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1 MITLEID: A COMPAIXÃO COMO FUNDAMENTO DA MORAL NO PENSAMENTO DE ARTHUR SCHOPENHAUER Antonio Marcos Vaz de Lima Teresina (PI) 2012

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MITLEID: A COMPAIXÃO COMO FUNDAMENTO DA MORAL NO PENSAMENTO DE ARTHUR SCHOPENHAUER

Antonio Marcos Vaz de Lima

Teresina (PI) 2012

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ÉTICA E EPISTEMOLOGIA

MITLEID: A COMPAIXÃO COMO FUNDAMENTO DA MORAL NO PENSAMENTO DE ARTHUR SCHOPENHAUER

Antonio Marcos Vaz de Lima

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ética e Epistemologia da Universidade Federal do Piauí, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Filosofia, sob orientação do Prof. Dr. Luizir de Oliveira.

Teresina (PI) 2012

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TERMO DE APROVAÇÃO

ANTONIO MARCOS VAZ DE LIMA

MITLEID: A COMPAIXÃO COMO FUNDAMENTO DA MORAL NO PENSAMENTO DE ARTHUR SCHOPENHAUER

Dissertação_______________ como requisito parcial à obtenção do título de Mestre, pelo Programa de Pós-graduação em Ética e Epistemologia, Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade Federal do Piauí, pela seguinte banca examinadora:

______________________

Prof. Dr. Luizir de Oliveira – UFPI (orientador)

______________________ Prof. Dr. André Luis Muniz Garcia (examinador externo)

______________________ Prof. Dr. Daniel Arruda Nascimento (examinador/PPGEE)

Teresina, _____ de ______________ de 2012.

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Dedico esta Dissertação com o mais puro amor

a Edinete e Hannah, minhas musas inspiradoras.

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Agradecimentos

Acima de tudo a Deus, inteligência suprema, causa primeira de todas as

coisas, que não tem começo e nem fim, porém, que se dá a conhecer intimamente.

À minha esposa Edinete Silva das Neves Vaz de Lima e minha filha Hannah

Beatrice Neves Vaz de Lima. Aos meus parentes e familiares. Ao meu pai Alcione

Machado de Lima (in memoriam), Maria Gorete Vaz Machado de Lima. Às minhas

irmãs Cláudia Valéria Vaz de Lima, Sâmia Priscylla Vaz de Lima. Aos meus avós,

Antonio Vaz de Lima, Maria Dos Anjos Oliveira de Carvalho, meus tios Hortêncio de

Oliveira Vaz, Augusto de Oliveira Vaz, Carlos Alberto de Oliveira Vaz, Alzira Vaz de

Oliveira Silva, Maria Margarete Vaz de Oliveira Barros. Primos e primas.

Ao meu Orientador, professor Dr. Luizir de Oliveira, pelo zelo, atenção e

paciência, atributos das mentes dignas e raras. Como Virgílio, guiando-me com

insigne maestria, fez caminhos íngremes e sinuosos parecerem planícies e vales

tranqüilos. Orientando-me a respeito de filosofias e filósofos, ensinou-me sobre vida

e felicidade, e, por isso, suas lições ficarão para sempre guardadas em minha alma.

À Universidade Federal do Piauí – UFPI. À Pró-reitoria de pesquisa e pós-

graduação do Centro de Ciências Humanas e Letras e à Coordenação do Mestrado

em Ética e Epistemologia – MEE. Aos professores do Mestrado. Aos colegas de

Mestrado, Chagas, Jaaziel, Joedson, Daniel, Isabel, Lorena, Raquel, Virna, em

especial a Ivan Jorge, Marcos Roberto, Gadafy, Robson, Adailson, e Alexander, que

foram para mim exemplos extremamente positivos de vida acadêmica.

À Secretaria Estadual de Educação e Cultura – SEDUC. De modo particular à

professora Ms. Maria José da Costa Sales, personalidade altiva e incentivadora,

pelas críticas e pela ajuda sem limites. À professora Dr. Jovina da Silva, pedagoga

e filósofa, Coordenadora do Curso de Pós-graduação em Especialização em

Docência, professora de metodologia da pesquisa da Faculdade Santo Agostinho,

membro do corpo editorial da Revista da Faculdade Santo Agostinho, de altíssima

competência e humildade iluminando o caminho da pesquisa em momentos de

ofuscamento. Aos meus amigos Washington, Amélia e Leona, Gerardo Magela

Giovanni Dantas, Joilton Carlos, Genival, Julimar Halley. A todos que de muitas

formas ajudaram e participaram de minha vida.

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“Desde que procuremos promover o conhecimento e a intelecção humana, sentiremos sempre a oposição da época presente como a de um fardo que se procurasse arrastar e que se comprimisse pesadamente no solo, opondo-se a todos os esforços. Temos de nos consolar com a certeza de ter por garantidos os preconceitos conta nós, mas a verdade a nosso favor, assim que o tempo seu aliado juntar-se a ela, estará plenamente certa da vitória, se não para hoje, então para amanhã”. (Sobre o fundamento da moral, 1995, p. 212).

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RESUMO

Este trabalho tem como objetivo investigar como o filósofo Arthur Schopenhauer apresenta a compaixão (Mitleid) como fundamento da moral. Para isso, realizamos uma análise de suas principais obras, mas especificamente das obras O mundo como vontade e representação e Sobre o fundamento da moral, nas quais, acreditamos poder identificar o cerne de seu pensamento ético-moral. Buscamos situar o pensador dentro de um cenário panorâmico histórico e filosófico mais amplo a fim de compreendermos melhor sua filosofia que, centrada numa proposta de Pensamento Único, intenciona decifrar o enigma do mundo por meio de sua concepção de vontade e representação. A partir disso, delineamos os pontos centrais da crítica de Schopenhauer ao Imperativo Categórico kantiano, fundamento moral vigente em sua época, a fim de que, com base nesse exame, possamos enfatizar a resposta schopenhaueriana de que a moral não pode estar fundada nem em compreensões teológicas, nem normativas, nem deontológicas, pois são expressões acabadas de motivações antimorais. Mas, a partir de uma metafísica dada, concluir-se-á que a única e genuína motivação moral, para Schopenhauer, será a compaixão, fonte das virtudes da justiça e caridade autênticas.

Palavras-chave: moral, Schopenhauer, compaixão.

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ABSTRACT This study aims to investigate how the philosopher Arthur Schopenhauer presents the compassion (Mitleid) as the foundation of moral. For this, we performed an analysis of his major works, but works specifically The world as Will and Representation and On the basis of morality, in which, we believe we can find the core of his ethical and moral thought. We seek to situate the thinker into a panoramic historical and philosophical wider in order to better understand his philosophy, that centered on a proposal for a Single Thought intends to decipher the riddle of the world through his conception of Will and representation. From this, we outline the main points of criticism of Schopenhauer to Kant’s Categorical Imperative, prevailing moral foundation in this time, so that analysis, we can emphasize the response schopenhauerian that morality can not be founded neither on understandings theological, normative or deontological, because they are expressions of motivations antimorais finished. But, from a metaphysical given. It will conclude that the only genuine motivation and moral, for Schopenhauer, is compassion, the source of the virtues of Justice and Charity authentic. Keywords: moral, Schopenhauer, compassion.

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SUMÁRIO

1 Introdução..............................................................................................................10 2 Do cenário geral às teses estruturais de um mundo tomado como Vontade e

representação...........................................................................................................13

2.1 O referencial proposto pelo romantismo alemão..................................................14

2.2 O referencial proposto pelo idealismo alemão.....................................................18

2.3 O Pensamento Único...........................................................................................20

2.4 Representação e Vontade....................................................................................32

2.4.1 Da epistemologia de Kant às teses da Quádrupla raiz do princípio de razão

suficiente....................................................................................................................34

2.4.2 A Vontade: as quatro perspectivas do mundo..................................................45

3 As principais bases para o debate sobre o fundamento

ético...........................................................................................................................51

3.1 Questões introdutórias sobre a ética....................................................................52

3.2 O debate moral com Kant.....................................................................................53

3.3 Liberdade e necessidade, uma reflexão que conduz à doutrina dos

caracteres...................................................................................................................67

3.4 A lei de Motivação................................................................................................75

3.5 A proposta schopenhaueriana para a moral........................................................82

4 A apresentação da ética compassiva como resposta ao enigma do

mundo........................................................................................................................86

4.1 A estética..............................................................................................................86

4.2 O ético..................................................................................................................91

4.3 As virtudes: Justiça e Caridade..........................................................................111

4.4 A mística do Mitleid............................................................................................119

4.5 A ascese.............................................................................................................127

5 Considerações finais..........................................................................................132 6 Referências bibliográficas..................................................................................137

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1. Introdução

Tentar responder aos questionamentos acerca da origem e do

desenvolvimento da moralidade, assim como das conexões entre as ações e a

consciência moral, e de como a vontade se relaciona com natureza humana, sempre

foram alguns dos grandes desafios éticos da humanidade. O homem, ao longo de

sua jornada existencial, depara-se com um desejo, ainda não satisfeito, de encontrar

um fundamento que seja capaz de justificar seus atos e intenções e que, ao mesmo

tempo, possa garantir legitimidade para o seu agir individual e coletivo. Essa é uma

investigação que “[...] afeta de maneira imediata cada um de nós e a ninguém pode

ser algo alheio ou indiferente” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 353).

Neste trabalho nosso objetivo é investigar o fundamento da moral a partir da

proposta schopenhaueriana. Esperamos mostrar nos escritos do pensador a sua

resposta para o enigma da moralidade e para a ética. Dessa maneira, quer-se ver

como Arthur Schopenhauer propôs uma análise da existência que contemplava as

muitas dimensões que cercam os homens em todos os tempos e lugares, ou seja, a

epistemologia, a metafísica, a estética e a ética. E nessa análise intentou responder

o fenômeno ético por meio da obra O mundo como vontade e representação pelo

prisma de sua filosofia de cunho metafísico, buscando uma fundamentação para o

problema da ética e da moral.

Schopenhauer apresenta sua proposta moral, o Mitleid, anos depois, por meio

de um ensaio curto intitulado Sobre o fundamento da moral, datado de 1840,

entregue para apreciação da Sociedade Real da Dinamarca como o objetivo de

responder sobre o lugar, a fonte e o fundamento da moral. Para o pensador, esse

era o reconhecimento da inconstância e da fragilidade dos sistemas morais

anteriores, assim como a necessidade de se apontar para um fundamento que fosse

verdadeiramente seguro.

Influenciado pelo pensamento platônico e pelo idealismo kantiano, o autor nos

convida a rever a discussão moral, porém, dessa vez, longe das prescrições, dos

dogmas, dos fundamentalismos religiosos ou de quaisquer interesses materiais dos

demais sistemas morais para tentar responder à pergunta fundamental que

concerne à moral. Ao romper com o antigo modo de pensar que modulou a ética em

tentativas anteriores, Schopenhauer inaugurou uma filosofia alicerçada nos

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conceitos idealistas transcendentais de representação e vontade como duas

manifestações de uma única e mesma realidade, ou seja, do mundo. O corpo teórico

de sua filosofia despontava como uma tentativa de pensar o problema da origem e

lugar da moralidade no universo humano de maneira a firmar o método analítico,

que parte das conseqüências à razão das mesmas. Por isso, uma abordagem mais

demorada sobre a descrição do fenômeno moral em Arthur Schopenhauer tornar-se

a rota a ser seguida nessa pesquisa, tentando compreender onde e como se

apresenta tal fenômeno dentro das obras do autor.

Investigar a compaixão schopenhaueriana, enquanto fundamento moral,

revela-se necessariamente uma proposta diferente de outras de cunho teológico,

deontológico ou teleológico, justamente por trazer consigo a marca da análise

existencial, porém, voltada para a natureza humana com conotações mais realistas.

A análise de tal proposta moral surge como uma tentativa de contribuir,

significativamente, para o alargamento das reflexões ético-morais com base num

ponto de vista idealista transcendental que fundirá teoria e prática. Por isso, não

obstante a abrangência e a complexidade de toda a sua obra, optamos por duas em

particular que nos guiarão nessa pesquisa, que são, O mundo como vontade e

representação, mais precisamente o Livro IV, e a obra Sobre o fundamento da

moral, na qual acreditamos encontrar o cerne e o aprofundamento da questão moral.

Para dar cabo a análise, verifica-se a necessidade de compreender sua filosofia

idealista transcendental, guiados pelo conselho do Schopenhauer (2005, p. 23), que,

para isso, seja necessário ao leitor estar familiarizado com a filosofia de quem ele

chama “grande Kant” e “a escola de divino Platão”, a fim de que, no decorrer de seu

itinerário reflexivo, alcancemos êxito em nossa pesquisa.

No primeiro capítulo, analisar-se a proximidade do autor com dois

movimentos alemães que acreditamos ter uma profunda relação, que são o

romantismo e o idealismo. A partir disso, seguindo a itinerário que o próprio autor

utiliza, deve-se analisar epistemologicamente os conceitos de representação e

Vontade contidos na obra O mundo como vontade e representação a fim de

apreender sua análise da realidade. E, para isso, faremos uso da leitura dessa dada

realidade por meio de sua quádrupla raiz do princípio de razão suficiente, com o

objetivo de entendermos como o filósofo concebia a realidade fenomênica. Em

seguida, abordar-se-á o seu conceito de vontade como um termo capital dentro de

seu pensamento único.

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No segundo capítulo aborda-se como para Schopenhauer era necessário

que se enfrentasse o último grande sistema moral vigente na Europa, o imperativo

categórico kantiano. Pois para o filósofo de Dantzig, a ética kantiana, embora

estivesse calcada em critérios de universalidade e necessidade, estava mais voltada

para a conduta privada e momentânea na qual a realização dos atos estava sob a

forma de uma constituição subjetiva da autodeterminação do indivíduo. O imperativo

categórico tornou-se uma generalização hipotética e sem conexão causal entre o

‘eu’ e o ‘todo’, o que, de certo modo, transformou uma escolha privada numa lei

geral. Para Schopenhauer, a existência de leis morais puras e de conceitos

hipostasiados tornaram-se condição excessivamente transcendental e inalcançáveis

para o agir humano, pois ultrapassavam toda a possibilidade de experiência

possível. Desligando o ato moral da realidade e do reino da causalidade.

O terceiro e último capítulo centrar-se inicialmente em sua análise estética

que servirá como suporte necessário para a compreensão do fenômeno ético

denominado por ele de compaixão, pois tanto a estética, quanto a ética, ocorrem por

meio do conhecimento intuitivo. Nesse sentido, a compreensão da moralidade vista

pela ótica schopenhaueriana dependerá de uma análise epistemológica, metafísica

e, conseqüentemente, estética, para só então estruturamos tais pontos como apoios

para uma compreensão significativa de sua ética.

Ao final, espera-se contribuir com um esclarecimento possível acerca do

fenômeno moral apontado por Arthur Schopenhauer.

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2 Do cenário geral às teses estruturais de um mundo tomado como

vontade e representação

Antes de nos aproximar da proposta de Arthur Schopenhauer acerca do

fundamento para a moralidade, é preciso iniciar este trabalho analisando o quadro

geral no qual se encontra inserido o filósofo, o que significa, de certa forma, um

convite para mergulhar em seu contexto histórico e cultural numa perspectiva

filosófica, principalmente em seus primeiros anos, a fim de que, a partir deste

esforço, seja possível remontar seus primeiros passos no caminho do filosofar, e

alcançar uma compreensão mais clara a respeito de seus referenciais, ou seja, do

seu locus, e das suas possíveis influências. Ao cabo dessas observações, espera-se

conjugar as inferências, desde aqui já apontadas, com as suas proposições

filosóficas e, de modo conclusivo, com a sua teoria ética.

Perguntar sobre como o pensador de Dantzig estruturou sua perspectiva

filosófica, de quais pressupostos ele partiu, quais eram suas convicções literárias,

bem como inquirir sobre quais foram os grandes debates que vigiam no cenário

filosófico até o início de sua produção filosófica passa a ser a nossa proposta de

análise e compreensão daquilo que para Schopenhauer (2005, p. 353), para que

toda a filosofia, enquanto teórica, tende, ou seja, para a discussão do fenômeno

ético e suas implicações práticas.

Retrocedendo no tempo, podemos examinar que a Alemanha de

Schopenhauer passava por inúmeras transformações sociais, culturais e filosóficas

manifestas em inúmeras guerras que ocorriam desde o final do século XVII. De

modo considerável, dois movimentos em particular influenciaram o seu modo de

pensar incidindo principalmente em sua visão de mundo, a saber, o Romantismo e o

Idealismo alemão. Inicialmente, o romantismo alemão, que foi um movimento

literário, que tinha como proposta a libertação da estrutura de uma compreensão de

mundo, de homem e de existência ainda com fortes resquícios do período medieval,

e, posteriormente, o idealismo que tinha como objetivo a análise e reflexão acerca

da existência e da natureza em sua inteireza.

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2.1 O referencial proposto pelo romantismo

A qualificação de ‘romântico’, empregada inicialmente em idiomas francos e

saxônicos do final do século XVII para poder classificar aquelas narrativas

demasiadamente imaginosas muito próximas dos contos medievais dos séculos XI e

XII, começou a ganhar destaque e em seguida passou a ser visto como uma

tendência estética que avançou rumo a várias outras áreas da criação imaginativa e

do pensamento humano, que propôs uma oposição ao modelo estético de cunho

racionalista existente até então na Europa dos séculos XVIII e XIX. Caracterizado

pela impetuosidade da busca em exaltar o homem, o belo e a natureza para além de

uma proposição realista e materialista, foi expressão também de rebeldia

comportamental, numa tentativa de libertação dos velhos conceitos tidos como

predeterminados nas artes e pré-estabelecidos inalteravelmente como verdades nas

ciências. Tal libertação trouxe como conseqüência a independência do modo de

pensar e agir, bem como a retomada da subjetividade individual em lugar da

exaltação da objetividade e da positividade.

No contexto histórico ainda repercutiam os resultados da Revolução Francesa

e da recente Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 26 de agosto de

1789, assim como a queda do Sacro Império Romano-Germânico, ao mesmo tempo

em que se testemunhava o advento da Revolução Industrial e das conseqüências do

Iluminismo que se elevava a níveis especulativos capazes de propor uma pura

ideologia como cultura teórica. Essa profunda transformação que começa a

acontecer na Europa do século XVIII teve iniciou com Johann Gottfried Herder que

influenciara jovens a se voltarem aos ideais românticos por meio de uma “linguagem

cheia de levitações e incursões, provocando resistência de muitos contemporâneos”

(SAFRANSKI, 2010, p. 23). O pensamento de Herder originou uma perspectiva

totalmente voltada para a exaltação da vida e do dinamismo da história. Essas

transformações históricas foram assimiladas e projetadas pelos homens e mulheres

daquele período para muitas outras áreas do conhecimento humano o que, de certa

forma, “inaugurou uma nova forma de compreensão da vida e de seu transcurso”

(SAFRANSKI, 2010, p. 46).

