decimal q.10−v será chamado de resultado de ordem v da divisãoaproximada de a por b.

De (9), resulta 0 ≤ rb < 1 e

∣∣ ab − q.10−v

∣∣ = ab − q.10−v =

( rb)

10−v < 10−v, quemostra que, mesmo no caso r > 0 pode-se tornar q.10−v tão próximo quanto se queirado racional a/b desde que se tome v ∈ N suficientemente grande.

Proposição 6.4. Se v = 0, a hipótese 0 < a < b e (8) mostram que q = 0 e r = a eportanto o desenvolvimento decimal ilimitado de q é J(q) = 0, 00 . . . 0 . . . Se v ≥ 1 então odesenvolvimento decimal ilimitado de q.10−v é da forma:

J(q.10−v) = 0, α1α2 . . . αv00 . . . 0 . . . , (∗) onde 0 ≤ αj ≤ 9 para cada j = 1, 2, . . . , v.

Demonstração. Fixado v ∈ N arbitrário, temos: a.10−v < b ou a.10−v ≥ b.No primeiro caso, por (8), resulta q = 0 e r = a.10−v < b, o que prova (∗) comα1 = α2 = . . . = αv = 0. Se a.10−v ≥ b então é claro que 0 < q < 10v. Em consequência,q admite um desenvolvimento em potências de 10 do tipo seguinte:

qv = a1.10v−1 + a2.10v−2 + . . . + αv =v

∑j=1

10v−j.αj, com 0 ≤ αj ≤ 9 e portanto:

qv.10−v = α110 +

α2102 + . . . + αv

10v = 0, α1α2 . . . αv = 0, α1α2 . . . αv00 . . . 0 . . . �

Consideremos a, b ∈ N∗ com a ≥ b. Ao fazermos a divisão inteira de a porb obteremos um quociente Q e um resto R, caracterizados pelas duas condições:a = b.Q + R e 0 < R < b, onde o caso R = 0 foi excluído, pois neste caso a divisãoaproximada é simplesmente a divisão exata. Em consequência,

ab= Q +

Rb

e 0 <Rb< 1. (10)

Page 86: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

82 Capítulo 6: Os Números Reais e sua Construção

Fazendo a divisão aproximada de R por b de ordem v ∈ N, obtemos a igualdade:

Rb= q.10−v +

( rb

)10−v (0 ≤ r

b< 1)

Substituindo em (10) temos

ab= (Q + q.10−v) +

( rb

)10−v e 0 <

rb< 1. (11)

Assim, quando a, b ∈ N∗ com a ≥ b, chamaremos de divisão aproximada de apor b de ordem v o processo descrito anterior e definimos o resultado de ordem vda divisão aproximada de a por b como sendo o número racional Q + q.10−v cujodesenvolvimento decimal ilimitado é do tipo

Q, α1α2 . . . αv00 . . . 0 . . .

Por fim, se a ∈ Z∗− (ainda suporemos b ∈ N∗) então a′ := −a ∈ N e definimosdivisão aproximada de a por b de ordem v ∈ N como o processo que consiste em fazera divisão aproximada de a′ por b de ordem v obtendo uma igualdade do tipo (9) ou(11) (dependendo de que 0 ≤ a′ < b ou a′ ≥ b.

Chamaremos resultado de ordem v da divisão aproximada de a por b, o númerodecimal −(Q + q.10−v), isto é, o oposto do resultado de ordem v da divisãoaproximada de a′ = −a por b.

Por fim, dados a ∈ Z e b ∈ N∗, chamaremos resultado da divisão prolongadade a por b ao símbolo α0, α1α2 . . . αm . . . ∈ D0 onde (αm)m∈N é a sequência definidaassim: para cada v ∈ N, o número decimal α0, α1α2 . . . αv = α0, α1α2 . . . αv00 . . . 0 . . . é oresultado de ordem v da divisão aproximada de a por b.

O lema seguinte formaliza alguns resultado já conhecidos desde o ensino primárioe, como a demonstração é longa, será omitida.

Lema 6.5.

(a) Se t ∈ Z então J(t) = t, 00 . . . 0 . . .

(b) J(10−m) = 0, 00 . . . 01︸ ︷︷ ︸m

00 . . . 0 . . .

(c) Se α ∈ R e J(α) = α0, α1α2 . . . αm . . . , então

α = α0 + J−1(0, α1α2 . . . αm . . .) eJ(α) = α0, 00 . . . 0 . . . + 0, α1α2 . . . αm . . .

Demonstração. Exercício. Para detalhes, consulte Aragona(2010)[2]. �

Vejamos a notação adotada e em seguida definiremos dízima periódica.Sejam α0 ∈ N, α0, α1α2 . . . αm . . . ∈ D e (β j)0≤j≤n a sequência determinada por α0 de

modo que

α0 = β0β1 . . . βn :=n

∑k=0

10kβn−k

Page 87: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

6.4: O método das expansões decimais 83

onde β j ∈ Z e 0 ≤ β j ≤ 9 para cada j = 0, 1, . . . , n. Definimos

β0β1 . . . βn, α1α2 . . . αm . . . := α0, α1α2 . . . αm . . .

donde resulta em particular β0β1 . . . βn, 00 . . . 0 . . . = α0, 00 . . . 0 . . .Logo, podemos escrever

β0β1 . . . βn, α1α2 . . . αm . . . := β0β1 . . . βn, 00 . . . 0 . . . + 0, α1α2 . . . αm.

Definição 6.23. Sejam α ∈ R e J(α) ∈ D seu desenvolvimento decimal ilimitado. Diz-se que J(α) = α0, α1α2 . . . é uma dízima periódica se existem v′ ∈ N e t′ ∈ N∗ tais queαm = αm+t′ ∀m > v′

São chamados índice divisório e tamanho da dízima J(α), respectivamente, osseguintes números:

v := min{v′ ∈ N; ∃t′ ∈ N∗ tal que vale αm = αm+t′ ∀m > v′}t := min{t′ ∈ N∗; αm = αm+t′ ∀m > v}

Pelas definições de t e v temos: αm = αm+t ∀m > v.Chama-se período da dízima J(α) ao número inteiro

θ :=t

∑σ=1

10t−σ · αv+σ.

