a condição do proletariado

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Giovanni Alves A condição de Proletariedade Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global Editora Praxis

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A condição do proletariado, Giovanni Alves

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Page 1: A condição do proletariado

Giovanni Alves

A condiçãode Proletariedade

Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

Editora Praxis

Page 2: A condição do proletariado

Trabalho e Mundialização do Capital – A Nova Degradação do Trabalho na Era da GlobalizaçãoGiovanni Alves

Dimensões da Globalização – O Capital e Suas ContradiçõesGiovanni Alves

Dialética do Ciberespaço - Trabalho, Tecnologia e Política no Capitalismo GlobalGiovanni Alves (org.) e Vinício Martinez (org.)

Limites do Sindicalismo - Marx, Engels e a Crítica da Economia PolíticaGiovanni Alves

Novos Desequilibrios Capitalistas Paradoxos do Capital e Competição Global Luciano Vasapollo

Tecnécrates Antonino Infranca Desafios do Trabalho – Capital e Luta de Classes no Século XXIRoberto Batista (org.) e Renan Araújo (org.)

Universidade e Neoliberalismo O Banco Mundial e a Reforma Universitária na Argentina (1989-1999) Mario Luiz Neves de Azevedo e Afrânio Mendes Catani

Trabalho, Economia e Tecnologia - Novas Perspectivas para a Sociedade Global Jorge Machado (org.) parceria com a Editora Tendenz

Trabalho e Educação Contradições do Capitalismo GlobalGiovanni Alves (org.), Roberto Batista (Org.) e Jorge Gonzáles (Org.)

Trabalho e Cinema – O Mundo do Trabalho Através do Cinema – Volume 1Giovanni Alves

Dimensões da Reestruturação Produtiva Ensaios de sociologia do trabalhoGiovanni Alves

Economia, Sociedade e Relações Internacionais Perspectivas do Capitalismo GlobalOrganizadores: Francisco Luiz Corsi, José Marangoni Camargo, Marcos Cordeiro Pires e Rosângela de Lima Vieira

Trabalho e Cinema – O Mundo do Trabalho Através do Cinema – Volume 2Giovanni Alves

Teoria da Dependência e Desenvolvimento do Capitalismo na América LatinaAdrian Sotelo Valencia

Série riSco radical

1. O Outro Virtual - Ensaios sobre a InternetGiovanni Alves, Vinicio Martinez, Marcos Alvarez, Paula Carolei

2. Democracia Virtual - O Nascimento do Cidadão FractalVinicio Martinez

3. Leviatã - Ensaios de Teoria PolíticaMarcelo Fernandes de Oliveira

4. Trabalho e Globalização - A Crise do Sindicalismo PropositivoAriovaldo de Oliveira Santos

5. Concertação Social e Luta de Classes - O Sindicalismo Norte-Americano Ariovaldo Santos

Projeto editorial Praxishttp://editorapraxis.cjb.net

Conheça o Projeto editorial Praxis: www.editorapraxis.com Pedidos pelo e-mail [email protected]

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Editora Praxis2009

Giovanni Alves

A condiçãode Proletariedade

Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

Page 4: A condição do proletariado

Copyright do Autor, 2006ISBN 978-85-7917-010-2

Conselho EditorialProf. Dr. Antonio Thomaz Júnior – UNESPProf. Dr. Ariovaldo de Oliveira Santos – UELProf. Dr. Francisco Luis Corsi – UNESPProf. Dr. Jorge Luis Cammarano Gonzáles – UNISOProf. Dr. Jorge Machado – USPProf. Dr. José Meneleu Neto – UECE

Produção GráficaCanal6 Projetos Editoriais www.canal6.com.br

G979c Alves, Giovanni.

A condição de proletariedade: a precariedade do trabalho no capitalis-mo global / Giovanni Alves – Londrina: Praxis; Bauru: Canal 6, 2009.

244 p. ; il. ; 21 cm.

Inclui bibliografia.ISBN 978-85-7917-010-2

1. Trabalho 2. Reestruturação Produtiva 3. Toyotismo I. Giovanni Alves. II. Título.

CDD 331.0981

Projeto Editorial PraxisFree Press is Underground Press

http://editorapraxis.cjb.net

Impresso no Brasil/Printed in Brazil2009

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H“Hoje em dia tudo parece levar em seu seio a sua própria contradi-ção. Vemos que as máquinas, dotadas da propriedade maravilhosa de reduzir e tornar mais frutífero o trabalho humano, provocam a fome e o esgotamento do trabalhador. As fontes de riqueza recém-descobertas se convertem, por artes de um estranho maleficio, em fontes de priva-ções. Os triunfos da arte parecem adquiridos ao preço de qualidades morais. O domínio do homem sobre a natureza é cada vez maior; mas, ao mesmo tempo, o homem transforma em escravo de outros homens ou da sua própria infâmia. Até a pura luz da ciência parece só poder brilhar sobre o fundo tenebroso da ignorância. Todos os nossos inven-tos e progressos parecem dotar de vida intelectual as forças materiais, enquanto reduzem a vida humana ao nível de uma força material bru-ta. Este antagonismo entre a indústria moderna e a ciência, de um lado, e a miséria e a decadência, de outro; este antagonismo entre as forças produtivas e as relações sociais de nossa época é um fato palpável, es-magador e incontrovertível”

KARL MARX, 1856

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“We are such stuff as dreams are made on.” (“Somos da mesma substância que os sonhos.”)

“A Tempestade” (1611)William Shakespeare

O livro “A condição de proletariedade – a precariedade do trabalho capitalismo global” reúne ensaios elaborados no decorrer de 2008 e 2009 no bojo do curso de extensão à dis-

tância “O mundo do trabalho através do cinema – a precariedade do trabalho capitalismo global” – Segunda Edição. Eles representam um amplo esforço de elaboração crítica que visa sugerir, a título me-ramente preliminar, as bases teóricas para a crítica do trabalho es-tranhado e critica da vida cotidiana no capitalismo global, além de apresentar os rudimentos do que seria uma teoria da classe social do proletariado numa perspectiva critico-dialética.

O livro possui caráter meramente ensaístico, sem pretensões de esgotar os assuntos tratados. Nosso objetivo foi subsidiar o inves-tigador da área do trabalho em suas várias instâncias disciplinares com um esclarecimento categorial necessário para desvelar as entra-nhas do mundo burguês.

Agradeço a oportunidade de interlocução direta (ou indireta) com Alessandro Moura, Esdras Selegrin, Arakin Monteiro, Paulo Mazzini, Paula Hypolito de Araújo, Edvânia Lourenço, Claudio Pin-to, Jeinni Puziol, Silvia Correia, Francisco Luis Corsi, José Marango-

Apresentação

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ni Camargo, Valéria Coelho e Thayse Palmela. Todos eles contribuí-ram, em alguma medida, para provocar (e instigar) minhas reflexões sobre o novo (e precário) mundo do trabalho e as misérias presentes da vida burguesa no capitalismo global.

Marilia, 1 de março de 2009

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Sumário

11 Capitulo 1

Trabalho e Capitalismo Global Uma Análise histórico-critica

63 Capitulo 2

A Condição de Proletariedade na Modernidade Salarial

115 Capitulo 3

Estranhamento e fetichismo socialNotas teórico-críticas

127 Capitulo 4

O Proletário-Mascate

149 Capitulo 5

Trabalho e Estranhamento no Capitalismo Global

185 Capitulo 6

A disputa pelo IntangívelEstratégias gerenciais do capital na era da globalização

213 Capitulo 7

Crise estrutural do capital, barbarie social e catastrofe ecológica

229 Capitulo 8

Capitalismo como farsa

241 Referências bibliográficas

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Trabalho e Capitalismo Global Uma Análise histórico-critica

Nosso objetivo é desvelar o significado do conceito de capita-lismo global para que possamos depois, salientar o que con-sideramos como sendo os principais traços do metabolismo

social do trabalho nas condições da mundialização do capital. Na verdade, capitalismo global é o capitalismo histórico nas condições da mundialização do capital. É o que explicaremos mais adiante.

Num primeiro momento, iremos vincular a estrutura da eco-nomia do capitalismo mundial em sua fase de globalização com o metabolismo social do trabalho. Esta é a perspectiva metodológica do materialismo histórico – explicitar o vínculo orgânico entre eco-nomia do capital e vida social – com destaque para o mundo so-cial do trabalho. Uma verdadeira análise dialético-materialista deve apreender as interconexões causais complexas entre forma de ser do desenvolvimento capitalista mundial nas últimas décadas e as meta-morfoses do mundo social do trabalho. É buscar investigar o sentido da totalidade concreta do capitalismo mundial nas condições da crise estrutural do capital.

Outro aspecto metodológico que é importante salientar é que o tratamento critico-histórico dos problemas que atingem o homem que trabalha deve partir radicalmente de uma ótica histórico-mun-dial, pois é com o capitalismo global que torna-se mais candente a posição de indivíduos histórico-mundiais (expressão utilizada por Marx e Engels no livro “Ideologia Alemã”). Enfim, é importante si-tuar o objeto de investigação crítica no contexto histórico-mundial, expondo o complexo de mediações concretas que o vinculam à cena do capitalismo-mundo.

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Ora, cada um de nós – homens e mulheres do século XXI – so-mos, mais do que nunca, consciente ou inconscientemente, parte compositiva de uma densa configuração histórico-mundial. Todos nós somos individualidades histórico-mundiais impregnadas de possibilidades concretas de desenvolvimento humano-genérico. Embora o capital como relação social limite – e obstaculize – a ma-nifestação efetiva da genericidade humana para si, ela está pressu-posta, enquanto dimensão espectral, em nossa forma de ser.

Nessas linhas introdutórias, estou apenas adiantando questões teórico-analíticas que, mais adiante, devo procurar esclarecer. Estes são elementos categoriais importantes para a crítica do capital nas condições da terceira modernidade.

Assim, em síntese, por um lado, é importante salientar a interco-nexão causal entre (1) as metamorfoses sociais do trabalho e a etapa histórica do capitalismo global em sua fase de crise estrutural e, por outro lado, (2) o desenvolvimento contraditório das individualida-des pessoais de classe como parte compositiva – intrínseca e orgânica – da configuração histórico-mundial do capitalismo.

Enfim, temos que pensar o homem que trabalha e o mundo social do trabalho na perspectiva da totalidade concreta do sistema mundial do capital. Eis, portanto, as decorrências metodológicas da posição histórico-materialista de critica sócio-ontológica do capital, que de-vemos levar em consideração em nossas investigações críticas.

Num primeiro momento, iremos fazer a apresentação da con-figuração sócio-histórica do capitalismo global a partir de algumas teses que expõem importantes categorias necessárias para a apreen-são crítica do desenvolvimento do mundo do trabalho e do capital. A utilização da apresentação em teses é um recurso expositivo válido para sintetizar idéias fundamentais que queremos salientar. É im-portante dizer que nossa pretensão é tão-somente pontuar e esboçar – a título meramente introdutório - o significado candente de cate-gorias imprescindíveis para o tratamento crítico-dialético do objeto “trabalho”.

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Trabalho e Capitalismo Global – Uma Análise histórico-critica

Tese 1

Enquanto modo de controle do metabolismo social, o capital apresenta-se, desde a sua origem histórica, como uma relação social que se tornou sistema de controle fetichizado expansionista, incon-trolável, incorrigível e insustentável através da contingencia da politi-ca. No decorrer da sua temporalidade histórica, estas características estruturais da relação-capital, explicitaram-se, com vigor, na medida em que se compôs o sistema mundial produtor de mercadorias.

Capital

Expansionista

Incontrolável

Incorrigível

Insustentável

É István Mészáros – em “Para Além do Capital” – que salienta que o capital é expansionista, incontrolável, incorrigível e insustentá-vel. Ora, perguntemos – de onde provêm tais características da or-dem de reprodução social e metabólica do capital?

Elas provêm da dinâmica essencial traduzida na fórmula geral D-M-D’ (onde D é dinheiro, M é mercadoria e D’ é mais-dinheiro). Esta é a fórmula geral do capital apresentada por Marx no Livro I, Seção II, Capítulo IV de “O Capital” e que – de forma sintética – expressa a pulsão essencial que constitui o movimento histórico-estrutural das sociedades burguesas.

D-M-D’ é o movimento essencial do espírito capitalista. Esta fórmula geral traduz a sanha voraz do capital que é, em si e para si, a

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reprodução hermafrodita da riqueza abstrata. O capitalista acumula para acumular mais – eis o sentido irracional da dinâmica pulsional do capital. Ou seja, diferentemente da fórmula M-D-M, que expressa a circulação simples de mercadoria (o dinheiro é o meio de circu-lação de produtos-mercadorias que satisfazem necessidades huma-nas), a outra fórmula, da produção do capital, - D-M-D’ – possui, em si, um caráter expansionista e incontrolável. O dinheiro é o princípio e o fim de um processo de autovalorização do valor – nesse caso, a compra-e-venda de mercadorias é meramente um meio para a acu-mulação de mais-dinheiro pelo capitalista. Nesse caso, o dinheiro como riqueza abstrata é o “sujeito automático”, como diria Marx, que busca a auto-valorização infindável. O D’ é a representação simbólica de um termo reiterativo perpétuo. Dinheiro só se satisfaz com mais dinheiro. Isto ocorre, no caso da acumulação capitalista, porque di-nheiro é, em si e para si, valor em expansão. É apenas um momento deste processo de auto-valorização perpétuo, que não se detém em nenhuma materialidade propriamente dita. Na verdade, M e D são apenas momentos fugazes de um movimento perpétuo de valoriza-ção – o que significa que, a rigor, o capital é, como nos diz Marx, não D ou M, mas sim o próprio movimento de auto-valorização. É deste modo que se explica seu caráter expansionista e incontrolável.

É no bojo deste movimento sistêmico expansionista, incontrolá-vel, incorrigível e insustentável que se constituiu um sistema social capaz de reproduzir tal lógica perpétua de acumulação de riqueza abstrata – a sociedade burguesa. Ela se constitui através da produção de uma outra natureza, uma segunda natureza – a “última Nature-za” – que se impõe, de forma estranhada, a todos nós, pois tende a frustrar as expectativas de seus agentes humanos.

Esta teoria crítica do capital, apresentada por Marx, contém, não apenas uma teoria da exploração que explica os mecanismos da pro-dução de mais-valia por meio da exploração da força de trabalho, mas também uma teoria do estranhamento que expressa a própria natureza essencial do capital.

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É claro que existe um vínculo orgânico entre teoria da explo-ração e teoria do estranhamento em Marx, sendo a distinção mera-mente heurística. Entretanto, em geral, os marxistas, ao tratarem do mundo social do trabalho, se detém tão-somente na teoria da explo-ração e seu universo categorial (como, por exemplo, mais-valia abso-luta/mais-valia relativa, trabalho concreto/trabalho abstrato, traba-lho produtivo/improdutivo, etc). Inclusive, nessa ótica, por exemplo, a discussão sobre o pertencimento de classe do proletariado tende a ser feita meramente a partir da delimitação trabalho produtivo/improdutivo (assim, pertence à classe proletária o trabalhador assa-lariado que executa trabalho produtivo, etc).

Ora, acreditamos que a critica do capitalismo manipulatório (como Georg Lukács caracterizou o capitalismo do nosso tempo) – que coloca no centro do debate o problema do sujeito histórico de classe (o que implica discutir o tema da classe e consciência de clas-se como pressupostos da possibilidade da práxis humano-social e transcendência da relação-capital) - exige hoje, mais do que nunca, a apreensão critica da teoria do estranhamento e seus nexos catego-riais. Uma de nossas hipóteses principais é que a elaboração catego-rial do conceito de proletariado como sujeito histórico-coletivo deve ser feita não a partir da teoria da exploração, mas sim da teoria do estranhamento.

Crítica do capital

Teoria do estranhamento

Teoria da exploração

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Ora, o capital é o próprio sistema do estranhamento social base-ado no trabalho alienado/estranhado. A categoria de estranhamen-to é uma das mais significativas categorias sociológicas – depois, é claro, da categoria de capital. Aliás, a última se confunde com a primeira. Através da categoria de estranhamento podemos dar uma inteligibilidade crítica à fenomenologia da reprodução social na sociedade burguesa. Além disso, a categoria de estranhamento é o pressuposto estrutural da categoria de exploração baseada na extração de mais-valia.

Um detalhe: ao dizer estranhamento pressupomos alienação. Aliás, para nós, em última instância, as duas palavras em português têm o mesmo significado, ou seja, possuem um claro sentido de ne-gatividade (traduzimos a palavra Entfremdung, em alemão, por es-tranhamento ou alienação).

A alienação é o ato/processo histórico de perda/despossessão dos meios de produção/controle da vida social que constitui a condi-ção sócio-existencial de estranhamento.

Se objetivação/exteriorização da atividade do homem como ser genérico possui um sentido de positividade, por outro lado, aliena-ção/estranhamento possui um claro sentido de negatividade. Esta-mos tratando, portanto, com pares dialético-reflexivos.

É a partir do trabalho alienado como despossessão dos meios de produção da vida social que se constitui o complexo social da vida estranhada (sistema social do estranhamento), caracterizado por re-lações sociais, processos e estruturas que obstaculizam o desenvolvi-mento do ser genérico do homem.

Objetivação Exteriorização

O processo de objetivação, que é o processo de trabalho como pro-dução de objetos ou meios/conjuntos de meios (produtos/objetivações sociais), capazes de satisfazer necessidades ou carecimentos humano-genéricos – inclusive no sentido para além da esfera instrumental

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(por exemplo, a “produção” de instituições/valores sociais) – implica dois elementos compositivos ontologicamente inelimináveis.

Primeiro, objetivação pressupõe afastamento/alienação do sujeito-objeto (“alienação”, nesse caso, possui um sentido de positividade. Em alemão, seria o Entäusserung). Na dialética materialista do trabalho, não existe uma identidade sujeito-objeto, na medida em que o que se objetiva se distingue (ou se afasta – no sentido ontológico) do sujeito que o criou. Portanto, objetivação implica graus de afastamento/alienação entre criador e criatura ou entre o sujeito e o objeto produzido.

É esta “alienação” (como desenvolvimento ontogenético) que funda o ser objetivo existente que não se reduz (ou não é) mera ex-tensão daquilo que o criou (sujeito humano-genérico). Inclusive, por conta deste afastamento/alienação ontogenética, o modo de apro-priação individual ou coletiva do produto/objeto social criado, tende a se distinguir – e no seu desenvolvimento histórico-social se distin-gue – da teleologia originária (a gênese) que o criou.

A questão é saber se o modo de apropriação – que sempre é socialmente determinado por conta das relações sociais de produção – contribui (ou não) para o desenvolvimento humano-genérico da coletividade do trabalho. É o modo de apropriação que determina a forma de ser daquilo que denominamos exteriorização.

Portanto, toda objetivação – ou produção de objetos-produtos/objetivações sociais – pressupõe, além do afastamento/alienação e apropriação, a exteriorização, que é o “retorno” do objeto-produtos/objetivações sociais sobre o sujeito humano-coletivo que o produziu.

Elementos compositivos da ontologia do trabalho

Objetivação Afastamento/alienação Apropriação Exteriorização

Por exemplo: a produção de objetos técnicos complexos exige de seus usuários um determinado modo de apropriação, isto é, o domí-nio de determinadas habilidades instrumentais-cognitivas, sob pena

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deles não poderem utilizá-los a contento. É quase como se o objeto exigisse do usuário o desenvolvimento de determinadas habilida-des/capacidades adequadas à manipulação do novo aparato técnico complexo (por exemplo, para o uso adequado de um computador o usuário precisa ter treinamento em informática). Eis, portanto, um “retorno positivo” – ou exteriorização/externalização positiva – do objeto sobre o sujeito que sob certas condições sociais, contribui para o desenvolvimento humano-genérico. É quase como que o objeto estivesse ensinando o sujeito a ir além de si mesmo – “decifra-me ou serás incapaz de utilizar-me!”.

Na verdade, o desenvolvimento do progresso técnico tem colo-cado para as sociedades humanas a necessidade do domínio/apro-priação ampla de novas habilidades instrumentais-cognitivas. O processo civilizatório do homem caracteriza-se pelo processo de objetivação/apropriação/exteriorização progressiva, onde o desen-volvimento humano-genérico é mediado pelo mundo de objetos téc-nicos constituídos por meio da atividade do trabalho social.

Entretanto, o processo de objetivação/exteriorização que ocorre sob a relação-capital não contribui para o desenvolvimento da ge-nericidade humana. A relação-capital é caracterizada pelo trabalho alienado, onde homens e mulheres estão despossuídos da proprieda-de/controle dos meios de produção da vida social. Nesse caso, o sujei-to produz objetos-produtos/objetivações sociais cuja exteriorização/externalização “se volta contra” ele. Nesse caso, o objeto se tornou coisal, como diria Marx. Isto é, tornou-se um fetiche – uma objeti-vação intransparente e recalcitrante ao controle social. O modo de apropriação destes meios e conjuntos de meios socialmente produzi-dos é um modo de apropriação estranhado. É o “retorno regressivo” ou externalização estranhada que caracteriza o trabalho alienado, constituindo, deste modo, o sistema social do estranhamento.

Por exemplo, o sistema operacional (ou interface) de um compu-tador – criado por uma empresa capitalista, portanto, de propriedade privada e à margem do controle social – pode limitar a criatividade do usuário, submetendo-o a atos prescritos, ou ainda ocasionar da-

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nos à saúde, etc. Nesse caso, o objeto técnico se interverte em objeto tecnológico que tende a aparecer como fetiche (eis o fetiche da tecno-logia). É o caso da máquina capitalista (trabalho morto) que “desem-prega” homens e mulheres trabalhadoras (trabalho vivo).

Ou ainda, uma objetivação como instituição social, criada pelos homens, como o casamento em sua forma burguesa, pode tornar-se uma “gaiola de ferro” (na acepção weberiana), submetendo os cônjuges a valores-fetiches ligados a tradição e conformação social, que tendem a obstaculizar, sob determinadas condições, seu desenvolvimento huma-no-pessoal (ora, o grande desafio da sociedade emancipada é construir instituições sociais que propiciem um campo de desenvolvimento da genericidade humana, permitindo que os sujeitos façam escolhas éticas – isto é, escolhas baseadas em valores que contribuam para o desenvol-vimento das individualidades pessoais humano-genéricas.).

Portanto, em síntese, podemos dizer que objetivação/exteriori-zação – e seus momentos compositivos internos (afastamento/alie-nação e apropriação) são traços ontológicos da atividade do trabalho humano. O homem é um animal social que produz objetos, isto é, um ser que se objetiva em produtos, ou seja, produz produtos ou ob-jetivações sociais – instituições sociais ou valores – que “se voltam” a favor (ou contra) o homem : é o que se denomina exteriorização.

Objetivação/exteriorização

Produtos (objetos técnicos)

Valores

Instituições sociais

Quando o retorno do objeto “se volta a favor” do sujeito huma-no, contribuindo para seu desenvolvimento humano-genérico, te-mos uma exteriorização positiva.

Quando o retorno do objeto “se volta contra” o sujeito – negan-do-o como ser humano-genérico – temos uma exteriorização nega-

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tiva. É o que denominamos de estranhamento. Como salientamos acima, o modo de apropriação (ou modo de controle do metabolismo social) – que é socialmente determinado – é o elemento decisivo da forma de ser do “retorno” do objeto sobre o sujeito humano.

Na ótica marxiana, o fundamento (ou raiz) da vida social es-tranhada ou sistema social do estranhamento é o trabalho aliena-do, caracterizado pela relação-capital (propriedade privada/divisão hierárquica do trabalho). A relação-capital é o modo de apropriação (ou modo de controle do metabolismo social) que caracteriza as so-ciedades de classes.

Foi através deste processo de objetivação/exteriorização (do tra-balho como produção/reprodução social) que o animal homem se tornou ser sujeito humano. Ele marca o processo civilizatório, que sob a relação-capital, é um processo histórico intrinsecamente con-traditório.

Portanto, foi sob determinadas condições históricas da proprie-dade privada e da divisão hierárquica do trabalho, que a produção de objetos se interverteu em produção de objetos-mercadorias. Nesse caso, como observa Karl Marx nos Manuscritos de 1844, o objeto de trabalho (ou o produto do trabalho) se tornou coisal, ou seja, tornou-se uma coisa – produto-mercadoria, intransparente, fetichizado (isto é, recalcitrante ao controle social de homens e mulheres) – que nega o próprio sujeito humano, o ser genérico do homem. Deste modo, a objetivação/exteriorização assume uma forma estranhada (com to-das as repercussões sócio-humanas que a categoria de estranhamen-to tem no plano do processo histórico-civilizatório).

Objetivação/ Exteriorização Estranhamento

Relação-capital (trabalho alienado) propriedade privadaDivisão hierárquica do trabalho

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É importante salientar que sob o modo de produção capitalista, o estranhamento assume forma sistêmica. Surge no decorrer do pro-cesso histórico, marcado pela contingencia da política, o sistema so-cial do estranhamento. Ao desenvolver à exaustão as determinações compositivas do estranhamento social – algumas delas, inclusive, inscritas em sociedade antigas, como o mercado ou capital mercan-til, dinheiro ou capital monetário – o modo de produção capitalista constituiu assim, um sistema do estranhamento social.

Portanto, o que antes era tão-somente formas residuais de dinâ-mica societária como o mercado e a forma-mercadoria, tornou-se, com o modo de produção do capital, eixo estruturante da sociabi-lidade e da própria produção social. Assim, o estranhamento social constitui o próprio sócio-metabolismo do Ocidente e hoje, do globo.

Tese 2Desde a sua origem, em fins do século XIV, o capitalismo moder-

no como sistema mundial de poder e modo de produção de mercado-rias, passou por duas principais etapas de desenvolvimento históri-co: o capitalismo comercial e o capitalismo industrial.

É com a última etapa – o capitalismo industrial – que se inaugu-ra o mercado mundial e se explicita a forma de ser do capital como modo de controle estranhado do metabolismo social.

O capitalismo industrial – o sistema da grande indústria e ma-quinaria – que emerge na configuração sócio-territorial do Ocidente em fins do século XIX, possui uma etapa internacional propriamen-te dita, marcada pela expansão colonialista e imperialista (com a afirmação dos Estados-nações construtos de burguesias nacionais); e o que podemos considerar uma etapa global, que irá caracterizar a mundialização do capital (é o que denominamos de capitalismo global que é nada mais e nada menos que o capitalismo histórico na fase da mundialização do capital).

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Configuração histórica da modernidade do capital

relação social – sistema Capital (D-M-D’) (expansionista, incontrolável, incorrigível e insustentável)

Capitalismo Comercial Capitalismo Industrial

Capitalismo Internacional › Capitalismo Global

Primeira ModernidadeSegunda

ModernidadeTerceira

Modernidade

A cada configuração histórica do capitalismo moderno – capita-lismo comercial e capitalismo industrial – pertence um determinado tipo de modernidade caracterizado por determinados traços do me-tabolismo social. É o que nos interessa salientar.

Deste modo, a modernidade do capital que se constitui a partir do século XVI se divide em primeira, segunda e terceira modernida-de. É através deste desenvolvimento histórico que apreenderemos a manifestação essencial da natureza desta categoria social.

Distinguiremos assim, a primeira modernidade do capital, que abrange o período histórico do capitalismo comercial; e a segunda modernidade, que é a modernidade propriamente dita, que emer-ge com o capitalismo industrial e o mercado mundial em fase mo-nopolista clássica. Com a crise da modernidade, emerge uma nova configuração social adequada ao capitalismo global – o que denomi-namos de terceira modernidade do capital. Consideramos este tipo de periodização histórica importante para situarmos o nosso tempo histórico-particular.

Ora, por modernidade entendemos um metabolismo social com-plexo que marca uma determinada configuração sócio-histórica ou ainda um conjunto de experiências de vida – experiência do espaço e do tempo, de si mesmo e dos outros, das possibilidades e perigos

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da vida – que é compartilhado por homens e mulheres no proces-so cotidiano de produção/reprodução social. Assim, desde o século XVI, constitui-se no Ocidente europeu a modernidade do capital, que se expandiu pelo mundo e assumiu diversas formas histórico-temporais, por conta do desenvolvimento do modo de produção e reprodução social.

Diremos com Marshall Berman que, “ser moderno é encontrar-mo-nos em um meio-ambiente que nos promete aventura, poder, alegria, crescimento, transformação de nós mesmos e do mundo – e que, ao mesmo tempo, ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que conhecemos, tudo o que somos. Ambientes e experiências modernos atravessam todas as fronteiras de geografia e de etnias, de classe e nacionalidade, de religião e ideologia; neste sentido, pode-se dizer que a modernidade une todo o gênero humano. Mas é uma unidade paradoxal, uma unidade de desunidade: envolve-nos a todos num redemoinho perpétuo de desintegração e renovação, de luta e con-tradição, de ambigüidade e angústia. Ser moderno é ser parte de um universo em que, como disse Marx, tudo o que é sólido se desman-cha no ar.”

Esta percepção de Marshal Berman é a percepção aguda da mo-dernidade clássica, a segunda modernidade do capital, a moderni-dade da grande indústria e do modernismo, que irá expor a forma essencial deste processo de modernização do capital.

O capital como relação social que se tornou sistema fetichizado adquire sua dimensão real tão-somente a partir do que iremos de-nominar de segunda modernidade, ou seja, a partir da instauração do modo de produção capitalista propriamente dito e do sistema de máquinas e da grande indústria com a Primeira Revolução In-dustrial no século XIX, que propiciou a subsunção real do trabalho ao capital. Esta importante inflexão histórica que surge a partir da primeira metade do século XIX nas sociedades européias – ou mais precisamente, na Inglaterra – propiciou um salto qualitativamente novo à dinâmica civilizatória do capital.

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É possível dizer que, com a segunda modernidade do capital, que tem início com a Primeira Revolução Industrial, a partir do século XIX, e que prossegue até a última metade do século XX, o capital se consolida como sistema mundial de controle do metabolismo social. Nesse período histórico se constitui o mercado mundial e todas as determinações sociais descritas num impressionante vigor literário por Karl Marx e Friedich Engels n’O Manifesto Comunista, de 1848.

Foi nessa etapa de desenvolvimento do capitalismo ocidental que instaurou-se o processo de modernização. Em seu bojo, cumpriu-se aquilo que é o próprio mote da ordem sócio-metabólica do capital, ou seja, “tudo que é sólido se desmancha no ar”. Encontramos na trajetória histórica da segunda modernidade do capital, não apenas a constituição dos pilares da modernidade propriamente dita, mas sua própria negação tendencial no interior do próprio desenvolvi-mento sistêmico do capital. As múltiplas contradições intrínsecas à segunda modernidade a conduziriam à crise da modernidade pro-priamente dita e a constituição da terceira modernidade do capital a partir da década de 1970.

A segunda modernidade do capital é a modernidade-máquina, temporalidade histórica em que se constituiu um estilo de pensa-mento, de política e de sensibilidade estética que poderíamos carac-terizar como modernista.

Por modernismo, que se vincula à segunda modernidade do ca-pital, compreendemos, a partir de Marshal Berman, como sendo “a espantosa variedade de visões e idéias que visam a fazer de homens e mulheres os sujeitos, ao mesmo tempo que os objetos, da moderni-zação, a dar-lhe o poder de mudar o mundo que os está mudando, a abrir-lhes caminho em meio ao turbilhão e apropriar-se dele”.

É na época histórica da segunda modernidade do capital que germina o modernismo, um estilo cultural e político próprio, que destila ambigüidade, angústia e rebeldia, e que expressa a moderni-zação aguda, onde, como observou com vigor Marx, “tudo que é só-lido se desmancha no ar”. Assim, quem anuncia, com vigor literário, a segunda modernidade do capital, a modernidade propriamente

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dita, é Karl Marx e Friedrich Engels n’O Manifesto Comunismo de 1848. Neste opúsculo político a descrição dos novos tempos contém a utopia social do comunismo e de seu sujeito histórico, o proletaria-do industrial. Deste modo, o modernismo significa visões e valores carentes de utopia social.

O modernismo expressa visões culturais e políticas da expan-sividade crítica do capital. Ele é o espírito político-cultural da se-gunda modernidade do capital. Por exemplo, o projeto utópico do comunismo político é uma marca clássica do modernismo da segun-da modernidade, ou modernidade propriamente dita, aquela que se desenvolve a partir da Primeira Revolução Industrial e da grande indústria, onde temos o surgimento do proletariado industrial como sujeito histórico-coletivo da emancipação social.

Portanto, a segunda modernidade é a modernidade do moder-nismo, da forma cultural prenhe de projetos de utopias concretas (como diria Ernst Bloch), - como, por exemplo, os projetos sociais do comunismo político, salientado acima; não mais de utopias abs-tratas, como a de Thomas Morus (“A Utopia”) ou de Tomazo di Campanella (“Cidade do Sol”), que marcaram a primeira moderni-dade; ou mesmo de Charles Fourier ou mesmo Robert Owen (que não apreenderam os nexos sociológicos do novo tempo histórico da grande indústria).

Portanto, é na segunda modernidade do capital que se consti-tuiu a classe social – burguesia e proletariado, e o Estado nacional em torno da qual se consolida o território propriamente dito da Nação e da Cidade. São tais determinações essenciais que irão compor a identidade/não-identidade social de homens e mulheres da segunda modernidade.

Mas o processo social da segunda modernidade, e o que foi deno-minado de modernismo, é contraditoriamente complexo. O conjunto de doutrinas e práticas estéticas e políticas denominadas de “moder-nismo” é amplamente heteróclito, assincrônico e intrinsecamente contraditório, como a própria modernização do capital sob o período de sua ascensão histórica. A segunda modernidade enquanto período

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de ascensão histórica do capital é o período histórico que ainda nos constrange, e que é parte de nós (como memória e imagem social).

Poderíamos dizer que a segunda modernidade, adquire consci-ência de si em meados do século XIX, no bojo da primeira crise sis-têmica do capitalismo ocidental. Seu marco histórico maduro são as revoluções sociais de 1848, evento crucial que inspirou o Manifesto Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels. As revoluções sociais de 1848 abrem um novo período histórico da luta de classes.

No período da segunda modernidade do capital, transcorre a as-censão e crise do Estado social, de partidos e sindicatos de classe, dos projetos de utopias sociais, do comunismo à social-democracia clássica. Constituiu-se o mundo do trabalho que chegamos a conhe-cer até a crise estrutural do capital, em meados de 1970. É o período histórico das conquistas sociais do trabalhismo organizado, da le-gislação do trabalho e do Welfare State. Nele vigoram tanto o refor-mismo social-democrata, quanto o comunismo político como forças estruturantes da defensividade do trabalho.

Na temporalidade histórica da segunda modernidade do capi-tal ocorre o surgimento e desenvolvimento dos Estados nacionais, com destaque para a constituição hegemônica dos Estados Unidos da América como nação moderna; da crise européia e dos conflitos imperialistas da Primeira e Segunda Guerra Mundial; da coloniza-ção, descolonização e ocidentalização do Terceiro Mundo; da indús-tria cultural, da modernização avassaladora em todas as instâncias da vida social (o que só ocorreria após a Segunda Guerra Mundial). Enfim, é um período de intensa destruição criativa, último perío-do histórico de ascensão do capital, uma ascensão de destruição de modos de vida tradicionais vinculados à dominação de classes aris-tocráticas e agrárias, que só ocorreriam de vez após as duas guerras mundiais que atingiram o Continente Europeu (é tal transição do tradicional para o moderno que iria dar aquela sensação de ambi-güidade típica do modernismo – euforia e rebeldia, tão típica dos movimentos culturais modernistas, do surrealismo ao rock and roll dos The Beatles).

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Mas, na medida em que se desenvolve, a segunda modernidade do capital se dilacera a si mesmo, pois não deixa de ser modernida-de do capital. É, portanto, uma modernidade clivada de contradi-ções sociais, fraturas estruturais, que iriam se manifestar, em sua plenitude, em sua etapa de crise estrutural. Além disso, a segunda modernidade prossegue afetada por negações, no bojo da terceira modernidade do capital, que se desenvolve com a crise estrutural do capital, nos últimos trinta anos.

Modernidade do Capital

Primeira Modernidade(séc. XVi-séc. XViii)

Segunda Modernidade(séc. XiX-séc. XX)

Terceira Modernidade(séc. XXi...)

Portanto, a título de síntese, nesta periodização histórica de lon-ga duração da modernidade do capital, teríamos uma primeira mo-dernidade, aquela que transcorreria dos primórdios do capitalismo moderno, do século XVI ao século XVIII e primórdios do século XIX, caracterizado ainda pelo capitalismo comercial, onde as socie-dades européias imersas em relações sociais tradicionais de domina-ção de classe aristocráticas e agrárias, ainda não estão subsumidas à lógica do capital industrial, mas sim, à lógica do capital mercantil.

A segunda modernidade do capital seria a modernidade da Pri-meira e Segunda Revolução Industrial, do surgimento da grande in-dústria, do modo de produção capitalista propriamente dito, da sub-

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sunção real do trabalho ao capital, da transição dolorosa e luminosa para a última modernidade do capital, a terceira modernidade.

A terceira modernidade do capital seria a modernidade tardia, a modernidade sem modernismo, ou a modernidade pós-modernista. A terceira modernidade seria a modernidade do precário mundo do trabalho e da barbárie social. Com a terceira modernidade do capital entramos noutra temporalidade histórica com impactos decisivos na objetividade e subjetividade da classe dos trabalhadores assalariados e do trabalho vivo (Giles Lipovetsky a identifica como hipermoder-nidade, mero eufemismo para caracterizar essa modernidade tardia do capital em sua crise estrutural).

A crise da segunda modernidade do capital explicita-se em me-ados da década de 1960, década de transição que anuncia no centro do sistema do capital, a passagem para a terceira modernidade. É a crise estrutural do capital de meados da década de 1970 que tende a impulsionar o desenvolvimento da terceira modernidade do capi-tal, que se compõe na medida em que se dissolvem as coordenadas históricas compositivas do modernismo. É importante salientar que a utopia social do trabalho é uma conquista civilizatória da alta mo-dernidade do capital e da sociedade de classes que ainda irá caracte-rizar a modernidade tardia, a última modernidade, a modernidade sem modernismo.

Finalmente, é importante salientar que o capital como “sujeito da modernização” encontrou na forma-máquina a materialidade adequada à sua própria manifestação. A segunda (e terceira) moder-nidade do capital – como temporalidades históricas do capitalismo industrial ou capitalismo da grande indústria – é caracterizada pelo processo de introdução da ciência e tecnologia modernas nas instân-cias da produção e reprodução social. É o que ocorre com o surgi-mento (e desenvolvimento) da grande indústria no decorrer de todo o século XX.

Assim, a modernidade do capital propriamente dita (com a ter-ceira modernidade sendo sua derivação critica) é a temporalidade histórica da grande indústria, cujo metabolismo social é caracteri-

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zado, no plano da produção social, pela Organização Científica do Trabalho (taylorismo), fordismo (como linha de montagem ligada a esteira mecânica) e toyotismo; e no plano da reprodução social, pelo americanismo e globalismo como modos de vida burgueses (estilos de consumo e metabolismo social). Estamos tratando de desenvol-vimento tendenciais da modernização do capital que iriam marcar o século XX.

temporalidade histórica da grande indústria

Produção

Taylorismo

Fordismo

Toyotismo

Reprodução Social

Americanismo

Globalismo

Um detalhe: a grande indústria diz respeito não apenas a indús-tria propriamente dita, mas sim a empreendimentos capitalistas – inclusive do setor primário e terciário da economia – voltados para a auto-valorização do valor. Portanto, embora no decorrer do século XX as sociedades burguesas mais desenvolvidas tenham se tornado cada vez mais “sociedades de serviços” – supostamente “sociedades pós-industriais”, tendo em vista a diminuição do setor primário e setor secundário da economia e o crescimento paulatino do setor terciário – o princípio da grande indústria – que significa a presença estruturante da forma-máquina na produção de valor (implicando,

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por conseguinte, o uso sistemático da ciência e tecnologias moder-nas) – não deixou de organizar a materialidade da produção (e re-produção social).

Podemos distinguir – no plano heurístico – dois movimentos es-truturais de constituição da forma social do espaço-tempo da grande indústria no século XX:

Primeiro, o movimento de introdução sistemático da ciência e da tecnologia moderna na esfera da produção capitalista propriamente dita. Com o capitalismo industrial, a ciência e a técnica tornaram-se imagem e semelhança do capital. O progresso técnico-científico vinculou-se (ou emergiu a partir da) lógica do capital (Poder e Di-nheiro). Sob a segunda modernidade do capital ocorreram duas Re-voluções Industriais (a Primeira Revolução Industrial na virada do século XVIII para o século XIX e a Segunda Revolução Industrial, na passagem do século XIX para o Século XX) e a terceira moder-nidade do capital é inaugurada com Terceira Revolução Industrial marcada por duas Revoluções Tecnológicas (as revoluções informá-ticas e informacionais). Cada revolução industrial significou avanços significativos no desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social, alterando, deste modo, a matriz tecnológico-energética das sociedades burguesas. Elas mudaram o ambiente produtivo e o espa-ço da produção de mercadorias. Ocorreu a cientifização da produção do capital e a tecnologização da ciência moderna. A constituição da nova base técnica de produção do capital – a nova empresa capitalista – seria marcada pela luta de classes e resistências operário-sindicais no decorrer do século XX contra a ofensiva do capital na produção.

Segundo, o movimento de introdução da ciência e da tecnolo-gia modernas na base sócio-reprodutiva da sociedade burguesa. A “racionalidade tecnológica” imprimiu sua marca não apenas na produção de mercadorias, mas nos próprios produto-mercadorias, objetos de consumo de massa, que tornaram-se objetos tecnológicos complexos, alterando, de modo paulatino, o metabolismo social. Os fascinantes aparatos tecnológicos iriam caracterizar a vida urbano-industrial instaurando novas experiências de vida compartilhadas

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por homens e mulheres. A tecnologia transfigurou espaços urbano-metropolitanos, organizando o cotidiano de homens e mulheres. Assim, a indústria cultural, tanto quanto a cultura industrial, a re-produção técnica da obra de arte e a tecnologização da vida cotidia-na, iriam compor o segundo movimento de constituição do espaço-tempo da grande indústria no século XX.

Enfim, os movimentos de constituição da forma social da gran-de indústria, tanto na instancia da produção, quanto na instancia da reprodução social, movimentos históricos dúplices, sincrônicos e assincrônicos, de múltiplas temporalidades, iriam compor a segun-da modernidade.

Tese 3O que nos interessa é tratar da etapa do capitalismo global mar-

cado pela crise estrutural do capital. A crise estrutural do capital que se desenvolve com intensidade e amplitude a partir de meados da dé-cada de 1970, projeta homens e mulheres numa nova temporalidade sócio-histórica (o que, por exemplo, David Harvey irá denominar de “condição pós-moderna”). Ela constitui o que denominamos acima de terceira modernidade do capital. Enfim, há uma ruptura histórica significativa com impactos na dinâmica histórica do sistema mun-dial do capital – é o que queremos salientar abaixo.

O conceito de crise estrutural do capital é um importante nexo categorial para explicar o complexo de mutações sociais que atingem a civilização do capital no último quartel do século XX. Mas, o que é a crise estrutural do capital?

Vejamos o que nos diz Istvan Meszáros, nesta longa citação do livro “Para Além do Capital”.

Diz ele: “[...] a crise do capital que experimentamos hoje é fun-damentalmente uma crise estrutural. Assim, não há nada especial em associar-se capital a crise. Pelo contrário, crises de intensidade e duração variadas são o modo natural de existên cia do capital: são maneiras de progredir para além de suas barreiras imediatas e, desse

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modo, estender com dinamismo cruel sua esfera de operação e domi-nação. Nesse sentido, a última coisa que o capital poderia desejar seria uma superação permanente de todas as crises, mesmo que seus ide-ólogos e propagandistas freqüentemente sonhem com (ou ainda, rei-vindiquem a realização de) exatamente isso. A novidade histórica da crise de hoje torna-se manifesta em quatro aspectos principais: (1) seu caráter é universal, em lugar de restrito a uma esfera particular (por exemplo, financeira ou comercial, ou afetando este ou aquele ramo particular de produção, aplicando-se a este e não àquele tipo de traba-lho com sua gama específica de habilidades e graus de produtividade etc.); (2) seu alcance é verdadeiramente global (no sentido mais literal e ameaçador do termo), em lugar de limitado a um conjunto particu-lar de países (corno foram todas as principais crises no passado); (3) sua escala de tempo é extensa, contínua, se preferir, permanente, em lugar de limitada e cíclica, como foram todas as crises anteriores do capital; (4) em contraste com as erupções e os colapsos mais espeta-culares e dramáticos do passado, seu modo de se desdobrar poderia ser chamado de rastejante, desde que acrescentemos a ressalva de que nem sequer as convulsões mais veementes ou violentas poderiam ser excluídas no que se refere ao futuro: a saber, quando a complexa ma-quinaria agora ativamente empenhada na “ad ministração da crise” e no “deslocamento” mais ou menos temporário das crescentes con-tradições perder sua energia. Seria extremamente tolo negar que tal maquinaria existe e é poderosa, nem se deveria excluir ou minimizar a capacidade do capital de somar novos instrumentos ao seu já vasto arsenal de autodefesa contínua. Não obstante, o fato de que a maqui-naria existente esteja sendo posta em jogo com freqüência crescente e com eficácia decrescente é uma medida apropriada da severidade da crise estrutural que se aprofunda”.

Num primeiro momento, a crise estrutural do capital aparece como crise de sobreacumulação (ou crise de superprodução), como salientam Ernest Mandel, David Harvey e Robert Brenner. Entretan-to, não é meramente mais uma crise de superprodução, na medida em que há mudanças qualitativamente novas na dinâmica critica do capitalismo global.

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Embora a dinâmica do capitalismo industrial tenha sido mar-cadas por crises cíclicas – algumas delas crise de superprodução – a crise do capital que ocorre no último quartel do século XX, devido o acumulo de contradições da forma social do capital, possui um conteúdo qualitativamente novo. Por isso a qualificamos como crise estrutural do capital.

Na medida em que ocorre sob as condições sócio-históricas do capitalismo global, a crise de superprodução adquire uma dimensão estrutural que explicita os limites da forma-capital não apenas no plano da produção/realização de valor, mas do próprio sistema de controle do metabolismo social. Eis, assim, o conteúdo qualitativa-mente novo da crise de superprodução que emerge no último quartel do século XX.

Caráter da crise estrutural do capital

(Segundo i. Meszáros)

Abrangência universal

Alcance global

Temporalidade permanente

Modo rastejante

Deste modo, crise estrutural do capital que ocorre a partir de me-ados da década de 1970, não significa incapacidade de crescimento (e expansão) da economia capitalista e do sistema sócio-metabólico do capital. Esta é uma visão “economicista” da crise do capital. Pelo contrário, apesar da crise estrutural, o capital tem-se expandido nos últimos trinta anos, apresentado, na passagem para o século XXI, índices significativos de crescimento da economia nas fronteiras da modernização do capital, como Índia, China e Sudeste Asiático.

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Pode-se inclusive dizer que a expansividade do capital nas últi-mas décadas do século XX é sintoma irremediável de sua crise estru-tural. É uma fuga para frente visando deslocar as contradições acu-muladas de sua forma social. Na medida em que se constitui o globo à sua imagem e semelhança, o capital explicita não sua vitalidade sistêmica, mas os limites irremediáveis de sua natureza destrutiva (o que explica a crise do ecossistema humano-natural).

Portanto, o que denominamos crise estrutural do capital signifi-ca a incapacidade da forma social do capital em conter (e realizar) as novas possibilidades de desenvolvimento do ser genérico do homem, dada pela nova materialidade sócio-técnica.

Sob a etapa do capitalismo global e da terceira modernidade, isto é, sob a fase da crise estrutural do capital, tendem a se acirrar, num grau qualitativamente novo, as contradições entre relações sociais de produção e forças produtivas sociais, com manifestações agudas de estranhamento e fetichismos sociais, colocando, deste modo, obstá-culos estruturais ao desenvolvimento social sustentável.

A crise estrutural do capital significa uma crise crônica de su-perprodução e sobreacumulação de capital (o que explica a mun-dialização do capital, seja na dimensão produtiva, seja na dimensão financeira) que explicita de forma inédita, uma pletora de contra-dições sociais que obstaculizam o desenvolvimento do ser genérico do homem (o que significa como salientamos acima, agudização do estranhamento social, instaurando o que denominamos de sócio-metabolismo da barbárie).

Por um lado as mutações estruturais do capital nesta etapa do capitalismo global tendem a explicitar, como seu desdobramento es-sencial, a desmedida do valor provocada, entre outras determinações complexas, pela nova base de produção de mercadorias, que, nos centros mais dinâmicos de acumulação de capital, articulam cada vez mais, elementos do trabalho imaterial a partir de uma nova base sócio-técnica.

Por outro lado, as mutações estruturais do capitalismo global tendem a expor de modo pleno, a aguda contradição entre forças

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produtivas sociais, isto é, forma material em expansão e forma so-cial do capital, com impactos significativos, nesse caso, na instância sócio-reprodutiva.

Tese 4É com a crise estrutural do capital e a nova temporalidade his-

tórica aberta pelo candente acúmulo de contradições capitalistas em meados da década de 1970, que ocorrem mutações importantes na dinâmica capitalista, seja na instância da produção, seja na instância da reprodução social. É o que podemos chamar de complexo de res-truturações capitalistas.

A totalidade concreta da reestruturação capitalista implica ondas reestruturativas de largo espectro na economia, produção, politica, cultura, tecnologia e psicologia social, processos reestruturativos que iriam marcar as décadas de 1980 e 1990. Surge um novo e precário mundo do trabalho, um novo mundo da economia (financeirização), mundo da política (Estado neoliberal), mundo da cultura (pós-mo-dernismo), mundo da tecnologia (III Revolução Industrial com suas terceira e quarta revoluções tecnológicas) e mundo da sociabilidade (o sócio-metabolismo da barbárie).

No bojo deste complexo de complexos, iremos salientar o com-plexo de reestruturação produtiva, que atinge mais diretamente o mundo do trabalho, e que é um dos principais elementos reestrutu-rativos do capital em sua etapa de mundialização.

Com a crise estrutural do capital emerge um novo e precário mundo do trabalho convulsionado pelas inovações tecnológico-organizacionais e inovações sócio-metabólicas levadas a cabo pelos grandes empresas e suas redes de subcontratações sob o espírito do toyotismo.

Nos últimos trinta anos de mundialização do capital, emerge com a crise estrutural do capital e suas ondas reestruturativas, uma nova dinâmica de produção e acumulação capitalista marcada pela acumulação predominantemente financeirizada, acumulação flexí-

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vel e acumulação por espoliação (traço acumulativo próprio da socia-bilidade da barbárie que se desenvolve nesta nova época histórica). É o que podemos denominar de complexo de acumulação do capita-lismo global que explica a forma de ser do mundo social das socieda-des burguesas da terceira modernidade do capital. Estas formas de acumulação que se imbricam são traços compositivos estruturais do capitalismo global.

Complexo de acumulação do capitalismo global

Acumulação predominantemente financeirizada

Acumulação flexível

Acumulação por espoliação

As mutações produtivas que atingem a esfera do trabalho nos últimos trinta anos foram marcadas, por um lado, pela lógica da acumulação flexível, que tem no toyotismo seu momento predo-minante; e por outro lado, pela acumulação por espoliação, onde a presença do Estado neoliberal e a base técnica das redes informa-cionais propiciam elementos materiais impulsionadores desta re-posição da assim chamada “acumulação primitiva” nas condições históricas do seculo XXI.

A acumulação flexível e acumulação por espoliação emergem como traços da dinâmica sócio-produtiva do capitalismo global no bojo da acumulação predominantemente financeirizada. A vigência do capital financeiro nos últimos trinta anos marcou a dinâmica da economia capitalista como sendo uma economia da financeirização e bolhas especulativas. A macroestrutura da financeirização e da vigência do capital fictício imprimiu sua marca na vida social com a predominância da fluidez e contingencia do cotidiano capitalista.