A história, que até então havia sido concebida como estática e desligada da

natureza, fora, a partir da ótica romântica, redimensionada e abraçada como uma

estrutura dinâmica e criadora, capaz de retratar diretamente a natureza. Uma

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compreensão renovada da história nestes moldes proporcionou a este homem

romântico uma compreensão igualmente nova também de própria natureza que

passou a ser a vista como uma força criadora advinda de uma fórmula de vida capaz

de abrir o horizonte para o conhecimento de si e do mundo. Por meio dessa

perspectiva, o homem começou a entender-se como espectador e ator do

espetáculo da vida, redescobrindo a autonomia de fazer-se e refazer-se em suas

várias dimensões, fossem elas lúdicas, literárias, éticas, políticas, religiosas ou

artísticas e etc.

A partir disso, o mundo começava a ser entendido como algo para além das

cidadelas e povoados, e, conseqüentemente, o homem acompanhando este avanço,

superava aquela noção de um indivíduo isolado que apenas fazia parte de uma

engrenagem maior. Esse novo homem, o romântico, partindo do olhar de si mesmo,

passou a compreender-se como um elo dinâmico e significativo com o mundo, assim

como, com a natureza e com a vida. Essa mudança de concepção obedecia a um

movimento que partia do mundo visível para o mundo invisível, retornando, em

seguida, para o mundo visível de uma maneira muito mais modificada.

Ao redescobrir a natureza, o homem romântico havia redescoberto também o

próprio corpo e, conseqüentemente, a própria sexualidade, o que fez surgir um forte

discurso de liberdade cada vez mais expressivo que o reconduziu a uma experiência

e a um exercício da espontaneidade que seria facilmente percebido e representado

nas artes e, mais especificamente na literatura.

Embora ainda houvesse um peso de uma forte religiosidade

institucionalizada, o homem romântico começava a exercitar um processo de

redescoberta do corpo por meio do erotismo, que se abria para novas perspectivas.

Nessa perspectiva, um mundo de significados se via desvelar por sobre os olhos dos

homens e mulheres desse período, pois, o corpo para os românticos era um

momento de “uma crítica ao céu e da descoberta da terra e do corpo e da

sexualidade como soldados de libertação da humanidade e nada mais que um

poeta” (SAFRANSKI, 2010, p. 43). Tenda-se que a possibilidade da liberdade

corporal viabilizava a liberdade ideológica. Foi a partir disso que o romantismo deu

iniciou a uma religiosidade com fundo poético e ao mesmo tempo místico. Schlegel

havia descrito que a religião cristã havia tornado-se velha e sem força, e a arte não

seria apenas uma heteronomia, pois não seria mais uma revelação considerável,

que vinha de um deus localizado por cima do mundo, mas “o florescimento da

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liberdade criativa no homem até a autodivinização” (SAFRANSKI, 2010, p.126). Por

isso, “Novalis escolheu a Idade Média cristã como imagem para criar um contraste”

(SAFRANSKI, 2010, p.127). Desse modo, as religiões foram gradativamente sendo

substituídas por uma concepção de arte, o que gerou uma inversão dos conceitos de

religião da arte e a arte da religião.

A partir dessa proposta centrada numa imaginação produtiva na estética

romântica, temos uma variação de temas como a luta do bem contra o mal com

destaque para seus heróis, que tiveram suas qualidades ampliadas a fim de melhor

expressar o enorme fascínio que havia para com as perspectivas espirituais,

sobrenaturais ou mesmo místicas. O Romantismo reivindicava a liberdade criadora

negligenciando os limites impostos pela regulação e pela simetria, o que introduziu a

expressão-conceito: “a arte pela arte”, “ars gratia artis”. Deste modo, seus ideais

imaginativos não poderiam mais ser ameaçados por interesses de nenhuma

espécie, fossem eles políticos, econômicos ou sociais, alicerçando seu compromisso

apenas com o que era emocionalmente comunicável em sinal de desprezo às

convenções e conveniências utilitaristas. Para Safranski (2010, p. 30), o estilo cada

vez mais impulsivo de escrever marcou esta geração romântica que flertava com a

exaltação do bom, do belo e do verdadeiro.

Esse estilo que guardava um certo tom de atrevimento poético ganhou o

interesse das pessoas que estavam em busca de uma vida intensa e cheia de novas

experiências e que utilizavam a literatura como um espelho desta busca. Esse

interesse era reforçado por uma forte inclinação para a especulação, para a

dramaticidade ou para a comicidade, nas quais estas mesmas pessoas se viam num

movimento de identidade que passou a propiciar a valorização de suas próprias

vidas. Os escritores românticos, que quase sempre eram auto-referventes,

ofereciam um discurso convidativo e sedutor que impelia ao abandono da métrica e

da forma, característicos do modo racionalista de análise. Assim, o horizonte das

possibilidades e da liberdade, chocava-se com a exaltação dos sentimentos em

consonância com a ação. Nessa época, inicia-se uma corrida por ler mais e saber

mais, por parte da burguesia européia, como uma forma de identificar-se com as

histórias lidas e seus heróis. “As pessoas procuravam pela vida por trás da literatura

e, de maneira contrária, estavam fascinadas pela perspectiva que a literatura podia

formar da vida” (SAFRANSKI, 2010, p. 49). Tendo em vista que as narrativas

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imaginativas propunham a substituição do modo anterior como desconecto e

ultrapassado.

A melancolia também exerceu enorme fascínio entre os românticos, no

mesmo momento em que aumentava o interesse por temas místicos ou secretos, o

que de certo modo, atiçou a curiosidade para temas sobre a teosofia, a maçonaria e

irmandades jesuítas. Essa tendência reformista que se impôs contra o materialismo,

o historicismo e o realismo, tornou-se mais expressivo por meio do movimento jovem

Lebensreform, que juntamente de um outro movimento literário denominado Sturm

und Drang, ou seja, tempestade e ímpeto, que buscou, dentre outras coisas, um

retorno à natureza e o reencontro com mistério e o encanto pelo mundo, no qual,

“Novalis se tornou a personificação da figura mística da época dos românticos”

(SAFRANSKI, 2010, p. 103).

Na política, os românticos manifestam-se revoltosos contra a divisão de

trabalho e suas causas deformadoras por meio das críticas de Wackenroder e Tieck

que utilizavam a ironia como um risco necessário. Safranski (2010, p. 85) destaca

que Schlegel exaltou a ironia em sua retórica romantizando-a e alargando-lhe o

significado. e marca própria, pois em sua retórica, os românticos também

desenvolveram uma acentuada crítica na qual ironia, crítica e sensibilidade poderiam

conviver em harmonia. Através desse dinamismo, o homem romântico começou a

transformar o seu modo de ver e de se construir culturalmente, e, com isso, tendo

em vista que ele não se via mais num curso histórico indefinido, mas ao contrário,

percebia-se como partícipe do processo de realização de si mesmo e da existência,

deixa de lado sua condição social de singularidade para adentrar num modo de

compreensão da pluralidade. Cada indivíduo marcava de maneira singular aquilo

que o homem é e pode ser, pois só quem pudesse vivenciar o princípio criador em

seu próprio corpo, poderia descobri-lo fora, ou seja, no correr do mundo e na

natureza.

Como não se via mais como um indivíduo isolado, mas como um ser inserido

num todo maior, o romântico, pôde expandir as fronteiras do conceito de indivíduo,

de nação e de mundo, pois o patriotismo cedia lugar à abertura da multiplicidade das

muitas culturas existentes na Europa que começavam a ganhar mais espaço e

expressão naquele cenário. A revolução política estendia-se à revolução estética e

ligava-se a outras culturas, dentre elas, a cultura oriental, que aos poucos

manifestava-se na moda, na literatura, nas ciência e etc.

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O movimento romântico encontrou solo fértil para crescer num período em

que a herança medieval e a dogmática eclesial católica e protestante entravam em

declínio em vista da crescente valorização dessa subjetividade nas artes e nas

ciências ocidentais representando uma fase de fervor e entusiasmo para muitos

intelectuais. Porém, com a ressalva de “ser tudo menos filosofia” (HARTMANN,

1960, p. 189).

2.2 O referencial proposto pelo idealismo alemão

O idealismo alemão, por sua vez, foi um movimento espiritual que teve seu

início na década de oitenta do século XVIII até a metade do século XIX, e que teve

como berço a Universidade de Iena na Alemanha, considerada por muitos como a

capital deste mundo espiritual, e que mais tarde viria a agregar para junto de si a

Universidade de Berlim como um segundo momento de desenvolvimentos de suas

atividades intelectuais. Esse grupo homogêneo de pensadores tinha como ponto de

partida a filosofia de Immanuel Kant e o objetivo comum de criar um sistema

filosófico estruturado em fundamentos últimos e irrefutáveis que revelassem um

sistema ideal à prova de equívocos que pudesse responder às questões mais

fundamentais da filosofia numa perspectiva de totalidade e consistência,

estabelecendo de uma vez por todas as bases para uma doutrina unitária na forma

sistemática. Não obstante o Idealismo haver surgido numa atmosfera de dualismo

entre o espírito e a matéria, para Safranski (2010, p. 121), “O idealismo alemão foi

uma tentativa de superar o dualismo, e os românticos deram a essas tentativas

ainda uma nota especial”. Tal nota seria, apresentar uma abordagem que se

dirigisse, inicialmente, em direção à crítica da totalidade numa perspectiva

profundamente metafísica e especulativa e, posteriormente, dirigir-se a um despertar

sistemático.

Essa ênfase crítica inicial pós-kantiana por uma sistemática construtiva foi

uma reação à crítica destrutiva nascida dos primeiros esforços por entender a

filosofia de Kant como um pressuposto para todo o sistema idealista, em

conseqüência direta dos inúmeros trabalhos que surgiam a cada pesquisa ou estudo

realizados. Inicialmente, os esforços eram por analisar e entender a obra Crítica da

razão pura e aprofundar suas investigações, o que não se revelou trabalho tão

prontamente realizável. Em seguida, na segunda metade do século XVIII, por meio

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dos esforços de Karl Leonard Reinhold em promover uma forma diferente de

apreciação de valor e de interpretação da obra kantiana, se viu surgir uma nova

safra de pensadores idealistas mais direcionados para a continuação dos trabalhos

e estudos oriundos dessas análises da filosofia de Kant. Numa série de nomes

importantes que se destacaram nesse contexto temos Schulze, Maimon, Beck,

Jacobi e Bardili que compuseram. No primeiro grupo, contamos os nomes de Fichte,

Schelling e Hegel, Schleiermarcher e Krause. Para Nicolai Hartmann (1960, p. 12),

Schopenhauer participa dessa listagem, porém, apenas num período mais avançado

por conta de seu êxito literário. A escola de poetas pré-românticos também ajuda a

integrar o desenvolvimento idealista alemão por meio de escritores de épocas

diferentes que poderiam contribuir para os avanços dos estudos. A escola dos

poetas pré-românticos desempenha um papel integrador especial neste

desenvolvimento filosófico. A sua influência exerce-se quase ao mesmo tempo que

os primeiros trabalhos de Schelling e em estreita relação recíproca com os

progressos deste filósofo. São principalmente Friedrich Schlegel e Novalis que se

aventuram no campo filosófico e cujo espírito leva para a especulação idealista a

sua nostalgia voltada para o infinito e para o irracional. O mesmo se pode dizer de

Hölderlin, dentro de certos limites. “Na mais íntima conexão com esta nova corrente

espiritual encontra-se a influência, que dominara também uma série de pensadores

antigos: Plotino, Bruno, Spinoza, Jakob Böhme” (HARTMANN, 1960, p. 12).

O movimento idealista alemão, com muitas fases, e com seus respectivos

representantes, como Fichte na fase inicial, Schelling na fase mais intermediária e

Hegel fechando o ciclo e que sofre uma transformação em seu momento mais

culminante com uma ênfase mais irracional. “A viragem que o idealismo sofreu a

partir daqui, determinada de um modo racional por Kant, mostra-se da maneira mais

positiva no campo da ética, da estética e da filosofia da religião. Mas o irracionalismo

propriamente dito penetra só tarde na última fase de Schopenhauer e Schelling, ao

passo que Hegel, que deve à poesia e à vida românticas uma grande quantidade de

motivos intelectuais, nunca desconfia da onipotência da razão” (HARTMANN, 1960,

p. 13). Hartmann (1960, p. 273) traz, ainda, como acréscimo, um quadro cronológico

das principais obras do Idealismo Alemão em que classifica Schopenhauer como um

dos últimos idealistas alemães. Na tentativa de apreender o pensamento kantiano

em seu âmago mais sistemático e positivo muitos intérpretes da Crítica da razão

pura optaram por buscar as respostas para as questões pós-kantianas no campo

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não da teoria, mas da prática vislumbrados que estavam a respeito das análises

éticas.

2.3 O Pensamento Único

Arthur Schopenhauer trouxera do idealismo a habilidade de análise e

compreensão de mundo que lhe serviria, no momento de concepção de suas obras,

como via segura de sistematicidade e poder de observação da conjuntura e da

totalidade. Do romantismo, o pensador assimilara a visão de mundo trágica e

apaixonada dos grandes poetas e escritores que desde tenra idade se pôs a ler.

Estes mesmos escritores, no futuro, poderiam ser ouvidos sutilmente ao fundo de

sua produção filosófica por meio do quadro que havia pintado da existência como

livre e rebelde. Também assimilara do movimento romântico toda sua impetuosidade

retórica e poética na qual estaria exposto um apelo tragicômico e, mesmo,

pessimista com relação à existência. O pessimismo, como veremos, seria apenas o

pano de fundo de sua filosofia, que agregaria, na ordem prática, conotações mais

otimistas.

Influenciado por escritores românticos e idealistas alemães, Arthur

Schopenhauer iniciou sua atividade filosófica cedo, mas não recebeu do mesmo

modo o reconhecimento. O anonimato gerado pelo sucesso do sistema hegeliano o

levou a um ostracismo que duraria pelo menos vinte e seis anos. Tal ostracismo

encerrava-se com a publicação de Parerga und Paralipomena, ou seja, Ornatos e

suplementos, datada de 1851, pois, nas palavras de Wolfgang Röd (2008, p. 393)

“Assim como demorou em se tornar conhecido, Schopenhauer manteve a fama por

muito tempo, principalmente nos círculos cultos da burguesia, enquanto a filosofia

acadêmica permanecia distante dele”. Depois, mesmo gozando de fama,

Schopenhauer manteve uma postura arredia com relação à tradição filosófica

ensinada nas academias por considerar a atividade filosófica como um compromisso

para com a verdade. Para o autor (2001, p. 17), a filosofia deveria ser pura e não

conhecer nem voltar-se para nenhum outro fim a não ser a verdade, pois “[...] sua

meta superior é satisfação da nobre carência, por mim chamada de carência

metafísica, que é sentida íntima pela humanidade em todos os tempos”.

Com a intenção de estruturar consistentemente as verdades expostas por

meio de sua metafísica, Schopenhauer buscou aproximar-se das questões

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científicas de seu tempo, às quais acompanhou com grande interesse, dedicando-se

especificamente às ciências físicas e biológicas 1. Nesse ínterim, debruçava-se

sobre a leitura de Platão e Kant, os quais, no futuro, considerou-se herdeiro de suas

filosofias como uma expressão não contida e um desejo de responder ao enigma do

mundo. Para Safranski (2011, p. 198), “um lhe proporcionaria uma metafísica

necessária e o outro as condições para conhecer os limites do conhecimento”.

O pensamento do filósofo Arthur Schopenhauer, exposto em suas diversas

obras, é, como ele mesmo nos indica, um esforço de um pensador que se propôs a

comunicar à humanidade uma mensagem que fosse capaz de revelar aquilo que por

muito tempo ocupou todas as dimensões do conhecimento, tanto nas ciências,

quanto na filosofia, no sentido de oferecer um pensamento que respondesse ao

grande enigma humano, o enigma de existir. Um pensamento que ousasse

responder à pergunta que desde sempre o homem fez a si mesmo sobre o sentido e

razão da existência, deveria, em sua visão, ser considerado como um Pensamento

Único (ein einziger Gedanke), e que, devido às muitas dimensões a que a existência

humana está submetida, ou seja, a dimensão metafísica, a estética e a ética, deveria

admitir, do mesmo modo, diferentes lados, mas que, ao final, revelaria uma única e

mesma verdade, ou seja, uma visão de unidade constitutiva.

A busca por apresentar à humanidade um pensamento único levou o

pensador a diferenciar sua proposta dos demais sistemas de pensamentos comuns

ao seu tempo, tratando de demonstrá-lo de modo que servisse não só aos homens e

mulheres de seu tempo, mas que fosse alavancado para a posteridade, dado o seu

caráter atemporal e humanitário, pois as características de seu pensamento dar-se-

íam pela abordagem de uma filosofia que fosse capaz de unir teoria e prática, num

corpus teoricus e numa práxis, no qual aquelas muitas dimensões da existência

constituiriam uma única e mesma visão da realidade. Schopenhauer afirma que,

muito embora nessa abordagem não haja inovação ou originalidade, pois na

antiguidade muitos homens por meio da sabedoria mística assim o fizeram, seu

pensamento único seria uma alternativa em desvelar um mundo outrora encoberto

1 Em 1807, após dois anos da morte do pai em Hamburgo, inicia seus estudos no Liceu de Weimar,

(mesmo ano em que Hegel publica a Fenomenologia do espírito e Fichte o Discurso à nação alemã). Em 1809 Schopenhauer matriculou-se na Faculdade de Medicina de Göttingen na qual adquiriu formação científica. De 1809 a 1813, em Göttingen, depois em Berlim, acompanhou, paralelamente, aos cursos de Gottlob Ernst Schulze, Fichte e Schleiermarcher, além dos cursos dos anatomistas Hempel e Blumenbach, do astrônomo Bode, dos naturalistas Horkel e Rosenthal. Época que de acordo com Safranski (2011, p. 205) começou a ler Platão e Kant.

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pelo véu das inúmeras interpretações parciais e incompletas apontando para uma

sabedoria de vida de cunho filosófico.

Um pensamento único deve comportar muitas vias de acesso, comparáveis a

uma estrutura hermética com muitas entradas, como Schopenhauer (1986, p. 484)

nos diz, “Minha filosofia é semelhante à Tebas de cem portas: pode-se entrar na

cidade por todos os lados e todas as vias que se tomarem levam diretamente até o

centro”. Entendemos, a partir desta afirmação, que sua filosofia tem muitas

dimensões, apresentadas como algumas dessa tantas portas, ou entradas, pelas

quais podemos ter acesso, a fim de compreendermos melhor sua proposta filosófica.