Vamos verificar que θ = pv+t − 10t pv.Temos

pv+t = 10v+tζv+t = 10v+tv+t

∑k=0

10−kαk =v+t

∑k=0

10v+t−kαk

e

10t pv = 10t(10tζv) = 10t+vv

∑k=0

10−kαk =v

∑k=0

10v+t−kαk,

donde

pv+t − 10t pv =v+t

∑k=0

10v+t−kαk −v

∑k=0

10v+t−kαk

=v+t

∑k=v+1

10v+t−kαk =t

∑σ=1

10t−σαv+σ = θ.

Esquematicamente,

α0, α1α2 . . . αv αv+1 . . . αv+t︸ ︷︷ ︸ αv+t+1 . . . αv+2t︸ ︷︷ ︸ αv+2t+1 . . .︸ ︷︷ ︸ e θ =t

∑σ=1

10t−σαv+σ

é representado porθ = αv+1 . . . αv+t.

Page 88: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

84 Capítulo 6: Os Números Reais e sua Construção

Proposição 6.5. Se a ∈ N e b ∈ N∗ então o resultado de ordem v ∈ N da divisão aproximadade a por b coincide com a aproximação decimal por falta de ordem v do racional a/b. Emconsequência, o desenvolvimento decimal ilimitado próprio de a/b coincide com o resultadoda divisão prolongada de a por b.

Demonstração. As definições de divisão aproximada e de resultado de uma divisãoaproximada mostram que podemos nos limitar a considerar o caso 0 < a < b (pois ocaso a > b se reduz a este e o caso a = b é óbvio). A igualdade em (9) implica

q · 10−v ≤ ab

pois rb ≥ 0 e, portanto,

( rb)

10−v ≥ 0; e

ab< (q + 1)10−v

pois rb < 1 e portanto

( rb)

.10−v < 10−v. Donde resulta que q ∈ Z satisfaz asdesigualdades q · 10−v ≤ a

b < (q + 1)10−v. �

Proposição 6.6. Dados ξ ∈ R são equivalentes as condições:

(a) ξ ∈ Q.

(b) O desenvolvimento decimal ilimitado próprio de ξ é periódico a partir de alguma casadecimal (em outras palavras, J(ξ) é uma dízima periódica).

Demonstração. (a) ⇒ (b) Vamos supor que ξ = a/b com b ∈ N∗; assim como em(a), basta considerar o caso 0 < a < b. Temos que a10v = b.qv + rv e 0 ≤ rv < b(v ∈ N).

Para os valores v = 0, 1, 2, . . . , b teremos b + 1 restos r0, r1, r2, . . . , rb que são os b + 1inteiros que pertencem ao conjunto {0, 1, 2, . . . , b − 1} logo é claro que aparece pelomenos um resto “repetido”, isto é, existem v, v′ ∈ N com 0 ≤ v, v′ ≤ b e v 6= v′ comrv = rv′ e, neste momento aparece a periodicidade da divisão prolongada de a porb que, pela proposição anterior, coincide com o desenvolvimento decimal ilimitadopróprio de a/b.

(b)⇒ (a) O desenvolvimento decimal ilimitado J(ξ) de ξ é dado por

α0, α1α2 . . . αv︷ ︸︸ ︷αv+1 . . . αv+t

︷ ︸︸ ︷αv+t+1 . . . αv+2t . . .

︷ ︸︸ ︷αv+1+lt . . . αv+(l+1)t . . .

Esse desenvolvimento é, por hipótese, periódico de período θ = σv+1 . . . σv+t =· · · = σv+1+lt . . . σv+(l+1)t = · · · . Para simplificar, vamos usar a identificação R = D, oque permite escrever ξ = J(ξ), isto é,

ξ = α0, α1α2 . . . αvαv+1 . . . αv+t . . . αv+1+lt . . . αv+(l+1)t . . .

Vamos supor α0 ≥ 0 (e portanto, ξ = 0 se eliminarmos o caso trivial α0 = α1 =· · · = αv = αv+1 = · · · = αv+t = 0). Vimos que existe uma única sequência (β j)0≤j≤nem Z verificando 0 ≤ β j ≤ 9 sempre que 0 ≤ j ≤ n tal que α0 = β0β1 . . . βn e então, ξpode ser escrito assim:

Page 89: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

6.4: O método das expansões decimais 85

ξ = β0β1 . . . βn, α1α2 . . . αvαv+1 . . . αv+t . . . αv+1+lt . . . αv+(l+1)t . . .

Assim,

10vξ = β0β1 . . . βnα1α2 . . . αv, αv+1 . . . αv+t . . .

e

10v+tξ = β0β1 . . . βnα1α2 . . . αvαv+1 . . . αv+t, αv+t+1 . . . αv+2t . . .

As potências 10v e 10v+t foram escolhidas de modo que, após a vírgula, emcada uma das igualdades anteriores aparecesse o período completo θ repetidoindefinidamente. Como já mostrado, podemos escrever:

10vξ = β0β1 . . . βnα1α2 . . . αv, 00 . . . 0 . . . + 0, αv+1 . . . αv+t . . .

e

10v+tξ = β0β1 . . . βnα1α2 . . . αvαv+1 . . . αv+t, 00 . . . 0 . . . + 0, αv+t+1 . . . αv+2t . . .

o que implica

(10v+t − 10v)ξ = β0β1 . . . βnα1α2 . . . αvαv+1 . . . αv+t, 00 . . . 0 . . .− β0β1 . . . βnα1α2 . . . αv, 00 . . . 0 . . .

e então (10v+t − 10v)ξ = r− s onde

r := β0β1 . . . βnα1α2 . . . αvαv+1 . . . αv+t

=n

∑k=0

10n+v+t−k · βk +v

∑l=1

10v+t−l · αl +t

∑j=1

10t−j · αv+j

e

s := β0β1 . . . βnα1α2 . . . αv =n

∑k=0

10n+v−k · βk +v

∑i=1

10v−i · αi.

Portanto, r− s ∈ Q, donde ξ =r− s

10v(10t − 1)∈ Q.

O caso α0 ∈ Z∗− é deixado como exercício.�

Observação. A expressãor− s

10v(10t − 1)obtida na prova acima, é chamada a fração

geratriz da dízima periódica α0, α1α2 . . . αvαv+1 . . . αv+tαv+t+1 . . .

Page 90: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

86 Capítulo 6: Os Números Reais e sua Construção

6.5 R é um corpo ordenado e completo

Assim como o conjunto dos racionaisQ, o conjunto dos números reaisR é um corpoordenado. Entretanto, R tem a propriedade da completude, que o difere do conjuntoQ.

