planeta de favelas - involução urbana e o proletariado informal

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MIKE DAVIS PLANETA DE FAVELAS A involução urbana e o proletariado informal Em algum momento do ano que vem, uma mulher vai dar à luz na favela de Ajegunle, em Lagos; um rapaz fugirá de sua aldeia, no oeste de Java, para as luzes brilhantes de Jacarta; e um fazendeiro partirá com a família empobrecida para um dos inumeráveis  pueblos jovenes de Lima. O evento exato não importa e passará sem sequer ser notado. Ainda assim, representará um divisor de águas na história humana. Pela primeira vez, a população urbana da Terra será mais numerosa que a rural. Na verdade, dada a imprecisão dos recenseamentos no Terceiro Mundo, essa transição sem paralelo pode já ter ocorrido. A Terra urbanizou-se ainda mais depressa do que previra de início o Clube de Roma em seu relatório sabidamente malthusiano de 1972, Limits of growth [Limites do crescimento]. Em 1950, havia 86 cidades no mundo com mais de um milhão de habitantes; hoje, são 400 e, em 2015, serão pelo menos 550 1 . Na verda- de, as cidades absorveram quase dois terços da explosão populacional global desde 1950 e crescem hoje no ritmo de um milhão de bebês e migrantes por semana 2 . A população urbana atual (3,2 bilhões de pessoas) é maior que a população total do planeta em 1 960. Enquanto isso, no mundo todo o campo chegou a sua po- pulação máxima (3,2 bilhões de pessoas) e começará a encolher a partir de 2020. Como resultado, as cidades serão responsáveis por todo o crescimento popula- cional futuro da Terra – espera-se que seu ponto máximo, cerca de 10 bilhões de habitantes, seja atingido em 2050 3 . 1  UN Population Division, World urbanization prospects, the 2001 revision (Nova York, 2002). 2  Population Information Program, Population reports: meeting the urban challenge , v. XXX, n. 4, outono [quarto trimestre] de 2002, p. 1. 3  Wolfgang Lutz, Warren Sandeson e Sergei Scherbov, “Doubling of world population unlikely”,

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  • MIKE DAVIS

    PLANETA DE FAVELAS

    A involuo urbana e o proletariado informal

    Em algum momento do ano que vem, uma mulher vai dar luz na favela de Ajegunle, em Lagos; um rapaz fugir de sua aldeia, no oeste de Java, para as luzes brilhantes de Jacarta; e um fazendeiro partir com a famlia empobrecida para um dos inumerveis pueblos jovenes de Lima. O evento exato no importa e passar sem sequer ser notado. Ainda assim, representar um divisor de guas na histria humana. Pela primeira vez, a populao urbana da Terra ser mais numerosa que a rural. Na verdade, dada a impreciso dos recenseamentos no Terceiro Mundo, essa transio sem paralelo pode j ter ocorrido.

    A Terra urbanizou-se ainda mais depressa do que previra de incio o Clube de Roma em seu relatrio sabidamente malthusiano de 1972, Limits of growth [Limites do crescimento]. Em 1950, havia 86 cidades no mundo com mais de um milho de habitantes; hoje, so 400 e, em 2015, sero pelo menos 550. Na verda-de, as cidades absorveram quase dois teros da exploso populacional global desde 1950 e crescem hoje no ritmo de um milho de bebs e migrantes por semana. A populao urbana atual (3,2 bilhes de pessoas) maior que a populao total do planeta em 1960. Enquanto isso, no mundo todo o campo chegou a sua po-pulao mxima (3,2 bilhes de pessoas) e comear a encolher a partir de 2020. Como resultado, as cidades sero responsveis por todo o crescimento popula-cional futuro da Terra espera-se que seu ponto mximo, cerca de 10 bilhes de habitantes, seja atingido em 2050.

    UNPopulationDivision,World urbanization prospects, the 2001 revision(NovaYork,2002).PopulationInformationProgram,Population reports: meeting the urban challenge,v.XXX,n.4,outono[quartotrimestre]de2002,p.1.WolfgangLutz,WarrenSandesoneSergeiScherbov,Doublingofworldpopulationunlikely,

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    O CLIMATRIO URBANO

    Onde esto os heris, os colonizadores, as vtimas da Metrpole?

    Brecht, registro no Dirio, 1921

    Desse aumento mundial, 95% ocorrer nas reas urbanas dos pases em desenvolvimento, cuja populao dobrar para quase 4 bilhes de pessoas na pr-xima gerao. (Na verdade, a populao urbana combinada da China, da ndia e do Brasil j mais ou menos igual da Europa somada da Amrica do Norte.) O resultado mais notado ser o desenvolvimento de novas megacidades com mais de 8 milhes de habitantes e, ainda mais espetaculares, hipercidades com mais de 20 milhes de habitantes (a populao urbana mundial estimada na poca da Revoluo Francesa). Em 1995, s Tquio atingira incontestavelmente esse patamar. Em 2025, segundo a Far Eastern Economic Review, a sia, sozinha, poder ter dez ou onze conurbaes desse tamanho, como Jacarta (24,9 mi-lhes), Daca (25 milhes) e Karachi (26,5 milhes). Xangai, cujo crescimento foi congelado durante dcadas pela poltica maosta de suburbanizao deliberada, poderia ter at 27 milhes de moradores em sua imensa regio metropolitana estuarina. Enquanto isso, prev-se que Mumbai (Bombaim) atinja 33 milhes de habitantes, embora ningum saiba se concentraes to gigantescas de po-breza so sustentveis em termos biolgicos ou ecolgicos.

    Mas, se as megacidades so as estrelas mais brilhantes do firmamento urba-no, trs quartos do fardo do crescimento populacional ser suportado por cidades pouco visveis de segundo nvel e por reas urbanas menores lugares onde, como enfatizam os pesquisadores da ONU, h pouco ou nenhum planejamento para acomodar tais pessoas e prestar-lhes servios. Na China (oficialmente 43% urbana

    Nature,n.387,19/6/1997,p.803-4.Noentanto,apopulaodafricasubsaarianatriplicar,eadandiadobrar.GlobalUrbanObservatory,Slums of the world: the face of urban poverty in the new millenium?(NovaYork,2003),p.10.Emboranoseduvidedavelocidadedaurbanizaoglobal,ataxadecrescimentodecidadesespecficaspode frear-serepentinamentecomoatritodo tamanhoedaaglomerao.UmcasofamosodeumadessasreversesdepolarizaoaCidadedoMxico,quetodospreviamqueatingiria25milhesdehabitantesnadcadade1990(apopulaoatual,provavelmente,de18ou19milhes).VerYue-manYeung,Geographyinanageofmega-cities,International Social Sciences Journal,n.151,1997,p.93. Ver o ponto de vista deYue-manYeung, Viewpoint: integration of thePearlRiver delta,International Development Planning Review,v.25,n.3,2003.FarEasternEconomicReview,Asia 1998 Yearbook,p.63.UN-Habitat,The challenge of the slums: global report on human settlements 2003(Londres,2003),p.3.

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    em 1997), o nmero oficial de cidades disparou de 193 para 640 desde 1978. Mas as grandes metrpoles, apesar do crescimento extraordinrio, na verdade redu-ziram sua participao relativa no total da populao urbana. Pelo contrrio, so as cidades pequenas e as vilas recentemente promovidas a cidades que absor-veram a maior parte da fora de trabalho rural tornada excedente pelas reformas do mercado depois de 1979. Na frica, do mesmo modo, o crescimento ao estilo supernova de algumas cidades gigantescas como Lagos (de 300 mil habitantes em 1950 para 10 milhes hoje) foi igualado pela transformao de vrias dezenas de cidadezinhas e osis como Uagadugu, Nuakchote, Duala, Antananarivo e Bamako em cidades maiores que So Francisco e Manchester. Na Amrica Latina, onde as cidades principais monopolizaram por um bom tempo o crescimento, cidades secundrias como Tijuana, Curitiba, Temuco, Salvador e Belm esto hoje em expanso, com o crescimento mais veloz acontecendo nas cidades que possuem entre 100 mil e 500 mil habitantes0.

    Alm disso, como insistiu Gregory Guldin, a urbanizao precisa ser conceituada como transformao estrutural e intensificao da interao em todos os pontos de uma linha contnua urbano-rural. Em seu estudo do sul da China, o campo vem se urbanizando in situ, alm de gerar migraes nunca vistas. As aldeias tornam-se mais parecidas com as vilas xiang e os mercados e as cidadezinhas do interior fi-cam mais parecidas com cidades grandes. O resultado, na China e em boa parte do sudeste da sia, uma paisagem hbrida, um campo parcialmente urbanizado que, defendem Guldin e outros, pode ser um caminho novo e importante de povoao humana e desenvolvimento [...] uma forma nem rural nem urbana, mas uma mis-tura dos dois, na qual uma rede densa de transaes liga grandes ncleos urbanos com suas regies circundantes. Na Indonsia, onde um processo semelhante de hibridao rural/urbana est bem avanado em Jabotabek (a grande Jacarta), os pes-quisadores chamam esses novos padres de uso de terra de desokotas e discutem se so paisagens de transio ou uma espcie nova e dramtica de urbanismo.

    Os urbanistas tambm especulam sobre os processos que interligam as cida-des do Terceiro Mundo em redes, corredores e hierarquias novos e extraordinrios.

    GregoryGuldin,Whats a peasant to do: village becoming town in Southern China (Boulder,Colorado,2001),p.13.0MiguelVillaeJorgeRodriguez,DemographictrendsinLatinAmericasmetropolises,1950-1990,emAlanGilbert(org.),The mega-city in Latin America(Tquio,1996),p.33-4.Guldin,Peasant,cit.,p.14,17.VertambmJingNengLi,Structuralandspatialeconomicchangesand theireffectsonrecenturbanization inChina,emGavinJonesePravinVisaria(orgs.),Urbanization in large developing countries(Oxford,1997),p.44.VerT.McGee,TheemergenceofDesakotaregions inAsia:expandingahypothesis,emNorthonGinsburg,BruceKoppelleT.McGee(orgs.),The extended metropolis: settlement transi-tion in Asia(Honolulu,1991).