Esse constructo citadino, fruto da reflexão, deve atuar, como ele mesmo nos avisa,

diferente de um sistema, pois,

Um SISTEMA DE PENSAMENTOS tem sempre de possuir uma coesão arquitetônica, ou seja, uma tal em que uma parte sustenta continuamente a outra, e esta, por seu turno, não sustenta aquela; em que a pedra fundamental sustenta todas as partes, sem ser por elas sustentada; em que o cimo é sustentado, sem sustentar.(SCHOPENHAUER, 2005, p. 19).

Schopenhauer procurou traçar os limites entre as propostas de leitura de

mundo a partir de um entendimento, principalmente, do modelo filosófico de

sistemas como os de Schelling, Fichte e Hegel. E ao mesmo tempo, o filósofo de

Dantzig quis demarcar o seu modo particular de compreensão de mundo que estava

alicerçado numa visão de unidade, ou seja,

[...] Ao contrário, UM PENSAMENTO ÚNICO, por mais abrangente que seja, guarda a mais perfeita unidade. Se, todavia, em vista de sua comunicação, é decomposto em partes, então a coesão destas tem de ser, por sua vez, orgânica, isto é, uma tal em que cada parte conserva o todo quanto é por ele conservada, nenhuma é a primeira ou a última, o todo ganha em clareza mediante cada parte, e a menor parte não pode ser plenamente compreendida sem que o todo já o tenha sido previamente. – Um livro tem de ter, entrementes uma primeira e uma última linha; nesse sentido, permanece sempre bastante dessemelhante a um organismo, por mais que a este sempre se assemelhe em seu conteúdo. Conseqüentemente, forma e estofo estarão aqui em contradição. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 19).

A partir da noção de pensamento único, Schopenhauer contrapôs os

conceitos de sistema de pensamento filosófico à noção de pensamento único com a

intenção objetiva de argumentar que no sistema, uma parte repousa sobre uma base

fundamental, que é decisiva para todas as outras partes garantindo a coerência e a

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continuidade das idéias tal qual uma produção em série. Nessa disposição, cada

elemento depende da série anterior para poder concluir seu objetivo. Para

Schopenhauer, sem este sustentáculo, todo o edifício ruirá.

Em contrapartida, o pensamento único guarda uma interdependência entre as

partes, e ao mesmo tempo, uma unidade inalterável em seu modo próprio de operar,

capaz de fazer progredir a reflexão de qualquer lugar que se parta. Com esse

desenho, seu funcionamento deve ser semelhante a um organismo de funções

integradas no qual prevalecerá a clareza e a compreensão do todo. Utilizaremos a

imagem de seu Pensamento Único e suas muitas portas de acesso, sugerida pelo

próprio filósofo, como imagem corrente durante nosso texto a indicar os muitos lados

e portas que deveremos cruzar até alcançar o seu centro.

Em seu pensamento único, Schopenhauer entendeu o mundo pela ótica de

sua metafísica da Vontade, reino do fenomenal e do noumênico. O mundo, para o

pensador, era a seara da dor e do sofrimento. A existência humana, enraizada

nesse mundo, estaria fadada aos três temas que abrem suas reflexões na obra Do

sofrimento do mundo, Da morte e a Metafísica do amor, que, escrita em 1844 como

partes da obra Parerga e Paraliponema, expressaria uma enigmática sensibilidade

e, ao mesmo tempo, um profundo interesse por assuntos existenciais.

A humanidade, circunscrita apenas ao mundo representacional, sempre teve

certa dificuldade em enxergar a verdadeira essência e fonte do mundo e dele

próprio, pois este mesmo mundo encontrava-se eivado pela ilusão da aparência.

Essa limitação foi denominada por Schopenhauer de principium individuationis, que

se refere ao aspecto dinâmico do movimento do mundo fenomênico que guarda

consigo a multiplicidade e a efemeridade que impede a compreensão da verdadeira

essência, e que está reservada apenas à esfera da Vontade, contida nas coisas e

que só é permitida na consciência liberta da temporalidade, espacialidade e

causalidade e que teria seu respectivo correspondente no hinduísmo como Véu de

Maia.

O mundo é resultado do ato cognitivo processado pelo sujeito que percebe os

objetos ao seu redor e os representa na medida do possível. Mas este possível está

fadado ao fracasso, tendo em vista que o que se pode conhecer dentro do campo

fenomenal é apenas o temporário, o ilusório. O fluxo incontrolável do tempo que

destrói lugares turva a memória, dificulta também as possibilidades do conhecimento

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consistente, estabelecendo a única e verdadeira verdade do mundo, ou seja, da

pobreza do tipo de conhecimento que desse mundo aparente possa brotar.

A consideração da existência abandonada a si mesma fez Schopenhauer

considerar a realidade por outra ótica, e, guiado pelo referencial romântico de seu

tempo questionar todas as possibilidades restantes. Dada a finitude que estamos

entregues, outra coisa não resta a não ser buscar algo mais significativo, como um

sentido para a existência. Diante de uma tal pobreza a que estamos submetidos,

afirma Schopenhauer que, se tornará insensato buscar um sentido onde

verdadeiramente não há, e mais inútil ainda será agarrar-se instintivamente a esta

realidade efêmera e transitória, sem nunca ponderar acerca das conseqüências

desta escolha pois,

o apego ilimitado à vida, que se mostra aqui, não pode provir do conhecimento e da reflexão; bem ao contrário, à luz de um exame ponderado tal apego parece insensato, pois o valor objetivo da vida é bem incerto, e é pelo menos duvidoso se a ela, a vida, não seria preferível o não-ser, e mesmo se se consultasse a reflexão e a experiência, é o não-ser que deve prevalecer. (SCHOPENHAUER, 2003c, p. 25).

Schopenhauer constata que a existência quando questionada acerca de seu

sentido e valor, não é capaz de fornecer, por si só, as condições necessárias para

gerar em nós uma noção de sentido, ou de bem, que seja verdadeira. Por isso, seria

melhor nem existir, pois não existir saltaria aos nossos olhos como o único bem a

que a humanidade verdadeiramente deveria aspirar. Não ser teria muito mais valor e

seria entendido como o bem maior da humanidade, ou seja, o sumo bem, summum

bonum.

Bastaria uma olhada ao redor para verificar que esse mundo não guarda

nenhuma noção de harmonia ou perfeição, mas ao contrário, apresentar-se como

um mundo feito por um demônio. Essa seria, sem muito esforço, a única conclusão

sensata, de acordo com o filósofo (SCHOPENHAUER, 2003c, p. 25), pois, diante de

um quadro caótico a que a humanidade está submetido nessa existência, pouco nos

restaria que ressoasse como felicidade ou harmonia. Quando ao escalar as altas

montanhas alemãs, dispunha-se a meditar sobre a existência humana de modo a

afirmar que,

Quando adolescente, eu sempre sentia grande melancolia e certa vez, quando eu podia ter, digamos, dezoito anos de idade, eu pensei comigo mesmo, ainda tão jovem: como poderia um Deus de bondade ter criado este mundo? Não seria bem mais fácil que tivesse criado por um ser

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malevolente...? Porque o mundo não poderia de forma alguma ser o resultado de um caráter benevolente, mas bem ao contrário, obra de algum demônio, como recriação de sua própria existência, para divertir-se com esta visão ampliada de seu próprio tormento expandindo-se ao redor de si. (SCHOPENHAUER, 1971 apud SAFRANSKI, 2011, p, 113).

Em sua concepção sobre a vida, Schopenhauer (2003c, p. 122)

especificamente no § 156 de Contribuições à doutrina do sofrimento do mundo

chega mesmo a afirmar que esta existência pode ser definida como “uma tarefa a

ser realizada, e nesse sentido, defunctuns é uma bela expressão”. Ou seja, existir

seria comparável a conduzir-se para a morte. Por conta disso, Safranski (2011, p.

112) levanta a possibilidade de que a leitura sugerida de Matthias Claudius, um

escritor espiritualista do século XIX, possivelmente tenha despertado em

Schopenhauer uma forma de ceticismo com relação ao mundo e conseqüentemente

uma busca por resignificá-lo.

Com isso, há uma clara oposição entre o pensamento de Schopenhauer e o

de Leibniz no que diz respeito à concepção de mundo. Na teodicéia de Leibniz, a

existência dos males não seria uma prova convincente da inexistência de um Deus

bom e perfeito. Já para Schopenhauer, essa tentativa de resgatar a noção de um

deus bom consistiria no reconhecimento da dependência de um Ser Divino e nas

argumentações racionais semelhantes às análises cristãs, hindus e budistas, mas

que ao final, nada apresentariam de verdadeiro, permanecendo o mundo a criação

de um deus mal e cruel. Para Leibniz, esse seria o melhor dos mundos possíveis e

para Schopenhauer o pior dos mundos possíveis. Por isso, no sistema teórico de

Schopenhauer não há lugar para Deus. Ou seja, para Schopenhauer por meio de

uma análise das possibilidades deste mundo não se pode inferir que exista uma

inteligência criadora boa, pois,

[...] Ainda que a demonstração feita por Leibniz de que de todos os mundos possíveis, este é o melhor, fosse correta, ele não forneceria uma teodicéia. O criador não criou apenas o mundo, mas também a própria possibilidade: dessa forma, deveria ter disposto essa possibilidade de maneira a permitir um mundo melhor. (2003c, p. 123)

Essa perspectiva de Schopenhauer carregada de um ‘senso de realidade

brutal’ 2 que expõe os limites e o valor dos atos humanos e da essência do mundo

2 Expressão cunhada por Eduardo Gomes Siqueira Sobre o senso de realidade brutal (rude e

apurado) de Schopenhauer: Wittgenstein, a verdade do solipsismo e a falsidade do livre-arbítrio. In:

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que, partindo de uma metafísica assumidamente herdeira do platonismo e do

kantismo, mas que em contrapartida, suporta a pecha de um pessimismo teórico por

haver destronado a razão, tida como a chave da realidade humana e posto em seu

lugar uma visão desnuda que contemplava serena as dores do mundo.

Todavia, a filosofia schopenhaueriana não pode ser reduzida a um

pessimismo, mas antes a um realismo, levado às últimas conseqüências, pois esse

é apenas um dos muitos momentos de seu pensamento que é apresentado como

um diagnóstico inicial no qual, embora apresente um quadro crítico da existência

com uma ênfase, por certo, demasiada, este é apenas o seu ponto de partida, o que

caracteriza um esforço de sua teorização por meio de seu pessimismo. O

pessimismo teórico schopenhaueriano não é a completude do Pensamento Único do

filósofo, mas apenas um momento inicial ou, simplesmente, o pano de fundo de sua

filosofia no qual se dá um pessimismo metafísico. Como acrescenta Jair Barboza na

Apresentação da obra O mundo como vontade e representação “Este, entretanto,

não impede uma espécie de otimismo prático, proporcionado pela eficiência da

sabedoria de vida em nos desviar de males” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 9).

Com base nisso, verifica-se que seu pensamento abre perspectivas para um

otimismo prático, e prova disso são seus escritos e sua proposta sobre uma

eudemonologia, ou, uma sabedoria para o bem viver como será exposto a seguir3.

Além disso, Schopenhauer nos apresenta, dentre alguns modos possíveis de

negação da vontade, três que a seu ver podem nos oferecer um alívio diante da

tarefa da existência: A arte, a compaixão e a ascese.

Essa perspectiva filosófica de Schopenhauer, de um mundo como um lugar

de dores e sofrimentos, encontra uma respectiva correspondência com o

pensamento oriental, especificamente entre hindus e budistas. Para estes, a

existência nada tem de perene e tudo guarda de transitório, pois tudo aquilo que

vige sob as ordens do tempo e do espaço debruça-se sob uma ilusão, ou melhor,

sob um véu de ilusão denominado de ‘Véu de Maia’.

Schopenhauer estabeleceu uma correspondência conceitual entre a análise

da realidade como Véu de Maia da perspectiva hindu, significando o caráter ilusório

do mundo fenomênico, e a sua análise da realidade pela perspectiva do princípio de

REDYSON, Deyve (org.). Arthur Schopenhauer no Brasil em memória dos 150 anos da morte de Schopenhauer. 2010. 3 Assunto que será explanado na secção 4.5 “A ascese” desta Dissertação.

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razão. O princípio de razão, enquanto ponto de partida para a análise da realidade,

deve pressupor as noções de tempo, espaço e causalidade como condições para

todo o conhecimento possível. Faz referência a essa imagem sempre como

condição de ilustração do caráter ilusório do mundo fenomênico.

Pode-se notar que o referencial oriental na filosofia de Arthur Schopenhauer é

uma constante, mas que deve ser lido com a devida sutileza com que ele mesmo

exige e, talvez, por isso mesmo, devamos considerar a possibilidade de o pensador

ter conseguido estabelecer uma discussão filosófica, em consonância com a

proposta oriental, posto que compartilham de uma metafísica dada como ponto de

partida.

A leitura que Schopenhauer cultivou de obras orientais como A doutrina de

Buda, o Bhagavad-Gita, bem como a dos Upanixade4, ao qual dedicou grande parte

de sua atenção até seus últimos dias, nos conduzem à conclusão de que o filósofo

encontrou uma equivalência no que diz respeito ao poder de construção de uma

descrição existencial que deve ser compreendida com a mesma clareza e distinção

com que ele mesmo tratou esse tema. Todavia, há discordância entre alguns

comentadores a esse respeito.

Para Iris Murdoch (1992, apud MANNION, 2002, p. 216) a obra O mundo

como vontade e representação é um livro filosófico, mas também religioso. Ou seja,

ela busca aproximar essas duas visões de mundo, a religiosa e a filosófica,

acreditando que a dimensão da moralidade possa ser melhor explanada com

referência à religião. Para a teórica, o elemento religioso é algo constante em

Schopenhauer e afirma que ele freqüentemente atravessa a ponte para, como

muitos comentadores, dar consistência à sua teoria ética como um recente

renascimento em virtudes éticas5. Por isso, ela aponta para um link entre religião e

filosofia moral quando da discussão sobre a compaixão.

4 Os Upanixade são os cento e oito tratados filosóficos que aparecem nos Vedas. Os Vedas, por sua

vez, são os textos considerados sagrados pelos hindus que contém o fundamento da doutrina. são compostos por quatro textos: Rgveda; Samaveda, Yajurveda e Athrvada; em El mundo como voluntad e representación II p. 668 utilza-se o termo Oupnekhat para designar Upanixade . 5 “Murdoch helps lend some support to the argument that Schopenhauer frequently crosses that

bridge for, as many commentators have pointed out, Schopenhauer´s ethical theory should be seen as a forerunner of the recent renaissance in virtue ethics”. (MURDOCH, 1992, p 481 apud MANNION, 2003, p. 216).

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Devemos, pois, ter em nosso horizonte, a clara distinção entre filosofia e

religião proposta pelo próprio autor6 a fim de não incorrermos em erro, pois para

Schopenhauer, é próprio da humanidade, buscar respostas para suas perguntas em

propostas de toda monta, seja ela mítica, científica ou religiosa, pois um homem é

um ser inquiridor por natureza, e que a metafísica foi uma das primeiras tentativas

de se compreender a realidade.

Verifica-se que o pensamento oriental tem uma grande variedade de

elementos, conceitos e tradições que não se resumem apenas às escrituras

consideradas por eles sagradas, mas a uma infinidade de outros pontos que não

encontram-se de forma completa no pensamento filosófico de Schopenhauer. Na

verdade, Schopenhauer nunca chegou a conhecê-los em sua completude, pois, de

acordo com o Bhagavad-Gita (1995, p. 838) a origem desses elementos remonta a

mil e quinhentos anos antes da era cristã e o filósofo não dispunha de literatura ou

outras fontes suficientes para tal.

Ao aprofundar historicamente a questão, notamos que o filósofo entrou em

contato com o pensamento oriental pela primeira vez no período entre novembro de

1813 e junho de 1814 após ter terminado seu doutorado em Jena e ter retornado

para Weimar para descansar na residência de sua mãe, ocasião em que conhece

Göethe e, por intermédio deste, o orientalista Friedrich Majer e Julius Klaproth, editor

de Asiatisches Magazin fonte da qual inicia sua pesquisa acerca dos conceitos e

expressões características do hinduísmo e do budismo.

Muito embora, a data de início do contato com a literatura oriental seja de

muita importância para questões de estudo, da vida e da obra de Arthur

Schopenhauer, e anteceda à publicação de sua obra mais expressiva, O mundo

como vontade e representação, acreditamos que o filósofo não se tornou, por conta

disso budista, muito menos hinduísta. Na verdade, nem sequer nutriu pretensões

religiosas, dada a convicção filosófica que portou durante toda sua vida.

Na verdade, a relação de proximidade proposta por Schopenhauer entre seu

pensamento único e o pensamento oriental é apenas de referência, pois embora

haja uma grande discussão acerca da aproximação da filosofia de Schopenhauer

com o pensamento religioso oriental, não há ressaibos religiosos, nem nuclear, nem

6 Para aprofundar a relação de Schopenhauer e o pensamento oriental indicamos a leitura de The

Influences of Earstern Thought on Schopenhauer´s Doctrine of The Thig-in-itself In Cambridge companion. (JANAWAY, 1999, p. 171); ou The katha Upanishad: An Earstern Classic on Death In Death, Contemplation and Schopenhauer. (SINGH, 2007, p. 54).

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periférico com sistemas religiosos como fundamento para a sua visão filosófica que

intencionava decifrar (entzifern) o enigma do mundo.

Ao contrário, o pensador dialogou com outras culturas e tradições, e manteve

paralelos entre perspectivas existenciais, apontando para uma correspondência

entre seu idealismo filosófico e o idealismo oriental numa tentativa de consolidar sua

visão de todo. A partir das inferências da leitura de suas obras, notamos que

Schopenhauer, buscou decifrar o mundo, e, igualmente decifrar, dentre outras

coisas, o enigma da moralidade, portanto, o enigma ético, por meio de uma

metafísica filosófica, e o fez dialogando com outras metafísicas também de cunho

idealista. De modo análogo, o pensador buscou apontar para algumas equivalências

entre os modos possíveis de se compreender a existência e encontrou no

pensamento oriental uma correspondência metafísica de cunho idealista para a

interpretação do mundo.

Desde a adolescência o filósofo mantinha essa apreciação da existência,

como lugar de dor e sofrimento, e ao entrar em contato com a visão de mundo na

perspectiva oriental, por meio de algumas leituras sugeridas por orientalistas de

renome próximos a ele, encontrou uma convergência entre esses pontos de vista.

Mas, importa afirmar, não aderindo a nenhum deles. Permaneceu assim, seu

pensamento, independente, autônomo, porém, fazendo referência ao oriente apenas

a título de similaridade entre as perspectivas idealistas.