Como R é completo, podemos demonstrar a existência de raízes n-ésimas denúmeros reais positivos.

Teorema 6.31. Para cada x > 0, real, e cada n > 0, inteiro, existe um único número realy > 0 tal que yn = x. Este número y é designado por n

√x ou por x1/n.

Demonstração. É claro que não pode existir mais de um y nas condições acima,pois de 0 < y1 < y2 resulta yn

1 < yn2 .

Seja E o conjunto de todos os reais positivos t tais que tn < x.Se t = x/(1+ x), então 0 < t < 1; portanto, tn ≤ t < x, de modo que E não é vazio.Seja t0 = 1 + x. Se t > t0, então tn ≥ t > x, de modo que t 6∈ E e t0 é uma cota

superior de E.Seja y = sup E. Suponhamos yn < x. Consideremos h tal que 0 < h < 1

e h <x− yn

(1 + y)n − yn . Seja (nm) o coeficiente de zm no desenvolvimento do binômio

(1 + z)n, temos:

(y + h)n = yn +

(n1

)yn−1h +

(n2

)yn−2h2 + . . . +

(nn

)hn

≤ yn + h[(

n1

)yn−1 +

(n2

)yn−2 + . . . +

(nn

)]= yn + h[(1 + y)n − yn]

< yn + (x− yn) = x.

Logo, y + h ∈ E, contradizendo o fato de y ser cota superior de E.Suponhamos yn > x. Consideremos k tal que 0 < k < 1, k < y, e, ainda,

k <yn − x

(1 + y)n − yn .

Então, para t ≥ y− k, temos:

tn ≥ (y− k)n = yn −(

n1

)yn−1k +

(n2

)yn−2k2 − . . . + (−1)n

(nn

)kn

= yn − k[(

n1

)yn−1 −

(n2

)yn−2k + . . .− (−1)n

(nn

)kn−1

]≥ yn − k

[(n1

)yn−1 +

(n2

)yn−2 + . . . +

(nn

)]= yn − k [(1 + y)n − yn] > yn − (yn − x) = x.

Assim, y− k é uma cota superior de E, contradizendo o fato de y = sup E.Portanto, yn = x.

Page 91: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

6.6: A unicidade de R 87

6.6 A unicidade de RNesta seção mostraremos que não existem outros corpos ordenados completos

além de R. Ou seja, mostraremos que quaisquer dois corpos ordenados completos sãoisomorfos. Para isso, definiremos isomorfismo e seguiremos o roteiro feito por Spivakem [34].

Definição 6.24. Se F1 e F2 são dois corpos, um isomorfismo de F1 em F2 é uma função fde F1 em F2 com as seguintes propriedades:

(a) Se x 6= y, então f (x) 6= f (y).

(b) Se z ∈ F2, então z = f (x) para algum x ∈ F1.

(c) Se x, y ∈ F1, entãof (x⊕ y) = f (x)+ f (y),f (x� y) = f (x) � f (y);

Se F1 e F2 são corpos ordenados, com relações de ordem ≺ e < respectivamente,também é preciso satisfazer:

(d) Se x ≺ y, então f (x)< f (y).

Os corpos F1 e F2 são chamados isomorfos se existe um isomorfismo entre eles.Corpos isomorfos podem ser considerados como essencialmente o mesmo, isto é,qualquer propriedade de um, vale automaticamente para o outro.

Dado um corpo ordenado F, vamos verificar se F é isomorfo a R. Seja F um corpo,com as operações + e ., e “elementos positivos” P; escrevemos a<b para significar queb – a ∈ P.

Teorema 6.32. Se F é um corpo ordenado completo, então F é isomorfo a R.

Demonstração. Vamos construir uma função f de R em F e mostrar que existe umisomorfismo entre R e F.

Inicialmente, definimos f nos inteiros como segue:

f (0) = 0f (n) = 1+ · · ·+1︸ ︷︷ ︸

n vezes

para n > 0,

f (n) = −(1+ · · ·+1)︸ ︷︷ ︸|n| vezes

para n < 0,

É fácil verificar que:

f (m + n) = f (m)+ f (n); f (m · n) = f (m) � f (n),

para todos os inteiros m, n e é conveniente denotar f (n) por n. Definimos f nosnúmeros racionais por:

f (m/n) = m/n = m � n−1

Page 92: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

88 Capítulo 6: Os Números Reais e sua Construção

Note que, como f é um corpo ordenado, 1+ · · ·+1 6= 0 se n > 0. Esta definição fazsentido porque se m/n = k/l, então ml = nk, daí m � l = k �n, ou seja, m �n−1 = k � l−1.É fácil verificar que:

f (r1 + r2) = f (r1)+ f (r2)

f (r1 · r2) = f (r1) � f (r2)

para todos os racionais r1 e r2, e que f (r1) < f (r2) se r1 < r2.A definição de f (x) para x arbitrário é baseada na ideia familiar de que qualquer

número real é determinado pelos números racionais menores do que ele. Paraqualquer x ∈ R, seja Ax o subconjunto de F consistindo de todos f (r), para todosos números racionais r < x. O conjunto Ax é certamente não vazio, e é limitadosuperiormente, pois se r0 é um número racional com r0 > x, então f (r0) > f (r), paratodo f (r) em Ax. Como F é um corpo ordenado completo, o conjunto Ax tem umamenor cota superior; definimos f (x) como sup Ax.

Temos assim f (x) definida de dois modos diferentes, primeiro para x racional edepois para x arbitrário. É necessário mostrar que estas duas definições coincidempara x racional. Em outras palavras, se x é um número racional, queremos mostrarque sup Ax = f (x), onde f (x) denota m/n, para x = m/n. Isto não é automático, masdepende da completude de F.

Como F é completo, os elementos 1+ · · ·+1︸ ︷︷ ︸n vezes

, para números naturais n formam

um conjunto não limitado superiormente. As consequências deste fato para R têmequivalência em F : em particular, se a e b são elementos de F com a<b, então existe umnúmero racional r tal que a< f (r)<b.

Tendo feito esta observação, voltemos a demonstração de que as duas definiçõesde f (x) coincidem para x racional. Se y é um número racional com y < x, entãojá vimos que f (y)< f (x). Portanto, todo elemento de Ax é < f (x). Consequentemente,sup Ax ≤≤≤ f (x).