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Vejamos – de forma sintética – os vários aspectos de cada elemento estrutural do complexo de acumulação do capitalismo global.

- A acumulação flexível David Harvey no livro “A Condição Pós-Moderna” nos apresen-

tou o conceito de “acumulação flexível”, que surge a partir da crise do fordismo em meados da década de 1970. O novo modo de acu-mulação capitalista surge em contraste com a “acumulação rígida” ou “acumulação fordista-keynesiana”, que marcou o capitalismo do imediato pós-guerra.

Mas a “acumulação flexível” é tão-somente uma descontinuidade no interior de uma continuidade plena – o capitalismo da grande in-dústria. O novo complexo de reestruturação produtiva que surge sob a “acumulação flexível” expõe, nas condições da crise estrutural do capital, o em–si “flexível” do estatuto ontológico-social do trabalho assalariado. A “acumulação flexível” apenas exacerba um traço onto-lógico da forma de ser do capital e do trabalho assalariado – a catego-ria de flexibilidade sob a grande indústria, explicitada, por um lado, pela precarização (e desqualificação) contínua e incessante da força de trabalho e, por outro lado, pelas novas especializações (e qualifica-ções) de segmentos da classe dos trabalhadores assalariados.

Em “O Capital”, Marx afirma que “[a indústria moderna] exige, por sua natureza, variação do trabalho, isto é, fluidez das funções, mobilidade do trabalhador em todos os sentidos”. E ressalta ainda, em outra passagem, “a elasticidade que a máquina e a força humana revelam, quando são simultaneamente distendidas ao máximo pela diminuição compulsória da jornada de trabalho”. Portanto, a cate-goria da flexibilidade é um traço ontológico do trabalho assalariado e capital sob a grande indústria.

Mas, as novas condições históricas do capitalismo global – vi-gência do capital financeiro, constituição do Estado neoliberal e instauração da nova base tecnológico-informacional em rede – con-tribuíram para a explicitação radical do em–si “flexível” do estatuto

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ontológico-social do trabalho assalariado, dando um novo sentido histórico à categoria da flexibilidade, que aparece hoje não apenas como elemento constitutivo da condição de precariedade salarial, mas como nexo dinâmico-estruturante do processo estrutural de precarização do trabalho – um dos mais intensos (extensos) da his-tória da espécie humana.

Portanto, sob as condições históricas do capitalismo global, a flexibilidade e flexibilização do trabalho possuem um conteúdo es-sencial: a precarização estrutural do estatuto salarial (o que impli-ca perdas históricas de empregos, vantagens salariais e direitos e da classe do proletariado) e a constituição de uma nova precariedade salarial adequada às condições de acumulação do capital sob o capi-talismo global.

Não existe uma “ruptura” essencial entre “acumulação fordista-keynesiana” e “acumulação flexível”. É importante salientar que quando surgiu no começo do século XX, o fordismo chegou a inspi-rar, como a dita “acumulação flexível” de hoje, uma série de fantasias utópicas e celebrou o revolucionar das condições de produção e de vida material. Por exemplo, naquela época os futuristas associaram o automóvel, a inovação tecnológica que caracterizou a segunda re-volução industrial, à modernidade porque ele implicava libertação das restrições do espaço e do tempo (por ironia, é o que Harvey cha-maria, décadas depois, para caracterizar o novo movimento de “acu-mulação flexível”, de “compressão do espaço-tempo”).

Na verdade, o fordismo, tanto quanto a dita “acumulação flexí-vel” de David Harvey, aumentou os poderes de flexibilidade e mobi-lidade do capital (nas condições, é claro, de um capitalismo regula-do). Assim, após a I Guerra Mundial, celebraram-se as novas formas do dinamismo fordista. Segundo observa Zaretsky, “A publicidade, o financiamento a crédito e a comercialização explodiram. ‘Sensa-ções’ sem fim materializaram-se: jazz, nudismo, aviação, esportes profissionais, crime organizado. Artistas como Picasso e perfomers como Josephine Baker atingiram uma celebridade que não tinha precedentes... Foi nesta época que Antonio Gramsci ficou espantado

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com a “fanfarra fordista, [...] a exaltação das grandes cidades, o pla-nejamento geral para a conurbação de Milão, [...] a afirmação de que o capitalismo está apenas no começo e que é preciso preparar-se para seus grandiosos padrões de desenvolvimento”.

É importante que se diga que o “fordismo puro” da década de 1920, objeto de reflexão de Antonio Gramsci em “Americanismo e Fordismo”, continha elementos que, mais tarde, o toyotismo iria recuperar. Como observa Krafcik, “o fordismo puro é, de muitos modos, mais próximo do Sistema de Produção Toyota do que o for-dismo recente”.

Pode-se então considerar a “acumulação flexível”, que surgiu em meados da década de 1970, não uma “ruptura” com o padrão de de-senvolvimento capitalista passado, mas uma reposição de elementos essenciais da produção capitalista em novas condições de desenvol-vimento capitalista e de crise estrutural do capital.

Embora o novo complexo de reestruturação produtiva ou os múltiplos elementos da “acumulação flexível”, descritos por David Harvey, não sejam uma “ruptura” essencial com a lógica da produ-ção capitalista no século XX, constituem-se, de forma inegável, uma nova materialidade do capital na produção, um novo espaço-tempo para a exploração da força de trabalho adequado à nova fase do ca-pitalismo global sob o regime de acumulação financeirizado e da acumulação por espoliação.

O que significa que as novas tecnologias microeletrônicas, apli-cadas à produção no interior de novos arranjos de organização da produção capitalista, possibilitaram, no plano material, a constitui-ção de níveis mais elevados de flexibilidade para o capital. Surge, de fato, a partir de meados da década de 1970, um novo tipo de empreen-dimento capitalista em determinadas regiões do mercado mundial, uma série de experimentos produtivos representando o novo regime de “acumulação flexível”, com o capital reencontrando–se com seu ser-precisamente–assim.

Por exemplo, na década de 1980, uma década rica em inovações capitalistas, salienta-se a “especialização flexível” na “Terceira Itá-

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lia”; ou o “kalmarianismo” na Suécia. Entretanto, o que possui maior capacidade de expressar as necessidades imperativas do capitalismo mundial é a experiência do toyotismo no Japão. É como se, a par-tir daí, o capital tivesse descoberto o “segredo” (ou o “mistério”) de um novo padrão de produção de mercadorias. No decorrer dos anos 1980, o toyotismo tende a assumir valor universal, surgindo como “produção enxuta” – a lean production – uma nova racionalidade produtiva do capital em sua etapa de mundialização (é o que trata-remos mais adiante).

Por isso, sob a ofensiva neoliberal e a partir da Terceira Revolução Industrial e da Quarta Revolução Tecnológica, a “acumulação flexí-vel” tem assumido novas proporções, intensidade e amplitude, com a utilização de uma nova base técnica que incorpora os elementos ma-teriais da etapa da “cooperação complexa” e da “sociedade em rede”.

Primeira Revolução Industrialprimeira Revolução tecnológica

(fins do século XViii e primeira metade do século XiX)

Segunda Revolução IndustrialSegunda Revolução tecnológica

(fins do século XiX e primeira metade do século XX)

Terceira Revolução Industrial(fins do século XX)

(terceira Revolução tecnológica) – revolução informática

(Quarta Revolução tecnológica) – revolução informacional/

ciberespaço

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Utilizamos o conceito de Terceira Revolução Industrial para ca-racterizar o período histórico em que se desenvolvem as tecnologias da informação, tendo por base o desenvolvimento da eletrônica: mi-croeletrônica, computadores e telecomunicações.

A Primeira Revolução Industrial começou em fins do século XVIII e caracterizou-se pela substituição das ferramentas manuais por máquinas e pelas novas tecnologias como a máquina a vapor e a fiadeira.

A Segunda Revolução Industrial, em fins do século XIX, desta-cou-se pela produção da eletricidade; pelo desenvolvimento do mo-tor de combustão interna, de produtos químicos com bases científi-cas e da fundição eficiente do aço; e pela invenção do telégrafo e da telefonia.

A Terceira Revolução Industrial iniciou-se durante a Segunda Guerra Mundial, com o desenvolvimento da eletrônica e, em mea-dos da década de 1970, com a revolução da tecnologia da informa-ção, tendo por base o desenvolvimento da microeletrônica, compu-tadores e telecomunicações.

A Terceira Revolução Industrial, entretanto, se distingue das ou-tras revoluções industriais porque contêm, em seu desenvolvimento histórico, duas revoluções tecnológicas que alteram a natureza da ati-vidade industrial.

A Terceira Revolução Tecnológica, usualmente identificada com a Terceira Revolução Industrial propriamente dita, se baseia no cha-mado “binômio informática/robótica”, sendo, portanto o que Adam Schaff denominou de “revolução informática”; e a Quarta Revolução Tecnológica que identificamos com a constituição das redes infor-macionais (ciberespaço) a partir dos novos avanços das telecomuni-cações, sendo, portanto a “revolução informacional”. Nesse caso, é correto usar a expressão “tecnologia de informação”.

Uma característica decisiva da Terceira Revolução Industrial é que computadores, robôs e redes informacionais só tem importância real quando associados aos novos métodos gerenciais (o que coloca

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a centralidade das inovações sócio-organizacionais como o toyotis-mo). As novas máquinas por si só, não produzem nada de útil numa indústria.

Sob o capitalismo global com as múltiplas determinações da vi-gência do capital financeiro, Estado neoliberal e nova base técnica propiciada pela Terceira Revolução Industrial, a revolução das redes informacionais (salientada acima), a produção do capital, cujo ser-precisamente-assim é ser produção flexível, assume novas determi-nações, tornando-se intensamente “concreta”.

Por isso a “flexibilidade” não se restringe apenas à “maior ver-satilidade possível do trabalhador”. Mais do que sob o fordismo, ela tornou-se, no sentido geral, um atributo da própria organização so-cial da produção, uma abstração geral posta pelo “sujeito” capital, em diversos níveis do complexo de produção de mercadorias, assu-mindo, deste modo, uma série de particularizações concretas, com múltiplas (e ricas) determinações.

É interessante que Mário Sérgio Salerno salienta, por exemplo, oito dimensões da flexibilidade: a flexibilidade estratégica, flexibi-lidade de gama, de volume, de adaptação sazonal, de adaptação a falhas, de adaptação a erros de previsão, flexibilidade social intra-empresa e flexibilidade social extra-empresa.

Por ter alcançado o seu desenvolvimento concreto mais rico sob o capitalismo global, a categoria da “flexibilidade” não pode ser pen-sada apenas sob uma forma particular. Entretanto, apesar das múl-tiplas dimensões da categoria de “flexibilidade”, quando se trata de empresa flexível, o que é estratégico para a acumulação do capital é a flexibilidade da força de trabalho, ou o que Salerno denominou, por exemplo, de flexibilidade social intra-empresa ou extra-empresa, ou seja, aquela flexibilidade relativa à legislação e regulamentação social e sindical, em que um aspecto muito discutido é o que diz respeito à flexibilidade nos contratos de trabalho: a possibilidade de variar o emprego (volume), os salários, horários e o local de realiza-ção do trabalho dentro e fora da empresa (por exemplo, mudança de linha dentro de uma fábrica, ou mesmo mudança entre fábricas).

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Ou ainda, aquela relativa aos regulamentos internos, à representação sindical interna, ao sistema de remuneração e às recompensas, etc.

Em sua abordagem da flexibilidade, Robert Boyer concentra-se tão-somente na flexibilidade do trabalho, enumerando-a em cinco dimensões: a flexibilidade inerente à organização da produção, à mobilidade interna dos trabalhadores, aos contratos de trabalho, à relação salarial e à regulamentação trabalhista.

É importante salientar que o que David Harvey denomina de “acumulação flexível” é uma nova ofensiva do capital nas várias ins-tâncias do ser social, visando a constituir um novo controle sócio-metabólico do capital adequado às condições de sua crise estrutural e crise de sobreacumulação. Na medida em que se solapou o poder organizado do trabalho, surgiram os elementos da “acumulação fle-xível”, constituindo o novo cenário de desenvolvimento capitalista descrito por ele.

Assim, o complexo de inovações tecnológicas, organizacionais e sócio-metabólicas do empreendimento capitalista, possui o caráter de ofensiva do capital na produção visando a constituir novas condi-ções para a acumulação e reprodução ampliada do capital.

Sob a crise estrutural do capital, a instauração da “acumulação flexível” tem um importante caráter político: solapar o poder do tra-balho organizado visando aumentar a taxa de exploração. É o que salientamos como sendo a constituição de processos de precarização do trabalho vivo. Aliás, o empreendimento capitalista da “acumula-ção flexível” implica níveis relativamente altos de desemprego “es-trutural” (em oposição a “friccional”), o que contribui para abater a capacidade de reação sindical e política da classe trabalhadora às novas condições da acumulação flexível. Além disso, implica em rápida destruição e reconstrução de habilidades, ganhos modestos (quando há) de salários reais e o retrocesso do poder sindical de con-fronto de classe (o que demonstra seu caráter de ofensiva do capital na produção).

Deste modo, a “acumulação flexível” tornou-se importante ele-mento da luta de classe na produção e buscou exercer, como obser-

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vou Harvey, “pressões mais fortes de controle do trabalho sobre uma força de trabalho de qualquer maneira enfraquecida por dois surtos selvagens de deflação, força que viu o desemprego aumentar nos pa-íses capitalistas avançados (salvo, talvez, no Japão) para níveis sem precedentes no pós-guerra.”

O nexo essencial da dita “acumulação flexível” é ser movimento reativo às conquistas da classe trabalhadora e explicitação da nova forma material de subsunção real do trabalho ao capital e domina-ção de classe (o que explica a proximidade das preocupações do “for-dismo puro”, descrito por Gramsci, do novo sistema de produção Toyota, que busca constituir um novo nexo psicofísico ou a “captu-ra” da subjetividade do trabalho pela lógica do capital adequada ao novo modelo produtivo).

A flexibilidade da força de trabalho expressou a necessidade im-periosa de o capital subsumir, ou ainda, submeter e subordinar o trabalho assalariado à lógica da valorização, por meio da perpétua sublevação da produção (e reprodução) de mercadorias (inclusive, e principalmente, da força de trabalho).

Mais do que nunca, o foco do novo complexo de reestrutura-ção produtiva a atingir as empresas capitalistas é a gestão do traba-lho vivo e da força de trabalho (é o que salientaremos como sendo a “captura” da subjetividade do trabalho pelo capital). É por isso que a “acumulação flexível” se apóia, principalmente, na flexibilidade dos processos de trabalho e dos mercados de trabalho (e ainda, dos seus produtos e padrões de consumo).

A flexibilidade do trabalho, compreendida como sendo a plena capacidade de o capital tornar domável, complacente e submissa a força de trabalho, caracteriza o “momento predominante” do com-plexo de reestruturação produtiva (é por isso que o debate sobre a flexibilidade é vinculado às características atribuídas ao chamado “modelo japonês” ou, mais precisamente, como salientaremos, ao modo “toyotista” de organização do trabalho e gestão da produção).

A idéia de “acumulação flexível” possui uma ineliminável car-ga político-ideológica no interior da luta de classes. Ela explicita o

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elemento que robustece o poder do capital contra a sua parte anta-gônica, o trabalho assalariado. Embora se saliente o caráter “flexí-vel” da acumulação de capital, o que não se contesta no “sistema da produção flexível”, são as prerrogativas “rígidas” do capital, tendo em vista que é ele quem decide ainda o que produzir e onde alocar os recursos.

Inclusive, sob a Terceira Revolução Industrial e a Quarta Revo-lução Tecnológica, com as novas tecnologias em rede informática e telemática, o que se verifica é que a capacidade de centralização do capital tornou-se maior, expondo a “rigidez” do capital.

No local de trabalho, apesar da polivalência operária proclamada pela ideologia dos novos experimentos da produção capitalista de cariz flexível, tais como o toyotismo, a função social do trabalho assalariado continua restrita e parcial. O trabalhador assalariado continua sendo, em sua essência, um “indivíduo parcial, mero fragmento humano que repete sempre uma operação parcial” (Marx) apesar do “enriqueci-mento de tarefas” (Aglietta), ou da “desespecialização” (Coriat). Na verdade, o que o sistema de produção flexível do capital expõe são as dilacerantes contradições objetivas entre a riqueza do possível e a misé-ria do presente (título feliz de um livro de André Gorz).

A constituição da “acumulação flexível” ocorreu no bojo de um processo histórico-politico de luta de classes. O processo político de derrotas históricas da classe trabalhadora ocorridas sob a conjun-tura dos anos setenta e oitenta do século XX nos principais países capitalistas é uma das causalidades históricas fundamentais para a constituição da dita “acumulação flexível” e da forma política estatal do capitalismo global: o Estado neoliberal.

A ascensão de políticas neoliberais a partir de 1979, com a vitó-ria de Thatcher, na Grã–Bretanha, e de Reagan, nos EUA, promove a desregulamentação da concorrência e a liberalização comercial, além de adotar políticas anti-sindicais, impulsionando, deste modo, novos patamares de flexibilidade e contribuindo para instaurar um novo poder do capital sobre o trabalho assalariado. No plano da po-lítica internacional e da ofensiva ideológica do capital, a “Queda do

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Muro de Berlim”, em 1989, e o débâcle da URSS em 1991 constituem o ápice da ideologia do capitalismo vitorioso.

Portanto, a reestruturação produtiva enquanto “acumulação flexível”, foi, antes de tudo, um resultado sócio-histórico da luta de classes e da série de derrotas das instituições defensivas do trabalho no campo econômico, político e ideológico, no decorrer das décadas de 1970 e 1980.

Por isso, as décadas de 1980/1990, nos países capitalistas cen-trais, podem ser consideradas as “década das inovações capitalistas”, da flexibilização da produção e da “especialização flexível”. Nessas décadas ocorreram os maiores movimentos de desconcentração in-dustrial, com uma nova divisão internacional do trabalho e uma nova etapa da internacionalização do capital, ou seja, de um novo patamar de concentração e centralização do capital em escala plane-tária. O capital migrou para áreas de baixos salários da Ásia (onde ocorreram, segundo a tabela 1, significativo incremento da produti-vidade do trabalho no período 1992-2003). É a época dos novos pa-drões de gestão da força de trabalho, tais como just–in–time / Kan–ban, CCQ’s e Programas de Qualidade Total, da racionalização da produção. Portanto, são décadas de impulso e consolidação da dita “acumulação flexível” e do novo complexo de reestruturação produ-tiva cujo “momento predominante” é o toyotismo.

Na década de 1980, apesar de o crescimento capitalista nos pa-íses da OCDE ter-se mantido aquém dos índices da golden age (de 1960-73), seus resultados para o capital nos países capitalistas cen-trais (EUA, Europa Ocidental e Japão) parecem ter sido positivos: a inflação declinou, os lucros recuperaram–se e as finanças governa-mentais se estabilizaram nos principais países (GLYN, 1995).

Na década de 1990, nos ditos “paises emergentes” da América Latina, as reformas neoliberais derrubaram a hiperinflação, promo-veram a privatização de empresas estatais, criando-se um ambiente favorável para a recuperação dos lucros das grandes empresas e dos investimentos do capital financeiro. Na virada para o século XXI, apesar da instabilidade financeira mundial decorrente da mundiali-

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zação do capital, cujos principais exemplos foram as crises mexica-na (em 1994), a asiática (em 1997) e a russa (1999), os resultados de crescimento da economia capitalista nos EUA na última metade da década passada e o crescimento exuberante da República Popular da China na década de 2000 contribuíram com notáveis resultados de lucratividade das corporações transnacionais.

Ao mesmo tempo, nas décadas de 1980/1990, tornou-se clara a situação de debilitação do mundo do trabalho. O resultado histórico da mundialização do capital e da “acumulação flexível” sobre o mer-cado de trabalho é deveras impressionante: instaurou–se um novo patamar de desemprego estrutural e proliferação do trabalho precário nos principais países capitalistas.

Na década de 2000 pode-se dizer que um espectro ronda o ca-pitalismo mundial, o espectro das novas formas de exclusão social, e surgem novas clivagens de desigualdades (uma “nova pobreza”) no interior do centro capitalista. Como atestam vários autores, a expan-são da insegurança do trabalho passou a ocorrer em diversos níveis: insegurança no mercado de trabalho, no emprego, na renda, na con-tratação e na representação. Na verdade, o que ocorre é a explicitação histórica da própria condição da classe do proletariado: a inseguran-ça, a situação de estar à mercê do acaso, submetido ao “poder das coisas” (o mercado).

Deste modo, a mundialização do capital, a “acumulação flexí-vel” e o neoliberalismo constituíram nas últimas décadas de capita-lismo global, um novo (e precário) mundo do trabalho complexifica-do, fragmentado e heterogeneizado.

- A acumulação por espoliaçãoNo livro “O Novo Imperialismo”, David Harvey nos apresenta

o conceito de “acumulação por espoliação”, em que busca caracteri-zar a cena capitalista da virada para o século XXI. O novo conceito explicaria a origem do que denominamos de sócio-metabolismo da barbárie, o metabolismo social do capitalismo global.

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A mundialização do capital, a acumulação flexível e o neolibera-lismo tenderiam a repor, cum grano salis, como motor da acumulação, as práticas predatórias da acumulação “primitiva” ou “original”. Elas não são mais relegadas a uma “etapa originária” tida como não mais relevante ou, como disse Rosa Luxemburgo, como de alguma forma “exterior” ao capitalismo como sistema fechado. Assim, o que Harvey denomina “acumulação por espoliação” seria uma característica fun-damental da atual dinâmica histórica do capitalismo global.

Entretanto, a acumulação capitalista sempre se utilizou da ativi-dade predatória, fraudulenta e violenta, principalmente na acumu-lação capitalista no dito Terceiro Mundo. Trata-se de uma atividade oculta que é intrínseca à reprodução ampliada do capital.

Por exemplo, na exposição de sua obra “O Capital”, se Marx parte de certos pressupostos iniciais e cruciais correspondentes em termos amplos aos da economia política clássica (mercados competitivos de livre funcionamento com arranjos institucionais de propriedade privada, individualismo jurídico, liberdade de contrato e estruturas legais e governamentais apropriadas, garantidas por um Estado que facilita e também garante a integridade da moeda como estoque de valor e meio de circulação), aos poucos, Marx vai desvelando a di-mensão oculta da exploração da força de trabalho e da desigualdade estrutural entre capital e trabalho, negando a harmonia pressuposta no credo de liberais e neoliberais de “paz, propriedade e igualdade”. E por fim, num dos últimos capítulos do livro I de “O Capital”, inti-tulado “A Assim Chamada Acumulação Primitiva” (observe-se o tí-tulo “A Assim Chamada...”), Marx trata da “acumulação primitiva”, desvelando o segredo oculto do capital, ou melhor, o segredo oculto da economia política.

Para os economistas burgueses a “acumulação primitiva”, que Adam Smith denominou de previous accumulation, é uma acu-mulação precedente à acumulação capitalista, uma acumulação que não é resultado do modo de produção capitalista, mas sim seu mero ponto de partida.

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Ora, o que a exposição dialética de Marx sugere é que a ativida-de predatória, fraudulenta e violenta não é apenas uma dimensão ontogénetica do modo de produção capitalista relegada a uma etapa histórica primitiva e originária. Pelo contrário, a “assim chamada acumulação primitiva” é uma dimensão sócio-estrutural intrínseca à reprodução ampliada do capital que o discurso da economia política clássica oculta.

Citando Hanna Arendt, David Harvey observa que “os burgue-ses perceberam, alega Arendt, ‘pela primeira vez, que o pecado ori-ginal do simples roubo, que séculos antes tornabra possível a ‘acu-mulação de capital’ (Marx) e dera inicio a toda acumulação anterior, tinha eventualmente de se repetir para que o motor da acumulação não morresse de repente.”

O que significa que a “acumulação primitiva” não apenas já ocorreu, como continua ocorrendo e, nas condições da crise estru-tural do capital e seu sócio-metabolismo da barbárie, explicita sua dimensão sistêmica.

Mas não é do nosso interesse tratar da ampla gama de processos que constituem hoje a ”acumulação por espoliação”. O que é mais vi-sível no capitalismo global seriam as fraudes, escândalos financeiros e especulação fraudulenta nos mercados de ações.

Como observa Harvey, a “acumulação por espoliação” pode ocorrer de uma variedade de maneiras, havendo em seu modus ope-randi muitos aspectos fortuitos e casuais. Em síntese, “acumulação por espoliação” significa “a liberação de um conjunto de ativos (in-cluindo força de trabalho) a custo muito baixo (e, em alguns casos, zero). O capital sobreacumulado pode apossar-se desses ativos e dar-lhes imediatamente um uso lucrativo.”

O que nos interessa salientar é a afinidade compositiva entre “acumulação por espoliação” e vigência do sócio-metabolismo da bar-bárie (o complexo social de dessocialização e desefetivação do ser genérico do homem que surge a partir da degradação ampliada do mundo do trabalho) e vigência da principalmente no plano do me-tabolismo social.

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As práticas sociais da “acumulação por espoliação”, o conjunto de coerções e apropriações de capacidades, relações sociais, conhe-cimentos, hábitos de pensamento e crenças (o que André Gorz irá denominar, ao tratar do trabalho imaterial, de “saber cotidiano”), além da apropriação e a cooptação de realizações sociais e culturais as mais diversas, constituem hoje elementos das inovações sócio-metabólicas do capital. Elas sedimentam a sociabilidade da predação e a cultura do medo que constitui um ambiente social (e emocio-nal) propício para os novos consentimentos espúrios pressuposto do novo modelo produtivo.

Além disso, existe um vínculo orgânico entre “acumulação por espoliação” e “acumulação flexível”, isto é, as novas práticas empre-sariais de “captura” da subjetividade do trabalho vivo e da força de trabalho, com destaque para a ampla gama de mecanismos organi-zacionais de incentivo à participação e envolvimento de empregados e operários na solução de problemas no local de trabalho.

A apropriação/espoliação da criatividade intelectual (ou emocio-nal) não apenas de empregados e operários, mas de clientes, consu-midores e usuários de produtos e serviços instigados a “agregar” valor à produção da mercadoria são exemplos da sociabilidade de predação que caracteriza o metabolismo social do capitalismo global.

David Harvey observa que a mercadificação por atacado, ou uso lucrativo da natureza em todas as suas formas, envolve espoliação em larga escala: “A transformação em mercadoria de formas culturais, históricas e da criatividade intelectual envolve espoliações em larga escala (a indústria da música é notória pela apropriação e exploração da cultura e da criatividade das comunidades)”.

Além disso, o processo de precarização dos estatutos salariais é um dos elementos compositivos da “acumulação por espoliação”. É ela que explica, por exemplo, as práticas neoliberais que utilizaram o poder do Estado para impor processos de “flexibilização” do traba-lho, mesmo contrariando a vontade popular (o que demonstra a arti-culação visceral entre Estado e mercado). Nas palavras de Harvey: “A

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regressão dos estatutos regulatórios destinados a proteger o trabalho e o ambiente da degradação tem envolvido a perdas de direitos”.

- A acumulação predominantemente financeirizadaPara David Harvey, a “acumulação por espoliação” saiu de sua

“condição clandestina” e se tornou hoje a forma dominante de acu-mulação com respeito à reprodução ampliada, tornando-se “cada vez mais acentuada a partir de 1973, em parte como compensação pelos problemas crônicos de sobreacumulação que surgiram no âmbito da reprodução ampliada.”.

Neste momento, David Harvey sugere um vínculo orgânico entre “acumulação por espoliação” e mundialização financeira. Diz ele: “O principal veículo dessa mudança foi a financialização e a or-questração, em larga medida sob a direção dos Estados Unidos, de um sistema financeiro internacional capaz de desencadear de vez em quando surtos de brandos a violentos de desvalorização e de acu-mulação por espoliação em certos setores ou mesmo em territórios inteiros.”

Acumulação predominantemente

financeirizadaAcumulação

flexível

Acumulação por espoliação

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Portanto, o novo complexo de reestruturação produtiva, que surge sob a dita “acumulação flexível” e que possui vínculos sócio-metabólicos com a “acumulação por espoliação”, é um elemento compositivo do novo estágio do desenvolvimento capitalista que François Chesnais irá denominar “mundialização do capital” e a qual ele identifica com a constituição de um “regime de acumulação predominantemente financeirizado”.

O que significa que o predomínio da “financeirização” foi o principal veículo de constituição da dita “acumulação por espolia-ção”, tendo em vista que incrementou a velocidade, intensidade e amplitude do ser–precisamente–assim do capital, propiciando, deste modo, um salto qualitativo em seu potencial ofensivo sobre o traba-lho assalariado.

O capitalismo mundial, sob a dominância financeira e a vigência das políticas neoliberais, tendeu a promover a perpétua sublevação das condições de produção (e reprodução) das mercadorias (o que explica as condições sócio-históricas da flexibilização do trabalho).

Em seu livro “A mundialização do capital”, de 1994, Chesnais salienta o poder das corporações transnacionais, as empresas de ca-pital concentrado, verdadeiros “agentes” do capital em geral. São elas que tendem a impulsionar o novo modo de acumulação do capital, a dita “acumulação flexível”, e que expressam a perpétua sublevação e a interminável incerteza e agitação do “sujeito” da modernização capitalista: o capital.

O capital não pode subsistir sem revolucionar, de modo constan-te, os meios de produção. A intensa e incansável pressão no sentido de revolucionar a produção tende a extrapolar, impondo transfor-mações nas “condições de produção” (ou “relações produtivas”), “e, com elas, em todas as condições e relações sociais”.

É deste modo que o novo complexo de reestruturação produtiva surge, em sua dimensão contingente, como uma ofensiva do capital na produção, (re)criando novos mundos do trabalho, instaurando novas provocações sócio-históricas para a classe dos trabalhadores assalariados.

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Chesnais reconhece na “Apresentação” à edição brasileiro do livro “A finança mundializada”, a centralidade fundamental das fi-nanças na dinâmica do novo capitalismo flexível. O que se colocava não era apenas a internacionalização dos grandes grupos industriais, mas sim a alteração na dinâmica sistêmica do capital que aparece como regime de acumulação predominantemente financeirizado.

O capital-dinheiro, concentrado nas mãos dos grandes bancos e fundos de pensão, estava, segundo ele, em vias de estabelecer sua ascendência sobre o capital industrial. Assim, a fase de crescimento sustentado dos EUA, chamada de New Economy, uma conjuntura específica da potência hegemônica americana, só ocorreu porque havia, segundo Chesnais, um regime institucional internacional que lhe servia de suporte. No começo da década de 2000, Chesnais su-gere a teoria do regime de acumulação financeirizada que explica os novos fenômenos do capitalismo global nas últimas décadas do século XX e começo do século XXI.

Para Chesnais, o atual regime institucional internacional de do-minação do capital resulta do jogo combinado de dois processos que se reforçam mutuamente, segundo ele, em um movimento de intera-ção que já dura mais de trinta anos.

De um lado, o que salientamos como sendo processo de financei-rização da economia capitalista. Diz ele: “O reaparecimento e conso-lidação de uma forma específica de acumulação de capital, na qual uma fração sempre mais elevada conserva a forma dinheiro e pre-tende se valorizar pela via das aplicações financeiras nos mercados especializados (a forma resumida D-D’ salientada por Marx).”

Por outro lado, as políticas neoliberais, que, a partir de Margaret Thatcher e de Ronald Reagan, pelos Estados do G-7, contribuíram para a elaboração e execução de políticas de liberalização, de desre-gulamentação e de privatização. Diz Chesnais: “Na virada dos anos 90, o desmoronamento da União Soviética e a queda do ‘socialismo real’ burocrático dominou as últimas fases das negociações da Ro-dada do Uruguai levadas no interior do GATT e determinou o vasto mandato à OMC pelo Tratado de Marrakesh de 1993.”

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Entretanto, em 2005, Chesnais nos diz que a mundialização ca-pitalista da era neoliberal entrara numa nova fase. Se nas últimas duas décadas do século XX, as firmas multinacionais, os grandes bancos e os fundos de investimento dos países da Tríade (EUA, União Européia e Japão) foram os principais beneficiados, para não dizer exclusivos, nos anos 2000, ele observa que é na condição de ca-pital concentrado, “em qualquer lugar onde ele se forma ou se conso-lida”, que as instituições do regime liberalizado, desregulamentado e privatizado operam.

O que Chesnais sugere é que não podemos mais enxergar a mundialização do capital tão-somente como a projeção sistêmica da hegemonia norte-americana. Diz ele: “A irrupção da China como potência econômica e política é fator de primeira ordem na configu-ração das relações sistêmicas mundiais... (o caso da Índia é diferente e não chamaria por si só um deslocamento deste ponto de vista). Outro fator de renovação é a reconfiguração dos oligopólios mun-diais, na qual participam países que pertencem a diversas “regiões-continentes” do mundo.”

Tese 5Iremos denominar o novo metabolismo social que surge das no-

vas condições históricas de reprodução expandida do capital sob a acumulação predominantemente financeirizada/acumulação flexí-vel/acumulação por espoliação, de sócio-metabolismo da barbárie, um dos elementos causais que contribuiu para a debilitação do mo-vimento social do trabalho e para a crise do sindicalismo nos princi-pais países capitalistas.

Na instância da reprodução social, vigora com a nova tempora-lidade histórica aberta pela crise estrutural do capital, um novo tipo de sociabilidade – o sócio-metabolismo da barbárie que se caracteriza pela vigência de fenômenos de estranhamento e fetichismos sociais.

A barbárie social é decorrente da derrota histórica da classe do trabalho nas condições da luta de classes do pós-guerra e da crise da

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década de 1970. A predominância da lógica de mercado e da finan-ceirização (com a plena manifestação do fetiche-dinheiro) sob as con-dições de um processo civilizatório avançado significa a ampliação de fetichismos e formas estranhadas de vida social.

A constituição do Estado neoliberal e a ofensiva do capital na produção significaram a posição de um desemprego em massa e dinâmica de precarização do trabalho em alto grau. A crise de so-ciabilidade decorre desta configuração histórica que emerge com o “capitalismo manipulatório”.

O conceito de “capitalismo manipulatório” (George Lukács) possui um sentido premente de forma capitalista marcada pela agu-dização do processo de desefetivação humano-genérica do homem. É isto que caracteriza a barbárie social em suas múltiplas determina-ções sociais.

O sócio-metabolismo da barbárie se caracteriza pelo metabolis-mo social de dessocialização por meio do desemprego em massa e ex-clusão social, processo de precarização e institucionalização de uma nova precariedade do trabalho, que sedimenta a “cultura do medo”.

Na verdade, o que denominamos de barbárie social, que se dis-tingue de outras formas de barbárie histórica, emerge com o fim da ascensão histórica do capital que alterou, radical e irremediavelmen-te, as condições de reprodução expandida do sistema mundial do capital, empurrando para o primeiro plano, como salienta Mészáros, “suas tendências destrutivas e seu companheiro natural, o desperdí-cio catastrófico”.

No “Manifesto Comunista” de 1848, Karl Marx e Friedrich En-gels salientaram um conceito de “barbárie” posta como determi-nação reflexiva da civilização do capital – o que significava que o desenvolvimento natural do capitalismo tendia a ser interrompido por uma epidemia de superprodução. Dizem eles: “A sociedade vê-se de repente transportada a um estado de momentânea barbárie [...] E por que? Porque a sociedade possui civilização em excesso.”

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A barbárie histórica do capitalismo em sua fase de ascensão era um momento necessário, “um estado de momentânea barbárie”, caracterizada pela destruição de parte das forças produtivas, um elemento necessário para a continuidade da própria acumulação de capital. Pela primeira vez na história, o elemento de barbárie histórica, isto é, a destruição das forças produtivas, faz parte do próprio modo de produção (o que não ocorria em nenhum dos mo-dos de produção anteriores).

Por isso, Marx caracterizou o capital como sendo a “contradi-ção viva”, tendo em vista que, se por um lado a sociedade burguesa, como observa Lukács, é a sociedade que se torna cada vez mais so-cial (o que é um elemento do processo civilizatório), por outro lado, devido as suas crises sistêmicas, ela tende a obstaculizar, com inten-sidade e amplitude, o desenvolvimento do ser genérico do homem, dessocializando-o pelo trabalho estranhado.

O estado de barbárie decorre da “civilização em excesso”. Eis a suprema “contradição viva” do capital com impactos decisivos no próprio metabolismo social da modernidade capitalista.

Na medida em que ingressamos na fase de descenso histórico do capital, caracterizada pela sua intensa expansividade e incontrola-bilidade, agudizam-se as “contradições vivas” do capital, visto que a mundialização do capital contém um elemento de “civilização em excesso”, instigando, portanto, o estado de barbárie.

Altera-se a natureza da crise capitalista. Ela assume um caráter estrutural que tende a acirrar as contradições sistêmicas do capital. A crise estrutural do capital altera a temporalidade da barbárie his-tórica que não se restringe tão-somente a um “momentum” de inter-regno da acumulação de capital, mas torna-se a nova temporalidade sócio-metabólica.

Portanto, o capitalismo em sua etapa de crise estrutural instaura o que podemos chamar de estado de “barbárie social” que contém os elementos de negação contínua da própria civilização (o sistema mundial do capital é um sistema social “afetado de negação”).

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O que denominamos de sócio-metabolismo da barbárie explici-ta as dilacerantes “contradições vivas” do sistema mundial do capital. Uma delas, que procuramos salientar, é a contradição objetiva entre uma produção de mercadorias cada vez mais social (por exemplo, a constituição da “empresa em rede” explicita a dimensão socializada da produção capitalista), e uma sociedade cada vez mais dessociali-zada pelo precário mundo do trabalho.

A outra contradição dilacerante explicitada pelo sócio-meta-bolismo da barbárie é a contradição intrínseca à própria natureza do novo complexo de reestruturação produtiva do capital, isto é, a contradição entre aguda racionalização intra-empresa e intensa ir-racionalidade social, visível, por exemplo, no clamor paradoxal do sistema Toyota de produção contra o desperdício na sociedade do capital em que domina a taxa de uso decrescente dos bens e serviços produzidos pela sociedade.

Nesse caso, o novo complexo de reestruturação produtiva se in-terverte em complexo de reestruturação da produção destrutiva do capital, na medida em que as inovações tecnológico-organizacionais e sócio-metabólicas estão subordinadas aos ditames de orientação lucrativa da lógica imanente do capital.

Por exemplo, ao auto-intitular-se lean production ou “empre-sa enxuta”, o toyotismo expõe seu caráter de produção destrutiva, ativando, como salienta Mészáros, “o selvagem mecanismo de ex-pulsão em quantidades massivas de trabalho vivo do processo de produção”.

Um dos traços paradoxais do novo complexo de reestruturação produtiva do capital é ativar, por um lado, intensos dispositivos de envolvimento estimulado do trabalho vivo com a lógica da produção do capital (o que temos caracterizado como “captura” da subjetivida-de do trabalho) e, por outro lado, ao mesmo tempo, tornar uma pro-porção cada vez maior do trabalho vivo força de trabalho supérflua do ponto de vista do capital.

No cenário da produção destrutiva, o desemprego em massa e a exclusão social atingem principalmente a juventude (vide Gráfico 2),

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elemento de futuridade da reprodução social. Talvez essa seja a expres-são mais candente do trabalho estranhado que dessubstancializa o ser genérico do homem (como diria Marx nos “Manuscritos” de 1844); é exemplo-mor da dessocialização que desefetiva o trabalho vivo.

Nas últimas décadas, como observa Mészáros, o desemprego “não é limitado a um ‘exército de reserva’ à espera de ser ativado e trazido para o quadro da expansão produtiva do capital, como aconteceu durante a fase de ascensão do sistema, por vezes numa extensão prodigiosa. Agora a grave realidade, do desumanizante de-semprego assume um caráter crônico, reconhecido até mesmo pelos defensores mais acríticos do capital como ‘desemprego estrutural’, sob a forma de autojustificação, como se ele nada tivesse a ver com a natureza perversa do seu adorado sistema.”.

Gráfico 1

Fonte: oit Apud DEl poNt (2006)

O crescimento da produtividade do trabalho social nas últimas décadas, por conta das inovações tecnológico-organizacionais do

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capital, significou uma tendência à diminuição relativa do trabalho vivo na produção social, no interior de uma ordem mercantil sob predomínio da acumulação financeirizada que preserva a obriga-ção de trabalhar. Longe de representar uma liberação favorável a todos, próxima de uma fantasia paradisíaca, o aumento da produ-tividade do trabalho social tornou–se uma ameaça, contribuindo não apenas para a rarefação do emprego, mas para a precarização dos estatutos salariais.

Apesar da escassez do emprego, o trabalho estranhado continua necessário de maneira muito ilógica, cruel e letal, não mais à socie-dade, nem mesmo à produção, mas, precisamente, à sobrevivência daqueles que não trabalham, não podem mais trabalhar e para os quais o trabalho seria a única salvação. O sócio-metabolismo da barbárie cria, deste modo, um novo patamar de estranhamento para milhões de desempregados e trabalhadores precários, homens e mu-lheres desvinculados das promessas da modernidade, numa época de “pós–modernidade”.

Gráfico 2 Desemprego da Juventude no Mundo (1993-2003)

\Fonte: oit (Elaboração do Autor)

A dessubstancialização do ser genérico do homem por sua des-socialização ou desefetivação do trabalho ocorre não apenas com o desemprego crônico e da exclusão social, mas também com a instau-ração do processo de precarização dos estatutos salariais e a institu-cionalização da nova precariedade do trabalho.

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A ofensiva do capital na produção por meio do novo complexo de reestruturação produtiva significa a reposição da subsunção real do trabalho ao capital. Em seu movimento sócio-ontológico, o “su-jeito” capital tende a debilitar, em longo prazo, o trabalho assalaria-do, atingindo a classe dos trabalhadores assalariados.

As tendências da mundialização do capital, neoliberalismo e “acumulação flexível”, apontam que o “sujeito” capital tende a de-senvolver, no plano contingente, a “negação” das barreiras, constitu-ídas pelo trabalho no interior da vigência do capital contra a sanha da valorização exacerbada. As novas formas de produção do capital aprofundaram, de modo real, o que está posto, desde o início, como forma: a subsunção do trabalho ao capital.

No bojo da subsunção real, o capital debilita e corrompe, com mais intensidade e densidade, em sua operação de reposição da sub-sunção formal, a subjetividade de classe do complexo vivo do traba-lho (o que irá caracterizar, como salientaremos adiante, o toyotismo como “momento predominante” do novo complexo de reestrutura-ção produtiva). Agudiza-se, deste modo, o fenômeno social do estra-nhamento posto como condição histórico-ontológica da classe dos trabalhadores assalariados e do mundo do trabalho vivo.

Temos utilizado a expressão “ofensiva do capital” para caracte-rizar o nexo essencial da dita “acumulação flexível” e das tendências políticas e sociais de desenvolvimento do capitalismo em sua fase de descenso histórico. A rigor, a ofensiva do capital sobre o trabalho as-salariado é intrínseca à própria lógica da valorização (seria uma tau-tologia dizer “ofensiva do capital sobre o trabalho assalariado”). Um é apenas a negação do outro, em que o “sujeito” capital aparece, cada vez mais, enquanto “trabalho morto”, isto é, poder social estranhado e insuportável, não controlado pela humanidade e que a domina.

Entretanto, a “supressão” tendencial, e nunca realizável no interior da lógica da valorização do “trabalho vivo”, não anula a centralidade ontológica da categoria trabalho, isto é, a centralidade da significação “trabalho” (como anunciam Habermas, Gorz e Offe), posto que o que tende a emergir, de novo, é apenas o “sujeito” capital enquanto “traba-

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lho morto”. Nesse caso, o trabalho tende a surgir com a emergência do “sujeito” capital, como pressuposto negado, no sentido lógico (e ontoló-gico), isto é, como trabalho estranhado dilatado e universal.

Finalmente, é nas condições da crise estrutural do capital que se agudizam as contradições sócio-históricas postas pelo processo civilizatório do capital. Este é o verdadeiro conteúdo da crise estru-tural do capital – crise estrutural no sentido de agudização (intensa e extensa) das contradições estruturais da forma de ser do capital como relação social que se fez sistema estranhado: por um lado, o desen-volvimento ampliado e intenso da nova base técnica de matriz in-formacional em rede, produto do processo civilizatório que marca o desenvolvimento das forças produtivas do trabalho; e por outro lado, o desenvolvimento de relações sociais fetichizadas e estranhadas por conta da vigência da lógica de mercado e do poder do capital como modo de controle estranhado do metabolismo social.

As contradições sócio-históricas dilaceram as individualidades pessoais de classe – homens e mulheres que trabalham – por meio do processo de precarização estrutural do trabalho, característica marcante do capitalismo global, precarização estrutural que é cons-tituído, em si e para si, pelas experiencias de precarização vivida e percebida de individualidades de classe e pela experiencia das novas precariedades salariais em constituição.

Finalmente, podemos dizer que o capitalismo global é o capitalis-mo predominantemente financeirizado, capitalismo das macroestru-turas corporativas em rede, capitalismo da acumulação flexível sob a vigência do espirito do toyotismo e da acumulação por espoliação sob a institucionalidade da lógica neoliberal. É o “capitalismo planetário” cuja expansão territorial e compressão espaço-tempo em virtude das novas tecnologias de comunicação e informação constitui, pela pri-meira vez na história da modernidade capitalista, um globo do capi-tal. Por isso, pode-se dizer que é um “capitalismo global” no sentido pleno de um espaço de valorização desterritorializado, mas imerso em candentes contradições sócio-politicas com os ineliminaveis es-paços territoriais do Estado-nação e do mundo do trabalho.

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A Condição de Proletariedade na Modernidade Salarial

Nosso objetivo neste capítulo é apresentar o conceito de condição de proletariedade, considerado por nós como a condição exis-tencial fundamental (e fundante) da modernidade do capital,

que implica homens e mulheres despossuídos dos meios de produção de sua vida social, na situação de “classe social” do proletariado.

A “classe” (entre aspas) do proletariado é o conjunto social de homens e mulheres, alienados da propriedade/controle social dos meios de produção da vida, que estão subsumidos a uma condição existencial histórico-particular – a condição de proletariedade.

A condição de proletariedade abre um campo de possibilidades con-cretas para a constituição da classe social do proletariado propriamente dita, posta como sujeito histórico-coletivo da civilização do capital.

Deste modo, a analítica existencial do proletariado, que apresen-taremos seguir, é a base categorial-objetiva para construirmos uma teoria da classe social do proletariado capaz de indicar as perspecti-vas da práxis emancipatória no século XXI.

Num primeiro momento, iremos tratar da distinção crucial, no legado marxiano, entre teoria do estranhamento e teoria da explora-ção. Salientaremos que a teoria social da classe do proletariado que iremos desenvolver, tem como base teórico-metodológica, a teoria do estranhamento apresentado – em seus princípios fundamentais – por Karl Marx.

Depois, discutiremos, mais uma vez, o significado de trabalho estranhado, estranhamento e fetichismo social. É a partir deste arca-bouço categorial que iremos apresentar o que é a “classe” do prole-

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tariado (com aspas) e a classe social do proletariado (uma discussão prévia sobre o significado de “classe social” é importantíssimo na medida em que o conceito de “classe social” é um dos mais cruciais conceitos para a explicação crítico-ontológica da práxis humano-social na sociedade burguesa).

Torna-se importante salientar a morfologia social da condição humano-existencial de proletariedade e comentar – a título mera-mente introdutório – uma série de situações categoriais problemá-ticas que exigem uma resposta do arcabouço teórico-analitico vin-culadas ao tema da situação de “classe social” (por exemplo, como tratar da dita “classe média” e pequeno-burguesia ou ainda, como explicar a situação dos trabalhadores públicos a partir da ótica teóri-co-analitica proposta, etc).

Marx: teoria da exploração e teoria do estranhamento

Pode-se dividir, a título meramente heurístico, a teoria de Marx e sua critica do capital, pelo menos em duas construções teórico-analí-ticas fundamentais: teoria da exploração e teoria do estranhamento.

A teoria da exploração é o complexo categorial que explica a di-nâmica estrutural de produção e acumulação de valor, telos (ou fina-lidade intrínseca) do sistema de controle sociometabólico do capital. Para explicar a produção do capital, Marx explicitou em seus textos, as categorias de mais-valia, trabalho abstrato/trabalho concreto, tra-balho produtivo/trabalho improdutivo, etc. A teoria da exploração é exposta por Karl Marx no decorrer da critica da economia política, alcançando na obra “O Capital” seu ápice de desenvolvimento cien-tífico. Com a sua teoria da exploração, Marx colocou um dos princi-pais fundamentos da critica radical da ordem burguesa.

A teoria do estranhamento é o complexo categorial que explica a desefetivação do ser genérico do homem a partir das relações sociais/praxis histórica constitutivas do trabalho estranhado e da vida social

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estranhada subjacente à produção do capital (relações sociais entre sujeito/objeto mediadas pelas relações sociais sujeito/sujeito).

Os elementos primordiais da teoria do estranhamento estão expostos nas obras de juventude de Marx, com destaque para os “Manuscritos de Paris” (1844). Mesmo em “O Capital”, de 1867, a discussão do fetiche da mercadoria e seu segredo remete à teoria do estranhamento, na medida em que explica a partir da forma-mer-cadoria, uma determinada forma de consciência social (sugerindo, como desdobramento teórico-categorial interno da teoria do estra-nhamento, o que seria a teoria do fetichismo).

Portanto, enquanto a teoria da exploração trata do “em-si” e da dimensão estrutural (e das leis tendenciais históricas) do modo de produção capitalista, a teoria do estranhamento trata do “para-si” e do conteúdo material da práxis histórica (as relações sociais).

É importante salientar que a divisão entre teoria da exploração e teoria do estranhamento é meramente heurística, tendo em vista que a exploração sempre pressupõe estranhamento (ou trabalho es-tranhado) e o trabalho estranhado (e o estranhamento), sob o modo de produção capitalista, pressupõem exploração.

Totalidade social

Reprodução social Produção

Karl MarxCrítica do Capital

capital como sistema de controle do

metabolismo social

Teoria do Estranhamentoexplica as relações sociais (ou atividades)

alienadas sujeito/objeto-sujeito/sujeito constitutivas da relação-capital

Teoria da Exploraçãoexplica os mecanismos

categoriais da atividade de produção do valor

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teoria do Estranhamento

sujeito ↔ objeto (meios de produção)

“sujeito” coisa

S ↔ O “S” C

(Figura 1)

Teoria do estranhamento

A teoria do estranhamento explica a inversão/perversão da re-lação sujeito/objeto (e de forma derivada, sujeito/sujeito) a partir da interversão do objeto (O) em coisa (C) (figura 1). Em termos lógico-dialético, sujeito pressupõe objeto. Na medida em que o objeto torna-se “coisa”, “nega-se” – lógico e ontologicamente – o sujeito.

O objeto torna-se “coisal” (“O” torna-se “C”), como observa Marx, quando os meios de produção tornam-se propriedade privada (isto é, defrontam-se diante do sujeito como capital). Eis como Marx descreve o processo de estranhamento social:

“Este fato, nada mais exprime senão: o objeto (Gegenstand) que o trabalho produz, se lhe defronta como um ser estranho, como um poder independente do produtor. O produto do trabalho é o trabalho que se fixou num objeto, fez-se coisal (sachlich) [...] Esta efetivação do trabalho aparece [...] como deseftivação [Entwirklichung] do tra-balhador [...].” (“Manuscritos econômico-filosófico”).

Ora, quando “O” torna-se “C”, ele se impõe (ou “nega”) S, que torna-se “S” (é o processo de dessubjetivação ou “negação” do sujeito humano, processo social intrínseco aos fenômenos dos fetichismos sociais. A desefetivação humano-genérica do trabalhador, que é o próprio processo de estranhamento social, é a sua dessubjetivação).

