a compaixão como fundamentação moral em schopenhauer- texto final completa-tas

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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA TARCÍSIO ALVES DOS SANTOS A COMPAIXÃO COMO FUNDAMENTAÇÃO MORAL EM SCHOPENHAUER NATAL-RN 2014

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O escopo desse trabalho pretende investigar até que ponto o sentimento da compaixão é importante para as fundamentações morais. Desse modo, tomaremos como base de análise a fundamentação moral do filósofo Arthur Schopenhauer, em seu ensaio “Sobre o Fundamento da Moral”, que foi um defensor do sentimento da compaixão em sua fundamentação ética. A fim de aprofundarmos as discussões sobre a dicotomia do ser humano, que o divide entre razão e sensibilidade no campo moral, investigaremos, também, a crítica de Schopenhauer à moral kantiana, que é fundamentalmente racional. Entendemos que analisando tanto a sua fundamentação moral, quanto sua crítica à moral kantiana, conseguiremos entender o verdadeiro significado do sentimento da compaixão no campo moral. Sendo assim, acreditamos que se deve levar em consideração o valor desse sentimento nas fundamentações éticas. Como proposta, tentaremos uma aproximação no que diz respeito à razão e à sensibilidade no campo moral.

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  • 1

    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

    CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

    TARCSIO ALVES DOS SANTOS

    A COMPAIXO COMO FUNDAMENTAO MORAL EM SCHOPENHAUER

    NATAL-RN

    2014

  • 2

    TARCSIO ALVES DOS SANTOS

    A COMPAIXO COMO FUNDAMENTAO MORAL EM SCHOPENHAUER

    Dissertao de mestrado apresentada ao

    Programa de Ps-graduao em filosofia da

    Universidade Federal do Rio Grande do Norte

    UFRN - como requisito parcial para a obteno

    do ttulo de mestre em filosofia.

    Orientador: Profa. Dra. Cinara Maria Leite

    Nahra.

    NATAL-RN

    2014

  • 3

    TARCSIO ALVES DOS SANTOS

    A COMPAIXO COMO FUNDAMENTAO MORAL EM SCHOPENHAUER

    Dissertao de mestrado apresentada ao

    Programa de Ps-graduao em filosofia da

    Universidade Federal do Rio Grande do Norte

    UFRN - como requisito parcial para a obteno

    do ttulo de mestre em filosofia.

    Aprovada em: ______/______/______

    Banca examinadora

    Profa. Dra.: __________________________________________________

    Profa. Dra. Cinara Maria Leite Nahra.

    Universidade Federal do Rio Grande do Norte

    Orientadora

    Prof. Dr.: ___________________________________________________

    Prof. Dr. Dax Fonseca Moraes Paes Nascimento

    Universidade Federal do Rio Grande do Norte

    Profa. Dra.: ___________________________________________________

    Profa. Dra. Maria de Lurdes Alves Borges

    Universidade Federal de Santa Catarina

  • UFRN / Biblioteca Central Zila Mamede

    Catalogao da Publicao na Fonte

    Santos, Tarcsio Alves dos.

    A compaixo como fundamentao moral em Schopenhauer /

    Tarcsio Alves dos Santos. Natal, RN, 2014. 122 f.

    Orientadora: Prof. Dr. Cinara Maria Leite Nahra.

    Dissertao (Mestrado) Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Cincias Humanas, Letras e Artes. Programa de Ps-

    Graduao em Filosofia.

    1. tica Dissertao. 2. Compaixo Dissertao. 3. Schopenhauer Dissertao. 4. Kant Dissertao. I. Nahra, Cinara Maria Leite. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Ttulo.

    RN/UF/BCZM CDU 172

  • 4

    DEDICATRIA

    memria de meus avs, Tereza Barbosa, que sempre foi muito

    dedicada em ajudar-me quando precisei, e ao meu memorvel

    av, Augusto Alves, que sempre sonhou em ter um neto mestre.

    So poucos os mestres que conheo de verdade na vida real, e

    com certeza meu av um deles, mestre, pessoas que entendem

    bem o que seja o sentimento da Com-Paixo, sentir o sofrer

    com. Meu av: meu verdadeiro mestre, sempre.

  • 5

    AGRADECIMENTOS

    A Deus, por tudo, inclusive, por me fazer todos os dias acreditar em mim mesmo e

    Nele.

    A minha famlia, meus pais Francisca Alves e Manoel Baslio, aos meus irmos

    Teobaldo Alves e Taciana Bezerra, que sempre estiveram comigo nos momentos mais difceis

    pelos quais passei, mas que sempre me deram foras para seguir adiante em todos os projetos

    de minha vida, inclusive na realizao desse mestrado.

    Aos meus amigos, em especial a minha amiga Weynna Barbosa, pela ateno,

    conselhos e carinho ao ouvir-me nos momentos difceis. A minha amiga Adriana Melo, pela

    fora por me fazer seguir sempre adiante e nunca desistir. Aos amigos Antnio Marcos, Isaias

    Alfredo e ao casal Andr Bezerra e Tereza Farias, pelo companheirismo. Ao amigo Arlan

    Etiel, por sua gentileza e apoio, sendo sempre amvel e dedicado em ajudar. A amiga virtual

    Natlia Oliveira, por estar sempre presente quando precisei de sua ajuda.

    Aos professores que me ajudaram em minha vida acadmica, pois sem eles jamais

    estaria aqui. Aos professores Dax Moraes, Joel Klein e professora Maria Borges, por terem

    aceito o convite em participar das bancas examinadoras dessa dissertao.

    professora e orientadora Cinara Nahra, pelas orientaes, correes, pacincia, e

    por acreditar em mim. Dou graas por poder ter trabalhado com uma pessoa to competente e

    de uma nobreza to grande na alma.

    Ao rgo de fomento pesquisa CAPES, por ter patrocinado com bolsa esse projeto,

    como tambm a realizao de um sonho.

    A Fabola Barreto, por ter sempre me incentivado em minha vida acadmica e

    pessoal. Sem dvidas, parte dessa pesquisa dedico a ela por me fazer compreender ainda mais

    o real significado desse sentimento chamado compaixo.

  • 6

    A maioria pensa com a sensibilidade, e eu sinto com o

    pensamento. Para o homem vulgar, sentir viver e pensar

    saber viver. Para mim, pensar viver e sentir no mais que o

    alimento de pensar.

    Fernando Pessoa

  • 7

    RESUMO:

    O escopo desse trabalho pretende investigar at que ponto o sentimento da

    compaixo importante para as fundamentaes morais. Desse modo, tomaremos como base

    de anlise a fundamentao moral do filsofo Arthur Schopenhauer, em seu ensaio Sobre o

    Fundamento da Moral, que foi um defensor do sentimento da compaixo em sua

    fundamentao tica. A fim de aprofundarmos as discusses sobre a dicotomia do ser

    humano, que o divide entre razo e sensibilidade no campo moral, investigaremos, tambm, a

    crtica de Schopenhauer moral kantiana, que fundamentalmente racional. Entendemos que

    analisando tanto a sua fundamentao moral, quanto sua crtica moral kantiana,

    conseguiremos entender o verdadeiro significado do sentimento da compaixo no campo

    moral. Sendo assim, acreditamos que se deve levar em considerao o valor desse sentimento

    nas fundamentaes ticas. Como proposta, tentaremos uma aproximao no que diz respeito

    razo e sensibilidade no campo moral.

    Palavras- chave: Compaixo. tica. Schopenhauer. Kant.

  • 8

    ABSTRACT:

    The scope of this study was to investigate to what extent the feeling of compassion is

    important for the moral reasons. Thus, we will build on the analysis of moral reasoning of the

    philosopher Arthur Schopenhauer, in his essay On The Basis of Morality, who was a

    supporter of the feeling of compassion in their ethical reasoning. In order to deepen the

    discussion on the dichotomy of the human being, that the split between reason and sensibility

    in the moral field, also investigate Schopenhauer's criticism of the Kantian moral, which is

    fundamentally rational. We believe that analyzing both its moral foundation, as his critique of

    Kantian morality, we can understand the true import of the feeling of compassion in the moral

    field. Thus, we believe that one must take into account the value of this feeling on ethical

    grounds. As proposed will try an approach with regard to reason and sensitivity in the moral

    field.

    Keywords: Compassion. Ethics. Schopenhauer. Kant.

  • 9

    SUMRIO

    INTRODUO ................................................................................................................................... 10

    1. A CRTICA DE SCHOPENHAUER MORAL KANTIANA .............................................. 22

    1.1. Sobre a fundao e a crtica forma imperativa da moral kantiana ...................................... 26

    1.2. A crtica de Schopenhauer aos deveres em relao a ns prprios ....................................... 33

    1.3. A crtica de Schopenhauer ao fundamento e princpio da moral kantiana ............................ 37

    2. A COMPAIXO COMO A VERDADEIRA MOTIVAO MORAL ................................. 55

    2.1. A virtude da justia ............................................................................................................... 60

    2.2. A virtude da caridade ............................................................................................................ 65

    3. A CONFIRMAO DA COMPAIXO .................................................................................. 67

    4. A TRIPLA MOTIVAO HUMANA NA DIFERENA TICA DOS CARACTERES ... 75

    4.1. A motivao egostica ........................................................................................................... 79

    4.2. A motivao maldosa ............................................................................................................ 82

    4.3. A motivao compassiva ....................................................................................................... 84

    5. A LIBERDADE ........................................................................................................................... 86

    6. A TRIPLA FORMULAO DO CARTER HUMANO ...................................................... 92

    6.1. O Carter Inteligvel .............................................................................................................. 93

    6.2. O Carter Emprico ............................................................................................................... 96

    6.3. O Carter Adquirido .............................................................................................................. 98

    7. O FUNDAMENTO METAFSICO DA COMPAIXO E A NEGAO DA VONTADE 100

    CONCLUSO ................................................................................................................................... 110

    BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................................... 118

  • 10

    INTRODUO

    No de hoje que a tica um dos assuntos mais discutidos nos diversos segmentos

    da sociedade. Quer estejamos em uma igreja, em uma praa, em um bar ou em nossa prpria

    casa, precisamos de princpios que possam nortear nossa conduta junto sociedade1. Nesse

    caso, a tica aparece como maneira de orientar e guiar as relaes humanas. Porm, a tica

    no deve ser confundida com a lei ou doutrina do direito, por mais que qualquer lei tenha

    como base os princpios ticos. A lei serve como instrumento para fazer justia, embora nem

    sempre acontea, j que a prpria lei est atrelada a hbitos e costumes de uma determinada

    civilizao como uma forma de acordo. bem verdade que tanto a tica quanto a moral so

    constitudas a partir de valores histricos e culturais de cada sociedade, por isso, fundamentar

    nossos juzos com valores morais ainda continua sendo uma busca da filosofia, porque em

    meio ao dinamismo que as sociedades mudam, modifica-se tambm os nossos juzos de valor

    que precisam ser justificados a fim de legitimar nosso agir no mundo.

