10 liçoes sobre schopenhauer

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Nessas dez lições, busca-se demonstrar a existência de uma evolução no pensamento schopenhaureano, que revela um encadeamento no desenvolvimento dos conceitos. Como ponto de partida temos o conceito de mundo e a sua representação, a vontade como essência e a supressão desta mesma essência, o que envolve uma teoria do conhecimento e nos conduz a uma dimensão estética, objetivando mitigar os sofrimentos e dores do mundo. Segue-se o respeito à vida, e, ipso facto, a busca por liberdade. Como a liberdade é envolta em mistério, o pensador convida-nos a empreender uma odisséia reflexiva, até que nos aponta o modo pelo qual podemos erguer o "véu de Maya", isto é, a ascese como solução final.

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Page 1: 10 liçoes sobre schopenhauer

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-â.-3ED-C_wMrEGffiffi;%oo*orS"

Cor.riçÃo 10 LrçÕr,ts

Ctxrrdcnador: Flamarion Tavares Leite

l0 liç'ões sobre KanÍF'lamarion Tavares Leitel0 liç'ões ,sobre MarxFcrnando Magalhãesl0 liç'ões sobre MaquiavelVinícius Soares de Campos Barrosl0 lições sobre BodinAlberto Ribeiro G. de Barros

- l0 liç'ões sobre HegelDeyve Redysonl0 Lições sobre SchopenlwuerIlernando J.S. Monteiro

Dados Internacionais de Catalogação na Putrlicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Índices para catálogo sistemático:l. Schopenhauer : Filosolia alemã : 193

u"Ãq F-ernando J. S. Monteiro

1 O LrÇÕrs soBRE

ScnoPENHAr-rER

0tarr

Monteiro. Fernando J.S.

l0 lições sobre Schopenhauer / Fernando J.S.

Monteiro. - Petrópolis, RJ : Vozes, 201 l. -(Coleção l0lições)

BibliografiaISBN 978-85-326-4089 -5

I. F,-ilosofia alemã 2. Schopenhauer, ArlhurI 7tt8- I 860 L Títu10. II. Série.

| 02012 CDD-I93

Petrópolis

Page 3: 10 liçoes sobre schopenhauer

O 2011, Editora Vozes Ltda.Rua Frei Luís, 100

25689-900 Perrópolis, RJInternet: http://www. vozes.com.br

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obrapoderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ouquaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia

e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco dedados sem permissão escrita da Editora.

Diretor editorialFrei Antônio Moser

EditoresAline dos Santos Carneiro

José Maria da SilvaLídio Peretti

Marilac Loraine Oleniki

Secretário executivoJoão Batista Kreuch

Editoração: Dora Beatriz V. NoronhaProjeto gráfico: Victor Mauricio Bello

Capa: Célia Regina de Almeidallustração de capa: Omar Santos

rsBN 978-85 -326-4089 -5

Editado conforme o novo acordo ortográfico.

llec laudes, necvituperationes, nec ho-

nores. ne.' .supplici« justa .runt. .si ttni-ma non habeaÍ liberam potestatem et

appetendi et abstinendi, sed sit viÍiuminvoluntariunt.

Clemente de Alexandria"

,\trt»nates I, 17 - "Nem os elogios, nem as censuras, nem as honras,rrt'rrr os suplícios são justos, se a alma não tem livre poder de desejar,rrr :rbsteÍ-se. visto que o vício é involuntário".

listc livro lili composto e impresso pela Editora Vozes Ltda.

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Surraaruo

I i.s'to tle grítficos esquemáticos,9

I'n,fricio - Obiter dicta,llItrtrodução, 13

l 'r irneira lição * Um pensador amargurado, l 9

St'sunda lição - O mundo, 25

li'rceira lição - A Vontade, 28

(.)rrarta lição - A Teoria do Conhecimento,32(.)rrinta lição - A supressão da Vontade, 39

St'xta lição - Aestética,42

Stitima lição - A vida como sofrimento e dor, 4-5

( )itava lição - A ética e o respeito à vida, 50

Nona lição - A liberdade, 55

l)t:cima lição - A ascese, 60(' t ) t t,\ ide raÇ õ e s finais, 63

Iit li: rências, 67

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LISTa DE GRAFICOS

ESQLTEMATICOS

l'st;uema I - Obras de Schopenhater,24

l'st;uema 2 - A quádrupla raiz do princípio de, rt'rtte, 33

l'stluema 3 * Graus da verdade, 34

l'.st;uema 4 - Teoria do Conhecimento, 38

l .srluema 5 - Principium Individuationis, 38

lrsquema 6 - Comparativo entre os fundamentoslor:içs5, J§

l'.st1uema 7 - A formação do cará.Íer, 59

razão sufi-

epistemo-

Page 6: 10 liçoes sobre schopenhauer

Pnnpecro

Obiter dicta

Prof. Dr. iur. Marcílio

Toscano Franca Filho"

No panorama em que a trama do real é tecida com, nonne velocidade há quem chame o tempo atual de "pós-rrr,,rlcrnidade". Há quem prefira "modernidade líquida".ll;r. ainda, os que dizem que vivemos imersos em uma'.,ociedade do risco". Em qualquer desses cenários, a

rrrrica certeza é a constância da mudança, a perenidade,l,r transitório e o triunfo do efêmero e do virtual sobre ol.rrgevo, o duradouro, o perpétuo ou o concreto. Exata-nr('nte por isso não poderia ter chegado em melhor hora,r rlccisão da Editora Vozes de dar prosseguimento à sua

1:r lradicional série "10 Lições sobre..." com um volume,lt'rlicado à vida e à obra de Arthur Schopenhauer, filó-',olil alemão cujas meditações são marcadas, se não porunl enorme pessimismo, mas, certamente, por uma firme( ()ntundência crítica e algum mal-estar existencial - as

ll' t lt schme rzen - ambas características incontornáveis para

rrrclhor se compreender a nossa contemporaneidade tão in-, I isente quanto indulgente.

l'írs-«loutor (Instituto Universitário Europeu, Florença), doutor (Uni-

r t'rsidade de Coimbra) e mestre (UFPB) em Direito. Professor-visitan-

tt' tlo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Uni-r t'rsidade Estadual da Paraíba (UEPB). Procurador-geral do Ministério| 'riblico junto ao Tribunal de Contas da Paraíba.

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Praia do Cabo Branco,junho de 2010.

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,,\ olrrr rlt. Arllrur-schopenhauer está longe de Íigurar emnr('r() rs longas estantes do prêt à penser. Herdeiro de umacauclalosa tradição humanista alemã, ele escreveu com prof.un_didade e rigor sobre uma teoria «lo conhecimento, uma estética,uma ética e, em certo sentido, até sobre uma metafísica e umaontologia. Gran«Je inspirador de nomes como Richard Wagner eFriedrich Nietzsche, não seria exagero dizer que SchopenÍauerprocurou elaborar uma "filosoÍia total,' _ Gesamtphilosophie.Dessa abrangência advém justamente mais uma boa razãá queclnpresta lcgitimidade à publicação deste livro.

A atualidade e a abrangência do pensamento de Scho_penhauer não são, porém, as únicas razões para se dar a pú_blico, com o merecido júbilo, o presente texto. Toda aque_la complexidade monumental do legaclo schopenhaurianof'oi compreendida e esmiuçada com maestria pelo professorFernando J.S. Monteiro, neste volume em que caftografa ca_minhos, posições e direções do fllósofo de Dantzig. A ricae duradoura experiência do autor na cátedra de Íilosofia naUniversidade Federal da paraíba fica patente ao longo do tex_to. A sua sagacidade, perspicácia e diligência restam clarasna precisão com que maneja os conceitos centrais da filosoÍiade Schopenhauer; na habilidade com que se vale de exem_plos e argumentos elucidativos e didáticos; na intimidade comque percorre os vários idiomas dos comentadores de Schope_nhauer; na argúcia com que cria imagens e quadros qu* áaoforma visual a elucubrações teóricas complexas e na refinadaelegância com que se dirige ao leitor. Enfim, não emerge dotexto qualquer dúvida de que toda essa artesania intelectualpara, em dez lições,joeirar o pensamento schopenhauriano fbiobjeto de um longo e dedicado trabalho de reflexão. Um traba_lho de maturada ponderação que consegue se concentrar comêxito no minimalismo das coisas essenciais.

IxrnoouÇÃo

Il habitual a vinculação de Arthur Schopenhauer e de'.('u pensamento ao pessimismo. No entanto, a disposiçãopt'ssirnista, que não raramente conduz ao conformismo ou.r,r irnobilismo, afasta-se sobremodo do caráter irrequieto,lo lilósofo. Em verdade, a gênese do pessimismo residiriarrrr Vontade, que aqui deve ser entendida como algo indômi-rr, l11sçiorul, desprovida de conhecimento, que tem prin-{ rl)io e causa em si mesma e é possuidora de um infinito,lt'sc.jo: o desejo de aÍirmar-se. Ora, o mundo seria então a

.lr jctivação dessa Vontade, tornada possível através de um',rrjcito. E como o sujeito também não foge à objetivação da

Vorrtade, o mundo, portanto, seria uma mera representação,Lr sujeito, onde a Vontade manifesta-se como fundamento,,ntológico.

Schopenhauer procura estabelecer, seguindo os pas-

sos de Immanuel Kant, uma diferença entre a Vontade e\uir representação, ou seja, entre coisa-em-si e f'enômeno.l'odavia, enquanto Kant enfoca a inacessibilidade da coisa-('nl-si, Schopenhauer aborda uma visão metafísica dessa

,'ssôncia, ou seja, ele trata de uma Metafísica da Vontadel,t' r:ssa Vontade se expressa através de suas múltiplas repre-scntações percebidas pelo sujeito. A coisa-em-si kantiana

l. Decidimos usar o termo "Vontade" em maiúsculas, posto que, como\uhstantivo próprio, vem designar a essência das coisas, a Vontadecrn-si; com letras minúsculas, a vontade individual, visto que a

Vontade em-si se distingue do prinicipium individuatíLtnis.

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pode ser representada por um X, algo incognoscível; paraSchopenhauer, a Vontade, enquanto coiú-em_si, podeser conhecida através de representações enquanto ideias.O mundo, tanto quanto o sujeito qu"'o p".."be, são repre-sentações objetivas dessa Vontade. O corpo movimenta_se,age e responde a determinações da Vontade. pois que tam_bém é representação.

A Vontade, identificada por Schopenhauer, está pre_sente em toda a nafifiezal revela_se nos corpos orgânicose. inorgânicos, se.iam minerais. vegetais ou animaii; podeainda revelar-se como fenômenos físicos e químicoi en_tendidos como leis naturais. As múltiplas representaçÕes(objetos mediatos) só são apreendidas utrrrà, do cárpo(objetivação imediata), pois o corpo, primeira ."pr"r"rà_ção da Vontade, através dos sentidos (cla percepção), apre_ende o objeto; essa apreensão afeta a estrutura cerebral quefgrmula conceitos para culminar na inteligência. O corposó é objeto mediato quando apreendido po, ortro corpo.Em última análise, as representações emprricas (múltipio)transformaln-se em representações abstratas (uno). A li_nearidade da Teoria do Conhecimento em Schopenhauermostra-se simples: parte de uma sensação, torna_se umapercepção intuitiva, que já é uma forma de conhecimento,passa pelo entendimento, dá origem à reflexão, para enÍimestabelecer conceitos. Os conceitos, portanto, seriam repre_s_entações de representações. Contu do, a razlao, u .upu"idu_de_ de abstração, apanágio do ser humano, estará .sempresubjugada à Vontade. Neste sentido, Schopenhur". p"nruter resolvido a irremediável dicotomia entré o mundo ,,queme é dado" e o entendimento.