Por outro lado, suponha que temos sup Ax <<< f (x). Então existiria um númeroracional r tal que sup Ax <<< f (r) <<< f (x). Mas a condição f (r) <<< f (x) significaque r < x, o que implica que f (r) está no conjunto Ax; isto contradiz a condiçãosup Ax <<< f (r). Logo, sup Ax = f (x).

Temos portanto uma função bem definida f de R em F. A fim de mostrar que f éum isomorfismo, devemos verificar as condições (a)− (d) da definição. Começaremoscom a condição (d).

Se x e y são números reais com x < y, então claramente Ax está contido em Ay.Portanto,

f (x) = sup Ax ≤≤≤ sup Ay = f (y)Para rejeitar a possibilidade de igualdade, note que existem números racionais r e s

com x < r < s < y. Nós sabemos que f (r) <<< f (s). Daí, segue que

f (x) ≤≤≤ f (r) <<< f (s) ≤≤≤ f (y).

o que prova (d).A condição (a) segue imediatamente da (d) : Se x 6= y, então tanto x < y ou y < x;

no primeiro caso f (x) <<< f (y), e no segundo caso f (y) <<< f (x); em qualquer dos casosf (x) 6= f (y).

Page 93: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

6.7: R é não-enumerável 89

Para provar (b), seja a um elemento de F, e seja B o conjunto de todos os númerosracionais r com f (r) <<< a. O conjunto B não é vazio, e é limitado superiormente, porqueexiste um número racional s com f (s) >>> a, de modo que f (s) >>> f (r) para r em B, oque implica que s > r. Seja x a menor cota superior de B; afirmamos que f (x) = a.Para provar isto, é suficiente eliminar as alternativas f (x) <<< a e a <<< f (x). No primeirocaso, existiria um número racional r com f (x) <<< f (r) <<< a. Mas, isto significaria quex < r e que r estaria em B, o que contradiz o fato de que x = sup B. No segundo caso,existiria um número racional r com a <<< f (r) <<< f (x). Isto implicaria que r < x. Comox = sup B, teríamos r < s para algum s em B. Portanto, f (r) <<< f (s) <<< a, contradição.Portanto, f (x) = a, provando (b).

Para mostrar (c), sejam x e y números reais e suponha que f (x + y) 6= f (x)+ f (y).Então, f (x + y) <<< f (x)+ f (y) ou f (x)+ f (y) <<< f (x + y). No primeiro caso, existiria umnúmero racional r tal que f (x + y) <<< f (r) <<< f (x)+ f (y). Isto significaria que x + y <<< r.Portanto, r poderia ser escrito como a soma de dois números racionais r = r1 + r2, ondex <<< r1 e y <<< r2. Então, usando os fatos verificados sobre f para números racionais,seguiria que f (r) = f (r1 + r2) = f (r1)+ f (r2) >>> f (x)+ f (y). Contradição. O outro casoé análogo a este.

Finalmente, se x e y são números reais positivos, o mesmo raciocínio mostra quef (x.y) = f (x). f (y); o caso geral é uma simples consequência.

6.7 R é não-enumerável

Segundo Georg Cantor, dois conjuntos são equivalentes, ou têm a mesmacardinalidade, quando é possível estabelecer uma correspondência que leve elementosdistintos de um conjunto em elementos distintos do outro, todos os elementos de ume do outro conjunto sendo objeto dessa correspondência. Em outras palavras, doisconjuntos são equivalentes, ou têm a mesma cardinalidade, quando existe uma bijeçãoentre eles.

Com relação a conjuntos finitos, a equivalência entre dois conjuntos implica empossuírem o mesmo número de elementos, ou seja, a mesma cardinalidade. Equando se consideram conjuntos infinitos? Pode-se afirmar que todos têm a mesmacardinalidade? Georg Cantor respondeu a esta questão e mostrou que o conjunto dosnúmeros reais tem cardinalidade diferente dos números naturais.

Cantor passou a chamar de enumerável a todo conjunto que tem a mesmacardinalidade dos números naturais. Mostraremos que o conjunto dos números reaisé não-enumerável. Para isso, definiremos inicialmente o conceito de enumerabilidadee provaremos alguns resultados importantes, como por exemplo, que todo conjuntoinfinito contém um subconjunto infinito enumerável. Este resultado significa que oenumerável é o “menor” dos infinitos.

O conjunto dos números racionais é enumerável, entretanto o conjunto dosnúmeros reais não é enumerável. Para provar isso, utilizaremos o métododesenvolvido por Cantor, chamado método da diagonal.

Estudaremos o intervalo (0, 1), que tem a mesma cardinalidade que a reta toda, poisexiste uma bijeção y = tg(πx− π/2) do intervalo (0, 1) na reta toda (−∞, ∞).

Page 94: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

90 Capítulo 6: Os Números Reais e sua Construção

Usaremos a representação decimal e mostraremos que nenhuma função f : N →(0, 1) é sobrejetiva. Na seção 6.4 mostramos que dado x > 0 real e, n0 o maior inteiro talque n0 ≤ x, a representação decimal de x é n0, n1n2n3 . . . , onde cada dígito ni é iguala 0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9. Logo, todo número real decimal x com 0 < x < 1 tem umarepresentação decimal na forma x = 0, n1n2n3 . . . . Deve-se notar que certos númerosreais têm duas representações nesta forma, por exemplo, o número racional 1/10 temas representações: 0, 1000 · · · e 0, 0999 · · · . Assim, poderia-se decidir em favor de umadessas representações, mas isso não será necessário.

Suponha que exista uma enumeração x1, x2, x3, . . . de todos os números reaissatisfazendo 0 < x < 1 dada por:

x1 = 0, y11y12y13 . . .x2 = 0, y21y22y23 . . .x3 = 0, y31y32y33 . . .

...

onde os yij são algarismos de 0 a 9. Escrevemos f (1) = x1, f (2) = x2, f (3) = x3, . . . .Considere o número y = 0, y1y2y3 . . . com y1 diferente de 0, y11 e 9; y2 diferente de0, y22 e 9; y3 diferente de 0, y33 e 9, etc. É fácil verificar que 0 < y < 1. Desse modo, onúmero y não é nenhum dos números com duas representações decimais, desde queyn 6= 0, 9. Ao mesmo tempo, y 6= xn para todo n (desde que o n−ésimo dígito darepresentação decimal de y e xn é diferente). Portanto, qualquer coleção enumerávelde números reais no intervalo (0, 1) omitirá pelo menos um número real pertencentea este intervalo. Desse modo, f não é sobrejetiva e este intervalo não é enumerável.Como (0, 1) ⊂ R temos que R é não-enumerável.