    Mas como saber necessariamente quais os critrios de nossa ao? Como saber ao

    certo como devemos agir se os juzos de valores morais so contingentes? Quais juzos de

    valores morais podem ser considerados como corretos ou incorretos e com isso conduzir

    nossa maneira de agir? Para tratar a diferena entre justia e injustia, o que o bem ou o mal,

    ruim ou bom, sempre se faz necessrio uma investigao acerca dos valores morais, com o

    intuito de discernir com clareza quais os fundamentos de tais juzos. Podem eles ser

    fundamentados em determinaes racionais lgicas ou nos sentimentos? Ou podem ser uma

    juno dos dois? Ao que parece, ao logo da histria, sempre houve uma primazia da razo

    sobre os sentimentos no que diz respeito s fundamentaes morais e ticas. A razo aparece

    como uma regra de utilidade prtica, ao passo que o sensvel aparece como mero substrato

    para nossas aes. Cria-se ento a dicotomia entre razo e sensibilidade, de modo que a razo

    a grande detentora da verdade, enquanto a sensibilidade pouco elucidada como maneira de

    se produzir uma verdade que possa guiar nossa conduta.

    Realmente qualquer maneira de julgar as aes humanas no parece algo simples,

    nem fcil, mas complexo, pela dificuldade de entendimento de saber o que o certo ou

    errado, o bem ou o mal, e com isso formularmos princpios morais adequados. Desde os

    filsofos gregos como Plato, Scrates e Aristteles que se tenta encontrar um princpio moral

    adequado para que o homem possa fazer bons julgamentos e viver melhor em sociedade.

    1 Considerando o caso de se tratar de uma tica prescritiva ou doutrina das virtudes.

  • 11

    Scrates foi o grande messias da racionalidade, pois ao eleger a razo como soberana e

    essncia do homem, ele dizia que todo erro moral vem da ignorncia de no conhecer o bem.

    Conhece-te a ti mesmo era sua mxima. Somente a razo, de acordo com Scrates, poderia

    guiar o homem em sua conduta moral e com isso verdade. Na verdade, o conhecimento

    racional foi escolhido pelos gregos como forma de elo entre a verdade e felicidade.

    A filosofia grega antiga fazia uma ligao da tica com a felicidade, principalmente a

    dos estoicos e cnicos, que acreditavam que por meio da virtude se conduziria uma conduta

    tica e moral. O filsofo grego, Aristteles, estabeleceu a felicidade (eudaimonia) como

    princpio moral. Aristteles (1985. p. 21) se referia ao homem como um animal social capaz

    de fazer a diferenciao entre um ato justo e um injusto, pois para ele a caracterstica

    especfica do homem em comparao com os outros animais que somente ele tem o

    sentimento do bem e do mal, do justo e do injusto e de outras qualidades morais. A

    felicidade como atividade da alma, para ele, se dava por um fim alcanado pela virtude

    perfeita mediante as aes boas e justas, e que estaria na mediania (ARISTTELES, 1987, p.

    73), ou seja, seria o meio-termo entre as carncias e os excessos, exceto para ela mesma. Ser

    virtuoso se daria pela capacidade racional por meio da mediania, que uma disposio de

    carter nas escolhas entre as aes e paixes, por meio da razo. Hoje em dia podemos dizer

    que a virtude da qual Aristteles falava o que chamamos de valores. Mas difcil imaginar

    hoje uma tica das virtudes ligada felicidade como pretendia Aristteles, pois talvez em seu

    tempo fosse inimaginvel pensar um homem virtuoso e corruptvel ao mesmo tempo.

    Existe um verdadeiro abismo em nossos dias quando falamos de felicidade e virtude,

    pois as pessoas atualmente fazem o que for necessrio para se alcanar benefcios

    particulares. Lembremos que para Aristteles (1987, p. 59) a poltica uma extenso da tica,

    uma vez que ela se ocupa da felicidade coletiva. O modelo capitalista que vivemos parece no

    abrir espao para uma tica eudaimnica, pois as conquistas particulares e a felicidade de si

    predominam. A tica no apenas passou a ser objeto de manipulao da sociedade capitalista,

    na qual todos querem uma tica particular, como voa longe dos conceitos gregos. o

    individualismo e o egosmo que predominam nas sociedades capitalistas. Ou poderamos

    dizer que sempre foi assim? Ser que na tica atual existe espao para sentimentos?

    O capitalismo parece ter criado uma hegemonia sem tamanho. Os indivduos vivem

    em estado de ideologia, alienados, encerrados em seus prprios bens, transformando as

    relaes sociais numa espcie de vnculo de convenincia, sempre visando o que se pode

    ganhar ou perder com elas. Como no mundo capitalista podemos ser virtuosos sem que isso

  • 12

    signifique uma troca de favores? Ser que existe realmente no modelo capitalista uma ao

    completamente altrusta? Parece que boas aes sem pagamento so quase impossveis, pois a

    maioria das pessoas quer algo em troca pelo bem alheio. Assim, a ideia de felicidade ou de

    Sumo bem, como pretendia Aristteles e outros filsofos gregos, cai por terra, pois parece no

    existir felicidade plural, no existir a capacidade de virtude, o que existe apenas o eu, em

    outras palavras, o amor de si mesmo. Hoje em dia parece que nem mesmo uma tica religiosa

    funciona, e como disse Nietzsche (2001, p. 64), em sua obra A gaia cincia: Deus est

    morto! Deus continua morto! Ns o matamos! Se as religies e a teologia sempre buscaram

    um princpio moral, um comportamento altrusta, entramos em um colapso quando matamos

    Deus pela cincia e razo, enterramos uma parte da moral juntamente com Ele, e o que no

    era permitido agora todo agrado, o que no poderia ser feito para os olhos de Deus, agora j

    no tem mais olhos para ser visto, tudo permitido. Como viver em um mundo que nem

    mesmo a punio divina no nos pe mais nada a temer? A cincia e a razo tomaram o lugar

    da f. A nossa religio parece ter virado os tratados cientficos e a essncia do humano parece

    at hoje no ter sido encontrada.

    Parece que no podemos confiar to claramente nos antigos fundamentos morais,

    assim como na religio. A viso aristotlica de fundamentar a moralidade pela virtude em que

    seu fim ltimo seria a felicidade parece no haver conciliao com o mundo contemporneo,

    pois cada um pode buscar seus prprios interesses para chegar felicidade, e at mesmo uma

    ao que parece genuna, nada mais que puro egosmo. A tentativa da felicidade a qualquer

    custo leva no somente a atos antiticos, mas tambm a tratar o ser humano como meio para

    se chegar onde se deseja, tirando-lhe a dignidade. O filsofo alemo Immanuel Kant (1724-

    1804), talvez o maior expoente da racionalidade na modernidade, entendia a humanidade

    como fim em si mesma. Para ele as coisas podem ter um preo, mas somente o homem tem

    dignidade.

    No reino dos fins tudo tem ou um preo ou uma dignidade. Quando uma coisa tem

    um preo, pode-se pr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando

    uma coisa est acima de todo o preo, e portanto no permite equivalente, ento tem

    ela dignidade. (KANT, 1984, p. 140)

    Ao que parece, Kant entendia a dificuldade de se estabelecer um princpio moral que

    fosse baseado na felicidade em funo da virtude perfeita, pois no somos apenas racionais,

    mas temos inclinaes derivadas de nossa parte sensvel. justamente por causa dessas

    inclinaes que s vezes somos submetidos a entrar em erro, sermos indignos, tratando o

    homem como meio e no como um fim. Mesmo que Kant no seja contrrio felicidade e por

  • 13

    vezes possa at ach-la necessria2, ela no poderia fundamentar a moralidade, uma vez que

    se torna contingente.

    Ora, se em Aristteles a finalidade ltima de todas as coisas a felicidade, e o agir

    moral um clculo racional para chegar virtude perfeita por meio da mediania, podemos

    dizer que a tica aristotlica se fundamenta no agir humano, na busca da excelncia moral

    (ARISTTELES, 1991, p. 71) por meio da razo e educao em conflito com as emoes.

    Desse modo, chegaramos felicidade. a razo o mago da felicidade e da moral.

    Se desde os filsofos gregos a fundamentao moral culminava em um clculo

    racional e com isso se chegaria felicidade, Kant se ope a essa viso. Para ele a felicidade

    aparece apenas de maneira secundaria em sua fundamentao moral. A rejeio parte porque

    a felicidade buscada no amor de si mesmo, que a base prpria do egosmo humano3. A

    felicidade alm de estar sujeita s inclinaes, algo de que nunca temos plena certeza, j que

    o seu estado muda de acordo com as circunstncias da vida, contingente. Para Kant, o agir

    moral no pode estar sujeito a nenhuma inclinao sensvel, emprica, mas se d por uma boa

    vontade, que boa em si mesma. A moralidade e a felicidade podem at estar em harmonia,

    pois o homem moral pode ser merecedor da felicidade, porm elas no coincidem. s vezes

    teramos de ir contra a prpria felicidade para agirmos moralmente, pois a felicidade estaria

    atrelada s inclinaes humanas. Sobre isso Vicente Zatti diz:

    Para Kant a busca da felicidade prpria concerne faculdade inferior de desejar, ela

    se relaciona s inclinaes da sensibilidade e no razo. O princpio do amor por si

    ou da felicidade jamais poderiam servir de fundamento para uma lei prtica, tendo

    em vista sua validade que apenas subjetiva. Cada um coloca o bem estar e a

    felicidade em uma coisa ou outra, de acordo com sua prpria opinio a respeito do

    prazer ou da dor. Se formulssemos uma lei subjetivamente necessria como uma lei

    natural, seu princpio prtico seria contingente e no garantiria a autonomia.

    (ZATTI, 2007, p. 28)

    Kant no apenas tenta banir a eudaimonia da sua fundamentao moral, como

    tambm elimina as causas empricas, deixando sua tica base da razo pura. Somente a

    razo pura pode determinar uma boa vontade e por ela um dever incondicional de

    fundamentar a moral. Nesse sentido, a boa vontade age de acordo com o dever, um dever que

    damos a ns mesmos por respeito Lei moral. Tal Lei moral para Kant se fundamenta no

    2 Idem p. 113. Kant afirma que assegurar a sua prpria felicidade um dever, pois a falta de felicidade pode

    proporcionar descontentamento com a vida, fato que pode levar o homem a fazer vrias transgresses. Porm o

    conceito de felicidade aqui encarado como emprico, ou seja, aquilo que faz o homem feliz hoje, amanh pode

    no fazer-lhe, sendo assim a felicidade relativa e idiossincrtica. Dessa forma, Kant entende a felicidade como

    um dever indireto, j que a falta de felicidade pode agir como obstculo para a moralidade. 3 Egosmo Natural.