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    Por exemplo, os deltas dos rios Prola (Hong KongGuangju) e Yang-ts (Xangai), juntamente com o corredor BeijingTianjin, esto se transformando rapidamente em megalpoles comparveis a TquioOsaka, ao baixo Reno ou a Nova YorkFiladlfia. Mas esse pode ser apenas o primeiro estgio do surgimento de uma estrutura ainda maior: um corredor urbano contnuo que se estende do Japo/Coria do Norte at o oeste de Java. Xangai, quase com certeza, ir ento se unir a Tquio, Nova York e Londres como uma das cidades mundiais que controlam a rede global de fluxos de capital e informao. O preo dessa nova ordem urbana ser a desigualdade cada vez maior em e entre cidades de diferentes tamanhos e especializaes. Guldin, por exemplo, cita interessantes discusses chinesas sobre a possvel substituio, hoje em dia, do antigo abismo de renda e desenvolvimento entre a cidade e o campo por uma lacuna igualmente bsica entre as cidades pe-quenas e as gigantes litorneas.

    DE VOLTA A DICKENS

    Vi hostes inumerveis, condenadas escurido, sujeira, pestilncia, obscenidade, ao sofrimento e morte precoce.

    Dickens, A December vision, 1850

    A dinmica da urbanizao no Terceiro Mundo recapitula e confunde os pre-cedentes da Europa e da Amrica do Norte no sculo XIX e incio do sculo XX. Na China, a maior revoluo industrial da histria a alavanca de Arquimedes que desloca uma populao do tamanho da europia das aldeias rurais para cidades cheias de fumaa e arranha-cus. Como resultado, a China deixa[r] de ser o pas predominantemente rural que foi por milnios. Na verdade, o grande culo do Centro Financeiro Mundial de Xangai pode, daqui a pouco, olhar para um vasto mundo urbano jamais imaginado por Mao, nem, alis, por Le Corbusier. Mas, na maior parte do mundo em desenvolvimento, faltam ao crescimento das cidades o poderoso motor industrial-exportador da China e sua enorme importao de ca-pital estrangeiro (hoje em dia, equivalente metade do investimento estrangeiro total no mundo em desenvolvimento).

    Yue-manYeungeFu-chenLo,GlobalrestructuringandemergingurbancorridorsinPacificAsia,emLoeYeung(orgs.),Emerging world cities in Pacific Asia(Tquio,1996),p.41.Guldin,Peasant,cit.,p.13.WangMengkui,assessordoConselhodeEstado,citadonoFinancialTimes,26denovembrode2003.Desdeasreformasdemercadodofinaldadcadade1970,estima-sequequase300milhesdechinesesmudaram-sedasreasruraisparaascidades.Espera-sequemais250ou300milhesossigamnasprximasdcadas(Financial Times,16/12/2003).

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    Em conseqncia, a urbanizao em outros lugares foi radicalmente desli-gada da industrializao e at do desenvolvimento propriamente dito. Alguns argumentariam que esta a expresso de um pendor inexorvel: a tendncia in-trnseca do capitalismo informatizado de desvincular o crescimento da produo do crescimento do nvel de emprego. Mas, na frica subsaariana, na Amrica Latina, no Oriente Mdio e em partes da sia, a urbanizao sem crescimento mais claramente herana de uma conjuntura poltica global a crise da dvida externa do final da dcada de 1970 e a subseqente reestruturao das economias do Terceiro Mundo pelo FMI nos anos 1980 do que lei frrea do avano da tec-nologia. Alm disso, a urbanizao do Terceiro Mundo continuou em seu ritmo velocssimo (3,8% ao ano entre 1960 e 1993) durante os anos difceis da dcada de 1980 e do incio da de 1990, apesar da queda do salrio real, da alta dos preos e da disparada do desemprego urbano.

    Essa expanso urbana perversa contradisse os modelos econmicos ortodo-xos, que previam que o feedback negativo da recesso urbana retardaria ou at re-verteria a migrao do campo. O caso africano foi especialmente paradoxal. Como as cidades da Costa do Marfim, da Tanznia, do Gabo e de outros pases cuja eco-nomia se contraa 2% a 5% ao ano conseguiram ainda manter um crescimento po-pulacional anual de 5% a 8%? Obviamente, parte do segredo que as polticas de desregulamentao agrcola e descampesinao impostas pelo FMI (e hoje pela OMC) aceleraram o xodo da mo-de-obra rural excedente para as favelas urbanas, ainda que as cidades deixassem de ser mquinas de empregos. O crescimento da populao urbana, apesar do crescimento econmico urbano zerado ou negativo, a face extrema do que alguns pesquisadores rotularam de superurbanizao. apenas uma das vrias ladeiras inesperadas para as quais a ordem mundial neo-liberal empurrou a urbanizao do milnio.

    claro que a teoria social clssica, de Marx a Weber, acreditava que as grandes cidades do futuro seguiriam os passos industrializantes de Manchester, Berlim e Chicago. Na verdade, Los Angeles, So Paulo, Pusan e, hoje, Ciudad Jurez, Bangalore

    JosefGugler,IntroductionII.Rural-urbanmigration,emGugler(org.),Cities in the developing world: issues, theory and policy(Oxford,1997),p.43.Paraumavisocontrria,quecontestaosdadosgeralmenteaceitosdoBancoMundialedaONUsobreastaxasdeurbanizaoelevadasecontnuasdadcadade1980,verDeborahPotts,Urbanlives:adoptingnewstrategiesandadaptingrurallinks,emCaroleRakodi(org.),The urban challenge in Africa: growth and management of its large cities(Tquio,1997),p.463-73.DavidSimon,Urbanization,globalizationandeconomiccrisisinAfrica,emRakodi,Urban challenge,cit.,p.95.VerJosefGugler,Overurbanizationreconsidered,emGugler,Cities in the developing world,cit., p. 114-23.Emcontraste, a economia anteriordominantenaUnioSovitica enaChinamaostarestringiaamigraointernaparaascidadese,assim,tendiasuburbanizao.

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    e Guangju seguiram mais ou menos essa trajetria clssica. Mas a maioria das cida-des do hemisfrio sul mais parecida com a Dublin vitoriana, que, como enfatizou Emmet Larkin, no teve igual dentre todos os montes de cortios produzidos no mundo ocidental no sculo XIX [...] [porque] seus cortios no foram resultado da revoluo industrial. Dublin, na verdade, sofreu mais com os problemas da desin-dustrializao do que com a industrializao entre 1800 e 1850.

    Do mesmo modo, Kinshasa, Cartum, Dar-es-Salaam, Daca e Lima cresce-ram de modo prodigioso, apesar da runa da indstria de substituio de impor-taes, do encolhimento do setor pblico e da decadncia da classe mdia. As foras globais que empurram as pessoas para fora do campo a mecanizao em Java e na ndia, a importao de alimentos no Mxico, no Haiti e no Qunia, a guerra civil e a seca de modo generalizado na frica e, por toda parte, a consoli-dao de pequenas propriedades em grandes e a competio do agronegcio em escala industrial parecem manter a urbanizao mesmo quando a atrao da cidade enfraquecida drasticamente pelo endividamento e pela depresso0. Ao mesmo tempo, o rpido crescimento urbano no contexto do ajuste estrutural, da desvalorizao da moeda e da reduo do Estado foi a receita inevitvel da produo em massa de favelas. Assim, boa parte do mundo urbano corre de volta para a poca de Dickens.

    A predominncia espantosa das favelas o principal tema do relatrio hist-rico e sombrio publicado em outubro passado pelo Programa de Assentamentos Humanos das Naes Unidas (UN-Habitat). The challenge of the slums [O desafio das favelas] (daqui em diante apenas Slums) a primeira auditoria verdadeiramen-te global acerca da pobreza urbana. Integra com competncia diversos estudos de casos urbanos, de Abidjan a Sydney, com dados globais sobre as famlias, in-cluindo, pela primeira vez, a China e o antigo bloco sovitico. (Os autores da ONU registram sua dvida especial a Branko Milanovic, economista do Banco Mundial que foi o pioneiro do uso de micropesquisas como uma lente poderosa para estu-dar a crescente desigualdade global. Num de seus artigos, Milanovic explica: Pela primeira vez na histria humana, os pesquisadores tm dados razoavelmente exatos

    Prefciode JacintaPrunty,Dublin slums 1800-1925: a study in Urban Geography (Dublin,1998),p.IX.0Assim,pareceque,nospasesdebaixarenda,umaquedasignificativadarendaurbanatal-veznoproduzanecessariamente,acurtoprazo,odeclniodamigraorural-urbana (NigelHarris, Urbanization, economic development and policy in developing countries, Habitat International,v.14,n.4,1990,p.21-2).SobreaurbanizaonoTerceiroMundoeacriseglobaldadvidaexterna,verYorkBradshaweRitaNoonan,Urbanization,economicgrowth,andwomenslabour-forceparticipation,emGugler,Cities in the developing world,cit.,p.9-10.Slums,cit.

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    sobre a distribuio de renda ou bem-estar [despesas ou consumo] em mais de 90% da populao do mundo.)

    Slums tambm incomum em sua honestidade intelectual. Um dos pesqui-sadores ligados ao relatrio contou-me que os tipos de Consenso de Washington (Banco Mundial, FMI etc.) sempre insistiram em definir os problemas das fa-velas globais no como resultado da globalizao e da desigualdade, mas como resultado do mau governo . No entanto, o novo relatrio rompe a seriedade e a autocensura tradicionais da ONU para condenar abertamente o neoliberalismo, em especial os programas de ajuste estrutural do FMI.

    A direo principal das intervenes nacionais e internacionais durante os lti-

    mos vinte anos na verdade aumentou a pobreza urbana e as favelas, elevou a excluso

    e a desigualdade e enfraqueceu a elite urbana em seu esforo de usar as cidades como

    motores do crescimento.

    Slums, verdade, negligencia (ou guarda para outros relatrios do UN-Habitat) algumas das questes mais importantes sobre o uso da terra causadas pela superurba-nizao e pelo assentamento informal, como o espalhamento, a degradao ambiental e os perigos urbanos. Tambm deixa de lanar luz sobre os processos que expulsam a mo-de-obra do campo e de incorporar uma literatura volumosa e de crescimento rpido sobre a dimenso sexuada da pobreza urbana e do emprego informal. Mas, afo-ra essas pequenas objees, Slums um documento valiosssimo que d destaque s descobertas insistentes da pesquisa diante das autoridades institucionais das Naes Unidas. Se os relatrios do Painel Intergovernamental sobre a Mudana Climtica constituem um consenso cientfico sem precedentes sobre os perigos do aquecimento global, Slums parece ser um alerta igualmente enftico sobre a catstrofe global da pobreza urbana. (Algum dia um terceiro relatrio talvez examine o terreno sinistro da interao dos dois.) E, para os propsitos desta resenha, constitui um arcabouo excelente para o exame inicial dos debates contemporneos sobre urbanizao, econo-mia informal, solidariedade humana e ao histrica.