Acreditamos sim, que houve uma influência literária que serviu como referente

respectivo quando das muitas analogias que este apresentou, mas que, quando

conjugada em sua totalidade, ou seja, em relação a toda a sua obra, não representa

nem fundamento, nem necessidade para as conclusões filosóficas a que chegou.

Em todo caso, agrada-me ver minha teoria em tão grande concordância com uma religião que é maioria sobre a Terra; pois conta com muitos mais fiéis que nenhuma outra. Mas esse acordo é mais agradável para mim na medida em que em meu filosofar eu não estive sob sua influência. (SCHOPENHAUER, 2009, p, 207, Tradução nossa).

Pode-se afirmar que os pressupostos de sua filosofia já haviam sido

estabelecidos desde os vinte e sete anos de idade e de forma independente da

metafísica oriental descritas pelo hinduísmo e pelo budismo. Como Schopenhauer

afirma que,

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Estas páginas, escritas em Dresden nos anos de 1814-1818 mostram o processo de ebulição de meu pensamento, por meio do qual toda a minha filosofia emergiu, surgindo gradualmente como uma bela paisagem da bruma da manhã. Aqui vale que mesmo algumas sem importância estavam estabelecidas

7. (SCHOPENHAUER, 1849, apud NICHOLLS, 1999, p. 181,

tradução nossa)

Embora Schopenhauer tenha feito referências constantes a conceitos com

origem no pensamento oriental, os mesmos constam apenas como alusões externas

e não centrais em sua filosofia, pois, há uma independência entre sua filosofia e os

conceitos orientais apresentados. Estes devem ser entendidos como correlatos ou

correspondentes, mas não fundantes. Esses conceitos, de acordo com

Schopenhauer (2005, p, 156), servem apenas para criar nomes e imagens, não

servindo, pois para fundar uma filosofia ou uma decifração do mundo segura e

eficiente. Para o filósofo, os conceitos são apenas palavras vazias como ele mesmo

afirma em suas últimas páginas que constam em seu trabalho maior: “E isso [o

nada] é preferível a escapar-lhe, como o fazem os indianos através de mitos e

palavras vazias de sentido, como reabsorção em Brahma ou o Nirvana dos budistas”

(SCHOPENHAUER, 2005, p, 519).

Dada a necessidade metafísica a que todo homem está submetido, torna-se

extremamente necessário compreender o conceito schopenhaueriano de metafísica

que é expresso da seguinte forma,

Por metafísica compreendo todo o conhecimento alegado que vai além da possibilidade da experiência, ou seja, da natureza e do fenômeno dada das coisas, para oferecer uma chave sobre aquilo pelo qual, em um ou outro sentido, estaríamos condicionados; ou dito popularmente, sobre aquilo que se oculta por traz da natureza e a torna possível

8. (SCHOPENHAUER,

2009, p. 202, Tradução nossa).

Schopenhauer (2009, p. 204) apresenta duas considerações ou classificações

sobre o problema em que pesa a consideração de verdade afirmada: a primeira

classe estabelecida é a filosófica, ou seja, uma abordagem que tem a pretensão, e,

mesmo a obrigação, de ser verdadeira e de tratar os problemas metafísicos de modo

7 “These sheets, written at Dresden in the years 1814-1818 show the fermentative process of my

thinking, from which at that time my whole philosophy emerged, rising gradually like a beautiful landscape from the morning mist. Here it is worth nothing that even the unimportant ones, were established”. 8 “Por metafísica entiendo todo presunto conocimento que va más de la posibilitad de la experiência,

es decir, de la natureza o del fenómeno dado de las cosas, para ofrecer una clave sobre aquello po lo que, en uno u outro sentido, estaríamos condicionados; o, dicho popularmente, sobre aquello que se oculta tras la natureza y la hace posible”.

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sensu stricto et proprio, o que configura uma gama de interpretações por meio de

uma realidade estabelecida imediatamente de modo a promover uma expressão de

pensamento e de convicção que exclua contradições. A utilização dos conceitos

define o modo se sensu a ser focado.

Com relação à segunda classe, as religiões são apontadas por Schopenhauer

(2009, p. 205), como uma tentativa de responder à questões existenciais de modo

alegórico da verdade sensu alegorico estruturado numa abordagem dogmática,

fideísta e imaginativa, o que caracteriza uma mediação, porém com o objetivo de

ganhos ou recompensas em mundos vindouros o que caracteriza uma metafísica

rude como expressão de uma metafísica do povo (Volksmetaphysik)9. Esse modo de

verdade se dá por meio de revelações, escrituras sagradas, milagres, sacerdotes,

juramentos e muitos meios que facilmente podem seduzir e se tornar “uma das mais

tenebrosas formas de contradição a que a humanidade está sujeita”

(SCHOPENHAUER, 2009, p. 204).

A metafísica que se pretende aprofundar é sem sombra de dúvidas a sensu

proprio por ter a capacidade de ir, imediatamente, de encontro à razão das coisas e

proporcionar efeitos práticos com relação à retidão e à virtude, fazendo diminuir o

sofrimento da vida de modo eficaz, elevando o homem sobre si mesmo e ajudando-o

a “manifestar esplendorosamente seu grande valor e seu caráter imprescindível”

(2009, p. 205).

Cessa-se, a partir disso, qualquer possibilidade de confusão entre a

compreensão filosófica e religiosa no pensamento de Arthur Schopenhauer, pois

filosofia para Arthur Schopenhauer tem dois aspectos fundamentais que a religião

não tem, ou seja, a de ser uma ciência com discurso racional estabelecido a respeito

da constituição das representações conceituais, e o de ser uma arte, na qual

evidencia-se uma exposição interpretativa do mundo. Há, pois uma junção entre o

sujeito que filosofa e seu objeto, no qual, por meio da arte, o filósofo torna-se

espelho do mundo. A partir desta consideração, percebemos a distinção

estabelecida na obra Fragmentos para a história da filosofia, por Schopenhauer

(2003a, p. 18) acerca da noção e do papel da Filosofia. Desse modo, o pensamento

schopenhaueriano, por extensão, tem o objetivo de superar as distâncias entre a

filosofia teórica e a filosofia prática, bem como o de ter unido ocidente e oriente,

9 Para aprofundar a questão das verdades sensu proprio e sensu alegorico leia-se O mundo como

vontade e representação II, Capitulo 17, intitulado Sobre la necessidad metafísica del hombre, p. 198.

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portanto, o mundo. Com essa compreensão de que a filosofia para Schopenhauer é

uma ciência e uma arte, verifiquemos sua proposta de análise do mundo. Agora pela

ótica de vontade e da representação.

2.4 representação e vontade

É a partir da distinção kantiana de fenômeno e coisa-em-si, que

Schopenhauer estrutura sua metafísica identificando a coisa-em-si com a Vontade e

o fenômeno com a representação. A partir disso, será possível adentrar em solo

metafísico a partir de sua compreensão do mundo como vontade e como

representação. Escrito em 1818, com data de 1819, a obra Die Welt als Wille und

Vorstellung, ou segundo a tradução do alemão, O Mundo como vontade e

representação apresenta uma reflexão sobre a realidade de modo geral por meio de

quatro dimensões, ou perspectivas, através das quais Arthur Schopenhauer buscou

estruturar sua concepção de mundo. São elas, a epistemológica (Livro I), a

metafísica (Livro II), a estética (Livro III) e a ética (Livro IV) a formar um todo

homogêneo. Essa análise da realidade está alicerçada na compreensão da

existência, portanto, de tudo o que existe, a partir destes dois conceitos centrais:

Vontade e representação.

A realidade compreendida como vontade (Wille) e como representação

(Vorstellung), refere-se ao modo como o mundo pode ser analisado sob o prisma do

idealismo transcendental em que o pensador está inserido e através do qual todo o

universo fenomênico em todas as suas mais variadas formas, é expressão de

Vontade.

Primeiramente, assim como o próprio Schopenhauer (2005, p. 358) dispõe,

analisaremos o conceito de representação, ou universo fenomênico, que é a

efetivação da vontade e que em alguns momentos chega mesmo a afirmar que é um

espelho da Vontade. Note-se que essa divisão feita por Schopenhauer é um

exercício apenas didático com o objetivo explícito de ajudar o leitor a assimilar e

compreender os conceitos, mas que deve estar bem claro que os dois, Vontade e

representação, designam uma única e mesma coisa, ou seja: que “O mundo é de

um lado inteiramente representação e de outro, inteiramente Vontade”

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(SCHOPENHAUER, 2005, p. 45). Essa é uma perspectiva metafísica de um mundo

tomado numa totalidade real a partir de uma dupla leitura10.

Para clarear ainda mais essa ilustração, Schopenhauer utiliza como analogia

a imagem de uma moeda a fim de reforçar a proposta de dupla leitura, pois para ele,

as duas faces são inseparáveis, o que culmina revelando uma relação de

interdependência e completude na qual uma sem a outra torna-se um conceito

incompleto. Talvez uma medalha, talvez um amuleto, qualquer coisa, menos uma

moeda.

Assim, com a clareza da completude entre os dois conceitos, Schopenhauer

inicia sua obra afirmando que “O mundo é minha representação”

(SCHOPENHAUER, 2005, p. 43). Isto significa que todo o mundo que nos cerca,

com todas suas cores, formas e possibilidades só existe como representação para o

sujeito que conhece, ou seja, o mundo apenas ‘é’ em relação àquele que conhece e

representa. Essa afirmação destaca em sua epistemologia o caráter de

interdependência entre os conceitos de sujeito e de objeto, estabelecendo que toda

a experiência possível está condicionada a essa verdade, considerada pelo autor, a

priori.

De tal modo que, as representações que temos do mundo podem ser

divididas em duas classes, a saber, representações intuitivas e representações

abstratas. Enquanto representações intuitivas, para Schopenhauer (2005, p. 47)

estas abrangem todo o mundo sensível e toda a experiência, ao lado das condições

de possibilidade. Enquanto representações abstratas são “propriedades exclusivas

do homem que tem a capacidade de formulá-las e que desde sempre foi nominada

razão” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 47). A primeira classe de representações, ou

seja, as intuitivas, que são aquelas que caracterizam-se como imediatas e

espontâneas, ou seja,

[...] a existência daquele mundo inteiro permanece sempre dependente desse primeiro olho que se abriu, tenha ele pertencido até mesmo a um inseto; pois tal olho é o intermediador necessário do conhecimento, para o qual e no qual unicamente existe o mundo, que sem ele não pode ser concebido uma vez sequer. Pois o mundo é absolutamente representação,

10

“O conectivo ‘als’ denota a expressão que significa ‘na condição de’, ‘no sentido de’, ‘entendido como’, ‘tomado como’, o que enriquece o quadro geral de apreciação de um mundo tomado tanto como Vontade, quanto como representação. Para Schopenhauer, é a identificação dos termos basilares inicialmente utilizados por Kant quando na distinção entre fenômeno e coisa-em-si”. (CACCIOLA, 1994, p. 43).

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e precisa, enquanto tal, do sujeito que conhece como sustentáculo de sua existência. (SCHOPENHAUER, 2005, p, 75).

A segunda classe de representações, denominadas por Schopenhauer de

abstratas, se dá por meio de conceitos, e que aos seres humanos torna-se possível,

dentre outras coisas, a linguagem, o cálculo, a análise, a notabilização das ciências,

a capacidade da fazer escolhas, a constituição de uma postura de vida sensata e

ponderada, e, sobretudo, a possibilidade de tornar-se autoconsciente de seus atos e

dos atos dos outros ao seu redor. Características estas que com o passar do tempo

e do exercício vão acabar por contribuir ao processo de distinguir o seu agir, do agir

dos demais.

A Vontade admite infindáveis gradações, e a razão é um destes incontáveis

graus na qual a Vontade pode manifestar-se, mas que, por sua natureza de

decomposição e análise, só é capaz de elaborar nomes e imagens. Enquanto

representações abstratas, estas são compreendidas como graus mais elevados de

efetivação da Vontade que ascende sempre em busca de depurar-se.

Analogamente, a razão seria um dos muitos produtos da Vontade.

Para o pensador de Dantzig, o filósofo de Königsberg confundiu esses dois

tipos de conhecimentos naquilo que foi denominado de mistura perigosa com

relação à relação entre razão, inteligência e intuição que, em suas palavras, “Kant

traz o pensamento já para a intuição e, assim, assenta a fundação para a mistura

nociva entre conhecimento intuitivo e abstrato” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 551).

2.4.1 Da epistemologia de Kant às teses da Quádrupla raiz do principio de

razão suficiente

As teses de um mundo entendido como vontade e representação foram

alicerçadas por Arthur Schopenhauer a partir das teses sobre a possibilidade do

conhecimento possível, ou seja, a partir da separação entre conhecimento a priori e

a posteriori, assim como, da distinção entre fenômeno e coisa-em-si de Immanuel

Kant. Essa análise nos possibilitará adentrar pelos portões da epistemologia. A

análise do processo de conhecimento que esteve por muito tempo sob o domínio de

empiristas e racionalistas passou, com Kant, a ter outro tratamento. Para os

empiristas como John Locke, o homem era uma tabula rasa e o objeto é que

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determinava o conhecimento. Já para os racionalistas, o sujeito é que determinava o

conhecimento.

Kant investigou como surgia e se processava o conhecimento apresentando a

existência de princípios apriorísticos nos quais se realizavam o processo de

organização ou síntese dos dados empíricos o que ficou conhecido como revolução

copernicana, na qual, ao invés da faculdade de conhecer ser regulada pelo objeto, a

partir de então, o objeto seria regulado ao sujeito.

Kant buscou investigar os princípios apriorísticos da sensibilidade por meio de

sua Estética Transcendental, ou a análise da sensibilidade, na qual definiu a

sensibilidade como uma faculdade da intuição, por meio da qual os objetos do

mundo são apreendidos pelo sujeito cognoscente. A sensibilidade humana

caracteriza-se pela existência de dois elementos que inatamente a constituem: o

material, ou seja, as impressões que o sujeito recebe dos objetos exteriores, e o

formal que exprime a ordem na qual essas impressões são colocadas. Noutras

palavras, tempo e espaço que são as formas puras da sensibilidade e, portanto, da

percepção humana.

Para Kant (2001, p. 70), o tempo “é uma representação necessária que

constitui o fundamento de todas as intuições”. O espaço, por sua vez, “é uma

representação necessária, a priori, que fundamenta todas as intuições externas”

(Kant, 2001, p. 64). Para Kant, ambas são a priori, por não derivarem nem de

conceitos, nem de discursos, nem da experiência, e, por isso mesmo, são universais

e necessárias, porém, por si sós não conseguem explicar as condições da

possibilidade do conhecer, tendo em vista que ainda carecem de um regulador,

noutras palavras, o entendimento.

Na Analítica Transcendental, Kant (2001, p. 108) buscou explicar como o

entendimento consegue transformar as sensações em conceitos. Para o filósofo de

Königsberg, o entendimento é o responsável pela organização de todas as

impressões externas e a conformação destes ao sentido interno por meio de

categorias. O entendimento puro do sujeito distingue-se completamente do todo

empírico e de toda a sensibilidade e apresenta-se numa unidade auto-suficiente que

em nada pode acrescentada do mundo externo. Por isso, para Kant, as impressões

que temos da realidade podem ser distribuídas em classes que o entendimento, por

sua vez, organiza todas as sensações por meio de doze categorias elevando-as ao

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posto de juízos sintéticos a priori, e em fim, à condição de ciência, pois estas geram

regularidade por meio de suas leis, regras11.

A epistemologia de Schopenhauer foi uma tentativa de conhecer a coisa-em-

si reformando esse conhecimento do mundo, pois o filósofo considerava-se legítimo

herdeiro de Kant. Encontrou também apoio em alguns pontos do platonismo para

reformar a compreensão sobre o conhecimento, como por exemplo, de que sujeito e

objeto demonstram uma compreensão indissociável de termos, interdependentes no

qual o sujeito só existe em função do objeto, e o objeto só existe em função do

sujeito.

Em sua obra Ueber das Seben und die Farben, ou, Sobre a visão e as cores

de 1816, Arthur Schopenhauer buscou apresentar uma crítica a partir da leitura e

análise da obra de Göethe A doutrina das cores de 1814, na qual discute o mérito da

visão newtoniana sobre as cores e aprofunda sua concepção de intuição no

processo do conhecimento. No título do ensaio Sobre a visão e as cores, salta aos

olhos a proposta do autor em trabalhar uma noção de mundo alicerçada nos pilares

de sua epistemologia, ou seja, o sujeito que vê, e o mundo que é visto, de modo

direto, o sujeito que conhece, e o objeto conhecido.

Schopenhauer buscou alargar sua compreensão de conhecimento e de

mundo, e por que não dizer, conhecimento de mundo, via intuição12. E a partir disso,

tentou explicar como aprendemos a intuir este mundo que se nos apresenta. A partir

dessas considerações, poderemos analisar o que vem a ser intuição no pensamento

de Schopenhauer, bem como inferir como o filósofo demonstra o que é, e como atua

o entendimento no processo de intuir. Para ele, o entendimento (Verstand) é a

operação da faculdade humana responsável por tornar a simples sensação em

intuição (Anschaaung) e é responsável pela função que possibilita a união entre

tempo e espaço, e que são, respectivamente, os sentidos interno e sentido externo.

Essa faculdade, o entendimento, que consta nos seres capazes de conhecimento, é

11

A tábua das categorias para Kant está expressa desse modo: Da quantidade: Unidade, Pluralidade, Totalidade; Da qualidade: Realidade, Negação, Limitação; Da relação: Inerência e Subsistência (substantia e acccidens), Causalidade e dependência (Causa e efeito), Comunidade (ação recíproca entre agente e paciente); Da modalidade: Possibilidade - Impossibilidade, Existência - Não-existência, Necessidade – Contingência. (KANT, 2001, p. 110); veja também em OS PENSADORES (1991, p, 74). 12

Dentre outras questões, Schopenhauer analisa, nesta obra, como, pela intuição, é possível o esclarecimento dos inúmeros fenômenos dos sentidos, como por exemplo, o das ilusões produzidas pela visão como o estrabismo, a justaposição dos objetos em distâncias desiguais, a duplicidade e simultaneidade dos fenômenos com relação à mudanças súbitas entre sentidos. (SCHOPENHAUER, 2003d, p. 31).

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munida de uma propriedade tal que é capaz de apreender ‘num só golpe’ (2005, p.

54) as sensações que se encontram fora dos seres, advindas da exterioridade por

meio dos sentidos.

A simples sensação percebida pelos sentidos, é um fluxo abafado de

impressões que, por si só, e sem a faculdade do entendimento, é incapaz de gerar

as possibilidades para o intuir, pois estas mesmas sensações devem ser

consideradas apenas como dados. É preciso que haja alguém preparado

cognitivamente para, ao receber esses feixes de informações que passam pela

audição, pelo paladar, pelo tato, pelo olfato e pela visão, cada um a seu modo,

remetê-las ao entendimento.

