a construca da epica de virgilio

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  • 7/25/2019 A Construca Da Epica de Virgilio

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    A CONSTRUO DA PICA DE VIRGLIO E O IDEAL AUGUSTANOProfa. Dra. Mrcia Regina de Faria da Silva (UERJ)

    RESUMOA Eneida de Virglio, poeta latino do sculo I a.C., sintetiza perfeitamente atravs da viso

    gloriosa do passado romano a importncia das reformas propostas por Augusto no incio do Principado.

    Os ideais augustanos esto representados atravs da composio do heri Eneias, proveniente da Tria edestinado a fundar a Nova Tria que viria a ser Roma. Seus conceitos morais so amplamenteidentificados com os do Princeps: a uirtus, a pietas e a humanitas, entre outros. Vamos perceber, atravsda importncia do pico, como Virglio construiu sua epopeia, mantendo o modelo grego, mas adaptando-o aos conceitos morais romanos.Palavras-chave: 1. Epopeia. 2. Virglio. 3. Eneida. 4. Perodo Augustano.

    O gnero pico, na Antiguidade Clssica, configura-se como uma narrativa em versos, na qual sedescrevem fatos histricos e se exaltam personagens heroicos. Pierre Grimal apresenta a noo de epopeiada poca de Virglio, baseada nos poemas homricos, Iladae Odisseia, que, apesar de terem diferenasde assunto e estilo, possuem essa designao. Assim escreve:

    Esses poemas so picos na medida em que contam feitos de carter sobre-humano,realizados por alguma das personagens pertencentes memria coletiva das cidades, que esto

    em relao com as divindades - das quais se originaram e pelas quais so inspiradas - e quevivem em tempos em que o divino e o humano ainda no se distinguiam claramente: o tempodos heris, dos semi-deuses.1

    A epopeia , pois, uma narrativa literria na qual fatos histricos so misturados a lendas e amitos, os heris aos deuses, criando uma atmosfera de maravilhoso. A etimologia da palavra vem de epos(canto, narrativa longa) +poieo(fazer), portanto fazer a narrativa. Inicialmente essa narrativa era oral. Smuito tempo depois, so registradas as duas primeira epopeias, que, como se disse, possuem muitasdiferenas em relao ao assunto abordado e ao estilo, mas ambas usam como metro o hexmetro datlico.E, segundo Aristteles, em sua ArtePotica2, o emprego desse metro caracterstica imprescindvel ao

    poema pico.Os elementos da epopeia so a ao, o desenvolvimento do assunto, que acontece atravs de

    narrativas, descries e comparaes; as personagens que so os agentes (heris) da ao; o maravilhoso

    que se manifesta pela interveno dos deuses.Como caracterstica do estilo pico poder-se-ia citar o seu carter universal, visando, portanto, coletividade. Assim sendo, a poesia pica fala da sociedade como um todo e das aspiraes dessasociedade. Assim, tem-se como tempo da narrativa o passado heroico nacional, no qual a histria grandiosa e os fatos enaltecedores. Esse passado, por conseguinte, est separado do ouvinte e do narrador.

    A respeito do incio in medias resdo pico diz Antnio Soares Amora:A narrao pica no devia ser como a histria, em linha sucessiva de fatos: devia

    principiar o mais perto possvel do fim do sucesso que dera motivo obra; e os fatos passados,preparatrios desse sucesso, e os futuros, deviam ser introduzidos na narrao, comoamplificaes do tema,...3

    Quanto estrutura, a epopeia tem forma poucovarivel e conta com a proposio, em que opoeta expe o assunto que vai cantar; a invocao, na qual o poeta pede o auxlio das musas; a

    dedicatria; a narrao, que o desenvolvimento da ao; e o eplogo, em que o poeta faz o fecho daobra.

    O que importa ao pico a narrativa em si, ele quer tudo mostrar e examinar. Com isso, osepisdios so autnomos, o autor vai adicionado trechos independentes no correr da obra, que s servem

    para enriquecer a narrativa, mas que poderiam ser tirados sem prejudicar sua sequncia lgica.J se mencionou que o narrador est distante do objeto narrado.Portanto, ele aparece como um

    simples observador que no influencia o nimo das personagens. Sendo assim, estas podem ter atitudes asmais variadas, dependendo da situao em que se encontram. Ao narrador no cabe julgar os atos das

    personagens, j que conta apenas fatos passados e aceitos pela coletividade como lendas ou mitos.