    BrankoMilanovic,True world income distribution 1988 and 1993,BancoMundial(NovaYork,1999).MilanoviceseucolegaSchlomoYitzhakiforamosprimeirosacalcularadistribuioderendamun-dialcombaseemdadosdepesquisascomfamliasdecadapas.OUnicef,paraserjusto,criticouduranteanosoFMI,destacandoquecentenasdemilharesdecrianasdomundoemdesenvolvimentoderamavidaparapagaradvidadeseuspases.VerThe state of the worlds children(Oxford,1989),p.30.Slums,cit.,p.6.Supe-sequeumestudoassimexaminaria,deumlado,osriscosurbanoseocolapsodainfra-estruturae,deoutro,oimpactodamudanaclimticasobreaagriculturaeamigrao.

  • 1 MikeDavis

    A URBANIZAO DA POBREZA

    A montanha de lixo parecia estender-se at muito longee ento, aos poucos, sem demarcao nem fronteira visvel, virava outra coisa.

    Mas o qu? Uma coleo de estruturas, confusa e sem caminhos. Caixas de papelo, compensado e tbuas podres, carcaas de carros

    enferrujadas e sem vidros tinham sido amontoados para formar habitaes.

    Michael Thelwell, The harder they come, 1980

    A primeira definio conhecida e publicada da palavra inglesa slum* surgiu no Vocabulary of the flash language [Vocabulrio da linguagem vulgar], em que sinni-mo de racket ou comrcio criminoso. No entanto, nos anos da clera nas dcadas de 1830 e 1840, os pobres moravam em slums, em vez de pratic-los. Uma gerao depois, identificaram-se slums na Amrica e na ndia, em geral reconhecidos como fenmeno internacional. O slum clssico era um lugar pitoresco e sabidamente provinciano, mas em geral os reformadores concordavam com Charles Booth que todos se caracterizavam por um amlgama de habitaes dilapidadas, excesso de populao, pobreza e vcio. claro que, para os liberais do sculo XIX, a dimenso moral era fundamental, e a favela era considerada, acima de tudo, um lugar onde o resduo social apodrecia num esplendor imoral e quase sempre turbulento. Os autores de Slums descartam as calnias vitorianas, mas fora isso conservam a defi-nio clssica: excesso de populao, habitaes pobres ou informais, acesso inade-quado a gua potvel e esgoto sanitrio e insegurana da posse da terra.

    Essa definio multidimensional , na verdade, um padro bem conservador do que qualifica uma favela; muitos leitores ficaro surpresos pela concluso da ONU, contrariando o que se v, de que somente 19,6% dos mexicanos urbanos moram em favelas. Mas, mesmo com essa definio restritiva, Slums estima que, em 2001, havia pelo menos 921 milhes de moradores de favelas: populao qua-se igual do mundo todo quando o jovem Engels aventurou-se pela primeira vez pelas ruas miserveis de Manchester. Na verdade, o capitalismo neoliberal multi-plicou exponencialmente o famoso slum Tom-All-Alone de Dickens em A casa so-turna. Os moradores de favela constituem espantosos 78,2% da populao urbana dos pases menos desenvolvidos e o total de um tero da populao urbana glo-bal. Extrapolando a estrutura etria da maioria das cidades do Terceiro Mundo, pelo menos metade da populao favelada tem menos de vinte anos0.

    Prunty,Dublin slums,cit.,p.2.Slums,cit.,p.12.Slums,cit.,p.2-3.0VerA.Oberai,Population growth, employment and poverty in Third World mega-cities(NovaYork,

    *Noportugusatual,podesertraduzidaporfavela,cortio,rearesidencialmiservel.(N.T.)

  • Planetade favelas 1

    Os maiores percentuais de moradores de favelas do mundo so da Etipia (espantosos 99,4% da populao urbana), Tchade (tambm 99,4%), Afeganisto (98,5%) e Nepal (92%). No entanto, provvel que a populao urbana mais pobre esteja em Maputo e Kinshasa, onde (segundo outras fontes) dois teros dos morado-res ganha menos do que o custo da nutrio diria mnima necessria. Em Dlhi, os planejadores queixam-se amargamente das favelas dentro das favelas, em que as pessoas ocupam os pequenos espaos abertos das colnias de reassentamento na periferia para onde os antigos pobres urbanos foram violentamente removidos em meados da dcada de 1970. No Cairo e em Phnom Penh, os recm-chegados cidade ocupam ou alugam espao nos telhados, criando favelas no ar.

    Muitas vezes a populao das favelas deliberadamente e s vezes maci-amente subcalculada. No final dos anos 1990, por exemplo, Bangcoc tinha uma taxa de pobreza oficial de apenas 5%, mas as pesquisas encontraram quase um quarto da populao (1,16 milho) morando em favelas e acampamentos de ocupao. Do mesmo modo, a ONU descobriu recentemente que estava, sem querer, deixando de contar por uma grande margem a pobreza urbana na frica. Por exemplo, provvel que os moradores de favelas de Angola sejam duas vezes mais numerosos do que se pensava a princpio. Do mesmo modo, a organizao subestimou o nmero de habitantes urbanos pobres da Libria, o que no sur-preende, j que a populao de Monrvia triplicou num s ano (1989-90) quando, apavorados, moradores do interior fugiram de uma violenta guerra civil.

    Pode haver mais de 250 mil favelas na Terra. Sozinhas, as cinco maiores me-trpoles do sul da sia (Karachi, Mumbai, Dlhi, Kolkata e Daca) somam cerca de 15 mil comunidades faveladas diferentes com um total de mais de 20 milhes de habitantes. Uma populao favelada ainda maior cobre o litoral em urbanizao da frica ocidental, enquanto outras conurbaes imensas de pobreza espalham-se pela Anatlia e pelas terras altas da Etipia; abraam a base dos Andes e do Himalaia; explodem para longe dos ncleos de arranha-cus da Cidade do Mxico, de Jo-burg, Manila e So Paulo; e, claro, ladeiam as margens dos rios Amazonas, Nger, Congo, Nilo, Tigre, Ganges, Irrawaddy e Mekong. paradoxal que os tijolos

    1993),p.28.Em1980,acoorte0-19dasgrandescidadesdaOCDEerade19%a28%dapopula-o;nasmegacidadesdoTerceiroMundo,de40%a53%.Slums of the world,cit.,p.33-4.Simon,UrbanizationinAfrica,cit.,p.103;eJean-LucPiermay,Kinshasa:areprievedmega-city?,emRakodi,Urban challenge,cit.,p.236.SabirAli,Squatters:slumswithinslums,emProdiptoRoyeShangonDasGupta(orgs.),Urbanization and slums(Dlhi,1995),p.55-9.JonathanRigg,Southeast Asia: a region in transition(Londres,1991),p.143.Slums of the world,cit.,p.34.

  • 200 MikeDavis

    desse planeta-favela sejam ao mesmo tempo totalmente intercambiveis e esponta-neamente nicos, como os bustees de Kolkata, os chawls e zopadpattis de Mumbai, os katchi abadis de Karachi, os kampungs de Jacarta, os iskwaters de Manila, as shammasas de Cartum, os umjondolos de Durban, os intra-murios de Rabat, as bidonvilles de Abidjan, os baladis do Cairo, os gecekondus de Ancara, os conven-tillos de Quito, as favelas do Brasil, as villas miseria de Buenos Aires e as colonias populares da Cidade do Mxico. So os antpodas tenazes das paisagens genri-cas de fantasia e dos parques temticos residenciais os burgueses Offworlds [mundos de fora], de Philip K. Dick nos quais a classe mdia global cada vez mais prefere se enclausurar.

    Enquanto, por um lado, o modelo clssico do slum era o cortio decadente do centro da cidade, as novas favelas, por sua vez, localizam-se, em geral, na orla das exploses espaciais urbanas. claro que o crescimento horizontal de cidades como Mxico, Lagos ou Jacarta foi extraordinrio e que o alastramento das fave-las um problema to grande no mundo em desenvolvimento quanto o alas-tramento dos subrbios de classe mdia nos pases ricos. A rea construda de Lagos, por exemplo, dobrou numa s dcada, entre 1985 e 1994. O governador do estado de Lagos disse a jornalistas, no ano passado, que cerca de dois teros dos 3577 km da superfcie terrestre total do estado podia ser classificada como barracos ou favelas. Realmente, como escreve um correspondente da ONU,

    boa parte da cidade um mistrio [...] auto-estradas sem iluminao passam por des-

    filadeiros de lixo fumegante antes de dar lugar a ruas de terra que volteiam entre du-

    zentas favelas, os esgotos correndo com dejetos no-tratados [...] Ningum sequer sabe

    com certeza o tamanho da populao oficialmente so seis milhes, mas a maioria

    dos especialistas estima-a em dez milhes e, menos ainda, o nmero de assassinatos

    a cada ano [ou] a taxa de infeco pelo HIV.

    Alm disso, Lagos , simplesmente, o maior entroncamento do corredor de 70 milhes de favelados que se estende de Abidjan a Ibadan provavelmente a maior rea de solo coberta de pobreza urbana em nosso planeta.

    SalahEl-Shakhs,Towardappropriateurbandevelopmentpolicyinemergingmega-citiesinAfrica,emRakodi,Urban challenge,cit.,p.516.Daily Times of Nigeria, 20/10/2003.Lagos cresceude formamais explosivaque todas asoutrasgrandescidadesdoTerceiroMundo,comexceodeDaca.Em1950,tinhaapenas300milhabitantes,masdepoiscresceuquase10%aoanoat1980,quandoreduziuoritmoparacercade6%aindabemvelozduranteosanosdereajusteestrutural.AmyOtchet,Lagos:thesurvivalofthedetermined,Unesco Courier,junhode1999.Slums,cit.,p.50.