Para Schopenhauer, nas sensações não há ainda o que poderíamos já

considerar intuição. Ou seja, enquanto sensação há apenas flashes de toda

multiplicidade que, depois, poderemos conceituá-los como imagens, cores, sons,

gostos e etc. Mas, ainda neste momento inicial, como sensação, tem-se tão

somente, uma rajada de, ‘sensações abafadas’ que em nada podem assegurar

conhecimento de nenhuma monta.

Assim sendo, os sentidos, para Schopenhauer, não passam de uma

sensibilidade potencializada, ou enfatizando melhor, não passam de pontos do corpo

receptíveis à influência de outros corpos num grau elevado, o que nos levaria e

deduzir que eles, em nada mais podem contribuir para o conhecimento intuitivo, a

não ser no fornecimento da matéria a ser trabalhada. Desse modo, cada sentido

deve receber um tipo específico de dado em sua efetividade, pois o contrário

implicaria numa desordem cognitiva, ou seja, o tato poderia ouvir, o paladar poderia

cheirar, e a pele poderia ver, o que de fato não ocorre, caracterizando um modo de

influência e de excitação que só um aparelho adaptado pode captar conforme sua

aptidão natural.

A partir da entrada desse feixe, que se torna um amálgama de sensações

pelos sentidos, o entendimento passa do efeito à causa, ou seja, do efeito da

sensação à causa da mesma, do som à causa do som, da luz à causa da luz, do

cheiro à causa do cheiro. Neste exato instante, na atuação do entendimento, vemos

surgir a intuição que tem a capacidade de unir ‘a um só golpe’ o sentido externo e o

sentido interno, conceituados como espaço e tempo na representação da matéria. É

a propriedade de fazer efeito (Wirksamkeit), ou melhor, é a competência de deixar

de constar como mera sensação e passar a ter eficácia. Tudo o que existe, deve ser

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entendido como um operacional ‘fazer efeito’, pois derivado desta operação

espontânea, e mesmo instantânea, é que surge o mundo. Ou melhor, surge o

mundo como representação (Vorstellung).

O sujeito, para Schopenhauer (2003d, p. 30), torna-se consciente da Lei de

causalidade e de sua relação no mundo fenomênico, entre os objetos mediatizados

e sua incidência constante de causas e efeitos, o que propicia o surgimento de uma

visão que, como dito anteriormente, é intelectual, portanto, inteligente. Desse modo,

a inteligência vem a ser o resultado entre o conhecimento da Lei de causalidade e

de sua relação com os objetos mediatizados no mundo. Por isso, a inteligência não

pode ser ensinada por meio de conceitos abstratos ou especulações, mas antes,

apenas explicada, em suas etapas, talvez numa tentativa didática. Daí que “ser

racional e ser inteligente são duas qualidades bem diferentes” (2003d, p. 30).

Schopenhauer assevera tal afirmativa ao defender que a visão, ou, mais

especificamente, esse conhecimento que temos dos objetos do mundo, e no mundo,

é obra do intelecto.

Nesse ponto de vista, quando a criança começa a aprender, e utiliza para isso

todos os sentidos, é o intelecto quem transforma a matéria pura em visão. Dessa

forma, ela começa a aprender a utilizar o intelecto, reconhecendo que existem fatos

que nunca resultam de uma mera impressão, mas da aplicação da Lei de

causalidade, noutras palavras, do intelecto. Disso, percebemos que a Lei de

causalidade é a condição prévia para a compreensão do mundo ao nosso redor, ou

seja, da relação de causalidade em que estamos inseridos, bem como dos motivos

que atuam sobre os nossos corpos e sobre os demais corpos dispostos no mundo

fenomênico. A partir disso, faz-se necessário entender como se dá esta Lei de

causalidade no reino vegetal e animal.

No reino vegetal, essa Lei de causalidade, acontece de um modo um pouco

diverso do que no reino animal, pois os movimentos de causa e efeito não têm

reação equivalente, tendo em vista que os animais reagem por estímulo e as

plantas, por excitação. Como afirma Schopenhauer (2003d, p. 44) os estímulos

resumem-se à assimilação, ao crescimento, à inclinação à luz e etc. o que pode ser

verificado, por exemplo, nas plantas. Já nos animais, a Lei de causalidade não

ocorre de maneira direta, mas de modo diverso, denominado Lei de motivação que

marca os movimentos dos animais como uma ação mediatizada pelo conhecimento.

Por isso, “o animal é aquilo que conhece, e conhecer é o verdadeiro caráter da

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animalidade” (SCHOPENHAUER, 2003d, p. 45). Disso, infere-se que nós, seres

humanos, compartilhamos desta condição com todos os demais animais.

Porém, para o filósofo, este mundo como representação só existe no

entendimento, com o entendimento e para o entendimento, o que denota, como

conseqüência que sem um ser dotado de entendimento, o mundo inexiste. Assim,

sem objeto não pode haver sujeito, ou, de outro modo, sem sujeito conhecedor, não

pode haver objeto a ser conhecido, o que já prenunciava sua epistemologia.

O marco inicial do conhecimento reside na intuição nascida desta simples

operação do entendimento. O que nos levaria a refletir sobre o procedimento

cognitivo realizado que por meio destes dados fornecidos pelos sentidos e

processados pelo entendimento, que seria capaz de produzir a intuição, tão simples

e ao mesmo tempo tão eficaz, que no caso específico de crianças, mesmo de tenra

idade, vemos juntamente com o surgimento da intuição, o surgimento do mundo.

Pois, mediante a comparação das inúmeras impressões que lhes chegam pelos

sentidos, de um único e mesmo objeto, pode, nas palavras de Schopenhauer, mais

do que interagir, aprender a intuir o mundo.

Nesse ensaio, Sobre a visão e as cores, que o próprio filósofo considerou

como, uma pequena obra de sua juventude, mais do que uma análise fisiológica dos

fenômenos cromáticos, dá-se uma análise da relação epistemológica entre sujeito e

objeto, no qual destaca a visão por sua excelência entre os sentidos, justamente por

esta exercer uma maior relevância dentro do processo cognitivo. Aliás, visão e

intelecto são como que dois momentos de uma única atividade, ou seja, a atividade

de conhecer. Para o pensador (2003d, p. 29), “toda visão é intelectual”, o que

significa que a visão necessita do intelecto, pois sem este último seria impossível

ver, perceber ou mesmo apreender qualquer objeto que seja, restando

simplesmente uma alternância de estados vazios, oscilando entre dor ou bem-estar,

ou outro modo incompreensivo de sensação que jamais poderia assemelhar-se

àquilo que designamos conhecimento.

Seria, portanto, uma cegueira, ou uma surdez, ou uma insensibilidade

elevadíssima que inviabilizaria saber qualquer conhecimento sobre algo. A visão,

desse modo, é a condição indiscutível para a apreensão do mundo corporal objetivo

que preenche o espaço por meio do intelecto, para o intelecto, no intelecto. Ao

contatar que ser inteligente, é diferente de ser racional, define-se que, por isso,

compartilhamos com os demais animais da capacidade de intuir o mundo.

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Decorrendo disso, infere-se que a visão é sinônimo de conhecimento

(Erkenntnis) tornando-se conhecimento de mundo, pois, por intermédio dela, o

intelecto pode fazer a relação a respeito de todas as impressões que o corpo

recebe, bem como entender de onde elas surgem. Schopenhauer chega mesmo a

afirmar que a intuição é uma via, viva e necessária, na qual repousa um tipo de

conhecimento que ainda encontra-se em seu nascedouro, por isso, pode ser

chamada de um conhecimento do intelecto puro. Puro, por ser a instância ou

momento em que a razão ainda não lançou seu fluxo abstrato, nem elaborou

nenhuma combinação de conceitos e juízos por meio de alguma lei lógica de

raciocínio.

Ao lançar-se do efeito à causa, via intuição, o entendimento, encontra-se num

estágio de a priori com relação a tudo aquilo que nunca foi registrado pelo intelecto.

O intelecto, aliás, só muito depois agirá por meio dessa razão (Vernunft) que em

nada acrescentará à sua constituição própria. Noutras palavras, a razão em nada

contribui para a visão, pois ela tem como objeto uma outra classe de

representações, a saber, os conceitos.

A partir dessa concepção, o autor oferece um ponto de apoio para a

compreensão do universo fenomênico por meio de uma circunscrição

representacional, tentando explicar a realidade imediata. Será por meio de uma

quádrupla raiz, utilizada como ferramenta lógico-conceitual, que o filósofo

apresentará sua análise, sem as quais, como ele mesmo enfatiza, as teses de O

mundo como vontade e representação parecerão incompreensíveis.

Em 1813, na obra Ueber die rierfache Wurzel des Salzes vom zureichenden

Grunde, ou em Da quádrupla raiz do princípio de razão suficiente de 1813, analisa

as contribuições de Descartes, Spinoza, Leibniz, Wolf, Kant e Hume em suas

abordagens sobre o mundo material e apresenta os quatro princípios de razão, que

na sua visão, são capazes de viabilizar uma interpretação segura acerca da

realidade fenomênica e de explicar tudo aquilo que existe no mundo por meio de

quatro raízes. Schopenhauer aconselha que esta obra deva estar no horizonte de

leitura para quem deseja acompanhar os desdobramentos que surgem com, e a

partir dela, e pelos quais o mundo representacional é desvendado em sua inter-

relação de causalidade.

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Essa quádrupla raiz, responsável por explicar apenas a realidade fenomênica,

não pode ser aplicada à Vontade, pois esta não se encontra dentro daquilo que pode

se caracterizar como reino da necessidade e condicionalidade. Para Günter Zöller,

Primeiro há o princípio de razão suficiente de tornar-se, ou o princípio causal no sentido tradicional que rege os objetos físicos em relação ao entendimento; Ser, que rege os objetos matemáticos em relação à pura intuição; [...] Saber, diz respeito aos objetos lógicos ou relações lógicas entre objetos, baseados na razão. Finalmente, há o princípio de razão suficiente de fazer ou agir, que detém entre os objetos psicológicos ou afetivos estados mentais e suas manifestações exteriores, com base em um sentido interior ou auto-consciência empírica. Em cada caso, o princípio especifica as conexões (real, matemático, lógico e psicológico, respectivamente) entre as representações ou objetos representados como tantos casos de ponto geral, o princípio de que nada é sem um motivo ou razão

13. (ZÖLLER, 2008, p. 212, tradução nossa).

No § 20 da obra citada, essa primeira classe ou categoria de leitura da

realidade representacional é descrita no a raiz suficiente do ‘devir’ (principium

rationis sufficientis fiendi), que para Schopenhauer (2008, p. 78) se forma quando

em nosso entendimento a totalidade dos fenômenos é contemplada em sua

completude, ou seja, a realidade em toda a sua totalidade material, formal e sensível

o que ocasiona uma experiência única de experiência com o mundo real de modo

objetivo. Todos os elementos que existem e estão em atividade na natureza

compõem um quadro sempre em movimento de combinações em acordo ou

desacordo entre si que expressam-se representacionalmente a priori por meio do

tempo e do espaço o que caracteriza o devir constante.

A razão suficiente do devir busca explicar que todos os objetos, dispostos no

tempo e no espaço, estão sempre sujeitos, em sua constituição, à sucessão de

estados, o que viabiliza aos mesmos modificarem-se constantemente. Ou seja, um

estado, sempre é resultado de modificações de estados anteriores, no qual um

estado momentâneo é sempre efeito de uma causa anterior a ele, e causa de um

estado posterior. Causa e efeito alternam-se constantemente configurando um

13

“First there is the principle sufficient reason of becoming, or the causal principle in the traditional sensem that governs physical objects in relation to the understanding; Being, governing mathematical objects in relation to pure intuition; […] knowing, concerning logical objects, or logical relations between objects, based on reason. Finally, there is the principle of the sufficient reason of doing or acting, which holds between psychological objects or affective mental states and their outward manifestations, based on inner sense or empirical self-consciousness. In each case, the principle specifies the connections (real, mathematical, logical, and psychological, respectively) between representations or represented objects as so many instances of the principle´s general point that nothing is without a ground or reason.

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princípio básico de causalidade, denominado de ‘lei de causalidade’ que é uma

forma do princípio de razão que se dá por meio da sucessão desses estados na

matéria e que se dão por meio de trocas. Os dados da sensibilidade são trabalhados

pelo entendimento fazendo surgir a intuição empírica dessa configuração empírica.

A segunda classe ou categoria de leitura da realidade é apresentada no § 29

da Quádrupla raiz como a raiz suficiente do ‘conhecer’ (principium rationis sufficientis

cognoscendi), que, para Schopenhauer (1997, p. 156), aplica-se sobre as

representações abstratas, ou seja, os conceitos que, por sua vez, são ligados por

juízos que podem revelar verdade ou falsidade em suas combinações. A razão é a

faculdade responsável pela formulação, processamento e ordenamento de tais

juízos que podem encontrar solo firme para se desenvolver na lógica, na metafísica

e metalógica.

Essa raiz ocupa um lugar de destaque nesta abordagem da problemática da

moralidade, por ser a chave de compreensão entre o Ser e os fenômenos. Como

veremos a seguir, a afirmação e a negação da vontade, ambas, surgem do

conhecimento. Noutras palavras, é por meio dessa raiz que podemos vislumbrar a

diversidade dos muitos graus originados da Vontade, que se fazem presentes, via

tempo e espaço, na multiplicidade de fenômenos da realidade aparente.

No § 36 Schopenhauer (1997, p. 194) descreve a terceira classe de

entendimento da realidade se dá pela raiz suficiente do ‘Ser’, ou seja, (principium

rationis sufficientis essendi). Ela relaciona-se ao modo de como entendemos as

formas puras da matemática, por meio da aritmética e da geometria. A aritmética

analisa a realidade pela ótica da temporalidade e a geometria pela da espacialidade.

Ambas são entendidas como intuições puras de espaço e tempo e, por isso mesmo,

são anteriores ao processo realizado pelo entendimento.

A análise espacial da realidade a aritmética pode assegurar a sucessão que

se dá com o desenvolver do tempo. No caso da geometria, a análise da realidade se

dá por meio da permanência. Sucessão e permanência garantem a suficiência da

realidade existencial enquanto ser. Tudo o que existe, existe na sucessão e na

permanência, ou seja, no tempo e no espaço enquanto ser que é.

No § 43 Schopenhauer (1997, p. 212) apresenta a quarta classe ou categoria

de interpretação da realidade, na qual temos a raiz suficiente do ‘agir’ (principium

rationis sufficientis agendi), que incidirá sobre os atos concretos e servirá, portanto,

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para explicar o fenômeno no qual se encontra circunscrita a moral que será

analisada mais a frente.

Schopenhauer apresenta, então, nove premissas14 pelas quais quer

demonstrar e apresentar a única motivação moral genuína para o agir humano, que

é a compaixão. Para o autor, existem dois princípios anteriores à razão, a

conservação de si e a compaixão. Dessa última será apresentada como fonte de

todas virtudes morais. Schopenhauer parte desta constatação para desenvolver um

ponto complementar à sua análise, e que se tornará fundamental quando do

tratamento da fundamentação da moral, ponto que nos concerne mais de perto.

Para Safranski (2011, p. 284) quando perguntamos sobre tudo o que ocorre

no mundo material, ou seja, sobre a causalidade em seu sentido estrito,

[...] indagamos sobre a razão por que isso acontece, ou seja, a Razão do Acontecer (Grund des Werdens); quando questionamos sobre todos os juízos (conhecimentos, conceitos), indagamos sobre o que esses juízos se alicerçam. “Não perguntamos aqui qual a razão por que eles sejam concebidos assim, mas de fato, qual é a razão por que afirmamos que sejam assim” (Ibid,). Quando perguntamos sobre qual é a razão por que afirmamos que sejam assim, perguntamos sobre qual é a Razão do Conhecimento (Erkenntnisgrund); quando nos referimos ao âmbito da geometria e da aritmética puras perguntamos sobre a demonstração do ser no tempo e no espaço pela Razão de Ser (Satz vom zureichenden Grundle dês “Seyns”); quando perguntamos pelo motivo pelo qual uma ação humana foi praticada, perguntamos sobre a causalidade vista de dentro (die Kausalität Von innen).

As manifestações da vontade em suas múltiplas “objetidades”

(SCHOPENHAUER, 2005, p. 356), manifestando-se na pluralidade, Schopenhauer

as denomina principium individuationis, um termo tomado emprestado da escolástica

que significa a manifestação da pluralidade existente apenas por meio do tempo e

do espaço (SCHOPENHAUER, 2005, p. 171). Para ele, só para além do princípio de

razão é que se ultrapassam os fenômenos e se atinge a essência íntima das coisas.

Esse princípio clarifica o entendimento acerca da noção de que, enquanto

fenômenos, condicionados ao tempo e ao espaço, percebemo-nos como indivíduos

que interagem numa pluralidade, e que vemos tudo aquilo que é exterior a nós como

o outro, o não-eu (SCHOPENHAUER, 2005, p. 189).

14

A análise das nove premissas será realizada no capítulo terceiro secção 3.4 “A Lei de Motivação”

desta Dissertação.

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Tendo em vista que a intuição é um conhecimento imediato, destaca-se que o

conhecimento que temos das coisas resume-se à sua representação e não à sua

essência. O em-si das coisas não nos é revelado de forma direta, necessitando

assim de outra via de conhecimento. Essa via de acesso indireto à essência deve

tomar um caminho marginal ou subterrâneo15 que conduzirá o homem à sua

verdadeira e mais íntima constituição. O acesso, não mais imediato, deve agora

ceder lugar a um outro que seja mediatizado. Esse meio, ou acesso, é o próprio

corpo.

O corpo é a chave e o ponto de partida para o em-si escondido no fenômeno.

Esse procedimento caracterizou-se como uma ontologia negativa, na qual

Schopenhauer inaugurou o que podemos chamar de um idealismo fisiológico ao

apresentar o corpo como, um objeto entre os objetos, capaz de viabilizar o

conhecimento que necessitamos. Pela via externa, a razão, não será possível

chegar à essência, mas pela via imanente, ou via interna, encontraremos a mais

íntima natureza do mundo, pois de acordo com suas palavras “Por mais que se

investigue, obtêm-se tão somente imagens e nomes” (SCHOPENHAUER, 2005, p.

156).