O fator de diferenciação entre o homem e os clemaisanimais é a capacidade de abstração; em se tratando deanimais. estes seriam limitados à orbe da intuição, o quede certo modo permite-lhes perceber todas as represen_tações necessárias à satisfação dos instintos, ou seja, às

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(l( t('nninações da Vontade. Já no homem, a Vontade deter-nrnil se através dos desejos; o homem pensa estar buscando,u:r íntima satisfação, mas, no entanto, ele está satisfazendo

.r nirtureza, enquanto representação da Vontade. É a procu-r .r tlirs realizações que faz do homem este ser lacunar, presa

,l,rs rlores e sofrimentos. O mundo, na visão schopenhau-

r r:rrur, é um vale de lágrimas, mas este mundo é objetivação,l:r Vclntade e, portanto, ela (a Vontade) de certa forma se

,)l)oc a si mesma, posto que o homem, também objetivação,lrr Vontade, sofre em favor da Vontade aquilo que por ela

l,rr determinado. O homem então mostra-se pessimista e o

1x'ssimismo faz com que ele crie uma visão negativa das

i rrisas, também representações. Oportunamente citamos:li.s ,sind nicht die Ding, sondern allein unsere Meinung,em

r',trt tlen Dingen, was die Menschen in Unruhe versetztz(1.1,ÍTETO, 1948, p. 15).

A visão pessimista que o homem guarda do mundo

t('nr como causa sua capacidade de abstração, posto que

,'ssa capacidade, serva da Vontade, faz com que o homem

grcrceba-se limitado em relação ao mundo. Há uma evidente

l)reocupação do homem em postar-se além dos limites im-

lxrstos pela Vontade, além do que este não vive só o mo-

nrcnto presente, ele traz recordações de fatos passados, bem('omo expectativas de um futuro. Aliada a essas recordações(' expectativas vem a cetteza da morte, certeza que se torna

rrngústia para aquele que procura satisfazer a Vontade que

tltrer afirmar-se.

O que Schopenhauer propõe na verdade é uma "filo-soÍia do consolo" (SCHOPENHAUER, 2000, p. XVII). Ot;ue o homem teme é o devir. É tão quimérico o nada de-

2. "O que perturba os homens não são as coisas, mas a opinião que

cles têm rlelas."

l5

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l)ois (la lllorte quanto a ociosidade num paraíso religioso.Muilo crnbora o argumento de que a Vontade determineturna existência eivada de percalços, tiustrações e sofri-nrentos, é possível afastarmo-nos de tal "vale de lágri-mas". suprimindo a Vontade, agredindo-a, violentando-a.O pensamento, a reflexão, o conhecimento podem facul-tar semelhante empresa. O homem pode buscar uma puravisão do mundo e das coisas, ou seja, a ldeia, entendidacomo objectidade adequada da Vontade. Além disso, podeabandonar sua individualidade, uma fonte de egoísmo, omodo particular de conhecer.

É na estética que Schopenhauer vê a solução para mi-tigar de modo efêmero o sofrimento. A arquitetura, a escul-tnra, a arte, a poesia, a música, traduzem as ideias, os ar-quétipos e, ao observá-los, o homem situa-se acima destarealidade absurda que é o mundo das representações. Noabandono de sua individualidade e com a eventual contem-plação das ideias, o homem toma-se o "puro sujeito do co-nhecer". Lamentavelmente, Schopenhauer nos alerta de que

esta contemplação só é possível numa parcela pequeníssimado tempo; são instantes. Aqui se percebe que a estética scho-penhauriana aponta para uma ética.

Ao lograr êxito em suprimir a Vontade, o homem expe-rimenta a liberdade, mas essa liberdade dista-se da liberda-de da Vontade. Esta última se revela como espontaneidade,como fato natural; já a liberdade conquistada pelo sujeitoé algo negativo, negativo porque nasce da necessidade dese opor a umâ condição natural. Mas o opor-se à Vontadecom o fito de suprimi-la é a busca de uma condição tambémacessível ao homem, é uma ilscese, uma das mais difíceisposturas das virtudes cristãs. A compaixão - mitleiden -vem opor-se ao egoísmo; é o solidarizar-se com o próximona partilha de seus sofrimentos. A ascese vem traduzir-seem liberdade, vem sublimar os desejos; podemos erguero "Véu de Maya" (o mundo da aparência). Schopenhauer

1,,,tlc dizer com convicção: "Minha filosofia inteira pode

r(':iurnir-se em uma expressão: o mundo é o autoconheci-

rrrt'rrto da Vontade" (SCHOPENHAUER, apud WEISCHE-I )t,1., 1999, p.252).

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Pnr,ttctne ltçÃo

Um pensador amargurado

Arthur Schopenhauer nasceu em 22 de fevereiro deI /liu, em Dantzig, filho de um rico comerciante que, com a.rlr rrpta anexação dessa cidade à Prússia em 1193, optou por, ',1:rbelecer-se com a família em Hamburgo. Heinrich Floris'it lropenhauer acreditava que o Íilho viria a lhe suceder nosrr,'srícios e, para tal empresa, entendia que a boa etlucação,n «r "conhecimento do mundo". Ainda aos nove anos, o

1,,vcrrn Arthur foi entregue a um amigo de seu pai, um ar-rrr:rtlor no Havre, fato este que fez com que o rapaz, quandopor ocâSião do retorno ao convívio familiar, já praticamente,'\(luecera a língua matelxa.

Aos doze anos, despertava no rapaz Schopenhauer o

I'osto pelos estudos, mas o pai induziu-o a uma viagem por,kris anos a diversos países e cidades, tentando prepará-lo

;rrrr.u a vida de comerciante. Isto, de certo modo, facultou-lhe,, rklmínio fluente de vários idiomas, tais como o inglês, oIrrncês, o espanhol, além do latim e grego que mais tardecsl uclaria na universidade.

Logo após o retorno da família, Heinrich, diante das

,,rnrplicações financeiras, veio a falecer inesperadamente(rriro foi afastada a hipótese de suicídio), deixando, além do

lovem Arthur e sua irmã Adélia, viúva Johanna, vinte anosrrriris jovem do que ele; bela, inteligente, culta, sedutorar' pcrdida em imensurável fatuidade. A jovem viúva, umalroa novelista, fora acolhida em Weimar pelo círculo de( ioethe, enquanto Arthur se emprestava à prática comercial

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Page 11: 10 liçoes sobre schopenhauer

('nr lllnll)urg(). .iá nutrindo uma fofie aversão pela vida disolrrllr rlc sua mãe.

Em 1807, aos 19 anos de idade, Arthur Schopenhaueentra para o Liceu de Weimar, onde, apesar de se dedicom afinco aos estudos das línguas e dos clássicos, vemser expulso em virtude de uma sátira endereçada a umseus professores. Em Weimar, continua os estudos e partia convivência com a mãe, em que se patenteia o conflitotemperamentos; Schopenhauer não poupa críticas às fiilidades de sua mãe. Nessa época, ojovem Arthur sofreprimeira decepção amorosa com a atriz Caroline Jagemann.

Em 1809, inscrito no curso de medicina, Schopenhaentra para a Universidade de Gôttingen, mas a Filosofiaconquista a atenção rapidamente. Os estudos aprofuem Platão, Kant e a filosofia hindu lhe absorvem o tempo entusiasticamente. Na Universidade de Berlim, em lgl 1,a frequentar as aulas de Schleiermacher e Fichte, a quemreporta com mordacidade e frieza. Mas é na Universidde Jena, em 1813, que Schopenhauer cloutora-se com a teUber die vieúàche Wurzel des Satzes vom zureichendGrunde3, obra que apresenta o fio condutor de seu penmento, ao qual se manterá Ílel até o fim da vida.

O ancião Goethe o julga interessante e original, e lhe sugere trabalhar numa teoria antinewtoniana da visão.nhauer, a partir dessa sugestão, escreve ,.Sobre

a Visão eCores". Sua mãe lhe faz acirradas críticas, e o rompideÍlnitivo entre ambos vem calcado no fato de esta permitir_se à convivência com um "amigo íntimo', que acolhera emseu lar.

Com a ruptura em 1814, Schopenhauer passa a viverem Dresden, onde durante quatro anos escreve sua obra

3. "Sobre a quádrupla raiz do princípio de razão suficiente.,,

)o

rrrrior: Die Welt als Wille und Vorstellunga, e, nessa thse,rrrnu criada com quem se relacionara apresenta-lhe comolrllro um natimorto. Logo após a publicação da obra, o filó-,, rlir viaja pela Itália, onde uma outra ligação amorosa traz-llrt'decepções: Tereza, com quem desejava casar-se, tinharrrrra péssima saúde. Arthur Schopenhauer só retorna às ter-r:rs alemãs com a notícia da falência da família; nega-se em, ,rluborar com a mãe e a irmã na assinatura da concordata,lrrlo que faz com que seja totalmente reembolsado pela ge-rritrlra, revelando com isto o propósito de salvaguardar suar r rtlcpendência material.

Em 1820, consegue o título de privat-docente daUni-r t'r'sidade de Berlim, encarregando-se do curso: "A Filosofialnlcira, ou O Ensino do Espírito Humano". Mas não logra',ucosso nessa empresa, tendo apenas quatro alunos inscri-tos. Hegel ministrava um curso no mesmo horário, fato quernlcnsificou a rivalidade entre ambos, e que talvez tenhak'r'ado Schopenhauer a proferir a sentença: "Quereis ma-l;u. um homem de gênio? Fazei-o professor universitário".Sr'hopenhauer isola-se, agride verbalmente os pontífices darrrriversidade e inicia uma crítica ostensiva a Hegel, Fichte eSetrelling, ridicularizando-os inclusive nos textos enviados;r Sociedade Real Dinamarquesa, com o Íito de participar deunr concurso que tem como título: Über die Grundloge clerllorals. Apesar de Schopenhauer ter sido o único participan-tt'. a Sociedade Real Dinamarquesa puniu-o, não lhe conf'e-rrrrdo o prêmio, alegando, dentre outras desculpas, ter fugido:ro lema proposto, o que aumentou sobremaneira sua revolta(' t antipatia por Hegel.

Uma outra decepção amorosa ao lado da cantora Caro-linc Richter: bastante doente, a cantora não conseguiu levar

.1. "O Mundo como Vontade e Representação."

5. "Sobre o fundamento da Moral."

'21

Page 12: 10 liçoes sobre schopenhauer

a termo a gravidez; Schopenhauer descartou definitivamentetodo e qualquer projeto de casamento.

Em 1821, na pensão onde residia, aborrecido comfato de ser espionado por uma das locatárias, atirou-aabaixo, o que lhe custou o pagamento de uma pensão dvinte e um anos, a título de indenização, excluídas as despesas médicas.

Com a epidemia de cólera, em 1831, que se alastravpor Berlim, epidemia que vitimou Hegel, Schopenhafoge para Frankfurt, terra de Goethe, onde passa seus diquase que em total isolamento, dedicando-se ao estudomeditação. Começam a surgir os primeiros discípulos,na vanguarda o entusiasta Frauenstádt, uns poucos comentadores e também críticos. De sua misantropia nasce ..pa

e Paralipômena" (1851), um conjunro de aforismas quefim trazem a Schopenhauer o reconhecimento não só depátria, mas também da Europa culta.

Acreditamos ser aqui pertinente um breve comentáride Nietzsche, encontrado em sua obra Zur Genealogie deMoral6, acerca de Schopenhauer.

Sobretudo não subestimemos o fato de que Scho-penhauer. que tratcva realmente como inimigo pes-soal à sexualidade (incluindo seu instrumento.mulher, este instrumentum diaboli [instrumentodiabol), necessitava de inimigos para ficar dehumor; o fato de que amava as palavras furiosas,biliosas e de cor escura; de que se enraiveciaenraivecer, por paixão; de que teria ficado cloente,teria se tornado um pessimisÍa (o que não era, pormais que o desejasse) sem os seus inimigos, semHegel, sem a mulher, a sensualidade e toda vonta-de de existência, de permanência. De outro moclo

6. "Genealogia da Moral."

