a comuna de paris e a noção de estado (locarno, de 5 a 23...

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75 verve A Comuna de Paris e a noção de Estado a comuna de paris e a noção de estado 1 (Locarno, de 5 a 23 de junho de 1871) 2 mikhail bakunin* Esta obra, como todos os escritos, pouco numero- sos, que publiquei até hoje, nasceu dos acontecimen- tos. É continuação natural das Cartas a um francês (se- tembro de 1870), nas quais tive a fácil e triste honra de prever e predizer as horríveis desgraças que hoje ferem a França, e com ela todo o mundo civilizado; desgraças contra as quais não havia nem resta agora mais do que um remédio: a revolução social. Provar essa verdade, de agora em diante incontestá- vel, pelo desenvolvimento histórico da sociedade e pe- los fatos que acontecem diante de nossos olhos na Eu- ropa, de maneira que todos os homens de boa-fé, todos os estudiosos sinceros da verdade, a aceitem, e depois * Anarquista russo, percorreu a Europa, onde conheceu Proudhon. Participou da Revolução de 1848. Em 1868, funda a Aliança da Democracia Socialista e em 1870, ingressa na Primeira Internacional, de onde os anarquistas foram expulsos, em 1872, como resultado do confronto entre Bakunin e Marx. No mesmo ano funda a Federação do Jura. Morre na Suíça, aos 62 anos, em 1876. verve, 10: 75-100, 2006

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A Comuna de Paris e a noção de Estado

a comuna de paris e a noção de estado1

(Locarno, de 5 a 23 de junho de 1871)2

mikhail bakunin*

Esta obra, como todos os escritos, pouco numero-sos, que publiquei até hoje, nasceu dos acontecimen-tos. É continuação natural das Cartas a um francês (se-tembro de 1870), nas quais tive a fácil e triste honra deprever e predizer as horríveis desgraças que hoje ferema França, e com ela todo o mundo civilizado; desgraçascontra as quais não havia nem resta agora mais do queum remédio: a revolução social.

Provar essa verdade, de agora em diante incontestá-vel, pelo desenvolvimento histórico da sociedade e pe-los fatos que acontecem diante de nossos olhos na Eu-ropa, de maneira que todos os homens de boa-fé, todosos estudiosos sinceros da verdade, a aceitem, e depois

* Anarquista russo, percorreu a Europa, onde conheceu Proudhon. Participouda Revolução de 1848. Em 1868, funda a Aliança da Democracia Socialista eem 1870, ingressa na Primeira Internacional, de onde os anarquistas foramexpulsos, em 1872, como resultado do confronto entre Bakunin e Marx. Nomesmo ano funda a Federação do Jura. Morre na Suíça, aos 62 anos, em 1876.

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expor francamente, sem reticências, sem equívocos,tanto os princípios filosóficos quanto os fins práticosque constituem, por assim dizer, a alma ativa, a base ea finalidade do que chamamos a revolução social, tal é oobjeto deste trabalho.

A tarefa que me impus não é fácil, eu sei, e poderiaser acusado de presunção se acrescentasse a este tra-balho a menor pretensão pessoal. Mas não existe talcoisa, posso assegurá-lo ao leitor. Não sou nem um sá-bio nem um filósofo, ou sequer um escritor de ofício.Escrevi muito pouco durante minha vida, e nunca o fiza não ser em caso de necessidade, por assim dizer, esomente nos casos em que uma convicção apaixonadaforçava-me a vencer minha repugnância instintiva con-tra toda exibição de minha pessoa em público.

O que sou e o que me leva agora a publicar este tra-balho? Procuro apaixonadamente a verdade e sou uminimigo não menos encarniçado das ficções prejudici-ais das que o partido da ordem, esse representante ofi-cial, privilegiado e interessado de todas as ignomíniasreligiosas, metafísicas, políticas, jurídicas, econômicase sociais, presentes e passadas, pretende se servir ain-da hoje para embrutecer e escravizar o mundo. Sou umamante fanático da liberdade, considerando que ela é oúnico meio em cujo seio podem se desenvolver e cres-cer a inteligência, a dignidade e a felicidade dos homens;não dessa liberdade formal, outorgada, medida e regu-lamentada pelo Estado, mentira eterna e que na reali-dade não representa nunca nada mais do que o privilé-gio de uns poucos fundado sobre a escravidão de todos;não dessa liberdade individualista, egoísta, mesquinhae fictícia, apregoada pela escola de Rousseau, assimcomo por todas as outras escolas do liberalismo bur-guês, que consideram o chamado direito de todos, re-presentado pelo Estado, como o limite do direito de cada

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um, o que leva necessariamente e sempre à redução dodireito de cada um a zero. Não, eu entendo por liberda-de a única que seja verdadeiramente digna deste nome,a liberdade que consiste no pleno desenvolvimento detodas as potências materiais, intelectuais e morais quese encontram em estado de faculdades latentes em cadaum; a liberdade que não reconhece outras restriçõesque aquelas que nos tragam as leis de nossa próprianatureza; de sorte que, propriamente falando, não temrestrições, já que estas leis não nos são impostas porum legislador de fora, que reside seja do lado, seja porcima de nós; são imanentes a nós, inerentes, constitu-em a base de todo nosso ser, tanto material como inte-lectual e moral; em vez de ver nelas um limite, devemosconsiderá-las como as condições reais e como a razãoefetiva de nossa liberdade.