Fetichismo social

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A Condição de Proletariedade na Modernidade Salarial

A interversão de S em “S” é a interversão do sujeito histórico-pes-soal em agente social da estrutura de classe. Na sociedade burguesa, a sociedade do fetichismo social, o processo de reprodução sistêmica ocorre por meio do processo de dessubjetivação do trabalho vivo, que é a forma mais desenvolvida, nas sociedades mercantis complexas, da desefetivação do trabalhador ou desefetivação humano-genérica.

Teoria do fetichismo

Ao tratarmos da sociedade burguesa, a teoria do estranhamento torna-se uma teoria do fetichismo social, tendo em vista que o es-tranhamento – em geral – tende a assumir formas fetichizadas, por conta do predomínio estruturante da forma-mercadoria nas relações humano-sociais. É o que salientamos acima, pelo processo de des-subjetivação do trabalho vivo, quando “O” (objeto) torna-se “C” (coi-sa), e “C” se impõe (ou “nega”) S, que interverte-se em “S”.

Nesse caso, com a constituição do fetichismo social, a desefeti-vação humano-genérica do trabalho vivo assume uma dimensão intrinsecamente subjetiva. O fetichismo social é um modo de apa-rição da objetividade social. As relações sócio-humanas do homem que trabalha e o produto da atividade social (produtos, instituições e valores/ideologias), assumem uma forma opaca, intransparente e coercitiva. É o que se denomina “coisificação” do homem e suas rela-ções sociais. Na verdade, o sujeito humano-pessoal interverte-se em agente social de estruturas de dominação e poder de classe na medi-da em que ele se reconhece (e reconhece) as coisas como parte de si.

O problema do fetichismo social é o problema da consciência so-cial. Na sociedade do fetichismo, o que se coloca como nexo proble-mático da ação humano-social, são a consciência e autoconsciência dos sujeitos/agentes de classe. O que significa que o tema candente é o tema da consciência de classe – isto é, da própria formação da clas-se social como sujeito histórico-coletivo da modernidade do capital. Por isso, o problema do fetichismo – que é o problema da “cegueira

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social” – remete irremediavelmente ao problema da práxis social, dimensão humano-genérica convulsionada pelo complexo social de fetiches do mundo do capital.

Ao tratar do fetiche da mercadoria e seu segredo, última seção do Capítulo 1 do Livro I de “O Capital”, Marx coloca elementos ca-tegoriais primordiais para a discussão candente das possibilidades de emancipação humano-social na sociedade burguesa, um mundo social que é uma imensa coleção de mercadorias, isto é, o mundo da “cegueira social” constituído pelas formas-fetiches. Este foi o verda-deiro problema da teoria critica no século XX e inclusive no século XXI, um período histórico marcado pela expansão avassaladora do mundo das mercadorias e da fetichização social.

totalidade social estranhada fetichismos sociais (estranhamento social)

trabalho estranhado fetichismo da mercadoria

(Figura 2) (Figura 3)

Trabalho estranhado e estranhamento social

Salientamos a importância da distinção entre trabalho estranha-do e estranhamento social. O primeiro diz respeito à instância da produção material ou do trabalho propriamente dito (isto é, a luta pela sobrevivência), base fundamental (e fundante) da vida social. O segundo, diz respeito aos obstáculos sociais (objetivações sociais em geral, desde instituições até elementos valorativos-linguisticos,

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etc) que impedem o desenvolvimento do ser genérico do homem na sociedade do trabalho estranhado. O estranhamento diz respeito, portanto, à instância da reprodução social e da existência humana.

O trabalho estranhado é a base da vida social estranhada (vide fi-gura 2), mas vida social estranhada não se reduz à trabalho estranha-do. O trabalho é a instância fundante (e fundamental) da reprodução social e da sociabilidade (enfim, da vida social). Trabalho estranhado implica vida social estranhada. Entretanto, não podemos reduzir vida social à trabalho. Esta distinção é onto-metodológicamente impor-tante na medida em que contribui para salientar que os fenômenos do estranhamento social possuem forma/conteúdo de explicitação dife-renciados com respeito aos fenômenos do trabalho estranhado.

O capital é um sistema sociometabólico do estranhamento base-ado no trabalho estranhado. A teoria do estranhamento pressupõe a teoria do trabalho estranhado, embora ela – a teoria do estranha-mento – possa ser mais ampla do que este, pois ela trata de processos estranhados ligados à reprodução social, implicando assim o espaço (e território) da sociabilidade.

Como sugere a figura 3, o fetichismo da mercadoria é a base fun-dante (e fundamental) dos fetichismos sociais, derivados do fetiche da forma-mercadoria. Entretanto, os fetichismos sociais, embora sejam de-rivados do fetichismo da mercadoria, não podem se reduzir àquele.

O trabalho estranhado

O trabalho estranhado enquanto trabalho capitalista (ou traba-lho assalariado) emerge historicamente com a constituição da con-dição de proletariedade, que é a condição existencial de homens e mulheres alienados – em maior ou menor medida – da propriedade/controle dos meios de produção da vida social. Deste modo, a condi-ção de proletariedade é o pressuposto histórico-material do trabalho estranhado (ou trabalho assalariado).

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A propriedade privada funda o trabalho estranhado (e vice-ver-sa). Por outro lado, a determinação reflexiva de propriedade privada é a divisão hierárquica do trabalho. Diz Marx e Engels: “Assim, di-visão do trabalho e propriedade privada são expressões idênticas: a primeira enuncia em relação à atividade, aquilo que se enuncia na se-gunda em relação ao produto da atividade.” (“A Ideologia Alemã”).

trabalho estranhado

propriedade privada divisão do trabalho

(figura 4)

Propriedade privada, divisão hierárquica do trabalho e trabalho estranhado compõem o universo categorial da teoria do estranha-mento, base da teoria crítica do capital como sistema de controle do metabolismo social (vide figura 4). Na verdade, o conteúdo material das categorias de propriedade privada, divisão hierárquica do traba-lho e trabalho estranhado é constituído pelas relações sociais aliena-das entre sujeito/objeto e sujeito/sujeito, elementos compositivos do trabalho como processo de trabalho, fundamento ontológico-estru-tural da hominidade.

Deste modo, em última instância, o capital é uma forma de re-lação social – relação sujeito/objeto mediada pela relação sujeito/su-jeito – que assume uma dimensão fetichizada. O capital é o fetiche-mor ou forma social estranhada que oculta – pela sua constituição

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em sistema de controle sociometabólico – sua intrínseca natureza de poder social estranhado.

A condição de proletariedade é a condição sócio-ontológica do homem que trabalha no modo de produção capitalista. Ela implica, por um lado, uma separação histórica ou alienação primordial que dá origem à “classe” do proletariado e que marca o destino de homens e mulheres proletários. A idéia da assim chamada “acumulação pri-mitiva” caracteriza a alienação primordial. Ocorreu “a separação do caracol e sua concha” – como observou Marx. Em algum momento do passado histórico, nossos ancestrais mais ou menos distantes so-freram alguma despossessão originária que marcou a alienação dos meios de produção de vida material daquele homem ou mulher ou de algum grupo social. Muitas vezes, a despossessão da propriedade pessoal ocorre por meios extra-econômicos (fraude ou roubo). As mãos do capital estão sujas de sangue. A origem da riqueza capitalis-ta é marcada pela fraude ou pela violência extra-econômica. Como disse Proudhom, a propriedade privada é um roubo.

Por exemplo, o mundo do trabalho é constituído hoje por um imenso contingente de trabalhadores proletários que vivem nas aglo-merações urbanas, distante, no espaço-tempo histórico de seus pais ou avós, muitos deles trabalhadores rurais, ligados à terra, posseiros ou proprietários dos meios de produção vital. Em algum momento da trajetória da linhagem familiar ocorreu um ato de despossessão primordial que tornou uma parte daquela geração familiar despos-suida dos meios de produção da vida social. Eles foram obrigados a vender – no mercado de trabalho – a única mercadoria que possuem para sobreviver – a força de trabalho. Ocorreu, assim, o que iremos tratar mais adiante, como um processo de proletarização social, pro-cesso histórico-social que marca o desenvolvimento histórico da modernidade do capital.

Mas, se por um lado, a condição de proletariedade surge histori-camente com a assim chamada “acumulação primitiva”, num tempo histórico passado que muitas vezes está sedimentada pelo esqueci-mento (como disse Adorno, “a luta contra o fetichismo é a luta contra

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o esquecimento”), por outro lado, a condição de proletariedade tende a ser reiterada, de forma sistêmica, no tempo histórico presente.

Por isso, o movimento do capital é constituído pela (1) expro-priação como alienação primordial e (2) expropriação como aliena-ção sistêmica, que ocorre por meio do metabolismo sistêmico do trabalho estranhado e sua dinâmica de exploração, cujas condições sistêmicas são reiteradas a partir das situações históricas de preca-riedade salarial.

Ora, o modo de acumulação do capital cria seu próprio modo de vida, posto (e reposto) como condição alienada do trabalho vivo ou condição histórico-existencial de proletariedade. Deste modo, a condição de proletariedade tende a ser reforçada no dia-a-dia pelo sociometabolismo do capital na medida em que a ordem burguesa baseia-se nos pilares da alienação material dos meios de produção (e de controle) da vida social e na subalternidade estrutural que carac-teriza a divisão hierárquica do trabalho.

Estruturação do capital como sistema sóciometabólico

Formas de expropriação (produção/Reprodução da proletariedade moderna)

Expropriação primordial (a dita “acumulação primitiva”)

Expropriação sistêmica (trabalho estranhado/exploração)

Condição de proletariedade

- Dimensões do trabalho estranhadoTemos salientado que a condição de proletariedade é o elemento

fundante (e fundamental) do trabalho estranhado – só há trabalho estranhado porque há proletários ou homens e mulheres imersas numa condição histórico-existencial de proletariedade, obrigados,

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pela necessidade de sobrevivência, a se submeterem às condições da exploração capitalista.

Mas pode-se dizer também que só há proletários porque há tra-balho estranhado como modo de produção de mercadorias. A condi-ção de proletariedade é produzida (e reproduzida) pelo modo de tra-balho (e vida) capitalista. Nesse caso, o trabalho estranhado aparece como o modo de ser da expropriação como alienação sistêmica ou alienação reiterativa do sistema sóciometabólico do capital.

Portanto, a condição de proletariedade é produzida pelo ato his-tórico de alienação primordial – a assim dita “acumulação primiti-va”, que inclusive se repõe historicamente com o desenvolvimento capitalista; e é reproduzida pela alienação sistêmica, que aparece sob a forma do trabalho estranhado. Por isso, é interessante dissecar as dimensões do trabalho estranhado (e da vida social estranhada) para apreendermos o metabolismo social da condição histórico-existen-cial de proletariedade.

No Terceiro Manuscrito intitulado “Trabalho Estranhado” (Entfremdung Arbeit) dos “Manuscritos econômico-filosóficos”, de 1844, Karl Marx desvela elementos que constituem, em si e para si, o que chamamos de condição de proletariedade. Na verdade, ele expôs a natureza do trabalho estranhado e suas derivações sócio-reprodu-tivas (o estranhamento social). Na verdade, nesse texto, Marx não trata tão-somente da produção social, mas também de elementos da reprodução social, expondo assim, o metabolismo social da própria condição de proletariedade.

Primeiro, Marx se posiciona na perspectiva na totalidade social – ele não desvincula trabalho e vida; para homens e mulheres imer-sos na condição de proletariedade, trabalho é vida e vida é trabalho. Inclusive, o trabalho estranhado – no tocante as suas derivações sis-têmicas – envolve também aqueles que não estão vinculados direta ou indiretamente à produção do capital propriamente dito (na mes-ma medida em que a forma-mercadoria é incorporada – na socie-dade do fetichismo – aos produtos-objetos que não são mercadorias propriamente ditas).

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Karl Marx trata de um sistema social baseado no trabalho es-tranhado cuja vida social é estranhada em suas múltiplas mani-festações vitais. O que significa que a condição de proletariedade é uma condição universal que tende a se universalizar, pois ela se baseia no trabalho estranhado, base orgânica do processo de mo-dernização do capital.

É a partir da crítica do trabalho estranhado como trabalho capi-talista que o jovem Marx irá colocar os primeiros rudimentos da sua critica da sociedade burguesa. Naquela época, Marx ainda não tinha desenvolvido sua teoria critica do capital, faltando-lhe maior clareza sobre os nexos categoriais constitutivos do modo de produção capi-talista e da dinâmica da acumulação de capital. Entretanto, conside-ramos que o jovem Marx possuía diante de si, o eixo estruturante de sua intervenção critico-intelectual que ele iria aprimorar no decorrer dos anos por meio de sua crítica da economia política.

Num primeiro momento, Marx ensaia, ainda que numa lingua-gem especulativo-hegeliana, uma crítica do método da Economia Po-lítica. Tal como fizera quase quinze anos depois, ele abre seu Terceiro Manuscrito, tratando de questões de método (Na seção “O Método da Economia Política”, escrita em 1857, Marx distingue seu “méto-do”, tanto do método da economia política, quanto do método hege-liano). Assim, Marx procura demonstrar porque a economia política não consegue apreender a essência do real. Primeiro, ela não busca os fundamentos histórico-genéticos das categorias que utiliza, que aparecem como meras abstrações; e depois, os economistas burgue-ses não concebem a interconexão essencial entre essas categoriais.

Ora, neste rascunho da juventude de Marx, temos in germe, dois princípios fundamentais do método dialético-materialista: as categorias são determinações da existência histórica, sendo impres-cindível apreender sua gênese e desenvolvimento histórico; ou seja, a verdade concreta é a síntese de múltiplas determinações, a uni-dade na diversidade, ou seja, ela é uma totalidade concreta. Enfim, movimento histórico-material e totalidade social – eis os princípios

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heurísticos fundamentais da nova ciência social que o jovem Marx inaugura em 1844.

Depois, o que Marx irá salientar é que existe uma interconexão essencial entre aspectos decisivos da vida burguesa que a economia política oculta.

Primeiro, a interconexão entre pobreza e riqueza. Isto é, “o tra-balhador se torna tão mais pobre quanto mais riqueza produz”. A pobreza de uns é a riqueza de outros. Valorização do mundo das coi-sas e desvalorização do mundo dos homens. Enfim, Marx expõe as “antípodas” do mundo do capital. O nexo mediativo entre pobreza e riqueza é o trabalho em sua forma capitalista; isto é, o que explica a pobreza do trabalhador, para ele, é o trabalho estranhado.

Depois, ele expõe a segunda interconexão essencial que a econo-mia política tende a desprezar: a interconexão entre trabalho e vida social; isto é, sob o mundo burguês, não é apenas o trabalho que é es-tranhado, mas sim a própria vida social. A partir daí, Marx discorre sobre a multidimensionalidade do trabalho estranhado.

Portanto, neste momento, fecha-se o círculo da argumentação de Marx: o trabalhador é pobre porque seu trabalho é alienado e, ao estar imerso no trabalho estranhado, a vida social do trabalhador também lhe é estranha. Trabalho enquanto atividade produtiva livre e consciente é vida; na medida em que a atividade, a produção, não lhe pertence, ou se lhe defronta como um ser alheio, ela deixa de sig-nificar vida e passa a significar morte, isto é, desefetivação.

O conceito de trabalho estranhado, base estruturante da vida es-tranhada, se delineia no decorrer da apresentação que o jovem Marx faz desta totalidade concreta do mundo burguês. São perceptíveis os nexos essenciais entre produção e reprodução social, trabalho e vida cotidiana, objetividade e subjetividade do homem que trabalha. Eles compõem uma totalidade concreta na qual está imerso o individuo social de classe. Estamos diante de uma arquitetura categorial com-plexa daquilo que denominamos de “condição de proletariedade”, construto teórico-analitico que busca apreender, através de uma ma-

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gistral especulação dialética, as implicações objetivas e subjetivas da perda (ou da negação) do homem no sistema do capital.

Para Marx, o trabalho estranhado possui múltiplas dimensões que, aos poucos, Marx nos apresenta, na medida em que discorre o Terceiro Manuscrito, perpassando as interconexões causais salienta-das acima (os pólos aparentemente antípodas – pobreza e riqueza e trabalho e vida social).

Trabalho estranhado é alienação do trabalhador do produto 1. da sua atividade. É esta alienação do produto que está na base material da interconexão essencial entre pobreza e riqueza. O trabalhador assalariado – e Marx trata do trabalhador co-letivo – produz, mas não se apropria do produto da sua ativi-dade social. Quanto mais produz, mais pobre fica enquanto classe social. Marx descreve assim, o núcleo primordial ou a manifestação mais imediata do complexo do trabalho estra-nhado que constitui a sociedade burguesa, expondo a situação da classe trabalhadora na sociedade industrial-capitalista. Nesse caso, o trabalhador coletivo não é proprietário dos meios de produção das condições materiais de sua vida so-cial. Diz Marx: “...o trabalhador se relaciona [sich verhalten zu] com o produto do seu trabalho como com um objeto alheio.” O objeto não é do produtor, o trabalhador, mas sim, do proprietário privado, o capitalista. Um detalhe curioso: na citação de Marx, logo acima, pode-se traduzir a expres-são [sich verhalten zu] – “se relaciona”, por “ter atitude dian-te de”, pois o que Marx sugere é que a alienação do produto implica tanto uma relação [em alemão, Verhaltnis] quanto um comportamento [em alemão, Verhalten]. Tal detalhe é importantíssimo, pois significa que o estranhamento é tan-to uma determinação objetiva, na medida em que homens e mulheres estão imersos numa relação social de produção baseada na propriedade privada e na divisão hierárquica do trabalho; quanto uma determinação subjetiva, isto é, um metabolismo social que pressupõe dos agentes sociais, ati-

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tudes e comportamentos determinados. O que significa que o trabalhador assalariado pode perder o controle dos resul-tados da própria atividade social, não apenas por conta de uma incapacidade material (objetivamente, ele não possui, ou não tem o controle das condições de produção da sua própria vida social); mas, por conta de uma incapacidade subjetiva (subjetivamente, ele não desenvolveu habilidades cognitivo-comportamentais adequadas para lidar com a materialidade social complexa constituída no decorrer do processo civilizatório do capital).Trabalho estranhado é 2. alienação da atividade produtiva ou do ato de produção. O trabalhador assalariado não se iden-tifica com o processo de trabalho no qual está inserido. Nes-se caso, trabalho é tripalium, isto é, sofrimento. É esta alie-nação que está na base material da interconexão essencial entre trabalho e vida social como vida humano-genérica. Na medida em que o trabalhador está alienado da atividade produtiva, ele está alienado da vida do gênero, que possui na atividade produtiva racional e consciente, seu lastro ontoló-gico (Marx supõe, em 1844, um dos princípios ontológicos fundamentais salientados mais tarde por Lukács: o homem é um animal que se fez homem através do trabalho enquanto atividade produtiva, livre e consciente – isto é, um homem alienado do trabalho é um homem alienado daquilo que significou o desenvolvimento do próprio gênero humano). Nesse caso, o trabalho estranhado é auto-estranhamento, o estranhamento-de-si [em alemão, Selbstentfremdung]. É a alienação da atividade produtiva mesma ou ainda, a alie-nação se mostra no ato de produção. Nesse caso, o traba-lho é tripalium, isto é, sofrimento. Como observou Marx, é “atividade como sofrimento, a força como impotência, a procriação como emasculação, a energia mental e física pró-pria do trabalhador, a sua vida pessoal [...] como uma ati-vidade voltada contra ele mesmo, independentemente dele, não pertencente a ele.” Esta parece ser a dimensão crucial do

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complexo de trabalho estranhado como trabalho assalaria-do, pois é ela que “abre as portas” para as demais dimensões existenciais de perda do homem no mundo burguês, tendo em vista que, se o trabalhador está alienado da atividade produtiva e do ato da produção, isto é, daquilo que, para o gênero humano significa vida social, o trabalhador está imerso num processo de desefetivação humano-genérica, isto é, o trabalhador é desefetivado. Ele está alienado do ser genérico. É Marx que observa: “Na medida em que o traba-lho estranhado aliena do homem 1. a natureza e 2. a si pró-prio, a sua função ativa própria, a sua atividade vital, aliena do homem, o gênero; lhe faz da vida do gênero um meio de vida individual.” Ora, no capitalismo, a atividade produtiva como atividade vital aparece só como meio de vida ou mera satisfação da necessidade de manutenção da existência fí-sica. É através da atividade produtiva, a auto-atividade, a atividade livre, que o homem como ser social se confirma, em primeiro lugar e efetivamente, como ser genérico. O traba-lho estranhado tende a arrancar-lhe sua vida genérica. E diz Marx: “[o trabalho estranhado] transforma a sua vantagem com relação ao animal na desvantagem de lhe ser tirado o seu corpo inorgânico, a natureza.” Isto é, se foi através do trabalho como atividade produtiva livre e racional que o ho-mem se distinguiu dos demais animais, na medida em que ele se aliena deste ato de produção, ele perde a vantagem com relação ao animal: “O que é animal se torna humano e o que é humano se torna animal”. O que ele produziu, a na-tureza inorgânica – o mundo de objetos técnicos complexos – que é seu “corpo inorgânico”, lhe é tirado, está alienado dele, e portanto, se volta contra ele. Ora, Marx considera o mundo de objetos criados pelo homem como sua “segunda natureza”, a natureza inorgânica, que é uma extensão de si. “A natureza é o seu corpo...”, dirá ele. Isto é: “O homem vive da natureza, significa a natureza é o seu corpo, com o qual tem que permanecer em constante processo para não

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morrer.” Ao ser alienado do mundo de objetivações, meios sócio-técnicos indispensáveis à vida social e vida humano-genérica (pois o homem é animal que se fez homem através da produção de objetos sócio-técnicos); ao perder o contro-le dos objetos que se tornaram coisas, isto é, objetos alheios a ele, o homem se condena a morte (nesse momento Marx elabora, pela primeira vez, o que seria a natureza do fetiche como exteriorização estranhada). Ao estar alienado da vida do ser genérico do homem, o 3. trabalhador assalariado está, por conseguinte, alienado da vida social propriamente dita, isto é, alienado de si e dos outros. Portanto, a alienação da atividade produtiva se des-dobra em outras duas dimensões da alienação: alienação do ser genérico e alienação dos outros homens diferentes dele. Marx observa: “uma conseqüência imediata do fato de o homem estar alienado do produto de seu trabalho, da sua atividade vital, do seu ser genérico, é o homem estar alienado do homem [die Entfremdung des Menschen von dem Menschen, literalmente, ‘a alienação do homem do homem’]”. Nesse caso, trata-se da dessocialização do ho-mem, produto irremediável do complexo social do traba-lho estranhado. Deste modo, fecha-se o círculo sinistro do mundo social do trabalho estranhado – ao alienar-se de si, por conta da alienação do produto e da auto-alienação (que é alienação da vida genérica do homem), o homem se alie-na de outros homens. É a própria negação da sociabilidade humana, o lugar da barbárie social.

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Dimensões do trabalho/Vida Estranhadas

- A condição de proletariedadeO trabalho estranhado é uma forma histórica do trabalho huma-

no-social. Existem múltiplas significações da categoria de trabalho: trabalho como categoria ontológica do ser social; trabalho estranha-do como trabalho histórico das sociedades da propriedade privada/divisão hierárquica do trabalho; trabalho capitalista como trabalho estranhado que aparece como trabalho abstrato, distinguindo-se deste modo, no plano da dinâmica de acumulação de capital, tra-balho produtivo-trabalho improdutivo; neste contexto analítico da produção do capital distingue-se também, além do trabalho abstra-to, o trabalho concreto. Outras acepções de trabalho são trabalho socialmente necessário, trabalho útil, etc.

Significações da categoria trabalho

trabalho capitalista (trabalho assalariado/trabalho abstrato)

trabalho estranhado tout court

trabalho como categoria ontológica do ser social

Produto Atividade

De si e dos Outros

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A base fundante (e fundamental) de toda forma histórica de traba-lho é o trabalho como categoria ontológica do ser social. Ele é o pressu-posto negado (mas efetivo) do trabalho estranhado e do trabalho capita-lista como forma histórica particular-concreta de trabalho estranhado.

Nesse caso, o “trabalho estranhado” existiu em formas sociais pré-capitalistas (como o trabalho escravo ou o trabalho servil). Mas o trabalho capitalista (ou trabalho assalariado) é uma forma histórica mais desenvolvida de trabalho estranhado, capaz de explicar as for-mas pretéritas de trabalho estranhado e estranhamento social.

Portanto, a condição de proletariedade propriamente dita surge com o trabalho estranhado capitalista. Ela emerge com a modernidade do capital, tornando-se condição universal das individualidades de clas-se despossuídas da propriedade dos meios de produção da vida social. A condição de proletariedade se caracteriza, portanto, pelos elementos compositivos da relação-capital no plano das individualidades aliena-das ou “trabalhadores livres”. Homens e mulheres imersos na condição de proletariedade são individualidades sociais que não possuem a pro-priedade – e em geral a posse (e, portanto, o controle) – das condições de produção da vida social. É a partir desta condição sócio-estrutural que podemos derivar as múltiplas atribuições existenciais da proletarieda-de moderna ou condição de proletariedade.

A idéia de “condição” é dada quase como um “destino”. O que significa que nascemos numa determinada condição histórico-exis-tencial, que é, em geral, a “condição de proletariedade”. A primei-ra característica da condição de proletariedade é a despossessão (em múltiplos graus de efetivação). As individualidades proletárias são individualidades pessoais de classe, alienadas, sujeitos humanos sem objeto (e, portanto sujeitos negados), “sujeitos assujeitados” e “sujei-tos em desefetivação”, enfim, homens jogados no mundo, (como di-riam os existencialistas). A condição de proletariedade nasce – e se universaliza – com a modernidade do capital. Ela institui um novo tipo de humanidade – a humanidade proletária.

A modernização do capital se caracteriza pela despossessão irre-mediável. É o que tem marcado a história do Ocidente desde o século

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XVI, com destaque para a despossessão de camponeses, pequenos artesãos e comerciantes atingidos pelo processo de proletarização.

O conceito de proletarização significa a despossessão objetiva (e subjetiva) dos meios de produção da vida social. A perda da proprieda-de pessoal e a imersão na condição de proletariedade, que os constitui como individualidades de classe, é o processo de proletarização. A pro-letarização joga homens e mulheres despossuídos no mundo social da “classe” do proletariado (ainda não são classe social em si ou para si).

Nesse caso, ocorre a passagem da individualidade pessoal, marcada pelo domínio imediato de meios (e instrumentos) de produção da vida social e comunitária, para a individualidade de classe, marcada pela despossessão destes meios (e instrumentos) de produção da vida e subal-ternização diante das condições objetivas (e subjetivas) da produção do capital (o que não significa que a dimensão pessoal da individualidade humana seja abolida, mas é apenas sobredeterminada, constituindo-se o que denominamos individualidade pessoal de classe).

Deste modo, o homem proletário é um homem imerso na rela-ção-capital que implica, por um lado despossessão (a alienação do objeto constituindo diante de si, o poder da propriedade privada); e por outro lado, subalternidade (a alienação da atividade ou do pro-cesso de trabalho, sendo deste modo, no plano da reprodução so-cial o homem proletário, um ser subalterno às objetivações sociais – classe social, ideologia, Estado político, salário. Assim, o proletário como individuo de classe está imerso na subalternidade dada pela divisão hierárquica do trabalho, e na contingência e acaso, dada pelas relações de mercado.

A passagem categórica da individualidade pessoal para a indi-vidualidade de classe significa a submersão na vida contingente e a imersão no acaso. Na verdade, o processo de proletarização que mar-ca a ocidentalização do mundo constituiu um novo tipo humano, o homem submetido às coisas ou ao poder das coisas, como diria Marx. Enfim, o homem alienado ou homem desefetivado como sujei-to. É o homem moderno, homem burguês, dividido em si e clivado de contradições diante do mundo social reificado.

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Como derivação objetiva (e subjetiva) da condição de proletarieda-de, condição social e histórica, que algumas correntes filosóficas elevam à condição ontológica do homem (como, por exemplo, o existencialis-mo ateu que expressa na sua metafísica da angústia o pleno sentimento da alienação capitalista), temos a incomunicabilidade, a deriva pessoal e a corrosão do caráter. Estamos diante de traços humanos que se ligam a uma condição histórico-social, a condição de proletariedade.

Portanto, é do processo social de proletarização, processo originá-rio e sistêmico do metabolismo social do capital, que emerge a con-dição de existência (des)humana da civilização do capital, a “condição de proletariedade”, caracterizada por uma série de atributos histórico-existenciais que se disseminam pela sociedade burguesa: subalternida-de, acaso e contingencia, insegurança e descontrole existencial, incomu-nicabilidade, corrosão do caráter, deriva pessoal e sofrimento. Podemos destacar ainda outros traços histórico-existenciais como risco e pericu-losidade, invisibilidade social, experimentação e manipulação, prosaís-mo e desencantamento (por exemplo: é o prosaismo da vida burguesa que impele as individualidades pessoais de classe a se projetarem em “fantasias heróicas” que tende a elevá-las, sob determinadas circuns-tâncias, acima da pseudoconcreticidade da vida cotidiana).

Atributos histórico-existencias da proletariedade moderna

Subalternidade

Acaso e contingencia

insegurança e descontrole existencial

incomunicabilidade

Deriva pessoal e sofrimento

Risco e periculosidade

invisibilidade social

Experimentação e manipulação

prosaísmo e desencantamento

Corrosão do caráter

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Tais atributos existenciais da “condição de proletariedade” per-meiam as múltiplas relações sociais, direta ou indiretamente ligadas à produção/reprodução social do sistema do capital. Elas se tornam atri-butos existenciais da vida burguesa atingindo, por derivação e difusão, a cotidianidade de proletários e não-proletários propriamente ditos.

O ser “proletariado”, no sentido fraco da palavra, diz respeito a uma condição objetiva de existência (ou “condição de proletariedade”) cujos atributos existenciais tendem a tornarem-se, sob a sociedade burguesa, atributos universais das individualidades pessoais de classe.

O ser proletariado pode dizer respeito também a uma “classe social” no sentido pleno de sujeito histórico-coletivo, com maior ou menor efetivação (o que exige outras mediações concretas como ins-tituições sociais, políticas ou culturais capazes de produzir um tipo específico de consciência social: a consciência de classe).

- O conceito de “classe social”É a condição de proletariedade, condição histórico-particular que

surge com a modernidade do capital – e que se amplia e expande-se nos últimos séculos de ocidentalização do mundo – que emerge a possibilidade objetiva da “classe social” como categoria sociológi-ca, classe social como sujeito histórico-coletivo. Este é o verdadei-ro sentido do conceito de “classe social” que não pode ser reduzido meramente a um dado estatístico-social, como o fazem a sociologia positivista e o marxismo vulgar.

O conceito de classe social (com o “proletariado” constituindo a classe social por excelência) é um dos conceitos sociológicos da maior relevância epistemológica. Na verdade, é um conceito cien-tífico indispensável para a episteme da emancipação social (o que explica o desprezo que as ideologias liberais e pós-modernas, ide-ologias conservadoras da ordem do capital, têm com o conceito de classe social).

A condição de proletariedade institui apenas a possibilidade ob-jetiva da “classe social”, mas quem a constitui é o movimento social

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e as instituições políticas e culturais capazes de propiciar, por meio de processos de subjetivação e experiências de classe, desde as mais rudimentares, criadoras da consciência de classe contingente, às mais avançadas, instigadoras da consciência de classe necessária, inclusive capaz de ir além da classe para si (o que significa constituir uma consciência humano-genérica para além do interesse de classe pro-priamente dito).

Nesse texto buscamos elaborar, a partir de Marx (e não segundo Marx), uma teoria das classes sociais (e para ser mais preciso, uma te-oria do proletariado como sujeito histórico coletivo), tomando como ponto de partida, como salientamos acima, a teoria do estranhamen-to e não a teoria da exploração, como tem sido comumente tratada pela tradição marxista (o que pressupõe salientar a idéia de formação da classe como sujeito histórico-coletivo).

A teoria do estranhamento é uma teoria da negação/afirmação do sujeito humano-social. É por isso, uma teoria da práxis que se distingue, em seu estatuto epistemológico, da teoria da exploração, como teoria das estruturas (ou mecanismos) do movimento do capi-tal (uma teoria da classe do proletariado a partir da teoria da explo-ração seria meramente a teoria de uma “classe em inércia” – o que é uma contradição em termos. A rigor, “classe em inércia” é a própria “negação” da categoria de classe social como fato onto-epistemológi-co inovador da modernidade do capital) (para uma teoria das classes – como “classe em inércia” – vide o livro “Marx: Lógica&Política”, volume 2, de Ruy Fausto, capítulo “Sobre as classes”).

Ao dizermos que elaboramos uma teoria do proletariado “a par-tir de” Marx e não “segundo Marx” (como supõe uma leitura ima-nente de “O Capital”, por exemplo) significa que algumas afirmações podem não estar de acordo literalmente com Marx, tendo em vista que o objeto categorial visado por Marx no século XIX não é o objeto categorial que visamos no século XXI. Na medida em que o capita-lismo (e o proletariado) visado por Marx é (e não é) o capitalismo (e o proletariado) visado por nós, uma teoria do proletariado segundo Marx não seria uma teoria científica. Na verdade, segundo o método

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dialético, todo conceito (como o de “proletariado”) é uma categoria, ou seja, é uma forma de ser e modo de existência historicamente de-terminada.

Tornou-se corriqueiro na tradição marxista, ao discutir-se o conceito de proletariado, tratar-se, de imediato, da questão do “tra-balho produtivo” e “trabalho improdutivo”, como se o problema da classe do proletariado pudesse ser resolvido a partir desta distinção sócio-estrutural. Deste modo, tende-se a reduzir proletariado aos “trabalhadores produtivos” (na verdade, esta é a visão marxiana his-toricamente determinada).

Mas o pior é que se presume também, sem questionamentos, que o proletariado como sujeito histórico-coletivo, ou seja, como “classe social” no sentido legítimo da expressão categorial, é um dado socio-lógico-estrutural ligada a uma posição objetiva na divisão social do trabalho. Por isso, imagina-se que é suficiente identificar, segundo a ótica da teoria da exploração, os atributos estruturais da classe do proletariado.

Consideramos que esta mudança de enfoque analítico (tratar da classe do proletariado a partir da teoria do estranhamento) con-tribui para expor em nossos dias aspectos novos do significado de “proletariado” segundo as condições do capitalismo desenvolvido no século XX.

Por exemplo, segundo a ótica dialético-matarialista (e histórica) que apresentamos, a título de hipótese, proletariado aparece como “classe” (com aspas), no sentido de condição de proletariedade; e como classe, no sentido de “classe em si/classe para si” (enfim, prole-tariado como classe pressupõe algum grau de consciência de classe).

A categoria de proletariado como classe, ou seja, como sujeito histórico-coletivo, é radicalmente uma construção histórica da mais alta relevância e não um mero dado sociológico-estrutural. O prole-tariado (como classe) não nasce feito, mas se faz no devir histórico. Enquanto classe pode se fazer e desfazer; tornar-se visível e invisível, dependendo de condições históricas específicas.

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A contradição objetiva (e subjetiva) entre trabalho e capital é a contradição histórico-estrutural fundamental do modo de produção capitalista.

A materialidade intensamente social e agudamente contradi-tória do modo de produção capitalista constitui ontologicamente a categoria em si de classe social. O conceito de classe social tem uma importância fundamental no materialismo histórico, sendo o ponto de partida da própria critica da economia política. Entretanto, nem Marx nem Engels formularam de maneira sistemática o conceito de classe social.

A descoberta do “proletariado” por Marx na década de 1840 sig-nificou para Marx e Engels a descoberta do “movimento real que supera o estado de coisas atual” – como afirmam na “Ideologia Ale-mã”. A rigor, poderíamos dizer que o proletariado é a classe verda-deiramente social, isto é, a “classe social”.

Na “Ideologia Alemã”, Marx e Engels observam que a “própria classe é um produto da burguesia”. Deste modo, “classe” é uma ca-tegoria distintiva da sociedade burguesa. Podemos dizer que nas sociedades pré-capitalistas não havia propriamente “classes sociais”, mas grupos de status, ordens, e múltiplas gradações de categoriais sociais. Apenas na época burguesa é que, como observa Kautsky, a “sociedade como um todo está cada vez mais dividida em dois gran-des campos hostis, em duas grandes classes que se enfrentam direta-mente – a burguesia e o proletariado” (citado no verbete “classe”, do Dicionário do Pensamento Marxista editado por Tom Bottomore).

Embora Marx afirme a existência de uma divisão fundamental de classes em todas as formas de sociedade que sucederam as antigas comunidades tribais, divisão fundamental de classe baseada na rela-ção direta entre proprietários das condições de produção e os produ-tores diretos, que segundo ele (n’O Capital), “revela o segredo mais íntimo, o fundamento oculto de todo edifício social”, consideramos que o significado pleno de “classe” só aparece na sociedade burgue-sa, a sociedade mais social, e que tem no proletariado não apenas uma das classes fundamentais, mas a classe social propriamente dita

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que expressa como potentia o sentido ontológico da “classe” como sujeito histórico.

Deste modo, podemos distinguir duas acepções de “classe”:Primeiro, existe uma acepção sociológica de “classe” que distin-

gue na sociedade capitalista duas classes fundamentais em função da divisão social do trabalho: a classe dos trabalhadores assalariados e a classe da burguesia. Classe, nesse sentido, possui um significado funcional (funcional para o capital), como aparece nesta passagem do livro “Miséria da Filosofia” (de Karl Marx, de 1847). Diz ele:

“As condições econômicas transformaram, em primeiro lugar, a massa do povo em trabalhadores. A dominação do capital sobre os tra-balhadores criou a situação comum e os interesses comuns desta classe. Assim, essa massa já é uma classe em relação ao capital, mas não ainda uma classe para si mesma. Na luta, da qual indicamos apenas algumas fases, essa massa se une e forma uma classe para si. Os interesses que ela defende tornam-se interesses de classe.” [o grifo é nosso]

Em síntese: por um lado, a burguesia ou os proprietários das condições de produção e por outro lado, os trabalhadores assalaria-dos ou os produtores diretos (ou indiretos, no caso de sociedades de classe mais complexas), constituem as classes fundamentais da so-ciedade burguesa. Nesse caso, “classe” possui um sentido sociológico propriamente dito. Ainda nesta acepção, temos a categoria interme-diaria de “classe média” que no decorrer do capitalismo tende não apenas a crescer numericamente, mas a adquirir feições próprias no decorrer de cada estágio de desenvolvimento histórico do sistema do capital. A utilização do termo “classe média” possui outro estatuto teórico-analitico – é mais uma categoria da estratificação social do que propriamente da estrutura de classes, embora, como iremos veri-ficar adiante, a estratificação social exerce sua efetividade categorial no processo de constituição da classe “para si”.

Segundo, por outro lado, na acepção dialético-materialista, a classe não é apenas um mero conjunto sócio-estatistico inserido numa determinada posição objetiva da divisão social do trabalho, ou seja, “classe para o capital”, mas sim uma coletividade organiza-

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da de produtores ou trabalhadores alienados das condições de pro-dução que possui uma determinada forma de consciência social: a consciência de classe (“classe para si”, isto é, classe com interesses de classe). Enfim, a forma de ser da classe social, na ótica dialético-me-tarialista, pressupõe não apenas uma posição objetiva na divisão so-cial do trabalho, mas uma determinada forma de consciência social, a consciência de classe capaz de transformar em si e para si aquela coletividade particular-concreta de trabalhadores proletários em su-jeito histórico real – a classe do proletariado – cujo movimento social e político tende a “negar” o estado de coisas atual. Esta é a acepção efetiva (e original) da categoria de “classe social” na ótica marxiana.

Dizer “proletário” ou mesmo “proletariado” não significa efe-tivamente dizer “classe do proletariado”. O homem proletário ou o proletariado em si está apenas subsumido à condição de proleta-riedade, matéria social da potentia de classe social como categoria histórica. Nesse caso, o que iremos denominar de “condição de pro-letariedade” possui apenas a potentia e não o acto da categoria de classe social (o que não é pouca coisa). Uma de nossas teses é que, na perspectiva dialética-materialista, a rigor, só há classe se houver consciência de classe.

A categoria de “classe social” é uma das categorias fundamentais da sociologia critica. Mais uma vez, salientamos que ela não se reduz a mera estatística social e sua efetivação categorial pressupõe não ape-nas uma materialidade objetiva ou posição na divisão social de traba-lho e antagonismo estrutural de interesses de classe, mas sim, mate-rialidade subjetiva ou experiência de classe e consciência de classe.

Deste modo, apenas a classe para si constitui efetivamente a clas-se social como categoria histórica. Ao dizermos classe para si dize-mos a constituição de um sujeito histórico com determinado grau de consciência de classe contingente ou necessária.

A constituição do sujeito de classe é processual, percorrendo uma gradação progressiva (ou regressiva) que vai da consciência de classe contingente, a classe em si, momento estrutural da percepção e do entendimento das individualidades de classe, à consciência de classe

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necessária, classe para-si, momento histórico-político da experiên-cia de classe que tende a se generalizar. Pode-se inclusive conceber, deste modo, neste processo histórico, outro momento da consciência social, a consciência de classe para além de si, que diz respeito à di-mensão da genericidade humano-genérica para além da divisão da sociedade humana em classe.

Na verdade, a consciência de classe propriamente dita ou cons-ciência de classe necessária, se traduz na superação do momento econômico-corporativo pelo momento ético-político (embora, é claro, o momento da percepção de classe nos seus mais diversos graus de percepção, ou a consciência de classe contingente, seja efetivamente consciência de classe in fieri).

O movimento da consciência social para a consciência de classe (que no plano epistemológico implica a passagem da consciência in-gênua para a consciência critica) é um momento de catarse das indi-vidualidades pessoais de classe em si para si que ocorre a partir das suas experiências vividas e experiências percebidas de classe (como condição objetiva dada), experiências cotidianas mediadas por insti-tuições (ou movimentos) culturais ou políticas capazes de ir além da pseudo-concreticidade (na acepção de Karel Kosik).

A consciência de classe capaz de constituir a nova forma de ser da coletividade de produtores sociais – a classe para si, que é a classe social propriamente dita, sujeito histórico capaz de lutar pelos in-teresses de classe na cena política e social, emerge de uma condi-ção material (e situação objetiva) historicamente dada e socialmente constituída pelo modo de produção capitalista.

No caso da classe do proletariado, a condição material (e situação objetiva) historicamente dada que constitui ontologicamente a classe social – no sentido da forma de ser da classe – é o que temos deno-minado de condição de proletariedade. Esta condição objetiva dada é a matriz sócio-estrutural da formação da classe social como sujeito histórico da modernidade do capital.

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- “Classe” e classe do proletariadoIremos tecer considerações sobre a natureza da despossessão e

da subalternidade, elementos compositivos essenciais da “condição de proletariedade” ligados à relação-capital (propriedade privada/divisão hierárquica do trabalho).

Primeiro, temos salientado que utilizamos “classe” (com aspas), para salientar o caráter meramente potencial do conceito ou catego-ria como forma de ser. A “classe” do proletariado, constituída por aqueles e aquelas que estão imersos na condição de proletariedade, não é, a rigor, a classe do proletariado que pressupõe como elemen-to constitutivo, fundante e fundamental, a consciência de classe. Na verdade, a categoria de “classe social” é uma categoria-espectral que não é dada, de imediato, e que se constitui em processo. Não apenas se constitui historicamente (e cotidianamente, vale ressaltar), como pode se desconstituir, desaparecendo enquanto classe, tornando-se meramente “classe” do proletariado.

Portanto, a rigor, podemos dizer que existem individualidades pessoais de “classe”, homens e mulheres jogados no mundo social do capital, despossuídos, subalternos e imersos na contingência de vida e no acaso do mercado; e individualidade pessoais de classe, homens e mulheres em processo de subjetivação de classe, sujeitos humano-coletivos em constituição por meio de processos histórico-sociais, subjetividades humanas que buscam dar respostas organizativas, as-sociativas e políticas aos constrangimentos da ordem sócio-metabó-lica do capital a partir de seus interesses objetivos de classe.

Segundo, o elemento de despossessão, que constitui (e marca) a condição de proletariedade, precisa ser mais bem qualificado. A princípio, ao dizermos “despossessão”, queremos salientar a perda/alienação dos meios objetivos e subjetivos de produção da vida so-cial. É o processo de proletarização que constitui a condição de pro-letariedade e, por conseguinte, a “classe” do proletariado.

Entretanto, é importante salientar situações de “classe” que es-tão numa situação intermediária. O que significa que a despossessão é mediada por situações de posse às mais diversas. Isto é importante

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para o entendimento das situações de “classe intermediária” (ou de “classe média”), onde a proletarização não está posta efetivamente, mas tão-somente pressuposta em diversos graus. Uma teoria das pos-ses torna-se essencial para o entendimento dos obstáculos efetivos à consciência de classe e a constituição da classe do proletariado.

Por exemplo, há situações de grupos sociais ou estratos de tra-balhadores que embora não sejam proprietários dos meios de produ-ção, têm a posse destes meios ou instrumentos de produção da vida social. Este dado objetivo provoca um “deslocamento” no processo de subjetivação de classe, colocando obstáculos efetivos (ou virtuais) à constituição da consciência de classe proletária e, portanto, da sua identificação com a classe do proletariado. Isto vale não apenas para a chamada “pequeno-burguesia” clássica (por exemplo, pequenos camponeses, comerciantes e artesãos, que na medida em que o siste-ma mundial do capital se desenvolve não têm o controle da produção da vida, embora tenham a posse dos meios de produção), mas uma “nova pequeno-burguesia”, que surge com o desenvolvimento do capitalismo industrial. Embora eles não tenham a propriedade (ou o controle) efetiva da produção da vida social, têm a posse simbóli-ca dos meios (ou instrumentos) de produção. Isto é, embora sejam, em tese, trabalhadores assalariados, têm a posse de prerrogativas de mando/gerencia ou chefia e/ou ainda habilidades técnico-instru-mentais, posses que garantem determinados status ou prestigio na ordem social do capital (com contrapartida na capacidade aquisitiva ou renda monetária). No caso dos estratos técnico-especializados ou trabalhadores de “classe média”, por terem maior qualificação/com-petência tendem a incorporar como suposto “capital humano” tais atributos profissionais.

Nesse caso, a posse como obstáculo à constituição da consciên-cia de classe e, portanto, obstáculo à constituição da própria classe do proletariado, pode assumir um caráter simbólico-instrumental, atingindo parcelas amplas da “classe” do proletariado das indústrias e dos serviços.

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A dimensão simbólica da posse é dada não apenas pelas habili-dades técnico/cognitivas, mas, no limite, a posse de mercadorias de luxo que conferem status e prestigio a quem o possui. Na medida em que o mundo social do capital é uma “imensa coleção de mer-cadorias” e que o desenvolvimento da produção de mais-valia rela-tiva permite que uma parcela ampla do proletariado, em virtude da pressão organizada sindical e política, conquiste maior participação na riqueza social produzida como mercadorias e serviços, amplia-se o contingente do proletariado implicado na ordem simbólica da ideologia pequeno-burguesa, onde a posse das coisas tende a ocultar a condição de proletariedade e por conseguinte, tende a obstaculizar, sob determinadas condições, a constituição da classe do proletaria-do (ocorre um aburguesamento do proletariado).

A disseminação do fetichismo da mercadoria no bojo do capita-lismo industrial, marcado pela produção ampliada de riqueza social, é uma intensa “força gravitacional” que desloca o desenvolvimento da consciência de classe do proletariado, colocando amplos contin-gentes do mundo do trabalho despossuído no horizonte simbólico da ordem burguesa.

Na verdade, o desenvolvimento do capitalismo industrial cria uma aguda contradição entre condição de proletariedade, condição universal de homens despossuídos da propriedade e do controle dos meios de produção da vida social, e situações de consciência social impregnadas da ideologia pequeno-burguesa sob o estigma da posse como obstáculo decisivo à constituição efetiva da classe do proleta-riado (posse de poder e posse de dinheiro).

Ora, a luta suprema do capital é impedir o surgimento da classe do proletariado, a classe capaz de negar o estado de coisas existen-tes, caracterizado pela alienação do controle social (o problema do fetichismo). Negar a condição de proletariedade significa assumir as rédeas do controle social impregnado pela lógica da valorização do valor e do mercado.

Mesmo os trabalhadores “por conta própria” e os trabalhado-res “autônomos”, que aparentemente são proprietários dos meios de

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produção, não sendo considerados “proletários” no sentido estri-to da palavra, são homens e mulheres subalternos à ordem sócio-metabólica do capital, tendo em vista que não têm o controle da produção social nas condições de uma sociedade cada vez mais so-cializada. Em alguma medida, estão imersos na condição de proleta-riedade, embora a situação de propriedade lhe seja atribuída (a rigor, a propriedade se interverte em “posse”, tendo em vista que, mesmo como “proprietários”, possuem uma relação de subalternidade com o grande capital oligopólico, não tendo, portanto, o controle do mercado que os submete). Por outro lado, diante do “corpo social” de despossuídos do controle social aparece o capital em geral, cons-tituído pela oligopolização capitalista e seus agentes executivos (as personas do capital).

Portanto, pode-se distinguir gradações ontológicas (ou modos de efetivação) do proletariado como “classe” e proletariado como classe (sem aspas).

Ao dizermos “classe” do proletariado dizemos individualidades pessoais de classe imersas na “condição de proletariedade”. O proleta-riado como classe social propriamente dita pressupõe o movimento de classe em si/classe para si (ou para além-de-si na perspectiva da genericidade humano-genérica), e, por conseguinte, o movimento da consciência de classe (antes, pressupomos como formas de consciên-cia social, a consciência ingênua e a consciência critica). Por outro lado, a consciência de classe é uma forma de consciência crítica, que assume uma forma contingente e forma necessária.

trabalho estranhado condição de proletariedade

“classe” do proletariado

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Fenomenologia da classe e consciência de classe

Em síntese, podemos dizer que:A “classe” do proletariado e a “classe” da burguesia são os pólos

de classe fundamental do modo de produção capitalista. O primeiro pólo social é a classe expropriada/alienada dos meios de produção da vida. O segundo pólo social são os grandes proprietários dos meios de produção que acumulam riqueza através da mobilização (e explo-ração) da classe do proletariado.

Mas encontramos na sociedade burguesa um conjunto de “situ-ação intermediárias/excêntricas”:

Primeiro, a “classe” de pequenos e médios proprietários que ob-tém recursos por meio da exploração (de trabalhadores assalariados) e que compõem uma pequeno-burguesia proprietária. É uma “classe média” proprietária de estirpe tradicional.

Segundo, é importante discriminar a categoria de “nova classe média”, trabalhadores assalariados de “colarinho branco”/personas do capital, construção categorial sociologicamente exótica tendo em vista que implica o cruzamento de referentes da estrutura de classes/divisão social do trabalho e elementos da estratificação social (status, prestigio e renda) com derivações específicas no plano da consciên-cia social (quase-impossibilidade de consciência de classe).

“classe”

“em si”

consciência ingênua

para-si para-além-de-si

consciência de classe (contingente/necessária)

classe

consciência social

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Terceiro, é importante salientar a categoria de lumpen-proleta-riado, estrato/sedimento da “classe” do proletariado “desligado” das possibilidades de mobilidade social e consciência de classe por conta da imersão extrema na “condição de proletariedade”.