  • 14

    Imperativo Categrico que guia nossa ao na razo pura prtica do tu deves: Age apenas

    segundo uma mxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei

    universal (KANT, 1984, p. 129). Assim, nenhuma ao pode ser considerada moral que no

    seja por respeito lei moral ou Imperativo Categrico, pois muitas podem ser as inclinaes

    para o agir bem, mas se o agir bem for somente baseado por convenincias e no pela Lei

    moral, no podemos dizer que a ao foi moralmente boa. Agir de acordo com a lei moral o

    nico meio de agirmos moralmente segundo Kant. Cinara Nahra enfatiza essa posio

    kantiana da seguinte maneira:

    Realizar a boa vontade nada mais do que agir moralmente. A razo pura prtica

    fornece um princpio para a vontade, que a lei moral, e esta mesma vontade,

    quando assume este princpio como determinante de sua ao, realiza o objeto da

    razo pura prtica, ou seja, realiza o soberano bem que, em seu sentido primeiro, a

    moralidade, o bem, ou seja, o agir moral. (NAHRA, 2008, p. 86)

    Porm, pelo fato de o Imperativo Categrico no ser conhecido por uma realidade

    emprica, mas sim a partir da razo pura, no nos permite dizer que houve necessariamente

    um nico caso em que a ao aconteceu por dever Lei moral, isto , no podemos afirmar

    que a ao foi moral ou no. Justamente porque as mximas adotadas pelo agente

    permanecem incognoscveis, ou seja, pela incognoscibilidade de nossas intenes no

    podemos determinar com certeza qual a inteno e a finalidade da ao do sujeito, se ela foi

    feita puramente por dever a Lei moral ou por outro mbil qualquer. O prprio Kant afirma

    isso, vejamos:

    Na realidade, absolutamente impossvel encontrar na experincia com perfeita

    certeza um nico caso em que a mxima de uma ao, de resto conforme ao dever,

    se tenha baseado puramente em motivos morais e na representao do dever.

    (KANT, 1984, p. 121)

    E ele ainda conclui dizendo que a ao, mesmo considerada boa, pode ter sido

    realizada por motivos egostas.

    Acontece por vezes na verdade que, apesar do mais agudo exame de conscincia,

    no possamos encontrar nada, fora do motivo moral do dever, que pudesse ser

    suficientemente forte para nos impelir a tal ou tal boa ao ou a tal grande sacrifcio.

    Mas daqui no se pode concluir com segurana que no tenha sido um impulso

    secreto do amor-prprio, oculto sob a simples capa daquela ideia, a verdadeira causa

    determinante da vontade. (KANT, 1984, p. 121)

    Fica evidente que Kant tenta banir o egosmo e que tambm a felicidade, para ele,

    apenas um meio secundrio. Porm, ser que verdade que essa lei, que para ns um dever,

  • 15

    consegue somente pela razo pura tamanha faanha? A verdade que Kant encontra uma

    maneira da felicidade no ser totalmente abolida de sua fundamentao moral, pois ela pode

    ainda entrar em concordncia (KANT, 2011, p.119) com a Lei moral, na medida em que

    nossa presuno abatida e o amor de si entra em concordncia com a Lei moral gerando

    assim um sentimento sui generis, a saber, a humilhao que teramos perante a lei moral,

    produzindo em ns o que Kant denomina de amor de si racional. O fato que a moral

    kantiana fundamentada na razo pura no nos diz quando uma ao efetivamente moral ou

    boa. A tica formal kantiana, baseada no dever e na racionalidade, talvez precise encontrar na

    sensibilidade exatamente a resposta para saber se uma ao pode ser considerada moral ou

    no.

    Em um mundo em que as pessoas esto cada vez menos religiosas, em que as

    tradies so consideradas suprfluas, os sentimentos so omitidos em detrimento do

    pragmatismo, os valores obtidos socialmente so outros e as relaes pessoais e interpessoais

    adquirem novas linguagens, significaes e modelos morais, possvel ver, nesse contexto,

    uma poca propcia para pensarmos, repensarmos e criarmos novos processos, pois parece

    necessrio revermos os valores tradicionais a fim de que possamos recriar novos valores

    morais e ticos. Onde erramos? O que poderemos fazer? Ser verdade que somente a razo

    pode fundamentar a moralidade? A tica pode ser fundamentada por algum sentimento? Pode

    ela ter sua fundamentao sobre uma perspectiva racional/sentimental?

    com base nessas perguntas que pretendemos fazer uma comparao entre a tica

    racional e a tica que tem como fundamento um sentimento. Acreditamos que a razo ocupou

    um grande privilgio no campo tico e que desprezamos o campo sentimental de fundamentar

    a moralidade. Achamos extremamente necessrio saber qual realmente o papel dos

    sentimentos no campo tico. Para examinar o cerne dessas questes, faremos uma anlise da

    tica do Filsofo Arthur Schopenhauer (1788-1860), que acredita que o fundamento da tica

    no se d de maneira racional, mas atravs do sentimento da compaixo. Mas antes de vermos

    a fundamentao moral de Schopenhauer, veremos que ele far duras crticas moral

    kantiana, pois, para ele, alm das fundamentaes ticas anteriores serem insuficientes para

    fundamentar a moralidade, Kant teria feito uma grande reforma no campo tico, reforma essa

    que faria necessria uma reformulao completa dos valores morais deixados por Kant.

    Contudo, no faremos aqui um exame minucioso de todas as correntes ticas na

    exposio desse trabalho, seja ela antiga, moderna ou contempornea, pois acreditamos que

    embora diferentes autores, tais como David Hume e Jean-Jacques Rousseau, dentre outros,

  • 16

    tenham dado importncia aos sentimentos no campo tico, nenhum deles foi to significativo

    nessa exposio como Schopenhauer. Nesse caso, em um primeiro momento analisaremos a

    crtica schopenhaueriana fundamentao da moral kantiana para entendermos melhor a sua

    fundamentao moral. A crtica moral kantiana acaba sendo uma crtica a todo sistema

    moral anterior ao dele, pois Schopenhauer, ao analisar a sua fundamentao moral, acaba

    mostrando os erros deixados pelas ticas anteriores, fossem elas de carter normativo, tal

    como as ticas religiosas, ou de modelos ticos voltados virtude, como bem pretendeu

    Aristteles e outros filsofos gregos.

    Veremos que Schopenhauer far duras crticas s morais baseadas na teologia,

    inclusive tica kantiana, pois o dever, para ele, uma forma de egosmo disfarado, e onde

    existe egosmo no h tica. Ele tambm criticar a tica das virtudes que pretendia ensinar o

    homem a agir bem, pois para ele no podemos ensinar algum a ser virtuoso. Nesse caso, a

    tica schopenhaueriana descritiva, no oferece uma doutrina do dever como pretende Kant,

    nem mesmo uma tentativa de melhorar as aes humanas, mas simplesmente descreve como

    se d s aes humanas no campo tico. Tal escolha pela tica kantiana tambm se deve por

    ela ser totalmente racional e sem nenhum elemento emprico, fundamentada apenas na razo

    pura, fato que torna a crtica racionalidade bem mais slida, sendo, portanto, o fundamento

    dessa investigao, como bem disse o filsofo Arthur Schopenhauer:

    Dedicarei somente mais nova tentativa de fundar a tica, a kantiana, uma

    investigao crtica e por certo bem detalhada. Em parte, porque a grande reforma

    moral de Kant deu a esta cincia uma fundamentao que tinha reais vantagens

    diante das anteriores e, que em parte, porque ainda a ltima mais significativa que

    aconteceu na tica. [...] Acrescenta-se a isso o fato de que o exame dessa tica dar-

    me- a ocasio para pesquisar e expor a maior parte dos conceitos ticos

    fundamentais, para que possa mais tarde, a partir da, pressupor o resultado. Mas, em

    especial, j que os contrrios se esclarecem, a crtica da fundamentao da moral

    kantiana a melhor preparao e orientao e mesmo o caminho direto para a

    minha, como sendo aquela que, nos pontos essenciais, ope-se diretamente de

    Kant. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 15)

    Acreditamos que o estudo da fundamentao da moral schopenhaueriana e sua crtica

    moral kantiana, que acaba abrangendo as morais anteriores s de Kant, no apenas uma anlise

    dos sistemas morais desses dois filsofos, mas uma maneira de encontrar respostas a questes que

    se encontram ainda hoje na sociedade em relao aos sistemas ticos. Dessa forma, nosso objetivo

    secundrio ter como base trs pontos especficos: primeiro, a crtica schopenhaueriana moral

    kantiana baseada na razo pura; segundo, saber se a compaixo realmente pode ser o fundamento de

    toda a moralidade ou pelo menos consider-la inevitavelmente necessria para a moralidade; e

  • 17

    terceiro, caso considerarmos a compaixo necessria para a moralidade, analisar se existe a

    possibilidade de conciliar razo e sensibilidade na estrutura das fundamentaes ticas. Dessa

    forma, ao discutirmos o conceito schopenhaueriano de compaixo e sua crtica a moral kantiana,

    nosso objetivo principal saber se possvel estabelecer um dilogo entre esses dois autores no que

    se refere fundamentao moral. Para tanto, escolhemos focar mais decisivamente o estudo desse

    trabalho nos livros4 Sobre o Fundamento da Moral (1840) e O Mundo como Vontade e

    Representao (1819).

    Porm, antes mesmo de adentrarmos na fundamentao moral do nosso autor e nas

    crticas que ele faz moral kantiana, de fundamental importncia realizar algumas

    consideraes de ordem histrica e existencial. Schopenhauer viveu em um momento de

    grandes mudanas ocorridas no sculo VXIII, entre guerras, revolues, sofrimentos, em meio

    supremacia da razo e a perda da religiosidade. Nascido na cidade porturia de Dantzig

    (hoje Gdansk, na Polnia), em 22 de fevereiro de 1788, Schopenhauer passou sua juventude

    em Hamburgo, Alemanha. Foi justamente na adolescncia que o jovem Schopenhauer, ao

    fazer uma viagem com a famlia pela Europa, viu a misria humana deixada pela guerra,

    impressionando-se com as cenas devastadoras que pde presenciar no caminho. O cenrio da

    misria humana, os vestgios deixados pela Revoluo Francesa, a priso de Bagno, em

    Toulon, na Frana, tudo isso lhe rendeu um dirio de bordo com anotaes que serviriam para

    sua base pessimista do mundo. Morreu em 1860 de parada cardaca e, conforme um

    testamenteiro chamado Wilhelm Gwinner, teria dito antes de morrer: Seria para mim uma

    beno chegar ao Nada Absoluto, mas infelizmente, a morte no me abre essa perspectiva.

    Contudo, seja como for, gozo ao menos de uma conscincia intelectualmente limpa.

    (SAFRANSKI, 2011, p. 646). Se todos acreditavam que com a razo poderia encontrar a paz,

    a liberdade, e com isso a felicidade, a viso de nosso autor era outra.