Refiro-me a essa liberdade de cada um que, longe dese deter como diante de um limite frente à liberdade dooutro, encontra, ao contrário, ali sua confirmação e suaextensão até o infinito; a liberdade ilimitada de cadaum pela liberdade de todos, a liberdade pela solidarie-dade, a liberdade na igualdade; a liberdade triunfantesobre o princípio da força brutal e o princípio de autori-dade, que não foi nunca mais do que a expressão idealdessa força; a liberdade que, depois de ter derrubadotodos os ídolos celestiais e terrenos, fundará e organi-zará um mundo novo, aquele da humanidade solidária,sobre a ruína de todas as Igrejas e de todos os Estados.

Sou um partidário convicto da igualdade econômica

e social, porque sei que, fora dessa igualdade, a liberda-de, a justiça, a dignidade humana, a moralidade e obem-estar dos indivíduos, assim como a prosperidadedas nações, nunca serão mais do que outras tantas men-tiras. Mas, partidário incondicional da liberdade, essacondição primordial da humanidade, penso que a igual-

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dade deve se estabelecer no mundo pela organizaçãoespontânea do trabalho e da propriedade coletiva dasassociações produtoras livremente organizadas e fede-radas nas comunas, e pela federação também espontâ-nea das comunas, mas não pela ação suprema e tutelardo Estado.

Este é o ponto que separa antes de mais nada ossocialistas, ou coletivistas revolucionários, dos comu-nistas autoritários, que defendem a iniciativa absolu-ta do Estado. Seu fim é o mesmo; uns e outros querema criação de uma nova ordem social, fundada apenassobre a organização do trabalho coletivo, inevitavel-mente imposto a cada um e a todos pela força mesmadas coisas, em condições econômicas iguais para to-dos, e sobre a apropriação coletiva dos instrumentosde trabalho.

Pois bem, os comunistas imaginam que poderão che-gar a isso pelo desenvolvimento e pela organização dapotência política das classes operárias, e principalmen-te do proletariado das cidades, com a ajuda do radica-lismo burguês, enquanto que os socialistas revolucio-nários, inimigos de todo laço e de toda aliança equivo-cados, pensam, ao contrário, que não podem chegar aesse fim mais do que pelo desenvolvimento e pela orga-nização da potência não política, mas social, e portantoanti-política, das massas operárias, tanto da cidadecomo do campo, compreendidos nessas massas os ho-mens de boa-vontade das classes superiores que, rom-pendo com todo seu passado, queiram se reunir fran-camente a elas e aceitar integramente seu programa.

São estes dois métodos diferentes. Os comunistasacreditam dever organizar as forças operárias para seapossar da potência política dos Estados; os socialistasrevolucionários se organizam levando em consideração

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a destruição, ou, se o que se quer é uma expressão maiscortês, levando em consideração a liquidação dos Esta-dos. Os comunistas são partidários do princípio e da prá-tica da autoridade; os socialistas revolucionários só con-fiam na liberdade. Partidários uns e outros da ciênciaque deve matar a fé, os primeiros gostariam de impô-la;os outros se esforçarão por propagá-la, a fim de que osgrupos humanos, convencidos, se organizem e se fede-rem espontaneamente, livremente, de baixo para cima:por seu movimento próprio e segundo seus interessesreais, mas nunca segundo um plano traçado de antemãoe imposto às massas ignorantes por algumas inteligênci-as superiores.

Os socialistas revolucionários pensam que há muitomais razão prática e espírito nas aspirações instintivas enas necessidades reais das massas populares do que nainteligência profunda de todos esses doutores e tutoresda humanidade que, com tantas tentativas frustradaspara fazê-la feliz, pretendem somar ainda seus esforços.Os socialistas revolucionários pensam, ao contrário, quea humanidade deixou-se governar durante bastante tem-po, tempo demais, e que a fonte de suas desgraças nãoreside em tal o qual forma de governo, mas no princípio eno fato do governo, qualquer um que seja.

É essa, enfim, a contradição já histórica que existeentre o comunismo cientificamente trabalhado pela es-cola alemã e aceito em parte pelos socialistas america-nos e ingleses, de um lado, e de outro pelo proudhonis-mo amplamente desenvolvido e levado até suas últimasconseqüências, aceito pelo proletariado dos países lati-nos.3

O socialismo revolucionário acaba de tentar uma pri-meira manifestação brilhante e prática na Comuna de

Paris.

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Sou um partidário da Comuna de Paris, que, por tersido esmagada, sufocada em sangue pelos verdugos dareação monárquica e clerical, não por isso deixou de sefazer mais vivaz, mais poderosa na imaginação e no co-ração do proletariado da Europa; sou seu partidário emgrande parte porque foi uma negação audaz, bem pro-nunciada, do Estado.

É um fato histórico imenso que essa negação do Es-tado tenha se manifestado justamente na França, quefoi até agora o país por excelência da centralização polí-tica, e que seja precisamente Paris, a cabeça e o criadorhistórico dessa grande civilização francesa, que tenhatomado essa iniciativa. Paris, que abdica de sua coroa eproclama com entusiasmo sua própria decadência paradar a liberdade e a vida à França, à Europa, ao mundointeiro; Paris, que afirma de novo sua potência históri-ca de iniciativa ao mostrar a todos os povos escravos (equais são as massas populares que não são escravas?)o único caminho de emancipação e de salvação; Paris,que dá um golpe mortal nas tradições políticas do radi-calismo burguês e uma base real ao socialismo revolu-cionário; Paris, que merece de novo as maldições de todagente reacionária da França e da Europa; Paris, que seenvolve em suas ruínas para desmentir solenemente areação triunfante; que salva com seu desastre a honrae o porvir da França e demonstra à humanidade conso-lada que se a vida, a inteligência e a força moral retira-ram-se das classes superiores, conservaram-se enérgi-cas e cheias de porvir no proletariado; Paris, que inau-gura a nova era, aquela da emancipação definitiva ecompleta das massas populares e de sua solidariedadede agora em diante completamente real, através e ape-sar das fronteiras dos Estados; Paris, que mata o patri-otismo e funda sobre suas ruínas a religião da humani-dade; Paris, que se proclama humanitária e atéia e subs-