Trabalhadores por conta própria

No interior da “condição de proletariedade”, emergem ainda ou-tras formas de inserção de classe que não se confundem – e pelo con-trário – se distinguem da inserção operária ou empregatícia propria-mente dita (empregados industriais, de serviços ou administração pública). Por exemplo, são “trabalhadores por conta própria”, “tra-balhadores autônomos” ou ainda “trabalhadores empregados assala-riados gestores do capital” que embora estejam imersos na “condição de proletariedade” têm o pertencimento de “classe” (ou a consciência de classe) deslocada/obnubilada pela posse de habilidades técnico-profissionais ou prerrogativas de poder na gestão de coletivos de tra-balho. Esse “deslocamento” não invalida o “pertencimento de classe” embora o problematize. Eles pertencem à “classe” do proletariado, no sentido fraco do termo (usa-se aspas em “classe”).

Condição de proletariedade e classe do proletariado

É importante reiterar que estar imerso na condição de proleta-riedade não significa pertencimento, de imediato, à classe do pro-letariado como sujeito histórico antagônico ao capital (embora, o pertencimento objetivo crie possibilidades para o desenvolvimento efetivo da consciência de classe através da mediação de instituições político-culturais: sindicato socialistas e partidos de classe, etc).

Outro detalhe: a condição de proletariedade diz respeito a uma determinada relação social de produção alienada independente da forma material do processo de produção do capital. Ela diz respeito a

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operários de fábrica ou empregados públicos ou privados (trabalhado-res de colarinho-branco ou professores ou funcionários públicos).

Sentidos fraco e forte da categoria “classe social”

A categoria de classe social é fundamental para explicar/compre-ender a práxis social histórica de coletividades humanas na moder-nidade do capital. Na ótica marxiana, “classe social” é uma categoria moderna, elo fundante e fundamental da mudança histórica, “chave histórica” da transformação social na era da modernidade do capital. É a classe social do proletariado que Marx identificou como agente social da revolução socialista que “nega” o estado de coisas existente do capital. No plano epistemológico, desprezar a categoria de “classe social” seria renunciar a uma episteme crítico-transformadora.

A categoria de “classe social” em Marx possui um sentido fraco, isto é, classe social como condição sociológica e existencial de vida, dado estrutural da divisão social do trabalho na modernidade do capital. Nesse caso, ao falarmos “classe social”, tratamos de uma ca-tegoria eminentemente sócio-estatística.

O pertencimento de classe – no sentido estrutural – tem um sentido fraco e um sentido forte. O pertencimento de “classe” no sentido fraco é o pertencimento objetivo, meramente situacional na estrutura de classe e na divisão social do trabalho. Isto é, como não têm a propriedade dos meios de produção, pertencem à “classe” do proletariado. Em geral, a acepção de “classe” (com aspas) é utilizada nesse sentido economicista.

Por outro lado, “classe social” possui um sentido forte, ou seja, classe social implica consciência de classe e constituição do sujeito histórico coletivo em movimento. Nesse sentido, “classe social” é, como se qualifica, “social”.

O pertencimento de classe no sentido forte é o pertencimento subjetivo (e, por conseguinte, que remete a certa objetividade social) e que pressupõe algum grau de consciência de classe. Isto é, pode-se dizer, nesse sentido, só há verdadeiramente classe se houver cons-

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ciência de classe (classe como sujeito histórico, sujeito de práxis). Existem gradações para a consciência de classe, que é uma variável da contingência político-concreta.

Ora, a sociedade burguesa é, a rigor, a única sociedade social propriamente dita no sentido de maior divisão do trabalho social e intensidade objetiva dos laços sociais (o que explica, deste modo, o surgimento da teoria social ou teoria sociológica propriamente dita no século XIX, com o “social” possuindo um estatuto ontológico es-pecífico). Assim, só podemos falar de “classe social” no sentido forte nas sociedades do capitalismo histórico.

Condição de vida e classe social

A adoção do conceito de condição proletária ou condição de pro-letariedade não significa necessariamente um conceito ampliado de “classe trabalhadora” ou de “classe do proletariado”.

A condição não implica necessariamente pertencimento de clas-se (no sentido forte do termo, que é o sentido da práxis social). A “classe” do proletariado pode ser hoje objetivamente maior do que em qualquer época histórica do desenvolvimento da sociedade burguesa, mas pode-se dizer também que, por conta do complexo de fetichismos sociais e da crise dos partidos, sindicatos socialistas e da ideologia de classes, ela nunca esteve tão reduzida no sentido da efetividade políti-ca e social (o que não deixa de ser uma forma de objetividade social).

É está “invisibilidade” da classe do proletariado no interior da condição proletária estendida e intensamente efetiva, que explica a hegemonia do capital e a obnubilação da consciência de classe.

Classe social e sujeito histórico

A teoria do estranhamento implica questões de cunho praxeo-lógico ligadas à relação estrutura/agencia social. Na verdade, o pro-

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blema clássico do sujeito histórico é o problema da classe do prole-tariado, na medida em que a teoria da classe social do proletariado (e a rigor, só o proletariado é “classe social”) baseia-se no problema do sujeito histórico-coletivo (o que pressupõe consciência de classe como um tipo particular de consciência crítico-social). Só há sujeito se houver consciência critica, capaz de agir no mundo, transforman-do suas condições de vida.

Exploração, espoliação e opressão de classe

A teoria da exploração é uma teoria das condições estruturais no interior da qual se constitui (ou não) o sujeito histórico de classe. Ela diz respeito às determinações materiais essenciais da “condição de proletariedade”. A teoria da exploração implica conceber, como ele-mentos compositivos da dominação/acumulação do capital (como metabolismo social) a distinção exploração/espoliação/opressão.

A rigor, exploração significa expropriação sistêmica de exceden-te produzido pelos “trabalhadores produtivos” (no capitalismo, o ex-cedente aparece como mais-valia). Só os “trabalhadores produtivos” são explorados no sentido pleno da palavra, tendo em vista que só eles produzem mais-valia.

No caso de “trabalhadores improdutivos”, podemos qualificar o modo de dominação como opressão de classe ou ainda espoliação, que ocorre por meio de transferência/expropriação extra-econômi-ca (ou melhor, extra-sistêmica) de riqueza ou trabalho produzido pelos produtores.

Ao dizermos opressão tratamos da relação social de dominação entre homens (sujeito/sujeito) no interior do processo de produção/reprodução social. Pode-se tratar, por exemplo, de opressão de clas-se (ou dominação propriamente dita), opressão de raça ou ainda opressão de gênero.

Na verdade, o capital como relação social de controle do meta-bolismo homem/natureza e homem/homem, articula um complexo

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de dominação social baseado nos momentos de exploração/espolia-ção/opressão e dominação de classe.

Por exemplo: as mulheres trabalhadoras assalariadas ligadas à produção de valor na indústria ou serviços podem, ao mesmo tem-po, estarem inseridas em relações sociais de exploração, que ocorre nos locais de trabalho; e, ao mesmo tempo, em relações sociais de es-poliação, ao efetuarem, por exemplo, serviços domésticos do lar para seus maridos, operários ou empregados assalariados (o trabalho não-pago das mulheres do lar reduz o valor da força de trabalho do marido operário ou empregado, permitindo que o capital se aproprie de maior parcela de trabalho excedente – o que significa que, embora o trabalho do lar seja diretamente improdutivo, é deveras funcional à acumulação de valor); e finalmente, além de serem exploradas e espoliadas, as mulheres podem estar inseridas também em relações sociais de opressão de gênero no interior do lar, caso estejam envolvi-das em relações de gênero de cunho “machista”.

Enfim, o modo de ser do capital articula estas dimensões com-positivas da dominação sociometabólica do capital. Na “condição de proletariedade” articulam-se, portanto, exploração/espoliação e opressão, elementos objetivos que determinam a formação da classe e da consciência de classe.

Modos de dominação do capital

exploração espoliação

opressão

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Proletariado como trabalhadores assalariados

A “classe” do proletariado é – noutra acepção categorial – a “classe” dos trabalhadores assalariados, que é uma conceituação clássica de amplo significado desde que possamos apreender o sig-nificado ontológico de trabalho assalariado (na ótica da teoria do estranhamento).

Temos insistido em dizer que se pode falar em “proletariado”, mas isto não significa que se trata (ainda) de uma classe social. A rigor, como salientamos, trata-se de uma “classe” e não de uma classe social. Assim, o “proletariado”, no sentido de individualidades pes-soais de classe imersas na “condição de proletariedade”, são os traba-lhadores assalariados, “classe em inércia” que aparece na exposição de “O Capital” (de Karl Marx).

A classe dos trabalhadores assalariados ou a “classe” do proleta-riado não remete à distinção “trabalhadores produtivos” ou “traba-lhadores improdutivos”, que diz respeito à outra coisa, ou seja, à di-nâmica de acumulação de valor (um elemento da objetividade social da dinâmica do modo de produção).

Enquanto os trabalhadores assalariados são uma categoria so-cial ampla, incluindo, por exemplo, dentro de si os trabalhadores “autônomos”, os trabalhadores produtivos são uma categoria social de classe mais estrita. Como observa Marx (no “Capítulo VI Inédito de O Capital”), “todo trabalhador produtivo é assalariado, mas nem todo assalariado é trabalhador produtivo”.

Deste modo, a classe dos trabalhadores assalariados significa a “classe” do proletariado propriamente dito, constituída por “traba-lhadores produtivos” e “trabalhadores não-produtivos”.

Hoje, mais do que nunca, a “classe” do proletariado como classe dos trabalhadores assalariados, aparece no processo de produção do capital, como “trabalhador coletivo”, no interior do qual se articu-lam trabalhadores manuais e trabalhadores não-manuais, ou ainda trabalho material e trabalho não-material, etc.

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O “trabalhador coletivo”

O “trabalhador coletivo” é o agente real do processo de trabalho total, “máquina produtiva total” constituída por diversas capacidades de trabalho que “participam de maneira muito diferente no processo imediato da formação de mercadorias, ou melhor, de produtos”.

Diz Marx: “Este trabalha mais com as mãos, aquele trabalha mais com a cabeça, um como diretor (manager), engenheiro (engineer) ou técnico, etc. outro como capataz (overloocker); um outro como ope-rário manual direto, ou inclusive como simples ajudante – temos que mais e mais funções da capacidade de trabalho se incluem no con-ceito imediato de trabalho produtivo, e seus agentes no conceito de trabalhadores produtivos, diretamente explorados pelo capital e su-bordinados em geral a seu processo de valorização e de produção.”

E ressalta: “Se se considera o trabalhador coletivo [...] é absoluta-mente indiferente que a função de tal ou qual trabalhador – simples elo deste trabalhador coletivo – esteja mais próxima ou mais distante do trabalho manual direto.”

Ao tratar do “trabalhador coletivo”, Marx trata da morfologia social da produção do capital cujo trabalho produtivo tende a ser mais amplo do que o trabalho manual direto. Na verdade, o trabalho produtivo no capitalismo, a rigor, tende a se ampliar ao invés de se re-duzir. A máquina de produção de mercadorias, máquina produtiva total, articula hoje, o espaço global, por meio de atividades combina-das para além da fábrica.

trabalho estranhado

trabalho assalariado

Subordinação/subsunção do trabalho ao capital

(formal, real, ideal)

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Trabalho por conta própria e subsunção ideal do trabalho ao capital

Os trabalhadores assalariados, da qual fazem parte trabalhadores produtivos e trabalhadores não-produtivos, ampliam-se, na medida em que se desenvolvem as relações de subsunção real (e formal e mes-mo, ideal) do trabalho ao capital – existem relações que não se sub-sumem realmente ao capital, como no caso do trabalhador por conta própria; mas, segundo Marx, se subsumem idealmente (idealiter).

Diz Marx: “O trabalhador autônomo (selfemploying labourer), como exemplo, é seu próprio assalariado; seus próprios meios de produção se lhe representam como capital. Na condição de capita-lista de si mesmo, auto-emprega-se como assalariado” (“Capítulo VI Inédito de O Capital”).

É claro que as relações de subsunção ideal do trabalho ao capital são “anomalias” que compõem a totalidade concreta dos trabalhado-res assalariados na sociedade capitalista.

Deste modo, trabalho assalariado significa, em si, trabalho estra-nhado sob a forma capitalista, que é, acima de tudo, trabalho subal-terno (formal, real ou idealmente) à relação-capital, implicado, direta ou indiretamente, em exploração, espoliação e opressão de classe.

A subalternidade/subalternização/assujeitamento do “homem que trabalha” nas condições do salariato pode assumir então, um modo real (objetivado no sistema de máquina), um modo formal (ob-jetivado no contrato de trabalho) ou um modo ideal (objetivado em relações de subalternidade sistêmica às disposições do controle so-ciometabólico do capital).

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Formas da Subalternidade/Assujeitamento do trabalho Vivo ao Capital

Modo real (objetivado no sistema de máquinas)

Modo formal (objetivado no contrato de trabalho)

Modo ideal (objetivado no controle sociometabólico do capital)

Trabalho produtivo como forma social

Deve-se ressaltar que o trabalho produtivo diz respeito à forma social e não à forma material (é produtivo, como diz Marx, o traba-lhador assalariado que – no sistema de produção capitalista – produz mais-valia para o empregador, podendo ser um escritor, cantor ou mestre-escola). Nesse caso, os empregados produzem uma mercado-ria – intangível, é claro – mercadoria como unidade de valor de uso e valor de troca.

Para Marx, todo trabalho produtivo se objetiva em mercado-ria, objetivação que, cabe ressaltar, pode ser tangível ou intangível (o que permite que o capital crie espaços de valorização em setores de serviços) e que aparece como meio para a produção de mais-valia (D-M-D’).

Dizer que um trabalhador é “produtivo” não se trata afirmar um julgamento de valor moral – o termo “produtivo” em Marx é estritamente um termo de objetividade social. Durante muito tempo, o viés do marxismo economicista tendeu a vincular “trabalhadores produtivos” com “classe operária revolucionária”, desprezando-se, deste modo, os trabalhadores não-produtivos (ou improdutivos) como incapazes de serem efetivamente sujeitos históricos- coletivos da revolução social.

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Ora, a discussão de “produtivos” e “improdutivos” diz respei-to apenas à dinâmica da acumulação de valor, não se relacionando diretamente com a práxis sócio-política e histórica do proletariado como suposta “classe revolucionária”.

Assim, a “classe” do proletariado não é constituída apenas pelos trabalhadores produtivos. A revolução social é um ato histórico con-tra o estranhamento e o trabalho estranhado (o que remete à dimen-são do salariato em geral e não apenas à dimensão da produção de valor onde estão implicados os trabalhadores produtivos).

No plano da práxis histórica, o que conta é a inserção de trabalho estranhado (e estranhamento) que caracteriza o trabalho assalariado. Por isso, ao discutir trabalho produtivo/improdutivo, Marx não discute a práxis social e, portanto, não pode discutir “classe social”, e, por conse-guinte, proletariado (que remete a rigor à práxis social emancipadora).

Formas de ser da “classe” do proletariado

Podemos discriminar na proletariedade moderna, a proletarie-dade extrema (que inclui inclusive o lumpen-proletariado) e a prole-tariedade regulada (que cresceu com a abrangência do estatuto sala-rial regulado pelo Estado social), etc.

Além disso, a condição de proletariedade diz respeito às seguin-tes posições de “classe”:

proletários operários e empregados1. privados ou públicos imer-sos em relações de trabalho assalariado, produtores (ou não) de valor. É o conjunto dos trabalhadores assalariados propria-mente ditos. A categoria de salário é uma categoria efetivamen-te política, no sentido pleno da palavra, pois implica subordina-ção do trabalho ao capital, seja ele produtivo ou improdutivo. Expressa uma relação de poder no processo de trabalho, poder estranhado do capital ou do Estado político como sua determi-nação reflexiva (deste modo, operário, empregados e funcioná-rios públicos são trabalhadores assalariados).

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Um detalhe: os 2. proletários ligados a atividades de traba-lho contratual/emprego na esfera pública, configurando-se como “funcionários públicos” ou operários/empregados de empresa estatal ou pública. Nesse caso, a consciência de classe pode ser (ou não) “deslocada/obnubilidada” pela vin-culação salarial com instancia do anti-valor. Dependendo de condições da contingência política, a proletariedade dos funcionários públicos, conduzidos por uma direção política de classe, pode torná-los aliados estratégicos do proletariado do setor privado. O fenômeno do corporativismo, alimenta-do pelo fetiche do Estado, em geral, desloca a alcance desta consciência de classe. A constituição das instâncias do anti-valor ocorre nas atividades de produção (indústria ou ser-viço) de riqueza ligadas ao controle estatal ou público e que diz respeito à gestão do fundo público. Há uma produção de excedente que não assume a forma social de mais-valia, tendo em vista que a apropriação não é privada ou mediada pela lei do valor (mercado). A condição proletária de tra-balhadores ligados às atividades gestadas a partir do fundo público assume uma forma particular, tendo em vista que o operário ou empregado (funcionário público) não se encon-tram diante de um capitalista privado, mas sim de um ges-tor do capital social (apesar disso, enquanto houver Estado político, isto é, um ente estranho, há capital, o que implica a efetividade da condição de proletariedade).proletários “deslocados”3. em sua consciência de classe pela posse de habilidades técnico-profissional/meios de trabalho/prerrogativas de poder/controle/gestão (no caso de alguns proletários operários e empregados privados ou públicos) e deslocados/obnubilados por quaisquer formas de fetiche, como o fetiche da mercadoria/fetiche do dinheiro, inclusive bens patrimoniais e de consumo ostentatório.proletários desempregados4. com auxilio (ou não) de progra-mas sociais estatais. Em geral, têm consciência aguda da

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condição de proletariedade, embora ela não se traduza ne-cessariamente, em si e para si, como consciência de classe.

Trabalho, proletariado e proletarização

Por que não podemos fundar a teoria do proletariado na catego-ria de trabalho como categoria ontológica (como faz, de forma equi-voca Sergio Lessa em seu livro “Trabalho e proletariado”)?

Primeiro, porque a categoria de proletariado no sentido moder-no – possui outro nível de abstração (em comparação com a cate-goria trabalho – no sentido ontológico), exigindo, deste modo, um complexo de mediações concretas.

A categoria de proletariado na modernidade do capital remete à “condição de proletariedade”, dimensão histórico-existencial que se constituiu com o processo de proletarização do trabalho do camponês, servo ou artesão, que mantinham algum grau de controle das condi-ções objetivas (e subjetivas) do processo de produção da vida social.

A proletarização moderna significa a perda de controle de tais condições objetivas (e subjetivas) da produção da vida social sob mo-dernidade do capital. Ela instaura a condição do salariato ou condi-ção de proletariedade.

O processo de proletarização, processo histórico irremediável da modernidade do capital, que se desdobra há séculos, cria e amplia as bases da proletariedade moderna, marcada pelo trabalho estranhado sob a forma histórica do trabalho assalariado.

Processo de proletarização e precarização de classe

Tratamos do processo de proletarização como sendo o movi-mento sócio-histórico estrutural que cria as bases materiais da “con-dição de proletariedade”. Nascemos proletários – o que não significa

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que pertençamos à classe do proletariado no sentido pleno da palavra “classe”.

Mas há aqueles que possuem algum controle sobre os meios de produção da vida social. Nesse caso, eles pertencem objetivamente, em maior ou menor grau de efetivação, a outra “classe” no sentido de condição de existência (“pequeno-burguesia” ou efetivamente “bur-guesia”, segundo múltiplas gradações).

Pode-se entender a perda (absoluta ou relativa) do controle dos meios de produção da vida como sendo um processo gradativo e con-tínuo. Esta é uma dimensão sistêmica do processo de proletarização.

Na verdade, o capitalismo como sistema cria constantemente as condições materiais de sua própria reprodução social – as “condições de proletariedade”, em maior ou menor espectro, é a principal delas.

O capitalismo possui dois processos histórico-estruturais de ca-ráter sistêmico:

A 1. proletarização, que cria (e recria) a “condição de proleta-riedade”, base existencial da “classe”/classe do proletariado.A 2. precarização da classe, processo estrutural que, por um lado, (A) atinge a “classe em si/para si” (configurando-se como ofensiva do capital que “desestrutura” a dimensão de classe propriamente dita); e por outro lado, (B) aparece como experiência vivida e percebida de frações particulares da “classe”. O que significa que embora a precarização seja um elemento estrutural da classe como um todo (seja objeti-vamente ou subjetivamente, no sentido de sujeito histórico-coletivo), a experiência vivida e percebida da precarização é um elemento específico-singular de determinadas frações de classe ou categoriais geracionais ligadas a processos his-tóricos efetivos de perda de direitos e conquistas sociais e políticas de categoriais de trabalhadores assalariados (o que permite, por exemplo, maior visibilidade dos atributos da “condição de proletariedade”, além de expor a matéria so-

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cial possível de formação da consciência de classe e da classe como sujeito histórico coletivo).

Em seu movimento histórico, a precarização de classe tende a constituir (e desconstituir) formas de precariedade salarial. Por exemplo, nos últimos trinta anos, a precarização de classe sob o ca-pitalismo global tendeu a instaurar uma nova forma de precariedade salarial de natureza toyotista-neoliberal.

Elementos categoriais do movimento da

“classe”/classe do proletariado

proletarização

precarização de classe

Experiências de precarização

Formas de precariedade salarial

Propriedade e controle da produção da vida social

Os “trabalhadores livres” ou trabalhadores assalariados, homens (e mulheres) que trabalham sob condições objetivas (e subjetivas) de subalternidade/assujeitamento à relação-capital, em maior ou menor grau de efetivação, estão imersos na “condição de proletariedade”, condição social-material (e universal) da existência humana sob a modernidade do capital.

Deste modo, os proletários estão alienados da propriedade dos meios de produção da vida social, alienação que funda a “condição de proletariedade” a partir da qual se pode (ou não) constituir a classe social do proletariado.

Mas vejamos o significado de ser (ou não) proprietário dos meios de produção da vida social, ou ainda, possuir (ou não) a proprieda-de dos meios de produção (nesse caso, a idéia de propriedade social

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implica controle do processo de acumulação e processos sociais sis-têmicos):

Na medida em que, sob o capitalismo monopolista, ocorre ob-jetivamente a socialização da produção social, ocorrem alterações no significado da categoria de propriedade dos meios de produção da vida material.

Muitas vezes, ter a propriedade – no caso de pequenos e médios capitalistas – não significa ser efetivamente, proprietário dos meios de produção da vida social, na medida em que a produção da vida social tende a ser determinada, em maior ou menor medida, pelo capital oligopólico, força hegemônica – dirigente da máquina produ-tiva total.

O que significa que mesmo “proprietários individuais” de meios de produção (pequenos e médios proprietários) podem ser conside-rados, em alguma medida, efetivamente “alienados” da propriedade dos meios de produção social, tendo em vista que estão “subalternos” à dinâmica de acumulação de valor ditada pelos grandes blocos de capital sob a propriedade de sociedades anônimas. A perda relati-va de controle por parte de alguns pequenos e médios proprietários acusa algum grau de “alienação” e, portanto, uma inserção “exótica” (ou anômala) na “condição de proletariedade”.

Como salientamos acima, a idéia de propriedade pressupõe a idéia de controle, embora o contrário não seja verdadeiro. Isto é, pode-se ter algum controle (ou posse) e não ser proprietário; o que significa que, aquele que tem a posse paga uma renda ao proprietário que obtém, deste modo, rendimentos do capital (isto é, o proprietá-rio aluga um ativo, auferindo renda – ele é proprietário, embora não tenha a posse).

No caso de quem tem a posse – e não a propriedade – pode-se dizer também que pode auferir renda do ativo que se possui (caso não haja exploração da força de trabalho de outrem, considera-se, nesse caso, “rendimentos do trabalho”; caso haja exploração da força de trabalho de outrem, aparece como “rendimento do capital”).

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A Condição de Proletariedade na Modernidade Salarial

Ora, ter a propriedade significa possuir a prerrogativa de apro-priar-se dos rendimentos de determinados ativos (títulos ou ações, por exemplo); e ter o poder de decisão sobre os investimentos do em-preendimento representado pelo titulo ou ação. Enfim, propriedade implica a prerrogativa de auferir renda e ter o controle estratégico do ativo (caso se alugue o ativo em troca de um rendimento, pode-se regulamentar o compartilhamento do controle com aquele que detém a posse).

Portanto, capitalista é aquele que, além de obter rendimento de ativos adquiridos a título de investimento (o que significa implicá-lo direta ou indiretamente com a exploração/espoliação/opressão da força de trabalho) – no caso da empresa moderna, o possuidor de ações com poder majoritário nas decisões de investimento da em-presa), possui o poder de decisão sobre investimentos.

Pode-se ser pequeno, médio e grande capitalista. Embora o pe-queno e o médio capitalistas obtenham rendimentos de seus ativos, tendo, de certo modo, o controle estratégico de seus investimentos, nas condições do capital concentrado, o controle estratégico está, cada vez mais, subordinado aos interesses do grande capital concentrado. Eles tornam-se assim, “servos” do capital oligopólico, inclusive com parte de seu rendimento de capital sendo expropriado (ou sugado) pelo capital concentrado (hoje, predominantemente, sob a forma de capital financeiro). Nesse caso, eles são espoliados (e não explorados) pelo capital concentrado.

Entretanto, nas condições de hegemonia do capital monopólico, o que ocorre é a associação dos pequenos e médios capitais com o grande capital, não se verificando, em geral, conflitos de interesse de maior monta. Na verdade, a pequena e média burguesia como personas do capital tornam-se sócios menores de empreendimentos do grande capital financeiro.

Outro ponto de discussão: a natureza dos ativos tendem a diver-sificar-se sob as condições do capitalismo global, abrindo um leque de opções de formas de propriedade de ativos capazes de auferir ren-dimentos de capital. Por exemplo, podemos discriminar entre ativos

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produtivos, lastreados nas prerrogativas de propriedade de meios de produção que exploram diretamente a força de trabalho; e ainda, ati-vos de capital financeiro, forma “exótica” que dizem respeito a ativos de capital especulativo-parasitário (por exemplo, títulos públicos, ações e moedas), que auferem rendimentos de natureza especulativa (embora, em última instancia, estejam lastreados na produção pro-priamente dita, etc).

Mas, se sob certas condições de singularidade social, pequenos e médios capitalistas tendem a se inserir (como anomalia), em alguma medida, na “condição de proletariedade” (pelo menos, incorporando alguns atributos existenciais da condição de proletariedade, como, por exemplo, a vida contigencial e deriva pessoal, etc), sem terem se tornado, é claro, “proletários” propriamente dito; o trabalhado as-salariado, na medida em que se torna trabalhador “autônomo”, isto é, “patrão de si mesmo”, possuindo “ativos técnico-profissionais”, vistos como “propriedade de si” a partir do qual auferem um rendi-mento do trabalho, tende a inserir-se, em alguma medida, na condi-ção de “capitalista”, sem tornar-se, é claro, capitalista. Deste modo, obnubila-se, de forma intensa, sua condição de proletariedade, na medida em que o trabalhador assalariado “autônomo” (uma contra-dição em termos), o dito “patrão de si mesmo”, está objetivamente – muitas vezes sem o saber – subalterno à dinâmica do capital oli-gopólico, tanto quanto o pequeno e médio capitalista. Nesse caso, como temos salientado, trata-se de “situações exóticas” à estrutura de classe propriamente dita, onde adquire força heurística a dimen-são da estratificação social (status, prestígio ou renda).

O movimento de centralização e concentração do capital tende a ampliar, em si, tanto a “condição de proletariedade”, quanto a né-voa ideológico-espectral da condição de trabalhadores “capitalistas” como empreendedores “autônomo” que auferem rendimentos de ativos de trabalho propriamente dito (vide ideologia do empreende-dorismo), mas que são, na verdade, agentes “autônomos” da subal-ternidade/subsunção estrutural do trabalho ao capital (a ideologia

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A Condição de Proletariedade na Modernidade Salarial

oculta o traço estrutural da subalternidade que marca a “condição de proletariedade”).

Na medida em que o capital amplia e intensifica a “condição de proletariedade”, as formas de fetichismos sociais impedem – e colo-cam obstáculos significativos – à consciência de classe. A luta política de classe é a luta para superar os fetiches como obstáculos sociais. O estudo das múltiplas formas de fetichismo social torna-se importante na elaboração de estratégias de formação de classe.

Finalmente algumas brevíssimas palavras sobre a forma-partido e a classe social: a função ontológica da forma-partido (e sindicato) socialista é formar a classe (no sentido de sujeito histórico coletivo, único agente social moderno capaz de transformação social na era da modernidade do capital) no interior da condição proletária uni-versal (o que exige levar em consideração o complexo de situações concretas de proletariedade). Trata-se de uma necessidade ontoló-gica da formação da classe conduzida por uma instância/processo político-teleológico “exterior” à dinâmica da pseudo-concreticidade no qual estão imersos os proletários como “classe”.

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Estranhamento e fetichismo socialNotas teórico-críticas

Buscaremos é esclarecer o significado das categorias de estra-nhamento e fetichismo social. Nossas reflexões teórico-criti-cas são desenvolvidas a partir do arsenal categorial marxiano,

embora não se reduza a ele. O que apresentamos é uma contribuição autoral à uma teoria critica do capital como relação social de produ-ção e modo de controle estranhado do metabolismo social.

Primeiro, distinguimos trabalho estranhado de estranhamento propriamente dito (ou vida social estranhada). No Terceiro Manus-crito dos “Manuscritos de Paris” (1844), Karl Marx trata do “tra-balho estranhado”, embora já demonstrasse, naqueles escritos de juventude, que trabalho estranhado implica em vida social estra-nhada. O último capítulo da “Ontologia do Ser Social”, de Georg Lukács se intitula “O estranhamento”. O velho Lukács busca tratar principalmente de fenômenos sociais que dizem respeito à instân-cia da reprodução social, embora não deixasse de reconhecer que o pressuposto estrutural do estranhamento é o trabalho estranhado propriamente dito. Assim, enquanto o trabalho estranhado pertence à instancia da produção social, instância-base da vida social, a vida estranhada ou estranhamento (e fetichismos) são elementos catego-riais das instâncias da reprodução social ou da esfera da circulação das mercadorias.

O trabalho estranhado (“Entfremdung Arbeit”, em alemão) é a forma estrutural originária da vida social estranhada das sociedades de classe, marcada por estranhamentos que perpassam seu metabo-lismo social obstaculizando o desenvolvimento humano-genérico das individualidades pessoais de classe. No caso da sociedade bur-

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guesa, sociedade mercantil de classe historicamente mais desen-volvida, a vida social é constituída por um complexo fetichizado de formas sociais estranhadas ou fetiches (produto-mercadorias, insti-tuições, valores/ideologias sociais). Assim, a vida cotidiana na socie-dade burguesa está permeada de fetichismos e fetichizações sociais, que são formas sociais estranhadas, marcadas por estranhamentos coisais que aparecem como elementos estruturais (e estruturantes) da reprodução sócio-metabólica do capital. O fetichismo da merca-doria – vale salientar – é a forma embrionária primordial (ou origi-nária) do complexo de fetichismos sociais que permeiam a sociedade burguesa; diria Marx, “a forma mais simples”, a partir da qual se derivam outras formas de fetichismos sociais.

Fetichismo

Estranhamento

Trabalho Estranhado

Assim, estranhamento e fetichismos representam formas deriva-das que possuem legalidades qualitativamente novas e distintas de seus fenômenos fundantes originários: o estranhamento, derivado ontologicamente do trabalho estranhado; e os fetichismos sociais, derivado ontologicamente do fetichismo da mercadoria e da forma-mercadoria que constitui a instância dos intercâmbios sociais nas sociedades mercantis complexas.

Portanto, podemos dizer o seguinte:1. O estranhamento diz respeito às formas sociais (produtos e

objetivações sociais, tais como instituições ou valores/ideologias so-ciais) que obstaculizam o desenvolvimento do ser genérico do ho-

Reprodução social

produção

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Estranhamento e fetichismo social – Notas teórico-críticas

mem. Nas sociedades históricas baseadas no trabalho estranhado, isto é, o trabalho organizado sob a apropriação privada da riqueza social e a divisão hierárquica do trabalho, tende a constituir-se e dis-seminar-se – nas instâncias do metabolismo social – formas sociais estranhadas que instauram fenômenos do estranhamento.

Deste modo, a base sócio-ontológica do complexo societal do estranhamento, como salientamos acima, é o trabalho estranhado. O primeiro é forma derivada complexa do último, o trabalho estra-nhado. Trabalho estranhado implica em vida social estranhada (o que significa a constituição, no plano sociológico, do complexo de estranhamentos vinculados às instituições e valores/ideologias so-ciais dominantes).

O capital é a relação social de produção que instaura o trabalho estranhado; e o modo estranhado de controle do metabolismo social na qual se baseia a extração do sobretrabalho humano. O Estado politico do capital é a instituição social estranhada de primeira or-dem, que organiza a dominação de classe nas sociedades históricas baseadas no trabalho estranhado. A própria atribuição de classe, que para as individualidades pessoais é quase como um destino, é uma dimensão estranhada da vida social.

2. O estranhamento caracteriza todas as sociedades históricas de classe, sociedades humanas divididas entre explorados e explorado-res. O que significa que o estranhamento é um fenômeno societário que antecede historicamente o capitalismo como modo de produção; e pode sucedê-lo, por exemplo, nas experiencias pós-capitalistas, onde, apesar de se abolir o capitalismo, não se abole o capital como relação social de produção e modo de controle do metabolismo social.

3. As sociedades burguesas ou sociedades capitalistas propria-mente ditas são sociedades mercantis complexas, caracterizadas pelo predomínio da forma-mercadoria na organização da vida social. A cotidianidade do mundo burguês é, como observou Marx, uma imensa coleção de mercadorias. A forma-mercadoria aparece como a forma embrionária da sociabilidade capitalista. Assim, mercado-

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ria e dinheiro (como mercadoria das mercadorias) são formas sociais constitutivas do metabolismo social das sociedades burguesas.

A questão que se coloca é a seguinte: como o estranhamento, que marca as sociedades de classe (e as sociedades burguesas capi-talistas são as sociedades de classe historicamente mais desenvol-vidas), aparece – em sua particularidade sócio-histórica concreta – nas sociedades burguesas?

O estranhamento como fenômeno social historicamente deter-minado das sociedades humanas baseadas no trabalho estranhado assume formas societais particulares-concretas em cada formação social de classe. Por exemplo, o estranhamento na Antiguidade as-sumia forma societal diferenciada do estranhamento sob o Feuda-lismo. O modo estranhado de controle do metabolismo social ou dominação de classe era diferenciado em cada formação societal.

O importante a salientar – e o que Marx buscou explicitar na seção “O fetiche da mercadoria e seu segredo” (no livro 1 de “O Capi-tal”) – é que, sob o modo de produção social capitalista, o estranha-mento assume uma forma social fetichizada (o que não ocorria nas sociedades pré-capitalistas). Por exemplo, enquanto a corvéia, que era a forma de extração do sobretrabalho no feudalismo, era bastan-te translúcida (o camponês tinha clareza da sua exploração); a mais-valia, a forma de extração do sobretrabalho no modo de produção capitalista, é deveras opaca e intransparente (ora, foi preciso a força critico-dialética da ciência histórica de Karl Marx para desvelar os mecanismos da acumulação do capital e esclarecer a categoria de mais-valia).

A fetichização do estranhamento social decorre da própria natu-reza das sociedades burguesas, ou seja, elas são sociedades mercantis complexas cujo metabolismo social estranhado é organizado pela forma-mercadoria.

Na medida em que a forma-mercadoria constitui uma determi-nada forma de aparição social ou modo de objetividade social deno-minado fetichismo – cuja forma originária é o fetichismo da merca-

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Estranhamento e fetichismo social – Notas teórico-críticas

doria – ela tende a “encapsular” as formas estranhadas, tornando-as opacas e intransparentes.

Deste modo, o fetichismo é uma forma de aparição social dos produtos/objetivações sociais estranhadas sob o capitalismo como sociedade mercantil complexa. Eles aparecem como produtos, insti-tuições e valores sociais opacos e intransparentes, recalcitrantes ao controle social e exteriores – no sentido de coisas – aos homens e mulheres proletários.

Na medida em que o fetiche da mercadoria oculta um “segre-do” – ser produto da atividade social do trabalho humano – a for-ma-mercadoria, eixo estruturante do ser social capitalista, quando se dissemina e constitui, de forma mediada, o metabolismo social, tende a impregnar, com o fetichismo da mercadoria, não apenas os produtos-mercadorias, mas as objetivações sociais (instituições e va-lores/ideologias sociais) que, por derivação sistêmica, constituem o metabolismo social da sociedade burguesa.

Como salientamos acima, o fetichismo da mercadoria é a forma embrionária do complexo de fetichismos sociais que permeiam a so-ciedade burguesa. O que significa que temos outras formas sociais fetichizadas nas sociedades burguesas, como o fetichismo do Estado, fetichismo do dinheiro e sistema financeiro, fetichismo da técnica como tecnologia, etc.

A natureza do fetichismo social como forma de objetividade so-cial é ocultar/obnubilar a raiz social das coisas, isto é, “negar” – no plano da consciência social – o próprio homem que trabalha. Uma sociedade fetichizada – como a sociedade burguesa – tende a ocultar o fundamento ontológico do ser social capitalista: o trabalho huma-no e a forma social estranhada que o constitui (a relação-capital).

O que diferencia – ontologicamente – o estranhamento social das sociedades burguesas em relação às sociedades pré-capitalistas (e inclusive, sociedades pós-capitalistas) é que o complexo de for-mas sociais estranhadas nas sociedades burguesas possui uma densa crosta (ou “ganga mística”) de fetichismos que ocultam sua natureza estranhada.

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Deste modo, o fetichismo social – cujo embrião primordial mais simples é o fetichismo da mercadoria – é um modo de aparição social das coisas (ou fenômenos sociais), isto é, uma forma de ser da obje-tividade social.

O fenômeno do fetichismo social – na medida em que qualifica uma atividade social estranhada – pressupõe uma determinada rela-ção sujeito-objeto, tanto no plano da produção, quanto da reprodu-ção social, onde o objeto que se tornou coisal (isto é, alienado do pro-dutor), tende a “negar” o sujeito humano, intervertendo-o em agente social. O sujeito torna-se mero agente sistêmico ou funcionário da modernidade do capital.

Portanto, eis um traço ontológico da fetichização social que ca-racteriza as sociedades burguesas: “negar” o estatuto do sujeito hu-mano histórico-coletivo, desconstituindo a práxis sócio-humana. A fetichização do estranhamento social é uma sobrecarga de desefetiva-ção humano-genérica (o que explica a problemática da práxis eman-cipadora e a reiteração da relação-capital nas sociedades mercantis complexas no decorrer do século XX). Diríamos que a fetichização é o mais-estranhamento que se constitui nas condições de uma socie-dade mercantil complexa, sociedade de classe baseada no trabalho estranhado e organizada pela relação-capital como sistema sócio-metabólico.

Na medida em que as sociedades burguesas são sociedades do fetiche – por derivação sistêmica da forma-mercadoria que constitui as relações sociais – todas as objetivações sociais (instituições sociais e valores/ideologias) – e não apenas os produtos-mercadorias – ten-dem a ser fetichizadas, isto é, ocultarem, em si e para si, sua origem histórica humano-social, impregnando-se, assim, de uma dimensão metafisica (Marx diria, “coisas metafisicas sociais”) – as objetiva-ções sociais se tornam uma imensa coleção de coisas exteriores que exercem uma coercitividade social sobre homens e mulheres que tra-balham.

Portanto, as coisas sociais podem ser não apenas produto-merca-dorias que nos seduzem nas vitrines das lojas de departamento, mas

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Estranhamento e fetichismo social – Notas teórico-críticas

instituições que nos coagem com suas normatividades reiterativas ou ainda valores-fetiches/ideologias que se impõem sobre desejos e expectativas humanas. Tratam-se de “coisas sociais metafisicas” que constituem as sociedades burguesas como sociedade da metafisica social e que se impõe – em geral de forma sub-reptícia, aos homens e mulheres que trabalham.

O conteúdo estranhado das “coisas metafisica sociais” está ocul-to, intransparente e impessoal – portanto, distante de cada um de nós (o fetichismo tende a criar um distanciamento entre o homem e as coisas ou entre o homem e outros homens e ainda, entre o homem e si mesmo, explicitando, deste modo, sua dimensão estranhada).

Com o fetiche social, outra natureza se impõe quase que de forma religiosa. O que quer dizer que o fetichismo social, como a forma social de explicitação da alienação do homem que trabalha nas sociedades mercantis complexa, repõe (e expõe) de modo mais desenvolvido, e quase pleno, a analogia clássica que Marx (e Feuer-bach) fez entre alienação e religião. Na verdade, o fetiche social é um quase-deus – o Deus da “sociedade do ateísmo” – que oculta/inverte/perverte a natureza social do ser genérico do homem (por exemplo, o dinheiro é a explicitação luminosa do fetiche social). Na verdade, o fetiche social é a projeção estranhada (e invertida) da humanidade social. Sob a “crosta ideológica” e a “ganga mística” do fetiche social oculta-se o trabalho social humano.

Na medida em que o fetichismo é um modo de objetividade social, ele também é – do mesmo modo – uma dimensão da subjetividade (e intersubjetividade) social. Deste modo, pode-se tratar não apenas do fetiche social como “estrutura” ou “coisas metafisicas sociais” que se impõe como exterioridades estranhadas, mas deve-se tratar da fe-tichização como processo social que tende a negar o sujeito huma-no-genérico sob as condições sociais do mundo das mercadorias. O processo de socialização nas sociedades burguesas é um processo de fetichização. Assim, a sociedade burguesa é não apenas a “sociedade do fetiche”, mas também a “sociedade da fetichização”, tendo em vis-ta que constitui (e reconstitui) continuamente processos de dessub-

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jetivação de classe (o modo de reprodução social das sociedades do capital é um processo de produção dos fetichismos sociais).

Formas do Fetichismo Social

Opacidade e intransparencia

Impessoalidade e Abstratividade

Forma-imagética e Distanciamento

Coisidade e exterioridade

Descontrole e alienação

Manipulação e Auto-Engano

Como a forma-mercadoria e suas formas derivado-sistêmicas ocultam/obnubilam – no sentido ativo – a formação da consciência de classe e, portanto, a constituição objetiva da classe social dos ho-mens que trabalham, sujeitos histórico-coletivos da emancipação social, elas corroem e negam tendencialmente – embora nunca abso-lutamente – a práxis social emancipadora.

O que significa que ao tratar do fetiche da mercadoria e seu se-gredo, Marx discute o problema da praxis social em sociedades mer-cantis complexas onde está posto não apenas o trabalho estranhado/estranhamento, mas sua crosta fetichizada. Marx coloca elementos essenciais para discutirmos o problema da formação da consciência de classe/consciência radical ou subjetivação de classe em sociedades mercantis complexas. O tema do fetiche da mercadoria e seu segredo remetem, assim, ao problema da formação da classe social como su-jeito histórico-coletivo de transformação social.

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Estranhamento e fetichismo social – Notas teórico-críticas

Na verdade, perguntemos: o que oculta/obnubila a consciên-cia social radical (no sentido de “consciência que vai até a raiz das coisas”, raiz que é o próprio homem e suas relações sociais)?

Ora, a objetividade social – e o fetichismo social é um modo de aparição predominante da objetividade social – é também, como sa-lientamos acima, uma forma de ser de intersubjetividade social, isto é, um modo (ou forma de ser) de relações sociais entre homens e mulheres, uma teia de intercâmbios mediados por objetivações so-ciais (produtos-mercadorias, instituições e valores/ideologias) que externalizam, através do processo de reprodução social (ou proces-so de socialização), relações sociais de poder, opressão, dominação, controle e manipulação de classe. O fetichismo social é, portanto, um processo de fetichização complexo, contraditório e inscrito na contingencia da política.

O mais importante ato histórico-politico do processo de eman-cipação social é o processo de desfetichização do fetichismo social, onde se busca reiterar a história como sendo feita pelos homens, em-bora sob determinadas circunstâncias herdadas do passado. É o pro-cesso de subjetivação de classe que implica a constituição de sujeitos histórico-coletivos capazes de resignificar produtos, instituições e valores sociais a partir da ótica emancipatória.

O modo de aparição social fetichizada é uma construção social que pode – e deve – ser negado pela luta de classes. A “metafisica so-cial” é – em última instancia – uma “física social”, onde o complexo de força historicamente determinadas constitui a matéria social.

Em síntese, para concluir o esboço desta teoria do fetichismo social, podemos dizer que o fetichismo social é um modo históri-co de aparição do estranhamento sob o capitalismo como sociedade mercantil complexa. O produto e objetivações sociais (instituições e valores sociais) alienadas e estranhadas do homem que trabalha – isto é, obstáculos ao desenvolvimento humano-genérico do homem – aparecem, nesse caso, como fetiches sociais ou coisas metafísicas sociais, a-históricas, exteriores, impessoais, intransparentes, opacas e distantes do homem que trabalha. No plano da consciência social,

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o complexo de fetichismo ou fetichizações sociais significam a des-subjetivação de classe ou produção da consciência alienada.

Digressões sobre a sociedade do fetichismo

A sociedade burguesa é a “sociedade do fetichismo” ou “socie-dade da fetichização”, na medida em que aparece como uma imensa coleção de mercadorias e como uma sociabilidade social mediada pela forma-mercadoria. As relações sociais humanas tendem a ser permeadas/mobilizadas/organizadas por múltiplos fetiches sociais, produtos da atividade social. Os laços sociais se impregnam de feti-chismos sociais que corroem sua própria natureza social: ser afirma-ção da dimensão humano-genérica do homem.

Na verdade, o grau de intransparência e opacidade das relações sociais sob a “sociedade do fetichismo” tendem a interverter, nas vá-rias instâncias do cotidiano da produção e da reprodução social, rela-ções sociais humanas em relações sociais instrumentais (por exemplo, mesmo as relações humanas de afetividade amorosa, a mais típica das relações sociais humanas, sob o capitalismo, tende a ser permea-da de traços instrumentais de cariz manipulatória).

A fetichização das relações humanas sociais abre um campo de insatisfação e inquietação das individualidades pessoais de classe. Na verdade, o núcleo humano-genérico das individualidades pesso-ais de classe, embora tendencialmente “negado” sob o capitalismo (o que explica o sentido da negação estar entre aspas) resiste/persiste/insiste em afirmar-se categorialmente. O processo civilizatório hu-mano-genérico, pressuposto negado, mas ineliminável sob o desen-volvimento histórico do capitalismo, significa a intensificação das relações sociais e seu enriquecimento objetivo no sentido de cons-trução de múltiplos laços sociais candentes, intensamente contra-ditórios, com aproximação/afastamento entre indivíduos pessoais histórico-mundiais, principalmente em nossos dias, sob as condi-

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Estranhamento e fetichismo social – Notas teórico-críticas

ções da “sociedade em rede” (ocorre um “diluvio de Outros” – não necessariamente “próximos”).

Assim, percebemos que a “sociedade do fetichismo” é – de fato – a “sociedade da experiência” ou “sociedade da experimentação”. A intensa fetichização não paralisa as individualidades pessoais de clas-se. Pelo contrário, a inquietação e insatisfação – no plano das relações pessoais e interpessoais e principalmente, relações consigo mesmo, no tocante a auto-imagem pessoal – fazem que elas elaborem, em si e para si, uma série de experimentações e auto-experimentações que ten-dem a se confundir com a mais pura manipulação de si (auto-engano) e manipulação de outros – e de fato são, na medida em que ocorrem sob as condições do sócio-metabolismo estranhado do capital.

Deste modo, a “sociedade do fetichismo” é a “sociedade da ma-nipulação”, que é a forma predominante da experiencia e das expe-rimentações pessoais nas condições do metabolismo social do es-tranhamento do capital e do mundo social como imensa coleção de mercadorias. Com a manipulação pessoal, o Outro se torna mero meio para os fins egoístas de individualidades pessoais de classe transtornadas e transfiguradas pela inquietação e insatisfação de re-lações sociais fetichizadas na qual estão imersas.

A manipulação como experiencia e experimentação pessoal é a atitude reativa reacionária das individualidades pessoais de classe contra a corrosão irremediável que o fetichismo social provoca nas relações humano-sociais. Sob a sociedade do capital, reage-se, mani-pulando o outro e a si mesmo.

Enquanto a experiência, traço ineliminável da socialização humano-genérica, marcada pelo risco, presença do desconhecido e inclusive pela perda, tende a possuir um sentido de compromisso com o amadurecimento humano-pessoal (só se aprimora por meio de experiencias e experimentações humano-pessoais e sociais), a manipulação é a experiencia degradada que não mantém laços com a formação humano-social. Pelo contrário, visa anular e negar o Ou-tro que se tornou mero meio instrumental para as finalidades ego-cêntricas de si.

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O Proletário-Mascate

Sob o capitalismo global acirra-se a centralização e concentra-ção do capital no mercado mundial. Aumenta a concentra-ção de renda nos países ricos. Na década de 1980, quando se

abre a era neoliberal com a mundialização do capital e a constitui-ção de uma oligarquia global, cresce o acúmulo de capital-dinheiro que busca rentabilidade. Na medida em que se vive uma crise de superprodução sob as condições de acirrada concorrência mundial e de mercados restritos, devido a baixa capacidade aquisitiva, tende a restringir-se a margem de valorização da massa de capital-dinheiro que busca o mercado financeiro como fonte de valorização fictícia. É a crise de sobreacumulação que leva à financeirização da riqueza capitalista. O capitalismo global é o capitalismo das bolhas especu-lativas. Por outro lado, os ricos ficam mais ricos na medida em que nunca foram tão favoráveis as condições político-sociais para a acu-mulação do capital.

Nos últimos “trinta anos perversos” do capitalismo global tende a emergir uma nova forma de ser da proletariedade. Torna-se per-ceptível a imersão integral do homem proletário no império da mer-cadoria, implicando, por completo, sua subjetividade na trama feti-chizada do mercado. É com o capitalismo global, sob a dominação neoliberal , que se busca reduzir a vida social à lógica de mercado, e onde o fetichismo da mercadoria se impõe. Na verdade, operários e empregados tornam-se quase executivos de venda, tornando-se “proletários-mascate”, um imenso contingente de trabalhadores assalariados, vendedores de mercadorias e prestadores de serviços

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como mercadorias dos mais diversos tipos, que implicam, cada vez mais, sua subjetividade com a trama do mercado.

Ora, sob a sociedade do capitalismo global, homens e mulheres assalariados estão sempre vendendo alguma coisa, principalmente a sua imagem pessoal. O importante não é ser, mas parecer ser ou ter. Vivem na “corda bamba”, o que é um aspecto da exacerbação da con-tingência de classe. Na verdade, o proletário-mascate é um homem dividido entre a dimensão pessoal e a dimensão de classe. Ele tem seu tempo de vida consumido pelo tempo do mercado.

O trabalhador assalariado do capitalismo global tende a estar hoje mais do que nunca implicado com disposições mercantis, ten-do em vista a redução do contingente de proletários operários in-dustriais e a ampliação do contingente de proletários empregados ligados às atividades de serviços, onde é intenso o contato com o mundo das mercadorias e da relação de venda-e-compra.

Esta nova relação salarial do proletário moderno significa maior implicação da subjetividade humana com a forma-mercadoria. Torna-se mais clara as dimensões do dilaceramento da personalida-de humana pela implicação mercantil. A presença do mercado no tocante ao envolvimento do trabalho vivo que se compromete com a venda da mercadoria é muito intensa na atividade do corretor de imóveis. O trabalho do proletário de vendas exige o envolvimento do cliente ou a “captura” da sua subjetividade. Ao mesmo tempo, o em-pregado compromete também, do mesmo modo, a sua subjetividade no processo de trabalho de venda. Enfim, é uma intensa intervenção dialógica que visa abrir oportunidades de negócio.