    Para ele o mundo dor e sofrimento. A dor e sofrimento fazem parte da essncia do

    mundo, sobre isso Schopenhauer diz:

    Os esforos infindveis para acabar com o sofrimento s conseguem a simples

    mudana de sua figura, que originalmente carncia, necessidade, preocupao com

    a conservao da vida. Se, o que muito difcil obtm-se sucesso ao reprimir a dor

    nessa figura, logo ela ressurge em cena, em milhares de outras formas (variando de

    acordo com a idade e as circunstncias) como impulso sexual, amor apaixonado,

    cime, inveja, dio, angstia, ambio, avareza, doena etc. Finalmente, caso no

    ache a entrada em nenhuma outra figura, assume a roupagem triste, cinza do fastio e

    do tdio, contra os quais todos os meios so tentados. Mesmo se em ltima instncia

    se consegue afugentar a estes, dificilmente isso acontecer sem que a dor assuma

    4 Outras obras, tanto de Schopenhauer, quanto de Kant, fazem parte desse trabalho, tendo algumas mais de uma

    verso, considerando as tradues diferenciadas.

  • 18

    uma das figuras anteriores, e assim a dana recomea do incio, pois entre a dor e o

    tdio, daqui para acol, atirada a vida do homem. (SCHOPENHAUER, 2005, p.

    405-406)

    O que nos resta uma alternncia entre a dor e o tdio, pois no momento em que a dor

    cessa, o tdio entre em cena como alternativa melindrosa, porm por pouco tempo, at que um novo

    desejo venha e com ele surja novas dores em um ciclo interminvel. Para o filsofo alemo esse

    no um mundo perfeito, mas sim, o pior dos mundos possveis, um mundo de maldade, de

    crueldade e de dor, o qual seria prefervel que jamais tivesse existido. Um mundo perfeito de alegria

    e felicidade uma utopia, uma iluso, um mundo que se apresenta na forma de um sonho pelas

    representaes que fazemos dele. Vivemos em um Vu de Maia5 em nossa viso fenomenolgica

    do mundo.

    Se desde os tempos da tica grega antiga, passando pela moderna, e at mesmo entrando na

    contempornea praxista voltada para as aes dos homens de modo poltico e pragmtico se tenta

    conciliar tica e felicidade, seja de maneira individual ou coletiva, temos em Schopenhauer uma

    nova viso. Temos de entender que tipo de felicidade essa que o homem busca alm do amor-de-

    si, que para nosso autor a causa do fracasso da tica. Para Schopenhauer, a Vontade metafisica

    do mundo que nos seus variados graus de objetivao faz com que essa busca para a felicidade seja

    uma mera iluso, alm de que sua representao acaba por destruir o verdadeiro fundamento da

    tica, pois ela acaba se objetivando no egosmo humano, que busca tudo para si e nada para os

    outros. O prprio Schopenhauer deixa isso claro em suas palavras:

    Eis por que cada um quer tudo para si, quer tudo possuir, ao menor dominar, e assim

    deseja aniquilar tudo aquilo que lhe ope resistncia. [...] Cada indivduo, que

    desaparece por completo e diminui ao nada em face do mundo sem limites, faz, no

    entanto de si mesmo o centro do universo, antepondo a prpria existncia e o bem-

    estar a tudo o mais, sim, do ponto de vista natural est preparado a sacrificar

    qualquer coisa, at mesmo a aniquilar o mundo, simplesmente para conservar mais

    um pouco o prprio si-mesmo, esta gota no meio do oceano. Eis a a mentalidade do

    EGOSMO, o qual essencial a cada coisa da natureza. (SCHOPENHAUER, 2005,

    p. 426-427)

    Se o mundo Representao e Vontade de acordo com Schopenhauer, temos ento

    que entender os dois lados da moeda para decifrar o enigma do mundo e com isso o

    5 A expresso Vu de Maia vem dos textos indianos dos hindus e tem como significado ocultar a realidade das

    coisas em sua essncia. Schopenhauer faz uso do termo para designar a forma representativa do mundo

    submetida ao princpio de razo, donde ele esclarece: Trata-se de MAIA, o vu da iluso, que envolve os olhos dos mortais, deixando-lhes ver um mundo do qual no se pode falar que nem que no , pois assemelha-se ao

    sonho, ou ao reflexo do sol sobre a areia tomado a distncia pelo andarilho como gua, ou ao pedao de corda no

    cho que ele toma como uma serpente. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 49).

  • 19

    fundamento da moral, pois somente entendo o mundo enquanto Vontade podemos entender a

    essncia de todas as coisas, e exatamente esse o ponto central de sua filosofia moral.

    Schopenhauer conserva o transcendentalismo kantiano de que o mundo fenmeno e coisa

    em si. Aquilo que Kant denominou como fenmeno, Schopenhauer chama de Representao,

    e a coisa em si ele chama de Vontade. Porm, Schopenhauer, diferente de Kant, no nega que

    podemos conhecer o Em si do mundo, o qual ele denominou de Vontade6, e exatamente isso

    que far toda a diferena. justamente conhecendo o mundo nos seus dois lados que

    podemos encontrar o verdadeiro sentido da tica. atravs de sua tica imanente que

    Schopenhauer chega concluso do princpio moral do mundo, ou seja, negao da

    Vontade, que culminar na compaixo.

    necessrio investigarmos como a negao da Vontade importante no sistema

    tico schopenhaueriano, pois a negao da Vontade que far com que o fenmeno da

    compaixo possa ser o nico digno de valor tico. A compaixo a base de toda virtude

    genuna, nica fonte do altrusmo, a qual nos faz perceber que o eu e o outro so uma e

    mesma essncia (2001, p. 219). ela que aniquilar a principal fonte antimoral existente no

    mundo, o egosmo, e que far com que o amor possa ser a chama nos coraes humanos.

    Mas como dito acima, antes teremos de percorrer o caminho que nosso filsofo

    trilhou em sua longa jornada at fundamentar a compaixo como a verdadeira fonte da

    moralidade. Para isso veremos toda a sua crtica filosofia moral de Kant. Observaremos que

    nosso autor far duras crticas ao Imperativo Categrico kantiano e s formas derivadas do

    princpio mximo de sua tica, de que a moral deva ser uma lei, um dever, a qual s pode ser

    alcanada, a priori, pelo ser humano, somente pela razo pura, razo essa que se torna prtica,

    algo totalmente sem critrio e justificativa para nosso autor. Para ele isso um absurdo, um

    erro dentro da moral em Kant, pois no h condies de buscar tais fundamentos morais,

    somente a priori, sem que seja necessrio trazer elementos empricos encontrados na

    experincia humana.

    Sendo a compaixo a verdadeira fonte da moralidade, veremos que Schopenhauer

    far duras crticas a Kant. Para ele alm de Kant deixar seu sistema moral flutuando no ar,

    pois alm de eliminar a experincia em sua fundamentao, ele ainda comete outro grande

    erro, que o de deixar de mencionar o lado sensvel do ser humano em sua fundamentao

    moral. Segundo Kant (2008, p. 33), a Lei Moral o motivo para que possamos agir

    moralmente, sendo assim, todo ser racional deveria, para agir moralmente, seguir apenas o

    6 A vontade no cognoscvel sob a forma objetiva como o fenmeno.

  • 20

    critrio do dever Lei moral. Assim sendo, de acordo com Schopenhauer, a indiferena e a

    insensibilidade ganham fora na fundamentao moral de Kant. No existe amor, compaixo

    ou qualquer outro sentimento que faa com que o homem se sinta emocionado frente dor e

    ao sofrimento de outrem. A indiferena, no dever kantiano, chega a um ponto em que se

    mostrado um profundo desprezo pelos animais, pois o homem no teria obrigao alguma

    para com os seres de outra espcie, a no ser para consigo mesmo o prprio humano,

    fazendo com que o nico ser que tenha dignidade seja o homem, frente a toda a natureza. De

    acordo com Schopenhauer, tal atitude encontrada na teologia bblica, constatao que torna

    a moral kantiana uma filosofia teolgica disfarada.

    exatamente o lado da Representao que impede que vejamos o outro lado, o lado da

    coisa-em-si (Vontade), que torna todos os seres uma nica e mesma coisa, mesma essncia, e com

    isso se tenha parte da sensibilidade e sofrimento do outro. Veremos que, apesar de Schopenhauer

    propor solucionar o problema da tica de modo emprico, baseado nas experincias humanas, ele

    precisou ir alm da experincia e props uma explicao metafisica para decifrar o enigma do

    mundo que acabaria em seu sistema tico. Porm, como a prpria Vontade pertence ao mundo, no

    tratamos aqui de uma metafisica transcendente, mas de uma metafisica imanente, como afirma

    Maria Lcia Cacciola (1994, p. 172): essa metafsica teria que ser imanente e a Vontade jamais

    poderia ser considerada como causa transcendente do mundo.

    A moral em Schopenhauer no vem pelo conhecimento abstrato, pela razo, mas pelo

    conhecimento intuitivo que reconhece no outro a mesma essncia que a sua. Esse um aspecto

    importantssimo na filosofia moral do filsofo em questo, pois no somente a humanidade se

    beneficia com sua fundamentao tica, mas tambm os animais e toda a natureza. O prprio

    Schopenhauer afirma que quem no tem compaixo pelos animais certamente no tem bondade de

    carter:

    A compaixo para com os animais liga-se to estreitamente com a bondade do

    carter que se pode afirmar, confiantemente, que quem cruel com os animais no

    pode ser uma boa pessoa. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 179)

    Dessa forma, imprescindvel tambm no nosso estudo vermos o lado da negao da

    Vontade em Schopenhauer, pois somente com a negao da Vontade que o fenmeno da

    compaixo se torna a verdadeira fonte da moral. Somente a compaixo capaz de banir o egosmo e

    a maldade que so as principais motivaes antimorais, segundo nosso autor. Veremos que para

    Schopenhauer, Kant no conseguiu se livrar da eudaimonia e do egosmo humano pelo Imperativo

    Categrico, mas apenas us-lo como disfarce em sua tica.

  • 21

    Acreditamos que ao analisarmos a crtica feita por Schopenhauer moral kantiana, de uma

    tica baseada em uma lei, em um Imperativo no qual devemos seguir como nico critrio pelo qual

    poderamos agir moralmente, e ainda, que essa Lei, esse Imperativo, no contenha nenhum

    elemento emprico para comprov-lo, como tambm que sua tica ainda permaneceria atrelada ao

    eudaimonismo e teologia, com base puramente racional, nada mais seria que um engano, uma

    mera iluso, pois a razo sempre esteve a servio da Vontade. Com base nessas crticas e fazendo

    um exame da fundamentao moral de nosso autor, que diz que no cabe razo fundamentar a

    moral, mas sim ao sentimento da compaixo, esperamos que essa anlise possa servir de critrio

    para que seja possvel examinar essa dicotomia entre razo e sensibilidade e permitindo-nos analisar

    com mais capacidade qual mesmo o real sentido dos sentimentos nos sistemas ticos. Assim,

    tendo em vista que tal anlise possa trazer benefcios ao campo moral, entendemos que a moral

    schopenhaueriana pode complementar a fundamentao moral kantiana.

  • 22

    1. A CRTICA DE SCHOPENHAUER MORAL KANTIANA

    Quando a paixo nos domina esquecemos o dever.