  • Planetade favelas 201

    claro que a ecologia da favela gira em torno da oferta de espao para assen-tamento. Winter King, num estudo recente publicado na Harvard Law Review, afirma que 85% dos moradores urbanos do mundo desenvolvido ocupam pro-priedades ilegalmente0. Em ltima instncia, a indeterminao da propriedade da terra e/ou a propriedade frouxa do Estado foram as brechas pelas quais uma vasta poro da humanidade despejou-se nas cidades. Os modos de assentamento das favelas variam num grande espectro, das invases de terra disciplinadssimas da Cidade do Mxico e de Lima aos mercados de aluguel de organizao complexa (mas muitas vezes ilegal) nos arredores de Beijing, Karachi e Nairbi. At em cidades como Karachi, onde a periferia urbana pertence formalmente ao governo, lucros imensos oriundos da especulao imobiliria [...] continuam a se acumu-lar no setor privado custa das famlias de baixa renda. Na verdade, a mquina poltica nacional e local costuma aceitar o assentamento informal (e a especulao privada ilegal) enquanto conseguir controlar a compleio poltica das favelas e receber um fluxo regular de propinas ou aluguis. Sem ttulos formais de proprie-dade da terra ou da casa prpria, impe-se aos moradores das favelas uma depen-dncia quase feudal de autoridades e lderes partidrios locais. A deslealdade pode significar expulso ou at o arrasamento de um bairro inteiro.

    Enquanto isso, o fornecimento da infra-estrutura de sobrevivncia arrasta-se bem atrs do ritmo da urbanizao, e, muitas vezes, as reas de favela periurba-nas no oferecem nenhum servio pblico nem saneamento bsico. Em geral, as reas pobres das cidades latino-americanas tm melhor prestao de servios bsicos que as do sul da sia, que, por sua vez, costumam ter servios urbanos mnimos, como fornecimento de gua e eletricidade, que faltam a muitas favelas africanas. Como em Londres no incio da poca vitoriana, a contaminao da gua por dejetos humanos e animais a causa das doenas diarricas crnicas que ma-tam pelo menos dois milhes de crianas urbanas todos os anos. Estimados 57% dos africanos urbanos no tm acesso a saneamento bsico, e, em cidades como Nairbi, os pobres precisam usar banheiros voadores (defecar num saco plsti-co). Em Mumbai o problema do saneamento definido pela proporo de um

    0WinterKing,Illegalsettlementsandtheimpactoftitlingprogrammes,Harvard Law Review,v.44,n.2,setembrode2003,p.471.NaesUnidas,Karachi, srie Populationgrowthandpolicies inmegacities (NovaYork,1988),p.19.Aausnciadeinfra-estrutura,noentanto,criaincontveisnichosparatrabalhadoresinfor-mais:vendergua,transportarexcrementos,reciclarlixo,fornecergsdecozinha,eassimpordiante.WorldResourcesInstitute,World resources: 1996-97(Oxford,1996),p.21.Slums of the world,cit.,p.25.

  • 202 MikeDavis

    assento sanitrio para quinhentos habitantes nos bairros mais pobres. Somente 11% dos bairros pobres de Manila e 18% de Daca tm meios formais de dispor do esgoto. Sem contar a incidncia da epidemia de HIV/Aids, a ONU considera que dois em cada cinco moradores de favelas africanas vivem num nvel de pobreza que , literalmente, uma ameaa vida.

    Paralelamente, por toda parte os pobres urbanos so forados a habitar terre-nos perigosos e nada apropriados para a construo encostas muito ngremes, margens de rios e alagados. Do mesmo modo, instalam-se sombra mortal de refinarias, indstrias qumicas, depsitos de lixo txico ou margem de ferrovias e auto-estradas. Em conseqncia, a pobreza construiu um problema de desastre urbano de freqncia e alcance sem precedentes, como exemplificam as inunda-es crnicas em Manila, Daca e Rio de Janeiro; as exploses de dutos na Cidade do Mxico e em Cubato (no Brasil); a catstrofe de Bhopal, na ndia; a exploso de uma fbrica de munio em Lagos e os deslizamentos fatais em Caracas, La Paz e Tegucigalpa. Alm disso, as comunidades de pobres urbanos sem direito de voto so vulnerveis s exploses sbitas de violncia estatal, como na famosa destruio, em 1990, da favela praiana de Maroko, em Lagos (uma agresso paisagem para a comunidade vizinha de Victoria Island, fortaleza dos ricos), ou a demolio, em 1995, sob clima congelante, da grande cidade de ocupantes ilegais de Zhejiangcun, nos arredores de Beijing.

    Mas as favelas, apesar de mortais e inseguras, tm um futuro brilhante. Por um curto perodo o campo ainda conter a maioria dos pobres do mundo, mas esse ttulo de reputao duvidosa passar para as favelas urbanas por volta de 2035. Pelo menos metade da prxima exploso populacional urbana do Terceiro Mundo ser creditada s comunidades informais. Dois bilhes de favelados em 2030 ou 2040 uma possibilidade monstruosa, quase incompreensvel, mas a pobreza humana por si s superpe-se s favelas e excede-as. Na verdade, Slums ressalta que, em algumas cidades, a maioria dos pobres mora, na verdade, fora da favela propriamente dita0. Alm disso, os pesquisadores do Observatrio Urbano da

    Slums,cit.,p.99.Slums of the world,cit.,p.12.Encontra-seumexemplarestudodecasoemGregBankoff,Constructingvulnerability:thehistorical,naturalandsocialgenerationoffloodinginMetropolitanManila,Disasters,v.27,n.3,2003,p.224-38.Otchet, Lagos; e LiZhang,Strangers in the city: reconfigurations of space, power and social networks within Chinas floating population(Stanford,2001);AlanGilbert,The Latin American city(NovaYork,1998),p.16.MartinRavallion,On the urbanization of poverty,artigodoBancoMundial,2001.0Slums,cit.,p.28.

  • Planetade favelas 203

    ONU alertam que, em 2020, a pobreza urbana no mundo chegar a 45% a 50% do total de moradores de cidades.

    O BIG BANG DA POBREZA URBANA

    Depois de sua risada misteriosa, mudaram rapidamente de assunto para outras coisas. Como as pessoas l em casa vinham sobrevivendo ao PAE?

    FidelisBalogun, Adjusted lives,1995

    A evoluo da nova pobreza urbana foi um processo histrico no-linear. O acrscimo lento de cortios e barracos ao invlucro da cidade marcado por tem-pestades de pobreza e exploses de construo de favelas. Em sua coletnea de his-trias Adjusted lives [Vidas ajustadas], o escritor nigeriano Fidelis Balogun descreve a chegada do Programa de Ajuste Estrutural (PAE) do FMI, em meados da dcada de 1980, como equivalente a uma grande catstrofe natural, destruindo para sem-pre a antiga alma de Lagos e reescravizando os nigerianos urbanos.

    Parecia que a lgica esquisita desse programa econmico era que, para devolver

    a vida economia moribunda, todo o suco tinha antes de ser esPAEmido da maioria

    desprivilegiada dos cidados. A classe mdia logo desapareceu, e os montes de lixo dos

    poucos cada vez mais ricos tornaram-se a mesa da multiplicada populao dos abjeta-

    mente pobres. O escoamento dos crebros para os pases rabes ricos em petrleo e

    para o mundo ocidental transformou-se numa torrente.

    O lamento de Balogun sobre privatizar a todo vapor e ficar mais faminto a cada dia e sua enumerao das conseqncias malvolas do PAE soariam instan-taneamente familiares aos sobreviventes no s dos outros trinta PAEs africanos como tambm de centenas de milhes de asiticos e latino-americanos. Os anos 1980 quando o FMI e o Banco Mundial usaram a alavancagem da dvida para reestruturar a economia da maior parte do Terceiro Mundo foram a poca em que as favelas tornaram-se um futuro implacvel no s para os migrantes rurais pobres como tambm para milhes de habitantes urbanos tradicionais, desaloja-dos ou jogados na misria pela violncia do ajuste.

    Como enfatiza Slums, os PAEs foram de natureza deliberadamente antiur-bana e projetados para reverter qualquer vis urbano que existisse nas polticas de bem-estar social, na estrutura fiscal ou nos investimentos governamentais.

    Slums of the world,cit.,p.12. Fidelis Odun Balogun,Adjusted lives: stories of structural adjustment (Trenton, New Jersey,1995),p.80.The challenge of slums,cit.,p.30.Ostericosdovisurbano,comoMichaelLipton,queinventou

  • 204 MikeDavis

    Em toda parte o FMI, agindo como delegado dos grandes bancos e apoiado pelos governos Reagan e Bush, ofereceu aos pases pobres o mesmo clice envenenado de desvalorizao, privatizao, remoo dos controles da importao e dos subsdios aos alimentos, reduo forada dos custos com sade e educao e enxugamen-to impiedoso do setor pblico. (Um famoso telegrama de 1985 de George Shultz, Secretrio do Tesouro dos Estados Unidos, a oficiais do USAID no exterior ordena-va: Na maioria dos casos, as empresas do setor pblico tm de ser privatizadas.)

    Ao mesmo tempo, os PAEs devastaram os pequenos proprietrios rurais ao eliminar subsdios e expuls-los, no esquema ou vai ou racha, para o mercado global de commodities dominado pelo agronegcio do Primeiro Mundo.

    Como ressalta Ha-Joon Chang, os PAEs, de maneira hipcrita, chutaram a escada (ou seja, as tarifas e os subsdios protecionistas) que as naes da OCDE empregaram historicamente em sua prpria subida da agricultura para os bens e servios urbanos de alto valor agregado. Slums afirma a mesma coisa quando argumenta que a principal causa isolada do aumento da pobreza e da desigual-dade nas dcadas de 1980 e 1990 foi o recuo do Estado. Alm das redues diretas impostas pelos PAEs aos gastos e propriedade do setor pblico, os autores da ONU destacam a diminuio mais sutil da capacidade do Estado que resultou da subsidiaridade: a descentralizao do poder entre os escales mais baixos do governo e, em especial, as ONGs ligadas diretamente s principais entidades de auxlio internacional.