No contato pessoal com o cliente, o trabalho vivo do vende-dor, simula e dissimula atitudes e sentimentos em prol da venda da mercadoria. O vendedor busca criar espaços de aproximação para manipular o desejo do cliente. O que parecer ser uma relação hu-mana, é uma relação coisal. Na verdade, a relação vendedor-cliente é uma relação humana reificada. O fetichismo que impregna o pro-duto-mercadoria adere à razão dialógica do vendedor. No processo de trabalho, os assalariados de vendas encetam um diálogo-fetiche

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que, como armadilha das intenções, busca fazer o cliente comprar o produto-mercadoria a venda. O suposto diálogo que existe na rela-ção vendedor-cliente é um diálogo–simulacro (ou, a rigor, quase um monologo).

Na época do capitalismo global, o processo de precarização atin-ge, de forma ampliada, a subjetividade do trabalho. Esta ofensiva do capital à subjetividade do trabalho vivo é mediada pela constituição do precário mundo do trabalho (desemprego em massa e contratos de trabalho precário). Um dos traços inegáveis do precário mundo do trabalho no século XXI é a disseminação das implicações laborais de cariz mercantil com o surgimento de um contingente imenso de trabalhadores vendedores de mercadorias e, portanto, imersos nas contingências do mercado.

É claro que, tradicionalmente comerciantes autônomos e traba-lhadores assalariados do comércio constituíam o contingente típico da força de trabalho imersa na implicação laboral de cariz mercantil. Eram eles que tratavam dos produtos-mercadorias nas instâncias do mercado de consumo. Entretanto, sob o capitalismo global, as impli-cações laborais de cariz mercantil assumiram proporções inauditas no seio do mundo do trabalho.

O vendedor de mercadorias ou o representante comercial apare-ce diante de nós, presencialmente e virtualmente, por meio das novas tecnologias de informação e comunicação. Por exemplo, a atividade de venda confunde-se com o serviço de marketing e propaganda. Na TV ou Internet nos deparamos com novas mercadorias sendo exibi-das por algum proletário-mascate. Enfim, todos nós nos tornamos, em algum momento, vendedores de algum produto-mercadoria real ou imaginário.

“Always be closing” (algo como “sempre esteja fechando um ne-gócio”) é a máxima do proletário-mascate que expressa a condição do tempo de vida tornado tempo de trabalho. Com a terciarização do mercado de trabalho, ampliaram-se, seja no setor formal ou in-formal da economia capitalista, as atividades de serviços ligadas às áreas de vendas. Na verdade, muitos serviços possuem vínculos or-

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gânicos com a atividade industrial propriamente dita. A expansão exacerbada dos serviços que caracterizam a suposta “sociedade pós-industrial” são o modo de manifestação da industrialização univer-sal. Enfim, vivemos hoje, a lógica do capital industrial sob a forma de uma “sociedade de serviços”.

Diante de um sistema mundial do capital imerso numa crise de superprodução e de subconsumo, a atividade de venda tornou-se uma atividade crucial. Ela tornou-se uma atividade central no capi-talismo mundial em sua fase de crise estrutural, com a venda se an-tecipando à produção. Por exemplo: o sistema toyotista de produção incorpora o principio do estoque mínimo e do just-in-time, onde a venda se confunde com a produção de mercadorias. Deste modo, o mundo do trabalho tende a assumir a feição de um mundo de “pro-dutores-vendedores de mercadorias”.

Assim, a venda de mercadorias não é tarefa apenas dos tradicio-nais comerciantes ou comerciários ligados diretamente às áreas de venda ou de prestação de serviço. Ela mobiliza o corpo da empresa, alterando o perfil de seus empregados. Por um lado, a base operária torna-se “enxuta” pelos constantes downsizings industriais. Por ou-tro lado, amplia-se a rede de empregados administrativos envolvidos direta ou indiretamente com as atividades de venda e planejamento. O capitalismo dos EUA explicitou, na última metade do século XX, a tendência da constituição de uma “sociedade de serviços” onde ati-vidade de venda possui um papel central.

É claro que a instauração da nova precariedade do mundo do trabalho, a constituição do proletário-mascate, vincula-se às múlti-plas determinações no campo da lógica organizacional (o toyotismo) ou da lógica sistêmica do capital com sua crise de superprodução e subconsumo endêmico. A crise do emprego clássico devido à corro-são do estatuto salarial tradicional do mundo do trabalho expele um imenso contingente de subempregados que buscam nas atividades de venda ou de prestação de serviços dos mais diversos tipos, alguma estratégia de sobrevivência pessoal. Por isso, devido a terceirização, muitos operários e empregados tornaram-se meros “prestadores de

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serviços”. Sob a alcunha de “trabalhadores autônomos”, são verda-deiros proletários-mascates, reproduzindo o que Francisco de Oli-veira (no ensaio “O Ornitorrinco”) alcunhou como trabalho abstrato virtual. É o caso, por exemplo, dos camelôs e dos trabalhadores que vendem novos serviços que surgem das necessidades sociais supér-fluas originárias do capitalismo desenvolvido.

Além disso, é importante salientar que a ampliação exacerbada da implicação laboral de cariz mercantil se origina de uma sociedade capitalista complexa que se desenvolve, ampliando à exaustão, a mer-cantilização das relações sociais. Deste modo, de alguma forma, se a mercadoria e sua lógica fetichizada penetram cada vez mais nos po-ros sociais, erigindo em torno de si, uma aura de novas necessidades de consumo, precisa-se de alguém para suprir tais necessidades (com suas respectivas mercadorias). E de repente, de algum modo, em al-gum lugar, nos tornamos vendedores de alguma coisa-mercadoria.

Por exemplo, vejamos a atividade assalariada de trabalhadores bancários, principalmente aqueles ligados ao atendimento do pú-blico. O trabalhador bancário tornou-se um executivo de vendas de produtos financeiros do banco. Inclusive, a remuneração flexível do bancário incorpora uma parte de comissões de vendas. Ele tornou-se um “mascate financeiro”. É claro que não possui autonomia pessoal, nem circula pelos espaços sociais, como o velho mascate de outrora. Entretanto, o bancário está cada vez mais envolvido em oferecer e vender produtos e serviços financeiros dos mais diversos tipos (de títulos de capitalização à seguros de vida). Essa atividade cotidiana recorrente tende a comprometer, com mais intensidade, a subjetivi-dade do trabalho vivo.

Na medida em que ocorre a reestruturação produtiva do capital, alteram-se as formas de ser do trabalho assalariado no capitalismo global. Além de inovações tecnológico-organizacionais que marcam o novo espaço da produção de valor, permeando a sociedade do ca-pital, surgem novas implicações sócio-metabólicas que alteram a relação tempo de vida e tempo de trabalho, atingindo operários e em-pregados assalariados. É o que podemos considerar inovações sócio-

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metabólicas de cariz mercantil. É por meio delas que se constitui a “captura” da subjetividade do trabalho.

O que percebemos não é apenas a ampliação da implicação mer-cantil, mas a sua intensificação que comprime, deste modo, o es-paço-tempo da vida social. Por conta das pressões da concorrência, as empresas exigem que tempo de vida seja reduzido cada vez mais, a tempo de trabalho estranhado. O trabalho estranhado permeia a totalidade social. Trabalho é vida (e morte). É a expressão da acelera-ção do giro do capital que busca recuperar patamares de acumulação nas condições de crise de superprodução.

Ora, o esgarçamento do tempo de vida pelo tempo de trabalho é um elemento de precarização do trabalho na medida em que homens e mulheres trabalham cada vez mais para manter um determinado padrão de vida ou padrão de consumo, degradando sua vida pessoal. Além disso, operários e empregados são jogados na concorrência, “sem apoio”. Por outro lado, a vida veloz e a pressão competitiva ten-dem a ser elementos compositivos de uma nova precariedade sala-rial, na medida em que o capital tende a torná-la o novo estilo de vida (e de morte) do estatuto salarial.

Após apresentarmos a objetividade do precário mundo do tra-balho, constituída pelo universo dos proletários-mascates, nos resta perguntar: qual o tipo de subjetividade proletária (ou de experiências de precarização do trabalho) que surge a partir das novas condições de precariedade do capitalismo global?

Ora, é evidente que o “vendedor de mercadorias” compromete muito mais a subjetividade pessoal. Eis o elemento decisivo da mu-dança qualitativa da atividade proletária em nossa época. Por isso, a ampliação das implicações mercantis, não apenas no seio da esfera de circulação, mas nos interstícios da produção, ou seja, a constitui-ção de uma produção cada vez mais implicada com a atividade de venda, significa que o capital se apropria, de forma intensa e qualita-tivamente nova, da subjetividade (e intersubjetividade) complexa do trabalho vivo.

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O trabalhador assalariado ou o proletário que se diz “prestador de serviço” está imerso/submerso na lógica do produto-mercadoria. Nesse caso, a reificação dissemina-se com mais intensidade e ampli-tude. Ao vender mercadorias, o trabalhador assalariado ou “presta-dor de serviço” (o que denominamos de proletário-mascate), vende não apenas um produto, mas vende a si próprio, a imagem com suas disposições anímicas e afetivas.

Na verdade, o ato de venda é um ato de investimento libidinal. A prática social mercantil, ao tornar-se estruturante da vida coti-diana, penetra no mundo do trabalho, articulando novas formas de experiência de precarização do trabalho vivo, comprometendo a subjetividade do homem que trabalha, envolvendo (e manipulando) a subjetividade complexa, tendo em vista que o capitalismo do século XXI é um capitalismo desenvolvido que ampliou as possibilidades concretas de individuação social por meio do trabalho socializado. A “captura” da subjetividade complexa do trabalho vivo é um dos nexos mais amplos do estranhamento que é intrínseco ao sócio-me-tabolismo da barbárie.

O “proletário-mascate” está envolvido pela “captura” da subje-tividade em sua dimensão extrema. Na medida em que ele torna-se guardião (e realizador) da mercadoria como valor de troca, ele impli-ca sua subjetividade ao fetiche da mercadoria. Sua dimensão pessoal tende a ser dilacerada pelas implicações mercantis. Deste modo, o estranhamento coloca-se em sua forma extrema.

Na atividade de vendedor temos a possessão da pessoa pela for-ma-mercadoria. É a ditadura do tempo-espaço de mercado. A tática exposta é a tática suprema da ditadura da mercadoria que reduz a personalidade pessoal à personalidade de mercado. Por isso, o lema é “sempre fechar negócios”, mobilizando, deste modo, seus atribu-tos de ação humano-pessoais em função da venda da mercadoria, colocando-se, portanto, à inteira disposição dos valores do empre-endimento capitalista.

Ao incorporar-se na “lógica do produto-mercadoria” por meio da atividade de venda, o proletário-mascate tende a sedimentar um

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grão de consentimento à ordem sócio-metabólica do capital. O rever-so subjetivo da implicação estranhada é a proliferação de “doenças da alma” e do estresse como a praga universal do capitalismo neoli-beral. A maior incidência das doenças psicológicas do trabalho diz respeito à mente e não só ao corpo. Enfim, o capital fechou o cerco à personalidade viva do trabalho cuja implicação estranhada reverbera em sintomas psicossomáticos. Por isso se dissemina em nossa época, as mais diversas formas de literatura de auto-ajuda ou atividades de lazer com conteúdos de (auto)agressividade.

Enfim, procuramos destacar que uma das formas de precariza-ção do trabalho é a precarização da subjetividade do trabalho vivo com implicações profundas na sociabilidade social. Ela é um dado objetivo da barbárie social. Não nos esqueçamos que o personagem Gregor Samsa (do conto “A Metamorfose” de Franz Kafka), que cer-ta manhã acordou e “achou-se em sua cama convertido num mons-truoso inseto”, era um proletário-mascate.

Sob o capitalismo global, constituem-se nos locais de trabalho, formas de emulação do trabalho assalariado voltadas para a mani-pulação exacerbada da subjetividade do trabalho vivo, buscando envolver, de modo paradoxal, a força de trabalho com as metas dos negócios. Na medida em que o trabalho vivo torna-se imprescindível no capitalismo global, exige-se maior manipulação (e “captura”) da subjetividade do homem que trabalha.

As qualidades da emulação/manipulação do trabalho vivo no capitalismo global. Primeiro, deve-se “quebrar” a auto-estima do trabalho vivo como pessoa humana, reduzindo-o a mera força de tra-balho comprometida com os ideais do capital. É o que podemos de-nominar de despersonalização do homem que trabalha. É a redução da pessoa àquilo que o filósofo Martin Heidegger (em “Ser e Tem-po”) denomina de das Man (segundo ele, das Man esquece-se de sua liberdade de escolha no mundo das possibilidades e passa a viver no “É”, as propriedades que o mundo lhe atribui. “É”, no conformismo da massa, mais uma “ovelha no rebanho”).

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É importante salientar, a título de esclarecimento categorial, que a individualidade pessoal do homem que trabalha é constituída, em si, (1) pelo que denominamos de trabalho vivo, ou seja, a dimen-são do gênero vivo, que segundo Marx, está presente na pessoa, “na medida em que [ela] se relaciona consigo mesmo como com um ser [Wesen] universal e por isto livre.” A dimensão do “gênero vivo” é produto do processo civilizatório do trabalho como atividade vital (por isso a denominamos de “trabalho vivo”, em contraposição ao “trabalho morto”, categoria negativa da construção categorial mar-xiana). Esta dimensão humano-genérica da individualidade pessoal é principium movens da socialidade humano-genérica.

(2) A individualidade pessoal é constituída também pela força de trabalho, isto é, a capacidade física e espiritual da corporalidade viva realizar trabalho útil que aumenta o valor dos produtos. É importan-te salientar que a “divisão” da individualidade pessoal em trabalho vivo e força de trabalho é uma distinção meramente heurística que nos ajuda a apreender o processo de degradação do ser genérico do homem como pessoa sob o capitalismo global.

individualidade pessoal/ individualidade de classe

Força de trabalho como mercadoria

O homem como pessoa humana ou ser genérico é uma persona-lidade integral. Na medida em que a força de trabalho torna-se mer-cadoria, ocorre uma cisão no “espaço interior” da individualidade pessoal. Explicita-se uma “divisão interior” que caracterizamos aci-

Trabalho vivo Força de trabalho como mercadoria

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ma. Na verdade, o homem proletário como individualidade de classe é um homem clivado entre “trabalho vivo” e “força de trabalho como mercadoria”. De um lado, o “núcleo humano” da pessoa (ou seu gê-nero vivo ou a vida do gênero) e de outro, a “força de trabalho como mercadoria”, voz interior das disposições sistêmicas do capital. Como coisa exterior no âmago do “espaço interior” da pessoa, a força de tra-balho como mercadoria é conduz as individualidades de classe.

É esta bipartição da personalidade integral do homem proletário que possibilita as operações de manipulação/“captura” da subjetivi-dade do trabalho pelo capital. Uma observação: a cisão primordial da pessoa humana é, deste modo, um produto histórico da civiliza-ção do capital e não um traço ontológico (ou biológico) da natureza humana (como supõe as filosofias metafisicas).

A clivagem primordial do homem proletário é a “brecha” por onde opera o processo de subsunção ideal do trabalho ao capital, que é a subsunção do “espaço interior” da pessoa às disposições sistê-micas do capital. Por exemplo, o trabalhador por conta própria é, a rigor, trabalhador assalariado, na medida em que está subsumido ao capital, não no sentido formal ou real, mas sim, ideal. Ele possui um patrão – é “patrão de si mesmo”, o patrão está dentro de si. Eis a subsunção ideal do trabalho ao capital.

No capitalismo global tende a proliferar formas de emulação pa-radoxal do trabalho assalariado que implicam a redução do trabalho vivo ou da pessoa à força de trabalho como mercadoria. É a redução do “núcleo humano” às disposições valorativas do capital. É uma forma de estranhamento que dilacera (ou desefetiva) o ser genérico do homem. É o sentido do estranhamento como alienação da vida do gênero como vida da individualidade pessoal intervertida em in-dividualidade de classe.

Por exemplo, a redução do tempo de vida à tempo de trabalho es-tranhado é uma operação cotidiana de despersonalização do homem ou de perversão/inversão do “núcleo humano” em “núcleo animal”. Nos “Manuscritos econômico-filosófico” (1844), Marx observa: “...o homem (o trabalhador) só se sente como [ser] livre e ativo em suas

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funções animais, comer, beber e procriar; quando muito ainda, ha-bitação, adornos, etc., e em suas funções humanas só [se sente] como animal. O animal se torna humano, e o humano animal”. Eis o sig-nificado essencial do que podemos denominar de barbárie social.

Outra operação de despersonalização do homem como ser ge-nérico é a “quebra” da auto-estima da pessoa humana, que tende a reduzir o trabalho vivo (e seus atributos de gênero vivo) à força de trabalho como mercadoria. É um perverso processo de despersona-lização que marca, em maior ou menor proporção, o movimento interior das práticas gerenciais do trabalho estranhado ou trabalho assalariado.

Na medida em que os proletários-mascates implicam objetiva-mente sua personalidade com o trabalho de venda, onde tempo de vida está reduzido a tempo de trabalho, eles são, em si, pessoas redu-zidos à força de trabalho. É a condição tendencial da individualida-de de classe. Por isso, para emulá-los, as estratégias de treinamento para vendedores tendem, muitas vezes, a rebaixar a auto-estima dos proletários-mascates, visando incitá-los a se afirmarem de forma es-tranhada. Aliás, esta é a dinâmica psicossocial do capital – rebaixar a auto-estima das individualidades pessoais para torná-las susceptí-veis às artimanhas da manipulação sistêmica.

Vejamos, por exemplo, uma cena marcante do filme “O sucesso à qualquer preço”, de James Foley (EUA, 1992), onde o gerente de vendas, numa sessão de treinamento dos corretores de imóveis, para emular o trabalho vivo reduzido à força de trabalho, chega a dizer para um deles: “Você se acha um vendedor?”. Nesta cena do filme, o gerente Blake instiga a auto-imagem estranhada dos vendedores. Quer provoca-los para faze-los se mover como individualidades de classe. Eles chega a gritar, ofendendo-os: “Fiquem zangados, seus fi-lhos da puta!”. Busca, inclusive, “castra-los” – no plano imaginário - para incita-los a se afirmar como homens (o capital mobiliza formas de opressão de gênero). Diz ele: “Um corretor de imóveis tem que ser muito macho!”. Em seu discurso de emulação ou management by fear (administração pelo mêdo), visando constranger os vendedores

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em prol do produtivismo, o gerente diz o mote principal: “Vamos pôr a mão na massa, senão rua”.

Eis a operação sinuosa de manipulação/captura da subjetividade da pessoa que trabalha pelo capital. Primeiro, reduz o homem como ser genérico à força de trabalho como mercadoria. Segundo, amea-ça – no plano imaginário, simbólico e real – as individualidades de classe com a demissão de sua força de força de trabalho. É um mote ideológico para constranger a auto-estima e abrir no “espaço inte-rior” da subjetividade humana. “Brechas” para a emulação parado-xal de operários e empregados implicados no trabalho estranhado.

Portanto, a operação de manipulação/“captura” da subjetividade do trabalho vivo constitui-se, de forma primordial, por meio da re-dução do trabalho vivo ou da pessoa à mera força de trabalho.

Ora, é claro que o capitalismo moderno se desenvolveu por meio do processo de proletarização do trabalho que significa em si e para si, a transformação redutiva do trabalho vivo ou da pessoa à mera for-ça de trabalho. Trata-se, portanto, de um processo clássico do capi-talismo histórico. Isto não é o novo que buscamos salientar. Na ver-dade, o que salientamos é que, nas condições particulares-concretas do capitalismo global, com o surgimento do desemprego em massa e as condições do trabalho cada vez mais socializado, sob determi-nadas condições histórico-políticas da luta de classes, o processo de despersonalização do trabalho vivo amplia-se e intensifica-se, ad-quirindo uma dimensão qualitativamente nova. Ela compõe a nova quadra histórica da barbárie social, marcada pelo agudo fetichismo da mercadoria.

O desemprego é uma condição objetiva de degradação moral-in-telectual da força de trabalho como mercadoria. Na medida em que o capitalismo global amplia o desemprego de massas com cariz estru-tural como elemento compositivo da nova dinâmica capitalista ba-seada na financeirização da riqueza capitalista, ele tende a constituir um ambiente psicossociológico de homens e mulheres sem confiança em si mesmo. Na sociedade do capital, o emprego é um elemento de identidade da força de trabalho como mercadoria. Estar desempre-

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gado é perder a sua identidade social, matriz da auto-estima pessoal e da confiança em si mesmo. A despersonalização sistêmica intrínse-ca às práticas de gestão corporativa predominantes sob o capitalismo global servem à constituição de um trabalho vivo cativo às novas formas de exploração e espoliação da força de trabalho.

O trabalhador assalariado-como-vendedor ou o proletário-mas-cate está subsumido à coisa que vende, ao produto-mercadoria ou objeto/trabalho que se tornou coisal, identificando-se com ela. Nos “Manuscritos econômico-filosóficos”, Marx observa: “O trabalha-dor encerra a sua vida no objeto; mas agora ela [a vida] não pertence mais a ele, mas sim ao objeto. Por conseguinte, quão maior esta ati-vidade, tanto mais sem objeto é o trabalhador.”

O drama trágico do trabalho estranhado é descrito por Marx, noutra passagem, com as tintas de uma narrativa de terror – mas com uma diferença essencial: o estranhamento do trabalho (e da vida) é um engendramento histórico-social do próprio homem. Diz: “ele [o homem] [engendra] a sua própria produção para a sua dese-fetivação [entwirklichung]” (Marx). O empregado e operário desefe-tivado é o homem privado de realidade e/ou de efetividade (como é o significado em alemão de “entwirklicht”).

Ora, a mercadoria possui como “desejo íntimo”, ser vendida. En-fim, a força de trabalho como mercadoria visa, em si e para si, fechar negócio. Se o vendedor não consegue fechar negócio, ele não é nada. Não apenas nada têm, como nada é. O ser íntimo do trabalhador assalariado não se reduz apenas a ter, mas a buscar ser mera força de trabalho com desempenho de sucesso. É preciso, deste modo, apre-sentar resultados. Sob o trabalho estranhado, como observa Marx, “o produto do trabalho é o trabalho que se fixou num objeto, [o tra-balho] fez-se coisal [sachlich]”.

Uma observação importante: Sache, em alemão, se aproxima mais de “coisa”, em sentido neutro, que de “objeto”, a coisa já numa relação frente a um sujeito. Na verdade, Sache indica algo intermedi-ário entre “coisa” (tomada neutramente, indiferente a um sujeito) e “objeto” (algo que já entrou numa relação com o sujeito). O produto-

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mercadoria (e a atividade do trabalho) possui esta dimensão coisal. Segundo a lógica dialética, enquanto “objeto” pressupõe “sujeito”, “coisa” possui um sentido neutro, indiferente a um sujeito.

Enfim, o trabalho que “fez-se coisal” é um trabalho indiferente a um sujeito – é o trabalho estranhado que, sob o modo de produção capitalista, é o trabalho assalariado, “trabalho forçado [...] que é so-mente um meio para satisfazer necessidades fora dele” (Marx).

A lógica da despersonalização do trabalho vivo. Despersonaliza-ção é a “supressão” da pessoa humana como sujeito universal e por isto livre, ser ativo e não meramente contemplativo (como é, segundo Adorno e Horkeimer, o homem da indústria cultural, homens não-sujeitos, homens desumanizados que constituem o sistema social do entretenimento que “proíbe” a reflexão). Ser livre e ser ativo significa ser capaz de transcender o sistema; ou ainda significa ser coletivo ou capaz de agir coletivamente; e mais ainda: ser solidário (um dos valores morais corroídos pela lógica do capital).

Mas sob a ótica da produção do valor estranhado, o que vale não é a pessoa (ou individualidade pessoal) – um bom pai, por exemplo, que dedica tempo para a família – mas o homem empregado ou força de trabalho que vende e ganha. O homem é o quantum daquilo que vende (ou ganha) – eis a fórmula capital. O dinheiro é a medida de todas as coisas – eis a ordem da civilização burguesa.

Para emular o trabalhador assalariado as grandes empresas tendem a incitar a concorrência entre os empregados, individuali-zando as relações de trabalho. Esta é uma das principais estratégias empresariais de precarização do trabalho no capitalismo global. A produção da escassez é um estilo darwinista de gestão que marca o capitalismo neoliberal. De certo modo, eles adotam como forma de pagamento, o modelo do salário por peça, remuneração flexível, vinculada à produção de vendas. Ao individualizar-se as relações so-ciais de produção, fragmenta-se o coletivo de trabalho, criando um ambiente competitivo propicio para a “captura” da subjetividade do trabalho pelo capital. É o que explica hoje, por exemplo, a adoção

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pelas empresas de mecanismos individualziados (e segmentados) de avaliação de desempenho.

No capitalismo global, o coletivo de trabalho é reconstituído se-gundo outra forma de regulação salarial, baseada na concorrência, remuneração flexível e plano de metas. Cultiva-se a “cultura da cor-da-bamba” que explicita a condição de proletariedade dos emprega-dos de colarinho-branco: insegurança, contingência, acaso e deriva pessoal.

Portanto, é importante salientar alguns importantes dispositivos ideológico-organizacionais de individualização das relações laborais no capitalismo neoliberal:

Primeiro, a produção artificial da escassez. O mote empresarial da “redução de custos” – que atinge principalmente os recursos da força de trabalho, é, na verdade, uma forma de produção artificial da escassez. Corta-se força de trabalho, para produzir – artificialmente – uma escassez. Além das supostas justificativas contábeis, possui um significado simbólico: constranger (e emular) a força de trabalho que permanece no emprego. Sob a lógica neoliberal, acumula mais, quem tem mais vantagens comparativas. O mercado não é para to-dos. A produção do desemprego estrutural é parte compositiva da sinistra lógica da produção artificial da escassez.

Segundo, a adoção da remuneração flexivel ligada a plano de me-tas . Esta é uma das mais perversas formas de emulação do trabalho estranhado. O trabalhador torna-se “carrasco de si mesmo”.

Terceiro, a quebra da auto-estima como pessoa humana e a “administração pelo medo”. Sob os estilhaços da “personalidade au-tônoma” capaz de auto-estima pessoal, pode-se “reconstruir” uma individualidade de classe mais susceptivel às demandas sistêmicas do capital. A corrosão da personalidade pessoal leva à construção de personalidades-simulacro, tipos de personalidades mais particu-lares, imersas no particularismo estranhado de mercado (inclusive com seu simulacro de “auto-estima”).

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A personalidade-simulacro é o proletário de talento na manipu-lação de afetos e inseguranças pessoais do Outro. Em geral, é um grande vendedor ou líder de equipe, capaz de expressar uma imagem de firmeza e segurança. É a jovem geração que usa (e abusa) da Ima-gem. É um homem que se deixa levar pelo fluxo da contingência da existência fetichizada. É o homem cínico da jovem geração de white-collar proletarizada mas incapaz de desenvolver uma consciência de classe necessária.

Quarta, a redução da pessoa humana à força de trabalho por meio da redução do tempo de vida à tempo de trabalho estranhado. A colonização do tempo de vida pelo “mundo sistêmico” possui, deste modo, uma função orgânica no metabolismo social do capital: fra-gilizar a capacidade de resistência à voracidade do capital. Por isso, Karl Marx colocou no século XIX, como bandeira estratégica da luta do trabalho, a redução da jornada de trabalho (no livro “Salário, Pre-ço e Lucro”, Marx observa que “o tempo é o campo de desenvolvi-mento humano”).

Dispositivos ideológico-organizacionais de precarização do trabalho

Produção da escassez interna

Remuneração flexível e plano de metas

Quebra da auto-estima pessoal e construção da personalidade mais particular

Redução da pessoa humana à força de trabalho (tempo de vida= tempo de trabalho)

individualização das relações de trabalho

Fragmentação dos coletivos de trabalho

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Sob o capitalismo global, a dinâmica psicossocial do mercado tenta imputar aos trabalhadores assalariados – empregados ou de-sempregados - a culpa pelo fracasso profissional. É uma operação psicológica crucial do capitalismo neoliberal: culpabilizar as vítimas pelo seu fracasso. Numa sociedade do capital que vangloria o sucesso, esta é uma perversa operação de despersonalização e emulação nega-tiva do trabalho. É importante salientar que a operação de culpabili-zação da vítima constitui um campo de luta no interior da subjetivi-dade do trabalho. Enfim, há, sim, resistências intimas às imputações sistêmicas.

A vida do trabalho estranhado é a vida unidimensional, que como implicação laboral, tende a estender-se para a totalidade social e atividade vital, na medida em que tempo de vida torna-se tempo de trabalho; vida unidimensional do capital que tende a reduzir lazer, família e afeto ao mundo sistêmico do dinheiro e do poder.

Mais uma vez, utilizemos exemplos do filme “O sucesso a qual-quer preço”, de James Foley (USA,1992), onde o mote de motivação utilizado pelo gerente de vendas da empresa corretora de imóveis Mitch&Murray Blake, é “Always Be Closing”. ABC – primeiras letras do alfabeto do vendedor e acrônimo do mote fundamental do traba-lho vivo reduzido a força de trabalho de venda. A B C (“Always Be Closing”), Sempre fechar negócio. Por um lado, a expressão “sempre fechar negócio” pode significar que o vendedor deve ter habilida-de (e competência) para fechar o negócio, “faze-los assinar na linha pontilhada”; como, por outro lado, pode significar que o proletário de vendas deve sempre – a todo mundo – estar buscando fechar um negócio (o tempo de vida reduz-se a tempo de trabalho). Mas além do ABC do vendedor – “Always be closing”, o gerente expõe as pa-lavras-chaves da força de trabalho do vendedor: A I D A (Atenção, Interesse, Decisão, Ação). A – I – D – A: Atenção (não apenas de estar atento ao cliente, mas de ouvir e cumprir as orientações das chefias superiores); Interesse (dedicar-se de corpo e alma ao negócio); Decisão (não vacilar e cumprir as metas com denodo e dedicação) e Ação (agir para fechar negócio).

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Na verdade, o capital incorpora elementos fundamentais (e fun-dantes) da práxis humana alterando o conteúdo e o sentido da ação. O ideal corporativo “vampiriza” o ideal humano. Tais palavras tor-nam-se veículos do trabalho estranhado e da despersonalização do homem que trabalha (no filme citado acima, o gerente busca falar diretamente para os vendedores, numa linguagem ad hominem ca-paz de move-los e constrange-los a assumir a nova prática de negó-cio). Mas o que se torna claro é que a nova precariedade salarial que surge com o capitalismo global, contém elementos de agudização do estranhamento, isto é, proliferam os obstáculos ao desenvolvimento do ser genérico do homem. Nesse caso, a experiencia da precariza-ção do trabalho no capitalismo neoliberal tende a ser, cada vez mais, uma experiência do estranhamento como despersonalização (como caracterizamos acima). A empresa corporativa exige envolvimento que implica num processo de dessubjetivação que leva à despersona-lização humano-genérica e a construção de personalidades-simula-cros, cada vez mais particularistas.

Na verdade, algumas personalidades proletárias sentem mais o peso da pressão do capital que outras. O “espaço interior” de cada individualidade de classe, onde se colocam as experiencias vividas e percebidas, é um espaço da singularidade. Sob a mesma situação de opressão gerencial, uns adoecem e outros, não. A resposta humana às situações de opressão nos locais de trabalho (e na vida) sempre é mediada pela personalidade individual. Como já dissemos, ela - a personalidade - é a mediação singular entre o trabalho vivo e o mun-do objetivo do capital. É a personalidade que organiza, no plano da conduta/comportamento, a exteriorização da interioridade. Assim, enquanto uns sofrem; outros, reagem, a seu modo, às imputações ge-renciais, criticando as condições de trabalho e não aceitando a auto-culpabilização.

No mundo social do trabalho, viceja a ideologia do capital hu-mano, que é elemento ideológico compositivo do processo de pre-carização do trabalho no capitalismo neoliberal, constituindo uma teia de legitimidade ideológica adequada a uma nova forma de me-

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tabolismo social do capital. Opera-se, deste modo, novas formas de consentimento social à dominação do valor por meio da operação psicossocial de culpabilização da vitima.

É claro que, segundo a teoria do capital humano, o que explica o fracasso profissional (ou o desemprego) é a falta de educação e não propriamente a falta de talento. Exige-se, deste modo, das individu-alidades de classe que tenham competência, no plano profissional e empregabilidade, no plano do mercado de trabalho.

Como observa Minto, “o capital humano deslocou para o âmbito individual os problemas da inserção social, do emprego e do desem-penho profissional e fez da educação um “valor econômico”, numa equação perversa que equipara capital e trabalho como se fossem ambos igualmente meros “fatores de produção” (das teorias econô-micas neoclássicas)”. Eis a transcrição completa da definição de Lalo Watanabe Minto da teoria do capital humano:

“Sua origem está ligada ao surgimento da disciplina Economia da Educação, nos Estados Unidos, em meados dos anos 1950. The-odore W. Schultz, professor do departamento de economia da Uni-versidade de Chicago à época, é considerado o principal formulador dessa disciplina e da idéia de capital humano. Esta disciplina especí-fica surgiu da preocupação em explicar os ganhos de produtividade gerados pelo “fator humano” na produção. A conclusão de tais esfor-ços redundou na concepção de que o trabalho humano, quando qua-lificado por meio da educação, era um dos mais importantes meios para a ampliação da produtividade econômica, e, portanto, das taxas de lucro do capital. Aplicada ao campo educacional, a idéia de capital humano gerou toda uma concepção tecnicista sobre o ensino e sobre a organização da educação, o que acabou por mistificar seus reais objetivos. Sob a predominância desta visão tecnicista, passou-se a disseminar a idéia de que a educação é o pressuposto do desenvol-vimento econômico, bem como do desenvolvimento do indivíduo, que, ao educar-se, estaria “valorizando” a si próprio, na mesma ló-gica em que se valoriza o capital. O capital humano, portanto, des-locou para o âmbito individual os problemas da inserção social, do

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emprego e do desempenho profissional e fez da educação um “valor econômico”, numa equação perversa que equipara capital e traba-lho como se fossem ambos igualmente meros “fatores de produção” (das teorias econômicas neoclássicas). Além disso, legitima a idéia de que os investimentos em educação sejam determinados pelos cri-térios do investimento capitalista, uma vez que a educação é o fator econômico considerado essencial para o desenvolvimento. Em 1968, Schultz recebeu o prêmio Nobel de Economia pelo desenvolvimento da teoria do capital humano.” (In http://www.histedbr.fae.unicamp.br/navegando/t.html)1.

A manipulação empresarial sob a mundialização do capital atin-ge tanto trabalhadores produtores, isto é, operários e empregados (por meio da “captura” da subjetividade), quanto trabalhadores con-sumidores (por meio das práticas lesivas ao direito do consumidor).

Primeiro, a concorrência desenfreada obriga as empresas a de-gradarem recursos (naturais, sociais e humanos) de forma irrespon-sável (que se contrasta com o discurso ideológico da “responsabilida-de social” das empresas).

Segundo, o incentivo dado aos operários e empregados por mais produtividade é ultrajante (para não dizer, repugnante). Por exem-plo, no filme citado acima, para emular os empregados, dizia-se: “Venda US$ 10 mil e ganhe um jogo de facas”. É a expressão canden-te da farsa dos bônus de produtividade e da suposta participação em lucros e resultados (participação em migalhas!)

Certas individualidades de classe rebeldes tendem a desenvolver a consciência critica que pode assumir (ou não) a forma de consci-

1 Para o estudo da Teoria do capital humano é fundamental consultar as obras de Theodore Schultz, O valor econômico da educação (1963) e O capital humano – investimentos em educação e pesquisa (1971); Frederick H. Harbison e Charles A. Myers, Educação, mão-de-obra e crescimento econômico (1965). No Brasil, destaca-se Cláudio de Moura Castro, Educação, educabilidade e desenvolvimento econômico (1976); Para uma crítica à teoria do capital humano, é fundamental consultar as obras de José Oliveira Arapiraca, A USAID e a educação brasileira (1982); Gaudên-cio Frigotto, Educação e capitalismo real (1995), Wagner Rossi, Capitalismo e educa-ção: contribuição ao estudo crítico da economia da educação capitalista (1978).

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ência de classe contingente ou necessária. Na medida em que elas tornam-se incapazes de desenvolver uma consciência de classe, por conta de condições histórico-sociais específicas (a crise de partidos e sindicatos, por exemplo), tornam-se susceptível de incorporar prá-ticas reiterativas da ordem sócio-metabólica do capital, baseadas, por exemplo, na ideologia do empreendedorismo ou ainda de atos ilíci-tos de contestação à lógica do capital. Esta via de escape é meramente individualista, o que significa que ela reitera, em sua atitude rebelde, as determinações sistêmicas do capital.

Primeiro, por celebrar a opção “pequeno-burguesa” do empre-endedorismo como trabalho por conta própria. A via de escape do empreendedorismo, ideologia-mor do capitalismo global que busca deslocar a consciência critica (e a ação insurgente) de personalidades rebeldes para práticas reiterativas da ordem sistêmica do capital.

O telos pragmático do empreendendorismo é “montar um negó-cio...concorrer”. Na verdade, é uma via particularista, onde o operá-rio ou empregado deixa de ser escravo de um capitalista e torna-se escravo (ou patrão) de si mesmo. Enfim, continua sendo um tra-balhador assalariado ou proletário-mascate. É uma forma sutil de reiterar o sistema da concorrência que massacra a individualidade pessoal de homens e mulheres assalariados.

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O mundo social do trabalho é constituído com um contin-gente de homens desempregados, individualidades de clas-se imersas em relações sociais estranhadas e enredados em

percepções (e auto-percepções) constituídas pelos valores-fetiches da sociedade do trabalho estranhado (por exemplo, o valor-fetiche da carreira e do sucesso profissional).

O universo existencial de uma fração da classe do proletariado – os “proletários de classe média”, individualidades de classe perten-centes à “classe média” assalariada, enredados intensamente com os referentes sociológicos de status e prestigio social e com os valores-fetiches que constituem o mundo das mercadorias.

A precarização do trabalho não se restringe às determinações imediatas do local de trabalho e do estatuto salarial propriamente dito. Precarização do trabalho implica determinações mediatas da vida cotidiana, direto ou indiretamente ligadas ao mundo do traba-lho e que estão enredadas na vida pessoal de cada um. Assim, a pre-carização do trabalho implica a vida pessoal, mesmo daqueles que não estão empregados ou ligados à instância do trabalho propria-mente dito. Na medida em que homens e mulheres estão enredados com valores-fetiches vinculados a uma identidade social dada pelo trabalho estranhado como valor moral, eles estão indiretamente vinculados ao mundo do trabalho estranhado.

Um dos traços estruturais da sociedade burguesa é o trabalho como valor moral – isto é, o trabalho mais qualificado e que implica carreira profissional. É ele que organiza a vida cotidiana dos indiví-

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duos sociais. Ele é um referente sociológico para a identidade social e pessoal. A vida social (e pessoal) na sociedade burguesa incorpora elementos de status e prestigio social ligados diretamente à atividade do trabalho como carreira profissional.

Ora, o capital é um sistema de controle do metabolismo social que articula produção e reprodução social. É um processo social tota-lizante e totalizador permeado de valores-fetiches do mundo da pro-dução que tende a disseminar-se pela vida social (valores-fetiches são valores morais exteriores aos indivíduos, que exercem uma coerção sobre eles e os conduzem de forma alienada).

Sob o capitalismo global, é intensa a operação de extensão (de valores-fetiches) da produção à totalidade social (por exemplo: o va-lor do produtivismo e do desempenho, muitas vezes, aparece perme-ando a vida cotidiana como as relações afetivo-sexuais). O totalita-rismo da produção como produtivismo é uma das características do toyotismo como ideologia orgânica da produção de mercadorias. Na verdade, na medida em que o mercado adquire centralidade social, a empresa tornou-se um locus moral.

Sob o capitalismo neoliberal predomina a moralidade de mer-cado. A produção (e o viés produtivista) tornou-se um valor moral (assim, a alcunha de “improdutivo” é uma das piores pechas que al-guém pode atribuir a outro). Ter trabalho – e no caso de “proletários de classe média”, trabalho implica carreira e sucesso profissional – aparece como um valor positivo. É em torno dele que se organiza a vida pessoal e os laços de sociabilidade. Por outro lado, o desem-prego e o fracasso profissional são valores negativos, significando a “exclusão moral” da individualidade de classe.

Temos salientado que a condição de proletariedade é a condição de homens e mulheres jogadas ao mundo social do trabalho estranhado e do trabalho como atividade exclusiva. No decorrer da evolução hu-mana, sob condições de escassez e da luta árdua pela existência, o tra-balho tornou-se referente identitário-pessoal. “Quem não trabalha, não come”, diz o Evangelho. É a escassez que explica a centralidade moral do trabalho como luta pela existência. Devido ao baixo grau de

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desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social, uma maior parcela do tempo de vida era dedicada à produção de meios de sub-sistência da coletividade social. Disseminou-se no imaginário social, a ideologia do trabalho como valor moral positivo.

Entretanto sob a sociedade burguesa, a sociedade humana mais desenvolvida no tocante ao recuo das barreiras naturais, criaram-se as condições materiais concretas para a abolição da escassez. Hoje, mais do que nunca, pode-se produzir cada vez mais num menor quantum de tempo de trabalho. O trabalho estranhado como luta necessária pela existência, embora não possa ser absolutamente eliminado, poderia ocupar uma menor parcela do tempo de vida de cada um de nós. Entretanto, em virtude das relações sociais de produção do capital, baseadas na propriedade privada e na divisão hierárquica do trabalho, mantém-se, de forma artificial, a situação de escassez. O que explica, portanto, a crescente subordinação do homem à dinâmica do capital e da acumulação do valor, para quem o homem não é nada, senão a mera “carcaça do tempo” (como disse Marx nos “Grundrisse”).

Por isso, na última metade do século XX, nos Estados Unidos da América, o país capitalista mais desenvolvido do mundo (desenvol-vido em termos tecnológicos e de produção de riqueza abstrata), o tempo de vida de um imenso contigente de pessoas tornou-se mero tempo de trabalho. Na verdade, trabalha-se mais para se manter o padrão de vida e de consumo. Como observam os autores do livro “História dos EUA” (Editora Contexto, de 2007), os trabalhadores têm produzido mais e ganhado menos nos EUA. Por exemplo, em 1992 um trabalhador típico trabalhava 163 horas a mais por ano que em 1972, o que representa quase um mês a mais de trabalho ao ano. O salário mínimo em 1998 valia 22% menos que em 1968. Enfim, a luta pela existência por meio do trabalho estranhado – mesmo o trabalho altamente qualificado, implicado numa carreira profissio-nal – adquiriu, sob o capitalismo neoliberal, maior centralidade so-ciológica na vida social.

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O trabalho como “atividade exclusiva” é um elemento de estra-nhamento social nas sociedades de classe. Ele nega o ideal de omni-lateralidade do ser humano-genérico. Se numa etapa do desenvolvi-mento civilizitário, ele era indispensável na medida em que o homem estava subsumido ao reino da necessidade, hoje, com a possibilidade concreta de constituição do reino da liberdade, que é a sociedade emancipada do trabalho social, torna-se um estorvo. Diz Marx e En-gels na “Ideologia Alemã”:

“Com efeito, desde o instante em que o trabalho começa a ser distribuído, cada um dispõe de uma esfera de atividade exclusiva e determinada, que lhe é imposta e da qual não pode sair; o homem é caçador, pescador, pastor ou crítico e aí deve per manecer se não quiser perder seus meios de vida — ao passo que na sociedade co-munista, onde cada um não tem uma esfera de atividade exclusiva, mas pode aperfeiçoar-se no ramo que lhe apraz, a sociedade regula a produção geral, dando-me assim a possibilidade de hoje fazer tal coisa, amanhã outra, caçar pela manhã, pescar à tarde, criar ani-mais ao anoitecer, criticar após o jantar, segundo meu desejo, sem ja mais tornar-me caçador, pescador, pastor ou crítico. Esta fixação da atividade social — esta consolidação do nosso próprio produto num poder objetivo superior a nós, que escapa ao nosso controle, que contraria nossas expectativas e reduz a nada nossos cálculos — é um dos momentos capitais do desenvolvimento histórico que até aqui tivemos.” (MARX E ENGELS, 1985)

Ora, na medida em que o homem que trabalha, dedicando a maior parte do seu tempo de vida à luta pela existência, ele não se desenvolve como ser humano-genérico. Por isso, o comunismo na ótica marxiana é a sociedade do tempo livre, pois o tempo é o campo do desenvolvimento humano. Ao avassalar o tempo de vida das pes-soas com a lógica do trabalho estranhado (e a lógica da mercadoria e do consumismo desenfreado), o capital avassala a possibilidade de desenvolvimento humano-pessoal dos indivíduos sociais.

Entretanto, é importante observar que a expansão da lógi-ca laboral na vida social possui não apenas um lastro estranhado.

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Existe uma relação dialética e, portanto, contraditória que precisa ser melhor explicitada. Na verdade, o trabalho como atividade vital heteronoma expande-se porque o trabalho objetivamente se sociali-za cada vez mais. Como observou Lukács, a sociedade burguesa é a sociedade mais social que já existiu. Um dos pressupostos materiais do desenvolvimento civilizatório é a expansão do trabalho social e da cooperação complexa que implica cada vez mais, na produção e divisão social do trabalho, atividades preparatórias e elementos de trabalho material e não-material. Deste modo, se por um lado, com o desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social, pode-se trabalhar menos e viver mais; por outro lado, o trabalho como ativi-dade de mediação entre o homem e a natureza, amplia objetivamente sua esfera de ação devido o crescimento das atividades preparatório indispensáveis para a própria atividade do trabalho propriamente dito. A idéia de “rede” e de inteligência coletiva, por exemplo, expli-cita o trabalho social geral como pressuposto negado da civilização do capital. Enfim, hoje, a luta pela existência está mais socializada, implicando, em sua forma de ser, em si e para si, atividades prepara-tórias ampliadas. Isto é, a instância da produção e os nexos media-tivos entre o homem e a natureza se ampliaram irremediavelmente, incorporando no “trabalhador coletivo”, instâncias da reprodução social propriamente dita.

Por isso, no decorrer do processo civilizatório surge o que po-demos chamar um trabalho II ligado às atividades mediatas de transformação da natureza. Na verdade, a própria idéia de natureza altera-se, não se reduzindo à mera natura naturans. Por exemplo, as “redes sociais” – inclusive de cariz virtual – tornam-se outra nature-za – uma segunda natureza. Por isso, atividades imateriais ou ações teleológicas secundárias (a práxis ideológica, por exemplo) tendem a tornar-se trabalho propriamente dito, tendo em vista que o trabalha-dor coletivo que produz valor incorpora, cada vez mais, o trabalho não-material como elemento compositivo da produção do capital.

Na medida em que se expande a esfera do trabalho como ativi-dade vital para a produção social, com o trabalho I se desdobrando

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em trabalho II por conta do processo de desenvolvimento da divisão do trabalho social, os valores da vida pessoal tendem a se vincularem organicamente à atividade profissional. Conforme o gráfico abaixo se amplia a esfera do trabalho e a totalidade social da produção (por isso, não podemos reduzir hoje trabalho a mera atividade do traba-lho I – ou da transformação direta da matéria natural). Devemos sim, tratá-lo como trabalho II ou trabalho de atividades preparatórias que compõem como necessidade ontológica, a luta pela existência cada vez mais socializada.

Mas a questão paradoxal (e contraditória) é que a ampliação on-tológica do trabalho como atividade vital que descrevemos acima, ocorre no seio de um modo de produção onde a natureza do traba-lho social é o trabalho estranhado. Desse modo, os valores profis-sionais (e sociais) ligados a atividade do trabalho tornam-se, de fato, valores-fetiches que servem à reprodução do trabalho estranhado e do estranhamento social.

trabalho e reprodução social

trabalho ii

ReproduçãoSocial

Valores-fetiches

produção

trabalho i

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Portanto, na ótica ontológico-materialista, é a ampliação mate-rial do trabalho como atividade vital numa sociedade cada vez mais social, ampliação/diversificação e complexificação intrínseca ao processo civilizatório, que explica, em última instância, a extensão dos valores do trabalho pela totalidade social. Mas, deve-se conde-nar não a ampliação ontológica do trabalho como atividade vital, que contém a base material da emancipação humana do trabalho no sentido de necessidade, mas a natureza do trabalho social no modo de produção do capital – isto é, ser trabalho estranhado, que dissemi-na, em si e para si, valores-fetiches.

Por isso, a expansão do trabalho como atividade vital na socie-dade burguesa aparece não como realização humano-genérica das individualidades pessoais, mas como expansão do trabalho estra-nhado e da “condição de proletariedade”, ocultando, no sentido ide-ológico, o anacronismo da escassez social.

Portanto, graças ao desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social (que propicia a expansão do trabalho socializado como atividade ontologicamente vital), o homem poderia se desli-gar, cada vez mais, em termos relativos, do trabalho (como trabalho I) ligado a necessidade social da produção imediata, e dedicar-se às atividades laborativas não-exclusivas, algumas ligadas ao trabalho II (que hoje aparecem como serviços), mas com conteúdos não-capita-listas, ou a atividades sócio-reprodutivas de fruição do ser genérico do homem (nesse caso, vale a idéia do “ócio criativo”). Entretanto, para que isto ocorra precisa-se abolir o capital como sistema de con-trole do metabolismo social (o que demonstra o ideologismo da idéia de Domenico de Masi que esquece este pequeno detalhe).

Sob o capitalismo global, exacerba-se a “colonização” da vida social pelos valores de mercado, a interface sócio-fetichizada do tra-balho estranhado. Trata-se de uma ampliação (e intensificação) da implicação pessoal pelos referentes profissionais. Nesse caso, a vida pessoal resume-se à carreira profissional ou empregabilidade (não deixa de ser curioso, por exemplo, que um best-seller de auto-ajuda se intitule “Casais inteligentes enriquecem juntos”).

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Enfim, na medida em que ocorre, neste estágio do processo ci-vilizatório, a ampliação ontológica do trabalho como atividade vital (o que significa a construção da genericidade humana por meio do trabalho social), põe-se, ao mesmo tempo, sob a sociedade burguesa, a ampliação social do trabalho estranhado como atividade de pro-dução do capital, ocorrendo um impressionante salto qualitativo do estranhamento social, com múltiplas repercussões no plano pessoal. Eis a contradição essencial do mundo do capital no século XXI.

Ao mesmo tempo – eis outra contradição lancinante do capita-lismo global – destrói-se, no plano da objetividade social do mundo do trabalho, o ideal de “carreira” que marcou a sociabilidade do tra-balho assalariado no século XX. Como salienta Richard Sennet, no livro “A corrosão do caráter”, a carreira profissional tende a assumir uma forma descontinua ou flexível.

Portanto, eis a particularidade candente do estranhamento so-cial do trabalho como atividade exclusiva no capitalismo neoliberal: (1) exacerba-se a “colonização” da vida pessoal pelos ideais de merca-do e, ao mesmo tempo, (2) restringe-se as possibilidades concretas de mobilidade social ou realização pessoal – no caso dos “proletários de classe média” – por meio dos valores-fetiches do sistema do capital.

Enfim, a crise estrutural do capital diminui as margens de rea-lização pessoal das individualidades de classe a partir dos referentes do trabalho estranhado e seus valores-fetiches. É a crise do ideal de carreira ou de sucesso que se tornam tão fugaz quanto os períodos de crescimento da economia capitalista. Eis um dos elementos essenciais da precarização do trabalho segundo a ótica da reprodução social.

É importante fazer algumas observações sobre o termo “proletá-rio da classe média”. Reconhecemos que é um termo problemático. A palavra “proletários” tem sido, em geral, mal digerida para caracteri-zar “trabalhadores assalariados” tendo em vista que possui um viés pauperista ou obreirista de cariz industrial. Designar “classe média” como “proletário” parece ser adotar um termo esdruxulo. Por outro lado, a palavra “operário” não é tão satisfatória quanto proletário. Ela está carregada de viés industrialista (trabalhadores assalariados liga-

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dos à produção industrial). “Operário” (que remete a “operadores” de máquinas) vincula-se à industria. Talvez o termo mais adequado para tratar “trabalhadores de classe média” (ou profissionais de colarinho branco altamente qualificados com perspectivas de carreira profis-sional) seja “empregado” ou então “trabalhadores por conta própria”.