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titui as ficções divinas pelas grandes realidades da vidasocial e a fé na ciência; as mentiras e as iniqüidades damoral religiosa, política e jurídica pelos princípios daliberdade, da justiça, da igualdade e da fraternidade,estes fundamentos eternos de toda moral humana; Pa-ris heróica, racional e crente, que confirma sua fé enér-gica nos destinos da humanidade por sua queda glorio-sa, por sua morte, e que a transmite muito mais enérgi-ca e viva às gerações vindouras; Paris, inundada nosangue de seus filhos mais generosos, é a humanidadecrucificada pela reação internacional coligada da Euro-pa, sob a inspiração imediata de todas as igrejas cristãse do grande sacerdote da iniqüidade, o Papa; mas a pró-xima revolução internacional e solidária dos povos seráa ressurreição de Paris.

Tal é o verdadeiro sentido e tais as conseqüênciasbenfeitoras e imensas dos dois meses memoráveis daexistência e da queda imortal da Comuna de Paris.

A Comuna de Paris durou pouco tempo demais e foiobstaculizada demais em seu desenvolvimento internopela luta mortal que teve de travar contra a reação deVersalhes, como para que tenha conseguido, não digoaplicar, mas elaborar teoricamente seu programa soci-alista. Além disso — é necessário reconhecê-lo —, amaior parte dos membros da Comuna não era propria-mente socialista, e se como tais se mostraram é porqueforam arrastados invencivelmente pela força irresistíveldas coisas, pela natureza de seu ambiente, pelas ne-cessidades de sua posição, e não por sua convicção ín-tima. Os socialistas, à frente dos quais se coloca natu-ralmente nosso amigo Varlin,4 não formavam na Comu-na mais do que uma minoria ínfima; ao todo não erammais do que quatorze ou quinze membros. O resto eracomposto de jacobinos. Mas, convenhamos, há jacobi-nos e jacobinos. Há os jacobinos advogados e doutriná-

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rios, como o senhor Gambetta,5 cujo republicanismo posi-

tivista,6 presunçoso, despótico e formalista, tendo repudi-ado a antiga fé revolucionária e não tendo conservado dojacobinismo mais do que o culto da unidade e da autori-dade, entregou a França popular aos prussianos e maistarde à reação interna; e há os jacobinos francamente re-volucionários, os heróis, os últimos representantes since-ros da fé democrática de 1793, capazes de sacrificar suaunidade e sua autoridade bem-amadas às necessidadesda revolução, ao invés de subjugar sua consciência dian-te da insolência da reação. Estes jacobinos magnânimos,à frente dos quais se coloca naturalmente Delescluze,7

uma alma grande e um grande caráter, querem o triunfoda revolução antes de tudo; e como não há revolução semmassas populares, e como essas massas têm eminente-mente hoje o instinto socialista e não podem já fazer ou-tra revolução que não seja econômica e social, os jacobi-nos de boa-fé, deixando-se levar cada vez mais pela lógicado movimento revolucionário, terminarão por se conver-terem em socialistas apesar de suas convicções.

Tal foi precisamente a situação dos jacobinos que for-maram parte da Comuna de Paris. Delescluze e muitosoutros com ele assinaram proclamas e programas cujoespírito geral e cujas promessas eram positivamente soci-alistas. Mas como, apesar de toda sua boa-fé e de todasua boa vontade, não eram mais do que socialistas muitomais arrastados exteriormente do que interiormente con-vencidos, como não tiveram tempo nem capacidade paravencer e suprimir em si mesmos uma massa de prejuízosburgueses que estavam em contradição com seu socialis-mo recente, compreende-se que, paralisados por essa lutainterior, não pudessem sair nunca das generalidades, nemtomar uma dessas medidas decisivas que teriam rompi-do para sempre sua solidariedade e suas relações como mundo burguês.

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Foi uma grande desgraça para a Comuna e para eles;ficaram paralisados e paralisaram a Comuna; mas nãose lhes pode cobrar como uma falta. Os homens não setransformam de um dia para outro e não mudam denatureza nem de hábitos segundo sua vontade. Prova-ram sua sinceridade fazendo-se matar pela Comuna.Quem se atreverá a lhes pedir mais?

É possível compreendê-los melhor na medida em queo mesmo povo de Paris, sob a influência do qual pensa-ram e atuaram, era muito mais socialista por instintodo que por idéia ou convicção reflexiva. Todas suas as-pirações são no mais alto grau e exclusivamente socia-listas; mas suas idéias, ou melhor, suas representaçõestradicionais estão ainda bastante longe de ter chegadoa essa altura. Há ainda muitos prejuízos jacobinos, mui-tas imaginações ditatoriais e governamentais no prole-tariado das grandes cidades da França e inclusive node Paris. O culto à autoridade, produto fatal da autori-dade religiosa, essa fonte histórica de todas as desgra-ças, de todas as depravações e de todas as servidõespopulares, não foi ainda completamente desenraizadode seu seio. Isso é tão certo que até os filhos mais inte-ligentes do povo, os socialistas mais convictos, aindanão chegaram a se libertar de maneira completa dela.Procurem em sua consciência e encontrarão o jacobi-no, o governista, rejeitado em algum canto muito escu-ro, com aspecto muito humilde, é certo, mas não intei-ramente morto.