    Toda a estrutura aparentemente descentralizada estranha noo de governo

    representativo nacional que to bem serviu ao mundo desenvolvido e, ao mesmo

    aexpressoem1977,argumentamqueaagriculturatendeasersubcapitalizadanospasesemde-senvolvimento,eascidades,relativamentesobre-urbanizadas,porqueaspolticasfiscaisefinan-ceirasfavorecemaeliteurbanaedistorcemofluxodosinvestimentos.Nolimite,ascidadesseriamvampirosdocampo.VerLipton,Why poor people stay poor: a study of urban bias in world development(Cambridge,1977).CitadoemTonyKillick,Twenty-fiveyearsindevelopment:theriseandimpendingdeclineofmarketsolutions,Development Policy Review,v.4,1986,p.101.DeborahBryceson, Disappearingpeasantries?Rural labour redundancy in theneoliberaleraandbeyond,emBryceson,CristbalKayeJosMooij(orgs.),Disappearing peasantries?: rural labour in Africa, Asia and Latin America(Londres,2000),p.304-5.Ha-JoonChang,Kickingawaytheladder.Infantindustrypromotioninhistoricalperspec-tive,Oxford Development Studies,v.31,n.1,2003,p.21.Arenda per capitadospasesemde-senvolvimentocresceu3%aoanoentre1960e1980,massomentecercade1,5%entre1980e2000[...]Oseconomistasneoliberais,portanto,defrontam-seaquicomumparadoxo.Ospasesemdesenvolvimento crescerammuitomaisdepressaquandousaram mspolticasdurante1960-90doquequandousarampolticas boas (oupelomenos melhores)nasduasdcadasseguintes(p.28).

  • Planetade favelas 205

    tempo, bastante submissa ao funcionamento de uma hegemonia global. O ponto de

    vista internacional dominante [ou seja, o de Washington] torna-se o paradigma de fato

    do desenvolvimento, de modo a unificar rapidamente o mundo todo no sentido geral

    daquilo que os financiadores e as organizaes internacionais apiam.

    A frica e a Amrica Latina urbanas foram as mais atingidas pela depresso artificial arquitetada pelo FMI e pela Casa Branca. Com efeito, em muitos pases o impacto econmico dos PAEs durante os anos 1980, em conjunto com as secas prolongadas, o aumento do preo do petrleo, a disparada dos juros e a queda do preo das commodities, foi mais grave e duradouro que a Grande Depresso.

    O balano do ajuste estrutural na frica examinado por Carole Rakodi inclui fuga de capitais, colapso da indstria, aumento marginal ou negativo da receita de exportao, cortes drsticos nos servios pblicos urbanos, disparada de preos e declnio acentuado do salrio real. Em Kinshasa (uma aberrao ou um sinal do que est para acontecer?), o assainissement varreu a classe mdia de funcionrios pblicos e produziu um declnio inacreditvel do salrio real, que, por sua vez, patrocinou o pesadelo do aumento da criminalidade e das gangues predatrias. Em Dar-es-Salaam, as despesas com servios pblicos caram 10% por pessoa ao ano durante a dcada de 1980 na prtica, uma demolio do Estado local0. Em Cartum, a liberalizao e o ajuste estrutural, de acordo com pesquisadores locais, fabricaram 1,1 milho de novos pobres, sados em sua maioria dos grupos as-salariados ou dos funcionrios do setor pblico. Em Abidjan, uma das poucas cidades tropicais africanas com um setor fabril importante e servios urbanos mo-dernos, a submisso ao regime do PAE levou, aqui e ali, desindustrializao, ao colapso da construo civil e a uma rpida deteriorao do transporte pblico e do saneamento bsico. Na Nigria de Balogun, a extrema pobreza, cada vez mais urbanizada em Lagos, Ibadan e outras cidades, entrou em metstase e passou de 28% em 1980 para 66% em 1996. O PNB per capita, hoje de cerca de 260 dla-res, relata o Banco Mundial, est abaixo do nvel da poca da independncia, h quarenta anos, e abaixo do nvel de 370 dlares atingido em 1985.

    Slums,cit.,p.48.CaroleRakodi,Globalforces,urbanchange,andurbanmanagementinAfrica,emRakodi,Urban challenge,cit.,p.50,60-1.Piermay,Kinshasa,cit.,p.235-6;Megacities,Time,11/1/1993,p.26.0MichaelMattingly,Theroleofthegovernmentofurbanareasinthecreationofurbanpover-ty,emSueJoneseNiciNelson(orgs.),Urban poverty in Africa(Londres,1999),p.21.AdilAhmadeAtaEl-Batthani,PovertyinKhartoum,Environment and Urbanization,v.7,n.2,outubrode1995,p.205.AlainDubresson,Abidjan,emRakodi,Urban challenge,cit.,p.261-3.BancoMundial,Nigeria: country brief,setembrode2003.

  • 206 MikeDavis

    Na Amrica Latina, os PAEs (muitas vezes implementados por ditaduras mi-litares) desestabilizaram a economia rural e arrasaram o emprego e a habitao urbanos. Em 1970, as teorias foquistas guevaristas de rebelio rural ainda se adequavam a uma realidade continental em que a pobreza do campo (75 milhes de pobres) ofuscava a das cidades (44 milhes). No entanto, no final da dcada de 1980, a imensa maioria dos pobres (115 milhes em 1990) morava em colonias e villas miseria urbanas, em vez de fazendas ou aldeias (80 milhes).

    Enquanto isso, a desigualdade urbana explodia. Em Santiago, a ditadura de Pinochet arrasou favelas e expulsou antigos ocupantes radicais, obrigando as fa-mlias pobres a se tornarem allegadas, amontoando-se s vezes duas ou trs famlias na mesma moradia alugada. Em Buenos Aires, a participao do decil mais rico na renda total, que era de dez vezes a do decil mais pobre em 1984, aumentou para 23 vezes em 1989. Em Lima, onde o valor do salrio mnimo caiu 83% durante a recesso do FMI, o percentual de famlias abaixo da linha de pobreza aumentou de 17% em 1985 para 44% em 1990. No Rio de Janeiro, a desigualdade, medida pelos coeficientes Gini clssicos, disparou de 0,58 em 1981 para 0,67 em 1989. Na verdade, em toda a Amrica Latina a dcada de 1980 aprofundou os vales e elevou os picos da topografia social mais contrastada do mundo. (Segundo um relatrio de 2003 do Banco Mundial, os coeficientes Gini so 10 pontos mais altos na Amrica Latina que na sia; 17,5 pontos mais altos que na OCDE; e 20,4 pontos mais altos que na Europa oriental.)

    Em todo o Terceiro Mundo, os choques econmicos dos anos 1980 obrigaram os indivduos a reagrupar-se em volta dos recursos somados da famlia e, princi-palmente, da capacidade de sobrevivncia e da engenhosidade desesperada das mulheres. Na China e nas cidades em industrializao do sudeste da sia, mi-lhes de moas escravizaram-se s linhas de montagem e misria fabril. Na frica e na maior parte da Amrica Latina (com exceo das cidades da fronteira norte do Mxico), essa opo no existiu. Em vez disso, a desindustrializao e a dizimao dos empregos masculinos no setor formal obrigaram as mulheres a improvisar novos meios de vida como montadoras pagas por pea, vendedo-ras de bebidas, camels, faxineiras, lavadeiras, catadoras, babs e prostitutas. Na

    ONU,World urbanization prospects,p.12.LuisAinstein,BuenosAires:acaseofdeepeningsocialpolarization,emGilbert,Mega-city in Latin America,cit.,p.139.GustavoRiofrio,Lima:mega-cityandmega-problem,emGilbert,Mega-city in Latin America,cit.,p.159;eGilbert,Latin American city,cit.,p.73.HamiltonTolosa,RiodeJaneiro:urbanexpansionandstructuralchange,emGilbert,Mega-city in Latin America,cit.,p.211.BancoMundial,Inequality in Latin America and the Caribbean(NovaYork,2003).

  • Planetade favelas 207

    Amrica Latina, onde a participao das mulheres urbanas na fora de trabalho sempre foi menor que em outros continentes, o surto de mulheres nas atividades informais tercirias durante a dcada de 1980 foi especialmente dramtico. Em relao frica, onde o smbolo do setor informal so as mulheres que abrem bi-roscas e vendem produtos agrcolas nas ruas, Christian Rogerson nos recorda que a maioria dessas trabalhadoras informais no autnoma nem economicamente independente, mas trabalha para outras pessoas0. (Essas redes onipresentes e cruis de microexplorao, com pobres explorando os muito pobres, costumam ficar ocultas nas descries do setor informal.)

    A pobreza urbana tambm foi maciamente feminilizada nos pases do antigo Comecon depois da liberao capitalista em 1989. No incio da dcada de 1990, a extrema pobreza dos antigos pases de transio (como a ONU os chama) dis-parou de 14 milhes de pessoas para 168 milhes: uma pauperizao em massa quase sem precedentes na histria. Se, no balano global, essa catstrofe econ-mica foi em parte compensada pelo mui louvado sucesso da China na elevao da renda de suas cidades litorneas, o milagre do mercado chins foi comprado com um aumento enorme da desigualdade salarial entre os trabalhadores urba-nos [...] no perodo entre 1988 e 1999. As mulheres e as minorias ficaram parti-cularmente em desvantagem.

    claro que, em teoria, a dcada de 1990 deveria ter corrigido os erros dos anos 1980 e permitido s cidades do Terceiro Mundo recuperar o terreno perdido e fe-char os abismos de desigualdade criados pelos PAEs. A dor do ajuste seria seguida pelo analgsico da globalizao. Com efeito, a dcada de 1990, como Slums observa ironicamente, foi a primeira em que o desenvolvimento urbano global aconteceu segundo parmetros quase utpicos de liberdade de mercado neoclssica.

    Durante a dcada de 1990, o comrcio continuou a se expandir num ritmo quase

    sem precedentes; reas antes vedadas se abriram e as despesas militares diminuram.

    [...] Todos os insumos bsicos da produo ficaram mais baratos com a queda rpida

    dos juros, juntamente com o preo das commodities bsicas. Os fluxos de capital foram

    OrlandinadeOliveiraeBryanRoberts,Themanyrolesoftheinformalsectorindevelop-ment,emCathyRakowski(org.),Contrapunto: the informal sector debate in Latin America(Albany,1994),p.64-8.0 Christian Rogerson, Globalization or informalization? African urban economics in the1990s,emRakodi,Urban challenge,cit.,p.348.Slums,cit.,p.2.AlbertParket al.,ThegrowthofwageinequalityinurbanChina,1988to1999,documentoestimativodoBancoMundial, fevereirode2003,p.27(citao);eJohnKnighteLindaSong,Increasingurbanwage inequality inChina,Economics of Transition, v. II,n.4,2003,p.616(discriminao).

  • 20 MikeDavis

    cada vez menos atrapalhados por controles nacionais e puderam encaminhar-se veloz-

    mente para as reas mais produtivas. Sob condies econmicas quase perfeitas, de

    acordo com a doutrina econmica neoliberal dominante, seria possvel imaginar que a

    dcada teria prosperidade e justia social inigualveis.