Entretanto, o termo “proletário de classe média” possui um sentido impressionista que merece ser salientado e que buscamos recuperar propositadamente em nossas análises sociológicas. “Pro-letário” remete a homens e mulheres jogados no mundo social do capital, sem propriedade (e controle) dos meios de produção da vida social. Os “proletários de classe média”, embora estejam imersos na posse de bens de distinção e a posse de uma força de trabalho com-plexa como mercadoria ou habilidade técnica-profissional que lhe dá acesso a altos rendimentos salariais, não possuem o controle sobre os meios de produção da vida social (o que se explicitou, por exemplo, nas situações de demissão em massa que atingiu executivos de alta qualificação ou chefias do médio escalão nas empresas reestrutura-das na década de 1990).

Segundo o Dicionário Aurélio, “proletário” é o “homem de nível de vida relativamente baixo, e cujo sustento depende da remunera-ção recebida pelo trabalho que exerce em ofício ou profissão manu-al ou mecânica”. O Dicionário Houaiss diz: “cidadão pobre que só tem para viver a remuneração insuficiente da sua força de trabalho”. Etimologicamente, “proletário” quer dizer aqueles que valem apenas por sua prole ou cidadão de baixo poder aquisitivo.

A rigor, é claro que a “classe média” não vale apenas por sua pro-le e a remuneração da sua força de trabalho é relativamente alta. Mas o que buscamos salientar, ao utilizarmos o termo “proletário” para os cidadãos de “classe média”, é que eles – tanto quanto os demais trabalhadores assalariados – estão jogados, a seu modo, no mundo da contingencia social do capital, implicados com a natureza incerta (e desconhecida) da sociedade do fetichismo da mercadoria.

Portanto, a “condição de proletariedade” nos alerta para esta “condição humana” de homens e mulheres subsumidos à forma-

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mercadoria. Enquanto “operários” implica um vínculo com proces-so de trabalho (operários como operadores de máquinas), proletários remete à condição de vida. O estranhamento que corrói a “identida-de pessoal” de empregados e trabalhadores por conta própria – os “proletários de classe média” – diz respeito à condição de vida e não apenas à condição de trabalho propriamente dita.

Portanto, ao dizermos “proletários de classe média”, criamos um vocábulo que explicita em si, uma densa contradição. “Classe média” é a classe de trabalhadores assalariados enredada com as “coisas” do mundo sistêmico, com grilhões dourados que os vincula ao poder e ao dinheiro. A rigor, não são proletários. Mas o sentido essencial da expressão “proletários de classe média” é desmitificar a posse das coisas e expor a verdadeira condição humana de individualidades de classe à merce da voracidade do mercado e das incertezas do mundo do capital. O que se busca desvelar é a “condição de proletariedade”, obnubilada pelos valores-fetiches e coisas do poder e do dinheiro, impedindo, por parte deles, o desenvolvimento de uma nova consci-ência social, consciência de classe capaz de vinculá-los efetivamente à classe do pr0letariado.

É nas reações subjetivas a situações históricas que vislumbramos o fenômeno do estranhamento. Vejamos, em rápidas linhas, em seus traços essenciais, a “metafisica da subjetividade” proposta pelo filo-sofo George Lukács que esclarece a dialética entre biografia pessoal, história e estranhamento social.

Lukács distinguiu dois patamares de existência do homem: o gê-nero humano em-si e o gênero humano para-si. Nesse caso, Lukács eleva sua abstração analítica do fenômeno da classe para o fenômeno do gênero humano para, deste modo, ser capaz de apreender o fenô-meno do estranhamento social, que, como temos caracterizado, diz respeito aos obstáculos sócio-institucionais que impedem o desen-volvimento do ser genérico do homem (o que não quer dizer que o fenômeno da classe não esteja pressuposto).

A característica do primeiro patamar da existência (o gênero hu-mano em-si) é a tendência a reduzir o individuo à sua própria “par-

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ticularidade” (ou fazê-lo cair no “particularismo”). As individualida-des de classe estão imersas no gênero humano em-si. É uma tendência social que se impõe a partir do metabolismo social do capital.

A característica do segundo patamar da existência (o gênero hu-mano para-si) é a aspiração por uma “personalidade não mais par-ticular” (nicht mehr partikulere Persolichkeit). Assim, trata-se, nesse caso, de uma aspiração – o que significa que pode-se te-la mesmo no interior da sociedade burguesa. Ora, o mundo do capital busca restringir (ou suprimir) a necessidade (ou capacidade) de homens e mulheres aspirarem por uma “personalidade não mais particular”, isto é, irem além da sua própria “particularidade” ou de seu universo particularista.

Deste modo, o estranhamento social, na ótica de Lukács, carac-teriza-se pela imersão no particularismo. Mas esta reação subjetiva de redução à “particularidade” não é um mero processo psicológico, mas sim uma construção sócio-institucional. Na sociedade burgue-sa, as atitudes (e comportamentos) “particularistas” são construídas (e incentivados) pelas instituições (e valores) sociais vigentes. Eis a matriz do estranhamento social na sociedade burguesa.

Na “Ontologia do ser social”, Lukács decompõe o trabalho ou o pôr teleológico, definido como fenômeno originário e o principio movens da vida social, em dois movimentos distintos. Primeiro, a objetivação (die Vergenstandlichung), que é o processo de produção do objeto [o] pelo sujeito [s]; e o segundo, a exteriorização (die En-tausserung), que é o processo de retorno do objeto [o] sobre o sujeito [s] que o criou. Este “retorno” é a base do processo civilizatório.

O homem é um animal que se fez homem por meio do trabalho, principalmente como exteriorização, no sentido da resposta às novas condições sócio-ontológicas criadas pelo “novo” que é o objeto cria-do (o ser social se distingue do ser orgânico e do ser inorgânico por ser, ele próprio, a reiteração do novo). Enfim, o objeto criado sem-pre desafia o homem como sujeito. O trabalho, vale dizer segundo Lukács, vai se tornar o modelo da práxis social, com a dialética do

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trabalho sendo utilizada, cum grano salis, para entender a práxis do homem nas atividades sócio-reprodutivas.

Mas o homem é “um ser que dá resposta” salienta o velho Lukács. O que significa que a exteriorização é, de certo modo, exteriorização da interioridade ou explicitação da personalidade do ser genérico do homem que pode ser exteriorização da personalidade humano-ge-nérica (o que vai depender do meio social, isto é, das relações sociais de produção da vida).

No modo de produção do capital, a exteriorização da interiori-dade tende a inverter-se em subsunção do homem ou do sujeito [s] ao objeto [o], que aparece, nesse caso, como coisa.

A “coisa” ou objeto/objetivação estranhada, que tanto pode ser uma instituição social ou um valor moral, isto é, valor-fetiche, “re-duz” o homem ou trabalho vivo à mera força de trabalho para a rei-teração do sistema. Institui-se um sistema social que não contribui para a explicitação (ou formação) de uma interioridade humana, no sentido de um ser genérico capaz de ir além do objeto dado, capaz de transcender as condições degradantes da sua hominidade humana.

Na sociedade burguesa busca-se suprimir o sujeito humano no sentido de ser genérico, racional e consciente, capaz da “negação da negação”. Não interessa formar homens com capacidade critica, mas apenas força de trabalho ou indivíduos reduzidos a sua mera parti-cularidade. Enfim, eis a natureza do estranhamento social.

[s] [o]

[objetivação]

[s] [o]

[exteriorização]

[s]’ X

[exteriorização da interioridade]

“espaço interior” do indivíduo

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Portanto, o que possibilita o fenômeno do estranhamento social é a possível divergência entre os dois momentos no interior do mes-mo ato (o momento da objetivação/exteriorização e o momento da exteriorização da interioridade, que sob condições sócio-históricas do mundo do capital, tende a negar o homem). Isto é, o espaço de autonomia da subjetividade e, por conseguinte, realização do ser ge-nérico do homem, pode ser tendencialmente suprimido pelas exi-gências da produção e reprodução social.

Mas o fato da “exteriorização da interioridade” ocorrer sob situ-ações idênticas (o mundo do capital e as exigências estranhadas da produção e reprodução social) não significa que as reações subjetivas sejam as mesmas. Enfim, se o homem, segundo Lukács, é um ser que dá respostas, a resposta é mediada em si, pela dialética entre parti-cularidade social e singularidade de classe. Por isso, por exemplo, sob a situação idêntica da exploração no local de trabalho, alguns adoecem e outros não; ou ainda, uns escolhem revoltar-se e outros não (o que vai depender da dialética entre particularidade social e singularidade de classe).

Nicolas Tertulian observa: “O campo da alienação se situa no ‘espaço interior’ do individuo como uma contradição vivida entre (1) a aspiração por uma autodeterminação da personalidade e a mul-tiplicidade das suas qualidades e (2) das suas atividades que visam à reprodução de um todo estranho”.

Na ótica lukácsiana, diante da distorção entre objetivação/ex-teriorização e exteriorização da sua interioridade (ou “espaço inte-rior” do individuo), entre a auto-expressão de sua personalidade e o comportamento do individuo como agente da reprodução social, existem escolhas pessoais mediadas pela particularidade social que se traduzem, ou na aceitação do stato quo social, com bloqueios e rechaçamentos da auto-expressão da personalidade; ou em atos de resistência e de oposição ativa (desde reações individuais contingen-tes até reações coletivas de caráter sindical ou politico).

Na medida em que a distorção entre objetivação/exteriorização e exteriorização da sua interioridade (ou “espaço interior” do indivi-

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duo) – que é o problema do estranhamento social – torna-se o proble-ma crucial da ordem burguesa, o capital busca investir cada vez mais na manipulação do “espaço interior” dos indivíduos. É no campo da exteriorização da interioridade que opera a “captura” da subjetivida-de e da intersubjetividade do homem que trabalha. A manipulação social se dá principalmente por meio da produção recorrente de in-divíduos reduzidos à mera particularidade, capazes de aceitarem os valores-fetiches, reiterando a ordem das coisas.

Trabalho e desemprego estrutural

Eis um tema crucial na época do capitalismo global: a produção de uma massa de proletários supérfluos para as necessidades de acu-mulação do capital.

Em épocas de crise global, as grandes empresas tendem a fa-zer downsizing, que é uma técnica de racionalização capitalista da produção, isto é, de reestruturação produtiva do capital. Segundo os manuais de Administração de Empresas, o downsizing busca eliminar a burocracia corporativa desnecessária, sendo focado no centro da pirâmide hierárquica (atinge principalmente – mas não apenas – gerentes de médio escalão e técnicos mais qualificados). Na verdade, trata-se de um projeto de racionalização industrial que pri-vilegia práticas que mantenham a organização mais enxuta possível (o downsizing é uma técnica de racionalização corporativa indispen-sável na empresa toyotista). Muitas vezes, ele implica o fechamento de unidades produtivas e sua deslocalização para os greenfields (ou zonas de baixos salários e escassa pressão sindical). A curto prazo, envolve demissões, achatamento da estrutura organizacional, rees-truturação, redução de custos e racionalização.

Com o downsizing, as grandes empresas fazem cortes de força de trabalho, buscando não apenas cortar custos de produção, mas si-nalizar para os investidores no mercado financeiro, que estão perse-guindo mais produtividade e melhor desempenho, e portanto, visan-

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do obter mais lucros e dividendos para seus acionistas. Portanto, com a predominância do capital financeiro, o downsizing tornou-se uma prática corriqueira nas grandes empresas na época da mundialização do capital (o capitalismo global é o “capitalismo dos eufemismos” – por exemplo, enxugamento de trabalho vivo ou downzising, segundo o eufemismo empresarial, chama-se “otimização de pessoal”).

Na década de 1990, o downsizing atingiu principalmente geren-tes do médio escalão. O downsizing proliferou na década passada, atingindo ápices escandalosos, mesmo na época do boom da econo-mia norte-americana. De fato, não era mais um fenômeno de corte de despesas devido a recessão, mas tornou-se hoje uma prática capi-talista corriqueira intrínseca à nova etapa do capitalismo financeiri-zado sob o regime da acumulação flexível.

O recorrente corte de pessoal e a prática de demissões em mas-sa, contribuindo para a proliferação do desemprego estrutural que atinge parcela de contingente da força de trabalho no mundo capi-talista, obriga as pessoas – inclusive “proletários de classe média”, a buscarem estratégias de sobrevivência alternativa. Este, com certeza, é o tema candente da precarização do trabalho no capitalismo glo-bal. Aliás, a superfluidificação (ou redundância) do trabalho vivo e da força de trabalho no capitalismo global é o verdadeiro traço essencial do processo de precarização em nossos dias. É o traço extremo da descartabilidade da força de trabalho como mercadoria.

No século XXI, o capitalismo como modo de produção social não consegue mais incorporar (e incluir) um imenso contingente de gente na sua dinâmica de produção e acumulação de valor. Está tornando estas pessoas em idade produtiva e com alto grau de quali-ficação profissional, supérfluas às necessidades sistêmicas. A super-fluidificação da força de trabalho atinge hoje não apenas operários e proletários industriais ligados diretamente à produção, mas empre-gados com carreira profissional e com cargos de gerencia (explicitan-do assim sua condição de “proletários de classe média”).

Portanto, nas últimas décadas, um imenso contingente de “tra-balhadores de classe média”, muitos deles exercendo cargos de chefia

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de médio escalão ou gerencia, foram demitidos, explicitando neles, deste modo, o caráter de “proletários de classe média” e fazendo emergir a “condição de proletariedade” naquilo que ela tem de mais característico: a contingencia e acaso da força de trabalho como mercadoria.

A superfluidificação do trabalho vivo e da força de trabalho no capitalismo global, elemento essencial da “tessitura da redundância” inscrita na lógica estrutural do modo de produção capitalista, impli-ca a constituição de um complexo de reações objetivas e subjetivas à precarização da vida do homem que trabalha. Isto é, o homem é “um ser que dá respostas”, como disse Georg Lukács. Enfim, quais as reações subjetivas à situação social de intensa precarização do tra-balho. Eis o tema fundamental que merece uma investigação (o tema do estranhamento social).

Desvelarmos as reações subjetivas extremas à condição de super-fluidade da força de trabalho no capitalismo global, seria interessante recuperarmos a explicação marxiana da natureza estrutural da “tes-situra da redundância” que caracteriza o modo de produção capitalis-mo (um modo de produção social que dessocializa o trabalho vivo).

No Capitulo 23 do livro I, de “O Capital”, intitulado “A lei geral da acumulação capitalista”, Marx expõe os mecanismos da acumu-lação de capital e seus resultados objetivos. Em 1867, ele conseguiu apreender a natureza da acumulação de valor – na medida em que se desenvolve, o capital tende a substituir trabalho vivo por traba-lho morto. Eis a verdade essencial da produção do capital (o que se expressa na lei tendencial do aumento da composição orgânica do capital). Não discutiremos as implicações desta lei tendencial na ló-gica da acumulação de valor. O que nos interessa salientar é que ela implica a constituição progressiva de uma “superpopulação relati-va” ou população excedente não apenas funcional à acumulação de capital (o chamado “exercito industrial de reserva”), mas afuncio-nal, e em última instância, desfuncional à reprodução do modo de acumulação de valor (o que alguns autores iriam chamar de “massa marginal”).

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A idéia de precarização do trabalho como fenômeno intrínseco da produção do capital se manifesta da categoria de “superpopulação relativa” que, na ótica de Marx, aparece como “exército industrial de reserva”, produto legitimo dos mecanismos de acumulação do ca-pital (a “superpopulação relativa” é exercito industrial de reserva, mas não apenas – ela implica também a massa marginal que tende a crescer e conviver no interior do modo de produção de valor). En-fim, os mecanismos estruturais de acumulação de capital implicam uma dinâmica demográfica e de classe. Vejamos como a constitui-ção da “superpopulação relativa” – em suas várias formas sociais – é um elemento compositivo do processo de precarização estrutural da classe do trabalho.

O proletariado ou a classe dos trabalhadores assalariados, a clas-se-que-vive-da-venda-da-força-de-trabalho, que compõem a totali-dade viva do trabalho, objeto de exploração/espoliação/expropriação do capital, insere-se em múltiplas atividades da produção, circulação e consumo de mercadorias, inclusive da administração pública.

Temos salientado que a “classe” do proletariado se define me-nos pela delimitação trabalho produtivo/trabalho improdutivo e mais pela subalternidade às relações sociais capitalistas de poder social estranhado. A categoria “classe social” é melhor perceptível – numa abordagem histórico-dialética – pela ótica da teoria do estranhamen-to do que da teoria da exploração. Na verdade, o ponto crucial da critica materialista do capital é a constatação de que o proletariado está alienado da produção da riqueza social, sendo eles os despossu-ídos do mundo social. Enquanto complexo do trabalho vivo, o pro-letariado como classe social se contrapõe ao trabalho morto, que é o próprio capital, poder social estranhado (ou o que Marx chamou de “sujeito automático”).

Na medida em que a “força de trabalho” é mercadoria – embora não seja uma mercadoria como outra qualquer, tendo em vista que é parte ineliminável do trabalho vivo – ela, a força de trabalho (que é parte de nós, trabalho vivo) está subsumida à lei do valor. Enfim, como as mercadorias do mundo do capital, ela se valoriza ou se des-

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valoriza. Segundo a lei tendencial da acumulação capitalista, a lógi-ca irremediável do movimento do capital é desvalorizar a força de trabalho como mercadoria, para, deste modo, acumular mais-valia. É a lei histórica da produção do capital (o que explica, portanto, a vigência do desemprego em massa como expressão suprema da des-valorização da força de trabalho como mercadoria).

Assim, o principal modo de desvalorização do trabalho vivo é “produzi-lo” em excesso como força de trabalho, ou seja, como mer-cadoria disponível para o consumo capitalista. Cria-se uma “superpo-pulação relativa” que aparece como “exercito industrial de reserva”. É uma população excedente e sobrante às necessidades de acumulação do capital, mas que possui uma funcionalidade sistêmica: desvalori-zar o preço de venda da mercadoria “força de trabalho” e contribuir para a produção (e reprodução) da acumulação de valor.

Mas a superpopulação relativa na sociedade capitalista assume diversas formas de ser, podendo adquirir, segundo Marx, uma forma fluida, forma estagnada e forma flutuante. No decorrer do desenvol-vimento do modo de produção capitalista, surgiram novas determi-nações histórico-sociais às formas de ser da superpopulação relativa. Pode-se dizer que a “superpopulação relativa” aparece não apenas como “exército industrial de reserva”, mas como “massa marginal” estagnada. A própria expressão “exército industrial de reserva” pare-ce inadequada para expressar um contingente populacional sobran-te que não consegue mais ser mobilizado (como um “exército”) para as frentes de acumulação de valor.

Além disso, as populações sobrantes do complexo vivo do tra-balho que não conseguem mais fluir – como “liquido” – mas têm diante de si a perspectiva da “estagnação”, incorporam não apenas operários, vulgo “proletários industriais”, mas empregados, inclusi-ve de alta qualificação. Incorporam também jovens proletários de “classe média”, muitos deles incapazes de terem um primeiro empre-go ou ideal de carreira profissional. Por outro lado, devido as altera-ções do capitalismo global com seu sócio-metabolismo da barbárie, a função sistêmica” da “superpopulação relativa” adquire novas de-

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terminações sócio-históricas. Enquanto massa marginal, ela possui uma curiosa funcionalidade sistêmica: contribuir para a produção simbólica do imaginário da barbárie social, matriz de afetos regres-sivos do psiquismo humano (como o medo).

A superpopulação relativa

Ao constituir-se como modo de produção, o capitalismo cons-titui uma dinâmica populacional determinada pela intensidade (e amplitude) da acumulação de capital. Não apenas o crescimento (e decrescimento) demográfico, mas a própria morfologia social da po-pulação passa a ser determinada pela forma de ser da dinâmica da acumulação de capital.

A produção de uma “superpopulação relativa” às necessidades de acumulação de capital possui uma função sistêmica: desvalori-zar o trabalho vivo por meio da constituição de força de trabalho excedente como mercadoria disponível para o consumo capitalista. O modo de produção capitalista necessita do “exercito industrial de reserva”, isto é, uma população excedente ou sobrante que contribui para a produção (e reprodução) da acumulação de valor e para a sus-tentabilidade da dominação político-cultural (e simbólica) do capi-tal. Esta é uma lei geral da acumulação capitalista. Segundo Marx, a “superpopulação relativa” do proletariado assume a forma liquida latente ou estagnada. É o que iremos tratar a seguir.

1. Superpopulação relativa liquida

Em sua forma liquida, a “superpopulação relativa” diz respei-to àqueles proletários ou trabalhadores assalariados que ora são re-pelidos, ora atraídos em menor proporção, acompanhando o ciclo da economia capitalista. Portanto, nos períodos de crise capitalista, a superpopulação proletária líquida é o contingente do mundo do trabalho assalariado desempregado, que tende a perder seu empre-

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go e que aguarda uma época de prosperidade para se incorporar ao “exército ativo” de trabalhadores. É o contingente da força de traba-lho que, em tempos de crescimento da produção de valor, é objeto de intenso consumo do capital (seu tempo de vida produtiva tende a encurtar) e que está sob a “espada de Dâmocles” da lei do valor que os ameaça jogar nas fileiras dos excedentes da superpopulação relativa estagnada.

A “superpopulação relativa” em sua forma liquida possui tal de-nominação porque flui, isto é, adquire certa fluidez de acordo com os ciclos industriais. Mas a natureza da liquidez da população pro-letária fluida se altera no decorrer do processo de acumulação do capital. Por exemplo, na medida em que aumenta a escala da produ-ção industrial, o número de ocupados, como observa Marx, tende a aumentar, muito embora em proporção relativa sempre decrescente por conta do incremento da produtividade do trabalho. Existe uma tendência de o desemprego tornar-se menos fluido, ou seja, mais vis-coso, alterando, deste modo, a natureza da liquidez da forma de ser da superpopulação relativa.

O que significa que a natureza (e o sentido) do fenômeno social do desemprego se altera no decorrer do tempo histórico da produção de valor. Num primeiro momento, o desemprego (ou desocupação) era, de certo modo, um tempo de parada para imensos contingentes da população trabalhadora: “tempo de parada” é aquele tempo de preparação e de espera da alteração do ciclo da economia. Era quase que um ciclo de espera com certa sazonalidade social.

Entretanto, na medida em que se altera a composição orgânica do capital, ou seja, incrementa-se a produtividade do trabalho, com as empresas absorvendo menos trabalhadores, a incorporação relati-va dos desempregados tende a diminuir em período de crescimento da economia capitalista. Para uma parcela crescente da força de tra-balho não-ocupada, “tempo de parada” se interverteu na “parada do tempo”. Na época da crise estrutural do capital, não existem mais ciclos de negócios capazes de absorver o imenso contingente de de-sempregados. São poucos os que se incluem no “tempo de parada” e

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tende a crescer os proletários sobrantes e redundantes na sociedade do capital.

Deste modo, a fluidez do contingente da superpopulação rela-tiva fluída não é tão fluida assim, e a parcela estagnada e pobre do exercito industrial de reserva tendeu a aumentar nas últimas déca-das do século XX. É a lei da acumulação de capital que atinge imen-sos contingentes do mundo do trabalho assalariado em maior ou menor proporção (o próprio surgimento do desemprego estrutural e dos “novos pobres” nos países capitalistas desenvolvidos e em de-senvolvimento é expressão da lei geral da acumulação capitalista). É contra as perversidades desta lógica do capital que se adotam, com eficácia discutível, políticas públicas compensatórias. O que não se diz é que o contingente imenso de força de trabalho disponível, ja-mais poderá ser absorvido hoje pela produção de capital. De fato, o sistema produtor de mercadorias tornou-se incapaz de absorvê-los como produtores de valor. Para eles, o tempo parou. Eles pertencem a um limbo do não-trabalho da sociedade do trabalho, tornando-se uma “massa marginal”.

2. Superpopulação relativa latente

A superpopulação relativa em sua forma latente é a população que se encontra, como diz Marx, “continuamente na iminência de transferir-se para o proletariado urbano ou manufatureiro, e a es-preita de circunstâncias favoráveis a essa transferência”. Por exemplo, a população rural, durante muito tempo, constituiu a forma latente da superpopulação relativa. Por meio do êxodo rural, um contin-gente significativo de homens e mulheres do campo migrava para as cidades, alimentando a indústria manufatureira não-agricola. Mas a crescente urbanização da força de trabalho significa que muda o perfil da superpopulação relativa latente, que tende a ser constitu-ída hoje, não apenas de homens e mulheres do campo, pequenos produtores alienados de seus meios de produção, mas por pequenos empreendedores urbanos fracassados e jovens qualificados que pres-

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sionam o mercado de trabalho urbano-industrial. A metrópole capi-talista tornou-se um imenso campo de produção de uma população proletária latente, incorporando inclusive o campo na sua dinâmica territorial de acumulação de valor.

3. Superpopulação relativa estagnada

A superpopulação relativa em sua forma estagnada é constituída pela parte do “exercito ativo” de trabalhadores com ocupação comple-tamente irregular. Diz Marx: “É o reservatório inesgotável de força de trabalho disponível.” São os proletários, operários e empregados, de in-serção precária, no sentido lato da palavra. A irregularidade ocupacio-nal da superpopulação relativa estagnada indica certa fluidez espúria que se traduz numa desefetivação plena. Como destacamos acima, a população proletária estagnada está imersa na “parada do tempo”. A organização de classe dos proletários estagnados é tão precária quan-to sua condição salarial. Diz Marx: “É caracterizada pelo máximo do tempo de serviço e mínimo de salário”. A população trabalhadora “es-tagnada” está no limiar da esfera do pauperismo e do lumpenproleta-riado, o segmento andrajoso do proletariado moderno.

A “superpopulação relativa” estagnada tendeu a crescer nas úl-timas décadas por conta da crise estrutural do capital. O surgimen-to de um precário mundo do trabalho se traduziu na ampliação da “massa marginal” do mundo do trabalho, cujo aumento quantita-tivo promoveu alterações qualitativamente novas em sua forma de ser, tanto no sentido sócio-demográfico, quanto político-cultural. Na verdade, a situação de estagnação da “superpopulação relativa” adquiriu conotações de exclusão (e de barbárie) social. Ao crescer e diferenciar-se, assumiu uma nova morfologia social. É nela que se inscreve o contingente da força de trabalho proletária atingida pela “precarização do trabalho” – nesse caso, a precarização é um pro-cesso histórico-social de perda – muitas vezes, lenta e gradual – de vínculos sociais com a produção do capital. É um deslocamento no espaço-tempo da condição de proletariedade.

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Ora, a superpopulação relativa em si, como categoria social, é expressão da precariedade do trabalho assalariado. Como temos sa-lientado, a precariedade é uma condição histórico-ontológica de ins-tabilidade e insegurança de vida e de trabalho do homem (e da mu-lher) proletário. Mesmo o trabalhador assalariado que flui por conta dos ciclos industriais, explicita sua precariedade viva (em síntese: a precariedade é uma dimensão ontológica do trabalho assalariado).

Entretanto, o incremento da produtividade do trabalho por con-ta do desenvolvimento histórico da acumulação industrial do capi-tal, tende a impulsionar o movimento de precarização do trabalho assalariado, explicitando, deste modo, novas determinações da pre-cariedade viva.

Quando Marx tratou das diferentes formas de existência da “superpopulação relativa”, ele nos apresentou uma demografia da precarização do trabalho, cuja forma de ser se altera no decorrer do desenvolvimento cíclico da economia capitalista. Por exemplo, Marx tratou, em sua época, de um problema candente do capitalismo mo-derno hoje: o problema da migração da força de trabalho, onde ho-mens e mulheres despossuídos, “seguem atrás o capital emigrante” (Marx). Fluidez e liquidez, deslocamento e migração: eis o “destino” dos proletários da civilização do capital.

Sob o sistema do capital, o trabalho vivo proletário é desempre-gado ou empregado. Isto é, caracteriza-se pela volubilidade. Ao tra-tar a “superpopulação relativa” de proletários como liquida, latente e estagnada, Marx explicitou a volubilidade do trabalho proletário. Mesmo em sua forma estagnada, a superpopulação relativa não dei-xa de ser volúvel, pois a ordem social do capital está em constante mudança. Inclusive, a estagnação do desempregado (ou subempre-gado) aparece como uma “fluidez espúria”. Como disse Marx, eles “têm uma ocupação completamente irregular”.

A fluidez da superpopulação relativa liquida e a flutuação da superpopulação relativa latente, que se encontra na iminência de compor o proletariado à disposição da exploração capitalista, possui também seus significados. Elas acompanham os ciclos de desenvol-

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vimento capitalista, preservando em seu movimento, o estatuto on-tológico de precariedade da força de trabalho como mercadoria.

Devido as mutações estruturais do capitalismo global decorren-tes da crise estrutural do capital e da constituição do sócio-metabo-lismo da barbárie, altera-se a morfologia social da “superpopulação relativa”. Por exemplo, o precário e redundante se intervertem no ex-cluído, que não é meramente o estagnado, no sentido marxiano do século XIX. A idéia de “excluído” – que é sempre relativa – remete à “massa marginal” (vale dizer, “marginal” às expectativas da “so-ciedade salarial”, no sentido de ordem social do emprego regular e com carreira profissional por toda a vida). Enfim, sob o capitalismo global, explicita-se uma nova forma de ser da desefetivação (ou estra-nhamento) do ser genérico do homem-que-vive-da-venda-da-força-de-trabalho. Um contingente imenso da população proletária fluída encontra-se no limiar da estagnação ou mesmo da exclusão social, submersos no precário mundo do trabalho, incapazes de serem ex-plorados pelo capital e de pertencerem à ordem do “mundo produ-tivo” de valor. Pelo contrário, a proletariedade “fluída” pertence ao cinzento mundo das mercadorias, um mundo da circulação inces-sante de coisas. Na verdade, estão subsumidos ao fetichismo opaco e intransparente das mercadorias, tornando-se meros vendedores de si (como prestadores de serviços) ou de produtos-mercadorias.

A constituição de um contingente de proletários “excluídos” – ou crescente “massa marginal” – é deveras funcional às necessidades da ordem burguesa. É claro que a massa de proletários inempregá-veis não possui funções econômicas relevantes propriamente ditas. Entretanto, como salientamos acima, possuem, pelo menos, função simbólica (o que não é pouco), na medida em que constituem o ima-ginário da barbárie social, matriz sócio-metabólica do medo que se-dimenta na alma humana os consentimentos espúrios dos proletá-rios empregados nos loci de produção de valor. O sócio-metabolismo da barbárie é um dos pressupostos da “captura” da subjetividade do trabalho pelo capital. Portanto, além de limitar o crescimento do sa-lário real, a excesso de força de trabalho proletária em sua forma

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estagnada ou excluída, possui importante função simbólica (e polí-tica), contribuindo para entravar o movimento social organizado do trabalho e servindo de estofo para a reação social (como observou Marx no caso do lumpen-proletariado). De fato, a barbárie social al-tera a dinâmica social e política e coloca novos desafios para a orga-nização da força de trabalho.

- A função simbólica da barbárie social

É importante salientar mais uma vez que o crescimento do de-semprego em massa e a ampliação de novas formas de precariedade salarial e da precarização do trabalho no capitalismo global possui não apenas uma função sistêmica para a acumulação do capital (isto é, limitar o crescimento do salário real e dificultar a luta sindical, contribuindo para o incremento da taxa de exploração da força de trabalho). Eles possuem uma função derivada, ou seja, buscam ins-taurar um novo tipo de sociabilidade regressiva, de dessocialização perversa e de barbárie social que constitui uma fábrica de morbidez social capaz de obstaculizar disposições humano-genéricas em dire-ção à transcendência do estado de coisas existente. Deste modo, o ca-pital como modo de controle sócio-metabólico cria uma forma social adequada à sua própria reprodução contraditória, uma forma social no interior da qual possa reproduzir suas contradições candentes.

Estamos diante de um processo sócio-histórico de natureza sistêmica. Não existe uma “conspiração de classe” que instaura um precário mundo do trabalho visando obter consentimentos espúrios e desarmar os espíritos utópicos. Na verdade, o capital é, em si, um sistema de controle do metabolismo social intrinsecamente contra-ditório que constitui novos campos de socialização e, ao mesmo tem-po, impulsiona um processo de dessocialização social. Eis a contradi-ção suprema da modernização do capital, cujo sistema social não é apenas sistema de controle da produção social voltado para a expro-priação de sobretrabalho e acumulação de excedente, mas modo de controle do metabolismo social que contém, em si, determinidades

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contraditórias. É a própria síntese da teleologia social estranhada (como diria Marx e Engels, é o poder social estranhado).

O que significa que o capital como modo de controle sócio-meta-bólico é parte intrínseca de todos nós, indivíduos sociais de uma socie-dade socializada pelas disposições alienadas da acumulação de valor. Na época do capital em crise estrutural, a civilização contém a barbárie social que a dilacera. Como observou o filósofo Ernst Bloch, a barbárie social é “um féretro ao lado da esperança”, esperança que aparece como “utopia concreta” pressuposta no atual estágio de desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social. O precário mundo do trabalho é um dos sintomas da barbárie social do século XXI.

O surgimento do mundo do trabalho precário significa a amplia-ção do contingente estagnado da “superpopulação relativa”. O exér-cito ativo de trabalhadores com ocupação completamente irregular, como observou Marx, “proporciona, assim, ao capital, um reservató-rio inesgotável da força de trabalho disponível.” É o que observamos hoje com as novas formas da precariedade capitalista na era neolibe-ral: máximo tempo de serviço e mínimo de salário.

O aumento relativo da jornada de trabalho entre o contingente de trabalhadores organizados e a queda do rendimento médio dos trabalhadores em geral, que afetam as economias capitalistas desen-volvidas ou em desenvolvimento, são sintomas da nova precariedade salarial. O mote é “trabalhar mais para ganhar menos”. É a expressão do mundo do trabalho estagnado, subproduto da crise do estatuto sa-larial e do desemprego estrutural; e da dinâmica medíocre da acumu-lação capitalista, onde a financeirização da riqueza capitalista obsta-culiza o crescimento significativo dos investimentos produtivos.

No século XIX, Marx apontou as determinações clássicas do trabalho estagnado. Diz ele: “Seu volume se expande na medida em que, com o volume e a energia da acumulação avança a ‘produção da redundância’.” Existe, assim, como lógica intrínseca da acumulação capitalista, a produção da redundância da força de trabalho. Entre-tanto, em sua etapa de crise estrutural, a expansão da superpopula-ção relativa estagnada ocorre não apenas por conta da acumulação

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de capital propriamente dita. A acumulação flexível e o regime de acumulação predominantemente financeirizado tendem a colocar novas determinações sociais para a “produção da redundância” – ou o que denominamos de “tessitura da redundância”. O novo conjunto de determinações do capitalismo global constitui os elementos que instauram a barbárie social (em seu novo livro “O Novo Imperialis-mo”, de 2004, David Harvey nos apresenta o conceito de “acumula-ção por espoliação” capaz de expressar a nova dinâmica capitalista em tempos de barbárie social).

A precariedade social transborda os limites do estatuto sala-rial propriamente dito. Os proletários do século XXI não são ape-nas trabalhadores empregados subordinados às empresas privadas ou públicas, mas também trabalhadores assalariados que aparecem como prestadores de serviço, trabalhadores independentes ou “au-tônomos”. Deste modo, complexifica-se o vinculo de trabalho as-salariado, transbordando a mera relação de emprego juridicamente determinada. Como salientamos, é a subalternidade estrutural à ló-gica do capital e do mercado que constitui a natureza do trabalho assalariado ou condição de proletariedade.

O trabalhador coletivo torna-se uma constelação complexa de vínculos de subordinação e de dependência, que pode assumir ou não a forma do contrato de trabalho clássica. O que alguns autores denominam de perda da centralidade do trabalho (Claus Offe) ou extinção do valor-trabalho (Dominique Medá) é tão-somente a me-tamorfose complexa do vinculo de “emprego” em novas formas de subalternidade salarial para além do vinculo empregatício.

No capitalismo global observa-se a exacerbação da intensidade e amplitude da disseminação do trabalho abstrato, onde mesmo os trabalhadores redundantes da produção social (os inempregáveis) ou os trabalhadores “autônomos” ou independentes, supostamente “livres” do “trabalho estranhado”, não deixam de serem elementos compositivos do modo de controle sócio-metabólico do capital. Em-bora não parecem ter nenhuma função econômica relevante, eles re-produzem, em si e para si, a “racionalidade econômica” (como diria

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André Gorz). Em última instância, não negam o sistema do trabalho assalariado, mas, pelo contrário, o afirmam, sendo auto-reproduto-res da ordem sistêmica do capital.

Por isso, o crescimento dos trabalhadores “autônomos”, traba-lhadores “independentes” ou por conta própria aparece como ex-pressão ampliada da superpopulação relativa estagnada. No plano fenomênico, eles aparecem como “patrões de si próprios”. Entretan-to, toda atividade humana instrumental pertence hoje à lógica sistê-mica do capital, seja ela produtiva ou improdutiva. Aliás, na época do capitalismo global, a linha de demarcação entre trabalho “produ-tivo” e “improdutivo” torna-se bastante tênue.

Ora, não só a massa dos nascimentos e óbitos das pequenas em-presas, conduzidas por trabalhadores autônomos ou independentes, mas também as grandezas absolutas destas empresas estão em pro-porção inversa ao nível de renda da remuneração do trabalho, por-tanto, à massa da riqueza que o capital dispõe para as diferentes cate-gorias de trabalhadores. Como diria Adam Smith, citado por Marx, “a pobreza parece favorecer a reprodução”. O aumento dos pequenos negócios no capitalismo global, muitos deles sem envergadura finan-ceira e sem capacidade de concorrência no mercado, é a outra face do precário mundo do trabalho e da nova precariedade social.

- O lumpenproletariado

Após tratar do trabalho estagnado, Marx trata do mais profundo sedimento da “superpopulação relativa”, a esfera do pauperismo ou o “lumpenproletariado”, contingente de homens e mulheres imersos na proletariedade extrema e cuja morfologia social é tão complexa quanto a do trabalho estagnado. A crise do Welfare State dá novo estofo socio-lógico ao mais profundo sedimento da “superpopulação relativa”.

A disseminação da “nova pobreza” nos países capitalistas cen-trais expõe um contingente de proletários “excluídos” não apenas da produção de valor das sociedades do capital, mas do horizonte de

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reprodução social. Eles são considerados pelo capital, “peso morto” do exercito industrial de reserva.

Entretanto, como salientamos, possuem uma função derivada: são matérias-primas da produção simbólica da barbárie social, con-tribuindo, deste modo, para o modo de controle sócio-metabólico do capital em sua fase de crise estrutural. Os proletários “excluídos” podem não pressionar o mercado de trabalho, tendo em vista que es-tão aquém das exigências de empregabilidade do sistema do capital, mas compõem o horizonte simbólico da ordem dos consentimentos espúrios e do custo “improdutivo” da barbárie social que atinge as grandes metrópoles. A crise do Welfare State e da rede de proteção social coloca na ordem do dia nos países capitalistas centrais, a cha-mada “nova questão social”. Entretanto, a “nova questão social” é mero eufemismo para a barbárie social.

Os dados divulgados pela ONU em agosto de 2005, sobre a si-tuação social no mundo, comprovam um cenário de desigualdade social no capitalismo global que expressa a exacerbação da precarie-dade do mundo do trabalho. O documento “A Cilada da Desigual-dade”, expõe dados alarmantes quer merecem uma reflexão crítica. Por exemplo, apenas 20% da população mundial têm cobertura por sistema de proteção social. Se em 1993, 140 milhões de pessoas es-tavam desempregadas, em 2003, este contingente de desempregados cresceu para 186 milhões. Em 2003, segundo a ONU, 1,39 bilhão de pessoas, ou 49,7% dos trabalhadores do mundo, ganhavam menos de US$ 2.00 por dia. No mundo em desenvolvimento, 23,3% dos traba-lhadores ganham menos de US$ 1.00 por dia (“Globalização acentua desigualdade”, jornal O Estado de São Paulo, 26.08.2005).

A desigualdade social e a precariedade do mundo do trabalho são maiores do que apontam os indicadores sociais acima. Muitos países, como o Brasil, possuem critérios de estatística social cuja me-todologia é incapaz de apreender a dimensão da precariedade (e da precarização) do mundo do trabalho. Além disso, os dados da ONU não comparam os dados do mundo do trabalho com os dados do mundo da grande burguesia.

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Nas últimas décadas verificou-se uma alta concentração da ri-queza nas grandes corporações globais. O expressivo crescimento da produtividade do trabalho social por conta do novo complexo de reestruturação produtiva foi apropriado pelas personas do capital em prol da acumulação de valor e não em beneficio da civilização hu-mana. Estes são os traços da gritante irracionalidade social ocultada pelos meios midiáticos que expõe, com clareza, a verdadeira dimen-são da exploração do capital e do estranhamento no século XXI.

No cenário do capitalismo global aumentou, com certeza, o con-tingente estagnado da “superpopulação relativa” e a massa do lum-penproletariado. Sobre o profundo sedimento da “superpopulação relativa”, o lumpenproletariado, Marx tinha observado no século XIX: “Ele pertence ao faux frais da produção capitalista que, no en-tanto, o capital sabe transferir em grande parte de si mesmo para os ombros da classe trabalhadora e da pequena classe média.”

É o que ocorre hoje, quando o custo da nova precariedade social, os falsos custo (faux frais), recaem sobre o mundo do trabalho por meio da dessocialização da classe do trabalho, cuja maior expressão é dada pelo desmonte dos sistemas de previdência social pública e uni-versal; dos consentimentos espúrios e do novo imaginário da barbá-rie social. São expressão daquilo que Antonio Gramsci caracterizou como sintomas da morbidez social, expressão da crise do Estado e de um período em que o velho já deixou de ser e o novo não chegou.

Morfologia social da superpopulação realativa do proletariado

lumpenprole-tariado

população latente

população estaganda

população líquida

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No gráfico, observamos a representação do “lumpen-proleta-riado” que, como a “população latente”, coloca-se numa situação de “externalidade” à dinâmica da acumulação de capital. Só que, en-quanto a população latente se dirige para o núcleo da produção de valor, a representação gráfica do lumpen-proletariado é na direção contrária. São posições antípodas complementares na morfologia social da superpopulação relativa.

O núcleo da produção sistêmica do capital é constituído pela “população liquida”, no centro, que constitui o “exercito industrial de reserva”, mas cercada por uma “população estagnada”, que a su-foca e age como um espectro de si. A “população estagnada” ten-de a crescer e a reduzir o núcleo orgânico da “população liquida” (é curioso que o sociólogo Zigmut Bauman tenha caracterizado a mo-dernidade do capital como “modernidade liquida”, quando o correto seria designá-la como “modernidade estagnada”).

É claro que Marx ao discutir a lei geral da acumulação capita-lista, trata de uma “lei geral” que está sobredeterminada por ten-dências particulares do capitalismo monopolista em sua etapa global. A morfologia social da superpopulação relativa é determinada pelas tendências concretas da acumulação do capital.

Com o capitalismo global e a mundialização do capital, a lei ge-ral adquire feições particulares: o capitalismo neoliberal expõe com maior desenvoltura as tendências perversas do modo de produção, na medida em que predomina a financeirização da riqueza capita-lista, com impactos na estrutura de gestão empresarial e exploração da força de trabalho. Na medida em que a produção de valor é con-vulsionada pela lógica da financeirização que se expressa por meio do “capitalismo das bolhas especulativas”, altera-se a dinâmica do investimento (e do desenvolvimento) do capital e, por conseguinte, o mercado de trabalho e a morfologia social da superpopulação relati-va (menos investimentos produtivos significam menos crescimento da economia e, portanto, menos abertura de empregos, etc).

Outra tendência concreta da acumulação capitalista e elemento compositivo do capitalismo global é a transfiguração da base tec-

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nológica do sistema do capital. Desde a década de 1950, o sistema mundial do capital é impulsionado por uma série de revoluções tec-nológicas que acirram a produtividade do trabalho social. Enfim, tende-se a produzir mais com menos trabalho vivo. Aumenta-se tendencialmente a composição orgânica do capital. É mais um ele-mento – não o único, é claro – que pressiona para baixo, as taxas médias de lucro, acirrando a concorrência no mercado mundial. Por outro lado, no contexto da crise estrutural do capital, as políticas ne-oliberais de desregulamentação e abertura de mercados, compõem o cenário de intensa concorrência mundial. As grandes empresas vinculadas à “estratosfera do mercado mundial”, diante da con-corrência acelerada e intensificada, exigindo maior giro do capital, buscam “enxugar” o quadro de pessoal, visando tornar-se “empresas flexíveis”. Por isso, reduzem custos de produção, visando recompor margens de lucro, mas principalmente buscando sinalizar para os investidores o compromisso com mais produtividade e desempenho (ao produzir mais com menos pessoal – e mais ainda, relocalizar-se em áreas “greenfields”, as empresas conseguem maior extração de mais-valia relativa).

Cenários do Capitalismo global

Financerização da Riqueza Capitalista

Revoluções Tecnológicas

Politicas Neoliberais

Portanto, nas últimas décadas, as estratégias de extração de mais-valia relativa na produção do capital disseminam-se com maior in-tensidade e amplitude, como forma de recompor as margens de lucro pelo aumento da taxa média de exploração (a acumulação flexível e

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o toyotismo são formas organizacionais de inovação do capital que contém este espírito diruptivo, reconstituindo, para tal, a “captura da subjetividade do trabalho”).

A dinâmica da produção da mais-valia relativa é o traço essen-cial que comanda o processo de precarização estrutural da classe do trabalho, dada pelo aumento (e equalização) da taxa media de ex-ploração da força de trabalho. Inclusive podemos dizer que a leitura da seção VI de “O Capital”, intitulada “A Produção da Mais-valia Relativa”, contém, com certeza, a fenomenologia de um processo de tessitura da redundância em seus aspectos objetivos.

A lógica da produção de mais-valia relativa é a verdadeira matriz essencial do processo de precarização do trabalho, ou seja, o modo de produção capitalista como modo de acumulação ampliada do ca-pital, por sua própria natureza, evolui precarizando a força de tra-balho. É uma natureza sistêmica irremediável cuja dinâmica social concreta é administrada pelos arcabouços político-institucional de cada formação nacional.

É claro que a luta de classes levou à constituição de uma estata-lidade politica e formas de instituição sociais que visam a colocar limites “externos”, mas não a abolir, a dinâmica perversa do “moi-nho satânico” do capital (como diria Karl Polany no livro “A Grande Transformação”).

No século XX, as lutas sociais de classe buscaram criar teias de proteção social constituindo uma “proletariedade regulada” menos exposta à dinâmica perversa da redundância viva (o Estado social do capital). O que demonstra que a dinâmica da precarização do traba-lho é não apenas uma dinâmica sócio-estrutural, mas uma dinâmica histórico-política no interior do sistema do capital.

Entretanto, o capitalismo neoliberal desmontou nas últimas dé-cadas as teias da regulação social, expondo os mecanismos de preca-rização e desvelando a natureza de proletariedade de imensos con-tingentes do trabalho vivo e da força de trabalho. O Estado neoliberal é o Estado do capital que explicita a precarização do trabalho e da força de trabalho.

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A ordem burguesa é uma ordem intrinsecamente amoral (a “mo-ral capitalista” é a não-moral – o que significa que não podemos julgá-la a partir de “critérios morais” na medida em que os sujeitos humanos não têm autonomia pessoal, sendo meras “personas” do capital).

Além disso, do ponto de vista da individualidade de classe, em si, e do individuo solitário imerso em seu particularismo familiar, ele, sózinho, nada pode. O mundo social é uma natureza imutável.

Na fase do capitalismo global, torna-se mais aguda as contradi-ções dilacerantes do sistema do capital. De um lado, as promessas contidas na base técnica de redução do tempo de trabalho em virtu-de do aumento da produtividade do trabalho social. De outro lado, as relações sociais de produção e a lógica selvagem do mercado que acirra a concorrência e exige maior extração de mais-valia e, portan-to, transforma tempo de vida em tempo de trabalho (nunca se traba-lhou tanto) – inclusive, ou principalmente, no caso dos “proletários de classe média” – promovendo enxugamentos contínuos da força de trabalho por conta do aumento da produtividade social (produz-se mais com menos trabalho vivo).

Explicita-se então o processo de proletarização de trabalhadores de “classe média” – na verdade, explicita-se sua “condição de pro-letariedade” (no passado, os camponeses tinham a posse, mas não tinham a propriedade e hoje, os “proletários de classe média”, têm a posse de habilidades profissionais, distinções de carreira e outros objetos de ostentação social, mas não tem a propriedade do controle da produção da vida).

Os “proletários de classe média” não conseguem – ou têm difi-culdades – de lutar juntos contra os inimigos comuns; e segundo, o que se coloca com a “exclusão” – ou desligamento deles da produção do capital – sob o capitalismo global, é a indiferença ou incapacidade de reconhecimento na nova ordem global do capital. A incapacidade de “não-reconhecimento” é o traço essencial da natureza da “exclu-são” social.

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A sociedade burguesa é sociedade do trabalho, que reproduz, em escala ampliada, o não-trabalho. Isto ocorre porque o eixo estrutu-rante da sociedade burguesa, não é o trabalho vivo como trabalho concreto, mas sim, o trabalho abstrato (o trabalho vivo é um pres-suposto ineliminável tendencialmente negado). O que significa que, em sua etapa de crise estrutural, é candente o movimento de negação do trabalho vivo pelo trabalho abstrato, o tipo de trabalho que pro-duz valor, telos estranhado da processualidade sistêmica do capital.

A precarização do trabalho explicita a natureza de precariedade salarial do mundo do capital. Ao viverem o estranhamento em sua forma aguda, as individualidades de classe tendem a submergirem no particularismo pessoal. O que se coloca aqui é o problema das relações sociais deterioradas pelo mundo do estranhamento e feti-chismo da mercadoria. É a irrealização pessoal que degrada os laços sociais das individualidades de classe. Portanto, a precarização do trabalho atinge a objetividade e a subjetividade do trabalho vivo. Ela se manifesta, por exemplo, na alta incidência de adoecimento de em-pregados e operários com o “desmanche” da vida pessoal e afetiva (dos trabalhadores).

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A disputa pelo IntangívelEstratégias gerenciais do

capital na era da globalização

um das dimensões cruciais do complexo de reestruturação produtiva que se desenvolve sob o novo regime de acumula-ção flexível é a constituição de estratégias gerenciais voltadas

para a “captura” da subjetividade do trabalho vivo. O núcleo ideo-lógico do novo regime de acumulação flexível é o toyotismo, posto como a ideologia orgânica do novo complexo de reestruturação pro-dutiva que surge com a mundialização do capital. O nexo essencial do toyotismo é a “captura” da subjetividade, traço significativo das ideologias gerenciais dos últimos trinta anos. A disputa pela subje-tividade ocorre no interior de um processo de disseminação de uma pletora de valores-fetiches, expectativas e utopias de mercado que constituem o que denominamos “inovações sócio-metabólicas” que perpassam não apenas o espaço da produção, mas o espaço da re-produção social. O que significa que a “captura” da subjetividade é não apenas um fato da gestão das empresas, mas um processo so-cial complexo que implica produção e reprodução social, trabalho e cotidiano, compondo a nova base sócio-metabólica do que Georg Lukács denominou “capitalismo manipulatório”.