Por outro lado, a situação do pequeno número desocialistas convictos que constituíram parte da Comu-na era excessivamente difícil. Não se sentindo suficien-temente apoiados pela grande massa da população pa-risiense, apenas abraçando alguns milhares de indiví-duos, muito imperfeita ainda a organização daAssociação Internacional, tiveram de manter uma luta

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diária contra a maioria jacobina. E em meio a quais cir-cunstâncias! Foi necessário que dessem trabalho e pãoa algumas centenas de milhares de operários, que osorganizassem, que os armassem e ao mesmo tempo vi-giar as maquinações reacionárias em uma cidade imensacomo Paris, assediada, ameaçada pela fome, e entreguea todas as sujas empresas da reação que tinham podi-do se estabelecer e que se mantinham em Versalhes,com a permissão e pela graça dos prussianos. Tiveramde opor um governo e um exército revolucionários aogoverno e ao exército de Versalhes, isto é, para comba-ter a reação monárquica e clerical tiveram de, esque-cendo e sacrificando as primeiras condições do socia-lismo revolucionário, organizar-se em reação jacobina.

Não é natural que, em meio a circunstâncias seme-lhantes, os jacobinos, que eram os mais fortes, já queconstituíam a maioria na Comuna e que também pos-suíam em um grau infinitamente superior o instintopolítico, a tradição e a prática da organização governa-mental, tivessem imensas vantagens sobre os socialis-tas? O que deve impressionar é que não tivessem tiradomuito mais proveito do que tiraram, de que não tives-sem dado à sublevação de Paris um caráter exclusiva-mente jacobino, e de que tivessem permitido ser leva-dos, ao contrário, a uma revolução social.

Sei que muitos socialistas, muito conseqüentes emsua teoria, criticam em nossos amigos de Paris que nãotivessem se mostrado suficientemente socialistas emsua prática revolucionária, enquanto que todos os la-dradores da imprensa burguesa os acusam, ao contrá-rio, de ter seguido com fidelidade demais o programa dosocialismo. Deixemos por ora de lado os ignóbeis dela-tores dessa imprensa; farei observar aos teóricos seve-ros da emancipação do proletariado que são injustoscom nossos irmãos de Paris; porque entre as teorias

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mais justas e sua prática existe uma distância imensaque não se franqueia em alguns dias. Quem já teve afelicidade de conhecer Varlin, por exemplo, para nome-ar apenas aquele cuja morte é certa, sabe até que pontoforam apaixonadas, reflexivas e profundas nele e emseus amigos as convicções socialistas. Eram homenscujo cuidado ardente, cuja abnegação e boa-fé não pu-deram nunca ser questionados por ninguém que delestivesse se aproximado. Mas, precisamente porque eramhomens de boa-fé, estavam cheios de desconfiança emsi mesmos, diante da obra imensa à qual tinham dedi-cado seu pensamento e sua vida: consideravam-se tãopequenos! Tinham, por demais, a convicção de que narevolução social, diametralmente oposta — nisto comoem todo o resto — à revolução política, a ação dos indi-víduos deve ser quase nula e a ação espontânea dasmassas deve ser tudo. O que os indivíduos podem fazeré elaborar, esclarecer e propagar as idéias que cor-respondem ao instinto popular e também contribuir comseus esforços incessantes à organização revolucionáriada potência natural das massas, mas nada além; e oresto não pode nem deve se fazer mais do que pelo pró-prio povo. De outra maneira, chegar-se-ia à ditadurapolítica, isto é, à reconstituição do Estado, dos privilé-gios, das desigualdades, de todas as opressões do Esta-do, e chegar-se-ia, por um caminho desviado mas lógi-co, ao restabelecimento da escravidão política, social eeconômica das massas populares.

Varlin e seus amigos, como todos os socialistas sin-ceros, e em geral como todos os trabalhadores nascidose educados no povo, compartilhavam no mais alto grauessa prevenção perfeitamente legítima contra a iniciati-va contínua dos mesmos indivíduos, contra a domina-ção exercida pelas individualidades superiores: e comoantes de mais nada eram justos, direcionavam também

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essa prevenção, essa desconfiança, contra si mesmosmais do que contra todas as outras pessoas.

Contrariamente a esse pensamento dos comunistasautoritários, que considero completamente errôneo,sobre uma revolução social ser decretada e organizadaseja por uma ditadura, seja por uma assembléia consti-tuinte saída de uma revolução política, nossos amigos,os socialistas de Paris, pensaram que não podia ser fei-ta e levada a seu pleno desenvolvimento a não ser pelaação espontânea e contínua das massas, dos grupos edas associações populares.

Nossos amigos de Paris tiveram mil vezes razão. Por-que, de fato, por genial que seja, qual é a cabeça, ou seo que se quer é falar de uma ditadura coletiva, aindaque formada por várias centenas de indivíduos dotadosde faculdades superiores, quais são os cérebros, por po-tentes que sejam, bastante amplos como para contem-plar a infinita multiplicidade e diversidade dos interes-ses reais, das aspirações, das vontades, das necessida-des cuja soma constitui a vontade coletiva de um povo,e para inventar uma organização social capaz de satis-fazer a todos? Essa organização nunca será mais do queum leito de Procusto sobre o qual a violência mais oumenos marcada do Estado forçará a desgraçada socie-dade a se estender. É isso que aconteceu sempre e atéagora, e é precisamente esse sistema antigo de organi-zação pela força que deve terminar pela revolução soci-al, dando às massas sua plena liberdade, aos grupos,às comunas, às associações, aos próprios indivíduos, edestruindo de uma vez por todas a causa histórica daviolência, o poder e a existência do Estado, que devearrastar em sua queda todas as iniqüidades do direitojurídico com todas as mentiras dos cultos diversos, poisesse direito e esses cultos nunca foram nada mais doque a consagração forçada, tanto ideal como real, da

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violência representada, garantida e privilegiada peloEstado.