    No caso, contudo, a pobreza urbana continuou seu acmulo incessante, e a lacuna entre pases pobres e ricos aumentou, como acontecera nos vinte anos anteriores, e, na maioria dos pases, a desigualdade de renda cresceu ou, no m-ximo, estabilizou-se. A desigualdade global, medida pelos economistas do Banco Mundial, atingiu um coeficiente Gini inacreditvel de 0,67 no final do sculo. Matematicamente, era uma situao equivalente quela em que os dois teros mais pobres do mundo recebessem renda zero, e o tero mais rico, tudo.

    UM EXCEDENTE DE HUMANIDADE?

    Limpamos nosso caminho perto da cidade, mantendo-nos nele por suas mil brechas de sobrevivncia [...]

    Patrick Chamoiseau, Texaco (1997)

    O tectonismo violento da globalizao neoliberal desde 1978 anlogo aos pro-cessos catastrficos que, a princpio, deram forma ao Terceiro Mundo durante a poca do imperialismo vitoriano tardio (1870-1900). Neste ltimo caso, a incorpo-rao forada ao mercado mundial dos grandes campesinatos de subsistncia da sia e da frica provocou a morte de milhes pela fome e o desenraizamento de ou-tras dezenas de milhes de suas posses tradicionais. O resultado final, tambm na Amrica Latina, foi uma semiproletarizao rural: a criao de uma classe enorme de semicamponeses e trabalhadores agrcolas miserveis sem a segurana existen-cial da subsistncia. (Em conseqncia, o sculo XX no se tornou uma poca de revolues urbanas, como imaginava o marxismo clssico, mas de levantes rurais e guerras camponesas de libertao nacional inditos.) Parece que o recente ajuste es-trutural provocou uma reconfigurao igualmente fundamental do futuro humano. Como concluem os autores de Slums: Em vez de serem um foco de crescimento e prosperidade, as cidades tornaram-se o depsito de lixo de um excedente de popula-o que trabalha nos setores informais de comrcio e servios, sem especializao,

    Slums,cit.,p.34.ShaohuaCheneMartinRavallion,How did the worlds poorest fare in the 1990s?,documentodoBancoMundial,2000.VermeuLate Victorian holocausts: El Nio famines and the making of the Third World(Londres,2001),principalmenteaspginas206-9.

  • Planetade favelas 20

    desprotegido e com baixos salrios. O crescimento d[este] setor informal, decla-ram sem rodeios, [...] resultado direto da liberalizao.

    Na verdade, a classe trabalhadora informal global (que se sobrepe mas no idntica populao favelada) tem quase um bilho de pessoas, constituindo a classe social de crescimento mais rpido e mais sem precedentes da Terra. Desde que o antroplogo Keith Hart, que trabalhava em Accra, criou o conceito de setor informal em 1973, uma imensa literatura (que, em sua maior parte, no distin-gue microacumulao de sub-subsistncia) enfrentou os formidveis problemas tericos e empricos envolvidos no estudo das estratgias de sobrevivncia dos pobres urbanos. H, no entanto, o consenso bsico de que a crise da dcada de 1980 inverteu as posies estruturais relativas dos setores formal e informal, pro-movendo a busca informal da sobrevivncia como novo meio de vida principal da maioria das cidades do Terceiro Mundo.

    Alejandro Portes e Kelly Hoffman avaliaram recentemente o impacto geral dos PAEs e da liberalizao sobre a estrutura de classes urbana e latino-americana a partir da dcada de 1970. De modo coerente com as concluses da ONU, verifi-caram que, desde ento, tanto os funcionrios pblicos quanto o proletariado for-mal se reduziram em todos os pases da regio. Em contraste, o setor informal da economia, junto com a desigualdade social geral, expandiu-se de forma dramtica. Diversamente de alguns pesquisadores, eles fazem uma distino fundamental entre a pequena burguesia informal (a soma dos donos de microempresas in-formais, que empregam menos de cinco trabalhadores, mais os profissionais e tcnicos que trabalham por conta prpria) e o proletariado informal (a soma dos trabalhadores autnomos, menos profissionais liberais e tcnicos, com emprega-dos domsticos e trabalhadores pagos e no-pagos de microempresas informais). Demonstram que esse primeiro estrato, os microempresrios to louvados nas escolas de administrao norte-americanas, costumam ser profissionais desalo-jados do setor pblico e trabalhadores especializados demitidos. Desde a dcada de 1980, cresceram de 5% para 10% da populao urbana economicamente ativa, tendncia que reflete o empreendedorismo forado imposto aos ex-assalariados pelo declnio do emprego no setor formal.

    No geral, de acordo com Slums, os trabalhadores informais so cerca de dois quintos da populao economicamente ativa do mundo em desenvolvimento.

    Slums,cit.,p.40,46.KeithHart, Informal incomeopportunitiesandurbanemployment inGhana,Journal of Modern African Studies,v.II,1973,p.61-89.AlejandroPorteseKellyHoffman,LatinAmericanclassstructures:theircompositionandchangeduringtheneoliberalera,Latin American Research Review,v.38,n.1,2003,p.55.Slums,cit.,p.60.

  • 210 MikeDavis

    Segundo os pesquisadores do Banco Interamericano de Desenvolvimento, a eco-nomia informal emprega atualmente 57% da fora de trabalho latino-americana e oferece quatro de cada cinco novos empregos0. Outras fontes afirmam que mais da metade dos indonsios urbanos e 65% dos moradores de Daca subsistem no setor informal. Do mesmo modo, Slums cita pesquisas que comprovam que a atividade econmica informal responde por 33% a 40% do emprego urbano na sia, 60% a 75% na Amrica Central e 60% na frica. Com efeito, nas cidades subsaarianas a criao de empregos formais praticamente deixou de existir. Um estudo da OIT sobre o mercado de trabalho urbano do Zimbbue durante o ajuste estrutural estagflacionrio do incio dos anos 1990 descobriu que o setor formal s criava 10 mil empregos por ano, em contrapartida a uma fora de trabalho ur-bana que crescia em mais de 300 mil indivduos por ano. Slums estima, ainda, que um total de 90% das novas vagas urbanas da frica na prxima dcada viro, de algum modo, do setor informal.

    Os gurus do moto perptuo do capitalismo, como o incontrolvel Hernando de Soto, podem ver essa populao enorme de trabalhadores marginalizados, funcionrios pblicos demitidos e ex-camponeses como, na verdade, uma col-mia frentica de ambiciosos empreendedores desejosos de direitos formais de propriedade e espao competitivo no-regulamentado, mas faz bem mais senti-do tomar a maioria dos trabalhadores informais como desempregados ativos, que no tm escolha seno subsistir de algum jeito para no passar fome. pouco provvel que os estimados 100 milhes de crianas de rua que nos descul-pe o seor De Soto comecem a emitir aes e negociar obrigaes futuras sobre a venda de chicletes. E a maior parte dos 70 milhes de trabalhadores flutuantes

    0CitadoemEconomist,21/3/1998,p.37.DennisRondinellieJohnKasarda,JobcreationneedsinThirdWorldcities,emKasardaeAllanParnell(orgs.),Third World cities: problems, policies and prospects(NewburyPark,Califrnia,1993),p.106-7.Slums,cit.,p.103.GuyMhone,TheimpactofstructuraladjustmentontheurbaninformalsectorinZimbabwe,Issues in development, documentoparadiscusson.2,Organizao InternacionaldoTrabalho(Genebra,semdata),p.19.Slums,cit.,p.104.OrlandinadeOliveiraeBryanRobertsenfatizamcorretamentequeosestratosinferioresdaforade trabalhourbanadeveriamser identificadosnospelo ttulodesuasocupaesoupeloempregoformalouinformal,maspelaestratgiadafamliaparaobterrenda.Amassadepobresurbanossconsegueexistirmedianteasomadosrendimentos,adivisodamoradia,daalimentaoedeoutrosrecursoscomfamiliaresouconterrneos(UrbandevelopmentandsocialinequalityinLatinAmerica,emGugler,Cities in the developing world,cit.,p.290).Estatsticasobrecrianasderua:Natural History,julhode1997,p.4.

  • Planetade favelas 211

    da China, que vivem furtivamente na periferia urbana, no vai acabar se capi-talizando como pequenos empreiteiros nem se integrar classe trabalhadora urbana formal. E a classe trabalhadora informal, submetida por toda parte micro e macroexplorao, est, quase universalmente, privada da proteo das leis e dos padres trabalhistas.

    Alm disso, como defende Alain Dubresson no caso de Abidjan, o dinamis-mo dos ofcios braais e do pequeno comrcio depende em boa medida da deman-da do setor assalariado. Ele lana um alerta contra a iluso cultivada pela OIT e pelo Banco Mundial de que o setor informal pode substituir com eficincia o setor formal e promover um processo de acumulao suficiente para uma cidade com mais de 2,5 milhes de habitantes. Seu aviso repetido por Christian Rogerson, que, distinguindo (como Portes e Hoffman) microempresas de sobrevivncia e de crescimento, escreve sobre as primeiras: Em termos gerais, a renda gerada por essas empresas, cuja maioria tende a ser administrada por mulheres, costuma ficar abaixo at do padro de vida mnimo e envolve pouco investimento de capital, praticamente nenhuma habilidade especializada e oportunidades apenas restritas de crescer e se transformar num negcio vivel. Com at os salrios urbanos do setor formal da frica baixos a ponto de os economistas no conseguirem imagi-nar como os trabalhadores sobrevivem (o chamado enigma salarial), o setor ter-cirio informal tornou-se uma arena de extrema competio darwinista entre os pobres. Rogerson cita os exemplos do Zimbbue e da frica do Sul, onde os nichos informais controlados por mulheres spazas (lojinhas informais que vendem de tudo) e biroscas esto hoje apinhados e sofrem de queda de lucratividade.