Se o entendimento parte de estruturas próprias de tempo, espaço e

causalidade, então para se conhecer o em-si este mesmo entendimento deve dirigir-

se para algo anterior a ele, ou seja, quando o homem torna-se objeto para si

mesmo, então o corpo torna-se o objeto imediatamente conhecido

(SCHOPENHAUER, 2005, p. 62). O que difere da compreensão cartesiana de uma

“cabeça de anjo alada destituída de corpo” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 156) na

qual o sujeito racional não participa de dimensão material ou mesmo corporal. Para

Schopenhauer, o indivíduo encontra-se inserido e até mesmo enraizado no mundo e

tudo aquilo que ele tem como conhecimento advém deste mundo intuído, como já

dissemos, como representação. O homem não deve ser destituído nem de sua

dimensão corpórea, nem de sua dimensão cognitiva, mas ao contrário deve ser

compreendido em sua integralidade e completude.

15

Para aprofundar a questão da cognoscibilidade e do acesso à coisa-em-si consultar El mundo como voluntad e representación II Suplementos Cap. 18; José Tomás Brum analisa a via subterrânea proposta por Schopenhauer em O pessimismo e suas vontades p. 23.

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2.4.2 A Vontade: as quatro perspectivas do mundo

Mas então podemos nos perguntar: o que vem a ser a Vontade? A resposta a

essa questão nos possibilitará adentrar os portões da metafísica. Essa resposta vem

de modo a contrariar a afirmativa kantiana de que seria impossível conhecer a coisa-

em-si, rompendo com a epistemologia e a metafísica estabelecida até então e

apresentando a essência íntima dos fenômenos que Schopenhauer não apenas

assinalou, mas, ainda, ousou nominá-la: A coisa-em-si chamar-se-ía Vontade.

Para Schopenhauer (2005, p. 45) ao afirmar que “o mundo é minha Vontade”,

significa que Vontade vem a ser a coisa-em-si, essência íntima do mundo, da qual

os atributos não podem ser conhecidos de forma direta, mas por oposição ao

fenômeno que segue o princípio de individuação, pois a Vontade está para além da

ação possível do sujeito cognoscente. Sendo assim, ela é entendida como una,

universal, indestrutível, livre e sem fundamento o que a contrapõe ao fenômeno, que

é múltiplo, plural e determinado. Ela é una por não poder fragmentar-se na

multiplicidade. Estando em todas as formas existentes mantém uma unidade

essencial. Ela é indestrutível porque não nasce, nem perece, mas é auto-

mantenedoura. Ela é livre porque não encontra-se circunscrita no terreno da

necessidade. Ela é cega porque é destituída de qualquer conhecimento e por isso

mesmo irracional e inconsciente.

O conceito de Vontade não é uma escolha aleatória, mas uma exigência, e

tida pelo autor mesmo como palavra mágica, pois qualquer outro conceito que fosse

tomado como nomeação da coisa-em-si, como por exemplo, força, potência ou

semelhantes conduziriam a compreensão do conceito para o terreno da causa e do

efeito, além de não expressarem o entendimento devido e necessário acerca da

relação entre o corpo, o fenômeno e a essência (SCHOPENHAUER, 2005, p. 170).

Esta única e mesma Vontade que manifesta-se na natureza na forma de

representação é denominada por Schopenhauer pelo neologismo de objetidade, ou

seja a compreensão aproximada que esta Vontade se manifesta no mundo em

muitos graus e modos de objetivação, do inorgânico ao orgânico, do simples ao

complexo em todo o reino da natureza mantendo ainda sim sua unidade e

imutabilidade. O corpo é o lugar da manifestação da Vontade16.

16

Há uma Importante e sutil distinção a ser feita entre a vontade com ‘v’ minúsculo e a Vontade com ‘V’ maiúsculo que correspondem respectivamente ao ato volitivo particular e ao princípio metafísico

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Essas objetidades não são outra coisa que as Idéias de Platão (2005, p. 236),

ou melhor, o eidos17. O eidos é a verdade, a essência ou o conhecimento

verdadeiro. É o que se mantém inalterável em oposição ao dinamismo e à

transformação daquilo que é temporal.

A Vontade objetiva-se de modo gradual por meio de uma tensão entre as

Idéias que são como que modulações ou gradações específicas desta mesma

Vontade, porém, ao tornarem-se forças naturais como gravidade, energia,

temperatura, passando pela matéria até chegar aos organismos propriamente ditos.

Tudo o que existe é resultado da relação estabelecida de complexidade ou

simplicidade entre estas idéias. Cada organismo seria formado pela tensão

resultante da reunião e do conflito entre as Idéias. Diz Schopenhauer (2005, p. 210):

“Não haveria vitória sem luta”. Este conflito nasce da luta entre cada idéia, pois no

fundo, tudo isso se assenta no fato de a Vontade ter de devorar a si mesma, numa

demonstração de autofagismo, já que nada existe exterior a ela, e ela é uma

Vontade faminta por natureza. Deste conflito surgem a caça, a angústia e o

sofrimento (SCHOPENHAUER, 2005, p. 219). Esse conflito revela-se de modo mais

direto por meio da imagem da serpente que devora a si mesma, ou seja, ‘serpens,

nisi serpentem comedirit, non fit draco’ (SCHOPENHAUER, 2005, p. 209).

Por isso, entre a Vontade e os organismos animais humanos, enquanto luz,

calor, eletricidade, magnetismo, pressão, gravidade, tudo é Vontade, porém

dispostas em graus mais sutis de apresentação e expressos pelas leis da química,

da física e da biologia. Da união mais simples à união mais complexa a Vontade se

dá afirmativamente. Do mundo mineral, passando pelo mundo vegetal até chegar ao

mundo animal, ou se quisermos do microcosmo bacteriano até o macrocosmo do

universo, forma-se gradualmente a objetivação da Vontade, desde sempre, a

afirmar-se em seu sim perpétuo. É a afirmação da vida.

Esta Vontade quer sempre a vida, pois, vontade é sempre ‘vontade de vida’

(Willen zum Leben) e por isso ela busca em tudo afirmar-se, pois ela é auto-

afirmativa. Schopenhauer acentua assim, como se tal afirmação soasse como um

identificado como a essência do mundo. Porém, em cada vontade particular também se encontra a manifestação integral da Vontade em sua inteireza. 17

A obra A república, embora seja um diálogo de transição de Platão, enfatiza a íntima relação entre ética e política como uma forma única e global de conduta de um indivíduo, de uma comunidade ou de um Estado dentro dos ditames da virtude. A virtude, então, é uma conquista, via conhecimento, e é exaltada justamente por conseguir manter imutável aquilo que há de melhor nos seres por meio do Eidos, ou seja, a essência, a forma, a idéia.

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pleonasmo vicioso ou uma redundância que por se só fosse evitável, pois Vontade é

sempre Vontade de vida. Em verdade, onde existe Vontade, existe sempre a vida e,

deste modo, existe sempre o mundo. Não há nada fora dela e tudo está

compreendido nela, tanto o mundo orgânico quanto o inorgânico. Esta Vontade é

compreendida como “totalmente livre e mesmo todo-poderosa” (SCHOPENHAUER,

2005, p. 355), pois puramente em si, é destituída de conhecimento e estabelecida

como um ímpeto cego, irracional e irresistível para a existência. A partir destas

afirmações há o reconhecimento de uma filosofia que ficaria conhecida como

irracionalista ao apontar a essência da existência pela via do não racional e do não

intencional.

A vontade é também a-temporal, pois não conhece o tempo ou o espaço

justamente por não estar condicionada a eles e, deste modo, parece fitar com a

eternidade. Nela, o tempo se consome, pois quando nos atemos ao presente,

imediatamente este torna-se passado, assim como o futuro, completamente incerto

e indefinido despeja-se no presente.

E para nos provar seus argumentos, Schopenhauer nos convida a olhar para

a natureza e constatar com nossos próprios olhos como o querer manifesta-se de

forma latente, nos seres de toda espécie e variedade que lutam entre si e contra a

morte. Do ponto de vista físico o ato de andar é um desejo de evitar a queda, o de

comer e o de beber, atos de um desejo por atrasar a fome e a sede. O respirar nada

mais é do que uma tentativa de se defender da morte. A cada ato de qualquer ser,

orgânico ou não, manifesta-se o querer que tem por base a necessidade, a carência

e trás como conseqüência o sofrimento. Por isso, o querer é sofrer. “Todo querer

nasce de uma necessidade, portanto de uma carência, logo, de um sofrimento”

(SCHOPENHAUER, 2005, p. 266).

Assim, a vontade deseja tudo, quer tudo e, destituída como é de

conhecimento, cega, portanto, busca alimentar-se de cada desejo realizado que

quando saciado, e em seguida, volta-se para outro desejo de forma incessante.

Incansavelmente ela nunca pára. A Vontade existe no mundo, e é o próprio mundo,

que traga a tudo e a todos indistintamente, exatamente por não ter critérios, nem

planos ou organização. Aliás, planejar ou organizar derivaria de uma ação analítica

que dividiria em partes algo para compreender ou abarcar. A Vontade não é assim.

Ela é indivisível e nunca pára, mas projeta-se como um pêndulo armado que oscila

entre a dor e o tédio (SCHOPENHAUER, 2005, p. 401).

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Porém, os seres que se encontram em perpétua condição de desejo

encontram-se num dilema, pois para cada desejo que se têm, outros tantos ainda

permanecem não atendidos esperando o momento para tornarem-se atos. Quando

experimenta ou atualiza a satisfação, nascem indistintamente o tédio e a apatia, que

logo em seguida tornam-se de novo força desejante. Ou seja, a Vontade volta

imediatamente seu olhar para outros móveis e se vê inteira de novo desejando tudo.

Em sua fome devastadora, os seres vivos que são desejantes por natureza, e

que não são outra coisa a não ser as objetivações da Vontade, angustiam-se por

não conseguirem ter tudo, pois ao buscarem responder positivamente à convocação

da Vontade que os impele a alimentarem-se de tudo como conseqüência torna-os

aflitos, inquietos e insatisfeitos. Cegamente, cada ser busca alimentar-se a fim de

permanecer vivo e perpetuar a sua espécie. Quando da efetivação de cada desejo

satisfeito, após breve instante de tédio e apatia, os seres vivos voltam-se para um

outro desejo caracterizando assim aquela imagem proposta por Schopenhauer de

um ser preso a uma condição de escravidão e necessidade. No caso específico do

homem, esse estado de servidão é descrito por Schopenhauer (2005, p, 266) meio

da referência ao personagem grego Íxion18, que foi condenado a viver uma

existência precária e padecente. O homem tendo sua essência condenada à dor, por

mais que se esforce no plano fenomenal não alcançará felicidade alguma, pois,

A essência do homem consiste em sua vontade se esforçar, ser satisfeita, e novamente se esforçar, incessantemente; sim, sua felicidade e bem-estar é apenas isto: que a transição do desejo para a satisfação é sofrimento, a ausência de novo é anseio vazio, languor, tédio. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 341)

Atentemos que, embora a Vontade queira tudo indistinta e cegamente, no que

se refere à ação dos animais por meio do conhecimento intuitivo juntamente com os

motivos, é por meio do homem, sua mais alta e bem elaborada expressão de

objetivação, que surge um outro tipo de conhecimento munido de uma clareza de

consciência que ocasiona a possibilidade da compreensão do passado, do presente

e do futuro, bem como a possibilidade do cálculo na sucessão dos acontecimentos e

da tomada de decisões, ou seja, a razão. Esse conhecimento,

18

Personagem da mitologia grega que após assassinar seus parentes na terra, beira à loucura e vaga pelo mundo como mendigo. Arrependido, seu sofrimento desperta a piedade de Zeus, que restabelece sua sanidade, e o convida para um banquete. O convite divino seria aceito, mas em seguida, desrespeitado com o assedio a esposa de seu anfitrião que, como punição, condena Íxion a permanecer no Tártaro preso a uma roda em chamas por toda a eternidade.

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[...] por fim, lá onde a Vontade atingiu o grau mais elevado de sua objetivação e não é mais suficiente o conhecimento do entendimento, do qual o animal é capaz e cujos dados são fornecidos pelos sentidos, dos quais surgem simples intuições ligadas ao presente, um ser complicado, multifacetado, plástico, altamente necessitado e indefeso como é o homem teve de ser iluminado por um duplo conhecimento para poder subsistir. Com isso, coube-lhe, por assim dizer, uma potência mais elevada do conhecimento intuitivo, um reflexo deste, vale dizer, a razão com faculdade de conceitos abstratos. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 341).

Esta coexistência entre conhecimento intuitivo e racional resulta do fato que a

Vontade buscar sempre em suas objetivações, mesmo em graus mais baixos, a sua

conservação individual e sua conservação enquanto espécie. Muito embora este

conhecimento esteja a serviço da Vontade, em alguns homens surge uma potência

emancipadora capaz de fazer quebrar tal servidão por meio da negação da Vontade.

Como o próprio autor nos diz:

[...] em alguns homens, furta-se a essa servidão, emancipar-se desse jugo e pode subsistir para si mesmo livre de todos os fins do querer, como límpido espelho do mundo, do qual procede a arte. Finalmente (...) veremos como mediante esse modo de conhecimento, retroagindo sobre a Vontade, permite a sua auto-supressão, ou seja, a resignação, que é o alvo final, a essência íntima de toda virtude e santidade, a própria redenção do mundo (SCHOPENHAUER, 2005, p. 218).

Alguns pouquíssimos homens podem impedir a ação cega que caracteriza a

Vontade e fazê-la fitar-se como num espelho límpido a si mesma,

momentaneamente pela arte ou pela compaixão, ou definitivamente pela ascese19. A

chave para tal feito ou modo de operação deverá permitir uma ação contra si

mesma, na qual esta Vontade negar-se-á a si mesma em sua essência íntima que é

o querer. Negar o querer é negar a essência do mundo, e negar a essência do

mundo é negar a dor e o sofrimento.

Para entendermos a essencialidade do conhecimento no processo de

‘negação da Vontade’ (Verneinung des Willens), Schopenhauer faz uso de alegorias,

tais como reino da natureza e reino da graça exemplificando que a negação da

Vontade advém apenas do conhecimento que viabiliza a saída do reino da

necessidade em que toda a natureza e a condução, por meio deste, para o reino da

graça e da liberdade. De acordo com Schopenhauer, apenas pela abnegação, auto-

19

Esses modos de negação da Vontade serão analisados no terceiro capítulo desta Dissertação.

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renúncia e auto-supressão é que conseguirá o homem dizer não à Vontade, pois

esta resposta negativa é o alvo final para a redenção do mundo.

Notemos que, o conhecimento necessário para esta negação da Vontade não

é dado pela intelecção ou pelo ou pelo livre-arbítrio, mas antes é resultado da íntima

relação do querer do homem e de seu conhecimento (SCHOPENHAUER, 2005, p.

511), pois tal feito, ou seja, a liberdade, não pode ser alcançada pela força ou pela

violência, mas por um processo semelhante à iluminação para os hindus, ou pelo

efeito da graça para os cristãos. Noutras palavras, espontaneamente. Pois apenas

na liberdade da Vontade é que este acontecimento pode se dar, e só por meio deste

que o homem pode encontrar o calmante e o quietivo para o querer. Assim, negar-se

é aquietar a Vontade, ou seja, “apenas quando o sofrimento assume a forma do

simples e puro conhecer, e este, como quietivo da Vontade, produz a resignação, é

que se acha o caminho da redenção, sendo, pois digno de reverência”

(SCHOPENHAUER, 2005, p. 502).

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3 As principais bases para o debate sobre o fundamento ético

A questão ética representa um dos momentos cruciais do pensamento único

de Arthur Schopenhauer. Foi trabalhado inicialmente em 1818-19 na obra O mundo

como vontade e representação e posteriormente na série de trabalhos redigidos

para aprofundamento da questão ética nas obras Sobre o livre arbítrio de 1839, em

Sobre o fundamento da moral de 1840 e Os dois problemas fundamentais da ética.

O autor aprofunda a discussão sobre a fundamentação da moral na obra

Sobre o fundamento da moral, em que reafirma a compaixão como resposta para

questão ética e moral como ao concurso proposto pela Sociedade Real

Dinamarquesa de Ciências de Copenhague.

Na secção introdutória da questão, Schopenhauer desenvolve seu

pensamento acerca da compreensão do fim último de toda ação moralmente boa por

vias sintéticas, ou seja, em seu sentido mais puramente teórico e independente de

princípios positivos. Assim, deveria separar ética e metafísica, numa discussão curta

e fora de qualquer conexão com sistemas filosóficos. Essa exigência imposta pela

Sociedade Real foi a maior dificuldade encontrada por Schopenhauer na realização

deste trabalho, pois trouxe consigo uma limitação e até mesmo uma condição que

tornaria a resposta uma mera especulação, deveras, incompleta

(SCHOPENHAUER, 1995, p. 7). Inicia, assim, uma reflexão acerca do fundamento

da ética por a via sintética, referindo-se à via da demonstração (Beweis); porém, ao

final do ensaio o autor acrescenta, posteriormente, como veremos, uma última

secção intitulada de ‘A explicação metafísica do fenômeno ético originário’, ou, opus

supererogationis, que pode ser entendido como, uma obra que ultrapassa as

exigência, em que busca explicar metafisicamente o fenômeno ético originário pela

via analítica (Ableitung), ou seja, a via da dedução. Este esforço é comparado por

Schopenhauer a um “trabalho artesanal” (1995, p. 200).

A filosofia schopenhaueriana ressalta o método analítico, ou seja “minha

filosofia nasceu e é exposta por via ascendente e analítica e não sintética”. Isso

significa dizer que, para o autor, para atingir os resultados esperados de sua

fundamentação faz-se necessário partir dos fatos, da experiência externa e da

consciência. E, não obstante estar Schopenhauer situado entre os últimos

metafísicos, este seu modo de pensar caracteriza-se como uma reflexão que nasce

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das exteriorizações e do mundo real, e não da especulação descontextualizada e

nascido de um a priori. Mas ao contrário, é uma metafísica que parte da vivência.

3.1 Questões introdutórias sobre a ética

A compreensão do fenômeno moral desligado do mundo cotidiano, para

Schopenhauer, torna seu fundamento uma proposição abstrata que paira livre no ar

sem apoio algum, divergindo assim da essência mesma da Filosofia, que deve dar

conta exaustiva e coerente de todas as partes de um dado problema. Retomando

Platão, Schopenhauer (PLATÃO apud SCHOPENHAUER, 1995 p, 8) defende que

“para se conhecer bem a natureza da alma, faz-se necessário conhecer,

suficientemente, toda a natureza”. Destaca o mesmo esquema adotado na

edificação de O mundo como vontade e representação, que busca estudar o real de

uma forma mais integral, ou seja, pela tríade Metafísica da natureza, a Metafísica

dos costumes, e a Metafísica do belo.

Arthur Schopenhauer busca nos apresentar, pois, como fundamento do agir

humano a compaixão, o Mitleid. Este situa-se dentro de seu pensamento Idealista

Transcendental e, que, segundo suas palavras, é o “único e genuíno fundamento

para a moralidade” (SCHOPENHAUER, 1995, p. 125), a compaixão. Mas antes

precisa enfrentar o último grande sistema moral de sua época.