22

ele não teria permanecido, pode-se apostar, ele teriaescapado: mas os seus inimigos o retiveram, seus

inimigos sempre o seduziram à existência, sua cóle-ra era como para os cínicos da Antiguidade seu bál-

samo, seu descanso, sua compensação, seu remédiocontra o nojo, sua/elrcidade (NIETZSCHE, 1998,

p. 96).

Certamente, se não Íbssem essas condições adversasr rladas por Nietzsche, Schopenhauer não teria sido Schope-rrlrauer.

Arthur Schopenhauer, em sua mordacidade, sua férrea, r'ítica, sua devoção a Goethe e a Kant, foi um dos poucos fi-lrrsofos aatrair a atenção de Wittgenstein'fezcom que Freudr('conhecesse com justiça, no prefácio à quarta edição dosI t 0s ensaios de teoria sexual as raízes de sua psicanálise,"na qual o conceito de sublimação, o desvio da sexualidaderlt: seu fim privilegiado e a genitalidade, foram antevistos"(IIARBOZA, in SCHOPENHAUER, 2000, p. XIII). As pa-lrrvras de Freud:

Pois o filósofo Arthur Schopenhauer já mostrouhá muito tempo aos homens em que medida o seu

agir e ambicionar são determinados por esforçossexuais - no sentido comum da palavra -, e um

mundo de leitores devia decerto Íer sido inca-paz Lgrifo nossol, para assim perder de vista tão

completamente uma tão envolvente advertêncial(FREUD, apud BARBOZA, 1968, p. 32).

Essa faceta tágica da existência, tão evidente em Scho-

llenhauer, exerceu influência marcante em vários expoentestla literatura. É de Baraquin e Laffitte (2007, p. 274) o co-rnentário a seguir:

Como a literatura se prende essencialmente a umarepresentação do trágico da existência, não é de

espantaÍ que Schopenhauer tenha exercido uma

'23

Page 13: 10 liçoes sobre schopenhauer

influência considerável sobre os maiores escritoresdos tempos modernos, como Tolstoi, KaÍka, Mau-passant, Proust, Céline, T. Mann, Beckett.

O Cavaleiro Solitário, como Nietzsche o chamava, namanhã de 2 1 de setembro de 1860, é encontrado por sua cria-da de quarto reclinado no sofá, vitimado pela pneumonia.Schopenhauer despertara, enfim, do breve sonho da vida.

Esguona 1 - Obras de Schopenhauer

Snc;uxoA LrÇÃo

O mundo

"O mundo é minha representação". Com essa sentençaSchopenhauer dá início a sua obra maior, e nela encontra-ruos toda a arquitetônica de seu pensamento. Ao declarar o"rnundo como minha representação", estabelece uma verda-tlc que se aplica a todo ser vivente, muito embora apenas aoscr humano está reservada, através da consciência, a prerro-

1l;rtiva de alcançá-la. Todavia, essa tomada de consciênciatliz respeito ao filósofo. Ele é capaz de certificar-se de quenlrda conhece; os sentidos simplesmente trazem notícias do,1ue lhes é exterior; o mundo circunstante só existe enquantorcpresentação. " [...] a matéria não tem existência indepen-rlcnte da percepção mental, e a existência e a perceptibilida-tlc são termos conversíveis entre si" (REALE; ANTISSERI,.l()05, p. 210). Enfim, o que existe é o que eu percebo. Daí:rtlvém a certeza, mas a certeza de nosso conhecimento estát'rrcerrada em nossa consciência. A representação é fruto derrrna síntese entre o mundo real exterior e a consciência dostrieito que o percebe. A existência desse mundo dependetla consciência do sujeito. Não há como separar o objeto eo sujeito. Sem o sujeito percipiente, o mundo desaparecerá.Acerca desta interdependência, Schopenhauer cita o místicoÂngelus Silesius: "Sei que, sem mim, Deus não pode viverrnn só instante. Se eu morrer, ele tem que entregar o espírito".l'udo o que existe, portanto, existe em função do sujeito.

Podemos então entender Schopenhauer como um con-tinuador de Platão e Kant. Para Platão, as coisas percebidas

24

- 1813 - Sobre a Quádrupla Raiz do Princípio de Razão Su-ficiente

(tese de doutoramento)

- l8l6 - Sobre a Visão e as Cores

(sugerido por Goethe)

- 1818 - O Mundo como Vontade e Representação

(obra fundamental)

- 1836 - Sobre a Vontade da Natureza

- 1839 - Sobre a Liberdade da Vontade

(premiado pela Sociedade Real Norueguesa de Ciências)

- 1840 - Acerca do fundamento da Moral(trabalho rejeitado pela Academia Dinamarquesa de Ciên-cias)

- l84l - Os dois problemas fundamentais da ética:

Sobre o livre-arbítrio

O fundamento da moral

- 1851 - Parerga e Paralipômena

Edições parciais de Parerga e Paralipômena

25

Page 14: 10 liçoes sobre schopenhauer

mos negar a existência de um mundo exterior a nós com s

tação", é construção minha e por ela sou responsável,

os sentidos, penetra o cérebro e passa a ter uma '

existência", isto é, uma representação. O que Schopen

pelos nossos sentidos carecem de uma essência verdadeira;Kant afirma que só podemos conhecer fenômenos, nada mais.Enfim, a experiência que temos do mundo é aparência.

Por ilação, percebemos que o pensamento schopenhau-riano opõe-se francamente ao materialismo. Ora, o materialis-mo nega o sujeito, ou melhor, atribui, reveste de materialidadeo sujeito. Não obstante, poderíamos dizer ser Schopenhauerum idealista? Quanto ao idealismo, podemos dizer que negaa existência dos objetos ou torna-os sujeitos. Ora, não pode-

,lrrrrensões dos objetos. Se só houvesse o tempo, tudo serialrrsidio e não poderia ser apreendido; se só houvesse espaço,,rs objetos permaneceriam fixos. Para Schopenhauer, a cau-',:rlidade é a única categoria ct priori do entendimento; elert'rluz todas as categorias, aristotélicas e/ou kantianas, à cau,';:rlidade. Todo objeto, todo fenômeno pressupõe uma causa,c rr isto ele chama de Razão Suficiente.

No entanto o mundo não é apenas representação; se as-.,irn o fosse seria uma fantasmagoria, um sonho. O mundo

lxrssui também uma essência: a Vontade.dimensões e seus movimentos. "O mundo é minha represen

tem origem numa realidade objetiva; é algo que me afeta

nega é o realismo. Para o filósofo de Dantzig, a realidadeexterna se reproduz naquilo que está em nossa mente. Omundo como representação é uma construção condicionadapelas formas a priori da consciência, isto é: tempo, espaçoe causalidade.

O mundo, portanto, compor-se-á de duas metades in-separáveis: o objeto que passa pela apreciação das formasa priori da consciência - tempo, espaço e causalidade - e osujeito que está situado fora dessa relação.

Mas o sujeito jamais poderá ser conhecido, pois em sen-do conhecido poderia tornar-se objetoT; nesse caso suporía-mos um sujeito para tal objeto, e assim numa regressáo adinfinitum. Desta forma, Schopenhauer retira a capacidade deabstrair do sujeito; as representações só nos são fornecidaspelas sínteses dadas no conhecimento. O tempo possibilita a

sucessão dos fenômenos, o espaço permite observarmos as

7. Vale recordar que Schopenhauer opunha-se frontalmente ao mate-rialismo.

LÍ\ '27

Page 15: 10 liçoes sobre schopenhauer

TEncrrne lrçÃct

A Vontade

D u c u nt v o I e nt em .fat tt, nol.ent e m

trahwú8.

Sêneca

Schopenhauer identifica a Vontade com a "coisa-emsi" kantiana, enquanto essência de tudo que nos cerca,mesmo como nossa essência. Este é o caráter de ubiquide da Vontade. Em tudo está presente: na Lei de Gravição lIniversal, nos f'enômenos da natureza, na origem ddescargas elétricas, na fonte do magnetismo, na atraÇãorepulsão dos corpos, nos fenômenos químicos, na "mági-ca" que faz com que alguns vegetais se voltem à procura dluz do sol, na fotossíntese, nas larvas dos escaravelhosescavam troncos para se metamorfosearem. Que mais seriresponsável pelo fato destas larvas escavarem buracos bemmaiores do que outras, revelando uma estranhaainda em estado larvar, pois que o macho necessita de maisespaço para movimentar suas antenas? É a Vontade aindaquem faz com que as aves migrem, acasalem e retornem aseu habitat natural. Arriscamo-nos a entender a libido comomais uma das determinações da Vontade, essa energia fun-damental, essa força impulsiva, identificada por SigmundFreud. A Vontade, portanto, embora una, determina-se nessa

8. Epístola 107,1 I - "Àquele que queÍ, o destino o conduz; àquele quenão quer, o destino o arrasta."

nrultiplicidade de fenômenos que admiramos e buscamost'xpl icações racionais.

Nos irracionais, a objetivação da Vontade revela-serro nível do instinto. Os animais nascem, crescem, caçam,prlcriam, e morrem; vivem o momento presente, e a mor_tc lhes chega de modo natural. Nos momentos de perigo, artlcia da morte lhes chega intuitivamente. No homem. com;r capacidade de abstração e da memória, há uma assimila_i'rio de conhecimentos passados, uma expectativa de futuro,r'lc tem consciência da morte que lhe há de chegar implacá_vcl. A Vontade, que não se pauta em arrazoados, despertarrtl homem o querer, o sentimento de posse, o dominar, o:rlirmar-se. Fundado no egoísmo, com a inteligência à mercêtlrr Vontade, o homem pratica toda sorte de ações que chama_rrr<ls condenáveis; são os crimes, o barbarismo, a crueldade,,r llagelo da guerra.

Ainda como meio de afirmar-se, a Vontade se revela( ()mo desejo sexual. A genitália, o órgão corpóreo mais ex_tt'r'ior, facilmente excitável, está submetida apenas à Vonta_rlc. A Vontade, representada pelo sexo, opõe-se diretamente:ro intelecto. A sexualidade, assim como a Vontade, jamaisr'stará subjugada à razão. A Vontade é a vida - ..vontade

deviver seria um pleonasmo" (SCHOpENHAUER, s.d., c, p.t62) - em todas as suas dimensões, é a natureza que quer\c perpetuar. "A natureza é pródiga para com a espécie etcrrivelmente mesquinha para com o indivíduo"e (SCHOPE_NHAUER, 2000, p. 98). O indivíduo enrregue à narureza, àsLra essência, ciente da morte inexorável, busca nos praze_rcs o arrefecimento, o consolo para seu fim. Arraigado aoscu individualismo, ele não percebe que o nascer e o morrer

(). Nessa declaração, Schopenhauer, assim nos parece, baseou_se na'lrilosofia da Natureza" de Schelling: "A natureza não se interessa pelorrrtlivíduo - seu desprezo é a morte -, mas pela espécie',.

'29toL (t

Page 16: 10 liçoes sobre schopenhauer

uma miríade de desejos eternamente insatisfeitos, e que

embrutecidos, sem temor, sem mácula, pautados nae indiferença. A Vontade, muito embora irracional,"conveniente" em todas as suas representações.

perderia seu objeto.

3O 1l

pertencem igualmente à vida; são mútuas condições: a

ção complementa a morte e vice-versalo. O indivíduoem primeiro lugar sua própria conservação, e quandoter conseguido seu intento, procria para dar prosseguià espécie. O homem, em verdade, vê no sexo uma das pricipais Íbntes de satisfação de seus desejos, no entanto,apenas cumpre uma determinação da natureza. A Vontadevoraz, é a insatisfação; um desejo satisfeito requer a extativa de um outro desejo. Ao desejo satisfeito chamaprazer, conforme a Vontade; ao anclo irrealizado chamasofrimento, uma agressão à Vontade.