    Em outras palavras, a tendncia macroeconmica real do trabalho informal a reproduo da pobreza absoluta. Mas, se o proletariado informal no a menor-zinha das pequenas burguesias, tambm no um exrcito de reserva de mo-de-obra nem um lumpemproletariado, em nenhum dos sentidos obsoletos do sculo XIX. Parte dele, verdade, uma fora de trabalho invisvel da economia formal, e numerosos estudos j mostraram como as redes de terceirizao da Wal-Mart e de outras megaempresas penetram profundamente na misria das colonias e chawls. Mas no fim das contas a maior parte dos favelados urbanos, radical e verdadeiramente, no encontra lar na economia internacional contempornea.

    claro que as favelas se originam no campo global onde, como nos recor-da Deborah Bryceson, a competio desigual com a grande escala da agroinds-tria vem arrebentando as costuras da sociedade rural tradicional. Conforme as reas rurais perdem sua capacidade de armazenamento, as favelas tomam

    Dubresson,Abidjan,cit.,p.263.Rogerson,Globalizationorinformalization?,cit.,p.347-51.Bryceson,Disappearingpeasantries,cit.,p.307-8.

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    seu lugar, e a involuo urbana substitui a involuo rural como ralo da mo-de-obra excedente, que s consegue acompanhar a subsistncia com faanhas cada vez mais hericas de auto-explorao e uma subdiviso competitiva ainda maior dos nichos de sobrevivncia j densamente povoados0. A Modernizao, o Desenvolvimento e, agora, o Mercado irrestrito j tiveram seus bons dias. A fora de trabalho de um bilho de pessoas foi expelida do sistema mundial, e quem consegue imaginar algum cenrio plausvel, sob os auspcios neoliberais, que a reintegre como trabalhadores produtivos ou consumidores em massa?

    MARX E O ESPRITO SANTO

    [Diz o Senhor:] Vir o tempo em que o pobre dir que nada tem para comer e o trabalho desaparecer [...] Isso far o pobre partir para esses lugares e invadir para ter comida. Isso far o rico sair com sua arma e declarar guerra ao homem que trabalha

    [...] haver sangue nas ruas como uma chuva que se despeja dos cus.Profecia do Avivamento da rua Azusa, de 1906

    Portanto, a recente triagem capitalista da humanidade j aconteceu. Alm dis-so, o crescimento global de um vasto proletariado informal uma evoluo estru-tural totalmente original, no prevista pelo marxismo clssico nem pelos gurus da modernizao. Na verdade a favela desafia a teoria social a perceber a novidade de um verdadeiro resduo global sem o poder econmico estratgico da mo-de-obra socializada, mas maciamente concentrado num mundo de barracos em torno dos enclaves fortificados dos ricos urbanos.

    claro que a tendncia involuo urbana j existia durante o sculo XIX. As revolues industriais europias foram incapazes de absorver toda a oferta de mo-de-obra rural desalojada, sobretudo depois que a agricultura continental so-freu a competio devastadora das pradarias norte-americanas a partir da dcada de 1870. Mas a migrao em massa para as sociedades coloniais das Amricas e da Oceania, assim como para a Sibria, constituiu uma vlvula de segurana di-nmica que impediu tanto o surgimento de mega-Dublins quanto a disseminao do tipo de anarquismo da classe baixa que se enraizara nas partes mais empobre-cidas do sul da Europa. Hoje, pelo contrrio, o excesso de mo-de-obra enfrenta

    0NadefiniooriginaleinimitveldeCliffordGeertzs,involuoaultrapassagemdeumaformaestabelecida,demodoatorn-largidamedianteasuperelaboraointernadosdetalhes.Agricultural involution: social development and economic change in two Indonesian towns(Chicago,1963),p.82.Deformamaisprosaica,ainvoluoagrcolaouurbanapodeserdescritacomooaumentoincessantedaauto-exploraodamo-de-obra(mantendofixososoutrosfatores),quecontinua,apesardareduodorendimento,enquantoproduziralgumretornoouincremento.

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    barreiras sem precedentes uma grande muralha literal da imposio de uma fronteira de alta tecnologia que bloqueiam a migrao em grande escala para os pases ricos. Do mesmo modo, os controvertidos programas de reassentamen-to populacional em regies de fronteira como Amaznia, Tibete, Kalimantan e Irian Jaya produzem devastao ambiental e conflitos tnicos sem reduzir de forma substancial a pobreza urbana no Brasil, na China e na Indonsia.

    Assim, s resta a favela como soluo totalmente franqueada ao problema de armazenar o excedente de humanidade do sculo XXI. Mas no so as grandes favelas como j imaginara a burguesia vitoriana apavorada vulces esperando para entrar em erupo? Ou ser que a impiedosa competio darwinista, em que um nmero cada vez maior de pobres compete pelos mesmos restos informais, ainda garante a violncia comunitria que consome a si mesma como forma mais elevada de involuo urbana? At que ponto o proletariado informal possui o ta-lism marxista mais poderoso, a atuao histrica? Pode a mo-de-obra desin-corporada ser reincorporada a um projeto emancipador global? Ou a sociologia do protesto na megacidade empobrecida uma regresso multido urbana pr-industrial, que explodia de quando em quando nas crises de consumo mas, fora isso, era fcil de manobrar com o clientelismo, o espetculo populista e os apelos unidade tnica? Ou h algum novo tema histrico inesperado, moda de Hardt e Negri, arrastando-se rumo supercidade?

    Na verdade, a literatura atual sobre a pobreza e o protesto urbano oferece poucas respostas a perguntas de tamanho alcance. Alguns pesquisadores, por exemplo, questionariam se os favelados etnicamente diferentes ou os trabalhado-res informais economicamente heterogneos chegam a constituir uma verdadeira classe em si mesma, quanto mais uma classe em si mesma potencialmente ativista. Com certeza, o proletariado informal traz ligaes radicais, no sentido marxista de ter pouco ou nenhum interesse oculto na preservao do modo de produo existente. Mas os migrantes rurais desenraizados e os trabalhadores in-formais, tendo sido em grande parte desapossados da fora de trabalho fungvel ou reduzidos ao servio domstico na casa dos ricos, tm pouco acesso cultura do trabalho coletivo ou da luta de classes em grande escala. Seu estgio social, necessariamente, tem de ser o da favela ou da feira, no o da fbrica ou da linha de montagem internacional.

    As lutas dos trabalhadores informais como enfatiza John Walton numa resenha recente da pesquisa sobre movimentos sociais em cidades pobres ten-deram, acima de tudo, a ser episdicas e descontnuas. Tambm costumam concentrar-se em questes imediatas de consumo: invases de terra em busca de moradia acessvel e revoltas contra o aumento dos preos dos alimentos ou dos servios pblicos. No passado, pelo menos, os problemas urbanos das so-ciedades em desenvolvimento foram mais comumente mediados pelas relaes

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    clientelistas do que pelo ativismo popular. Desde a crise da dvida externa na dcada de 1980, os lderes neopopulistas da Amrica Latina obtiveram marcante sucesso na explorao do desejo desesperado dos pobres urbanos de ter estru-turas de vida cotidiana mais estveis e previsveis. Embora Walton no afirme de modo explcito, o setor informal urbano foi ideologicamente promscuo no apoio a salvadores populistas: uniu-se a Fujimori no Peru, mas na Venezuela abraou Chvez. Na frica e no sul da sia, por outro lado, o clientelismo urba-no iguala-se, com demasiada freqncia, ao domnio de fanticos tnico-religiosos e ao pesadelo de suas ambies de limpeza tnica. Os exemplos mais famosos so as milcias antimuulmanas do Congresso do Povo Oodua, em Lagos, e o movimento semifascista Shiv Sena, em Bombaim.

    Essas sociologias de protesto do sculo XVIII persistiro at meados do XXI? provvel que o passado seja um mau guia para o futuro. A histria no uni-formitarista. O novo mundo urbano vem evoluindo com rapidez extraordinria e muitas vezes em direes imprevistas. Por toda parte a acumulao contnua de pobreza solapa a segurana da vida e impe desafios ainda mais extraordinrios engenhosidade econmica dos pobres. Talvez haja um ponto de virada no qual a poluio, a aglomerao, a ganncia e a violncia da vida urbana cotidiana venam afinal a civilidade especfica e as redes de sobrevivncia da favela. Com certeza, no antigo mundo rural havia patamares, muitas vezes calibrados pela fome, que leva-vam diretamente erupo social. Mas ningum sabe ainda em que temperatura social as novas cidades da pobreza entram em combusto espontnea.

    Na verdade, pelo menos por enquanto, Marx cedeu o palco histrico a Maom e ao Esprito Santo. Se Deus morreu nas cidades da Revoluo Industrial, surgiu de novo nas cidades ps-industriais do mundo em desenvolvimento. O contras-te entre as culturas da pobreza urbana nas duas pocas extraordinrio. Como demonstrou Hugh McLeod em seu estudo magistral sobre a religio da classe operria vitoriana, Marx e Engels acertaram bastante em sua crena de que a urba-nizao estava secularizando a classe trabalhadora. Embora Glasgow e Nova York fossem, em parte, excees, a linha de interpretao que associa o afastamento da igreja da classe trabalhadora com o aumento da conscincia de classe , em

    JohnWalton,Urbanconflictandsocialmovements inpoorcountries: theoryandeviden-ceof collectiveaction, trabalhoapresentadonaCities inTransitionConference,HumboldtUniversity,Berlim,julhode1987.KurtWeyland,NeopopulismandneoliberalisminLatinAmerica:howmuchaffinity?,Third World Quarterly,v.24,n.6,2003,p.1095-115.Paraumadescriofascinante,masassustadora,daascensodoShivSenaemBombaimcustadas antigaspolticas comunistas e sindicalistas, verThomasHansen,Wages of violence: naming and identity in postcolonial Bombay (Princeton, 2001). Ver tambmVeenaDas (org.),Mirrors of violence: communities, riots and survivors in South Asia(NovaYork,1990).

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    certo sentido, incontestvel. Conquanto as pequenas igrejas e as seitas dissiden-tes prosperassem nas favelas, a principal corrente era a descrena ativa ou passiva. J na dcada de 1880, Berlim escandalizava os estrangeiros como a cidade me-nos religiosa do mundo, e, em Londres, o comparecimento mdio dos adultos s igrejas do East End proletrio e das Docklands, em 1902, era de meros 12% (e, ainda assim, na maioria de catlicos). Em Barcelona, claro, a classe operria anarquista saqueou as igrejas durante a Semana Trgica, enquanto nas favelas de So Petersburgo, Buenos Aires e at em Tquio os trabalhadores militantes abra-aram avidamente as novas fs de Darwin, Kropotkin e Marx.