É evidente que a liberdade não será dada ao gênerohumano, e que os interesses reais da sociedade, dosgrupos e das organizações locais, assim como dos indi-víduos que formam a sociedade, apenas poderão en-contrar satisfação real quando não existir Estado. É evi-dente que os chamados interesses gerais da sociedadeque o Estado pretende representar, e que na realidadenão são outra coisa que a negação geral e conscientedos interesses positivos das regiões, das comunas, dasassociações e do maior número de indivíduos submeti-dos ao Estado, constituem uma ficção, uma abstração,uma mentira, e que o Estado é como um açougue, oucomo um cemitério onde, à sombra e com o pretextodesta abstração, comparecem generosamente, beata-mente, a se deixar imolar ou enterrar todas as aspira-ções reais, todas as forças vivas de um país. E comonenhuma abstração existe nunca por si mesma, comonão tem nem pernas para caminhar nem braços paracriar, nem estômago para digerir essa massa de vítimasque se lhe oferece para devorar, é óbvio que assim comoa abstração religiosa ou celestial, Deus, representa narealidade os interesses positivos, reais, de uma castaprivilegiada, o clero — seu complemento terreno —, aabstração política, o Estado, representa hoje os inte-resses não menos positivos e reais da classe, não sóprincipalmente senão exclusivamente, exploradora e quese inclina a englobar todas as outras: a burguesia. Eassim como o clero esteve sempre dividido e hoje tendea se dividir ainda mais em uma minoria muito poderosae muito rica e uma maioria muito subordinada e atécerto ponto miserável, assim a burguesia e suas diver-sas organizações, políticas e sociais, na indústria, naagricultura, no sistema bancário e no comércio, tanto

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como em todos os órgãos administrativos, financei-ros, judiciais, universitários, policiais e militares doEstado, tende a se cindir cada dia mais em uma oli-garquia realmente dominadora e em uma massa inu-merável de seres mais ou menos vaidosos e mais oumenos decadentes que vivem em uma perpétua ilu-são, rejeitados inevitavelmente e cada vez com maiorpersistência rumo ao proletariado por uma força irre-sistível, a do desenvolvimento econômico atual, e re-duzidos a servir de instrumentos cegos a essa oligar-quia onipotente.

A abolição da Igreja e do Estado deve ser a condiçãoprévia e indispensável da liberação real da sociedade;depois disso, só ela pode e deve se organizar de outramaneira, mas não de cima para baixo e segundo umplano ideal, sonhado por alguns sábios, ou na base dedecretos lançados por alguma força ditatorial ou atépor uma assembléia nacional, eleita por sufrágio uni-versal. Tal sistema, como eu já disse, levaria inevita-velmente à criação de um novo Estado, e por conse-guinte à formação de uma aristocracia governamental,isto é, de uma classe de pessoas que não têm nada emcomum com a massa do povo, e, certamente, essa clas-se voltaria a explorar e a submeter, com o pretexto dafelicidade comum, ou para salvar o Estado.

A futura organização social deve ser feita somentede baixo para cima, pela livre associação e federaçãodos trabalhadores, primeiro nas associações, depoisnas comunas, nas regiões, nas nações, e finalmentenuma grande federação internacional e universal.Apenas então haverá de se realizar a ordem verdadei-ra e vivificadora da liberdade e da felicidade geral, essaordem que, longe de renegar, afirma, ao contrário, epõe de acordo os interesses dos indivíduos e os dasociedade.

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Comenta-se que o acordo e a solidariedade univer-sal dos interesses dos indivíduos e da sociedade nuncapoderá se realizar realmente, porque esses interesses,sendo contraditórios, não estão em situação de se con-trabalançar reciprocamente, ou bem de chegar a umacordo qualquer. A tal objeção responderei que, se atéo presente os interesses não estiveram nunca nem emparte alguma em acordo mútuo, foi devido ao Estadoque sacrificou os interesses da maioria em benefício deuma minoria privilegiada. É o motivo dessa famosa in-compatibilidade, e essa luta de interesses pessoais comos da sociedade não é mais do que outro engano e umamentira política, nascida da mentira teológica que ima-ginou a doutrina do pecado original para desonrar ohomem e destruir nele a consciência de seu própriovalor. Essa idéia falsa do antagonismo dos interessesfoi criada também pelos sonhos da metafísica que, comose sabe, é parente próxima da teologia. Desconhecendoa sociabilidade da natureza humana, a metafísica con-siderava a sociedade como um agregado mecânico e pu-ramente artificial de indivíduos, associados repentina-mente, em nome de um tratado qualquer, formal ou se-creto, assinado livremente ou bem sob a influência deuma força superior. Antes de se unir em sociedade, es-ses indivíduos, dotados de uma espécie de alma imor-tal, gozavam de uma absoluta liberdade.

Mas se os metafísicos, sobretudo os que acreditamna imortalidade da alma, afirmam que os homens forada sociedade são seres livres, chegamos então inevita-velmente a esta conclusão: que os homens não podemse unir em sociedade a não ser sob a condição de rene-gar sua liberdade, sua independência natural e sacrifi-car seus interesses, pessoais primeiro, locais depois.Tal renúncia e tal sacrifício de si mesmos devem ser porisso tanto mais imperiosos quanto mais numerosa é a

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sociedade e mais complexa sua organização. Em tal caso,o Estado é a expressão de todos os sacrifícios individu-ais. Existindo sob semelhante forma abstrata, e ao mes-mo tempo violenta, não é necessário dizê-lo, continuaprejudicando cada vez mais a liberdade individual emnome dessa mentira que se chama “felicidade pública”,ainda que seja evidente que não represente, exclusiva-mente, outros interesses que os da classe dominante.O Estado, desse modo, mostra-se como uma negaçãoinevitável e como uma aniquilação de toda liberdade,de todo interesse, tanto particular como geral.