Para Arthur Schopenhauer, o fundamento moral kantiano tornou-se a

proposta filosófica vigente na Europa até metade do século XIX, superando as

anteriores20 por isso, dedicou-se de modo mais demorado à fundamentação moral

20

As primeiras tentativas que se tem registro na história humana vieram por meio de codificações em forma de poemas que descreviam uma espécie de teogonia por meio dos quais os mitos apresentados revelavam uma codificação que serviria como normas de conduta para o bem viver. Outros textos, como o Código de Hamurabi foram os primeiros com organização jurídica da Antiguidade que remonta a o século XVII a.C. um poema recitado a Shamash; Na Suméria de Uruk, Gilgamesh a 2.600 a.C.; no Egito, o ma’at, documento que serviu para formar o comportamento estabelecendo uma proposta de ordem correta para a vida naquela época, era um mescla de poesia e estabelecimento de códigos de conduta para o primeiro milênio. No oriente, os Vedas: textos considerados sagrados, apresentavam uma mescla de doutrina ética, social e religiosa revelados pelo deus Brahma que viabilizou o surgimento do hinduísmo como uma proposta de doutrina filosófica: duas formas de culto surgiram, a mahavira e buda. A mahavira; A de Gautama Buda expondo quatro verdades: a realidade é constituída de dor e sofrimento, este sofrimento advém do apego ao mundo material, que é possível suprimir a fonte deste sofrimento, ou seja, o querer, e por fim, a demonstração de como deve ser a prática deste exercício de supressão. Na China o Taoísmo de Lao-tse. O Confucionismo uma abordagem ritualística conhecido como Li que a partir de 1912 tornou-se proibido na China. No ocidente, propostas de fundamentações morais a partir de referenciais religiosos e políticos. Com Zoroastro ou Zaratustra na Pérsia com o masdeísmo século VII a.C. O Talmud estabelecia 613 normas codificadas que ficaram conhecidas como o Antigo Testamento. O

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kantiana. Para Arthur Schopenhauer, o mundo antigo viveu por muito tempo sob a

égide do eudemonismo que buscava apresentar uma proposta moral na qual o

cultivo das virtudes areté aparecia como consonante à discussão e aquisição da

felicidade21.

3.2 O debate moral com Kant

Schopenhauer afirma no segundo capítulo da obra Sobre o fundamento da

moral que, embora houvesse outras propostas de fundamentação moral, sua

ocupação primeira será a de dedicar-se de forma mais detalhada, somente à mais

nova tentativa de fundar a ética de seu tempo, a kantiana portanto, justamente por

ter ela sido a maior e mais profunda influência vivida na Europa nos últimos

sessenta anos. E concomitante a esta crítica à fundamentação moral kantiana,

Schopenhauer (1995, p. 15) assegura que “[...] já que os contrários se esclarecem

[...], partirá desta tentativa de fundamentação para [...] preparar o caminho direto

para a sua [...], pois a partir desta digressão, reforça que, [...] é chegado o tempo de

dar ouvidos à ética [...]”. Após discorrer de forma retrospectiva sobre aquilo que ele

intitulou de Visão geral, Schopenhauer analisa os fundamentos morais apontados

pela humanidade ao longo dos tempos, afirmou que muito embora outros filósofos

tenham se esforçado em responder recorrendo a razões sofísticas, é a Kant que

Schopenhauer (1995, p. 11) atribui o mérito de ter destruído o fundamento moral da

Alcorão expôs uma proposta da religião islâmica que ganhou notoriedade por meio de seu profeta Maomé, considerado profeta, 610 e 632 a.C., e os Sunna, livros sagrados. 21

O conceito de eudemonismo advém da junção das palavras ‘bem’ e ‘espírito’ que, especif icamente para os gregos, indicava esta busca pela felicidade ou vida feliz alicerçada numa compreensão natural dos homens para alcançar a perfeição por meio do exercício das virtudes. Schopenhauer exime apenas a Platão desta crítica, pois para o filósofo de Dantzig este, dentre todos os antigos, alicerçou sua ética numa mística e num pensamento profundamente complexo. Dentre os demais, especificamente entre cínicos e estóicos haveria, em contrapartida, um tipo especial de eudemonismo. Na Grécia temos a noção de eudaimonia na qual a equação ética que descreve a felicidade como o resultado da soma entre virtude, mais liberdade, mais saber, reafirma a íntima relação entre virtude e felicidade, eudaimonia. Desta forma, o bem racional é capaz de conduzir à felicidade em contraposição ao mal que desemboca na infelicidade. E não seria de outra forma, pois, para os gregos, mais especificamente para Platão, a felicidade era a finalidade última de toda ação virtuosa, porém, ação advinda de uma escolha racional. Logo, felicidade era sinônimo de racionalidade. A virtude socrática era benéfica àquele que a praticava, pois este deve ter consciência do seu feito, pois a ação virtuosa é sempre desejável principalmente por quem a praticou. A palavra virtude vem da raiz da palavra areté, superlativo de distinto e escolhido, que no plural era constantemente utilizado para designar tudo aquilo que era nobre, bom e melhor principalmente no que tange às qualidades humanas. Da palavra areté advém também a palavra “aristós”, que denota uma significação aristocrática e peculiar das capacidades humanas elevadas aos níveis da excelência.

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teologia especulativa, até então tido como firmemente válido, pois este se

encontrava alicerçado na ameaça do castigo ou na promessa de recompensas.

Schopenhauer considera periférica a obra Primeiras razões metafísicas da

doutrina da virtude de 1781 em que se encontra a Doutrina do Direito de Kant e

dedica-se a analisar a obra Fundamentação da metafísica dos costumes datada de

1785. Para Schopenhauer, nesta última obra, Kant já com sessenta anos não

manifestava mais o mesmo gênio expressivo de sua juventude quando realizou as

primeiras obras, ou seja, a Crítica da razão pura, de 1781 e a Crítica da razão

prática, de 1788 e talvez por conta disso, tenha incorrido em tantos erros e

contradições.

Immanuel Kant fundamentou a moral no Imperativo Categórico da Razão

Prática alicerçada na fórmula do dever e confirmada na máxima de um Imperativo

categórico que afirmava peremptoriamente o “Devo proceder sempre de maneira

que eu possa querer também que a minha máxima se torne uma lei universal” (Kant,

1980, p. 33). Esse imperativo, profundamente racional, precedia a experiência, mais

ainda, na verdade independia dela, pois para ele, a razão não precisava do

elemento empírico para fundamentar a ética, ou seja, a racionalidade foi elevada ao

seu nível máximo na generalização de um fundamento moral que se estenderá para

todos os seres racionais o que levou Kant a enxergar o mundo por um filtro de

sensibilidade (espaço e tempo) e de entendimento, que priorizou a normatividade do

“dever” acima do “ser”.

Na crítica schopenhaueriana, esta concepção impossibilitou conhecer as

essências das coisas e fundamentou a busca pela objetividade racional que, embora

estivesse calcada nos critérios de universalidade e necessidade, estava mais

voltada para a conduta privada e momentânea na qual a realização dos atos estava

circunscrita sob a forma de uma constituição subjetiva da autodeterminação do

indivíduo. Assim, o imperativo categórico de Kant, tornou-se meramente uma

generalização hipotética e sem conexão causal entre o “eu” individual e o “todo”, e

que intencionava transformar uma escolha privada numa lei geral.

Schopenhauer asseverou sua crítica afirmando que o pensamento kantiano

pretendeu defender a existência de leis morais puras e de conceitos que de fato

eram inalcançáveis, e que na verdade não passavam de suposições sem poder de

demonstração. Para Schopenhauer (1995, p.18), Kant apresentou uma ética

independente do real, excessivamente transcendental e metafísica, na qual o agir

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humano teria um significado que ultrapassaria toda a possibilidade da experiência,

daí se deduzir que a razão prática e o Imperativo Categórico, dado o seu grau de

abstração, apresentariam uma fragilidade, logo, uma necessidade também de

fundamentação. Assim, este tornou-se o ponto de partida necessário para o sucesso

das análises posteriores de Schopenhauer, ponto aliás, que aplicava-se com prazer

como podemos ler:

Por isso, confesso o prazer especial com que ponho encosto e declaro francamente minha intenção de demonstrar que a Razão Prática e o imperativo categórico de Kant são suposições injustificadas, infundadas e inventadas para provar que também a ética de Kant carece de um fundamento sólido. (SCHOPENHAUER, 1995, p. 16).

Para Schopenhauer, o imperativo categórico era a expressão máxima de uma

moral que ordenava e que prescrevia assumindo a forma de leis (Lex, nomos)

assemelhando-se ao decálogo mosaico que guardava, ao seu final, apenas a noção

de prêmio ou de castigo que era comum das teologias. Em si mesmas não havia

uma essência ou conteúdo, mas ao contrário existiria uma normatização que

simplesmente estabeleceria uma regra por meio de um comando ‘tu deves’ (du sollt).

Kant ornamentou esta forma imperativa da ética por meio do conceito de obrigação,

ou seja, do ‘dever pelo dever’ que acabou gerando um sentimento de medo e

escravidão estruturada por um tipo de observância que, por sua vez, sustentaria

uma situação de obediência. Este respeito nascido assim, da obediência, teria como

real intenção, apenas “ocultar a providência da forma imperativa e do conceito de

dever a partir da moral teológica” [...], pois a necessidade de uma ação tomaria o

lugar de um dever, tendo em vista que “o dever é a necessidade de uma ação por

respeito diante da lei” (SCHOPENHAUER, 1995, p. 39).

Desta análise, segue-se uma inversão lógica identificada por ele como

Petição de Princípio que, a seu ver, seria o primeiro ‘passo em falso’ (próton

pseudós) dado por Kant, ou seja, ao conferir um novo fundamento para a moral a

partir de uma existência apenas ideal, Kant cairia num circulus vitiosus22, e como

22

Também conhecido como Dialelo, ou Petição de Princípio, esta é uma expressão latina com origem na lógica clássica, inicialmente trabalhada por Aristóteles, que ficou conhecida pela denominação de Petição de Princípio e que pode ser entendida como uma falácia. Portanto não é entendida como um erro desproposital, mas, ao contrário, uma estratégia intencional na qual o debatedor utiliza-se de sua habilidade em lidar com um conceito para iludir o opositor. Também é entendida como um sofisma enumerado entre os extra dictionem, ou seja, que não dependem da expressão lingüística, e que consiste em assumir como premissa a proposição que se quer provar. Logicamente se, exemplificando, uma questão que foi combatida anteriormente, é posteriormente resgata para que, de

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conseqüência disto, afirmar-se-ía “agora já não se sabe quem é carga e quem é

apoio” (SCHOPENHAUER, 1995, p. 23).

Para o filósofo de Dantzig (SCHOPENHAUER, 1995, p. 25), o dever tomado

assim de modo absoluto, simplesmente seria uma contradictio in adjecto, ou melhor,

uma contradição em adição ou em anexação, o que caracterizaria um vazio sem

sentido originado da ênfase dada ao dever incondicionado incorrendo, como

conseqüência, numa moralidade com fundo teológico.

[...] Kant emprestou da moral teológica, silenciosamente e sem ser visto, a forma imperativa da ética, cujas pressuposições, e portanto a teologia, estão no fundamento dela e, de fato, unicamente como aquilo que lhe dá sentido e significado, sendo dela inseparáveis, já que nela estão implicitamente contidas, tornou-se fácil para ele desenvolver de novo, a partir de sua moral, no fim de sua exposição, uma teologia, a conhecida teologia moral. (SCHOPENHAUER, 1995, p. 27).

Para Schopenhauer, causava espanto que, como passe de mágica, este

fundamento tenha sido escondido e no momento propício tenha tornado a aparecer

com outra roupagem,

Não tenciono fazer qualquer comparação irônica, mas na forma a questão apresenta analogia com o espanto que nos propicia um mágico, já que ele nos faz encontrar algo, onde ele antes sabiamente o escondera. Dito de forma abstrata, o procedimento de Kant é o de ter dado como resultado aquilo que teria sido o princípio ou o pressuposto (a teologia) e de ter tomado como pressuposto aquilo que teria de ter sido derivado como resultado (o mandamento). Porém, depois que ele virou a coisa de ponta-cabeça, ninguém, nem mesmo ele, a reconheceu como sendo aquilo que ela era, a velha e bem conhecida moral teológica. (SCHOPENHAUER, 1995, p. 27).

Esse tipo de versão moral com uma ênfase num imperativo e numa doutrina

dos deveres também foi largamente utilizado na filosofia com uma fundamentação

na vontade de muitos deuses ou de um único Deus, mas que de modo geral deveria

ser entendida como uma perspectiva metafísica. A proposta kantiana era a de

estabelecer uma fundamentação que não fosse assegurada pela metafísica,

portanto, a partir desta crítica, o filósofo de Königsberg “não mais se estava

modo vicioso, seja novamente trazida a juízo, formalmente criticada, revisada e aceita como verdadeira, o opositor demonstrará aparente erudição e habilidade na manipulação dos conceitos, contudo, este incorrerá, na verdade, em um erro intencional lógico no qual a resposta é tida como o mesmo e único problema, para novamente impor a ela o peso que ela continua a ter, posto que foi reconduzida ao centro da questão.

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autorizado a por como fundamento, sem outro modo de dedução, aquela forma

imperativa, aquele ‘tu deves’ e ‘é teu dever’” (SCHOPENHAUER, 1995, p. 28).

De acordo com Schopenhauer (1995, p. 31), a forma imperativa categórica

kantiana poderia ser comparada a uma receita de um remédio que começa e ser

indicada para várias outras doenças, e este médico, por sua vez, que é Kant, que

muito embora tenha dado uma das maiores e mais importantes contribuições ao

conhecimento, ou seja, a distinção entre conhecimento a priori e conhecimento a

posteriori, no entanto, começa a aplicar tal fórmula em todas as áreas e campos do

saber em suas muitas dimensões. No campo da ética, por exemplo, percebemos

claramente a distinção entre sua parte pura e sua parte empírica, e em seguida,

passa a rejeitar toda relação estabelecida com o mundo da experiência a fim de

fazer valer o seu intento de analisar apenas aqueles considerados a priori. A lei

moral, que passou a presidir o fundamento desta forma imperativa, ganha uma

dimensão apriorística desligando-se da experiência e “repousando simplesmente

sobre conceitos da razão pura e a partir disto torna-se uma proposição sintética a

priori” (1995, p. 32). Este conteúdo, então, passa a manter relação única e

“meramente na forma e não no conteúdo das ações”, pois, como dito, desliga-se

completamente de quaisquer possibilidades de relação de necessidade com a

experiência (SCHOPENHAUER, 1995, p. 32). Kant chega mesmo a radicalizar tal

separação afirmando que para êxito de uma ciência moral que se queira

verdadeiramente pura como é esta que ele almeja expressar, nenhum tipo de

pensamento que remonte à disposição natural da humanidade, sentidos, inclinações

ou tendências que derivem da vontade de seres racionais pode fundamentar a lei

moral. Para Kant (1980, p. 52), o imperativo categórico “não se relaciona com a

matéria da ação e com o que dela deve resultar, mas com a forma e o princípio de

que ela mesma deriva; e o essencialmente bom na ação reside na disposição

(Gesinnung) seja qual for o resultado”. Ao contrário, esta lei, enquanto fundamento

moral, deve manter-se ilibada de toda possibilidade de proximidade com o que é

concreto e real.

A rejeição da experiência externa proposta por Kant é uma prova irrefutável

da sua suposição de que a lei moral também não é um fato da consciência, pois ao

rejeitar a experiência externa, igualmente rejeita a experiência interna. Não tendo

relação nenhuma com a experiência externa, nem com a experiência interna, este

fundamento moral, ou seja, a lei, só pode ser entendida como um conceito puro a

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priori, ou seja, “conceitos que não têm nenhum conteúdo da experiência interna ou

externa, que são, portanto, puras cascas sem caroço” (SCHOPENHAUER, 1995, p.

33). Este fundamento moral kantiano, após ser apresentada como mera forma de

ligação de juízos torna-se completamente descomprometida com a idéia de

necessidade e universalidade, pois de acordo com Schopenhauer (1995, p. 33)

seguindo o itinerário de desligamento entre fundamentação moral e contexto

empírico tal proposição passa a ser entendida como sintética a priori de mero

conteúdo formal, noutras palavras, uma coisa só da pura razão que só conhece a si

mesma e o princípio de contradição.

Essa razão pura tornada hipostasiada como se se mantivesse a si mesma de

forma autônoma e inalterável tinha a pretensão de apresentar-se não só como um

conhecimento para o gênero humano, mas ao mesmo tempo, para todos os seres

racionais. Schopenhauer entendeu que tal afirmação por parte de Kant ressaltava

este caráter hipostasiado das condições de possibilidade de conhecimento para

outro gênero, que não se sabe bem ao certo qual era, se anjos ou outras alegorias,

e que em geral apenas pode ser uma propriedade dos animais. Demarca

Schopenhauer (1995, p. 34) que estamos autorizados a pensar a racionalidade

apenas com relação ao ser humano, pois qualquer outra consideração fora deste

limite alijará suas conclusões entre aquelas que podem ser definidas como

perniciosas ou nocivas à crítica.

Embora para Kant a racionalidade fosse entendida como a essência íntima e

eterna do homem, para o filósofo de Dantzig, esta era entendida apenas como uma

faculdade do conhecimento humano que ocuparia uma condição secundária e

condicionada, responsável unicamente pelo funcionamento do intelecto. Para

Schopenhauer, esta essencialidade humana residiria noutra dimensão do homem,

ou seja, na vontade.

A transposição do método kantiano, da filosofia teórica para a filosofia prática,

resultou, na visão de Schopenhauer, numa absolutização do conceito de dever que

maximizou, igualmente, o conceito de obrigação. Porém, este apriorismo da lei moral

reforçou ainda mais a incompreensão daquilo que o próprio Kant havia estabelecido

como limite para a experiência, ou seja, o mundo como fenômeno. Como ele mesmo

nos diz,

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Que coisas tão disparatadas foram aqui reunidas sob o conceito de apriorismo! Acima de tudo, Kant não se deu conta de que, segundo sua própria doutrina, justo o apriorismo do mencionado conhecimento independente da experiência limita-se, na filosofia teórica, ao mero fenômeno, isto é, à representação do mundo na nossa cabeça, e dele retira toda a validade no que se refere ao ser em si das coisas, isto é, àquilo que existe independentemente da nossa apreensão. (SCHOPENHAUER, 1995, p. 36).