Diante da patente expressão da Vontade em suas múltirepresentações - esse afirmar-se constante que vem susci

nossa existência de sofrimentos - podemos nos certificara essência da vida é a perpetuidade de sofrimentos. E nãoderia ser de outra maneira. Tentemos imaginar um mundoque todos os desejos fossem satisfeitos de imediato, sem lusem exasperações, sem expectativas, sem sofrimento; emque se deleitar fosse uma constante. De que maneira agiriamhomens? É facl prever. Seriam presas do tédio, indivídt

Vale frisar que Schopenhauer definia o tédio como um*desocupação da Vontade, posto que, neste caso, a vontado;

O tédio é deÍinido por Schopenhauer comotade desocupada", isto é, o estado do homem cu

10, Citamos como exemplo o salmão, que abandona as águas dosobe os rios gelados, galga corredeiras com o objetivo de procriar,perpetuar a espécie. Feito isso, a morte lhe vem quase que inneamente.

vontade não tem objeto para o qual tender, não temmotivo de desejar, e que sente então "o vazio pavo-roso" e "o peso intolerável" de sua existência. "Avida, portanto, oscila como um pêndulo de um ladopara o outro, do sofrimento ao tédio" (BARAQUIN;LAFFITTE, 2007, p. 21 8).

Bem, identificamos a Vontade em algumas de suas múlti-pl:rs representações, detectamos seu caráter, percebemos seus.lrjctivos e inclinações, contudo, como podemos defini-la?lrrlvez esta dificuldade em fazê-lo tenha levado alguns a ex-l{'nlAr comentários incipientes: "Uma Vontade que não querrr:rtlu; incapaz de querer" (ROSSET, apud SANTA MARIA,rn SCHOPENAHUER 1993, p. XXXII). Ou então: "Não é

r rirdora esta Vontade, porque tudo que ela produz é aparên-r ril, e o que resolve, miragem; mas, conquanto nada seja por,'l;r criado, existe [...]" (KEYSERLING, apud BERTAGNO-I I. in SCHOPENHAUER, s.d., a, p. l7). Recorremos maisunra vez ao próprio Schopenhauer para dirimir nossa dúvida:

A vontade, esta não é, ela mesma, nem Í'enômeno,nem representação, nem objeto, ela é a coisa-em-si, e, por conseguinte. escapa ao princípio de razãosuficiente, essa lei formal de tudo que é objeto; paraela não existe princípio donde ela possa deduzir-see que a determine; para ela não existe necessidade:ela é livre. Tal é a noção de liberdade, noção essen-

cialmente negativa, reduzida que é a ser a negaçãoda necessidade, a negação da ligação de consequên-cia a princípio, tal como o princípio de razão suÍi-ciente impõe (SCHOPENHAUER, s.d., c, p. 378).

[...] chamar à Vontade livre, para em seguida lheimpor leis, leis segundo as quais tem que querer;Tem que quererl (p. 359).

Essa Vontade identificada como a coisa-em-si, segundoirs considerações de Schopenhauer supracitadas, permite-nosr'rrtendê-la como "Nada".

Page 17: 10 liçoes sobre schopenhauer

HA Teo

Quenra LIÇÃo

ria do Conhecimento

;Como vimos acima, a Vontade, embora una, manifesta.

se em uma multiplicidade de fenômenos, os quais admira.,

mos e buscamos explicações racionais. I

A multiplicidade de representações sempre estará subrl

metida ao princípio de razáo suficiente, princípio este queJ,

segundo Schopenhauer (1980, p. 4l), tem como objetivo"unir os membros de um sistema, isto é, a expressão geral do

vários conhecimentos dados a priori" . Esse princípio possui

uma única quádrupla raiz, náo quatro raízes distintas. Essa

única quádrupla raiz fornece as condições necessárias para

que as representações sejam percebidas. Eis a composição

da quádrupla raiz'. o princípio do devir, o princípio do conhe'

cer, o princípio do ser e o sujeito da vontade.

O princípio do devir refere-se à vinculação de um ob'jeto a outro, sua relação de começo e fim, seus estados e

direção no curso do tempo;

O princípio do conhecer refere-se aos juízos, isto é, al

faculdade de unir ou separaÍ conceitos abstraídos que expri'mem cognição. Em relação ao princípio do conhecer, enten-

demos pertinente esclarecer que Schopenhauer identifica a

existência de quatro tipos de verdades: a verdade empírica,

a verdade lógica, a verdade transcendental e a verdade me'

talógica. A verdade empírica parte das representações intui'tivas e fornece razões para criar um juízo que detém a poss€

de uma verdade material; a verdade lógica refere-se a juízos

que se baseiam em outros juízos que, por sua vez, apoiam-so

3'.2

rro juízo detentor de uma verdade material, algo como umsilogismo; a verdade transcendental baseia-se nosjuízos sin-tcrticos a priori, pois não extrai recursos só da experiência,nras também das condições de possibilidade; a verdade me-trrlógica seria a condição Íinal do pensamento, pois se situar rrteiramente na razáo.

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Page 18: 10 liçoes sobre schopenhauer

Esguru,t 3 - Guus DA vr,lRDADE

Verdade empírica

Verdade lógica

Verda<Ie transcendental

Verdade metalógica

Verdade empírica + pilrtc clas representaçõcs intuitivas para

criar juízos que detêm uma verdade material.

Verdatle lósica -, iuízos oue têm oor base outros iuízos oue-

por sua vez, apoiam-se num juízo detentor de uma verdade

material. Um tipo de silogismo, no qual a verdade materialseria uma "premissa maior".

Verd.lde transcendental -+ funda-se emjuízos sintéticos"a priori"tt '

não se baseiam apenas nas aparências, mas trabalham com

condições de possibilidade.

Verdade metalógica -+ condiçào final do pensamento; situadainteiramente narazão.

Ao princípio do ser implica diretamente a relação espaço/

temporal, sem a qual os objetos não poderiam ser apreendidos.

E, por fim, o sujeito da Vontade, que se percebe como i

indivíduo mediante sua corporeidade. i

Cientes da importância do princípio de razão suficien- jte, podemos entender como as representações são elabo- 1

radas: o objeto é apreendido atravós da sensibilidade dosujeito, torna-se uma percepção intuitiva que forma uma

i

primeira representação. No conhecimento estão presentesas relações de tempo, espaço e causalidade; origina-se uma

11. Tal como no pensamento kantiano, um juízo sintético a priori é

aquele que parte de um conhecimento sensível e, por intêrência, recebe

um acréscimo da razão.

34

()utra representação que culmina num conceito. Percebe-se(lUe a representação tem origem no sensível e chega ao inte-ligível12, fato que requer um órgão apropriado para o exercí-t'io da abstração, ou seja, o cérebro.

No que tange especificamente à representação, uma dú-vida se faz presente: o mundo todo é representação; o corpo,

lx)rtanto, também o é, inclusive o cérebro que faz pafte desse('orpo. Bem, para o conhecimento representativo, fàzemosuso do cérebro. Então o cérebro seria uma representação que

rrpreende outras representações. Esse paradoxo ficou conhe-ciclo como Paradoxo deZeller. Ele mostra a circularidade da

rluestão. DizZeller:.

O intelecto é, na verdade, simplesmente uma funçãodo cérebro. Lembremo-nos aqui do que o filósofoensinou na primeira parte de seu sistema e então

chegaremos a um resultado muito surpreendente.

Lá, ele nos exorta, com uma insistência nunca sufi-ciente, a não ver em todo o mundo objetivo e, antes

tle ludo, na mulériu. nada u nào ser nossa represen-

tação. Agora ele nos advefie, não menos insistente-

mente, a não tomar nossa representaÇão a não ser

por um produto do cérebro. A parlir daí nada mu-

dou, já que esse mesmo cérebro deve ser, daqui pordiante. uma forma determinada de objetivação da

Vontade, pois se a Vontade não tivesse produzidotal órgào. nào poderiam surgir quaisquer representa-

ções. Nosso cérebro é, porém, essa matéria determi-nada, portanto, de acordo com Schopenhauer, essa

representação determinada. Encontramo-nos assim

encerrados no seguinte círculo: a representação tem

que ser um produto do cérebro e o cérebro, um pro-duto da representação - uma contradição, para cuja

12. Percebe-se que emlênômeno.

Kant tudo parte da abstração para explicar o

15

Page 19: 10 liçoes sobre schopenhauer

flsolução o filósofo em nada contribuiu (ZELLER, i

apud CACCIOLA, 1994, p.77).

Mas o próprio Schopenhauer percebera essa contradição e

a menciona em O mundo como vonÍade e representaÇã.o.Ele a

chama de antinomia da faculdade de conhecer, verificada ainda 1

por ocasião da sua crítica ao materialismo. "Não há absoluta- 1

mente nenhum objeto sem sujeito: tal é o princípio que condenapara todo o sempre o materialismo" (SCHOPENHAUER, s.d.,

c, p. 44).O filósofo fala da causalidade como princípio regula-dor para os estudos da natureza. É o pressupor um estado menosperfeito da matéria como fundamento a um estado mais perfeitoda mesma; uma série de modificações até que ela pudesse ser

conhecida. Em suma, trata-se de um estudo concemente à Etio-logial3. Evidentemente, para suporte dessas modificações, faz-se mister um sujeito para pensá-las. Se a existência do mundo i

pressupõe um ser que o conheça, este, por sua vez, pressuporá

causas prévias e seriadas. Schopenhauer usa como recurso umaoutra antinomia: a antinomia da ciência da natureza, isto é, para

se chegar a um estágio atual da maténa, um estado primordialfora proposto. Se pressupuser um estado primordial para a ma-téria, como explicar suas modificações, sem que nada venhaagir sobre ela? Para Schopenhauer, a antinomia da ciência danat.fieza não fica resolvida, mas a solução para resolver a anti-nomia da faculdade de conhecer está em Kant, isto é, a distin-

ção entre fenômeno e coisa-em-si. Schopenhauer, desse modo,estabelece uma "ontologia negativa", ou seja, a Vontade, a coi-sa-em-si, totalmente sem fundamento - grundlos - vem trazercomplemento necessário à Etiologia.

Ainda na sua relação sujeito/objeto, Schopenhauer con-dena a filosofia empirista, realista e materialista. Marie-JoséPernin nos esclarece essa postura.

13. Pesquisa ou determinação das causas de um fenômeno.

36

O objeto não é nem anterior nem posterior, nem

mesmo simultâneo em relação ao sujeito (sua co-presença ao sujeito é intemporal). O objeto não é

nem interior nem exterior ao sujeito. Também não

está situado diante dele, e o "Vor" da "Vorstellung"(Representação) significa a exterioridade e a fronta-lidade de um cenário de teatro. A representação pro-

duz o seu próprio tempo e o seu lugar, o tempo e o

lugar do espetáculo. Mas, principalmente, o objetonão é causa do sujeito nem princípio lógico do qual

este poderia ser deduzido. As mesmas exclusões va-

1em para o sujeito (PERNIN, 199-5, p. 38).

A partir dessa relação, o co{po assumirá seu papel deprotagonista, pois é nele que poderão ser encontradas as

condições viáveis a tal relação. Nosso corpo, representaçãoiurediata da Vontade, aquilo que primeiro percebemos, e so-

rnente através dele é-nos possível perceber todas as demaislepresentações; mediatas, portanto. Cada corpo é invadidopela mesma Vontade, mas cada um a revela de modo par-ticular, visto que a própria conformação corpórea, o cará-tsr e, evidentemente, o modo como cada qual assimila essa

investidura da Vontade, são fatores da individuação. Essa

individuação só é possível na presença da relação tempo/es-paço; fora dessa relação seria impossível perceber a Vontadecnquanto representação corpórea. E o principium individua-tionis que se estabelece na presença da Vontade.