    Blaise Pascal

    Para chegarmos fundamentao da moral proposta por nosso autor, anteriormente

    devemos seguir os caminhos que ele percorreu em sua busca para o verdadeiro fundamento da

    moral. Basicamente, antes de sua conceitualizao moral, Schopenhauer criticou de forma

    mais dura o livro Fundamentao da Metafisica dos Costumes (1991), no qual Kant

    estabelece seu sistema moral detalhado e sistematizado. Para tanto, usaremos como critrio de

    anlise principal o seu ensaio Sobre o fundamento da moral (2001), em que o autor responde

    questo da moral, em um concurso promovido pela Sociedade Real Dinamarquesa de

    Cincias de Copenhague, em 1840. Tal questo aos olhos de Schopenhauer parecia confusa e,

    alm do mais, apresentada de uma de maneira muito complexa, pois exigia, segunde ele, um

    procedimento completamente analtico. Eis a questo juntamente com a introduo proposta

    pela Sociedade Real:

    Tendo em vista que a ideia originria da moralidade ou de seu conceito principal da

    lei moral suprema surge como uma necessidade que lhe prpria, embora no seja

    de modo alguma lgica, no s na cincia que tem por objetivo expor o

    conhecimento do tico, mas tambm na vida real, na qual ela se apresenta em parte

    no juzo da conscincia sobre nossas prprias aes, em parte em nossos juzos

    morais, sobre o comportamento dos outros, e tendo em vista, alm disso, que vrios

    conceitos morais principais, nascidos daquela ideia e dela inseparveis, como, por

    exemplo, o conceito de dever e o da imputabilidade, fazem-se valer com a mesma

    necessidade e no mesmo mbito e, ainda, que nos caminhos que segue a pesquisa filosfica de nosso tempo parece muito importante investigar de novo este objeto quer a Sociedade que se reflita e se trate cuidadosamente da seguinte questo: A

    fonte e o fundamento da filosofia moral devem ser buscados numa ideia de oralidade

    contida na conscincia imediata e em outras noes fundamentais que dela derivam

    ou em outro princpio do conhecimento? (SCHOPENHAUER, 2001, p. 4).

    Tal complexidade se daria pela forma como a questo foi proposta, gerando assim

    duas grandes dificuldades: a primeira diz respeito resposta questo, que deve ser de carter

    objetivo, ou seja, sem remeter a hipteses metafsicas ou mticas de carter sinttico; j a

    segunda surge quando se observa que a pesquisa terica do fundamento da moral pode

    submeter-se desvantagem de ser tomada no prprio minar do fundamento. Sobre essas duas

    premissas Schopenhauer nos esclarece que sua investigao ter que ser de carter analtico,

  • 23

    como dito antes, o que exige um exerccio rduo, como tambm no poder ultrapassar os

    limites propostos da questo7, vejamos:

    A partir de uma metafsica dada e admitida como verdadeira atingir-se-ia o

    fundamento da tica pelo caminho sinttico; assim, este seria construdo a partir de

    baixo, e, consequentemente, a tica apresentar-se-ia apoiada firmemente. Em

    contrapartida, com a separao, posta nesta tarefa como necessria, entre a tica e a

    metafsica, nada mais resta seno o procedimento analtico, que parte dos fatos, quer

    da experincia externa, quer da conscincia. Estes ltimos podem, com efeito,

    reconduzir ltima raiz na mente do ser humano, a qual tem de se afirmar como fato

    fundamental, como fenmeno originrio, sem que este fato seja a seguir reconduzido

    a qualquer outra coisa. Com isso toda explicao permanece meramente psicolgica.

    Pode-se, no mximo, indicar apenas de modo acessrio sua ligao com alguma

    viso metafsica fundamental e geral. Do contrrio, aquele fato fundamental, aquele

    fenmeno tico originrio poderia ser de novo fundamentado, ao passo que,

    tratando-se antes de metafsica, seria possvel, partindo dele e procedendo

    sinteticamente, derivar a tica. Isto significaria, porm, estabelecer um sistema

    completo de filosofia, o que levaria a ultrapassar demais os limites da questo

    proposta. Sou portanto obrigado a responder questo dentro dos limites que ela

    mesma traou ao se isolar. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 8-9)

    De posse da questo e das dificuldades8 por ela abordada, Schopenhauer diz que sua

    misso ser rdua, porm ficar distante da insuficincia das morais anteriores. A moral dos

    homens, no que se refere ao comportamento humano em sua grande maioria, no tem

    motivaes morais verdadeiras, mas refere-se apenas ao egosmo do agente. Ser necessrio,

    assim, uma investigao precisa acerca da moralidade, que busque ao mesmo tempo subtrair

    as arbitrariedades dos fundamentos ticos anteriores, como tambm banir de uma vez por

    todas o egosmo dos sistemas morais.

    Para comear, Schopenhauer critica as morais anteriores por estarem fundadas na

    teologia ou felicidade (quando tratamos de moral eudaimnica ou da felicidade, aqui, estamos

    nos referindo crtica que nosso autor faz tica estoica e dos cnicos), a qual houve pouca

    exceo entre os filsofos antigos para exclu-las. As morais fundadas na teologia pareciam

    estar de acordo com a vontade de Deus, porm, careciam de explicaes racionais e eram

    fundamentadas em sofismas que levavam a contradies, pois deixavam lugar para a dvida.

    7 Veremos adiante que Schopenhauer no permanece to fiel proposta da Sociedade Real, pois no ltimo

    captulo da obra citada, revela o carter metafsico de sua fundamentao moral. notrio que o filsofo d

    preferncia ao carter metafisico, pois est de acordo com sua teoria da Negao da Vontade j exposta em O

    mundo como Vontade e Representao. 8 A dificuldade se deu porque a imposio do mtodo analtico no agradou Schopenhauer, pois com a separao

    entre tica e metafisica exigida pela Sociedade Real Dinamarquesa, no haveria outra escolha a no ser o

    procedimento analtico, ou seja, partir das consequncias razo e no da razo s consequncias, ou de outro

    modo, partiria dos fatos, quer da experincia externa, quer da conscincia.

  • 24

    Eram tambm tidas como prmio mediante recompensa para quem pudesse segui-las, caso

    contrrio, estaria sobre a ameaa de castigo. Mas onde se funda essa moral apoiada na

    recompensa ou castigo? Essa era a grande questo de Schopenhauer, uma vez que, pela moral

    teolgica de benefcios ou punies ela no se daria de modo espontneo, mas sim fundada no

    prprio egosmo.

    A outra crtica refere-se s morais fundamentadas no prprio bem estar, ou seja, na

    felicidade. Schopenhauer no v a possibilidade de uma fundamentao tica fundada no

    Eudemonismo9 como meio para atingir a felicidade, uma vez que a prpria felicidade no

    passa de uma iluso temporria10

    , j que nenhuma felicidade pode durar eternamente, mas tem

    em si um tempo indeterminado e com motivos diversos promovidos pelo pensamento

    abstrato. Alm disso, ele refere-se falha de querer tornar a felicidade idntica virtude, e

    conclui que:

    [...] sempre que a vontade do ser humano apenas se dirige a seu prprio bem estar,

    cuja soma pensada sob o conceito de felicidade, e a tendncia para alcan-la

    conduz a um caminho diverso daquele que a moral poderia indicar-lhe. Tentou-se,

    ento, demonstrar a felicidade sendo idntica virtude, quer como uma

    consequncia e um efeito dela. Em todos os tempos ambas as tentativas falharam,

    embora no se tenham para isto poupado sofismas. Tentou-se depois, a partir de

    princpios objetivos e abstratos, encontrados quer a posteriori quer a priori, deduzir a ao eticamente boa, mas estes princpios levaram a um ponto de apoio na

    natureza humana em virtude do qual eles teriam a fora de dirigir sem esforo contra

    sua tendncia egosta. Corroborar tudo isso por meio da enumerao e da crtica dos

    fundamentos da moral at nossos dias parece-me suprfluo. (SCHOPENHAUER,

    2001, p. 13)

    Essa busca pela felicidade para Schopenhauer egosta e visa o bem estar particular.

    Alm disso, uma moral fundamentada em tal situao estaria sob a tutela de uma vantagem,

    mesmo que fosse o da felicidade prpria11

    , estando em desacordo com a verdadeira fonte

    moral que livre de qualquer benefcio. O egosmo, por ser produto das motivaes de nosso

    intelecto, acaba afirmando a Vontade metafisica do mundo, que a fonte de toda dor,

    sofrimento e egosmo. A busca pela felicidade no querer ter dor e sofrimento, porm,

    necessrio perceber que a privao e o sofrimento no se originam de imediata e

    necessariamente de no-ter, mas antes de querer ter e no ter. (SCHOPENHAUER, 2005,

    9 Doutrina filosfica que tem como base a busca pela felicidade. A felicidade seria o propsito do ser humano, a

    qual a razo o principal mecanismo para encontr-la. 10

    Em O Mundo 16 Schopenhauer detalha essa questo da finitude da felicidade em contraposio a dor e ao

    sofrimento, alm de fazer duras crticas a moral eudemnica vindo dos estoicos, cnicos e epicuristas. 11

    Para Schopenhauer, o sofrimento uma condio para a verdadeira ao moral. Sem o sofrimento seria

    impossvel a compaixo, que a fonte da moralidade.

  • 25

    p.143). Sendo assim, tal sofrimento promovido pela Vontade no cessa, uma vez que o querer

    vindo dela tambm no. Veremos adiante que a aceitao da dor e do sofrimento far parte da

    tica schopenhaueriana.

    Na viso de Schopenhauer preciso excluir de vez o grande erro das teorias ticas

    anteriores, ou seja, de fundamentaes ticas que tinham suporte na teologia e tambm na

    felicidade (tendo por si a mscara do egosmo). O filsofo de Dantzig d mritos a Kant por

    tentar banir a tica Eudaimnica e dogmtica teolgica em sua fundamentao moral. Esse

    um ponto importante na filosofia schopenhaueriana, pois justamente a partir de Kant ter

    feito a ciso entre a teologia especulativa e filosofia que a tica ganha um novo aspecto.

    Segundo Schopenhauer, no seria necessrio voltar at as fundamentaes ticas anteriores

    para fundamentar a sua, pois o passo que Kant deu j tinha sido decisivo para demonstrar todo

    o fracasso que elas representavam. Seria preciso apenas uma investigao crtica da tica

    kantiana para chegar a um ponto decisivo no que seria a sua fundamentao tica. Mas

    Schopenhauer no pretendia apenas elogiar seu mestre em sua crtica, antes apontar as falhas

    que Kant deixou e corrigi-las (que para ele ainda continha vestgios dogmticos), para depois

    construir sua prpria fundamentao tica. O prprio Schopenhauer afirma isso:

    Acrescenta-se a isso o fato de que o exame dessa tica dar-me a ocasio para expor a

    maior parte dos conceitos ticos fundamentais, para que possa, mais tarde, a partir

    da, pressupor o resultado. Mas, em especial, j que os contrrios se esclarecem, a

    crtica da fundamentao da moral kantiana a melhor preparao e orientao e

    mesmo o caminho direto para a minha, como sendo aquela que, nos pontos

    essenciais, ope-se diretamente de Kant. [...]