O objetivo deste ensaio é tentar expor alguns elementos teórico-analiticos que possam contribuir para a apreensão dos significados da “captura” da subjetividade do trabalho vivo, nexo essencial das estratégias gerenciais do capital na era da globalização. Em primeiro lugar, iremos expor as evidências da obsessão pelo controle/mani-pulação/captura da subjetividade do trabalho nas práticas de gestão empresarial. É o que iremos denominar de obsessão pelo intangível, que se tornou a meta suprema do toyotismo. Para elem dos discur-

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sos de gestão, existe a operação real de administrar o intangível, isto é, o que não se vê e, portanto, o que remete a valores, expectativas e sonhos. Todo o discurso da Taaichi Ohno, ideólogo do STP (Siste-ma Toyota de Produção) é “focar” o homem que trabalha para apre-ender a sua subjetividade pelo avesso (OHNO, 1997). A pletora de valores-fetiches, expectativas e utopias de mercado compõem o que podemos denominar de “tempestade de ideologias” que tendem a corroer a percepção do real. É um dos elementos da desefetivação do trabalho vivo.

Em segundo lugar, iremos refletir sobre o significado da expres-são “captura” da subjetividade. Utilizamos “captura” entre aspas para destacar o caráter metafórico do processo. Na verdade, é impossível se “capturar” a subjetividade do trabalho vivo. Por isso, o sentido da “captura” é intrinsecamente processual, virtual e contraditório, nos conduzindo, em si, a uma situação-limite (no caso de personali-dades singulares se manifestam, por exemplo, na disseminação das “doenças da alma”). Explicitaremos, a seguir, o significado de “sub-jetividade” a partir da psicanálise, considerada por nós, a “economia política” da subjetividade do homem burguês.

Em terceiro lugar, num movimento dialético, iremos ensaiar uma critica da categoria “subjetividade”, isto é, uma critica do homo psicologicus que está subjacente às teorias psicanalíticas. Ao dizer-mos “subjetividade”, ocultamos, no plano discursivo, uma verdade essencial: a subjetividade é intrinsecamente intersubjetiva. O homem é acima de tudo, uma individualidade social. Portanto, o discurso da “subjetividade” em si, tende a ocultar uma dimensão profunda desta “captura”. Isto é, ela não é apenas controle/manipulação das instân-cias psíquicas do sujeito burguês, do homem que trabalho apreen-dido como uma mônoda social, mas a corrosão/inversão/perversão do ser genérico do homem como ser social. Não podemos conceber o sujeito humano sem as teias de relações sociais nas quais ele está inserido.

Deste modo, a “captura” da subjetividade é a “captura” da inter-subjetividade e das relações sociais constitutivas do ser genérico do

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homem. O que expõe o significado do movimento de dissolução de coletivos de trabalho e reconstrução de novos coletivos/equipes ditas “colaborativas” com as idéias da empresa. Ao desconstruir/reconsti-tuir “coletivos de trabalho”, o capital opera um movimento de “cap-tura” da subjetividade. Neste movimento, reencontramos o homem social, o trabalhador coletivo como criação do capital. Podemos di-zer que a idéia de rede é a idéia da “captura” da intersubjetividade do homem que trabalha. A rede é a técnica de gestão da verdadeira riqueza imaterial e intangível.

1. O toyotismo e a obsessão pelo intangível

Um dos princípios essenciais da prática de gestão toyotista é, segundo Matthew E. May, conselheiro da Universidade da Toyo-ta, “captar o intangível”. A nova ideologia da produção do capital busca apreender duas dimensões cruciais do intangível. Primeiro, o intangível como valores-fetiches, expectativas e sonhos de mercado; e segundo, o intangível como capacidade de aprendizagem e envol-vimento com a empresa e a marca. Esta estratégia do capital sob o toyotismo implica tanto clientes quanto operários e empregados, ou ainda, mobiliza consumo e produção de mercadorias.

No livro “Toyota – A formula da inovação”, de Mathew E. May, os nexos essenciais do toyotismo aparecem a partir da exposição de seus princípios, práticas e protocolos. Num certo momento, o au-tor trata de relações de mercado e de estratégias de marketing da empresa. Coloca-se a necessidade de “captura” da subjetividade do cliente através da apreensão de seus valores e sonhos. Assim, pode-se garantir o mercado e derrotar a concorrência. Embora May trate de clientes, poderia do mesmo modo, estar tratando de operários e em-pregados, pois na ideologia do capitalismo em rede, operários e em-pregados não deixam de ser “clientes” (ou parceiros colaboradores) da grande empresa. A manipulação perpassa com intensidade tanto a instância do consumo (e do lazer), quanto a instância da produção. Na verdade, as relações de mercado mistificam cada vez as relações

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de produção, ocultando a tessitura da exploração da força de tra-balho e do trabalho vivo. Enfim, disputa-se o intangível de ambos – por um lado, clientes; e por outro lado, operários e empregados, visando tanto garantir mercado, quanto a consecução da produção toyotista, com seus objetivos de produtividade e qualidade.

Diz May: “Captar o intangível. São as coisas intangíveis que dife-renciam e transformam. Vão muito além do negócio, do produto, do serviço, do pro cesso. Captar as coisas intangíveis que as pessoas verdadeiramente prezam o levará aos elementos mais imprescindí-veis em relação aos valores. A Lexus não vende transporte de luxo; vende abrigo seguro e escape silencioso. A Disney não opera par-ques temáticos; opera mágica e fantasia. E a Starbucks não oferece café; oferece expressão pessoal e ritual diário. E a arte dos negó-cios.” (MAY, 2007)

Na medida em que a empresa e sua marca criam laços emocionais com o cliente, ela garante o sucesso nos negócios. Salienta-se que as pessoas estão comprando mais do que produtos e serviços. No capita-lismo manipulatório as estratégias de negócios e de gestão do trabalho procuram captar o aspecto emocional ou perceptivo. Na medida em que o toyotismo possui como nexo essencial a busca pela “captura” da subjetividade do trabalho vivo, ela torna-se a ideologia orgânica das estratégias emprresariais sob o capitalismo global. ”. A “captura” da subjetividade é a apreensão da dimensão pessoal da individualidade de classe. Na verdade, o foco da estratégia empresarial no capitalismo manipuylatório é o núcleo humano do trabalho vivo.

Por um lado, o olhar perscrutador do capital dirige-se ao cliente. Salienta May: “Não é negócio; é pessoal”. Fala-se em “conexão emo-cional” que possui, segundo May, um estofo irracional. Diz ele: “O que dificulta tanto a conexão emocional é a irracionalidade”. Trata-se, nesse caso, de clientes: “Eles não conseguem dizer sempre porque amam o que amam, pelo menos em termos utéis. As vezes, nem sa-bem. Ás vezes, sabem exatamente, mas não querem dizer. Porque e pessoal.” (MAY, 2007)

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É claro que o capitalismo monopolista no decorrer do sécu-lo XX, mesmo sob o fordismo-taylorismo, desenvolveu à exaustão as estratégias de manipulação social por meio do apirmoramento das técnicas de propaganda e marketing. Como salientou Georg Lukács (o que iremos tratar mais adiante), a manipulação do capi-tal permeia não apenas a instância da produção, mas a instância do consumo e do tempo livre de operários e empregados. Na ânsia de conquistar o mercado consumirodr, as grandes empresas investem cada vez mais em técnicas de manipulação social ou de “captura” da subjetividade do cliente.

O toyotismo coloca a captação do intangivel como elemento crucial na sua estratégia de negócio e de produção. Na medida em que se busca a “conexão emcocional”, a empresa investe em dar o “toque pessoal” (o que explica a lógica da customização adotada pela empresa flexivel nos mercados globais). Assim, segundo May, busca-se increementar os aparatos manipulatórios, isto é, “fazer o melhor para entender a natureza humana e como a mente funciona (sic). E por isso que a Toyota algumas vezes emprega antropólogos, psicólo-gos e cientistas compor tamentais, que nos dizem sistematicamen-te que as pessoas compram por motivos individuais relacionados a seus valores pessoais e compram porque alguma coisa dentro delas lhes diz para comprar. Essa bússola interna aponta para uma direção universal.” (MAY, 2007)

Esta apreensão do intangível é o que poderíamos denominar de “captura” da subjetividade do trabalho vivo - por um lado, o tra-balho vivo como cliente-consumidor, imerso na instância da cir-culação de mercadorias, trabalho vivo com capacidade aquisitiva, consumidor de produtos e serviços (é o “envolvimento do cliente”); por outro lado, a “captura” da subjetividade do trabalho vivo vi-sando o trabalho vivo como cliente-força de trabalho, operário ou empregado, ou no léxico empresarial, “colaborador” ou “parceiro” na produção do capital.

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Valores-fetiches do novo empreendimento capitalista

Ação Confiabilidade Harmonia personalidade

Aceitação Conformidade Honestidade poder

Admiração Conforto Honra popularidade

Afeto Controle Humor prazer

Afiliação Credibilidade identidade ■ prestígio

Afinidade Cuidado igualdade previsibilídade

Alegria Cultura imagem procedimento

Amizade Deferência impulso Rapidez

Aprovação Desafio inclusão Realidade

Atenção Disciplina independência Reconhecimento

Autenticidade Diversão individualidade Refúgio

Autoconhecimento Elegância integridade Renovação

Auto-expressão Encanto inteligência Respeitabilidade

Autonomia Energia intimidade Ritual

Autoridade Entrosamento irmandade Rotina

Auto-suficiêncía Entusiasmo liberdade Sabedoria

Aventura Equilíbrio liderança Santuário

Beleza Escape longevidade Saúde

Bem-estar Esperança Mágica Segurança

Benevolência Espiritualidade Mistério Sensibilidade

Brincadeira Espontaneidade Novidade Serenidade

Calma Estabilidade oportunidade Simplicidade

Camaradagem Estima ordem Solidão

Certeza Estímulo orgulho Sossego

Compreensão Exclusividade ousadia Status

Compromisso Expertise paixão tranquilidade

Comunidade Fama parceria unidade

Concorrência Família património Variedade

Conexão Fantasia paz de espírito Vitalidade

Fonte: Extraído de MAY, 2007

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A disputa pelo Intangível – Estratégias gerenciais do capital na era da globalização

No campo da produção de capital, busca-se se apropriar não apenas de habilidades técnico-profissional da força de trabalho, mas de disposições subjetivas/anímico-volitivas do trabalho vivo em prol dos interesses da produção de mercadorias. Observa May: “Uma das coisas intangíveis mais poderosas refere-se à ideia de parceria, isto é, um intercâmbio benéfico de valores no qual a ajuda de cada um é es sencial para o sucesso do outro. Uma colaboração. Um sentimento de esta mos nisso juntos.”(MAY, 2007). Ora, estamos imerso numa tempestade de ideologia. O que se diz de clientes, pode-se dizer também de empregados e operários, apreendidos hoje, pelo léxico empresarial, como “colaboradores” e “parceiros” na gestão dos ne-gócios. É claro que se trata do núcleo estável da força de trabalho das empresas mais dinâmicas do mercado mundial, onde o capital concentra a produção (e agregação) de valor.

Mas a captação do intangível ou a “captura” da subjetividade do trabalho vivo como força de trabalho pressupõe não apenas o envolvi-mento de operários e empregados com a empresa e a marca, mas tam-bém, com a mesma intensidade, o desenvolvimento da sua capacidade de aprendizagem. Eis outro princípio essencial do método Toyota. As-sim, a adoção do toyotismo visa a constituição de um novo nexo psi-cofísico capaz de moldar e direcionar ação e pensamento de operários e empregados em conformidade com a racionalização da produção. Este é o significado imediato do termo “captura” da subjetividade do trabalho. Os dispositivos organizacionais do novo modelo de gestão (just-in-time/kan-ban, kaizen, CCQ, etc), mais do que as exigências da organização industrial do fordismo-taylorismo, sustentam-se no envol-vimento do trabalhador com tarefas da produção em equipe ou jogos de palpites para aprimorar os procedimentos de produção.

Por outro lado, ao priorizar o aprendizado, primeiro princípio da prática toyotista, Matthew E. May expõe a centralidade do envolvi-mento de operários e empregados com a produção. A aprendizagem salientada por May é aquela voltada para a resolução de problemas. Ele cita Lewis Lehr que diz que “o verdadeiro obstáculo da inovação nas grandes empresas não é a falta de criatividade, mas a incerteza

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de prioridades.” E no caso do método Toyota, a prioridade é a apren-dizagem ou “captura” da subjetividade do trabalho por meio do de-senvolvimento da capacidade de aprender. (MAY, 2007)

Deste modo, o que se constata é que a organização toyotista do trabalho capitalista possui uma densidade manipulatória de maior en-vergadura. Na nova produção do capital, o que se busca “capturar” não é apenas o “fazer” e o “saber” dos trabalhadores, mas a sua disposição intelectual-afetiva, sua capacidade de aprendizagem voltada para a co-operação com a lógica instrumental da valorização. O trabalhador é encorajado a pensar “pró-ativamente” e a encontrar soluções antes que os problemas aconteçam (o que tende a incentivar, no plano sindical, por exemplo, estratégias neocorporativas de cariz propositivo).

Na empresa toyotizada cria-se um ambiente de desafio contí-nuo, em que o capital não dispensa, como fez o fordismo, o “espí-rito” do trabalhador. É claro que o operário na linha de montagem da fábrica fordista, pensava, inclusive em demasia. Como salientou Antonio Gramsci, sob o fordismo, “...o operário continua ‘infeliz-mente’ homem e, inclusive [...] durante o trabalho, pensa demais ou, pelo menos, tem muito mais possibilidade de pensar, principalmente depois de ter superado a crise de adaptação. Ele não só pensa, mas o fato de que o trabalho não lhe dá satisfações imediatas, quando compreende que se pretende transformá-lo num gorila domestica-do, pode levá–lo a um curso de pensamentos pouco conformistas”. (GRAMSCI, 1984) Henry Ford tinha consciência de que operários não eram “gorilas domesticados”. Por isso, procurava resolver o dile-ma da organização capitalista da produção em massa por iniciativas “educativas” extra-fábrica.

O toyotismo, pelo contrário, por meio da recomposição da linha de produção, com seus vários protocolos organizacionais (e institu-cionais), procura “capturar” o pensamento do trabalhador, operário ou empregado, integrando suas iniciativas afetivo-intelectuais nos objetivos da produção de mercadorias. É por isso que, por exemplo, a auto-ativação centrada sobre a polivalência, um dos nexos contin-gentes do toyotismo, é uma iniciativa “educativa” do capital; é, entre

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outros, um mecanismo de integração (e controle) do trabalho à nova lógica do complexo produtor de mercadorias (CORIAT, 1994).

O que significa que, se no fordismo o trabalhador na linha de montagem, executando tarefas monótonas e repetitivas, pensava demais, ou como disse Gramsci, “tem muito mais possibilidade de pensar” (o que poderia levá-los “a um curso de pensamento pouco conformista”), sob o toyotismo, o trabalhador pensa e é obrigado a pensar muito mais, mas colocando a inteligência humana a servi-ço do capital. Por isso, Matthew E. May, conselheiro da University Toyota, abre seu livro “Toyota – a fórmula da Inovação”, com a frase de Thomas. A. Edison: “Há uma maneira de fazer melhor – encon-tre-a”. O que significa que é imputado ao trabalhador assalariado a tarefa de pensar muito mais, ou seja, pensar os problemas instru-mentais do capital.

Se no modo de organização fordista do trabalho tínhamos uma integração “mecânica” do trabalhador ao sistema de máquinas do ca-pital, no toyotismo temos uma integração “orgânica”, que pressupõe, portanto, um novo perfil do trabalhador assalariado central (RA-VELLI, 1995). Na verdade, o toyotismo re-constitui, sob novas condi-ções sócio-técnicas (e culturais), o trabalhador coletivo, uma das pri-meiras inovações capitalistas. O toyotismo instaura o que Ruy Fausto denominou a subordinação formal-intelectual (ou espiritual) do tra-balho ao capital. É o novo nexo psicofísico da produção capitalista que torna mais intensa a unidade orgânica entre ação e pensamento no interior da produção capitalista. Por exemplo, a constituição das equipes de trabalho e a empresa em rede são manifestações concretas deste novo trabalhador coletivo como força produtiva do capital.

Por outro lado, o capital exige do operário ou empregado, no curso da produção de mercadorias, cada vez mais, suas habilidades afetivo-comunicacionais necessárias para a consecução das redes informacionais que constituem as equipes de trabalho e o trabalho em rede. A vigência do trabalho imaterial explicita tão-somente o novo trabalhador coletivo sob o espírito da “integração orgânica” do toyotismo.

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Entretanto, o que é integração “orgânica” para o capital, unida-de orgânica de pensamento e ação no local de trabalho, é expressão de “fragmentação sistêmica” para a classe (e consciência de classe) dos trabalhadores assalariados e para seus estatutos salariais (com a constituição de um precário mundo do trabalho pela proliferação de contratos de trabalho temporários e do trabalho atípico).

Em plena época da nova maquinaria microeletrônica de infor-mação e comunicação e do arcabouço em rede informacional, o ca-pital continua dependendo, mais do que nunca, da destreza manual e da subjetividade do coletivo humano (ou do que alguns autores chamam de “inteligência coletiva”), como elementos essenciais do complexo de produção de mercadorias (LEVY, 1998). Ora, enquanto persistir a presença do trabalho vivo no interior da produção de mer-cadorias, o capital possuirá, como atributo de si mesmo, a necessida-de persistente de instaurar mecanismos de integração (e controle) do trabalho e de administração de empresas, além, é claro, de procurar dispersar os inelimináveis momentos de antagonismo (e contradi-ção) entre as necessidades do capital e as necessidades do trabalha-dor assalariado enquanto trabalho vivo e ser humano genérico.

Temos utilizado a expressão “captura” da subjetividade do tra-balho para caracterizar o nexo essencial que garante o modo de organização toyotista do trabalho capitalista. É um novo e intenso nexo psicofísico no trabalhador que busca adaptá-lo aos novos dis-positivos organizacionais do Sistema Toyota de Produção.

Na era da globalização, o capital busca reconstituir algo que era fundamental na manufatura: o velho nexo psicofísico do trabalho profissional qualificado, a participação ativa da inteligência, da fan-tasia, da iniciativa do trabalho, ou seja, aquilo que Frederick Taylor com sua OCT (Organização Científica do Trabalho) buscava romper e o fordismo implementou com a linha de montagem e a especializa-ção dos operadores. Enfim, a empresa toyotista busca hoje mobilizar conhecimento, capacidades, atitudes e valores necessários para que os trabalhadores possam intervir na produção, não apenas produzindo,

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mas agregando valor. Enfim, busca mobilizar (ou captar) o intangí-vel por meio da “captura” da subjetividade do trabalho.

O espírito do toyotismo está inscrito, por exemplo, no discur-so da nova pedagogia que traduz em seu léxico elementos do novo nexo psicofísico (saber-fazer, saber usar e saber comunicar). Exige-se, deste modo, um novo nexo psicofísico do trabalho pelo qual o individuo é educado para atuar competitivamente. Aliás, o discurso de Ohno sobre a auto-ativação é a tradução literal do processo de ensino-aprendizagem no local de trabalho.

A irrupção da acumulação flexível de cariz toyotista que ocorre com mais intensidade nos loci mais dinâmicos de acumulação de ca-pital, não tende a amenizar (ou extinguir) a luta de classes e os con-flitos entre capital e trabalho no interior da produção. Pelo contrário, eles tendem a agudizar-se e a se deslocar para dimensões “invisíveis” do cotidiano e do trabalho. A luta de classes, em seu aspecto contin-gente, se expressa por micro-resistências e simulações ocultas do tra-balho vivo contra o novo patamar de exploração da força de trabalho. A crise de sindicatos e partidos trabalhistas, “intelectuais orgânicos” da classe, expressam, em parte, as dificuldades de as instituições po-líticas (e sindicais) enfrentarem a “guerra de posição” que ocorre no campo da subjetividade das individualidades de classe do trabalho.

2. Toyotismo como administração by panocticum

No livro “Pensar pelo avesso”, Benjamin Coriat observa que um dos fundamentos do método Toyota é “Administrar com os olhos”. De certo modo, o toyotismo não rompe com a lógica de controle e de racionalização do trabalho vivo que surge com a grande indústria. Pelo contrário, ele as torna mais sofisticadas, inclusive incorporando a seu modo, o espírito do panopticismo. O panóptico, idéia do utili-tarista Jeremy Bentham no século XIX, era um projeto arquitetônico de instituições disciplinares que utilizam o olhar como instrumento de controle. A idéia do panóptico, idealizada por Bentham para ser

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utilizada em presídios, surgiu a partir de experimentos nas fábricas russas no começo do século XIX (PERROT, 2000).

Ora, sob o toyotismo, a “captura” da subjetividade do trabalho pressupõe controle do trabalho do vivo por meio do “olhar que pers-cruta” o interior da alma humana. Diz Bentham: “Estar insistente-mente diante dos olhos de um inspetor é perder de fato o poder de fazer o mal e quase a idéia de desejá-lo.” (BENTHAM, 2000). No entanto, com o toyotismo, a figura do inspetor não está lá fora, mas sim introjetada nos operários e empregados. Eis um sentido da “cap-tura” da subjetividade traduzida na figura do “inspetor interior” que perscruta, com seu olhar, as tarefas do trabalho de si e dos outros. Enfim, o operário ou empregado torna-se patrão de si mesmo e dos outros. Como observou Antunes, “a sujeição do ser que trabalha ao ‘espírito’ Toyota, à ‘família’ Toyota, é de muito maior intensidade, é qualitativamente distinta daquela existente na era do fordismo. Esta era movida centralmente por uma lógica mais despótica; aquela, a do toyotismo, é mais consensual, mais envolvente, mais participa-tiva, em verdade mais manipulatória.” E, mais adiante, desvela com argúcia, a particularidade concreta do método Toyota: “O estranha-mento próprio do toyotismo é aquele dado pelo “envolvimento co-optado” que possibilita ao capital apropriar-se do saber e do fazer do trabalho. Este, na lógica da integração toyotista, deve pensar e agir para o capital, para a produtividade, sob a aparência da eliminação efetiva do fosso existente entre elaboração e execução no processo de trabalho”. (ANTUNES, 1995).

Ao buscar constituir um novo nexo psicofísico nos operários e empregados, isto é, a unidade orgânica entre pensamento e ação, Henry Ford e Taiichi Ohno sabiam da necessidade que o novo apara-to produtivo tinha de novos gestos, posturas corporais, manuseios, etc. Enfim, como Gramsci observou com genialidade em “Ameri-canismo e fordismo”, as crescentes modificações no trabalho levam a um contínuo re-dimensionamento do agir individual/coletivo dos homens, o que significa um nexo psicofísico em que a atividade men-

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tal deve ter uma relação orgânica com aquilo que se exterioriza na forma da ação concreta.

Enfim, para que a organização produtiva possa se manter, o ho-mem que trabalha deve ser capaz de significar aquilo que realiza. Por isso, o surgimento daquilo que chamamos de inovações sócio-metabólicas com sua pletora de valores-fetiches e a tempestade de ideologias de mercado, determinações fundamentais para a conso-lidação do toyotismo como novo modelo produtivo do capital. Ora, as ideologias são o substrato de força e consenso do nexo psicofísico. Mais do que no fordismo, o toyotismo exige um tipo específico de homem possuidor de uma estrutura de gestos e pensamento.

Gramsci observa que a taylorização e fordização iriam exigir valores disciplinares e metódicos que iriam se expressar por meio da repressão/regulamentação dos instintos sexuais. A preocupação com a questão da sexualidade fez com que inspetores da Ford “in-vadissem” a vida privada dos operários por extensiva investigação. Como observa Ruiz, “Gramsci intui, longe de ser uma preocupação de ordem meramente religiosa ou fortuita, que essa ação tinha ob-jetivos educativos: incutir uma nova ética sexual em conformidade com a nova ética produtiva” (RUIZ, 1998).

Ora, o fordismo, mais que o toyotismo, é uma concepção de mundo e uma filosofia que visava a interferir concretamente nos comportamentos humanos, moldando-os e direcionando-os. O ins-tinto sexual tem que ser regulado em conformidade com a racionali-zação da produção porque a libido é a energia psíquica que organiza as disposições psicofísicas do trabalho vivo. Em sua época, Gramsci percebeu duas tentativas de criar um novo homem produtivo em consonância com a exigência de organização e programação econô-mica de que o capitalismo necessitava para continuar como sistema economicamente viável: o Americanismo e o processo de militari-zação das fábricas implementadas por Trotsky na União Soviética. Henry Ford e Leon Trostky percebiam a necessidade de transforma-ção de comportamentos e hábitos, visando a adaptação a necessida-

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des históricas concretamente colocadas ou “adequar os costumes às necessidades do trabalho” (GRAMSCI, 1985).

Mas enquanto o projeto de modernização implementado por Trotsky assumia, segundo Gramsci, a forma de bonapartismo, isto é, da coerção unilateral, gerando resistências nos indivíduos, o Ame-ricanismo buscava transformar a coerção unilateral em persuasão, significando que os indivíduos percebessem o significado intrínseco nos gestos que realizavam e não apenas “obedecessem ordens”. O americanismo e fordismo implica, deste modo, uma “captura” da subjetividade do trabalho ou a constituição de um nexo psicofísico necessário entre pensamento e gesto. Segundo Gramsci, foram as ideologias puritanas que deram o caráter de persuasão e consenso à coerção exercida pelo controle dentro das fábricas. Por outro lado, faltou a Trotsky, imbuído pelo “espírito russo”, a articulação da mi-litarização a um processo de “militarização interna”, a constituição de uma disciplina que pudesse ser transformada em auto-disciplina (é claro que a situação da Rússia de 1918 no plano sócio-cultural era bastante diferente dos Estados Unidos da América ou da Itália).

Ora, o americanismo e fordismo tratavam da constituição de uma cultura industrial, o que não é o caso do toyotismo que surge no interior de sociedades industriais plenamente desenvolvidas. O que se coloca não é apenas a constituição de uma disciplina ou auto-disci-plina, mas de atitudes pró-ativas de comportamento capazes de signi-ficar a participação ativa da inteligência, da fantasia e da iniciativa do trabalho (o que não era exigido no fordismo-taylorismo). Por isso, a “captura” da subjetividade do toyotismo é qualitativamente diferente da “captura” da subjetividade adotada pelo fordismo-taylorismo. O olhar do “inspetor interior” que perscruta a subjetividade do trabalho vivo é mais envolvente e mais manipulatória porque penetra no âma-go das instâncias da pré-consciência e do inconsciente.

O panóptico de Bentham era uma idéia arquitetural que exigia uma determinada organização do espaço e o olhar de um inspetor externo como o princípio da coerção unilateral. O panopticismo tornou-se o princípio de controle das instituições disciplinares do

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capital, capaz de automatizar e desindividualizar o poder. A admi-nistração by panopticum do fordismo, apesar de buscar um nexo psi-cofísico capaz de adequar operários e empregados para a disciplina da vida industrial, no plano da organização do trabalho, ainda pre-servava as atitudes maquinais e automáticas e o princípio da coerção unilateral. Como observou Gramsci, o fordismo-taylorismo tendia a “reduzir as operações produtivas apenas ao aspecto físico maquinal” (GRAMSCI, 1984)

É com o toyotismo que surge a necessidade da constituição de um novo nexo psicofísico no local de trabalho, capaz de ir além das me-ras atitudes maquinais e automáticas de operários e empregados. O método Toyota exige deles inteligência, fantasia e iniciativa em ope-rações produtivas. Nesse caso, os meios coercitivos externos, a disci-plina e a ordem na produção não são suficientes para reconstituir o velho nexo psicofísico do trabalho profissional qualificado rompido pelo fordismo-taylorismo. Torna-se importante, para alcançar novos ganhos de produtividade, o envolvimento estimulado por instâncias mediadoras que iremos salientar adiante (formas de remunerações flexíveis e o trabalho em equipe). Por isso, é preciso reconstituir e repor, sob novas condições, os elementos do panopticismo.

O novo modelo produtivo exige uma arquitetura de controle do metabolismo social do capital de novo tipo. Uma arquitetura sócio-metabólica voltada para a captação do intangível, elemento vital hoje da produção do capital sob a nova técnica informacional. A nova aqruitetura de controle do metabolismo social implica:

Primeiro, na reordenação espaço-temporal, tanto do trabalho quanto da vida social. A extensão da produção (e do discurso da pro-dução) para a totalidade social e, por outro lado, a redução da vida social à lógica da produção do capital são um modo de reordenação espaço-temporal do controle sócio-metabólico do capital que nasce na fábrica.

Segundo, na interversão do “inspetor externo” em “inspetor in-terno” que manipula as instâncias da subjetividade (pré-consciência e inconsciente) por meio de valores-fetiches. A administração by pa-

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nopticum, instaurada pelo toyotismo, está menos no olhar perscru-tador externo do capital, que não desaparece, é claro, apesar de estar menos visível e, inclusive, pelo avesso (como o olhar perscrutador dos companheiros de trabalho) e mais no olhar perscrutador interno dos valores-fetiches e consentimentos espúrios.

3. Toyotismo e capitalismo manipulatório

A idéia de “captura” da subjetividade implica, por um lado, a constituição de um processo de subjetivação que articula com mais intensidade a instância da produção e a instância da reprodução social. É a materialidade do trabalho social numa etapa avançada do processo civilizatório que implica a nova articulação produção/reprodução social. Por outro lado, o processo de expropriação/apro-priação da riqueza complexa da subjetividade humana, que surge nas condições históricas do processo civilizatório tardio, exige um aprimorado mecanismo de manipulação social.

Foi com lucidez que Georg Lukács denominou o capitalismo tar-dio de “capitalismo manipulatório”, pois a instância da manipulação social tornar-se-ia crucial para a produção e reprodução social. Na verdade, desde que, segundo ele, a exploração da classe operária pas-sa cada vez mais da exploração através da mais-valia absoluta para a que se opera através da mais-valia relativa, se põe o sistema de ma-nipulação do capital, tendo em vista que é possível um aumento da exploração ao lado de um aumento do nível de vida do trabalhador.

Com a produção do capital através da mais-valia absoluta, a produ ção é apenas formalmente subsumida ao capital. É só com a produção da mais-valia relativa que a subsunção da produção sob as categorias do capitalismo surge, coisa que constitui uma caracte-rísticas específica da nossa época. Lukács observa que, deste modo, altera-se o problema da alienação. Diz ele: “No tempo em que Marx escrevia os Manuscri tos Económicos e Filosóficos, a alienação da classe operária significava imediatamente um trabalho opressivo em um

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nível quase animal. Com efeito, a alienação era, em certo sentido, sinônimo de desumanidade. Exatamente por este motivo a luta de classes teve por objetivo, por decênios, garantir, com reivindicações adequadas sobre salário e sobre o tempo de trabalho, o mínimo de uma vida humana para o trabalhador [...] Agora, em certo sen-tido, a questão se modificou; só em certo sentido, natu ralmente. [...] A mais-valia absoluta não morreu, sim plesmente não desempenha mais o papel dominante; aquele papel que desempenhava quando Marx escrevia os Manuscritos Econômicos e Filosóficos. Ora, o que daí decorre? Que um novo problema surge no horizonte dos trabalhadores, isto é, o problema de uma vida plena de sentido.” (HOLZ, KOFLER, ABENDROTH, 1969)

Lukács ressalta o caráter agudamente contraditório do capi-talismo tardio. Segundo ele, “hoje, com uma semana de cinco dias e um salário adequado, podem já existir as condições indis-pensáveis para uma vida cheia de sentido”. Entretanto, a manipulação impede que possamos ter no interior do sistema do capital “uma vida cheia de sentido.” Na medida em que o capital na época de sua crise estrutural intensifica a manipulação, não apenas no consumo mas no local de trabalho, ela se torna obstáculo ao desenvolvimento do ser ge-nérico do homem. Diz o filósofo húngaro: “Aquela manipulação que vai da compra do cigarro às eleições presidenciais ergue uma barreira no interior dos indivíduos entre a sua existência e uma vida rica de sentido” (o grifo é nosso) (HOLZ, KOFLER, ABENDROTH, 1969).

Esta “barreira no interior dos indivíduos entre a sua existência e uma vida rica de sentido” é o que Lukács iria denominar na “Onto-logia do Ser Social”, o estranhamento, a forma de ser da alienação no capitalismo tardio (LUKÁCS, 1981). E prossegue ele: “Com efeito, a mani pulação do consumo não consiste, como se pretende oficialmen-te, no fato de querer informar exaustivamente os consumidores sobre qual é o melhor frigorífico ou a melhor lâmina de barbear; o que está em jogo é a questão do controle da consciência” (HOLZ, KO-FLER, ABENDROTH, 1969)

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O que Lukács constata é que surge um modo particular de mani-pulação que “controla a consciência” – ou diríamos nós, a subjetivi-dade – e que, segundo ele, “afasta o homem que trabalha do pro blema de como poderia transformar seu tempo livre em otium, porque o consumo lhe é instilado sob a forma de uma superabundância de vida com finalidade em si mesma, assim como na jornada de trabalho de doze horas a vida era ditatorialmente dominada pelo trabalho.” (HOLZ, KOFLER, ABENDROTH, 1969)

E a manipulação não atinge apenas o consumo, como cons-tata Lukács, alienando o homem que trabalha do problema de como transformar seu tempo livre em otium, tendo, deste modo, um vida plena de sentido. Ela atinge a própria atividade do tra-balho em que “a ciência do trabalho e a assistência psicológica do trabalhador”, segundo ele, “têm por finalidade tornar aceitável por meio da manipulação, a tecnologia capitalista, ao invés de criar, ao contrário, uma tecnologia capaz de transformar o tra-balho numa experiência digna de ser vivida pelo trabalhador.” (HOLZ, KOFLER, ABENDROTH, 1969)

Ora, a intensa densidade manipulatória do capitalismo global, seja na instância do consumo, seja na instância da produção pro-priamente dita, atinge a subjetividade do trabalho vivo, impedindo que se possa despertar no homem necessidades reais do desenvolvi-mento da personalidade. Pelo contrário, a manipulação que impede a verdadeira autonomia da personalidade constitui a “subjetividade pelo avesso”, a “subjetividade em desefetivação”, atingida pelo es-tresse, imersa nesta implicação contraditória da relação-capital. O “núcleo humano” da subjetividade do trabalho está afetado por uma das principais contradições da civilização do capital nesta etapa de desenvolvimento histórico, isto é, a contradição objetiva entre o alto nível de desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social, que poderiam libertar o homem do trabalho heterônomo, transfor-mando seu tempo livre em otium, contribuindo para o desenvolvi-mento de suas faculdades físicas e espirituais, e as relações capitalis-tas de produção da vida social, que aprisionam o homem, seja através

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da transformação do tempo de vida como tempo de trabalho estra-nhado ou tempo de trabalho negado como atividade prática signifi-cativa; ou através da transformação do tempo de vida como tempo de consumo fetichizado, “sob a forma de uma superabundância de vida com finalidade em si mesma” (Lukács).

4. A subjetividade em desefetivação

É importante destacar que, ao dizermos “captura” da subjetivi-dade, colocamos “captura” entre aspas para salientar o caráter pro-blemático (e virtual) da operação de “captura”, ou seja, a captura não ocorre, de fato, como o termo poderia supor. Estamos lidando com uma operação de produção de consentimento ou unidade orgânica entre pensamento e ação que não se desenvolve de modo perene, sem resistências e lutas cotidianas.

Enfim, o processo de “captura” da subjetividade do trabalho vivo é um processo intrinsecamente contraditório e densamente comple-xo, que articula mecanismos de coerção/consentimento e de mani-pulação não apenas no local de trabalho, por meio da administração pelo “olhar”, mas nas instâncias sócio-reprodutivas, com a pletora de valores-fetiches e emulação pelo medo que mobiliza as instâncias da pré-consciência/inconsciência do psiquismo humano.

Por outro lado, o processo de “captura” da subjetividade do tra-balho como inovação sócio-metabólica tende a dilacerar (e estressar) não apenas a dimensão física da corporalidade viva da força de tra-balho, mas sua dimensão psíquica e espiritual (que se manifesta por sintomas psicossomáticos). O toyotismo é a administração by stress, pois busca realizar o impossível: a unidade orgânica entre o núcleo humano, matriz da inteligência, da fantasia, da iniciativa do traba-lho como atividade significativa, e a relação-capital que preserva a dimensão do trabalho estranhado e os mecanismos de controle do trabalho vivo.

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O discurso estressante permeia o léxico social. Por exemplo, Mat-thew E. May coloca como epígrafe de seu livro “Toyota – A Formu-la da Inovação”, a frase de Thomas E. Edison: “Há uma maneira de fazer melhor - encontre-a”. É uma convocação imperativa do sujeito que trabalha a encontrar a melhor maneira – na ótica do capital – para executar a tarefa. Em seu apelo imperativo subjaz uma convocação ao estresse. Outro exemplo é o slogan da PriceWhitehouse&Coopers, que contém o imperativo do estresse que permeia o universo vocabular. Diz ele: “Fomos eleitos uma das 12 marcas mais conceituadas do mundo: sabe o que isso significa? Que ainda temos muito caminho pela frente.” Enfim, o estar constantemente mobilizado estressa o homem que tra-balha, instigando-o a perseguir uma meta sempre perpetua.

O toyotismo, como salientou Antunes, implica uma lógica “mais consensual, mais envolvente, mais participativa, em verdade mais manipulatória” (ANTUNES, 1995). O que nos resta, neste último ca-pítulo, é desvelar os mecanismos internos da lógica do toyotismo que a torna mais consensual, envolvente e manipulatória. A constituição dos novos consentimentos espúrios exigidos pelo método Toyota ocorre por um intenso processo de manipulação da subjetividade do trabalho vivo (que é o conteúdo da “captura” da subjetividade). A lógica manipulatória do toyotismo sob o lastro das inovações sócio-metabólicas atinge as dimensões do psiquismo humano. É o que bus-caremos desvelar ao tratar do significado de subjetividade humana.

Ao tratarmos do problema da subjetividade humana tivemos que fazer uma opção teórico-metodológica pela psicanálise, deixando de lado as teorias psicológicas que tratam da personalidade e subjeti-vidade humana. Consideramos a psicanálise, a ciência da subjetivi-dade burguesa, capaz de contribuir para a apreensão das dimensões ocultas da alma burguesa. A contribuição dada por Sigmund Freud ao conhecimento científico do homem é indiscutível. Apesar dos li-mites apontados por uma série de autores, as categorias freudianas não deixaram de ser reconhecidas como de inestimável valor heurís-tico para desvendar as contradições do metabolismo social da civili-zação burguesa. Por isso, as categorias freudianas, na medida em que

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são apropriadas de forma critica, são importantes para a apreensão da dinâmica subjetiva da individualidade de classe que surge com a civilização do capital (não nos compete discutir neste momento, a ampla controvérsia que surge no marxismo do século XX sobre o valor e significado da psicanálise) 1.

A tripartição do psiquismo humano que utilizamos é de ori-gem freudiana, sendo elaborado por Freud na sua primeira tópica (1900-1920). Na primeira tópica ou teoria dos lugares, ele definiu o aparelho psíquico como sendo constituído pelo inconsciente, o pré-consciente e o consciente (na segunda tópica freudiana, nos escritos do 1920-1939, o pensador austríaco fez intervirem três instâncias ou três lugares, o id, o ego e o superego). Consideramos, a título mera-mente heurístico, a subjetividade humana composta por mente e cor-po que, de modo indissociável, constituem a individualidade social. Na mente, segundo a ótica freudiana, distinguimos, como instâncias do psiquismo humano, a consciência, pré-consciência e inconsciente (FREUD, 2006; GARCIA-ROZA, 2004)

Portanto, ao tratarmos da subjetividade e da sua “captura”, re-ferimo-nos não apenas à instância da consciência, mas às instâncias da pré-consciência e do inconsciente. As técnicas de manipulação

1 Em sua critica do freudismo, publicada no livro “O freudismo” (de 1927), Mikhail Bakhtim, despreza o valor heurístico das categorias de Freud, reduzindo-a mera “psi-cologia subjetiva” que reduz a dinâmica psíquica às forças naturais, desprezando a dinâmica social e os fatores objetivos da dinâmica psíquica (BAKTIN, 2001) (outro psicólogo russo, Lev Vigotsky, que desenvolve uma notável psicologia de base mar-xista, possui grandes afinidades com Bakhtin no tocante à critica do freudismo). Em 1927, o pensamento social, psicológico e filosófico na URSS já está profundamente marcado por uma ideologia que condiciona todo comportamento social do homem exclusivamente à estrutura de classe da sociedade. O que Bakhtin talvez não consiga apreender é que o freudismo, como a economia política clássica, contém um “nódulo racional” que explica, mesmo que mistificada pelas incrustações da ideologia burgue-sa, a subjetividade da individualidade de classe imersa em formas de fetichismo e rela-ções sociais estranhadas. A psicanálise de Freud é a economia política da subjetivida-de do homem burguês, “subjetividade em desefetivação”, centrada nos motivos do ego e do self. Na verdade, o que se deve é elaborar uma superação dialético-materialista (aufheben, que significa superar/conservar) das categorias da psicanálise de Freud, sob pena de, como diz o ditado, “jogar fora o bebê junto com a água suja do banho”.

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tnto no mercado quanto na produção utilizadas pelos aparatos mi-diáticos do sistema do capital buscam atingir o conteúdo oculto da pré-consciência e do inconsciente humano, visando a influenciar o comportamento dos indivíduos sociais.

Na sociedade burguesa, como observou Marx e Engels, a ideolo-gia dominante é a ideologia da classe dominante que constitui seus aparatos de dominação hegemônica pela manipulação midiática das instâncias pré-conscientes e inconscientes do psiquismo humano.

O capitalismo manipulatório levou à exaustão os recursos de manipulação das instâncias intrapsíquicas do homem, pelas quais se constituem os consentimentos espúrios à dominação do capital nas “sociedades democráticas”. O sócio-metabolismo do capital ocorre por meio do tráfico de valores-fetiches, expectativas e uto-pias de mercado que incidem sobre as instâncias intrapsíquicas. Na medida em que o toyotismo se baseia em atitudes e comportamen-tos pró-ativos, a construção do novo homem produtivo utiliza, com intensidade e amplitude, estratégias de subjetivação que implicam a manipulação incisiva da mente e do corpo por conteúdos ocultos e semi-ocultos das instâncias intrapsíquicas.

As habilidades comportamentais se tornaram imprescindíveis no sistema toyota de produção. Ao tratar da profunda mudança nas qualificações exigidas para o novo trabalho industrial e de serviços na empresa toyotizada, Ana Teixeira observa: “Essa mudança po-deria ser sintetizada como perda de importância das habilidades manuais em favor das habilidades cognitivas (leitura e interpretação dos dados formalizados; lógica funcional e sistêmica; abstração; de-dução estatística; expressão oral, escrita e visual) e comportamen-tais (responsabilidade, lealdade e comprometimento; capacidade de argumentação; capacidade para trabalho em equipe; capacidade para iniciativa e autonomia; habilidade para negociação). Essas no-vas qualificações poderiam ser organizadas em três grandes grupos: novos conhecimentos práticos e teóricos; capacidade de abstração, decisão e comunicação; e qualidades relativas à responsabilidade, atenção e interesse pelo trabalho” (TEIXEIRA, 1998)

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Ao privilegiar habilidades cognitivo-comportamentais, o mé-todo toyota é obrigado a imiscuir-se, como as estratégias de ma-rketing, nas instâncias do psiquismo humano. Controlar atitudes comportamentais tornou-se a meta dos treinamentos empresariais, mobilizando valores-fetiches, expectativas e utopias de mercado que atuam nas freqüências intrapsíquicas do inconsciente e do pré-consciente. Os consentimentos espúrios que compõem a hegemonia social do toyotista têm na emulação pelo medo, um dos afetos re-gressivos da alma humana, um dos seus elementos cruciais. Aliás, o sócio-metabolismo da barbárie é uma “fábrica do medo” que, en-quanto afeto regressivo que atua na instância do pré-consciente e do insconsciente, torna-se a “moeda de troca” dos consentimentos espúrios das individualidades de classe. A função estrutural da bar-bárie social é a produção simbólica do medo como afeto regressivo da alma humana.

A produção do capital é também produção (e negação) de sub-jetividades humanas. O sócio-metabolismo do capital é constituí-do por processo de subjetivação que formam as individualidades de classe. Os tipos humanos, que a sociedade burguesa produz, forma e deforma, têm em si, na mente e no corpo, impressas a marca do fe-tichismo da mercadoria. A individualidade de classe, na medida em que é a negação da individualidade pessoal, tensiona ao limite de sua própria negação a subjetividade humana. É por isso que a história social e cultural da psicanálise foi marcada no século XX pelo pro-blema do narcisismo (do ego ao self) (ZARETSKY, 2006).

Na verdade, a subjetividade humana imersa no metabolismo social do capital é uma “subjetividade em desefetivação”, estressada pelas teias da manipulação social. Esta condição histórica da práxis social em sociedades do fetichismo da mercadoria coloca imensos desafios à “negação da negação”. O fetichismo da mercadoria e a ple-tora de fetichismos sociais, que se constituem a partir dele, colocam constrangimentos cruciais à produção da subjetividade humana nas sociedades mercantis complexas. Na medida em que o capital é um sistema de controle do metabolismo social, que, segundo Mészáros,

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“uma poderosa, até o presente, de longe a mais poderosa – estrutura ‘totalizadora’ de controle do metabolismo social que surgiu no curso da história humana’ (MÉSZÁROS, 2002), ele instaura processos de subjetivação intrincavelmente paradoxais que, ao mesmo tempo que ampliam o templo da alma humana, a dilacerem e limitam suas po-tencialidades humano-genéricas, pela manipulação incisiva dos seus traços ontologicamente fundantes e fundamentais, como a lingua-gem e a capacidade simbólica do homem.

No plano da linguagem, a manipulação que surge a partir do novo complexo de reestruturação produtiva é indiscutível, com o surgimento do imperialismo simbólico e novos léxicos que habitam o universo locucional das individualidades de classe. Além do aspecto ideopolítico, a utilização dos novos vocábulos no mundo do trabalho têm uma função psicossocial. Com Gramsci diríamos que o “novo terreno ideológico” que nasce com o toyotismo, é também uma nova “atitude psicológica” que “alimenta a afirmação da “aparência” das superestruturas” (GRAMSCI, 1984b). A troca do nome de operários ou empregados por colaboradores não é inocente (Ohno chamava as empresas fornecedoras de “empresas colaboradoras”, ocultando a relação de poder contido na relação capital hegemon do capital con-centrado com os pequenos e médios capitais).

A mudança do universo léxico-locucional no mundo do traba-lho deve ser analisada a partir das mudanças que ocorreram para que a sociedade contemporânea passasse a usar este tipo de símbolo para falar de si mesma. Além de ser produto de uma práxis estranha-da, é resposta a um fracasso que não podemos desconsiderar.

A saturação de signos e imagens no sistema de controle sócio-metabolico do capital coloca novos pressupostos materiais para a construção dos nexos psicofísicos do homem produtivo. Os proces-so de subjetivação (e dessubjetivação) ocorrem por meio de signos e imagens. Os conteúdos manipulatórios têm que assumir a forma de signos e imagens para instaurar os tráficos intrapsíquicos. Por isso, os valores-fetiches, expectativas e utopias de mercado que cons-tituem as inovações sócio-metabólicas e compõem o nexo psicofisi-

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co do homem produtivo do sistema toyota de produção, assumem a forma de signos e imagens. Elas atuam como imagens de consumo e consumo de imagens e signos. Nesse caso, a imagem está ocupando o lugar de um discurso ideológico. Na instância do consumo, lócus crucial do processo de subjetivação, a manipulação através da ima-gem de marca, por exemplo, é uma nova forma de fetichismo que se dissemina à exaustão. Observa Otília Arantes: “...o próprio ato de consumir se apresenta sob a aparência de um gesto cultural legiti-mador, na forma de bens simbólicos – como se disse à exaustão: de imagens ou de simulacros. É a forma-mercadoria no seu estágio mais avançado como forma-publicitária. O que se consome é um estilo de vida e nada escapa a essa imaterialização que tomou conta do social...a cultura tornou-se peça central na máquina reprodutiva do capitalismo, a sua nova mola propulsora.” (ARANTES, 1998 Apud FONTENELLE, 2002).

É importante salientar que, no caso do fordismo, o nexo psi-cofisico era constituído, segundo Gramsci, pela ideologia puritana e pela repressão sexual. No caso do toyotismo, o nexo psicofísico se constitui, como salientamos ao tratarmos das inovações sócio-metabólicas, pela disseminação dos valores-fetiches, expectativas e utopias de mercado e pela liberação dos instintos, ao mesmo tempo que preserva a disciplina da vida industrial (o que é um poderoso agente estressor). Talvez o estressamento da corporalidade viva seja estratégia defensiva das individualidades de classe cindidas à exaus-tão pelos novos processos de subjetivação do capital..

5. A subjetividade é intersubjetiva

O discurso da subjetividade tende a ocultar uma dimensão pro-funda desta “captura”. Isto é, ela não é apenas controle/manipula-ção das instâncias psíquicas do sujeito burguês, apreendido como mônoda social, mas corrosão/inversão/perversão do ser genérico do homem. O que significa que a subjetividade é intersubjetiva. Não podemos conceber o sujeito sem a teia de relações sociais nas quais

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ele está inserido. Deste modo, a “captura” da subjetividade é a “cap-tura” da intersunetividade, das relações sociais constitutivas do ser genérico do homem. O que expõe o significado do movimento de dissolução de coletivos e reconstituição de novos coletivos/equipes colaborativos com as idéias da empresa. Neste movimento, reencon-tramos o homem social, o trabalhador coletivo como criação do ca-pital. A idéia de rede é a idéia da “captura” da intersubjetividade do homem que trabalhao capital.

Ora, o Eu não é sujeito, mas é constituído sujeito por meio de uma relação constitutiva com o Eu-Outro. Eis o principio de uma análise materialista da subjetividade-intersubjetividade. O que significa que as relações sociais são imprescindíveis para a constituição do sujeito que trabalha, já que para se constituir precisa ser o outro de si mesmo. Por isso, o homem que trabalha é uma individualidade intrinsecamente social. O homem enquanto ser genérico se constitui por meio de um processo de reconhecimento do outro enquanto eu alheio nas relações sociais, e o reconhecimento do outro enquanto eu próprio, na conver-são das relações interpsicológicas em relações intrapsicológicas. Nesta conversão, que não é mera reprodução, mas reconstituição de todo o processo envolvido, há o reconhecimento do eu alheio e do eu próprio e, também, o conhecimento enquanto autoconhecimento e o conheci-mento do outro enquanto diferente de mim.

Mas, o sujeito humano é constituído pelas significações cultu-rais, porém a significação é a própria ação, ela não existe em si, mas a partir do momento em que os sujeitos entram em relação e passam a significar, ou seja, só existe significação quando significa para o sujeito e o sujeito penetra no mundo das significações quando é re-conhecido pelo outro. A relação do sujeito com o outro sujeito é me-diada. Dois sujeitos só entram em relação por um terceiro elemento, que é o elemento semiótico. O que significa que a relação social não é composta apenas de dois elementos (o eu e o outro), mas implica o terceiro elemento mediativo – o elemento semiótico.