Se para perceber as demais representações que nos cer-cam é necessário o corpo, o eu, o elemento que através das

percepções sensíveis me coloca diante de toda esta realidade,é naturalmente explicável que a valorização do próprio corposeja algo como necess áno.Énesse princípio de individuaçãoque aflora o egoísmo - o pecado original - fonte de todas as

anomalias morais com que nos deparamos. A vontade in-dividual espelha a Vontade como essência, ou seja, seu grautle irracionalidade que não está ligada de modo nenhum ao

37

Page 20: 10 liçoes sobre schopenhauer

ilintelecto. O que a Vontade procura é o aÍirmar-se. E a Von-tade - essência - afirma-se através da vontade - Jtrincipiumindividuationis. A Vontade possui aseidade, ou seja, il causae o princípio estão em si mesma.

Esqueul 4 - Tsonrl oo ConuocruoNro

Esqutnta 5 - Prutturruu I Notvt»ueuoNrs

Qurxrr r-rÇÃc)

A supressão cla Vontade

Diferentemente de Schopenhauer, a vontade humana,para Kant, depende da moral, ou seja: uma dependôncia daobrigação de natureza intelectual; uma coação para a ação -lqui a diferenciação entre vontade e arbítrio - que se chamarlever. Deste modo, Kant pode afirmar que a vontade é livrec cria uma obrigação para com a lei moral, enquanto afirmarlue o arbítrio está afetado por impulsos sensíveis. Assim,Kant aÍirma a autonomia da vontade, isto é, ela seria o prin-cípio de todas as leis morais. Essa autonomia da vontadepode levá-la a sua substancialização - o ser primordial deSchelling. Mas em O mundo como vontade e representação,Schopenhauer opõe a Vontade à Representação, fazendo daVontade uma força incognoscível. Essa força é também fe-nômeno ou aparência - objetivação da Vontade - e fonte,assim, de sofrimentos. Precisamos, segundo Schopenhauer,torná-la de nossa "conveniência", já que a razáo distanciar-nos-á dos sofrimentos por ela perpetrados. Mas como? Su-primindo-al

Diante do fato de que a Vontade enquanto representa-

ção traz sofrimento ao indivíduo e faz do mundo um valede lágrimas, podemos inferir que a Vontade opõe-se a simesma; são as representações do mundo a ferir o indivíduotambém como representação. É seu caráter de irracionali-dade. Cientes de que a dor e o sofrimento são a essência davida - representações da Vontade que assim se determina,Ínas que não está afêita ao intelecto - resta-nos o recurso,

Obleto

Sensibilidade do Sujeito

Percepção Intuitiva (uma forma de conhecimento)

1u representação

EntendimentoRelações espaço / tempo - causalidade

2' representação -+ Conceito

Atenção: Os conceitos seriam. portanto, repÍesentações de re-presentações.

Objetos + Representações mediatas da Vontade.

Corpo + Representação Imediata da Vontade

A Vontade atua sobre o colpo

CorpoConÍbrmação; caráter; modo particular de assimilar a

investida da Vontade.

Principium lndividutttionis (o indivíduo)

Sujeito do Conhecimento -; Fora tla relaçào espaço / tempo:não sofre objetivação da Vontade.

Sujeito ligado ao corpo '+ Prittt'ipium individuatiotti.s lindi-víduo); sujeito à relação espaço / tempo; soÍie objetivação daVontade.

111 39

Page 21: 10 liçoes sobre schopenhauer

declara Schopenhauer, de fazer uso do intelecto, da prerro-gativa da razáo, para nos impor diante da Vontade com ointuito de suprimi-la, sufocá-la, amainá-la. É a necessidadeque se nos impõe.

Fazemo-nos a mesma pergunta que seu discípuloFrauenstâdt, quando questionara a negação da Vontade, já queela seria a coisa-em-si. Ao que Schopenhauer (s.d., c, p. 366)responde: "a Vontade não teria qualquer semelhança com oAbsoluto; ela seria a coisa-em-si somente em relação à repre-sentação". Schopenhauer, portanto, opõe ao mundo da repre-sentação a Vontade.

Primeira condição para que isso se torne possível ésairmos da condição de indivíduo e adentrarmos a esfera dosujeito que conhece. Entendemos dever ressaltar que Scho-penhauer estabelece uma diferença entre o sujeito que co-nhece e o indivíduo. O objeto para ser percebido necessitado tempo e do espaço e causalidade, já o sujeito não requernenhuma dessas expressões da razáo suficiente. O sujeito éa condição do conhecimento; "é o coruelativo necessário doobjeto" (SCHOPENHAUER, s.d., c, p. 368). O sujeito li-gado ao co{po, enquanto corporeidade, torna-se indivíduo.Este indivíduo, preso que está a sua representação corpórea,tem seu corpo como centro de suas preocupações, pois ocorpo é a objetivação da Vontade; Vontade esta tornadaobjeto da representação. "Enquanto estiver ligado ao seucorpo, esse sujeiro é indivíduo" (PERNIN, 1995, p. 72).Já o puro sujeito do conhecer - sujeito desvinculado docorpo e livre das representações corpóreas - contempla asideias, a objetivação plena da Vontade - ele é o puro olho domundo. O puro sujeito do conhecer, portanto, sai da esferado mundo e suas representações para postar-se acima destecomo mero observador; é o abandonar sua mera existênciaimersa no sofrimento e aproximar-se da idealidade; é a liber-dade que se dá na Ideia de Arte.

4O

Poder-se-ia especular acerca do "paraíso" artificial dasrlrogas como recurso para negar a Vontade. Ora, a princÊpio, negar a Vontade é evitar suas determinações no mundoreal. Não obstante, uma análise acurada faz-se mister paraclue não venhamos cometer o equívoco de viver uma novai I usão.

Com o recurso das drogas, em verdade, não nos afas-tamos da realidade, mas criamos uma metalrealidade. e essarnetarrealidade não é criação do sujeito puro do conhe-cer - aquele capaz de aniquilar a Vontade e que não é por elatleterminado - mas sim do indivíduo. O principium indivi-duationis, em sua corporeidade, sofre o assédio da Vontade,vê o mundo - a realidade - como sofrimento e dor. E ao sepropor a criar uma "outra" realidade, diferente daquela queo constrange, ele apenas a cria a partir do ponto de vistaestritamente subjetivo. Na subjetividade, com a presença doindivíduo, não há como escapar às determinações da Vonta-de. Na verdade, na criação de uma metarrealidade, ainda nossituamos como reféns das determinações da Vontade. Seriasonhar que se está sonhando. Mas chega a hora de despertar,então a Vontade reinicia sua carga de constrangimento. Criaruma metarrealidade seria, portanto, viver uma ilusão paramascarar outra ilusão.

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41

Page 22: 10 liçoes sobre schopenhauer

Snrra lrçÃo

A estetica

A Ideia, nada mais do que uma objectidade adequadada Vontade, está longe das represerrtações mundanas; seriao grau mais elevado de objetivação na escala das representa-

ções e anterior a qualquer multiplicidade. O termo objectida-de, empregado por Schopenhauer, vem fazer a distinção como termo objetivação. A objectidade diz aquilo que se revelacomo imagem, e não uma simples objetivação, ou seja, algoque se tornou objeto. A objectidade não se manifesta comoobjeto.

A arte, em todas as suas modalidades, deveria ter comoobjetivo revelar aos homens aquilo que lhes foge à percep-

ção. O artista, seja ele escultor, escritor, poeta, músico, deveprocurar retratar a Ideia, o transcendental, o inatingível, a

perfeição. De fato, todos os artistas imprimem em suas obras

um cunho pessoal, o que permite até mesmo identificá-la,mas a arte deve procurar expressar o universal, a ldeia, nun-ca o particular. No entender de Schopenhauer, o particularnão deve servir de molde à contemplação, posto que o par-ticular diz respeito a um número reduzido de indivíduos, e a

individualidade pressupõe uma representação da Vontade.A arte. portanto, é o esforço de reprocluzir o universal, o ideal,que certamente servirá de molde ao observador.

No que tange à escultura, a figura humana deverá ex-pressar a perfeição, a saúde, o vigor; na pintura, a naturezaem toda sua exuberância; na poesia, as paixões e dificuldadesque permeiam a existência humana, rnas que tÍazem resposta

42

Il i :r l_,

as inquietaçbes. Na músicara, Íinalmente, Schopenhauer vê

t expressão maior da Ideia que então pode ser apreendida,

lrcrcebida. Como linguagem universal' a música deve con-

scguir exprimir a própria essência, isto é, a Vontade' Ao ter

e,xpressado a sua essência, a Vontade não mais se manit-esta

c«rmo objetivação. Enfim apreendida, a Vontade revela sua

rlr.rieteza. Este seria um modo eÍicaz para que dela nos res-

guardemos.

Assim, é na música, mais do que nas demais artes, que

Schopenhauer identifica o bálsamo para mitigar os sofiimen-

tos que castigam a existência. Sim. porque as obras de arte'

cluando conseguem expressar a objectidade da Vontade, ou

scja, sua expressão maior, conseguem enlevar o ser humano,

irrtancá-lo de seu encarceramento <1o mundo como repre-

scntação - essa fonte <le angústias e decepções - e lançá-lo

numa dimensão puramente estética.

Poucos são os artistas que conseguem tal empresa' Aos

tlemais homens fica reservado o papel de meros observa-

tlores. pois a contemplação permite conhecer a Vontade e'

portanto, não mais ser aguilhoado por suas representações'

Mas são momentos, algo efêmero, instantes de êxtase e nada

rnais. Nesse momento, deixamos a condição de indivíduo e

passamos à condição de "sujeito puro do conhecer"' Aqui

nos furtamos por instantes do querer, do desejo, das preo-

cupações; já não somos nós mesmos; livramo-nos, enÍim'

ch Vántacle. Esta jaz quietir, calada, submissa' O gênio seria

lrquele que consegue, enfim, apreender a Ideia, plasmá-la e

14. A rnúsica, para Schopenhauer, apesar de ser uma ârte repÍesen-

tltiva como as tlemais, não é a cópia de um modelo que possa ser

rcpresentado diÍetamente; ela é a cópia cla Vontade não objetivada na

rnàniÍêstação plural «Ias i«leias: de certo modo, torna-se rival da Von-

lircle que .Lp."r.ntu e só pode ser percebida no tempo' A rnúsica fala

tliretarnente a todos; é a vitória clo sentimento sobre o conhecimento'

11

Page 23: 10 liçoes sobre schopenhauer

transmiti-la aos semelhantes. Muito embora essa apreensão

da Ideia aconteça de modo particular, o mérito da obra e do

gênio está em tentar universalizá-la.

Bem, mas se nos reconhecemos fora dessa habilidade

artística, arazáo vem em nosso socoÍro, desde que a evoque-

mos como sustentáculo para nosso objetivo, isto é, a supres-

são da fonte de toda inquietação. Se conseguirmos entender

que a Vontade incita o querer, o querer é o desejar, o desejar

é a condição prévia do prazer, e que este, quando satisÍ'ei-

to, há de cessar, Íica óbvio que desejo não satisfeito implicadiretamente sofrer. Jiddu Krishnamurti (1913), místico con-

temporâneo hindu, identifica o desejo como fbnte de todo o

soÍiimento, pois este cria expectativas. Propõe-nos ele uma

eliminação do desejo através do não desejar. Mas fica difícilentender como suprimir o desejo, pois o não desejar implicaigualmente um outro desejo, que, não satisfeito, traduzir-se-á em sofrer. O desejo não seria ainda a causa primeira do

soÍier, portanto, a Vontade, que incita aos desejos, é que tem

de ser suprimida.

Snrt,r,t,t r-rÇÃo

A vida corrro sofrimento e dor

Diferentemente da exaltação dionisíaca da vida, estaé para Schopenhauer sinônimo de dor; esta é resultado daluta por viver. A Vontade está condenada à dor dada à sua

origem, isto é, necessidade, sede inextinguível. Portanto, a

essência da vida é dor.