    Acima de tudo chegado o tempo de dar ouvidos tica. H mais de meio sculo

    ela repousa no confortvel encosto que Kant ajeitou sob ela: no imperativo

    categrico da razo prtica. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 15-16)

    evidente que o propsito de Schopenhauer fazer uma reformulao tica a partir

    da fundamentao da moral kantiana, mas para isso necessrio tirar os erros, ou a imagem

    desfocada da moral que Kant deixou com seu Imperativo categrico.

  • 26

    1.1. Sobre a fundao e a crtica forma imperativa da moral kantiana

    Para o filsofo de Dantzig, a tica deontolgica de Kant dependente de aes

    praticadas unicamente por dever, tendo como critrio uma norma geral de natureza puramente

    racional, que atua sobre as inclinaes sensveis do agente, fazendo com que ele aja apenas

    pela lei moral, ou Imperativo Categrico. justamente nesse ponto que Schopenhauer

    observa um erro brutal.

    Na verdade, para ele, um dos erros principais da tica kantiana, juntamente com seu

    Imperativo, ter apenas tirado o eudemonismo de modo aparente, pois ainda restavam

    vnculos agregados entre a virtude e a felicidade no disfarce do Soberano Bem kantiano. A

    crtica schopenhaueriana recai principalmente sobre uma fundamentao moral,

    fundamentao essa em que existe uma lei que serve como regra de conduta, mas na qual no

    h nenhum elemento emprico para demonstrar. Se por um lado a fundamentao da moral

    kantiana repousa na razo pura, Schopenhauer pega o caminho inverso, ou seja, o caminho

    emprico para fundamentar a sua moral. Para ele a razo pura no pode fundamentar a moral

    sem o caminho emprico. Falaremos adiante do sistema schopenhaueriano da Vontade como

    efetivao principal de sua tica, a qual a razo tem apenas um carter secundrio.

    importante lembrar que na Fundamentao da Metafsica dos Costumes, Kant

    admite que o ser humano no apenas razo, mas tambm sensibilidade. exatamente por

    causa da sensibilidade (desejos e inclinaes) que o ser humano age em conduta contrria

    moralidade. Sendo assim, necessrio uma lei, um dever, que possa guiar o ser racional

    verdadeira atividade tica. importante lembrar, ainda, que o prprio Kant, em sua

    fundamentao moral, anseia por banir qualquer inclinao humana, mesmo que seja a

    felicidade prpria como meio para atingir a moral, a no ser uma boa vontade, que boa em

    si mesma, e que serviria como critrio para o ser racional ter uma conduta moral, vejamos:

    Neste mundo, e at tambm fora dele, nada possvel pensar que possa ser

    considerado como bom sem limitao a no ser uma s coisa: uma boa vontade.

    Discernimento, argcia de esprito, capacidade de julgar e como quer que possam

    chamar-se os demais talentos do esprito, ou ainda coragem, deciso, constncia de

    propsito, como qualidades do temperamento, so sem dvida a muitos respeitos

    coisas boas e desejveis; mas tambm podem tornar-se extremamente ms e

    prejudiciais se a vontade, que haja de fazer uso destes dons naturais e cuja

    constituio particular por isso se chama carcter, no for boa. O mesmo acontece

    com os dons da fortuna. Poder, riqueza, honra, mesmo a sade, e todo o bem-estar e

    contentamento com a sua sorte, sob // o nome de felicidade, do nimo que muitas

    vezes por isso mesmo desanda em soberba, se no existir tambm a boa vontade que

    corrija a sua influncia sobre a alma e juntamente todo o princpio de agir e lhe d

    utilidade geral; isto sem mencionar o fato de que um espectador razovel e imparcial

    em face da prosperidade ininterrupta duma pessoa a quem no adorna nenhum trao

  • 27

    duma pura e boa vontade, nunca poder sentir satisfao, e assim a boa vontade

    parece constituir a condio indispensvel do prprio facto de sermos dignos da

    felicidade. (KANT, 1984, p. 109)

    Embora Kant rejeite qualquer forma de fundamentao moral baseada na felicidade

    como resultado ltimo, e assim tentar banir qualquer interesse, tendo apenas o dever, a lei

    moral como conduta da ao sobre a tutela da Boa Vontade, Schopenhauer v isso de modo

    apenas implcito e questiona como pode ser possvel uma lei que exista na mente humana sem

    a necessidade de nenhum elemento emprico para coloc-la l. Schopenhauer critica

    duramente Kant por fazer uma tica flutuando no ar, sem poder se agarrar a nada emprico,

    concreto, mas baseada em conceitos abstratos que tem por base apenas a razo entre a

    perspiccia de dons combinatrios para uma aparncia slida12. Segundo Schopenhauer13,

    Kant, quando escreveu a Crtica da Razo Prtica (1788), j estava abalado pela idade e,

    assim, deturpou tanto sua obra prima na segunda edio, Crtica da Razo pura (1787),

    quanto mostrou na verdade sua real inteno ao escrever sua fundamentao moral, ou seja, a

    teologia moral que ele sempre quis.

    A tica schopenhaueriana uma tica imanente, isto , no parte de conceitos

    transcendentais, mas antes apoiada no prprio mundo, e em ltima instncia em nosso

    prprio corpo, na qual corpo e mente formam uma unidade, como tambm Vontade e

    Representao, o que sugere uma concepo monista da Vontade14

    . Assim, a moral de nosso

    autor se funda no prprio mundo. Essa a crtica que ele faz a respeito de uma tica teolgica

    pretendida em Kant crtica bastante perspicaz e audaciosa pois remete a entender que a

    moral teolgica j presume, segundo Schopenhauer, um interesse de quem a faz baseada em

    uma recompensa, em ltima instncia, uma tentativa de fugir do castigo divino. com base

    no egosmo humano que a moral teolgica aceita, no sendo um ato moral genuno, mas

    parte do interesse pessoal que busca recompensas divinas em prol de sua conduta. Para ele, o

    dever em forma de lei a apenas uma nova ortografia do Declogo Mosaico. Para nosso

    autor, ainda, o mundo no tem outro tribunal que no seja o prprio mundo e, nessa condio,

    12

    SCHOPENHAUER. op. cit. 2001. p. 20. 13

    Idem. p. 21-22. 14

    Embora adotemos essa concepo monista por entender que exista uma unidade pertencente ao corpo e mente no que se refere a tica schopenhaueriana, alguns comentadores, como no caso da Maria Lcia Cacciola (1994,

    p. 25-26) nos esclarece que no podemos correr o risco de entender a vontade como absoluto. A Vontade deve

    ser compreendida como um organismo no qual todas as partes contm o todo, do mesmo modo como so contidas por ele. Segue-se ento um jogo de pontos de vista entre Vontade e Representao, na sua alternncia, assim, o mundo ora Vontade, ora Representao.

  • 28

    inaceitvel para a filosofia ateia schopenhaueriana a esperana de uma moral da felicidade

    eterna vinda de um deus qualquer.

    Segundo Maria Lcia Cacciola (1994, p. 139-140) a responsabilidade da ordem

    moral do mundo era o tesmo, mas com o amadurecimento da humanidade ela havia perdido

    seu estatuto de fundamento da moral, tendo como persistncia apenas pressupostos ocultos

    das filosofias morais. Ela nos esclarece que, para Schopenhauer, o pantesmo d um passo a

    mais que o tesmo quando mostra que a natureza traz em si a mesma a fora atravs da qual

    ela surge (CACCIOLA, 1994, p. 140). Porm, Schopenhauer tambm critica o pantesmo por

    transformar o mundo em uma teofania a qual no h explicao para o mal e o sofrimento do

    mundo. Ora, para nosso filsofo, a ordem moral do mundo se encontra na Vontade metafsica,

    que traz em si as dores e sofrimento do mundo. No a esperana, a recompensa ou a

    Representao racional que trata a ordem moral do mundo, mas uma ordem cega da Vontade,

    tendo o mundo como seu espelho.

    A crtica schopenhaueriana continua de forma mais incisiva quando se trata da

    prpria forma do Imperativo Categrico. Vejamos o Imperativo Categrico kantiano: Age

    apenas segundo uma mxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei

    universal (KANT, 1984, p. 129). Segundo Schopenhauer, o primeiro passo em falso de Kant

    foi cometer uma petio de princpio15

    decisiva, quando estabelece uma lei baseada em coisas

    que podem acontecer, mesmo que nunca acontea.

    Em contraposio tanto a filosofia natural como a filosofia moral podem cada uma

    ter sua parte emprica, porque aquela tem que determinar as leis da natureza como

    objetos da experincia, esta, porm, as da vontade do homem enquanto ela afetada

    pela natureza, quer dizer, as primeiras como as leis segundo as quais tudo acontece,

    as segundas como leis segundo tudo deve acontecer, mas ponderando tambm as

    condies sob as quais muitas vezes no acontece o que devia acontecer. (KANT,

    15

    Para Schopenhauer, Kant teria includo no seu argumento uma premissa que j est apresentada na prpria concluso, isto , de que o resultado do argumento foi de modo oculto introduzido, de maneira que a concluso

    no segue das premissas, da a petio de princpio, supor em sua fundamentao moral no o que acontece, mas

    de leis morais, prescries, do que devem acontecer. importante ressaltar a diferena que existe no pensamento

    desses dois pensadores. Schopenhauer, ao escolher o caminho emprico para a tica como nico aceitvel, nega

    que por meio de prescries e deveres possamos transformar os homens em moralmente bons, pois no temos

    liberdade individual. Apesar de Kant tambm chegar concluso que a causalidade natural no permitiria

    liberdade ao sujeito moral, Kant admite outro tipo de liberdade: a liberdade transcendental ou causalidade por

    liberdade, essa tendo carter inteligvel e sendo condio necessria da liberdade moral. Tambm importante

    apresentar, sobre a justificativa de Schopenhauer, que ao que parece, em Kant, o papel da filosofia seria

    esclarecer a razo comum e no ensinar. No o caso de Kant querer prescrever ou ensinar humanidade a ser

    moral, mas esclarecer de que por termos liberdade podemos instaurar normas e fins ticos e assim prevenir o mal

    e a corrupo. Desse modo, o dever moral a prpria expresso da lei moral em ns, que por nossa capacidade

    autolegisladora da razo podemos universalizar mximas que sirvam como princpios morais. O prprio Kant

    (1984. p. 112) deixa isso claro quando diz: no bom senso natural e que mais precisa ser esclarecido do que ensinado.