Daremos uma outra demonstração de que o conjunto dos números reais não éenumerável. Para isso, precisamos provar o teorema dos intervalos encaixados, dadoa seguir. Esta demonstração é a mais próxima da demonstração original da nãoenumerabilidade de R feita por Cantor.

Teorema 6.33. Dada uma sequência decrescente I1 ⊃ I2 ⊃ . . . ⊃ In ⊃ . . . de intervaloslimitados e fechados In = [a, b], então existe pelo menos um número real c tal que c ∈ In paratodo n ∈ N.

Demonstração. As inclusões In ⊃ In+1 significam que

a1 ≤ a2 ≤ . . . ≤ an ≤ . . . ≤ bn ≤ . . . ≤ b2 ≤ b1.

Seja A o conjunto dos an, isto é, A = {a1, a2, . . . , an, . . .}, e B o conjunto dos bn, isto é,B = {b1, b2, . . . , bn, . . .}. O conjunto A é limitado superiormente (cada bn é uma cotasuperior de A) e o conjunto B é limitado inferiormente (cada an é uma cota inferior deB). Sejam a = sup A e b = inf B. Temos que a ≤ bn, para cada n. Assim, a é cota inferiorde B e, portanto, a ≤ b. Podemos então escrever:

a1 ≤ a2 ≤ . . . ≤ an ≤ . . . ≤ a ≤ b ≤ . . . ≤ bn ≤ . . . ≤ b2 ≤ b1.

Concluímos que a e b (podendo ser a = b) pertencem a todos os In, donde [a, b] ⊂ Inpara cada n. Logo, [a, b] ⊂ ∩∞

n=1 In. Com efeito, sendo x < a = sup A, existe algum

Page 95: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

6.7: R é não-enumerável 91

an ∈ A tal que x < an, ou seja, x 6∈ In. Do mesmo modo, y > b ⇒ y > bm para algumm, donde ym 6∈ Im. Concluímos então que ∩In = [a, b].

Observação.

1. A condição de que os intervalos In sejam fechados é essencial no teorema 6.33.Por exemplo, os intervalos In = (0, 1/n) são encaixados e limitados, mas não sãofechados. É fácil verificar que sua interseção é vazia.

2. A condição de que os intervalos In sejam limitados também é essencial noteorema 6.33. Por exemplo, In = [0,+∞) é uma família de intervalos fechados eencaixados, porém não limitados e sua interseção é vazia.

Proposição 6.7. O conjunto R dos números reais não é enumerável.

Demonstração. Mostraremos que nenhuma função f : N→ R pode ser sobrejetiva.Para isto, supondo f dada, construiremos uma sequência decrescente I1 ⊃ I2 ⊃ . . . ⊃In ⊃ . . . de intervalos limitados e fechados tais que f (n) 6∈ In. Então se c é um númeroreal pertencente a todos os In, nenhum dos valores f (n) pode ser igual a c, logo fnão é sobrejetiva. Para obter os intervalos, começamos tomando I1 = [a1, b1] tal quef (1) < a1 e, supondo obtidos I1 ⊃ I2 ⊃ . . . ⊃ In tais que f (j) 6∈ Ij, olhamos paraIn = [an, bn]. Se f (n + 1) 6∈ In, podemos simplesmente tomar In+1 = In. Se, porém,f (n + 1) ∈ In, pelo menos um dos extremos, digamos an, é diferente de f (n + 1),isto é, an < f (n + 1). Neste caso, tomamos In+1 = [an+1, bn+1], com an+1 = an ebn+1 = (an + f (n + 1))/2. �

Corolário 6.2. Todo intervalo não-degenerado de números reais é não-enumerável.

Com efeito, f : (0, 1) → (a, b) definida por f (x) = (b− a)x + a é uma bijeção dointervalo aberto (0, 1) no intervalo aberto arbitrário (a, b), assim, se provarmos que(0, 1) não é enumerável, resultará que nenhum intervalo não-degenerado pode serenumerável. Ora, se (0, 1) fosse enumerável (0, 1] também seria e, consequentemente,para cada n ∈ Z, o intervalo (n, n + 1] seria enumerável (pois x → x + n é umabijeção de (0, 1] sobre (n, n + 1]). Mas R = ∪n∈Z(n, n + 1] seria enumerável, por seruma reunião enumerável dos conjuntos (n, n + 1].

Corolário 6.3. O conjunto dos números irracionais não é enumerável.

Com efeito, temos R = Q ∪ (R − Q). Sabemos que o conjunto Q dos númerosracionais é enumerável. Se R−Q também o fosse, R seria enumerável, como reuniãode dois conjuntos enumeráveis.

Os irracionais R − Q constituem um conjunto não-enumerável, logo, formam amaioria dos reais.

Page 96: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

92 Capítulo 6: Os Números Reais e sua Construção

6.8 A densidade dos racionais e irracionais em RDefinição 6.25. Um conjunto X ⊂ R chama-se denso em R quando todo intervaloaberto (a, b) contém algum ponto de X.

Exemplo 6.4. X = R−Z é denso emR. Com efeito, todo intervalo (a, b) é um conjuntoinfinito, enquanto existe no máximo um número finito de inteiros n tais que a < n < b.Logo, qualquer intervalo (a, b) contém elementos de X.

Teorema 6.34. O conjunto Q dos números racionais e o conjunto R − Q dos númerosirracionais são ambos densos em R.