Daí que a vida, como Vontade, é um contínuo aspirarinextinguível. Mas o princípio de todo querer é uma neces-sidade, uma ausência, uma dor. "Eis por que o homem, a

rnais perfeita das formas objetivas da Vontade, [...] de todosos seres, é o mais assediado por necessidades [...] necessi-

clades aos milhares" (SCHOPENHAUER, s.d., c, p. 412)."Para a maioria dos homens, a vida não é outra coisa senãoturn combate perpétuo pela própria existência, que ao finalserá derrotada" (p. 413). "O desejo, pela sua natureza, é so-fiimento" @. al$.

Aqueles que conseguem afugentar a dor estão apenas

rnudando-a de face, pois na sua origem está a preocupaçãocom a conservação da vida. Mesmo evitando desse modoa dor, ela se disfarça sob outros aspectos, tais como: amor,ciúmes, inveja, ódio, etc. Mas não havendo outro disfarcepara se introduzir na vida com sucesso, ela se reveste deÍastio e de aborrecimento. Schopenhauer, seguindo os passos

de Lucrécio, entende a felicidade como negativa, portanto,não duradoura. A satisfação poderia até ser o alívio de umaclor, entretanto, o que se ganha com isso? "Nada, seguramen-te, além de ser aliviado de qualquer sofrimento, de qualquer

11 15

Page 24: 10 liçoes sobre schopenhauer

Y

desejo, de ter voltado ao estado em que nos encontrávamos

antes da aparição desse desejo" (SCHOPENHAUER, s.d., c,

p. a2\. A satisfação e o pÍazeÍ só são possíveis ao se fazer

apelo às lembranças do sofrimento que eles baniram logo

no princípio. A vida do indivíduo é uma tragicomédia. Pois"ela coloca-lhe todas as dores da tragédia, mas. para não nos

deixar ao menos a dignidade da personagem trágica, reduz-

nos, nos pormenores da vida, ao papel do bobo" @. a2Q.Daí, seja qual for a sorte de cada homem, a dor será sempre

uma companheira.

Não bastasse esse quadro sombrio da vida descrito por

Schopenhauer, ele acrescenta o egoísmo como apetite da Von-

tade, como guerra eterna entre os indivíduos de todas as espé-

cies. O egoísmo é essencial a todos os seres da natureza. Esse

princípiomanifesta-senapluralidadedeindivíduos,trata-Se,entretanto, de "manifestação fenomênica" (p. 438). Todo in- '

divíduo, enquanto inteligência, existe com toda a Vontade de

poder; ele se vê como a condição última do mundo como re-

presentação, enÍim, "um microcosmo perfeitamente equiva-

lente ao macrocosmo" (SCHOPENHAUER, s.d.. c, p.438). ,

Visto que t

[...| não deixa de se tomar pelo centro de tudo, la-zendo mais caso da sua existência e do seu bem-

estar que dos de tudo o resto, estando mesmo, [...]pronto a sacriÍicar a isso tudo o que não é ele, a ani-

quilar o mundo em proveito desse eu, dessa gota de

água no oceano, para prolongar por um momento

a sua própria existência (SCHOPENHAUER, s.d.,

c, p. 439).

É no homem que a dor e a alegria e, consequentemente,

o egoísmo, elevam-se ao seu mais alto grau, à sua suprema

intensidade, manifestando-se violentamente no combate dos

indivíduos, no belluru omniurn contra omnes. A expressão

mais enérgica do egoísmo é a maldade que não age segundo

1(t

a utilidade, mas age pura e simplesmente para a infelicidadedo outro. São aqui as ações da maldacle as mais refinadas doser humano.

Cabe-nos agora perguntar pela solução desse problema

trágico da vida. A vontade que persegue continuamente a

f'elicidade encontra apenas sofrimento e dor. É essa contra-

clição in odieto que devemos esclarecer.

Onde buscar o consolo para tantas e irremediáveisclores e sofrimentos, visto que, "por natureza, a vida nãoadmite nenhuma felicidade verdadeira [...], pois é essen-

cialmente um sofrimento em aspectos diversos'?" @.427).Com certeza nas superstições religiosas. Estas acarretamainda mais preocupações ao espírito do homem, pois são

lbrnecidas pelo mundo real. Para Schopenhauer (s.d., c,

1t.426), o homem constrói para si um mundo de "mil su-

perstições diversas, um mundo imaginário, arranja-se de

rnodo que a este mundo the dê cem males e absorva todaa sua força, à menor trégua dada pela realidade, visto que

ele não poderá gozar essa trégua". Ainda o homem fa-brica para si "demônios, deuses, santos; depois tem que

lhes oferecer sem cessar sacrifícios, orações, ornatos para

os templos, votos, cumprimentos de votos, peregrinações,

lromenagens, adorno para suas estátuas, e o resto" @. a2$.Certamente essa não é a solução adequada para o pro-blema.

Se as superstições religiosas não servem de solução para

o problema acima mencionado, então perguntamos: poderí-

amos lançar mão de uma moral estoica? Schopenhauer (s.d.,

c, p. 420) devota muita simpatia ao estoicismo. Ao falar de

uma alegria desmesurada, sendo a vida sofrimento, Schope-

nhauer elogia a moral estoica que, ao afastar-se da ilusão e de

suas consequências, mantinha a alma liberta. Acertadamentecliz Epicuro, segundo Schopenhauer, que "a mofte não nos

f'az caso" - o 0uvuroç pr1ôsv fipoq npü.q - e nos explica

47

Page 25: 10 liçoes sobre schopenhauer

que se nós somos, a morte não é, e se a morte é, então nós

não somos.

Diante dos nossos olhos, sem dúvida, os indivíduosnascem e morrem, mas o indivíduo é apenas aparência,portanto, sua vida é manifestação particular da Vontade;uma dádiva que o retira do nada retornando a este pela

morte. Entretanto, devemos contemplar a existência na sua

Ideia, isto é, a Vontade, a coisa-em-si, que jaz sob todos os

fenômenos, o que não tem nada a ver com o nascimento e a

morte. Essas realidades têm a ver com a fenomenalidade re-

vestida pela Vontade. A essência da Vontade é produzir-senos indivíduos submetidos à razão suficiente, que nascem

e moÍrem, mas eles são fenômenos daquilo que em si igno-ra o tempo, mas que não pode de outra forma objetivar-seexistencialmente.

A vontade de viver - conÍirmada pelos embalsama-

mentos e/ou rituais religiosos que envolvem a morte - in-dividualiza-se no tempo, espaço e causalidade, donde pro-vém a necessidade de nascer e morrer; necessidade esta que

não vem atingir a vontade de viver. Neste sentido, quando

o indivíduo morre, a Vontade não fica doente; é só a es-

pécie que interessa à natureza. Deste modo, ela não hesita

em fazer desaparecer o indivíduo. Todavia, se o indivíduose convencer que, como natureza, é o aspecto objetivo da

Vontade de viver, sentir-se-á consolado com sua morte e a

de seus iguais.

Ela é, assim, o fim temporal de toda existência fenomê-

nica. O que tememos na morte não é a dor, mas o desapareci-

mento do indivíduo. Sendo o indivíduo a própria vontade de

viver, manifestada num caso particular, tudo que ele é deve

resistir contra a morte. A forma fenomênica não é, portanto,

a essência do nosso ser. Aquela é uma perda ilusória.

Assim, o fim último do indivíduo é sua imersão com

a morte; a imersão do eu na Vontade do Todo, no Nada do

'1 il

nirvana búdico. "Sem a negação completa do querer, nãohá salvação verdadeira, libertação efetiva da vida e da dor"(SCHOPENHAUER, s.d., c, p.526). É a ética que percorre-rá esse caminho da libertação.

19

Page 26: 10 liçoes sobre schopenhauer

\

Orrar,a lrçÃo

A ética e o respeito a vida

O tema do quarto livro de O mundo como vontade e

representação é tma interpretação desoladora da vida morale de seus mais altos valores.

Já de início adverte o autor que aqui não se encontraráuma ética de prescrições, ou uma teoria de deveres. Mui-to menos se encontrará um princípio universal de moral.Não será falado também de "dever absoluto" (SCHOPE-NHAUER, s.d., c, p. 358). Schopenhauer rechaça a éticakantiana e seus princípiosrs. Sua ética se esforçará - tendocomo pano de fundo os pressupostos já examinados - para

encontrar os caminhos da libertação da Vontade de viver,que subjaz, desde sempre, sob a dor.

Mas como evitar a dor, esse apanágio do simples viver?De início assinalamos o repúdio de Schopenhauer ao suicí-dio como solução para o trágico que acomete a vida. Assim,negar o querer-viver não significaria suicidar-se, mas a ex-pressão única da nossa liberdade, tema que trataremos mais

adiante. Diferente da transformação transcendental (negação

do querer-viver), o suicíclio é a supressão do nosso fenôme-no individual. O suicídio vem, assim, afirmar a Vontade,visto que sua negação consiste não em ter horror às mazelas

da vida, mas em detestar-lhe os prazeres. Quem se suicida

15. Apêndice "Da Lei Moral e do Dever", na Críticct da.filosqfia ktn-tiana e no ensaio Los dos Problen'ta.s Funtlamentales de kt Ética.

:jo

tluer viver; seu descontentamento reside nas condições im-postas pela vida. Matando-se, ele renuncia à vida, e não ao

cluerer-viver. O suicida quer viver, ele queria sua Vontade,rnas as conjunturas não lho permitem; sua dor é intensa. Por-tanto, "o suicídio nega o indivíduo, não a espécie" (SCHO-PENHAUER, s.d., c, p. 528). A morte não é aniquilamentoabsoluto. O suicídio não nos propõe a alternativa de ser ourrão ser; a "brevidade da vida, de quem nos lamentamos tan-ttr, seria ainda o que a vida tem de melhor" @. a29).

Schopenhauer propõe a supressão da Vontade que éa condição de todo sofrimento. Mas será que poderíamosentender essa supressão como uma apologia ao suicídio?Empenhar-nos-emos numa observação do assunto, para que

não venhamos a incidir nos mesmos erros daqueles que di-vulgam Schopenhauer o disseminador de uma "ética do sui-cídio" (MARCONDES, 2000, p. 241). Aquele que busca nosuicídio uma saída para seus sofrimentos revela ainda umcgoísmo avassalador. Este, na verdade, quer por fim ao indi-víduo, que não passa de mera representação; seu egoísmo oimpede de atingir a condição de sujeito. Mas deixemos queo próprio Schopenhauer responda a tal acusaçào.

E inversamente, aquele a quem o fardo da vida pesa,

que amaria sem dúvida a vida e que nela se man-

tém, mas maldizendo as dores, e que está cansado

de aguentar a triste sorte que lhe coube em heran-

ça, não pode esperar da morte a sua libertação, nãopode libertar-se pelo suicídio: é graças a uma ilusãoque o sombrio e frio Orco lhe pareça o porto, o lu-gar de repouso. A tema roda, passa da luz às trevas;

o indivíduo moÍre; mas o sol brilha com esplendor

ininterrupto, num eterno meio-dia. À vontade de vi-ver está ligada a vida: e a forma da vida é o presente

sem fim; no entanto os indivíduos, manifestações da

Ideia, naregião do tempo, aparecem e desaparecem

semelhantes a sonhos instáveis. O suicídio aparece-nos,

5l

Page 27: 10 liçoes sobre schopenhauer

pois, como um ato inútil, insensato (SCHOPE-NHAUER, s.d., c, p. 370).