    Hoje, pelo contrrio, o islamismo populista e o cristianismo pentecostal (e, em Bombaim, o culto de Shivaji) ocupam um espao social anlogo quele do socialismo e do anarquismo no incio do sculo XX. No Marrocos, por exem-plo, onde todo ano um contingente de meio milho de emigrantes rurais ab-sorvido pelas cidades apinhadas e onde metade da populao tem menos de 25 anos, movimentos islamistas como o Justia e Bem-Estar, fundado pelo xeque Abdessalam Yassin, tornaram-se o verdadeiro governo das favelas, organizando escolas noturnas, fornecendo apoio legal s vtimas de agresses do Estado, com-prando remdios para os doentes, subsidiando peregrinaes e pagando funerais. Como admitiu recentemente o primeiro-ministro Abderrahman Yussufi lder socialista que j foi exilado pela monarquia a Ignacio Ramonet: Ns [a esquer-da] nos aburguesamos. Isolamo-nos do povo. Precisamos reconquistar os bairros populares. Os islamistas seduziram o nosso eleitorado natural. Prometem-lhes o paraso na Terra. Por outro lado, um lder islamista disse a Ramonet: Diante da negligncia do Estado e em face da brutalidade da vida cotidiana, as pessoas descobrem, graas a ns, a solidariedade, a auto-ajuda, a fraternidade. Entendem que islamismo humanismo.

    A contrapartida do islamismo populista nas favelas da Amrica Latina e em boa parte da frica subsaariana o pentecostalismo. claro que hoje o cristia-nismo, em sua maioria, uma religio no-ocidental (dois teros de seus segui-dores vivem fora da Europa e da Amrica do Norte), e o pentecostalismo seu missionrio mais dinmico nas cidades da pobreza. Na verdade, a especificidade do pentecostalismo tal que a primeira grande religio mundial a ter crescido quase inteiramente no solo da favela urbana moderna. Com razes no antigo

    HughMcLeod,Piety and poverty: working-class religion in Berlin, London and New York, 1870-1914(NovaYork,1996),p.XXV,6,32.IgnacioRamonet,LeMarocindcis,Le Monde Diplomatique,julhode2000,p.12-3.Outroex-esquerdistadisseaRamonet:Quase65%dapopulaoviveabaixodalinhadapobreza.Aspessoasdasbidonvilles estointeiramenteisoladasdaselites.Vemaselitesdamaneiracomocostumavamverosfranceses.

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    metodismo exttico e na espiritualidade afro-americana, o pentecostalismo des-pertou quando o Esprito Santo concedeu o dom das lnguas aos participantes de uma maratona inter-racial de orao num bairro pobre de Los Angeles (a rua Azusa), em 1906. Unidos em torno do batismo espiritual, da cura milagrosa, de pastores carismticos e de uma crena pr-milenar numa iminente guerra mun-dial entre capital e trabalho, o pentecostalismo norte-americano primitivo, como observaram repetidas vezes os historiadores religiosos, nasceu como democracia proftica, cujos pblicos rural e urbano sobrepunham-se, respectivamente, aos do populismo e do IWW. Na verdade, como os agitadores do IWW, seus primei-ros missionrios na Amrica Latina e na frica viviam muitas vezes em extrema pobreza, com pouco ou nenhum dinheiro, raramente sabendo onde passariam a noite ou como conseguiriam a refeio seguinte. Tambm no deixaram nada a dever ao IWW em suas denncias veementes das injustias do capitalismo indus-trial e sua destruio inevitvel.

    Sintomaticamente, a primeira congregao brasileira, num bairro operrio anarquista de So Paulo, foi fundada por um arteso imigrante italiano que tro-cara Malatesta pelo Esprito Santo em Chicago. Na frica do Sul e na Rodsia, o pentecostalismo criou suas primeiras cabeas-de-ponte nos complexos mineiros e nos bairros pobres, onde, segundo Jean Comaroff, parecia harmonizar-se com as noes autctones de foras espirituais pragmticas e compensar a desperso-nalizao e a impotncia da vivncia da mo-de-obra urbana. Concedendo um papel maior s mulheres do que as outras Igrejas crists e dando imenso apoio abstinncia e frugalidade, o pentecostalismo como descobriu R. Andrew Chesnut nas baixadas de Belm do Par sempre exerceu atrao especial sobre o estrato mais empobrecido das classes empobrecidas: as esposas abandonadas, as vivas e as mes solteiras00. Desde 1970, e principalmente graas ao seu

    Emsuacontrovertidainterpretaosociolgicadopentecostalismo,RobertMapesAndersonafirmouque a inteno inconsciente [dopentecostalismo], comoados outrosmovimentosmilenaristas,eranaverdaderevolucionria(Vision of the disinherited: the making of American pentecostalism[Oxford,1979],p.222).Anderson,Vision of the disinherited,cit.,p.77.R.AndrewChesnut,Born again in Brazil: the pentecostal boom and the pathogens of poverty(NewBrunswick,1997),p.29.SobreasligaeshistricasdopentecostalismocomoanarquismonoBrasil,verPaulFreston,PentecostalisminLatinAmerica:characteristicsandcontroversies,Social Compass,v.45,n.3,1998,p.342.DavidMaxwell, Historicizingchristian independency: theSouthernAfricapentecostalmovement,c.1908-60,Journal of African History,n.40,1990,p.249;eJeanComaroff,Body of power, spirit of resistance(Chicago,1985),p.186.00Chesnut,Born again,cit.,p.61.Naverdade,ChesnutdescobriuqueoEspritoSantonosmoviaaslnguascomomelhoravaooramentofamiliar.Poreliminardespesasassociadas

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    encanto para as mulheres da favela e sua fama de no escolher cor, cresceu e tornou-se, comprovadamente, o maior movimento auto-organizado dos pobres urbanos do planeta0.

    Embora as afirmaes recentes sobre a existncia de mais de 533 milhes de pentecostais/carismticos no mundo em 2002 sejam provavelmente exageradas, no nada difcil que alcancem metade desse nmero. Aceita-se em geral que 10% da Amrica Latina pentecostal (cerca de 40 milhes de pessoas) e que o movimento foi a reao cultural isolada mais importante urbanizao explosiva e traumtica0. claro que, quando o pentecostalismo se globalizou, diferenciou-se em correntes e sociologias distintas. Mas embora na Libria, em Moambique e na Guatemala as igrejas com patrocnio norte-americano tenham sido vetores da ditadura e da represso e algumas congregaes dos Estados Unidos tenham hoje se enobrecido como a principal linha de fundamentalismo da classe mdia suburbana, a onda missionria do pentecostalismo no Terceiro Mundo continua mais prxima do esprito milenarista original da rua Azusa0. Acima de tudo, como descobriu Chesnut no Brasil, o pentecostalismo [...] continua a ser uma religio da periferia informal (e em Belm, especificamente, dos mais pobres dentre os pobres). No Peru, onde o pentecostalismo vem crescendo de forma quase exponencial nas vastas barriadas de Lima, Jefrey Gamarra defende que o cres-cimento das seitas e da economia informal so conseqncia e resposta um do outro0. Paul Freston acrescenta que a primeira religio de massa autnoma da

    aocomplexodeprestgiomasculino,osassembleianosconseguiamsubirdasfileiras inferioremedianadapobrezaparaosseusescalesmaisaltos,ealgunsquadrangularesmigraramdapobreza[...]paraasfaixasinferioresdaclassemdia(ibidem,p.18).0 Em toda ahistriahumana,nenhumoutromovimentohumano voluntriono-polticooumilitarista cresceu todepressaquantoomovimentopentecostal carismticonosltimosvinteanos(PeterWagner,prefcioparaVinsonSynan,The holiness-pentecostal tradition[GrandRapids,1997],p.XI).0AestimativamaiselevadadeDavidBarreteToddJohnson,Annualstatisticaltableonglo-balmission:2001,International Bulletin of Missionary Research,v.25,n.1,janeirode2001,p.25.Synandizquehavia217milhesdepentecostaisem1997(Holiness,cit.,p.ix).SobreaAmricaLatina,conferirFreston,Pentecostalism,cit.,p.337;Anderson,Vision of the disinherited,cit.;eDavidMartin,EvangelicalandcharismaticchristianityinLatinAmerica,emKarlaPoewe(org.)Charismatic christianity as a global culture(Colmbia,1994),p.74-5.0VerobrilhanteChristianity and politics in Does Liberia(Cambridge,1993),dePaulGifford.E tambm Peter Walshe, Prophetic christianity and the liberation movement in South Africa(Pietermaritzburg,1995),principalmentep.110-1.0JefreyGamarra,Conflict,post-conflictandreligion:Andeanresponsestonewreligiousmo-vements,Journal of Southern African Studies,v.26,n.2,junhode2000,p.272.AndresTapiacitaotelogoperuanoSamuelEscobar,quevoSenderoLuminosoeospentecostaiscomodoisladosdamesmamoeda:ambosbuscavamumforterompimentocomasinjustias,sosmeios

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    Amrica Latina [...] Os lderes podem no ser democrticos, mas vm da mesma classe social0.

    Ao contrrio do islamismo populista, que enfatiza a continuidade da civiliza-o e a solidariedade da f entre as classes, o pentecostalismo, seguindo a tradio de sua origem afro-americana, mantm uma identidade fundamentalmente exlica. Embora, assim como o islamismo das favelas, o pentecostalismo crie uma relao eficiente com a necessidade de sobrevivncia da classe trabalhadora informal (orga-nizando redes de auto-ajuda para as mulheres pobres, oferecendo a cura espiritual como paramedicina, auxiliando a recuperao de alcolatras e dependentes de drogas, protegendo as crianas das tentaes das ruas e assim por diante), sua premissa bsica a de que o mundo urbano corrupto, injusto e impossvel de reformar. Ainda no se sabe se como defendeu Jean Comaroff em seu livro sobre as Igrejas sionistas africanas (muitas das quais so hoje pentecostais) essa reli-gio dos marginalizados dos bairros pobres da modernidade neocolonial na verdade uma resistncia mais radical do que a participao na poltica sindical formal0. Mas, com a esquerda ainda muito ausente da favela, a escatologia do pentecostalismo rejeita de forma admirvel o destino inumano da cidade do Terceiro Mundo para o qual Slums alerta. Tambm santifica aqueles que, em todos os sentidos estruturais e existenciais, realmente vivem no exlio.

    eramdiferentes.ComodeclniodoSenderoLuminoso,opentecostalismosurgiucomoven-cedornalutapelasalmasdosperuanospobres(Intheashesoftheshiningpath,Pacific News Service,14defevereirode1996).0Freston,Pentecostalism,cit.,p.352.0Comaroff,Body of power,cit.,p.259-61.