  • 29

    1984, p.103) o resultado da argumentao de modo oculto introduzido e,

    consequentemente, a concluso no segue das premissas sem esse subterfgio

    A parte emprica para Kant no se destina moral, pois a filosofia pura metafsica,

    j que ele parte de pressupostos metafsicos, donde teremos uma metafsica da natureza e

    outra dos costumes. A parte emprica de domnio da fsica, enquanto a tica estaria dividida

    em antropologia prtica (a parte emprica que no poderia fundamentar a moral) e a parte

    racional que seria a moral propriamente dita. exatamente essa lei moral baseada apenas na

    razo como um dever que Schopenhauer questiona, pois: quem nos diz que h leis s quais

    nossas aes devem submeter-se? Quem vos diz que deve acontecer o que nunca acontece? O

    que vos d o direito de antecip-lo e logo impor uma tica na forma legislativo-imperativa

    como nica possvel? (2001, p. 23). Para Schopenhauer, Kant no deixou claro as

    explicaes e esclarecimentos em que hajam realmente leis morais puras, faltou a ele uma

    investigao mais precisa antes de fundament-la. O prprio conceito de lei basicamente

    atribudo lei civil sobre o arbtrio humano. Quando tal conceito aplicado na natureza

    quase sempre uma metfora figurativa de nossas prprias leis e, ainda que reste uma pequena

    parte dessas leis da natureza a priori (como, por exemplo, espao e tempo16

    ), Kant no

    poderia t-la isolado de modo sagaz como uma Metafsica da Natureza, pois, como o homem

    pertence natureza, por certo, apenas uma lei lhe inviolvel e irrevogvel, que a lei da

    causalidade como motivao, e essa no tem em si uma necessidade na vontade humana17

    ,

    mas antes se fundamenta o princpio de razo suficiente. As leis da causalidade so motivadas

    por causa e efeito, logo uma lei moral que no se estabelece nesses critrios inadmissvel, e

    as leis morais regulamentadas por instituies, estatal ou religiosa, no podem ser usadas no

    campo moral sem que sejam admitidas as provas existentes.

    Admitir que existam leis morais puras e de necessidade absoluta , segundo

    Schopenhauer, uma petio de princpio, pois no existe provas suficientes para admiti-las,

    coisa essa que Kant no conseguiu provar em toda sua obra. Segundo nosso autor, uma tica

    dos conceitos de lei, prescrio, dever (SCHOPENHAUER, 2001, p. 25), se encontra

    somente no Declogo Mosaico, uma forma de disfarar sua teologia filosfica ou, dito de

    outra maneira, uma moral filosfica teolgica de prescries de deveres. O dever da moral

    16

    Kant considerava espao, tempo (formas de intuio sensvel) e causalidade leis da natureza, no necessariamente como sendo propriedade da prpria natureza, mas a capacidade cognitiva do homem. Elas

    seriam anteriores a natureza e, portanto, condies para o transcendental. Para Schopenhauer apenas a

    causalidade uma lei da natureza. 17

    Veremos adiante que, para Schopenhauer, a vontade humana no livre, pois pertence antes Vontade

    metafsica do mundo.

  • 30

    kantiana se funda exatamente como a do Declogo mosaico de ameaa de castigo ou

    recompensa, a qual Kant entra com sua teologia pela moral filosfica sem ser percebido.

    Tambm o conceito de dever foi colocado por Kant de modo indubitvel e existente

    sem provas exatas. No entanto, ele est associado aos conceitos de lei e mandamento, que tm

    por base tambm a moral teolgica de recompensa e castigo, sendo, portanto, uma

    contradio em si mesma pois, nesse caso, no seria plausvel falar de dever absoluto e

    obrigao incondicionada. Nesse sentido

    Cada dever tambm necessariamente condicionado pelo castigo ou pela

    recompensa e assim para falar a linguagem de Kant, essencial e inevitavelmente

    hipottico e jamais, como ele afirmou, categrico. (SCHOPENHAUER, 2001, p.

    26- 27)

    A contradio, assim, se encontra justamente porque seria impossvel pensar em

    dever ou em uma voz de comando, de fora ou de dentro, que no fosse ela prometendo ou

    ameaando. Porm, a obedincia a tal voz que se encontrasse em ns se daria sempre em

    benefcio prprio e jamais seria de valor moral genuno. Nessa questo o prprio dever

    kantiano segue no caminho contrrio do que ele mesmo props, que seria uma tica sem

    condies, pois o prprio traz um interesse, algo que sustenta o egosmo, que no totalmente

    desinteressado, mas que h interesse por trs, um benefcio que visa um fim ltimo que o

    prprio bem estar e a felicidade prpria, pois ningum faria por dever algo sem que fosse por

    medo ou recompensa, e em ambos os casos buscamos o melhor para ns, procuramos nossa

    prpria felicidade. Assim, Schopenhauer v vrias contradies na tica kantiana e interpreta

    que o Imperativo Categrico carrega consigo implicitamente o princpio de reciprocidade e,

    portanto, fundamenta-se no egosmo.

    Schopenhauer parece querer negar a condio que o prprio Kant tentou recusar em

    sua obra em relao felicidade, pois embora o prprio Kant usasse da Boa Vontade como

    condio digna de chegar felicidade, mesmo admitindo que no h garantias para sermos

    felizes, podemos pensar que Schopenhauer no visse em Kant a felicidade como um dever

    indireto18

    , como ele afirmava, mas como dever direto oculto, mesmo que sua crtica, em

    ltima instncia, seja contra a reciprocidade implcita ao Imperativo. Kant, em sua

    Fundamentao da Metafsica dos Costumes, diz que:

    18

    Todavia, bom frisar que em Kant o interesse sensvel colabora para o agir conforme o dever, porm no pode

    servir como mbil do agir moral.

  • 31

    [...] assegurar cada qual a sua prpria felicidade um dever (pelo menos

    indiretamente); pois a ausncia de contentamento com o seu prprio estado num

    torvelinho de muitos cuidados e no meio de necessidades insatisfeitas poderia

    facilmente tornar-se numa grande tentao para transgresso dos deveres. (1984, p.

    113)

    Desse modo, para Schopenhauer o que se encontra por detrs dos deveres kantianos

    nada mais que uma forma de eudemonismo disfarado sob o amparo do Imperativo

    Categrico. Schopenhauer diz que esse conceito de dever incondicionado se mostra

    contraditrio quando Kant escreve a Crtica da Razo prtica, que a seus olhos acabou de

    destruir toda sua luz da Crtica da Razo Pura em sua primeira edio. O dever no seria

    obrigatrio, como Kant menciona, mas antes relativo por estar vinculado por ameaa de

    castigo ou recompensa. A mscara triunfal de Kant recai sobre o postulado do Soberano Bem,

    que nada mais que a juno da virtude com a felicidade, e de maneira mais concreta ele

    estaria fazendo uma tica eudemnica disfarada. Segundo nosso autor, se Kant conseguiu

    expulsar a eudemonia pela porta de entrada em sua fundamentao moral, ela entra pela porta

    dos fundos sorrateira e melindrosa pelo nome de Soberano Bem. Na viso schopenhaueriana

    necessrio banir qualquer sistema moral que tenha como base o eudemonismo, e segundo

    Schopenhauer, Kant apenas o ocultou de seu sistema moral, pois o dever incondicionado no

    seria um conceito tico fundamental, j que visa antes de tudo uma promessa de recompensa

    ou a ameaa de castigo, isto , uma ao egosta sem valor moral autntico.

    Para Arthur Schopenhauer, todo deve como todo dever est ligado a uma condio.

    H apenas uma pequena diferena entre ambos, a saber, o deve pode repousar sobre a mera

    coero, j o dever pressupe um compromisso na aceitao do dever. O dever est

    relacionado a um direito, j que ningum o aceita de bom grado, mas justamente por haver

    algo em troca. O dever s faz sentido se ele estiver ligado a uma ameaa de castigo ou por

    promover recompensa. No caso do escravo, por exemplo, no seria obviamente a aceitao

    do dever, j que o mesmo no tem direitos. O dever do escravo repousa antes em uma

    coero. De acordo Cacciola (1994, p. 153) a autonomia tambm se torna incompatvel nesse

    sistema moral de prescrio de dever, pois:

    A obrigao e o dever tm como pressupostos a dependncia do homem de uma

    outra Vontade que ordena e promete recompensas e ameaa com castigos. A moral

    do dever nada mais do que a moral de escravos. Assim, o homem que se submete ao dever s aparentemente autnomo, pois sua vontade , afinal, escrava

    da Vontade de um outro, o Deus.

  • 32

    Desse modo, a forma imperativa do tu deves kantiano no tem nenhum valor moral

    genuno, antes est atrelada a moral teolgica do declogo. Kant teria apenas tomado

    emprestado da moral teolgica a forma imperativa para construir sua fundamentao moral

    sobre os postulados da Razo Prtica. Schopenhauer ironicamente compara Kant a um mgico

    que, por vezes, tira o coelho da cartola onde ele mesmo o havia colocado:

    No tenciono fazer comparao irnica, mas na forma a questo apresenta analogia

    com o espanto que nos propicia um mgico, j que ele nos faz encontrar algo onde

    ele antes sabiamente o escondera. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 29-30)

    Kant apenas inverteu o modo como as doutrinas ticas at ento eram construdas e

    virou a coisa de ponta-cabeas, de modo que nem mesmo ele ao certo reconheceu como

    sendo uma moral teolgica. A moral sem Deus kantiana repousa no Imperativo Categrico

    como um deus parte, que surge na medida em que realmente reconhecemos a verdadeira

    inteno e condio do tu deves e teu dever.

  • 33

    1.2. A crtica de Schopenhauer aos deveres em relao a ns prprios

    O dever kantiano no fica apenas no que se refere a ns para com os outros, mas

    tambm a ns mesmos, o que acaba por suscitar vrias crticas de Schopenhauer. A crtica em

    relao aos deveres sobre ns prprios sucede exatamente sem rodeios, tal qual como foi feita

    para com o dever do tu deves de forma geral. Dito de outro modo, eu tenho de ter uma

    ordem que dite o que devo fazer a minha pessoa. Mas ora, de onde viria essa ordem a no ser

    de mim mesmo? Por acaso existe uma voz oculta a me dizer isso? Aquilo que se ordena a si

    realmente uma ordem?