Demonstração. Seja (a, b) um intervalo aberto qualquer em R. Devemos mostrarque existem um racional e um número irracional em (a, b). Como b− a > 0, existe umnúmero natural p tal que 0 < 1

p < b− a. Os números da forma mp , m ∈ Z, decompõem

a reta R em intervalos de comprimento 1p . Como 1

p é menor do que o comprimentob− a do intervalo (a, b), algum dos números m

p deve cair dentro de (a, b). Esta é a ideia

intuitiva da demonstração. Seja A ={

m ∈ Z; mp ≥ b

}. Como R é arquimediano, A

é um conjunto não-vazio de números inteiros, limitado inferiormente por b · p. Sejam0 ∈ A o menor elemento de A. Então b ≤ m0

p mas, como m0 − 1 < m0, tem-sem0−1

p < b. Afirmamos que a < m0−1p < b. Com efeito, se não fosse assim, teríamos

m0−1p ≤ a < b ≤ m0

p . Isso acarretaria b− a ≤ m0p −

m0−1p = 1

p , uma contradição. Logo, o

número racional m0−1p pertence ao intervalo (a, b). Para obter um número irracional no

intervalo (a, b), tomamos p ∈ N tal que 1p < b−a√

2, ou seja,

√2

p < b− a. Os números da

forma m√

2p , onde m ∈ Z, são (salvo m = 0) irracionais e dividem a reta R em intervalos

de comprimento√

2p . Como

√2

p é menor do que o comprimento b− a do intervalo (a, b),

conclui-se que algum m√

2p deve pertencer a (a, b). A demonstração formal se faz como

no caso anterior: se m0 for o menor inteiro tal que b ≤ m0√

2p então o número irracional

(m0−1)√

2p pertence ao intervalo (a, b). �

A proposição anterior pode ser reformulada assim: todo intervalo não-degeneradoI contém números racionais e irracionais.

6.9 Exercícios

1. Seja (xn) uma sequência convergindo para um limite racional b; [(x)] a classe deequivalência contendo (xn); (yn) outra sequência na classe de equivalência [(x)].Prove que (yn) converge para b.

2. Considere o conjunto dos números reais como sendo o conjunto das classes deequivalência das sequências de Cauchy de números racionais.

(a) Prove que R é um corpo, isto é, verifique todos os axiomas de corpo.

Page 97: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

6.9: Exercícios 93

(b) Prove que os reais satisfazem a lei da tricotomia.

3. Prove que o conjunto {r/r > 0, r2 > 2} é um corte.

4. Prove que a união de um número finito de cortes é um corte.

5. Considere a condição (iii) da definição 6.9, de cortes de Dedekind. Quais seriamas dificuldades encontradas no desenvolvimento da teoria dos números reais seesta condição fosse omitida?

6. Considere os reais de Dedekind.

(a) Prove que a adição em R satisfaz as leis da comutatividade, associatividade,identidade da adição e inversa aditiva.

(b) Prove que os reais de Dedekind satisfazem a lei da tricotomia.

(c) Prove que a multiplicação em R satisfaz as leis da comutatividade,associatividade, identidade, inversa e lei da distributividade (apenas paracortes não-negativos ).

7. A propriedade do supremo (teorema 6.29) foi deduzida do teorema de Dedekind(teorema 6.28). Mas, estes dois teoremas são equivalentes. Para demonstraresta afirmação, admita a propriedade do supremo como postulado, além daspropriedades usuais dos números reais, e demonstre o teorema de Dedekind semconsiderar cortes no conjunto dos números racionais.

8. Observe que a propriedade do supremo tem como consequência a propriedadedos intervalos encaixados, que diz: se In = [an, bn] é uma família de intervalosfechados tais que I1 ⊃ I2 ⊃ . . . In ⊃ . . . e o comprimento |In| = bn − an tendea zero, então existe um e um só número c pertencendo a todos os intervalos In.Prove que essa última propriedade implica a propriedade do supremo, ficandoassim provado que a propriedade do supremo equivale à propriedade dosintervalos encaixados.

9. Prove que se postularmos que “toda sequência não decrescente e limitada éconvergente” conseguiremos provar a propriedade dos intervalos encaixados,portanto, também a propriedade do supremo, estabelecendo assim que essapropriedade é equivalente a afirmar que “toda sequência não decrescente elimitada converge”.

10. Observe que a propriedade do supremo tem como consequência que todasequência de Cauchy converge. Prove a recíproca dessa proposição, isto é,prove que se toda sequência de Cauchy converge, então vale a propriedadedo supremo, ficando assim provado que essa propriedade é equivalente a todasequência de Cauchy ser convergente.

Page 98: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

94 Capítulo 6: Os Números Reais e sua Construção

Page 99: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

Capítulo 7

Extensões dos Números Reais

7.1 Extensões multidimensionais

7.1.1 Os Números Complexos

Os números complexos são a extensão mais antiga e conhecida dos números reais.Inicialmente surgiram como uma necessidade para dar sentido a equações do tipo

x2 + 1 = 0.

Tal equação não tem solução no mundo dos reais. Se existisse uma solução real, noslevaria a ter que aceitar a existência de um real cujo quadrado é negativo (∃x ∈ R;x2 = −1 < 0). O que é absurdo, pois, em todo corpo ordenado (como R) o quadradode um número nunca é negativo. De qualquer, se "imaginarmos"que existisse um tal ital que i2 = −1, teríamos

x2 + 1 = x2 − i2 = (x− i)(x + i),

de onde, x = i e x = −i seriam justamente soluções (não reais, imaginárias?) dex2 + 1 = 0.

Se os números reais representam um modelo algébrico de uma linha reta(unidimensional), onde estariam localizados o i e −i?

Fica evidente que os números reais precisam ser estendidos a um conjunto de talforma que contenham os números i e −i.

Tal extensão existe e é chamada de conjunto dos números complexos, e denotadopor C. Eles formam uma estrutura algébrica (corpo). Atualmente, possuem umateoria bem elaborada e com muitas aplicações importantes em diversas áreas. Oscomplexos foram vistos com desconfiança pelos matemáticos por muitos anos, sendousados somente com relutância, pois aparentavam não ter qualquer base na realidade.Interpretando os complexos como pontos do plano (C = R2) podemos dizer que setrata de uma extensão bidimensional dos reais.

Um número complexo z é um número da forma

z = a + bi

onde a, b ∈ R e i chamado de unidade imaginária tal que i2 = −1. O real a é chamadoparte real de z e b a parte imaginária de z. O conjunto formado por números complexos

95

Page 100: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

96 Capítulo 7: Extensões dos Números Reais

é denotado por C. Portanto,

C = {a + bi; a, b ∈ R, i2 = −1}

A soma e produto de dois complexos é definido por

(a + bi) + (c + di) = (a + c) + (b + d)i. (1)(a + bi)(c + di) = (ac− bd) + (bc + ad)i. (2)

onde i2 = −1. Essas operações fazem de C um corpo. Os elementos neutros dessasoperações são 0 = 0 + 0 i e 1 = 0 + 1 i. O inverso aditivo de z = a + bi é −z = −a− bi

e o inverso multiplicativo de z = a + bi 6= 0 é z−1 =a

a2 + b2 −b

a2 + b2 i.