    1GRIMAL, P. (1992) p. 1852ARISTTELES, 1959.3AMORA, A. S. (1961) p. 162

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    No podemos deixar de elucidar a questo da presena do maravilhoso na poesia pica, que semanifesta atravs da atuao dos deuses e de fatos sobrenaturais que interferem nos problemas humanos.O principal autor pico latino foi Virglio.

    Sabe-se pouco sobre a vida de Virglio, sendo suas obras a principal fonte de informaes a esterespeito. Nasceu a 15 de outubro de 70 a.C., durante o consulado de Pompeu e Crasso. E, quando morreu,a 20 (segundo alguns autores 21 ou 22) de setembro de 19 d.C., o mundo havia mudado e sua cidade,

    Mntua, no era mais uma provncia, mas parte integrante da Itlia. Os acontecimentos da vida deVirglio, relatados por outros autores, so incertos, pois tiveram como fonte as prprias obras do poeta e,alm delas, poemas de autoria duvidosa contidos no Apndice a Virglio.

    Segundo os bigrafos seu nome seria P. Vergilius Maro, proveniente de uma famlia modesta.Seu pai teria sido oleiro e, depois, empregado de um funcionrio romano subalterno que lhe deu sua filhaMagia Polla em casamento e uma propriedade agrcola no burgo de Andes, perto de Mntua.

    Seus primeiros estudos foram feitos em Cremona, at a tomada da toga viril, depois disso foi aMilo estudar retrica e filosofia, indo, em seguida, para Roma, onde, talvez devido a sua vida agreste e asua sade delicada, no se apresentou como bom advogado e orador, desistindo da carreira.

    Atravs da leitura do De rerum natura de Lucrcio e dos ensinamentos de Siro, em Npoles,onde viveu vrios anos, aderiu ao Epicurismo, decidindo-se a viver no otiumcontemplativo. Aos vinte ecinco anos, depois de j ter comeado a escrever, voltou sua ptria. No momento em que retornou aolar, Roma passava por momentos difceis em que Antnio e Otvio lutavam pelo poder. No desenrolar

    desses acontecimentos Virglio comps asBuclicas, tambm conhecidas como clogas, compostas dedez poemas imitados de Tecrito, mas que conseguem ser originais pela expresso dos sentimentos dopoeta, pelo carter dos pastores e pela paisagem itlica.

    Virglio durante sua vida manteve-se fiel a algumas ideias epicuristas como a identidade com aFelicidade, o Soberano Bem e a ataraxia, mas tambm se distanciouem alguns pontos, como o papel dodivino no mundo e a sobrevivncia da alma, negados por essa escola, alm de participar de assuntos

    pblicos e no renunciar poesia, pois, desde o seu primeiro grande poema, as Buclicas, se refere aosmomentos pelos quais o Estado passava, como o caso da expropriao, que ele prprio sofreu e que citanasclogas.

    Alm de no estar totalmente alheio poltica, o poeta tinha alguns amigos poderosos einfluentes que o protegiam, como AsnioPolio, Cornlio Galo e Alfeno Varo, todos citados nas

    Buclicas.O relacionamento de Virglio com essas pessoas importantes talvez seja justificado pelo

    conhecimento destes das obras menores do poeta ou Apndice a Virglio, considerado, por muitos,como no autntico, que contm as seguintes obras: Ciris(ou A gara), Culex(ou O mosquito),Dirae(Asimprecaes), Copa(A taberneira), Moretume Catalepton, que um conjunto de epigramas. Acredita-seque esses poemas teriam sido escritos at 49, havendo, ento, um perodo de silncio, provavelmenteenquanto o poeta se encontrava em Npoles com Siro, s retomando a atividade potica em 42 ou 43com asBuclicas.

    Provavelmente, as dificuldades da famlia em relao s suas terras e o amor poesia fizeramcom que Virglio deixasse de lado a meditao filosfica. Alm disso, Lucrcio estava ali para mostrar-lhe que a poesia, ao agir pelo poder de encantamento, podia contribuir poderosamente para a conquista daataraxiae da serenidade4.