    Para Schopenhauer existem dois tipos de deveres em relao a ns prprios: deveres

    de direito ou deveres de amor (2001, p. 31). No que se refere aos deveres de direito em

    relao a ns, ele nos explica que impossvel, porque so autoevidentes. No faramos algo

    contra ns mesmos, pois aquilo que fazemos conosco sempre aquilo que queremos, ou seja,

    ningum cometeria uma injustia consigo mesmo por vontade prpria. J sobre os deveres de

    amor em relao a ns mesmos, ele explica, que a moral chegou tarde demais. Segundo

    Schopenhauer, o amor prprio j por demais evidente, o que impossibilita uma obrigao do

    prprio amor a si. Ele cita uma passagem do Novo Testamento como pressuposto: Amars o

    teu prximo como a ti mesmo19

    (Mateus 22, 39). O amor a si mesmo sempre tomado como

    uma mxima. Desse modo, vejamos o que Schopenhauer diz em relao ao amor que temos

    em relao a ns mesmos:

    O amor que cada um nutre por si mesmo tomado previamente como mxima e a

    condio de qualquer outro e no complementado, de nenhum modo, pelo ama a ti mesmo como a teu prximo, pelo que cada um sentiria que seria obrigado a muito pouco. Este tambm seria o nico dever em que uma opus superrogationis [uma obra que ultrapassa a exigncia] estaria em pauta. O prprio Kant diz nos

    Princpios metafsicos para a doutrina da virtude: O que cada um inevitavelmente quer no pertence ao conceito de dever. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 31)

    Schopenhauer afirma que o prprio Kant, no Princpios metafsicos para a doutrina

    da virtude, corrobora com esse pensamento ao escrever: O que cada um inevitavelmente

    quer no pertence ao conceito de dever (KANT apud SCHOPENHAUER, 2001, p. 31). O

    amor de si em si mesmo maior, natural, desafetado, caso que no seria necessrio um dever

    para conosco em relao ao amor de si mesmo. Na verdade, na viso de nosso autor, em

    nenhum dos dois casos citados necessrio um dever, pois a busca pela satisfao pessoal no

    19

    A Bblia Anotada Expandida. RYRIE, Charles. So Paulo: Mundo Cristo, 2007. p. 942.

  • 34

    algo induzido, mas voluntrio. O homem tragado pelo egosmo como uma fora natural e

    no necessita de deveres para consigo, pois no poderia ir contra sua prpria natureza egosta.

    Schopenhauer nos fala ainda sobre a questo do suicdio em relao ao dever.

    Segundo ele, o que se apresenta em relao a ns como um dever , antes, um arrazoamento

    contra o suicdio (2001, p. 32), que estaria preso a preconceitos e extrado de razes das mais

    superficiais.

    Para ele, o homem por ter racionalidade e abstraes se diferencia do animal, j que

    este limitado ao presente e ao sofrimento corporal. O homem, por sua vez, alm do

    sofrimento corporal, possui tambm o sofrimento abstrato por via do intelecto, sofrimento

    espiritual, podendo sofrer pela antecipao de coisas futuras ou lembranas de coisas

    passadas, como tambm da prpria vida em seu presente. importante lembrar, ainda, que

    para Schopenhauer o mundo dor e sofrimento advindos da Vontade como essncia nica e

    manifestada nos seus variados graus de objetivao, a qual tem o homem como a forma mais

    completa e acabada de todas. A prpria natureza concedeu ao homem a possibilidade de

    compensao do sofrimento do mundo por meio do suicdio, pois no cabe a ele a

    prerrogativa de viver no como um animal, enquanto possa, mas tambm enquanto queira

    (SCHOPENHAUER, 2001, p. 32).

    Mediante as vrias situaes de sofrimento que o homem passa na vida, no seria

    nenhum absurdo em um momento extremo que ele tentasse pr fim ao seu sofrimento e

    aliviar-se de todas as suas dores, cometendo o suicdio. Schopenhauer parece concordar com

    o direito que o homem tem sobre o suicdio, ainda mais que por destino final encontraremos a

    morte. Apesar de o ato de suicidar-se apresentar-se como soluo mediante as dores e

    sofrimentos da vida, ele seria apenas algo particular, individual, mas no condio para a

    negao da Vontade como coisa em si do mundo. A Vontade metafsica do mundo quer viver

    nos seus variados graus de objetivao, tal qual o prprio suicida quer a vida, apenas est

    insatisfeito com ela, e assim acredita que pela supresso do fenmeno individual possa negar

    a Vontade e acabar com todas as dores. Porm a morte j uma trajetria da Vontade, pois de

    todas as dores e sofrimentos que temos no mundo, certo e evidente que o pior de todos ainda

    est para chegar: a morte. Assim, tirar a prpria vida com a morte do corpo algo nulo que

    para nada serve, j que a morte o ltimo estgio da afirmao da Vontade e, dessa forma,

    tudo que o suicida faz seno aceit-la.

  • 35

    Schopenhauer v que os motivos ticos que levam o homem a desistir da

    prerrogativa de tirar sua prpria vida so demonstrados normalmente por argumentos usuais,

    superficiais e sofsticos20

    . Vejamos:

    O sofrimento se aproxima e, enquanto tal, abre-lhe a possibilidade de negao da

    Vontade, porm ele a rejeita ao destruir o fenmeno da Vontade, o corpo, de tal

    forma que a Vontade permanece inquebrvel. Eis por que todas as ticas, tanto filosficas quanto religiosas, condenam o suicdio, embora elas mesmas nada

    possam fornecer seno argumentos sofsticos. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 505)

    Os argumentos apresentados por alguns filsofos, como tambm pelas religies

    monotestas semticas, so tidos como superficiais para demonstrar o dever de no cometer o

    suicdio. Na viso de nosso filsofo, apenas David Hume apresentou uma profunda refutao

    em seu Ensaio sobre o suicdio21

    (1776). O prprio Kant, segundo nosso autor, nem merece

    resposta para os argumentos utilizados para combater o suicdio, os quais ele chama de

    mesquinharias (2001, p. 32). Schopenhauer ainda diz, ironicamente, sobre os argumentos

    apresentados: temos de rir quando pensamos que tais reflexes teriam de arrancar o punhal

    das mos de Cato, de Clepatra, de Ccio Nerva ou de Arria de Paetos (2001, p. 32). Para

    Schopenhauer, o suicdio no aparece como um dever para com a vida, mas como algo sem

    sentido, intil, que apenas se expressa no fenmeno, pois a eliminao de um indivduo

    perante as dores da vida no mudaria em nada os rumos da espcie, seria, to somente, mais

    uma demonstrao do seu egosmo, pois, toda ela ainda permaneceria a sofrer. Desse modo,

    Schopenhauer no v uma eficcia nas leis religiosas, nem de um fundamento formal da

    moral, como pretendia Kant, que pudesse fazer suspender o suicdio para algum determinado

    a dar cabo da prpria vida.

    A dor e o sofrimento continuariam a existir mesmo que cada fenmeno individual

    procurasse a morte como soluo. A Vontade, ao objetivar-se, entra em uma luta consigo

    mesma, ora enquanto fenmeno, ora enquanto coisa em si. Porm, a morte do corpo enquanto

    fenmeno no representa nada para a Vontade metafisica do mundo, pois ela permanece

    intacta. Em ltimo caso no haveria a necessidade de um dever moral para aquele que busca a

    morte com o suicdio, j que seria um tanto ridculo um dever que pudesse amedrontar algum

    20

    O que Schopenhauer questiona a formalidade do fundamento moral sobre o suicdio. 21 Para saber mais consultar: SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre a tica. Org. e Trad. Flamarion C. Ramos. So

    Paulo: Hedra, 2012, p 168-169.

  • 36

    que busca a prpria morte. O suicdio, na pior das hipteses, seria apenas uma injustia

    consigo mesmo.

    Outro fato sobre a questo dos deveres para conosco o que Schopenhauer chama de

    regras de prudncia, que no seria necessariamente uma regra moral, mas apenas maneiras

    como poderamos viver melhor. Ele cita trs casos de proibies de luxuria contra a natureza:

    o onanismo, a pederastia e a bestealidade. Para ele, dos trs casos citados de transgresso

    sexual, apenas a pederastia cabe tica. No caso do onanismo, ele diz que se trata mais de

    uma questo de vcio da infncia a uma questo de tica e, desse modo, cabe medicina e no

    a tica se importar com tais casos. No caso da bestialidade ela seria uma questo de

    degradao da natureza humana, uma transgresso contra espcie e em abstrato, porm, no

    contra os seres humanos individuais. Dessa forma, apenas a pederastia teria uma posio tica

    aceitvel, j que seria uma injustia a seduo de jovens sem experincia a fim de uma

    corrupo fsica e moral.

    Schopenhauer nega qualquer possibilidade de aceitar deveres para conosco que no

    seria muito bem um dever j que aquilo que fao para mim mesmo sempre uma aceitao

    prpria e nunca um dever. Schopenhauer enxerga em Kant, em relao aos deveres, uma

    tentativa de eudemonismo, uma forma de fazer a vida mais feliz compensada pelo dever.

    Existe, portanto, uma implcita reciprocidade na forma do juzo moral no Imperativo kantiano,

    no que signifique interesse, mas reciprocidade oculta em seu fundamento moral.

  • 37

    1.3. A crtica de Schopenhauer ao fundamento e princpio da moral kantiana

    Depois de Schopenhauer ter argumentado contra a forma imperativa da tica

    kantiana e dos deveres em relao a ns prprios, ele agora critica de forma mais ntida a

    fundamentao de sua tica. Tal crtica recai, principalmente, sobre o que Kant busca

    estabelecer com o seu apriorismo na filosofia moral. Schopenhauer critica duramente a

    ausncia da experincia e de sentimentos em sua fundamentao moral, como tambm volta a

    mencionar que a verdadeira inteno de Kant era somente abrir espao para sua filosofia

    teolgica.

    Relembremos que Schopenhauer acusou Kant de ter cometido uma petitio principii

    (petio de princpios)22

    ao usar de argumentos falaciosos para construir sua teoria moral.

    Kant teria declarado a existncia de leis morais puras, sem ao menos ter demonstrado

    claramente que elas existem, apenas pressupondo sua existncia. A questo no exatamente

    provar a existncia da Lei moral kantiana, uma vez que ela dada pela representao de um

    juzo como possibilidade para a moralidade, mas da inteno de Kant em usar de estratgias

    para eleger um fundamento moral apenas ideal. Dito de outro modo, quando o filsofo de

    Knigsberg defende a ideia de uma concepo moral em leis que devem acontecer e no do

    que acontece, fazendo assim apenas uma anlise subjetiva da tica, ele acaba usado de

    subterfgios para construir seu argumento. Para Schopenhauer, a tica deve tratar do que

    acontece e evitar prescries de como deveramos agir. Sendo assim, Kant, segundo

    Schopenhauer, estaria manipulando conceitos com seu apriorismo moral. Aqui fica claro a

    diferena da abordagem entre os dois autores, uma vez que Schopenhauer defende uma

    abordagem emprica da tica, ao contrrio de Kant, que a favor de leis morais independente

    da experincia emprica. Mais uma vez a crtica de Schopenhauer ganha fora para a moral

    teolgica de Kant, pois ele poderia usar de sua fundamentao como postulando uma Lei com

    outro nome para sua moral teolgica do dever, de como deveramos agir.

    Apesar de na sua crtica Schopenhauer elogiar seu mestre pelo seu grande mrito a

    distino entre fenmeno e coisa em si, como tambm pela distino entre o a priori e o a

    posteriori no conhecimento humano, a descoberta mais surpreendente e mais coroada de

    22

    O prprio Schopenhauer diz (2001, p. 23): O prton pseuds [primeiro passo em falso de Kant] est no seu conceito da prpria tica que encontramos exposto do modo mais claro: Numa filosofia prtica no se trata de dar fundamentos daqui