Com esta abordagem, fica evidente que R ⊂ C, pois todo real a pode ser escrito daforma a + 0 i.

Uma das características importantes dos complexos é que cada z = a + bi pode servista como um ponto (a, b) do plano R2.

Números complexos vistos como o pontos de plano R2

Definimos o conjunto dos números complexos, C como sendo o plano R2 munidode duas operações definidas como

(a, b) + (c, d) = (a + c, b + d) (3)(a, b) · (c, d) = (ac− bd, bc + ad). (4)

Fica como exercício verificar os nove axiomas (de corpo), que nos permitem afirmarque C = (R2,+, ·), é de fato, um corpo.

Quando nos referimos ao conjunto dos reais como sendo unidimensional e o doscomplexos bidimensional, estamos nos referindo à dimensão deles visto como espaçosvetoriais1 sobre o corpo R.

Foi visto que C é um corpo que não pode ser ordenado, pois existe i ∈ C tal quei2 < 0. Entretanto, diferente de R, é um conjunto algebricamente fechado. Em C, todopolinômio tem raiz (Teorema Fundamental da Álgebra).

Complexos como matrizes

Uma outra forma de representar um número complexo a + bi é como matrizesquadradas de ordem dois. [

a b−b a

]A soma e produto é dado pelas operações usuais de matrizes.[

a b−b a

]+

[c d−d c

]=

[a + c b + d−(b + d) a + c

]1 assumiremos que o leitor conhece os axiomas que caracterizam um espaço vetorial V sobre um

corpo K de dimensão finita, onde a dimensão de V é definida como o número de elementos de uma basede V

Page 101: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

7.1: Extensões multidimensionais 97

[a b−b a

] [c d−d c

]=

[ac− bd ad + bc−(bc + ad) −bd + ac

]A unidade imaginária i é identificada com

[0 1−1 0

]Note que

z =

[a b−b a

]=

[a 00 a

]+ b

[0 1−1 0

]Se usássemos a notação a =

[a 00 a

]e i =

[0 1−1 0

], escreveríamos simplesmente

z = a + bi.

7.1.2 Quaternions

Tanto R como C são espaços vetoriais sobre o corpo R.A base canônica de R é {1}, todo real é combinação linear de 1 (a = a · 1). Assim,

dimR = 1. O tabela do produto dos elementos da base de R se reduz a

· 11 1

A base canônica de C é {1, i} todo complexo z é combinação linear de 1 e i(z = a + bi). Portanto, dimC = 2. A tabela do produto dos elementos da base é

· 1 i1 1 ii i −1

A tabela mostra a regra básica que é utilizada para lidar com a quantidade imagináriai (i2 = −1).

De modo análogo, existe um espaço vetorial H cujo corpo é R com a base canônicadada pelo conjunto {1, i, j, k} e a regra para multiplicar os elementos da base é

· 1 i j k1 1 i j ki i −1 k −jj j −k −1 ik k j −i −1

Do mesmo modo que em C foi suficiente colocar a regra i2 = −1. Em H a tabelapoderia ser resumida como

i2 = j2 = k2 = ijk = −1

Assim pode-se escrever

H = { a + bi + cj + dk ; a, b, c, d ∈ R, i2 = j2 = k2 = ijk = −1 }H é chamado conjunto dos quatérnios. Foram descobertos por Hamilton em 1835. Elessão uma extensão natural dos complexos. Os pontos deH da forma a + bi + 0 j + 0 k =a + bi são identificados com os complexos. Assim C ⊂ H. Esse tipo de extensões poderealizadas teoricamente ad infinitum, seguindo um processo chamado construcción deCayley-Dickson. Sempre duplicando a dimensão. O próximo é conhecido por Octônios.

Page 102: A Construção dos Números Reais e suas Extensões

98 Capítulo 7: Extensões dos Números Reais

7.2 Extensões unidimensionais

7.2.1 Os Números Hiper-reais

Antes de falarmos dos hiper-reais é preciso lembrar uma consequência importantede um corpo ordenado e completo. Na Proposição 1.12 foi mostrado que:

Todo corpo ordenado e completo é necessariamente arquimediano.Portanto, R é arquimediano. Ou seja, em R o subconjunto dos naturais N é um

conjunto ilimitado superiormente. Ser arquimediano tem a seguinte consequênciaimportante.

Seja a ∈ R, a ≥ 0 tal que ∀ ε > 0, a < ε então a = 0.

A prova disso, é bem simples. Como a ≥ 0. Suponha que a 6= 0, logo a > 0. Sendo Rarquimediano, existe n ∈ N tal que 0 <

1n< a. O que contraria a hipótese, pois existe

ε = 1/n tal que 0 < ε < a. Desse modo, só resta concluir que a = 0.Esse resultado, permitiu escrever

Se uma quantidade não-negativa fosse tão pequena que ele é menor do que qualqueroutra dada, então ele certamente não poderia ser outra coisa senão zero. Para aquelesque perguntam o que é uma quantidade infinitamente pequena em matemática, nósrespondemos que ele é realmente zero. Portanto, não há tantos mistérios escondidos nesseconceito como geralmente eles acreditam. Esses supostos mistérios tornaram o cálculo doinfinitamente pequeno bastante duvidoso para muitas pessoas. Essas dúvidas que possampermanecer as eliminaremos completamente, nas páginas seguintes, onde vamos explicareste cálculo.

Leonhard Euler

Infinitesimais

Um infinitésimo ou infinitesimal é definido como uma quantidade infinitamentepequena. Nesse sentido no mundo dos reais e nas palavras de Euler, só pode ser ozero. Entretanto, os infinitesimais desempenharam um papel essencial no surgimentoe desenvolvimento do cálculo diferencial e integral. As marcas disso ainda nosacompanham na notação usada por Leibniz no cálculo de derivadas e integrais.

Por exemplo, a notação para a derivada.

dydx

= lim∆x→0

∆y∆x

As quantidades dy e dx chamadas diferenciais são exemplos de infinitesimais. O que éexatamente dy e dx? Será que ∆y → dy e ∆x → dx? Bom, sabemos que se dy e dxfossem reais, certamente dy = 0 e dx = 0.

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7.2: Extensões unidimensionais 99

Também na notação de cálculo de integrais. Por exemplo no cálculo de áreas.