Nota-se aqui que nos sistemas metafísicos e teológi-cos tudo se associa e se explica por si só. É por isso queos defensores lógicos desses sistemas podem e devem,com a consciência tranqüila, continuar explorando asmassas populares por meio da Igreja e do Estado. En-chendo seus bolsos e saciando todos seus sujos dese-jos, podem ao mesmo tempo reconfortar-se com o pen-samento de que penam pela glória de Deus, pela vitóriada civilização e pela felicidade eterna do proletariado.

Mas nós, que não acreditamos nem em Deus nem naimortalidade da alma, nem na própria liberdade da von-tade, afirmamos que a liberdade deve ser compreendi-da, em sua acepção mais completa e mais ampla, comofim do progresso histórico da humanidade. Por um es-tranho ainda que lógico contraste, nossos adversários,idealistas da teologia e da metafísica, tomam o princí-pio da liberdade como fundamento e base de suas teo-rias, para concluir com bondade na indispensável es-cravidão dos homens. Nós, materialistas em teoria, ten-demos na prática a criar e fazer duradouro um idealismoracional e nobre. Nossos inimigos, idealistas divinos etranscendentais, caem até o materialismo prático, san-guinário e vil, em nome da mesma lógica, segundo aqual todo desenvolvimento é a negação do princípio fun-

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damental. Estamos convencidos de que toda a riquezado desenvolvimento intelectual, moral e material dohomem, assim como sua aparente independência, tudoisso é produto da vida em sociedade. Fora da socieda-de, o homem não somente não será livre, como tambémnão será verdadeiro homem, isto é, um ser que tem cons-ciência de si mesmo, que sente, pensa e fala. Apenas oconcurso da inteligência e do trabalho coletivo pude-ram forçar o homem a sair do estado de selvagem e debruto que constituía sua natureza primária, ou bem seuponto inicial de desenvolvimento posterior. Estamos pro-fundamente convencidos desta verdade, de que a vidados homens — interesses, tendências, necessidades,ilusões, até besteiras, tanto como as violências, as in-justiças e todos os atos que têm a aparência de volun-tários — não representa mais do que a conseqüênciadas forças fatais da vida em sociedade. As pessoas nãopodem admitir a idéia de independência mútua semrenegar da influência recíproca da correlação das ma-nifestações da natureza exterior.

Na própria natureza, essa maravilhosa correlação efiliação dos fenômenos, não foi alcançada, certamente,sem luta. Ao contrário, a harmonia das forças da nature-za aparece como resultado verdadeiro dessa luta cons-tante que é a própria condição da vida e do movimento.Na natureza e na sociedade, a ordem sem luta é a morte.

Se no universo a ordem natural é possível, o é uni-camente porque esse universo não é governado segun-do algum sistema previamente imaginado, e imposto poruma vontade suprema. A hipótese teológica de uma le-gislação divina conduz a um absurdo evidente e à nega-ção, não só de toda ordem, mas da própria natureza. Asleis naturais só são reais na medida em que são ineren-tes à natureza, isto é, na medida em que não são fixa-das por nenhuma autoridade. Essas leis não são mais

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do que simples manifestações, ou bem contínuas mo-dalidades do desenvolvimento das coisas e das combi-nações destes fatos muito variados, passageiros, masreais. O conjunto constitui o que chamamos “nature-za”. A inteligência humana e a ciência observaram es-ses fatos, os comprovaram experimentalmente, depoiso reuniram em um sistema e os chamaram leis. Mas anatureza não conhece leis; atua inconscientemente,representando por si mesma a variedade infinita dosfenômenos, que aparecem e se repetem de uma manei-ra fatal. É por isso que, graças a tal inevitabilidade daação, a ordem universal pode existir e existe de fato.

Uma ordem semelhante aparece também na socie-dade humana, que evolui em aparência de um modochamado antinatural, mas que na realidade se subme-te à marcha natural e inevitável das coisas. Só que asuperioridade do homem sobre os outros animais e afaculdade de pensar levaram a que se desenvolvesseum elemento particular, completamente natural, diga-se de passagem, neste sentido, que, como tudo que exis-te, o homem representa o produto material da união eda ação das forças. Este elemento particular é a razão,ou bem essa faculdade de generalização e de abstraçãograças à qual o homem pode se projetar pelo pensa-mento, examinando-se e observando-se como um obje-to exterior estranho. Elevando-se, pelas idéias, por so-bre si mesmo, assim como por sobre o mundo circun-dante, chega à representação da abstração perfeita, aonada absoluto. Esse limite último da mais alta abstra-ção do pensamento, esse nada absoluto, é Deus.

É esse o sentido e o fundamento histórico de todadoutrina teológica. Ao não compreender a natureza e ascausas materiais de seus próprios pensamentos, ao tam-bém não perceber as condições ou leis naturais que lhesão particulares, os primeiros homens em sociedade

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certamente não puderam supor que suas noções abso-lutas fossem o resultado da faculdade de conceber idéi-as abstratas. Por isso consideraram essas idéias, reti-radas da natureza, como objetos reais diante dos quaisa própria natureza deixava de ser alguma coisa. Depoisdedicaram-se a adorar suas ficções, suas impossíveisnoções do absoluto, e a lhes dedicar todas as honras.Mas era necessário, de uma maneira qualquer, figurare tornar sensível a idéia abstrata do nada ou de Deus.Com esse fim inflaram a concepção da divindade e adotaram, por acréscimo, de todas as qualidades e for-ças, boas e ruins, que encontravam só na natureza e nasociedade.