    Virglio fez parte de um crculo potico, cujo mentor era Mecenas, pessoa que foi de grandeimportncia na ascenso de Otvio e durante todo o seu governo, agindo como seu conselheiro, pormsem atuar diretamente em cargos pblicos. Era muito rico, refinado, elegante e avesso s multides e

    atraa para o seu crculo potico os maiores nomes da literatura da poca.Sabe-se que aps a publicao das Buclicas, Virglio j est totalmente inserido no crculo de

    Mecenas. Pierre Grimal relata os anos seguintes publicao dasEclogas:

    Desde a publicao das glogas, talvez um pouco antes, Virglio vive sombra de Mecenas.Todo seu tempo, todos os seus esforos, so dedicados composio dos dois grandes poemasque completaro a sua notoriedade, as Gergicas, em quatro livros, e a Eneida, em doze, que eleno ter tempo de terminar, mas que seus amigos publicaro, a convite de Augusto. Soaproximadamente 20 anos de sua vida sobre os quais no sabemos muita coisa (...). Por isso, o

    primeiro perodo desses vinte anos claramente de Mecenas (Gergicas); o segundo, deAugusto (Eneida).5

    4GRIMAL, P. (1992) p. 725Ibidem, p. 118-119

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    Pierre Grimal no quer dizer, certamente, que Virglio escreveu o que lhe encomendavam, masque aceitou a sugesto de Mecenas para escrever as Gergicase a de Augusto para compor a Eneida,

    porque estava de acordo com suas concepes e com sua inspirao.As Gergicasforam iniciadas em 37 e encerradas em 30, sendo considerada a obra mais perfeita

    do poeta e uma das obras-primas da literatura universal. Era condizente com a poltica de Augusto namedida em que cantava as tarefas da paz, especialmente, a agricultura.

    Acredita-se que imediatamente aps a concluso das Gergicas, provavelmente em 29 a.C.,Virglio comea a escrever seu poema pico, aEneida.Virglio, contudo, morreu sem ter concludo essa obra. Aps dez anos, escrevendo-a, resolve

    visitar a Grcia para aprofundar seus conhecimentos sobre os locais que descrevia. Adoece, porm, sendoconduzido de volta a Roma por Augusto que retornava da sia, mas no consegue chegar com vida.Morre, pedindo que queimem os manuscritos da Eneida. Augusto, contudo, impede que isso acontea,exigindo sua publicao no estado em que se encontrava.

    Virglio, na realidade, compartilhava dos ideais de Augusto, como nos diz Ettore Bignone:

    E Augusto no teve melhor intrprete que Virglio: nenhum poeta expressou com maiorsinceridade aquele ideal de Augusto de retorno a uma nova vida religiosa, de restaurao dotrabalho dos campos, de exaltao da antiga fecundidade itlica, de f e orgulho na eternidade deRoma, atestada na tradio antiga e confirmada nas esperanas recentes.6

    Entre 29 e 19 a.C., a pedido de Augusto, Virglio se dedicou a sua terceira e mais importanteobra, aEneida, poema pico, sobre os feitos lendrios, unidos aos fatos histricos que levaram fundaode Roma.

    Os fatos histricos, resumidamente, so constitudos pela fuga dos troianos, aps a destruio deTria pelos gregos, e a busca de uma nova terra, na Itlia, para fundar uma cidade que abrigaria osPenates troianos e, com o passar dos sculos, geraria uma nova raa que fundaria Roma. Como principalrepresentante dos personagens heroicos exaltados, temos opiusAeneaschefe dos guerreiros troianos.

    As lendas de Enias na Itlia so muito antigas. J no sculo IV ou V a.C. (450 a.C.) era deconhecimento geral a devoo filial de Enias, pois dessa poca a estatueta de Veios, mostrando o hericom o pai s costas, e os 70 vasos tambm encontrados na cidade etrusca de Veios, pintando a saga doheri. Na Siclia, o poeta lrico Estescoro, no sculo VI a.C., tambm menciona em seus poemas a

    presena do heri na Itlia. O historiador lesbiense Helnico, no sculo V a.C. atesta a salvao dos