A =∫ b

af (x)dx = lim

|P|→0

n

∑i=1

f (x∗i )∆x,

onde P = {x0 < xi < · · · < xn} é uma partição de [a, b], |P| = max1≤i≤n

|xi − xi−1| e

x∗i ∈ (xi−1, xi). Se |P| → 0 então n→ ∞ e ∆x → 0.

Sabemos que o símbolo∫

nada mais do que um "S"esticado, representando umasoma ou somatório, cujo função é juntar ou "integrar"áreas infinitesimais de retângulos,digamos de altura f (x) e base dx cujas áreas infinitesimais seriam justamente f (x)dx.No mundo real dx = 0 logo f (x)dx = 0. Assim A =

∫ ba f (x)dx = 0? Bom um jeito de

lidar com isso, era afirmar que esses infinitesimais eram menores do que qualquerpositivo, mas que não eram nulos. Seriam uma espécie de indivisíveis mesmo quenão soubessem explicar o que seria de fato. Algo bem similar ao uso de númerosimaginários que não se sabiam o que eram, porém que funcionavam na hora doscálculos.

Por exemplo se o objetivo era calcular a derivada de f (x) = x2, então Leibnizexplicava assim seu método: tomamos um infinitésimo dx, calculamos o incremento(ou diferencial) d f = f (x + dx) − f (x), dividimos entre a quantidade (não nula) dx.Resultando

d fdx

=(x + dx)2 − x2

dx=

2xdx + (dx)2

dx= 2x + dx.

Agora, como dx é infinitesimal e, portanto, insignificante, a podemos eliminar. Assim,

d fdx

= 2x + dx = 2x.

Note que há algo estranho, inicialmente supõe-se que dx 6= 0 e após fazermos as contascomo se fosse números reais a eliminamos como se dx = 0. Entretanto, mesmo assim,o resultado é correto. Era isso o que se chamava de Cálculo Infinitesimal.

Esse tipo de raciocínio foi duramente criticado na época. Levando a diversasdiscussões filosóficas.

Posteriormente, pelo uso da teoria de limites, esses infinitesimais foram trocadospelo uso de quantidades arbitrariamente pequenas, não nulas, porém não infinitamente

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100 Capítulo 7: Extensões dos Números Reais

pequenas. Euler, Cauchy e outros, reformularam a teoria de derivadas e integrais. Comisso nos livrávamos de ter que usar os estranhos infinitesimais. Mas, agora teríamosque lidar com épsilons e deltas: ε, δ, que estudantes que têm um primeiro contato comCálculo Diferencial e Integral adoram.

Graças aos limites, os infinitesimais haviam sido banidos da matemática. Mas, elesvoltaram. Graças ao trabalhos de Abraham Robinson [27]. Se o uso deles funcionavamesmo que não fossem reais, então devia existir um conjunto que fosse uma extensãodo reais. Foi esse o trabalho de Robinson com sua Análise Não-Standard. Conseguiumostrar que é possível estender, de forma rigorosa, o conjunto dos reais num conjuntoque contivesse, além dos reais, os infinitesimais e também as quantidades "infinitamentegrandes"que chamaremos números infinitos. Um número infinito é um número ω talque ω > n, ∀n ∈ N). A inversa 1/ω é um infinitesimal. Essa extensão dos númerosreais chamamos conjunto dos Números Hiper-reais e denota-se por ∗R. Recomendamos aleitura do artigo A revanche dos infinitesimais de Michèle Artigue [4].

Por exemplo, como os Hiper-reais contém números ω tal que ω > n, ∀n ∈ N.Então, isso mostra que em ∗R o conjunto dos naturais N é limitado. Assim, ∗Rnão é arquimediano, consequentemente, pela Proposição 1.12 não pode ser completo.Embora possua o subconjunto completo R.

Para aplicar os números hiper-reais, faz-se uso do princípio de transferência2 a qualquando aplicado a problemas de Análise é chamada de Análise Não-Standard.

Uma aplicação imediata da Análise Não-Standard é no cálculo de derivadas eintegrais sem ter que usar quantificadores, ou seja, nada de limites ou ε’s e δ’s. Assim,para calcular a derivada de f em x,

f ′(x) = st(

f (x + dx)− f (x)dx

)

onde dx é um infinitesimal, st(·) denota a função "parte standard". No caso, a partestandard de um elemento finito a de ∗R é o único real que se encontra infinitamentepróximo de a. A função st(·) age como se fosse uma função que "arredonda"umelemento finito de ∗R o transformando num real. Em outras palavras é exatamenteo que Leibniz fazia. Para calcular a derivada de f (x) = x2,

f ′(x) = st(

f (x + dx)− f (x)dx

)= st

((x + dx)2 − x2

dx

)= st(2x + dx) = 2x.

O hiper-real 2x + dx está infinitamente próximo de 2x.

2O princípio de transferência afirma que qualquer sentença exprimível em uma determinadalinguagem formal que é verdadeira nos números reais também é verdadeira nos números hiper-reais.

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7.2: Extensões unidimensionais 101

Representação dos hiper-reais

A reta dos hiper-reais sendo mostrados em 3 níveis de escala. Na primeira linhaoptamos por marcar apenas os números infinitos. Por exemplo os naturais devem estarà esquerda de ω. Na segunda linha, após aumentar numa escala infinita. Conseguimosvisualizar, por exemplo, os reais que se encontram infinitamente próximos de zero.Mas nessa segunda linha ainda não é possível visualizar os infinitesimais. Novamente,aumentando numa escala infinita, finalmente podemos vê-los.

Existem várias abordagens para construir os hiper-reais. Os mais simples eintuitivos são aqueles que após definirmos o que se entende por número infinitesimale número infinito, formamos um novo conjunto, simplesmente acrescentando os reaise definindo uma aritmética nessa extensão dos reais. Bastante intuitivo e prático, masperde rigorosidade matemática. No lado oposto, se encontram construções via lógicamatemática, rigorosas mas requerem ferramentas abstratas da Lógica, tornando-asnada intuitivas. De qualquer forma, mais uma vez, como acontecera com a construçãoda estrutura algébrica, o corpo dos complexos C, que deu sentido aos imaginários ecomplexos, que até antes de aparecer C muitos relutavam em aceitar. Agora temoso conjunto dos hiper-reais,∗R, como a casa natural onde podem morar à vontade, osoutrora "sem teto"infinitesimais e infinitos. E nessa casa, mesmo não sendo completa,ainda foram acolhidos os reais.

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102 Capítulo 7: Extensões dos Números Reais

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