A renúncia a qualquer satisfação das necessidades im-postas pela Vontade, desde que livre, espontânea, já se re-vela como uma negação, uma aniquilação dessa Vontade. Éa inteligência que se impõe; uma inteligência que vai alémde si mesma, que busca a essência das coisas, que não se

vê como única, que não concebe oposições, que entende a

dor e alegria como única realidade. Ela não mais diferenciaalgozes e a vítimas, em suma, ela visa à equidade, ela execrao querer, ela torna-se o veículo para a libertação da individu-alidade, entende as dores do mundo como suas; ela rompe ovéu de Maya. Aqui identiíicamos a compaixão, a partilha dosofrimento, o espírito liberto do princípio de individuação.O sujeito identifica-se no outro; percebe que o verdadeiro eunão reside em uma pessoa, mas no todo vivente; ele choraas dores do mundo porque as incorpora. Isto é caridade, o"oLycliÍl1", a piedade. "Toda caridade pura e sincera é pieda-de, e toda caridade que não é piedade é apenas amor próprio"(SCHOPENHAUER, s.d., c, p.499).

Como se pode notar, Schopenhauer elogia a ética cris-tã. Como exemplo, citamos: "A mais vizinha de nós entretodas essas doutrinas é o cristianismo, cuja moral é animadapelo mesmo espírito, não só pelo espírito de caridade, leva-do a seus limites extremos, mas pelo espírito de renúncia"(SCHOPENHAUER, s.d., c, p. 513). Entretanto, opõe-seferrenhamente aos discursos religiosos que prometem re-compensas ou penaspo.rt mortem a seus incautos seguidores.Neste caso, a religião aliar-se-ia à política, pois faz uso de

um discurso e visa a um bem-estar; moralmente as ações se-

riam inócuas. Por conseguinte, a virtude, a nobreza, não po-dem ser fundadas em abstrações, mas sim em conhecimentosintuitivos; algo imediato. Ao falar da virtude e nobreza decaréúer compreendidas na ética cristã, quer Schopenhauer,na verdade, é nos propor um abandono do "eu" individual.

5',Z

No momento que abandonamos o princípio de indi-viduação, que nosso conhecimento intuitivo identifica oquerer em todas as suas representações, logramos, de certornodo, um domínio sobre a Vontade, pois já a conhecemos.O véu de Maya (o mundo da aparência, o mundo da ilusão),já se levanta diante dos nossos olhos; já não distinguimosum este ou um aquele, mas sim um outro de nós; são nos-sas as dores de todos; sofrimento algum nos é estranho.Ao adentrarmos o mundo da não aparência, a Vontade estácomo que sedada; estamos possuídos pela abnegação, pelaresignação e enorme paz já nos invade. Essa transformaçãojá não traz em seu bojo a virtude, mas sim o ascetismo.Desprendemo-nos da vida e de sua torpe essência, estamosindiferentes ao querer, aos desejos, à Vontade que recla-ma sua satisfação sexual. O primeiro degrau está galgadopara o ascetismo: a abstinência sexual. Já não nos reclamaa atenção os prazeres mundanos, as preocupações do dia adia, o cotidiano com seus entretenimentos e/ou passatem-pos. Já não nos fazem caso os ultrajes, as agressões16. Mor-tificamos o corpo, já que representação, para que a Vontadese veja mortificada. Os evangelhos encerram este ensina-Ínento: "renunciar a si mesmo. Ao ato de renunciarmos a

nós mesmos, voltamo-nos para o próximo. Ao renunciar à

vida, tornamo-la possível de ser vivida.

Schopenhauer cita Calderón da la Barca em Lct vida es

sueíiot1. O filósofo faz uso de uma metáf'ora para expor seu

pensamento acerca da vida. Para ele, a vida é como um livro;quando em estado de vigília, fazemos uma leitura ordenada

16. "Visto que tu não deixaste de ser urn homem que, sofrendo tudo,não teria sofrido nada; aceitaste com igual ânimo os golpes e as recom-pensas da sorte..." (Hamlet, A3, C2).

17. Pedro Calderón da La Barca, 1600/1681, um dos maiores clrama-turgos espanhóis, é citado amiúde por Schopenhauer.

51

Page 28: 10 liçoes sobre schopenhauer

T

desse livro; já quando dormimos, ele é aberto aleatoriamente;podemos abri-lo em uma parte já lida, como podemos abri-lo em uma parte que ainda o será. Tanto quanto a obra deCalderón, Schopenhauer entende a vida como um sonho, e,já que é um sonho, podemos a ela renunciar.

Uma postura intransigente em não renunciar implicadomínio da Vontade. A Vontade, de certo modo, é "educa-dora". Ela tortura aquele que é obstinado, aquele que viveimerso em seu orgulho, que se regozija num imensurávelegoísmo; ela acicata-o, fere-o, maltrata-o, até que, vencidoem todas as frentes da peleja, entrega-se à negação do quererviver. Então a Vontade vê-se aplacada, esmagada, sufocada;ele, no entanto, mostra-se calmo, sereno e distante. É o guer-reiro que, após lutas inglórias, capitula, e a resignação quelhe torna imperturbável transforma-se no troféu da existên-cia; a vitória lhe pertence. Diante de um mundo que se lherevela caótico e estúpido, ele procura sorrir. Desse momentoem diante passará a gozar da liberdade.

Noxa LrÇÃo

A liberdade

A solução do problema da liberdade, proposta em Otrtttndo como vontade e representação, é dualista: comol'enômeno (vontade individual); como coisa-em-si, o nou-

tnenon. Kant já havia pensado a liberdade na essência nu-

rnênica ou inteligível do homem. Portanto, "a Vontade emsi mesma, ou seja, o noumenon, é livre, o que se segue de

sua própria natureza, a forma de todo fenômeno" (SCHO-PENHAUER, s.d., c, p. 378). Mas a liberdade, como fenô-rneno, obietivação individual, não é livre, porque é deter-rninada, fixada imutavelmente no seu lugar na cadeia das

causas e dos efeitos. Neste sentido, Schopenhauer nega a

liberdade das ações humana, isto é, o "liberum arbitriuntindifferentiae".Ele diz que descobriu a causa da ilusão que

làz acreditar na existência de uma absoluta liberdade..., emsuma, de um"liberum arbitrium indffirentiae"; visto que

o entendimento não consegue prever as determinações da

Vontade. No momento de decidir, entendimento e Vonta-de estão incomunicáveis; as determinações necessárias da

Vontade são desconhecidas do intelecto. O intelecto ficarelegado a uma divisão de motivos. Quanto à escolha da

decisão por si mesma, o intelecto trata-a com curiosidade,como se fosse a vontade de um estranho; quaisquer deci-sões seriam possíveis. Eis a ilusão da liberdade empírica doquerer, mas a Vontade é impenetrável!

Mas o homem, enquanto indivíduo, fenômeno da Von-tade, como pode ser livre?

54 55

Page 29: 10 liçoes sobre schopenhauer

Foi Kant, segundo Schopenhauer, que estabeleceu a

coexistência da necessidade com a liberdade de que goza a

Vontade como coisa-em-si, que se encontra fora do mundo

das aparências; foi Kant quem estabeleceu a distinção entre

caráter inteligível e empírico, e que, segundo Schopenhauer,

deve ser conservada.

Eseurlu 6 - Colrpanauvo ITNTRE os FUNDAMEN'IoS

nrrsrnuolóclcos

Immanuel Kant

Coisa-em-si (noume n on) -+ inacessível

X

Fenômeno -+ rePresentações

Arthur SchoPenhauer

Vontacle-em-si (noumenon) -+ passível de ser conhecida

xvontade individual (ob.ietivação da Vontade-em-si) represen-

tação.

O primeiro é a Vontade como coisa-em-si, que quer se

manifestar no indivíduo determinado; o segundo é essa mes-

ma manifestação que se desdobra na conduta do indivíduo,

segundo a lei de espaço, tempo e causalidade. A relação

dos dois caracteres assim se dá, entendendo o caráter inte-

ligível como ato da Vontade exterior ao tempo, portanto'

inalterável. Esse ato, quando se desdobra no tempo, espaço

e causalidade, segundo todas as formas detazáo suficiente,

é denominado de caráter empírico, que se dá pela experi-

ência em toda a conduta do indivíduo. Schopenhauer (s.d., c)

exemplifica isto fazendo analogia com a árvore, que é a

manifestação sempre repetida de um mesmo esforço; as

ações humanas são apenas a tradução repetida de seu caráÍer

inteligível, sendo o caráter empírico determinado pela obser-vação do conjunto de seus atos seguidos de indução.

Até aqui não há traços da liberdade, pois é uma ilusãoacreditar na existência de uma absoluta liberdade do querer;a Vontade como coisa-em-si é uma realidade totalmente in-dependente e ativa. De volta ao nosso tema, o que produz ailusão de uma liberdade empírica nos atos particulares é o en-tendimento em relação à Vontade. O entendimento conhece as

determinações da Vontade a posteriori. No momento da esco-lha, a Vontade não pode ajudá-lo na decisão a tomaÍ. "O cará-ter inteligível, que faz com que, sendo dados os motivos, umasó determinação seja possível" (SCHOPENHAUER, s.d., c,p. 383), ou seja, uma determinação necessária, então delibera.Aqui o intelecto se encontra isolado; o que ele conhecc ó ocaráter empírico de ato em ato. "Um exemplo do caráter ex-

lrcrimental provará isso; em presenÇa de uma escolha diÍícil,duas vozes se elevam: a da reflexão racional e a do instinto"{p. 384). Aqui temos que considerar os prós e os contras.

A divisão tão nítida dos motivos em dois campos é

o único meio que o intelecto tem para agir sobre a

decisão. Quanto à escolha em si mesma, ele (o inte-lecto) espera-a passivamente. com uma curiosidadenão menos desperta do que se tratasse da vontade de

um estranho (SCHOPENHAUER, s.d., c, p. 384).

Eis a ilusão da liberdade empírica: a Vontade para ointelecto é inacessível. O homem é sua obra antes do conhe-cimento; este vem depois iluminar o trabalho fêito. O conhe-cimento conhece e depois quer o que conhece, ou então, elecluer e depois conhece o que quer. Eu sou o meu querer!

Todavia, a liberdade absoluta do querer, essa imposturarla irracionalidade da Vontade, quando vivida pelo indivíduo,conduz, inexoravelmente, a deslizes, crimes, excessos, ilíci-tos, ilegalidades, injustiças. Vale frisar neste ponto a visãoschopenhauriana de Direito. Em sua filosoÍia, o Direito teria

57

Page 30: 10 liçoes sobre schopenhauer

Ium caráter negativo, pois surge como recurso para limitar aVontade. Ora, as injustiças, excessos, ilícitos, etc., nada maissão do que consequências da atuação da Vontade sobre o in-divíduo; indivíduo este que não sabe contrariar a Vontade,que cede de bom grado às suas sugestões e prazeres fúteis.O principium individuationis, oriundo de um co1po com suasconformações, caráter e particularidades, neste caso, mostra-se pífio, pusilânime, impudente. Outrossim, o indivíduo ain<Ja

revelará uma patente falta de sensibilidade para a contempla-

ção estética, e a religião, por sua vez, também mostrar-se-áineÍiciente. Restam, poftanto, as leis e o Estado. As leis teriama finalidade precípua de regular as relações entre indivíduos,estabelecendo limites, coibindo, proibindo e, em sendo neces-sário, cerceando a ilusão de uma liberdade. Enfim, o Direitopara Schopenhauer seria a negação da injustiça; um instru-mento retificador da ausência de caráter.

No que tange à formação do caráter, podemos inferir: ocaráter inteligível se maniÍ-esta nas ações e determina a na-tureza do caríúer empírico; o caráter empírico seria o desdo-bramento do caráter inteligível exterior ao tempo. A estes seacrescenta o caráter adquirido, que se forma na vida práticado mundo. É deste que se fala quando se louva alguém porter caráter, ou quando se censura por não o ter. Aqui exis-te o conhecimento da nossa individualidade; noção abstratae clara das qualidades imutáveis de nosso carátter empírico,enfim, do forle e do Íiaco e toda nossa individualidade. Essecaráter vem formar uma terceira espócie num gênero que secompõe com os outros dois. Em síntese, o caráter adquirido,oriundo da experiência do dia a dia, da vivência, acaba pornos forjar as atitudes através de uma prática de "depuração".E através do caráter adquirido que passamos a conhecer oque queremos e o que podemos. Enquanto ignorarmos o quequeremos e o que podemos, não temos caráter.