Tal foi a origem e o desenvolvimento histórico de to-das as religiões, começando pelo fetichismo e terminan-do pelo cristianismo.

Não temos a intenção de nos lançar na história dosabsurdos religiosos, teológicos e metafísicos, e me-nos ainda de falar do desdobramento sucessivo de to-das as encarnações e visões divinas criadas por sé-culos de barbárie. Todo mundo sabe que a supersti-ção deu sempre origem a espantosas desgraças eobrigou a derramar rios de sangue e de lágrimas. Di-remos apenas que todos esses repulsivos extraviosda pobre humanidade foram fatos históricos inevitá-veis no crescimento normal e na evolução dos orga-nismos sociais. Tais extravios engendraram na socie-dade esta idéia fatal que domina a imaginação doshomens: a idéia de que o universo é governado poruma força e por uma vontade sobrenaturais. Os sé-culos seguiram-se aos séculos, e as sociedades sehabituaram a tal ponto a essa idéia que finalmentemataram nelas toda tendência para um progresso maisdistante e toda capacidade para chegar a ele.

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A ambição de alguns indivíduos, em primeiro lugar, edepois de algumas classes sociais, erigiram em princípiovital a escravidão e a conquista e enraizaram, mais do quequalquer outra, essa terrível idéia da divindade. Desdeentão, toda sociedade foi impossível sem estas duas insti-tuições como base: a Igreja e o Estado. Essas duas pragassociais são defendidas por todos os doutrinários.

Apenas apareceram essas duas instituições no mun-do, organizaram-se automaticamente duas castas soci-ais: a dos sacerdotes e a dos aristocratas, que sem per-der tempo preocuparam-se em inculcar profundamen-te no povo subjugado a indispensabilidade, a utilidadee a santidade da Igreja e do Estado.

Tudo isso tinha por finalidade transformar a escravi-dão brutal em uma escravidão legal, prevista e consa-grada pela vontade do Ser supremo.

Mas, os sacerdotes e os aristocratas, acreditavamsinceramente nessas instituições, que sustentavam comtodas suas forças em seu interesse particular? Eramuns mistificadores e uns mentirosos? Não; acredito queao mesmo tempo eram crentes e impostores.

Eles acreditavam, também, porque compartilhavamnatural e inevitavelmente os extravios da massa, e ape-nas depois, na época da decadência do mundo antigo,foi quando se fizeram céticos e mentirosos sem vergo-nha. Outra razão permite considerar os fundadores dosEstados como gente sincera. O homem acredita com fa-cilidade naquilo que deseja, e naquilo que não contra-diz seus interesses. Não importa que seja inteligente einstruído: por seu amor próprio e por seu desejo de vi-ver com seus semelhantes e de se aproveitar do respeitodeles, acreditará sempre no que lhe é agradável e útil.Estou convencido de que, por exemplo, Thiers8 e o go-verno de Versalhes esforçaram-se a todo custo por se

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convencer de que matando em Paris alguns milhares dehomens, de mulheres e de crianças salvavam a França.

Mas se os sacerdotes, os profetas, os aristocratas e osburgueses, dos velhos e dos novos tempos, puderamacreditar sinceramente, não por isso deixaram de sersempre mistificadores. Não é possível, de fato, admitirque tenham acreditado em cada um dos absurdos queconstituem a fé e a política. Não falo sequer da época emque, segundo Cícero, “dois profetas não podiam se olharsem rir”. Ainda nos tempos da ignorância e da supersti-ção geral, é difícil supor que os inventores de milagrescotidianos estivessem convencidos da realidade dessesmilagres. É possível dizer o mesmo da política, que sepode resumir assim: “é preciso subjugar e espoliar o povode tal maneira, que ele não se queixe alto demais de seudestino, que não se esqueça de se submeter e que nãotenha o tempo necessário para pensar na resistência ena rebelião.”

Como, então, imaginar, depois disso, que as pessoasque transformaram a política em um ofício e conhecemseu objeto — isto é, a injustiça, a violência, a mentira, atraição e o assassinato em massa e isolado —, possamacreditar sinceramente na arte política e na sabedoriado Estado gerador da felicidade social? Não podem terchegado a esse grau de estupidez, apesar de toda suacrueldade. A Igreja e o Estado têm sido em todos os tem-pos grandes escolas de vícios. A História está aí paratestemunhar seus crimes; em toda parte e sempre, o sa-cerdote e o estadista foram os inimigos e os verdugosconscientes, sistemáticos, implacáveis e sanguináriosdos povos.

Mas, como conciliar, entretanto, duas coisas em apa-rência tão incompatíveis: os embusteiros e os engana-dos, os mentirosos e os crentes? Logicamente, isso pa-

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rece difícil; porém, na realidade, isto é, na vida prática,essas qualidades se associam muito freqüentemente.

Em enorme maioria, as pessoas vivem em contradi-ção consigo mesmas, e em contínuas confusões; não opercebem geralmente até que algum acontecimento ex-traordinário as retira da sonolência habitual e as obrigaa dar uma olhada sobre elas e sobre seu entorno.

Em política como em religião, os homens são máqui-nas em mãos dos exploradores. Mas ladrões e rouba-dos, opressores e oprimidos, vivem uns ao lado dos ou-tros, governados por um punhado de indivíduos queconvém considerar como verdadeiros exploradores. Sãoas mesmas pessoas, livres de todos os preconceitos po-líticos e religiosos, as que maltratam e oprimem consci-entemente. Nos séculos XVI e XVIII, até a explosão daGrande Revolução, como em nossos dias, eles mandamna Europa e atuam quase segundo seu capricho. É ne-cessário acreditar que sua dominação não se prolonga-rá por muito tempo.