    Penates troianos pelo heri e o historiador Timeu de Teuromnio, no sculo II a.C., diz ter visto osPenates na Siclia. Contudo, foi o historiador grego Timaios o primeiro a afirmar ser Enias o criador doEstado Romano e Q. Fbio Pictor, o primeiro historiador Romano, em seus Anais, escrito em grego, queestabelece a ligao efetiva entre troianos e romanos, atravs do heri Enias. Ligao esta usada e

    perpetuada pelos primeiros poetas latinos, Nvio e nio.Eniasfoi um heri troiano filho de Anquises e Afrodite. Se, por um lado, descende da deusa do

    amor, por outro, tem sua origem no prprio Zeus, como afirma Pie rre Grimal: (...) Por parte do pai, filhode Cpis, descende da raa de Drdano e por conseguinte do prprio Zeus..7

    Viveu nas montanhas at os cinco anos, sendo confiado a Alctoo, marido de sua irmHipodamia, para ser educado. Na guerra de Tria, como se pode verificar atravs da Iladade Homero sedestaca como um grande guerreiro, sendo somente inferior a Heitor. Desde o seu nascimento prediesrevelam que ser um rei e ter uma grande descendncia. Segundo Pierre Grimal, assim Afrodite profetizaa Anquises ao se revelar a ele, aps partilhar seu leito. Assim tambm Poseidon relembra a profecia de

    Afrodite ao salvar o heri naIlada. Pierre Grimal sintetiza desse modo:

    (...) Assim, desde os Poemas Homricos, Eneias surge como um heri protegido pelos deuses, aos quaisobedece respeitosamente, estando-lhe reservado um destino grandioso: nele repousa o futuro da raatroiana. Todos estes elementos sero retomados por Virglio na Eneida e interpretados no quadro da lendaromana.8

    Desse modo, aps a queda de Tria, o heri parte com seu pai, seu filho Iulo e sua esposa Cresapara o monte Ida onde teria construdo, juntamente com os teucros dispersos, aps o massacre dos gregos,

    6BIGNONE, E. (1952) p. 196. Traduofeita do original emespanhol: Y Augusto no tuvo mejor intrprete que Virgilio: ningnpoeta expres com mayor sinceridad aquel ideal augusteo de retorno a una nueva vida religiosa, de restauracin del trabajo de loscampos, de la exaltacin de la antigua fecundidad itlica, de fe y orgullo en la eternidad de Roma, atestiguada en la tradicin antiguay confirmada en las esperanzas recientes.7GRIMAL, P.Dicionrio de mitologia grega e romana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil S.A., 1993 p. 1358Ibidem

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    uma nova cidade onde reinou, cumprindo-se, assim, a profecia de Afrodite. Porm, segundo uma lendamais amplamente difundida, que usada como fonte do poema virgiliano, Enias teria permanecido por

    pouco tempo no Ida, partindo, em seguida, para a Hespria, ou seja, para o Ocidente do Mediterrneo.Passando por uma srie de lugares: Trcia, Macednia, Creta, Delos, Citera, entre outros, chegando,depois, a Cartago, onde inicia um romance com Dido. Aps abandon-la, aporta em Cumas e, finalmente,chega ao Tibre, onde acontece a guerra contra os Rtulos, relatada na Eneida. Vencidos os Rtulos, o

    heri troiano funda a cidade de Lavnio, desaparecendo, tempos depois, misteriosamente durante umatempestade. Seu filho Ascnio fundar Alba Longa, chamada por Pierre Grimal de a metrpole deRoma. Sculos mais tarde, Rmulo, descendentede Enias, fundar Roma. Pierre Grimal diz ainda que

    (...) Algumas tradies obscuras falam de Eneias como o fundador de Roma; outras atribuem-lhequatro filhos: Ascnio, Eurileonte, Rmulo e Remo, mas evidente que a verso virgiliana seimps a todos os escritores e que ela a nica variante sobrevivente depois do sculo I da nossaera. A lenda de Eneias tinha o mrito de dar a Roma ttulos de nobreza, fazendo remontar aestirpe dos seus fundadores s origens dos tempos histricos, atribuindo-lhes antepassadosdivinos: Zeus e Afrodite. Alm disso, a grandeza de Roma parecia ter sido predita pelo prprioHomero. Roma parecia realizar, no seio do seu imprio, a reconciliao das duas raas inimigas,os Troianos e os Gregos.9