Enfim, a liberdade da Vontade como coisa-em-si nãose transmite aos seus fênômenos, nem mesmo à pessoa moral.

) ()

Esta nunca é livre, é fenômeno determinado pela Vontadelivre. Ao homem permanece a consciência ilusória da liber-dade: julga-se livre a priori em suas ações que, por expe-riência a posteriori, reconhece a necessidade absoluta desuas ações. Entretanto, há os que calorosamente sustentamque a liberdade advém de todos os seus atos, enquanto queos grandes pensadores e até as religiões mais profundas anegam (SCHOPENHAUER, s.d., c). A Vonrade e todos osseus fenômenos não está submetida à necessidade, sendo elamesma digna do nome livre e "todo-poderoso".

Pode-se perceber nessas colocações de Schopenhauer quesua solução para o problema da liberdade é contraditória. Entre-tanto, o filósofo parece propor uma solução para essa contradi-ção: é necessário abandonar o princípio deriyáo suficiente, istoó, elevar-nos com a ajuda do conhecimento racional além doprincípio de individuação. Então a liberdade relegada para f'orado mundo dos fenômenos, na qualidade de atributo da Vontade,rnanifestar-se-á no mundo ao suprimir a essência do nosso ser,tlonde resulta uma contradição do fenômeno consigo mesmo,tlue é expressa pelas palavras abnegação e santidade. Tal é averdadeira e única maneira de como a liberdade da Vontadepode exprimir-se no mundo da aparência.

llsquema 7 - A formação do caráter

Caráter inteligível (exterior ao tempo) -+ Caráter empírico(manifestação)

+

Caráter adquirido (formado na prática do dia a dia)

=Atitudes passíveis de depuração.

(o indivíduo dá-se a conhecer)

Observação: Quem ignora o que quer e o que pode não temcarâter.

59

Page 31: 10 liçoes sobre schopenhauer

Drct.vtq lrÇÃo

A ascese

Da mesma fonte de onde emana a caridade e a piedade,que se voltam contra o próprio indivíduo, emana tambéma negação do querer-viver. Em face da caridade, o ódio, amalvadez e a injustiça desaparecem. O conhecimento permi-tiu olhar através do princípio de individuação. Conseguiu-se, portanto, suprimir a individualidade; tornou-se clara aidentidade do querer e seus fenômenos. O véu de Maya foierguido; já não mais se faz distinções entre o eu e o outro.As dores do mundo foram assimiladas; sofrimento algum semostra estranho.

É o conhecimento das coisas-em-si que acalmam aVontade. Esta desliga-se da vida; elajá não quer, não se afir-ma pelo prazer. O homem evoluiu, encontra-se no estágio daresignação, da abnegação voluntária. A Vontade afasta-se davida e de seus gozos; ela se homoriza. A inteligência refletea Vontade, mas já não lhe é mais servil. O homem galgouo estádio de renúncia espontânea e mostra-se sereno. MasMaya, que ainda está próximo, fenta fazer uso do recursoda sedução: os elogios, as lisonjas dos bajuladores, o en-godo da esperança, o atrativo dos prazeres. O homem diznão! O caráter é suprimido, pois as representações não maisapresentam motivos. A Vontade dobra sua cerviz; ela negaseus fenômenos, sua própria essência. A compaixão - mi-tleiden - o sofrer com - já não é suficiente. É essa transfor-mação que tira o homem do estágio da abnegação e o lançano ascetismo.

Não basta incorporar as dores do mundo, o homem dei-xa de querer o que quer que seja, torna-se indiferente a tudo,nega a Vontade ao contrariar o corpo, recusa-se a uma satis-làção sexual. A castidade voluntária é o primeiro passo parao ascetismo. Todo e qualquer sofrimento, ultraje, ofensa, serábem-vindo; há uma patente alegria em acolhê-los. Aliás, fazuso destes para negar sua vontade. Sofrimentos e injúrias jánão lhe fazem caso. O corpo é tratado com parcimônia, qua-se que com indiÍ'erença. A renúncia total, já um ascetismo,làz com que a individualidade ceda lugar aos interesses dacspécie. O amor é universalizado. O homem despoja-se das

riquezas, dos bens materiais, do conforto, e isola-se, deixan-tlo de lado até mesmo a família e aqueles que lhe são caros.Nos Evangelhos encontramos: "Se queres ser perÍ-eito, vai,vende os teus bens, dá aos pobres, e terás um tesouro nos

cóus; depois vem e segue-me" (Mt 19,21).

Esse exercício místico shopenhauriano apresenta traçossemelhantes com a liberdade mística proposta por MestreIrckhart. Observemos, mesmo que en passanÍ, o conceito deW»t Abgeschiedenheit. Esse termo traduzido para o portu-guês pode ser entendido como "desprendimento", "comple-tu disponibilidade", "total liberdade", "reduzir-se ao maissimples", "demitir-se de si mesmo". Para o místico religiosorrlemão, esse "desprendimento" é a condição de possibilida-rle para a ação divina na alma, não ao modo da alma, mastlivinamente em Deus. A não vontade torna a alma comple-tamente livre. A liberdade aqui é entendida como o não per-rnitir que o mundo ou qualquer outra circunstância torne-seconstrangedora; um processo de libertação que teve iníciocom o desprendimento reduziu-se, disponibilizou-se, negou-sc a si mesmo até culminar na total liberdade.

Schopenhauer, no entanto, entende o ascetismo como" [...] o aniquilamento refletido do querer que se obtém pelalenúncia aos prazeres e pela procura do sofrimento [...]"(SCHOPENHAUER, s.d., c, p. 520). Mas só um número

óoi

-

(tl

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reduzido de homens consegue chegar ao ascetismo de modorefletido. Schopenhauer (p. 520) diz-nos que " [...] é quase

sempre preciso que grandes soÍiimentos tenham quebrantadoa Vontade, para que a negação do querer se possa produzir".Aqui pode se perceber que o sofrimento leva à libertação.A aproximação da morte e o desespero são também indis-pensáveis à purificação pela dor. Grandes infelicidades e/ousofrimentos possibilitam ao homem a compreensão do es-

forço inútil em lutar pelo querer-viver. Quando ao homem é

recusada de modo definitivo a satisfação de um grande dese-jo, a Vontade quebra-se, pois ela torna-se incapaz em quererqualquer outra coisa. A dor, portanto, se torna conhecimentopuro e conduz à resignaçào.

Schopenhauer (p. 527) pode rematar seu pensamentoquando declarou: " [...] o amor verdadeiro e puro. e mesmo aboa vontade, procedejá da intuição que vê alóm do princípiode individuação, a qual, chegada ao seu mais alto grau, con-duz à santidade absoluta e à libertação [...]".

Pelo exposto, entendemos que Schopenhauer faz da as-

cese - a vida voltada à santidade - na qual o abandono totaldos fenômenos e dos engodos da Vontade, sendo a negaçãodo querer-viver, a abnegação, a compaixão e a total renúnciaos degraus a serem galgados como condiçío sine qua non,para que o homem experiencie sua libertação e, consequen-temente, a liberdade.

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CoNsrnERAÇÕES FrNArs

Inegavelmente o ponto de partida da filosofia de Scho-penhauer é Kant. O sistema kantiano é imprescindível paracompreender o pensamento de Schoperrhauer, pois ele cons-tantemente o supõe e usa como fbnte e orientação.

Entretanto, para Schopenhauer, de acordo com sua obraCrítica da filosofio kantianct, o pensan-lento «le Kant contém"muitos e graves effos". Schopenhauer refuta passo a passo

suas teses específicas e entende ter demoliclo o racionalismologicista e abstrato tão característico do pensador de Kôni-gsberg. Por outro lado, Schopenhauer dá atençito especial à('rítica da razão pura - as outras não merecem atenção porcstarem diante de uma nova orientação filosófica.

Seu ponto de partida é a distinção kantiana entre fenô-rrreno e coisa-em-si, acrescida das condições ct priori da ex-periência, que começa pela percepção dos sentidos ou pelas

rnudanças causadas no corpo através das sensações e que

cria representações intuitivas. Tais representações intuitivassho obra do entendimento; ele as cria. É essa tese típica doromantismo schopenhauriano que o separa de Kant, muitocurbora Schopenhauer considere um "grande rnérito" esse"clescobrimento" de sua filosoÍiâ. Schopenhauer a toma-r'á como f-undamental em sua distinção entre o mundo que

irparece e o mundo como é. Todavia, sua interpretação de

I'enômeno e noumenon - coisa-em-si - se atàstam do sentidog,cnuíno kantiano. Schopenhauer extraiu esse sentido da filo-soÍia hindu. Para Kant, como sabemos, o fenômeno é a únicarealidade possível para o conhecimento. e o noumenon é oseu lirnite intrínseco. Contrariamente, para Schopenhauer,l'enônreno é ilusão, e noutnenon é aquilo que se oculta atrás

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da ilusão representativa, a Vontade, que agora se torna aces-sível, o que seria impossível para Kant. Sem ela (a Vontade),o mundo seria apenas representação.

A Vontade, contudo, é a origem de toda dor e de todomal; a Vontade é um querer constante, irracional. Quandocontrariada, revela-se como sofrimento. A Vontade é tam-bém um querer conservar-se, perpetuar-sel querer é, antesde tudo, querer viver. Mas a vida é provisória. O que nelapareceriaperpétuo é o desconhecimento do caráter irracionaldo impulso volitivo. Ao tomar consciência da dor de viver,o homem encontra-se a caminho de sua supressão. Esta vaidesde a negação da vontade de viver até a contemplação.

Aqui, no limiar de sua ética, surge a questão da li-berdade. Antes, porém, diferentemente de Kant, Schope-nhauer adverte que não vai propor uma ética de preceitos,nem uma doutrina de deveres, menos ainda um fundamentomoral das virtudes, ou uma proclamação de um impera-tivo categórico, ou códigos de leis, porque são conceitoscontraditórios. O fundamento da ética schopenhauriana é acontínua abnegação que provoca a dilaceração da Vontadeconsigo própria.

No afã de viver satisfazendo perpetuamente os apetitesda Vontade, surge no indivíduo o egoísmo, e dele advêm as

injustiças. Contra estas surgem o Direito e o Estado comoinstrumento de oposição ao egoísmo.

Na vida, o egoísmo é superado pelo conhecimento darealidade que une todos os seres. Todos os seres são idên-ticos entre si. Por isso, cada um pode sentir em si mesmo e

com a mesma intensidade, a dor alheia; pode soÍier-com, tercompaixão. "Chorar é ter compaixão de si mesmo" (SCHO-PENHAUER, s.d., c, p. 500); quando choramos pelos malesalheios é "t.. 1 porque na nossa imaginação nos colocamosdo lugar daquele que sofre; vemos na sua sorte o quinhãocomum da humanidade [...]" (p. 501).

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Finalmente a ascese é o mais alto grau libertador da mo-ral da compaixão, porque o "homem se reconhece em todosos seres e descobre sua essência íntima e verdadeira em to-das as criaturas [...] apropriando-se, assim, da dor universal',(p. 503). O asceta saudará a morte com júbilo e a desejaráardentemente. Sua missão é libertar a realiclade de toda ador; o mundo totalmente redimido pelo homem. "O resto clanatureza espera sua salvação pelo homem, que é sacerdote evítima" (p.507).

Assim, o homem ético de Schopenhauer, no nosso enten-cler, possui um caráter "sublime", isto é, a indiferença diantecla Vontade. Não se trata de virtude, mas uma indiferençaalheia aos interesses da Vontade. Ele refaz sua essência noNada. Isto é a sua verdade: o mundo como representação é oNada. Nada é a liberdade. Neste sentido, não se fala cle umaliberdade de escolher, mas sim de um "estado": o Nirvana.

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