Estamos tratando de um processo intrinsecamente social. Po-rém, o conhecimento não é só reconhecimento. O ato de conhecer

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pressupõe a experiência e a imaginação, o mundo do imaginário e do possível diferente do mundo real, mas que está estreitamente re-lacionado com a realidade social. É nesta perspectiva que o homem que trabalha, o sujeito humano ou a individualidade social, não se localiza na ordem do biológico, mas é constituído e é constituinte de relações sociais mediadas pelo elemento semiótico. Observa Mo-lon: “Pensar o homem como um agregado de relações sociais implica considerar o sujeito em uma perspectiva da polissemia, pensar na dinâmica, na tensão, na dialética, na estabilidade instável, na seme-lhança diferente. A conversão das relações sociais no sujeito social se faz por meio da diferenciação: o lugar de onde o sujeito fala, olha, sente, faz, etc. é sempre diferente e partilhado. Essa diferença acon-tece na linguagem, em um processo semiótico em que a linguagem é polissêmica. Neste sentido, o sujeito não é um mero signo, ele exige o reconhecimento do outro para se constituir enquanto sujeito em um processo de relação dialética. Ele é um ser significante, é um ser que tem o que dizer, fazer, pensar, sentir, tem consciência do que está acontecendo, reflete todos os eventos da vida humana. O sujeito constituído pelas conexões, relações inter-funcionais, interconexões funcionais que acontecem na consciência e que conferem as diferen-ças entre os sujeitos” (MOLON, 2003)

Deste modo, ao tratarmos da subjetividade e da sua “captura” devemos pressupor a intersubjetividade e sua (re)constituição por meio de relações sociais mediadas pela linguagem. No processo da subjetivação/intersubjetivação conduzido pelas novas estratégias empresariais, a manipulação da linguagem e do elemento semiótico torna-se fundamental, na medida em que ela é um dos elementos cruciais da “captura” da subjetividade-intersubjetividade. A “cap-tura” da subjetividade-intersubjetividade pode ser considerado um processo intrinsecamente semiótico, na medida em que o que deter-mina a especificidade do sujeito humano são as interconexões que se realizam na consciência pelas mediações semióticas que manifestam diferentes dimensões do sujeito, entre elas: a afetividade, o incons-ciente, a cognição, o semiótico, o simbólico, a vontade, a estética, a

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imaginação, e etc. Este é o “campo imaterial” onde se disputa a sub-jetividade do trabalho vivo produtor de valor no capitalismo global.

Ora, o homem que trabalha, a individualidade de classe como trabalho vivo, o sujeito constituído e constituinte nas e pelas relações sociais, é o sujeito que se relaciona na e pela linguagem no campo das intersubjetividades. É por isso que as grandes empresas e suas estra-tégias de negócios e de produção visam a manipular a subjetividade-inetrsubjetividade por meio da (re)constituição simbólica e material dos coletivos de trabalho. Na medida em que o sujeito é uma unida-de múltipla, que se realiza na relação Eu-Outro, sendo constituído e constituinte do processo sócio-histórico e a subjetividade é a inter-face desse processo, o foco das estratégias empresariais tende cada vez mais a ser a disputa pelo intangível, ou seja, a manipulação do estofo intangível das relações sociais constitutivas (e constituintes) do sujeito humano.

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Crise estrutural do capital, barbarie social e

catastrofe ecológica

O alarme da crise estrutural do ecossistema ameaçado pelas alterações climáticas foi dado pelo “Relatório de Desenvol-vimento Humano 2007/2008”, do PNUD - Programa das

Nações Unidas para o Desenvolvimento, que se intitula “Combater as Alterações Climáticas: Solidariedade humana num mundo divi-dido”. Ele apresenta uma abordagem contundente à ameaça que o aquecimento global representa para a humanidade. Coloca-se a pers-pectiva da catastrofe ecológica global. O documento argumenta que o mundo está a ser arrastado até um “ponto sem retorno”, o qual po-derá conduzir os países e os cidadãos mais pobres do mundo a “uma irreversível queda em espiral, precipitando centenas de milhões de pessoas para condições de subnutrição, escassez de água, ameaças ecológicas e de perda de meios de subsistência”. Diz o Coordenador do PNUD, Kemal Dervi: “Em última análise, as alterações climáticas constituem uma ameaça à humanidade no seu todo. Todavia, são os pobres, cidadãos sem responsabilidade pela dívida ecológica que estamos a acumular, que enfrentam os custos humanos mais graves e imediatos.” (PNUD, 2007)

O Relatório apresenta evidências acerca dos mecanismos através dos quais os impactos ecológicos das alterações climáticas poderão afectar os trabalhadores mais pobres. Nas sociedades divididas em classe, a catastrofe ecológica, num primeiro momento, será seletiva em seus efeitos terriveis. Ela atingirá, de imediato, a ampla parce-la da população trabalhadora mais pobre. Concentrando-se nos 2,6 bilhões de pessoas que sobrevivem com menos de US$2 por dia, os autores do Relatório alertam para o fato de as forças disparadas pelo

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aquecimento global poderem travar e posteriormente fazer retroce-der o progresso atingido ao longo de gerações. Entre as ameaças ao desenvolvimento humano identificadas em “Combater as Alterações Climáticas”, constam as que se seguem:

O colapso dos sistemas agrícolas, em virtude das secas e aumento de temperaturas, além das chuvas mais irregulares, deixarão mais de 600 milhões de pessoas ameaçadas de subnutrição. As áreas semi-áridas da África Subsariana, onde se registam alguns dos mais ele-vados níveis de pobreza no mundo, enfrentam o perigo de potenciais perdas de produtividade em cerca de 26% em 2060.

Mais de 1,8 bilhões de pessoas enfrentarão problemas ocasio-nados pela falta de água em 2080, com vastas áreas do Sul da Ásia e Norte da China enfrentando uma grave crise ecológica como resul-tado do recuo glacial e das alterações das épocas de chuva.

Deslocamento de cerca de 332 milhões de pessoas devido às cheias e às tempestades tropicais nas áreas costeiras e de baixa alti-tude (mais de 70 milhões de bengalis, 22 milhões de vietnamitas e 6 milhões de egípcios poderão ser afetados pelas cheias relacionadas com o aquecimento global).

Riscos emergentes para a saúde, com uma população adicional de 400 milhões de pessoas tendo que enfrentar o risco de contrair malária.

Com certeza, os potenciais “custos humanos” das alterações cli-máticas têm sido subestimados. Segundo o Relatório do PNUD, os choques climáticos—tais como as secas, as cheias e as tempestades, que se tornarão mais frequentes e intensas com as alterações climá-ticas - estão já entre “os mais poderosos instigadores de pobreza e de desigualdade” — e o aquecimento global irá fortalecer os impactos. “Para milhões de pessoas, estas ocorrências significam irreversíveis níveis de pobreza e ciclos de desvantagens a longo prazo,” esclarece o Relatório. Para além de ameaçar vidas humanas e infligir sofri-mento, destroem bens, levam a estados de subnutrição, e a que as crianças sejam retiradas da escola.

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Os novos desafios históricos inéditos para a espécie humana exigem capacidade de coordenação e ação estratégica radical num ambito global. Como observa Jared Diamond, “pela primeira vez na história enfrentamos o risco de um colapso global” (DIAMOND, 2005). Entretanto o sistema mundial do capital, que se caracteriza por uma pluralidade de capitais, com todas as suas contradições, é incapaz de agir, com celeridade necessária, e intervir de forma efe-tiva na coordenação de ações estrategicas globais contra as forças destrutivas dos interresses particularistas dos múltiplos capitais que degradam o ecossistema do planeta. Por isso, as Nações Unidas não conseguiram propor efetivamente uma ação radical global contra a perspectiva de catastrofe ecológica. Pelo contrário, a abordagem do documento combina uma “mitigação rigorosa”, com vista a limitar o aumento das temperaturas no século XXI a um nível inferior a 2 graus Celsius, e uma “cooperação internacional” reforçada no senti-do da adaptação.

O Relatório do PNUD surge num momento-chave das nego-ciações para estabelecer um acordo multilateral para o período após 2012,.o ano em que expira os compromissos do Protocolo de Kyoto, criado com o objetivo de limitar o crescimento das emissões dos ga-ses estufa responsáveis pelo aquecimento global. Na verdade, o Re-latório do PNUD trabalha no esteio da ação politica possivel dada pelos constrangimentos sistemicos da ordem mundial do capital. Os autores apelam aos países capitalistas desenvolvidos para que mos-trem líderança na redução das emissões de gases com efeito de estufa (colocam como meta, pelo menos, uma redução de 80% em 2050; e em 30% em 2020, relativamente aos níveis de 1990). Apela-se aos “países em vias de desenvolvimento” para que reduzam as emissões em 20% até 2050, relativamente aos níveis de 1990. No entanto, se-gundo o documento, essas reduções a ocorrer a partir de 2020 deve-rão ser apoiadas por “cooperação internacional em financiamento e transferência de tecnologias com baixas emissões de carbono”.

Embora se reconheça a ameaça colocada pelo aumento das emis-sões de carbono por parte dos principais “países em vias de desen-

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volvimento”, argumenta-se que são os governos do hemisfério norte – núcleo orgânico e centro dinâmico do sistema mundial - que têm de iniciar as reduções mais profundas e com a maior urgência. Diz Ke-vin Watkins: “Se as pessoas do mundo em vias de desenvolvimento tivessem produzido emissões de CO2 per capita em quantidade seme-lhante à das pessoas da América do Norte, precisaríamos da atmosfe-ra de nove planetas para lidar com as consequências” (PNUD, 2007).

O Relatório de Desenvolvimento Humano argumenta que o custo envolvido na estabilização dos gases com efeito de estufa em 450 partes por milhão poderia ser limitado até uma média de 1,6% do PIB mundial até 2030. “Embora estejamos perante custos signi-ficativos, os custos da inércia serão muito maiores, em termos eco-nómicos, sociais e humanos,” alerta Kemal Dervis, coordenador do PNUD. Efectivamente, o Relatório sublinha o modo como o custo de se evitar alterações climáticas perigosas representa menos do que dois terços da actual despesa militar mundial.

Ao atribuir um preço ao carbono, o Relatório sugere a utilização das forças de mercado contra as tendências persistentes que levam à catastrofe ecológica. Trata-se da “financeirização da natureza” Diz o documento que o gradual aumento das taxas atribuídas ao car-bono seria uma poderosa ferramenta para mudar as estruturas de incentivo com que os investidores se deparam. Enfim, o sistema do capital, incapaz de abolir o “mal”, busca torna-lo financeiramente conversivel.

Finalmente, enumera-se outras iniciativas da “estratégia concer-tada” pela redução mitigada da emissão de gases com efeito de es-tufa: padrões reguladores mais fortes, apoio ao desenvolvimento do fornecimento de energia com baixas emissões de carbono. coopera-ção internacional em transferências de tecnologia e financeiras. Diz Watkins: “Trabalhando conjuntamente e com determinação, pode-remos vencer a luta contra as alterações climáticas. Permitir que a ja-nela de esperança se feche representaria um fracasso moral e político sem precedentes na história da humanidade.” (PNUD, 2007)

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Entretanto, os próprios autores – num momento de lucidez - revelam que muitas das metas estabelecidas pelos governos dos “países desenvolvidos” ficam aquém daquilo que seria necessário. Também se faz notar que a maioria dos “países desenvolvidos” fracassaram, até agora, em atingir até mesmo as mais modestas reduções—atingindo em média 5% relativamente aos níveis de 1990—acordadas no âmbito do Protocolo de Kyoto. Segundo o Relatório do PNUD, até em situações para as quais se estabele-ceram metas ambiciosas, poucos foram os “países desenvolvidos” que fizeram alinhar os objectivos de segurança climática determi-nados com políticas energéticas concretas.

Ora, até que ponto as conversações de Bali serão mais eficazes que o Protocolo de Kyoto em contornar as perspectivas de catasfro-fe ecológica? Até que ponto as grandes corporações capitalistas e os “paises ricos” comprometidos com os interesses da ordem mundial do capital irão se sensibilizar com a tragédia social que irá atingir as populações trabalhadoras mais pobres devido as alterações climáti-cas? Até que ponto a adoção de novas tecnologias de energia renová-vel ocorrerá num tempo hábil capaz de contornar a perspectiva da catastrofe ecológica?

No século XXI, a crise ecológica global que se traduz na pers-pectiva de alterações climaticas radicais é mais um elemento de regressividade histórica da ordem burguesa planetária. Embora o autor principal do Relatório, Kevin Watkins, diga que está fazen-do “um apelo à ação, e não um conselho desesperado,” as perspec-tivas hoje de degradação da Natureza do planeta nunca fora tão ameaçadoras.

Na verdade, a catastrofe ecológica decorrente das alterações cli-máticas não significará o fim do mundo humano, mas a constitui-ção paulatina de um novo ecossistema degradado para a evolução da especie humana, além da subversão das possibilidades concretas de emancipação social inscritas no processo civilizatorio do capital.

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Capitalismo, Natureza e a “falha metabólica”

A perspectiva de catastrofe ecológica é tão-somente a derivação do capital como modo estranhado de controle do metabolismo so-cial. Na verdade, o modo de produção capitalista em seu desenvolvi-mento histórico significou (e significa), em si e para si, uma ameaça à Natureza – tanto a Natureza externa ao homem, quanto às forças naturais pertencentes a ele próprio (corporalidade, braços e pernas, cabeça e mãos). Enfim, o trabalho estranhado e suas determinações reflexivas (propriedade prvada e divisão hierarquica do trabalho) significam a obliteração irremediável da mediação, regulação e con-trole do metabolismo do homem com a Natureza.

Sob o modo de produção capitalista, a apropriação da matéria natural pelo homem não visa a constituição de uma forma útil para sua propria vida, mas a acumulação de valor estranhado. Para Marx, sob o capitalismo, o homem perdeu a mediação, regulação e controle de seu metabolismo (Stoffwechsel) com a Natureza. Instaura-se uma “falha [lift] irreparável” no metabolismo entre homem e Natureza em decorrência das relações de produção capitalistas e da separação antagonista entre campo e cidade.

O modo capitalista de produção alterou radicalmente a condição de reprodução de seres humanos. Constituiu o que Karl Marx deno-minará de “falha metabólica”. Por exemplo, em sua época, o filosófo alemão salientou a incapacidade do capitalismo em adotar práticas agricolas racionais sustentáveis. Ele denunciou, ao lado do econo-mista politico americanos Henry Carey e o quimico agricola alemão Justus von Liebig, a degradação do solo e o declinio da fertilidade natural em razão da destruição do ciclo nutriente do solo que acom-panha a agricultura capitalista. Carey observava que o solo estava sendo sistematicamente roubado dos seus nutrientes. Dizia ele: “O homem apenas toma emprestado da terra, e que, quando ele não paga as suas dívidas, ela faz como qualquer outro credor, isto é, expulsa-o da sua posse”. Ele denunciava o “sistema de espoliação” em qwue as condições de reprodução do solo estavam minadas. O problema

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do esgotamento do solo também estava vinculado, segundo Liebig, à poluição das cidades com esgoto humano e animal. Sob influên-cia de Carey e Liebig, Marx desenvolveria uma critica sistemática da ‘exploração” (no sentido de roubo, isto é, incapacidade de manter os meios de reprodução) capitalista do solo. Daí as duas principais dis-cussões de Marx sobre a agricultura capitalista se encerrarem com explicações de como a indústria em larga escala e a agricultura de larga escla se conjugaram para empobrecer o solo e o trabalhador. O conceito téorico central que explicava isto era o conceito de “falha” na interação metabólica entre o homem e a terra”, isto é, “o metabo-lismo social prescrito pelas leis naturais da vida”, através do “roubo” ao solo dos seus elementos constitutivos, exigindo a sua “restauração sistemática”. O problema da alienação dos elementos constitutivos do solo era não apenas uma “falha irreprável”, mas fazia parte do curso natural do desenvolvimento capitalista. (FOSTER, 2005).

De fato, a crise na fertilidade do solo denunciada por Marx era tão-somente o prenúncio vindouro da crise ecológica que vislum-bramos no século XXI. Enfim, o sistema do capital como modo es-tranhado de controle sociometabílico é incompativel com o desen-volvimento humano-ecológico sustentável.

A categoria conceitual principal da análise teórica de Marx é o conceito de “metabolismo” (Stoffwechsel). A palavra alemã, Stoffwe-chsel, implica diretamente, nos seus elementos, uma noção de “troca material”, subjacente à noção dos processos estruturados de cresci-mento e decadência biológicos englobados pelo termo “metabolis-mo”. Na sua definição de processo de trabalho em geral (contraposta às suas manifestações historicamente específicas), Marx utilizou o conceito de “metabolismo” para descrever a relação do homem com a natureza através do trabalho. Antes, nos “Manuscritos econômi-cos de 1861-63”, ele diz: “O trabalho real é a apropriação da nature-za para satisfação das necessidades humanas, atividade através da qual o metabolismo entre o homem e a natureza é mediado”. E nos “Grundrisse”, Marx se referiu ao conceito de “metabolismo” num sentido mais amplo de “sistema de metabolismo social geral, de re-

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lações universais, de necessidades globais e capacidades universais...formado pela primeira vez” sob a produção generalizada de merca-dorias. Deste modo, o conceito de “metabolismo” era empregado por Marx não apenas para se referir à real interação metabólica entre a natureza e a sociedade através do trabalho humano, quanto num sentido mais amplo, para descrever o conjunto complexo, dinâmico, interdependente, das necessidades e relações geradas e constante-mente reproduzidas de forma alienada no capitalismo (Apud FOS-TER, 2005).

Deste modo, a degradação ambiental está ligado ao modo como o metabolismo humano com a natureza – troca material e ação regu-latória – está expresso através da organização concreta do trabalho humano. A crise ecológica é, na perspectiva da critica do metabolismo social do capital, não apenas a crise da Natureza externa e de seu ecossistema, mas a crise do trabalho vivo e de sua degradação social em virtude da exploração e espoliação da sua corporalidade viva pelo capital. Diz Marx nos “Manuscritos econômico-filosóficos”: “O ho-mem viva da natureza, isto é, a natureza é o seu corpo, e ele precisa manter com ela um dialogo continuado para não morrer. Dizer que a vida fisica e mental do homem está vinculado à natureza significa simnplesmnete dizer que a natureza está vinculada a si mesma, pois o homem é parte da natureza.” (MARX, 2004)

Portanto, a crise ecológica é um importante elemento compo-sitivo da sindrome critica do capital isto é, a crise estrutural de um modo de controle estranhado do metabolismo social – o capital. A positividade da crise ecológica é repor, com maior clareza o signifi-cado da verdadeira liberdade, isto é, o valor do socialismo, que “só pode consistir nisto, que o homem socializado, os produtores asso-ciados, governem o metabolismo humano com a natureza de modo racional, submetendo-o ao seu próprio controle coletivo em vez de ser dominado por ele como um poder cego; realizando-o com um mínimo gasto de energia e em condições mais dignas e apropriadas à sua natureza humana.” (MARX, 1996)

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A crise estrutural do capital

A crise estrutural do capital – crise de um modo de controle es-tranhado do metabolismo social - se desenvolve com a recessão mun-dial de meados da década de 1970, provocando uma inflexão signifi-cativa na dinâmica da economia capitalista mundial. Na medida em que a crise ecológica se manifesta sob o capitalismo global, explici-tando a contradição secular de um modelo de crescimento perverso e alienado na relação homem x Natureza, ela aparece como mais um elemento compositivo da crise estrutural do capital. É resultado do processo civilizatório do capital e da sua “falha metabólica”.

Segundo Meszáros, associar capital (ou capitalismo) a crise não é algo inédito. Desde meados do século XIX, o sistema mundial do capital é atingido por crises de intensidade e duração variadas. Na verdade, as crises, segundo ele, são o “modo natural de existên cia do capital”. Elas tem uma função orgânica: são maneiras de progredir deste modo de produção social, maneiras de fazê-lo sobreviver para além de suas barreiras imediatas e, desse modo, como observa o fi-losófo húngaro, fazê-lo “estender com dinamismo cruel sua esfera de operação e dominação”. Entretanto, a novidade histórica da crise es-trutural que se desenvolve há cerca de trinta anos no sistema-mundo do capital é que ela possui três aspectos principais:

(1) A crise estrutural possui um carâter que é universal, em lu-gar de restrito a uma esfera particular (por exemplo, financeira ou comercial, ou afetando este ou aquele ramo particular de produção, aplicando-se a este e não àquele tipo de trabalho com sua gama espe-cífica de habilidades e graus de produtividade etc). A crise estrutural é a crise de um sistema de metabolismo social, complexo e inter-dependente (e portanto, universal), que vincula os seres humanos à natureza através do trabalho.

(2) O alcance da crise estrutural é verdadeiramente global (no sentido mais literal e ameaçador do termo), em lugar de limitado a um conjunto particular de países (corno foram todas as principais crises no passado). O caráter global da crise estrutural afirma a sig-

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nificação plena da categoria “capitalismo global”. Além disso, a crise ecológica que presenciamos hoje, é – pela primeira vez na história humana - uma crise verdadeiramente global, não se restringindo a um determinado ecossistema particular.

(3) A escala de tempo da crise estrutural é extensa, contínua, se preferir, permanente, em lugar de limitada e cíclica, como foram to-das as crises anteriores do capital. Na verdade, as crises anteriores do capital não tinham o caráter de “crise estrutural”, sendo apenas crises restritas a instancias particulares do sistema, mesmo que te-nham assumido dimensão mundial (como a esfera financeira, por exemplo) com sua dinâmica ciclica. A crise estrutural é sistêmica e sua temportalidade, extensa e contínua, na medida em que expressa o esgotamento de um modo estranhado de troca material e ação re-gulatória entre o homem e a Natureza (a crise ecológica e a crise de sociabilidade é sua manifestação crucial). Por isso, em contraste com as erupções e os colapsos mais espetaculares e dramáticos do passa-do, o modo de se desdobrar da crise estrutural pode ser considerado rastejante, desde que acrescentemos, como observa Meszáros, a res-salva de que nem sequer as convulsões mais veementes ou violentas poderiam ser excluídas no que se refere ao futuro: a saber, quando a complexa maquinaria agora ativamente empenhada na “adminis-tração da crise” e no “deslocamento” mais ou menos temporário das crescentes contradições perder sua energia (de meados da década de 1970 para cá, o caminho do capitalismo global foi pavimentado por uma série de pequenas crises globais administradas pelos Bancos Centrais dos paises da OCDE, decorrentes do estouro de “bolhas es-peculativas”: 1987, 1994, 1997, 2000 e 2007). Diz Meszáros: “Seria ex-tremamente tolo negar que tal maquinaria existe e é poderosa, nem se deveria excluir ou minimizar a capacidade do capital de somar novos instrumentos ao seu já vasto arsenal de autodefesa contínua. Não obstante, o fato de que a maquinaria existente esteja sendo posta em jogo com freqüência crescente e com eficácia decrescente é uma medida apropriada da severidade da crise estrutural que se aprofun-da”. (MÉSZÁROS, 2002)

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Crise estrutural do capital, barbarie social e catastrofe ecológica

Na verdade, a crise estrutural do capital possui as caracteristi-cas de uma “sindrome” social, isto é, de um “estado mórbido” ca-racterizado por um conjunto de sinais e sintomas associados a uma “condição social crítica”, suscetível de despertar reações de temor e insegurança global. A “condição crítica” da sindrome do capital é a convergência histórica de um conjunto de crescentes contradições sócio-metabólicas do sistema mundial do capital, principalmente a partir de meados da década de 1970. A principal delas diz respeito à contradição capital x trabalho, na medida em que é através do tra-balho que o sociometabolismo do capital vincula os seres humanos à natureza: a aguda elevação da produtividade do trabalho em vir-tude do processo cumulativo do progresso técnico, tende a explo-dir a materialidade do valor-trabalho – uma “implosão” contínua e permanente no espaço-tempo comprimido do novo tempo histórico do capitalismo global. É por isso que o consumo de trabalho vivo de uma parte da força de trabalho torna-se irrelevante para o sistema do capital (José Nun, um dos teóricos da CEPAL, irá chama-las de “massa marginal” e Robert Kurz, de “sujeitos monetários sem di-nheiro”). Enfim, a crescente redundância do trabalho vivo e da força de trabalho – que é expressão da crise da ecologia humana - é a “pon-ta do iceberg” de um sistema de metabolismo social que expõe seus limites estruturais, demonstrando ser incapaz de conter o processo civilizatório humano-genérico.

Nos tempos da globalização neoliberal, o que garante a repro-dução social do sistema do capital é a agudização dos fetichismos sociais, que têm no fetichismo da mercadoria sua expressão primor-dial. Ao mesmo tempo que os fetichismos sociais contribuem para a reprodução social da “produção destrutiva” do capital, sob as con-dições de sua crise estrutural , eles expõem, num sentido radical, os dilaceramentos intrinsecos à forma-mercadoria, ou seja, a aguda contradição entre valor de troca (valor econômico) e valor de uso (valor humano) – outra contradição dilacerante da “sindrome do ca-pital”. Na verdade, a intensificação (e nova amplitude) da crise da forma-mercadoria, sob as condições históricas da crise estrutural do

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capital, deriva da crise estrutural do trabalho abstrato, o trabalho produtor de valor, fundamento do valor de troca.

A crise estrutural do capital não significa, como análises eco-nomicistas e catastrofistas da queda do capitalismo mundial pode-riam supor, incapacidade de crescimento (e expansão) da economia capitalista. Pelo contrário, apesar da sua crise estrutural, o capital como sistema de acumulação de valor, tem-se expandido nos últi-mos trinta anos, apresentado, na passagem para o século XXI, índi-ces exuberantes de crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) nas fronteiras da modernização do capital (como Índia, China e Sudeste Asiático). Entretanto, o exuberante crescimento em termos de PIB não se traduz necessariamente em efetivo desenvolvimento humano. Pelo contrário, sob as “condições criticas” do capital, o crescimento econômico só aprofunda as contradições socio-metabólicas e o dila-ceramento do ecossistema natural e humano-social.

Portanto, a “crise estrutural do capital”, descrito por Meszáros, significa, em sua essencia, a incapacidade da forma social do capital em conter (e realizar) as possibilidades de desenvolvimento do ser ge-nérico do homem pressupostas pela nova materialidade sócio-técnica. A perspectiva de catastrofe ecológica devido a degradação das con-dições materiais de reprodução humana (o que significa, no campo das possibilidades concretas, o surgimento de uma nova “homini-dade dessumanizada”) é mais um elemento compositivo do esgota-mento histórico de um modo de controle do metabolismo social.

O sociometabolismo da barbarie

A perspectiva de catastrofe ecológica em virtude do aquecimen-to global é o ponto crucial da nossa época histórica. A crise ecológica é essencialmente uma crise social, no sentido pleno da palavra, tendo em vista que decorre da “falha metabólica” que explicita a alienação do homem das condições objetivas e subjetivas da produção da sua vida. Nessas “condições criticas”, a reprodução social – inclusive em

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sua base natural - é degradada na medida em que se degradam os nexos sociais do homem como ser genérico.

O modo de organização capitalista da produção e do ser social, baseado na propriedade privada e na divisão hierarquica do trabalho, não apenas obstaculiza o desenvolvimento sócio-humano, mas pro-move a regressão civilizatória, instaurando o que podemos denomi-nar de barbarie social ou o sóciometabolismo da barbarie. O sóciome-tabolismo da barbárie se caracteriza pela ampliação e intensificação do processo de dessocialização por meio do desemprego em massa e “exclusão” social e pelo processo de precarização e institucionaliza-ção de uma nova precariedade do trabalho, sedimentada na “cultura do medo” (ANTUNES, 2003; VASAPOLLO, 2005; ALVES, 2007).

A barbarie social ou o sóciometabolismo da barbarie é a forma de ser da aparencia do sistema essencial do capital em sua etapa de desenvolvimento hipertardio, onde contradições estruturais na rela-ção homem x homem e homem x natureza, se agudizam (de fato, a aguda produtividade do trabalho, oculta, em si, a socialização obje-tiva da produção, sob as condições sociais de apropriação privada do produto do trabalho social). Estes elementos contraditórios consti-tuem elos constrangedores ao desenvolvimento local nas condições materiais (e objetivas) dos individuos histórico-mundiais, colocan-do, masi do que nunca, a necessidade histórica do socialismo como sistema mundial.

O que denominamos barbárie social, e que se distingue de ou-tras formas de barbárie histórica, emerge com o fim da ascensão histórica do capital que alterou, radical e irremediavelmente, as condições de reprodução expandida do sistema mundial do capital, empurrando para o primeiro plano, como salienta Mészáros, “suas tendências destrutivas e seu companheiro natural, o desperdício ca-tastrófico” (MESZAROS, 2002). No “Manifesto Comunista” de 1848, Karl Marx e Friedrich Engels salientaram um conceito de “barbárie” posta como determinação reflexiva da civilização do capital - o que significava que o desenvolvimento natural do capitalismo tendia a ser interrompido por uma epidemia de superprodução. Dizem eles:

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“A sociedade vê-se de repente retransportada a um estado de mo-mentânea barbárie [...] E por que? Porque a sociedade possui civili-zação em excesso.” (MARX E ENGELS, 1998). A barbárie histórica do capitalismo em sua fase de ascensão era um momento necessário, “um estado de momentânea barbárie”, caracterizada pela destrui-ção de parte das forças produtivas, um elemento necessário para a continuidade da própria acumulação de capital. Ora, com o modo capitalista de produção, pela primeira vez na história, o elemento de barbárie histórica, isto é, a destruição das “forças produtivas” – incluindo a Natureza externa, faz parte intrinseca do próprio modo de produção (o que não ocorria em nenhum dos modos de produção anteriores).

Por isso, Marx caracterizou o capital como sendo a “contradição viva”, tendo em vista que, se por um lado a sociedade burguesa, como observa Lukács, é a sociedade que se torna cada vez mais social (o que é um elemento do processo civilizatório), por outro lado, devido as suas crises sistêmicas, ela tende a obstaculizar, com intensidade e amplitude, o desenvolvimento do ser genérico do homem, dessocia-lizando-o pelo trabalho estranhado. O estado de barbárie decorre da “civilização em excesso”. Eis a suprema “contradição viva” do capital com impactos decisivos no próprio metabolismo social da moderni-dade capitalista (LUKÁCS, 1978; MENEGAT, 2003).

Na medida em que ingressamos na fase de descenso histórico do capital como modo estranhado de controle do metabolismo social, caracterizada pela sua intensa expansividade e incontrolabilidade, agudizam-se as “contradições vivas” do capital, visto que a mundia-lização do capital contém um elemento de “civilização em excesso”, instigando, portanto, o estado de barbárie. Entretanto, altera-se a natureza da crise capitalista. Ela assume um caráter estrutural que tende a acirrar as contradições sistêmicas do capital.

A crise estrutural do capital altera a temporalidade da barbárie histórica que não se restringe tão-somente a um “momentum” de interregno da acumulação de capital, mas torna-se a nova tempo-ralidade sócio-metabólica. Portanto, o capitalismo em sua etapa de

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crise estrutural instaura o que podemos chamar de estado de “bar-bárie social” que contém os elementos de negação contínua da pró-pria civilização (o sistema mundial do capital é um sistema social “afetado de negação”) Nessas “condições criticas”, abre-se uma nova etapa da luta de classes no plano histórico-mundial. A perspectiva de catastrofe ecológica como elemento compositivo da barbarie so-cial expõe outra dimensão candente da crise estrutural do capital: a obstaculização radical da base natural de desenvolvimento do ser generico do homem. Por isso, sob as “condições criticas” da “sindro-me do capital”, mais do que nunca, coloca-se a necessidade histórica do socialismo como novo modo de controle social capaz de permitir o desenvolvimento local como efetivo desenvolvimento humano-genérico.

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O capitalismo global é a etapa do capitalismo mundial na épo-ca da crise estrutural do capital. Explicitam-se de forma candente as contradições sistêmicas irremediáveis da “civi-

lização do capital” em seu período de decadência histórica. O verda-deiro sentido da idéia de crise estrutural do capital não está na inca-pacidade do sistema mundial produtor de mercadorias se expandir ou fazer crescer a produção de riqueza abstrata, mas sim na aguda explicitação de sua incapacidade objetiva em realizar as candentes promessas do processo civilizatório como pressuposto negado do desenvolvimento humano-histórico.

Desde seus primórdios, o desenvolvimento do capitalismo his-tórico caracterizou-se pela candente dialética entre promessas e frus-tração. Por exemplo, na Revolução Francesa de 1789, com seus ideais de Igualdade, Fraternidade e Liberdade, a burguesia se apropriou (e perverteu) ideais de emancipação humana. Foi o caso clássico de promessa e frustração (ou de revolução e contra-revolução), traço es-sencial da ontologia politica das revoluções burguesas. Mas a maior explicitação contraditória do capital ocorre no desenvolvimento da base técnica do sistema social produtor de mercadorias que, ao mes-mo tempo que reduz as barreiras naturais, oprime homens e mulhe-res em relações sociais estranhadas fetichizadas.

Karl Marx conseguiu atentar para esse traço estrutural do meta-bolismo social do capital, onde a promessa de emancipação social se frustra e interverte-se em sua própria negação. No discurso pronun-ciado na festa de aniversário do jornal cartista “People’s Paper”, em

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14 de abril de 1856, ele observou, com perspicácia genial, a natureza do espírito da temporalidade histórica do capital:

“Hoje em dia tudo parece levar em seu seio a sua própria contra-dição. Vemos que as máquinas, dotadas da propriedade maravilhosa de reduzir e tornar mais frutífero o trabalho humano, provocam a fome e o esgotamento do trabalhador. As fontes de riqueza recém-descobertas se convertem, por artes de um estranho maleficio, em fontes de privações. Os triunfos da arte parecem adquiridos ao preço de qualidades morais. O domínio do homem sobre a natureza é cada vez maior; mas, ao mesmo tempo, o homem transforma em escravo de outros homens ou da sua própria infâmia. Até a pura luz da ciên-cia parece só poder brilhar sobre o fundo tenebroso da ignorância Todos os nossos inventos e progressos parecem dotar de vida inte-lectual as forças materiais, enquanto reduzem a vida humana ao ní-vel de uma força material bruta. Este antagonismo entre a indústria moderna e a ciência, de um lado, e a miséria e a decadência, de outro; este antagonismo entre as forças produtivas e as relações sociais de nossa época é um fato palpável, esmagador e incontrovertível.”

No Manifesto Comunista de 1848, Karl Marx e Friedrich En-gels conseguiram apreender uma dimensão ontológica da crise do capitalismo. Elas são crises de superproprodução que possuem um sentido irônico – a forma social do capital é incapaz de conter a ri-queza produzida em demasia. Talvez a “civilização do capital” seja a primeira civilização histórica que entra em crise não em virtude de uma situação de escassez, mas sim, de uma situação de abundância. As crises capitalistas ocorrem porque, como observam Marx e En-gels, “a sociedade possui demasiada civilização, demasiados meios de subsistência, demasiada indústria, demasiado comércio”. É a supre-ma ironia do capital.

Nesta pequena passagem do genial opúsculo político de 1848, Marx e Engels trataram em seus contornos histórico-ontológicos da natureza da crise do capitalismo. Cada crise do sistema do capital reitera – quase como um “surto neurótico” – as convulsões críticas que são intrínsecas à natureza do modo de produção capitalista: “Há

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dezenas de anos, a história da indústria e do comércio não é senão a história da revolta das forças produtivas modernas contra as atuais relações de produção e de propriedade que condicionam a existên-cia da burguesa e seu domínio. Basta mencionar as crises comerciais que, repetindo-se periodicamente, ameaçam cada vez mais a exis-tência da sociedade burguesia. Cada crise destrói regularmente não só uma grande massa de produtos já fabricados, mas também uma grande parte das próprias forças produtivas já desenvolvidas”.

E logo a seguir, Marx e Engels salientam a novidade histórica desta convulsão civilizatória intrínseca à forma de ser do capital: “Uma epidemia, que em qualquer outra época teria parecido um paradoxo, desaba sobre a sociedade - a epidemia da superprodução. Subitamente, a sociedade vê-se, reconduzida a um estado de barbá-rie momentânea, dir-se-ia que a fome ou uma guerra de extermínio cortaram-lhe todos os meios de subsistência; a indústria e o comér-cio parecem aniquilados. E por quê? Porque a sociedade possui de-masiada civilização, demasiados meios de subsistência, demasiada indústria, demasiado comércio. As forças produtivas de quê dispõe não mais favorecem o desenvolvimento das relações de propriedade burguesa; pelo contrário, tornaram-se por demais poderosas para essas condições, que passam a entravá-las; e todas as vezes que as forças produtivas sociais se libertam desses entraves, precipitam na desordem a sociedade inteira e ameaçam a existência da proprieda-de burguesa.”

Uma “crise de superprodução” é ironicamente, um paradoxo histórico. É o supra-sumo da dialética (Heráclito de Éfeso, o pai da dialética antiga, diria que o capitalismo “vive de morte, morre de vida”). Na verdade, são nos momentos de crises que a desvela-se a farsa do capitalismo. Elas explicitam o caráter irracional do modo de produção capitalista. A epidemia de superprodução provoca um estado de barbárie que, hoje, sob a crise estrutural do capital, com a cronificação da epidemia de superpodução, tende a tornar-se não um estado momentâneo, mas sim, um estado permanente de barbá-rie social.

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Finalmente, Marx e Engels decifraram a saída capitalista para suas crises paradoxais – a destruição violenta das forças produtivas. Proferidas em 1848, elas ressoam hoje, em 2009, quando o capita-lismo global vive a maior crise da história moderna. Dizem eles: “O sistema burguês tornou-se demasiado estreito para conter. De que maneira consegue a burguesia vencer essas crises? De um lado, pela destruição violenta de grande quantidade de forças produtivas; de outro lado, pela conquista de novos mercados e pela exploração mais intensa dos antigos. A que leva isso? Ao preparo de crises mais ex-tensas e mais destruidoras e à diminuição dos meios de evitá-las as riquezas criadas em seu seio”. (os grifos são nossos).

A crônificação das epidemias de superprodução e a instauração do estado permanente de barbárie social colocam como necessidade sistêmica de manutenção e reprodução do capitalismo global, o apro-fundamento – e agudização – do estranhamento e fetichismos sociais. Numa situação de crise estrutural, a pletora de fetichismos sociais tende a se aprofundar, pois as contradições são dilacerantes, além de virem a tona elementos de força. Na verdade, a reprodução do sis-tema mundial articularia elementos de força e elementos sistêmicos, com o fetichismo – a forma capitalista do estranhamento primordial - tendo um papel central.

Mas a dinâmica ontológico-histórica de promessas e frustrações e o traço irônico de “morrer de vida” – o verdadeiro sentido da crise de civilização, conteúdo essencial das crises de superprodução que mar-cam o desenvolvimento capitalista dos últimos séculos – possuem um outro componente essencial que perpassa e constitui os elemen-tos anteriores: o capitalismo como farsa. Enfim, estamos diante de um sistema social que se reproduz dissimulando/ocultando/deslo-cando suas contradições objetivas intrínsecas, constituindo, deste modo, um metabolismo social impregnado da miséria da farsa.

Por exemplo, incapaz de realizar suas promessas (e ideais) de individuação, o capitalismo elabora a farsa do individualismo, que é a degradação das individualidades pessoais em relações particula-ristas de mercado. Assim, a ideologia capitalista é, em sua essência,

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a ideologia-farsa, que embora contenha elementos de verdade em sua em sua forma fenomênica, essa promessa de verdade tende a ser negada – no decorrer do processo social – pela forma essencial de relação-capital.

Assim, a verdade da farsa do individualismo é a promessa de individuação, que tende a ser negado pelo próprio desenvolvimen-to critico do metabolismo social do capital. A ideologia-farsa como percepção contingente pode ser expressa no ditado popular que diz: “nem tudo que parece, é”.

A dinâmica social e a vida cotidiana na sociedade burguesa estão permeadas da forma farsesca de ser das relações sociais. É o fetichis-mo da mercadoria que é o nexo essencial constitutivo da ideologia como farsa. N´O Capital, Marx observava que a mercadoria parece algo perene, mas que oculta, por conta do fetichismo que lhe é in-trinseca, sua origem como produto da atividade do trabalho social. Enfim, a mercadoria é um embuste e o logro primordial da sociedade burguesa. Na medida que a forma-mercadoria tende a permear as relações sociais no capitalismo histórico, ela torna a sociabilidade burguesa um complexo de relações sociais impregnadas de farsa.

Por isso, a farsa como traço sócio-metabolico das relações so-ciais no capitalismo global decorre da plena manifestação do feti-chismo da mecadoria. A sociedade global do capital é a sociedade das mercadorias em sua dimensão planetária. Nos últimos trinta anos, sob a mundialização do capital e o neoliberalismo, com a vigência do mercado, nunca as mercadorias impregnaram tanto as relações so-ciais. O que significa que nunca o fetichismo da mercadoria e as for-mas estranhadas da vida social tornaram-se tão presentes em nossas vidas. O impacto deste fato histórico candente sobre o metabolismo social da modernidade do capital é claro: a disseminação da farsa como ethos burguês, impregnando as relações sociais e as formas ideológicas do capital.

Segundo o Dicionário Aurélio, farsa possui um significado ori-ginário no teatro. É a peça teatral de comicidade exagerada, ação vi-vaz, irreverente e burlesca, e com elementos de comédia de costume.

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Outro significado de farsa, ainda ligado ao teatro, é significar baixa comédia. E vem outro significado: ato ridiculo, próprio de farsas. Ou ainda coisa burlesca; embuste, logro, pantomima. Como exemplo, a frase: “Aquela choradeira foi uma farsa: estava contentissima”. No mesmo dicionário, farsante é a pessoa sem seriedade, sem palavra (eis o sentido que buscamos recuperar – o capitalismo é um siste-ma social farsesco, isto é, que está impregnado em seu metabolismo humano-social de elementos de farsa).

No Dicionário Houaiss, a palavra farsa – que se origina em 1505 (ironicamente, nos primórdios do capitalismo moderno), é definida, primeiro, na acepção do teatro como sendo “pequena peça cômica popular, de concepção simples e ação trivial ou burlesca, em que predominam gracejos, situações ridículas, etc. Na história do teatro, farsa é a peça de teatro cômico, geralmente curta e de poucos perso-nagens, em que se inseriam canções (surge no século XIV e adquire maior expressão nos dois séculos seguintes). O Dicionário apresenta ainda mais acepções para definir a palavra farsa: narração que pro-voca o riso; narração burlesca, risível; comédia de baixo nível; ato grotesco, próprio de farsa; qualquer coisa de caráter burlesco; ação ou representação que induz ao logro; mentira ardilosa, embuste.

Eis o sentido preciso que buscamos recuperar: farsa como “ação ou representação que induz ao logro; mentira ardilosa, embuste”. É o traço característico da sociabilidade mercantil, imersa na névoa do fetichismo das mercadorias e suas derivações sistêmicas.

A farsa como traço sócio-metabólico do capitalismo histórico – e que adquire proporções intensas e ampliadas sob o capitalismo global - impregna em sua dimensão objetiva a dinâmica do siste-ma social, permeando a constituição das subjetividades de classe. As individualidades pessoais de classe tendem a incorporar como elemento de sua vida inautêntica, baseada no trabalho estranhado e estranhamento social, atitudes farsescas. Deste modo, o homem bur-guês – modelo humano que impregna a sociabilidade de classe – é um homem farsante.

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Na medida em que a vida cotidiana sob a sociedade do estranha-mento fetichizado não propicia uma vida plena de sentido, mas uma vida social marcada pela inautenticidade, a farsa tende a impregnar os construtos ideológicos nas várias instâncias da vida cotidiana. Elementos de farsa estão nas práticas (e discursos) da política e eco-nomia, trabalho e vida cotidiana, dos discursos religiosos às canden-tes declarações de amor.

Por exemplo, as novas ideologias educacionais (competência, empregabilidade, empreendedorismo) estão eivadas de elementos farsescos, na medida em que expõe na aparência ideais valorativos de realização humana, mas ocultam, em seu conteúdo essencial, a verdade de si: são ideologias do capital, que, como relação social fe-tichizada, tende a frustrar tais candentes promessas de realização humano-generica (a competência é impossível no “sistema social da incompetência”, onde despersonaliza-se a pessoa humana subsu-mindo-a à máquina da produção; a empregabilidade oculta a lógica da produção destrutiva de empregos que caracteriza o capitalismo global; o empreendedorismo dissimula a heteronomia do trabalho social à lógica dos oligopólios financeiros, ocultando que o mercado não é para todos).

O construto ideológico da farsa opera a dialética negativa en-tre sonho e realidade. Sob o capitalismo global, que é o capitalismo manipulatório, as individualidades pessoais de classe estão intensa-mente dilaceradas por contradições vivas dentro (e fora) de si. Com o sócio-metabolimso da barbarie, nunca o núcleo humano-generico esteve tão ameaçado de desefetivação.

A barbárie social é o verdadeiro conteúdo do capitalismo mani-pulatório. Ela tende a acirrar as contradições sociais que perpassam a objetividade e subjetividade de classe. Inquietas e intranqüilas, dila-ceradas pela desefetivação do núcleo humano-generico, do trabalho vivo reduzido à força de trabalho, as individualidades pessoais de classes sofrem – a idéia de “sofrimento” – moral ou psíquico - é um dado objetivo, no sentido da deriva pessoal que atinge, por exemplo, trabalhadores assalariados submersos na insegurança do desempre-

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go e do trabalho precário. Estamos diante não de um fato epidemio-lógico, mas sim de um fato sociológico da mais alta relevância

Nos últimos trinta anos – o que denominamos de “trinta anos perversos” do capitalismo histórico – o “moinho satânico” do capi-tal incitou sonhos como elemento de manipulação social, na mesma medida em que os frustrou irremediavelmente, tendo em vista a base miserável da forma social incapaz de conter as riquezas produzidas por conta do desenvolvimento espetacular da base técnica.

Por exemplo, a Internet com o ciberespaço significou maior aproximação das pessoas e aquilo que David Harvey denomina “compressão espaço-temporal”. Ao mesmo tempo, o “diluvio dos Outros” que ocorre no ciberespaço, tende a explicitar os Outros como meros “Outros fetichizados”, ou ainda “Outros-que-não-são-próximos”, mas meros meio para finalidades particularistas. Sob a sociabilidade burguesa, o ambiente virtual tende a incitar atitudes farsescas. A compressão espaço-temporal contribui para o maior giro do capital, mas desterritorializa identidades humanas e frag-menta laços sociais.

A questão que se coloca neste pequeno ensaio é saber quais as conseqüências humanas do sistema social da farsa; ou ainda, qual tipo de humanidade está sendo produzida pela civilização do capital em sua etapa de crise estrutural.

Com a era da barbárie social que emerge sob o capitalismo glo-bal, cujo traço essencial é a manipulação – Lukács atentou para isso ao salientar o conceito de “capitalismo manipulatorio” – o ponto candente é o aprofundamento do estranhamento social, ou ainda, um estranhamento social com “crosta” fetichizada. Portanto, torna-se necessário uma agenda investigativa que recupera a crítica da vida cotidiana em sua dimensão inautêntica e a critica da subjetividade burguesa com seus traços farsescos. Trata-se de um metabolismo social que impregna objetivamente as relações sociais e não meros traços psicológicos (ou morais) da alma humana.

A “humanidade” do capitalismo global é a humanidade desefe-tivada. Os sintomas da desefetivação humano-generica são percep-

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tíveis na dinâmica do capitalismo global por meio dos dispositivos ideológicos de culpabilizaão da vitima, com o esmagamento da auto-estima das individualidades pessoais de classe, abrindo espaço in-terno para a manipulação sistêmica; e com a resignificação perversa do universo locucional, artificio sutil de corrosão da linguagem ao estilo do Big Brother do romance 1984, de George Orwell (Guerra é paz; Liberdade é Escravidão). O que explica, por exemplo, a perver-são minimalista de ideais valorativos cultivados na “era dourada” do capitalismo fordista-keynesiano: a garantia do emprego àquele que acumulou capital humano interverte-se em mera empregabili-dade; a inclusão social que se dava por meio de emprego com car-reira profissional e com garantias de seguridade e previdência social universalista, interverte-se em politicas públicas focadas em praticas assistencialistas.

Dispositivos psicossociais de manipulação do capitalismo global

“Culpabilização das vitimas”

Resignificaçao perversa do universo locucional

Enfim, trata-se de mecanismos psicossociais do capitalismo glo-bal que se impõem nas condições da barbárie social. Na verdade, tanto a “culpabilização das vitimas”, quanto a “perversão do universo locucional” possuem um sentido farsesco – incitam sonhos enquanto meras ilusões ou embustes – enfim, pura “mentira”.

No “18 Brumário de Luis Bonaparte”, Karl Marx nos apresentou um traço ontológico da ordem burguesa – repetir o passado como farsa. É o caso de Luis Bonaparte, que era a farsa de Napoleão Bona-parte. Observou ele na abertura de seu livro clássico: “Hegel observa, em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas

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vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.”

Logo adiante, ele expressa frases geniais que explicitam dimen-sões ontológicas da práxis social (e politica): “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defron-tam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado.” E arremata: “A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e as coisas, em criar algo que jamais existiu, pre-cisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conju-ram ansiosamente em seu auxilio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestado os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de apresentar-se nessa linguagem emprestada.”

Ora, nesse traço ontológico da práxis politica dos homens que fazem sua própria história, há elementos primordiais da atitude far-sesca que constituí o metabolismo social da vida burguesa. Na mo-dernidade do capital, paradoxalmente, a tradição tende a oprimir como um pesadelo, o cérebro dos vivos. A farsa constitui o próprio recurso de apelo aos “espíritos do passado” – o passado das promes-sas burguesas gloriosas de emancipação social diante do mundo feudal. Por isso, apela-se, em pleno estado permanente de barbárie social, aos ideais de “Direitos Humanos” e “cidadania” no horizonte de um “capitalismo inclusivo”. É a tradição e os espíritos do passado que, como farsa, se apresentam na dinâmica politica e social do ca-pitalismo global.

O capitalismo do século XX apelou para vários artifícios farses-cos, onde o ideais valorativos do passado são resignificados perver-samente para ocultar, dissimular e desviar a miséria do presente do capitalismo histórico. De artificio estrutural da vida politica, a atitu-de farsesca impregna o metabolismo social.

Na medida em que a sociedade burguesa é a sociedade do tra-balho estranhado, os sujeitos/agentes sociais tendem a perder o sen-tido de realidade. É a o processo de desefetivação humano-generico

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que marca o trabalho estranhado. Karl Marx, nos “Manuscritos econômico-filosóficos” (de 1844), caracteriza como uma das conse-qüências cruciais do trabalho estranhado é a desefetivação do traba-lhador. Constitui-se assim, a desefetivação humano-genérica. Marx utiliza a palavra em alemão “Entwirklicht”, que significa literalmen-te “privado de realidade e/ou de efetividade”; ou melhor, perda do sentido de realidade. É o que caracteriza, nas várias instâncias da vida cotidiana, a percepção dos sujeitos/agentes sociais, que são pri-vados do sentido de realidade, tanto no tocante à auto-percepção de si (o que explica as atitudes narcísicas e particularistas das individu-alidades pessoais), quanto à percepção dos outros e da realidade so-cial e política (talvez a escassez do “discernimento” e do velho “bom senso” na vida social e relações interpessoais seja decorrência deste candente processo de desefetivação humano-genérica que marca o capitalismo tardio). Enfim, é o sentido pleno da “alienação”.

Portanto, a “perda do sentido de realidade” significa a constitui-ção de um complexo sóciometabolico de ilusões e auto-ilusões que envolvem as individualidades pessoais de classe. Ela permeia a vida cotidiana, permitindo a fluidez da manipulação sistêmica. Enfim, sonhos que são ilusões e utopias de mercado ou utopias particula-ristas tornam-se meros arremedos do sentido categórico de utopia como não-lugar de realização humano-generica.

As utopias de mercado e as utopias particularistas são meros so-nhos diurnos invertidos em seu sentido categórico – não nos movem em direção à futuridade, mas nos torna pressas da “presentificação cronica” do capitalismo global. Na verdade, são mecanismos de resis-tência inercial do sistema sóciometabolico do capital, obstaculizan-do a verdadeira percepção de si e para si da classe do proletariado.

O que é importante investigar são as implicação subjetivas – no sentido da formação da consciência social critica e da consciência de classe - do sóciometabolismo da farsa que impregna o capitalismo global. Deste modo estaremos aptos a investigar as possibilidades da praxis sócio-humana de emancipação do trabalho social.

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