    Observamos que Virglio uniu a tradio pica anterior a ele para compor a epopeia dos feitos

    romanos e da glria de Augusto.Na Grcia ps-homrica, o hexmetro foi usado tambm na Teogonia, que contava o nascimentodos deuses, e em Os trabalhos e os dias, poema sobre a vida rstica, pretexto para conselhos morais, quefoi inspirao para as Gergicas. Encontravam-se, ainda, escritos com esse metro outros poemas: algunslongos, como as Argonuticas, narrativa dos amores de Medeia e Jaso, outros mais breves como oseplios, pequenas epopias, desenvolvidas por Calmaco. Alm dessas obras, em Roma,LivioAndronico traduziu a Odissia, Nvio escreveu uma epopia sobre as lutas dos romanos contra oscartagineses, intitulada Guerra Pnica, em versos saturninos e nio, anos depois, retoma essa epopiahistrica, ampliando-a, emAnais, j em hexmetros datlicos. Muitas eram, portanto, as obras que tinhama denominao de picas. De acordo com Grimal:

    V-se que o termo epopia abrangia, no tempo de Virglio, muitas realidades diversas.Contudo, havia uma ou duas caractersticas comuns, alm da forma mtrica. O relato refere-se a um

    momento do mundo em que est em formao um aspecto duradouro deste: alguma coisa que nasce, umagrande reviravolta, um devir determinante. Por essa razo, o tom da epopia o mais elevado possvel, sublime por excelncia, pois refere-se aos assuntos mais grandiosos e aos interesses mais altos(...) Porextenso, a epopia tambm narrar a formao do mundo...10

    Virglio, ao escrever aEneida, possua essas vrias obras como fontes de inspirao: as tradieshomricas, os modelos alexandrinos e a obra de nio que detinha ento o ttulo de Pai da poesiaromana.

    E novamente com as palavras de Grimal:

    Virglio podia escolher. Preferiu realizar, mais uma vez, uma sntese: na Eneida, haveriaum romance de amor, como nas Argonuticas, a histria de Dido e Enias; haveria navegaes, como naOdissia(...); tambm haveria, naturalmente, combates, tratados como duelo entre chefes, segundo o

    modelo da Ilada; os deuses interviriam, tomariam partido, seriam obrigados por Jpiter a respeitar osDestinos, como na Ilada, mas tambm seriam encontradas lendas, destinadas a explicar ritos ouaspectos, monumentos da Roma contempornea do poeta, como nas pequenas epopias de Calmaco. Maso que no haveria - a no ser por aluses - seria a histria recente de Roma.11

    Na Eneida, v-se que Enias representa todo o povo romano, especialmente, Otaviano, querepresenta, por sua vez, a Roma gloriosa, acima de todos os outros povos.

    Ao contrrio das epopeias homricas em que o poeta exalta os heris do passado para que os dopresente possam imita-los. NaEneida, observa-se que a exaltao dos valores do passado fazem com quese note, mais claramente, que o Imprio na figura de Augusto coaduna-se perfeitamente com essesvalores, justificando-se, assim, a glria romana da poca do autor atravs da descendncia troiana.

    9GRIMAL, P.Dicionrio de mitologia grega e romana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil S.A., 1993, p. 136.10GRIMAL, P. (1992) p. 18711Ibidem p. 190

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    Segundo Pierre Grimal: O heri do poema ser Enias, claro, mas este se erguer antes de Roma, no altode uma linhagem que, de condutor de homens a triunfador, vem dar em Otvio.12

    NaEneida, o poeta segue a prescrio das epopeias de comear in medias res, ou seja, no meiodos acontecimentos. O canto I mostra Enias em meio a uma tempestade que o levar com seus navios aCartago. Observa-se, portanto, que ele j est perto de seu destino final, a Itlia. A histria pregressa daqueda de Tria at a chegada s costas da frica, contendo as previses divinas para a fundao da nova

    Tria, contada atravs de uma regresso, que a longa fala de Enias sobre suas desventuras a pedidode Dido.O heri virgiliano difere totalmente dos heris homricos, pois ele traduz os principais valores

    romanos, pensando sempre na coletividade e em seu destino, no na glria pessoal, na aretegrega. Elepossui, ao contrrio, a uirtusque todo uirromano possui, buscando ser um homem direito, honesto, reto econveniente. Sua valentia e coragem so qualidades de carter no de fora. Temos, assim, na Eneida, umheri que vai ao encontro do seu Destino, predito por sua me Vnus, reiterado por Jpiter, pormretardado por Juno. um heri estoico que transparece pela pietas. O piusAeneasdemonstra obedinciairrestrita aos deuses e aos superiores, mesmo que isso possa trazer-lhe infelicidade. Ele apresenta-se comoum homem de misso e um heri da paz, que as circunstncias levam guerra. No realiza as prpriasambies, somente cumpre seu dever com justia, comiserao e fidelidade.