Enquanto os chefes principais enganam e decaem,os povos com sua consciência, seus servidores, ou osprodutos da Igreja e do Estado, dedicam-se com cuida-do a sustentar a santidade e a integridade dessas odio-sas instituições. Se a Igreja — segundo dizem os sacer-dotes e a maior parte dos estadistas — é necessária paraa salvação da alma, o Estado, por sua vez, é tambémnecessário para a conservação da paz, da ordem e dajustiça; e os doutrinários de todas as escolas gritam:“sem Igreja e sem Governo não há civilização nem pro-gresso.”

Não temos que discutir o problema da salvação eter-na, porque não acreditamos na imortalidade da alma.Estamos convencidos de que o mais prejudicial, para ahumanidade, para a liberdade e para o progresso, é a

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Igreja. E pode ser outra coisa? Não cabe à Igreja a mis-são de perverter as jovens gerações, as mulheres acimade tudo? Não é ela que por seus dogmas, suas menti-ras, sua estupidez e sua ignomínia tende a matar o pen-samento lógico e a ciência? Por acaso não afeta a digni-dade do homem, pervertendo nele a noção dos direitose da justiça? Não transforma em cadáver o que é vivo?Não corrompe a liberdade? Não é ela que prega a escra-vidão eterna das massas em benefício dos tiranos e dosexploradores? Não é ela, essa implacável Igreja, que ten-de a perpetuar o reinado das trevas, da ignorância, damiséria e do crime?

Se o progresso de nosso século não é um sonho en-ganoso, deve terminar com a Igreja... [O manuscrito in-terrompe-se aqui].

Tradução do espanhol por Natalia Montebello.

Notas:

1 Foi mantido o titulo dado ao fragmento por Elisée Reclus, que o publicoupela primeira vez em 1878. O título original é “Preâmbulo para a segundaentrega de O império knutogermânico”. Nota da edição espanhola.

2 Texto extraído de: Mikahil Bakunin. Obras completas, tomo 2. Tradução deDiego Abad de Santillán. Madrid, Las Ediciones de la Piqueta, 1977, pp.163-181.

3 É igualmente aceito e o será cada vez mais pelo instinto essencialmenteanti-político dos povos eslavos. Nota do autor.

4 Louis Eugène Varlin nasceu em Claye Souilly, em 1839, e morreu em Pa-ris, durante a Comuna, em 1871, fuzilado pelos defensores de Versalhes.Foi um importante sindicalista, participou da fundação da Primeira Inter-nacional, em 1864, e foi um de seus dirigentes (NT).

5 Léon Gambetta nasceu em Cahors, em 1838. Advogado e político nacio-nalista, em 1869 foi eleito deputado por Paris e Marselha, e como tal pro-nuncia o Programa de Belleville, importante referência para o radicalismo

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francês. Foi um dos membros mais radicais da Câmara de Deputados, daqual seria nomeado presidente em 1879. Dois anos mais tarde passará a sero primeiro-ministro francês, cargo que ocuparia até janeiro de 1882, ano desua morte (NT).

6 Ver sua carta a Littré em Le Progrès, de Lyon. Nota do autor.

7 Louis Charles Delescluze nasceu em Dreux, em 1809. Estudou direito,mas se destacou como jornalista, apaixonado defensor das idéias democrá-ticas. Fundou o jornal La revolution democratique et sociale, e depois o Le Réveil,que afirmava os princípios da Associação Internacional dos Trabalhadores.Morre em Paris, no dia 25 de maio de 1871, na barricada de Château-d´Eau.Gambetta foi seu defensor, e em 1870 dirá dele: “Se Delescluze é a encarna-ção de todas as virtudes jacobinas: intransigência, honestidade, espírito deautoridade, republicanismo social; ele soube se abrir, mesmo assim, às idéi-as de Proudhon, esse antigo adversário. E este espírito centralizador tam-bém não se opõe ao desenvolvimento das liberdades comunais.”www.1911encyclopedia.org. Consultado em 14/08/2006 (NT).

8 Adolphe Thiers nasceu em Marselha em 1797. Foi, repetidas vezes, pri-meiro-ministro da França, afirmando sua postura e importância políticacom seu célebre lema: “O rei reina mas não governa”. Seu último mandatoaconteceu entre 1871, alguns meses depois de vencida a Comuna de Paris,e 1873. Como historiador, escreveu: História da Revolução Francesa, História do

Consulado e O Império. Morreu em Saint-Germain-en-Laye, em 1877 (NT).

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RESUMO

Ao confrontar o socialismo revolucionário com o comunismo da

escola alemã, o texto focaliza a Comuna de Paris como fato

histórico no qual é ensaiada a negação do Estado; a partir da

qual é possível pensar o socialismo revolucionário como resul-

tado de uma organização federalista e descentralizada, livre

da autoridade universal que emana do Estado e da Igreja, e

livre, mais ainda, da reprodução dessa autoridade como efeito

revolucionário.

Palavras-chave: socialismo revolucionário, comunismo, Comu-

na de Paris.

ABSTRACT

When confronting the revolutionary socialism with the commu-

nism of the German school, the article targets the Paris Com-

mune as a historical event in which the denial of the state is

experimented; making it possible to approach the revolutiona-

ry socialism as a result of a federalist and decentralized orga-

nization, free from the state and church authority and particu-

larly free from the reproduction of this authority as a revolutio-

nary effect.

Keywords: revolutionary socialism, communism, Paris Com-

mune.

Indicado para publicação em 15/08/2005.

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