    A religio transparece durante todo o poema, mas uma religio diferente da homrica. Apesar dognero exigir a presena de deuses, estes aparecem s em sonho, como Mercrio no IV canto, ou

    disfarados, como Vnus no I canto. Apesar de se mostrar estoico, como j falamos, a filosofia epicuristainfluencia nesse ponto, pois as aparies dos deuses no so epifanias, mas aparies do esprito, mais doque dos sentidos ou da realidade carnal. Contudo, notamos um pantesmo estoico, atravs da presena dedeuses homricos como Juno, Jpiter, Vnus e Apolo aliados a cultos populares e locais, atestados pordivindades como Ninfas Laurentinas, Rio Tibre e Fauno.

    Virglio que se mostra epicurista nos dois primeiros poemas, afastando-se do epicurismojustamente em relao ao papel da divindade no mundo, negada pela escola, mostra na Eneidatoda suacrena de que atravs da orao haver a ajuda da divindade, como vemos no canto V, no momento doincndio das naus, porm sua religiosidade apresenta-se mais intimista e, por isso, seus deuses no sodemasiado antropomrficos e tornam-se smbolos, especialmente, aqueles provenientes do sincretismoreligioso com a Grcia. Assim, Juno representa o smbolo da obstruo de Enias, justificado pelatradio homrica e pelo apego a Cartago; Apolo revela-se o orculo, que transmite a autntica emooreligiosa do poema, como vemos no canto VI; Jpiter reconcilia a concepo homrica da divindade

    noo de livre arbtrio e existncia do destino.A filosofia mostrada no poema sintetiza as vises da poca. Vemos uma filosofia do mundo,atravs da revelao de Anquises, no VI canto, e uma filosofia da Histria, que mostra o destino deRoma, prenunciado no I canto. Para isso, Virglio aprofundou-se em estudos de filosofia e religio,especialmente nos escritos rficos e nas doutrinas escatolgicas.

    O tempo da narrativa no linear, cclico, mostrando pleno conhecimento do poeta da doutrinapitagrica, que j havia usado na IV cloga, referindo-se aos grandes meses e anos. Esse tempo cclicotambm se encontra na ideia dos saecula, como renovao do mundo, na qual de baseia os

    LudiSaeculares e que remonta ao ideal de Augusto de mostrar que sua era um retorno idade de ouro.O poeta incorpora o aedo-vate, o poeta-profeta, trazendo o ideal de que o poeta o portador de

    uma mensagem que o ultrapassa, que vem do mais profundo do ser e, por isso, o porta-voz dos deuses.Essa tradio estabelece a unio entre filosofia e poesia no seio do poema virgiliano.

    Vemos, assim, que Virglio sintetiza toda tradio pica anterior adaptando-a aos valores

    religiosos, morais e filosficos de sua poca e integrando-se perfeitamente aos ideais polticos de Augustoe do novo regime politico romano, o Principado.

    BIBLIOGRAFIA:AMORA, Antnio Soares. Teoria da literatura. 4a.ed. So Paulo: Clssico-Cientfica, 1961.ARISTTELES.Arte retrica e arte potica. So Paulo: Difuso europia do livro, 1959.BIGNONE, Ettore. Historia de la literatura latina. Trad. GregorioHalpern. Buenos Aires: EditorialLosada, S.A., 1952.BRANDO, Junito de Souza.Dicionrio mtico-etimolgico da mitologia e da religio romana.Petrpolis: Vozes, 1993GRIMAL, Pierre.A civilizao romana. Lisboa: Edies 70, /s.d./.

    ______.Dicionrio de mitologia grega e romana . Trad. Vitor Jabouille. 2ed., Rio de Janeiro: BertrandBrasil S.A.. 1993.

    12GRIMAL, P. (1992) p. 192.

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