Desse modo, Schopenhauer apresenta o que considera uma contradição na

abordagem kantiana que supondo alinhar a lei moral, que é eminentemente

apriorística, com a filosofia prática, que por sua vez está intimamente ligada ao

fenômeno, “ele apresentou, justamente o que é moral em nós como estreitamente

ligado com o verdadeiro ser-em-si das coisas, encontrando-o de modo imediato”

(SCHOPENHAUER, 1995, p. 36). Ou seja, Schopenhauer toma esta contradição

como uma evidência da existência em nós, não de uma lei, mas de uma vontade

como manifestação da coisa-em-si que relaciona-se com o mundo, ou melhor, que é

o mundo como vontade e como representação. Assim, o moral em nós não seria

outra coisa a não ser a vontade.

Agir moralmente, na visão kantiana, consistiria em agir conforme ao dever

independente de qualquer sentimento, afinidade, identidade ou simpatia, assim

como se apresentam. E, a partir disto, para se saber se uma ação tem ou não valor

moral na perspectiva kantiana deve-se questionar se tal ação foi ou não ‘conforme

ao dever’ o que, para Schopenhauer, remonta ao decálogo mosaico, pois tal

conformidade com este dever torna-se mais familiar quando tal palavra traz consigo,

em sua conceituação, a noção de obrigação e obediência. “Tem que ser

comandada! Que moral de escravos!” exclama o filosofo de Dantzig

(SCHOPENHAUER, 1995, p. 37).

Agir conforme a lei seria um seguimento quase inflexível de uma

determinação imposta por uma razão que desconsidera qualquer tendência,

inclinação ou predisposição relacionada com ela. Para Kant, a ação seria

considerada valiosa moralmente quando conformada ao dever, independente da

relação de simpatia, identidade ou comiseração com o sofrimento de outrem. Para

Schopenhauer, tal seguimento, considerado por ele cego, como proposta de uma lei

racional revolta o sentimento moral genuíno, pois fixa a ausência de um sentimento

nobre tal qual o amor tão estimado entre as religiões e dentre estas, mais

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especificamente a cristã. Esta ação conforme a lei também anula a proximidade ou

mesmo a identidade com o sofrimento alheio, tendo em vista que esta ação não

decorre da necessidade nem de sentimentos, nem da aproximação com o agente

sofredor, muito menos com qualquer tipo de inclinação arbitrária.

A consideração do valor moral de uma ação pela ótica kantiana parece

sugerir que a entrada destes elementos mais concretos e mais humanos como os

sentimentos, a identidade com a dor daqueles que sofrem, bem como a

consideração da sensibilidade parece, para Schopenhauer, causar uma certa

perturbação ou mesmo uma confusão no indivíduo quando na tentativa de se

instaurar máximas que correspondam a uma submissão de uma razão que é não é

nada mais que apenas legisladora. Muitos homens e mulheres, para Schopenhauer,

podem até realizar ações que poderíamos ser consideradas conforme a lei, dada a

sua observância e cumprimento ao dever, porém, estas mesmas ações não

necessariamente teriam de ser verdadeiras e genuinamente morais, pois o exterior

da ação ainda assim não revelaria o oculto de seus corações. Assim, as intenções

que repousam no mais íntimo de cada ser humano poderiam ser omitidas e ser

apresentadas com uma roupagem convincente e atraente omitindo dentre outras

coisas o que é perverso e o que é cruel.

Schopenhauer propõe que o valor moral de uma ação não deva repousar

sobre uma conformação à lei e ao dever, mas ao contrário, propõe uma reflexão

sobre noção de intenção. Tendo em vista que muitos podem esconder suas reais

intenções por detrás de uma ação socialmente elogiável e convencionalmente

aceita, deriva-se disto que o resultado de uma ação não necessariamente pode ou

deve corresponder à intenção de quem a realizou, o que põe em cheque a questão

da validade ou não de uma determinada ação. A busca por honra ou notoriedade,

assim como o desejo por reconhecimento e status podem motivar a muitos

indivíduos a agir ordeira e elogiavelmente. Porém, não sendo o resultado de sua

ação, o momento exato para se considerar uma ação louvável ou reprovável, esta só

pode encontrar-se na esfera das intenções na qual, assevera Schopenhauer, “só a

intenção decide sobre o valor moral ou não de um ato” (SCHOPENHAUER, 1995, p.

38). Para o pensador a intenção pode ser um divisor de águas quando, por exemplo,

uma ação que fora erroneamente interpretada em sua efetivação poderia ser

justificada previamente com base nas intenções, o que pode ser ou não aceito como

correção daquela interpretação inicial.

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Um ato pode, e deve, ser definido não com base numa inevitável relação de

necessidade com uma lei como queria Kant, mas a partir de uma tentativa de

interpretação das intenções dos indivíduos por mais difícil que esta missão possa se

apresentar. Com isso, o filósofo busca retirar os elementos que possam vir a

dificultar uma possível interpretação sobre o real valor de uma ação moral mesmo

que dentre estes elementos esteja a linguagem como o sugere que Kant o tenha

feito. Ou seja, para Schopenhauer, Kant utilizou-se do conceito de ‘respeito’ como

sinônimo de ‘obediência’, o que caracterizou uma tentativa de se “ocultar a

proveniência da forma imperativa e do conceito de dever a partir da moral teológica”

(SCHOPENHAUER, 1995, p. 39). Agir por respeito à lei, na visão schopenhaueriana,

não seria outra coisa a não ser agir por obediência, o que não justificaria a permuta

de um termo por outro, pois “[...] o dever significa uma ação que deve acontecer por

obediência em relação a uma lei, este é o nó da questão” assevera Schopenhauer

(1995, p. 40).

Nesse sentido, para Schopenhauer, a linguagem, as regras sociais, e os

imperativos, podem ser utilizados como máscaras e omitir o verdadeiro valor moral

das ações humanas. E, após este esforço inicial de compreender a fundamentação

de Kant na forma e conteúdo, Schopenhauer (1995, p. 40) questiona: “E agora a lei,

esta última pedra de toque da ética kantiana! Qual é seu conteúdo? E onde está

escrita? Esta é a questão principal”. Este questionamento de Schopenhauer parece

apontar para uma moralidade que está totalmente desamparada de seu fundamento

e, a partir disto, inicia sua digressão rumo à uma proposição que possa preencher-

lhe o vazio.

Para tentar resolver a questão Schopenhauer afirma que existem duas

condições que devem ser devidamente evidenciadas e conseqüentemente

avaliadas, ou seja, uma referente ao princípio da ética e outra que diz respeito ao

fundamento, noutras palavras, forma e conteúdo. A primeira quer responder à

questão ‘o que’ de uma ação moral, a outra o ‘porque’ daquela.

Como explica o filósofo, o “hó, ti”, ou ‘o que’, refere-se à proposição que

pertence à virtude. O “dióti”, por sua vez, refere-se à noção do ‘porque’ da virtude,

ou seja, a razão pela qual a ação se realizou. O fundamento de uma ética deve ter

por base esta separação e análise na qual o “dióti”, ou seja, o ‘porque’ da virtude

seja a sua base e sustentação qualquer que seja a situação, tempo e lugar. Para

Schopenhauer, muitos filósofos moralistas incorreram no erro de não separar a

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questão a ser analisada de sua razão de ser. Dever-se-á, por conta disso, separar o

princípio de seu fundamento como ponto de partida para uma análise bem sucedida

da moralidade.

A proposta schopenhaueriana é reconduzir a discussão para o seu modo

correto de procedimento no qual o “hó, ti”, ou seja, o seu princípio primeiro será

aquele que desde há muito inúmeros éticos concordam como sendo o mais simples,

o mais fácil e igualmente o mais puro de todos os princípios humanos expressos

como “neminem laede, imo omines, quantum potes, iuva”, ou, “não faças mal a

ninguém, mas antes ajuda a todos que puderes!”. A busca pelo “dióti” a partir de seu

“hó, ti” é a solução para o problema do fundamento da ética ‘que se procura há

séculos como pedra filosofal’, assevera Schopenhauer (1995, p. 41).

Esta consideração traz consigo a marca de uma simplicidade, mas também

de uma verdade inegável que pode conduzir ao fundamento da moralidade e ‘deste

modo, todo o outro princípio moral deve ser visto como uma perífrase, ou mesmo

uma expressão indireta ou mesmo figurada daquela posição vista como simples’.

Schopenhauer (1995, p. 42) assinala que Kant “ligou estreitamente o princípio

da moral com o seu fundamento de modo bastante artificial”, pois tomou o princípio

por fundamento. Tendo em vista que Kant exigiu a separação de seu princípio moral

de toda consideração a posteriori abrindo mão de sua relação material com o

mundo, sua objetividade por parte do mundo externo e de sua subjetividade por

parte do mundo interno, então, assim, Schopenhauer (1995, p. 43) pergunta: “como

é que algo surge do nada, ou seja, como devem se concretizar as leis das ações

materiais dos homens a partir de puros conceitos a priori, sem qualquer conteúdo

material?”.

Para o pensador de Dantzig (1995, p. 43), “os kantianos se enganaram

quanto ao fato de que Kant estabeleceu o imperativo categórico como um fato de

consciência”, pois se isto realmente fosse verdade, ele teria agido de modo a fundar

a moralidade antropológica e empiricamente, e mesmo que a via fosse a interna,

ainda assim, o acesso teria de derivar de um fundamento mais consistente, ou seja,

Mas, falando sério, a que petição de princípio despudorada vemos chegar aqui a lei moral de Kant! Se isto fosse verdadeiro, então a ética teria certamente um fundamento de incomparável solidez e nenhum concurso seria necessário para encorajar a procura dele. Mas seria também maior o espanto ter-se descoberto tão tarde um tal fato de consciência, já que se

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buscou, ao longo de séculos, zelosa e esforçadamente, uma crítica para a moral. (SCHOPENHAUER, 1995, p. 44).

Causa admiração a Schopenhauer que Kant tenha conseguido agregar tantos

admiradores e confessos seguidores em sua proposta de fundamentar uma

metafísica dos costumes a partir de seu apriorismo conseqüente, pois pensar numa

consciência moral desligada de toda e qualquer experiência revela a consagração

de um equívoco fundamental que ultrapassa os limites da coerência e do bom senso

instaurando um pensamento autocontraditório numa quase imbatível dominação. A

estes eruditos e especialistas que abraçaram tal proposta, Schopenhauer desfere

uma crítica que alerta para o fato destes demorarem-se demasiadamente no ofício

do ensino nas cátedras, mas não dedicam-se em tempo algum a aprender em

profundidade. A frase que ganha peso com esta crítica é “semper docendo nihil

disco” (SCHOPENHAUER, 1995, p. 45), ou melhor, sempre ensinando não aprendo

nada. Nota ainda que, mais do que um equívoco, a fundamentação moral de Kant é

um ‘processo sutil’ de pensamento que demanda muito mais elucidação do que se

imagina, pois ao abandonar o ponto de partida empírico este deveria encontrar algo

para por em seu lugar, o que, para o Schopenhauer, fez Kant optar por uma idéia de

lei ou de legalidade.

Schopenhauer explica que Kant desdenhou das possíveis fundamentações

empíricas que tinha acesso, ou seja, a objetiva e a subjetiva, restando-lhe apenas a

sua própria forma expressa por meio de uma exacerbada e pretensa legalidade. Sua

matéria (Stoff) não seria nada mais do que apenas a sua forma e o seu conteúdo

(Inhalt) nada mais do que a sua universalidade. Noutras palavras, a legalidade seria

uma matéria que não teria nada mais do que a sua universalidade para servir-lhe de

conteúdo.

Schopenhauer, buscando desfazer um importante alicerce da filosofia

kantiana, admira-se do nível de argumentação elaborado por Kant e parece mesmo

prestar reverencia e respeito ao pensador, afirmando, “tributo minha sincera

admiração à grande perspicácia com que Kant executou o hábil feito, mas prossigo

com meu exame honesto, segundo o padrão de verdade” (1995, p. 46).

A razão prática, a partir desta perspectiva, não seria uma faculdade especial

irredutível, nem uma espécie de instinto de moralidade, mas seria uma e mesma

com a razão teórica, pois nunca se desligaram de fato. De outro modo, complementa

Schopenhauer (1995, p. 47), “esta é a expressão moderna e embelezada para

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64

petição de princípio, e deste modo também ele, tendo assim tomado o imperativo

categórico, inclui-se naquele equívoco condenável” que apresenta-se por meio de

dois erros fundamentais.

O primeiro é o de afirmar que o homem, por si só, poderia chegar a uma idéia

da existência de uma lei que não nasce de motivação positiva nenhuma, de nenhum

ser existente, de nenhuma coisa ou razão, nem está condicionada a situação de

forma alguma, mas apesar disso, este mesmo homem submete e conforma sua

vontade a esta lei moral nascida de si mesma. Ela é sustentada por si mesma. Ao

considerarmos tal afirmativa, podemos até mesmo imaginar que “o nada surge do

nada e que um efeito não exige uma causa” (SCHOPENHAUER, 1995, p. 48). Ora,

tal pensamento faz do homem o ‘punctum saliens’, ou seja, o ponto de destaque da

moralidade o que conseqüentemente abre a perspectiva de que o egoísmo é que

pode conduzir o agir dos homens. O agente de uma ação buscará em vão pela

existência de uma razão para não agir de uma maneira ou de outra, olhará ao redor

e, efetivamente, só encontrará uma gama de motivações a lhe determinar cada ato.

Schopenhauer repreende como censurável uma fundamentação da moral

como é a fundamentação kantiana, justamente por ser ela erigida sobre uma noção

de que o homem por si só alcance um patamar de compreensão de sua vontade na

qual ele possa encontrar uma lei a que possa submeter-se e conformar-se a ela.

Esta lei partiria de sua cabeça desligada de qualquer motivação moral, positiva e

real, ou seja, o homem daria origem por meio de processos de pensamento a todos

os conceitos morais sem jamais tocar o chão, o que provocou a acusação desferida

por Schopenhauer de que Kant havia trocado os resultados pelas proposições, o

que de fato é um erro, pois, arremata,

a moral tem a ver com a ação efetiva do ser humano e não com castelos de cartas apriorísticos, de cujos resultados nenhum homem faria caso em meio ao ímpeto da vida e cuja ação, por isso mesmo, seria tão eficaz contra a tempestade das paixões quanto a de uma injeção para um incêndio (SCHOPENHAUER, 1995, p. 48).

O segundo erro, que está intimamente ligado ao primeiro, pois critica a

existência de uma moral na qual o seu cerne seria completamente sem conteúdo

real, logo, sem efetividade. A falta de realidade possível, portanto de efetividade,

seria o mínimo necessário para a fundação de uma ética, pois para Schopenhauer

(1995, p. 49) Kant havia realizado um dos maiores feitos da história da filosofia que

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foi o de remover uma carga de peso infinito, a saber a pressuposição da liberdade

da vontade humana. Ou seja, a liberdade de fato não residiria nas ações dos

homens visto que estamos inseridos num mundo de determinação e necessidade

que impede qualquer ato livre, mas ao contrário, nos acorrenta a um universo de

motivos e circunstâncias na qual ela jamais poderia sequer ser teorizada.

Para Schopenhauer, Kant era conhecedor que todas estas considerações a

respeito de seu fundamento eram apenas uma “mera rede de combinações de

conceitos abstratos” quando afirma que “o próprio Kant teve de ter consciência, em

silêncio, da inadmissibilidade de um fundamento da moral que só consiste em

alguns conceitos totalmente abstratos e sem conteúdo” (SCHOPENHAUER, 1995, p.

50), pois na Crítica da razão pura havia afirmado que “a lei moral como um fato da

razão pura” 23. Porém, Schopenhauer chama a atenção que o próprio Kant havia

repetidamente desligado seu fundamento de qualquer fundamentação antropológica

e que o termo ‘fático’ é antes de tudo uma oposição a tudo que se conhece como

razão pura. Na obra Crítica da razão prática tratou de ‘mudar pouco a pouco’ aquele

mesmo fundamento apresentando-o, neste exato momento, pela ótica de uma

possível substancialidade, o que gera uma confessa contradição.

Schopenhauer assinala que, não obstante o esforço de Fichte e Reinhold em

apresentarem a consciência como um conceito da inteligência pura por si mesmo, os

conceitos de imperativo categórico e de autonomia de Kant são vistos pelo filósofo

de Dantzig como ‘uma e mesma coisa’, tendo como evidência que tanto uma quanto

a outra querem fazer referência a uma instância altíssima e purificada na qual a

entrada é impossível tanto quanto sustentarem-se por se mesmas. Este conceito

auto-sustentável, a autonomia, seria o kata exokeen, ou seja, o princípio absoluto,

pois da maneira como é apresentada por Kant, não necessita de nenhum

fundamento por ser simplesmente fundante por si mesma, portanto originária,

genuína e verdadeira. Tal conceito de autonomia seria entendido como completo e

perfeito, não necessitando de nenhuma complementação.

Em sua análise, Schopenhauer chega mesmo a confrontar o imperativo

categórico com a consciência dos homens como sendo um estranhamento, ou na

melhor das hipóteses uma inadequação consentida, tendo em vista que ao se

afirmar uma tal perspectiva demasiadamente teórica, esta pode ser facilmente

23

Sugerimos a leitura da Secção Da faculdade de a razão ter no uso prático uma ampliação que no uso especulativo não lhe é por si possível, parte II da Crítica da razão prática, p. 80.

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confundida com a perversidade moral, pois, quem não conseguiu delinear os limites

deste imperativo e, vasculhando sua própria consciência não foi capaz de encontrá-

la, só tem como saída cultivar o silêncio e esperar que um outro possa demonstrá-la

com maior segurança e propriedade.

Assim, quem não divisou muito bem o imperativo categórico na sua própria consciência preferiu não divulgar nada disto, porque acreditava, em silêncio, que nos outros, ele teria se evidenciado mais claramente. Pois ninguém gosta de virar para fora o mais íntimo de sua consciência. (SCHOPENHAUER, 1995, p. 52).

Disto segue-se que muitos homens não identificam a consciência moral com o

imperativo categórico por justamente este mostrar-se como um fato hiperfísico da

mente humana quase como uma manifestação oracular infalível na qual, pela lei,

tudo deve acontecer de acordo com ela, ou seja, de acordo com a lei.

Fichte e Schelling são citados por Schopenhauer como anti-heróis desta

época em que a filosofia, buscando mais seduzir do que instruir o público,

transformou a razão na pedra fundamental para os edifícios filosóficos posteriores e

Kant em seu mais proeminente profeta.

Embora a razão tenha sido concebida desde o começo dos tempos como a

faculdade de representações gerais, abstratas e não intuitivas capazes de entender

(Vernehmen) e de perceber os fenômenos ao seu redor como própria e natural do

homem, era também criadora de conceitos e assim, deveria ser vista apenas como a

única faculdade que põe a humanidade à frente dos demais animais, estas são aqui

tomadas por Kant e seus seguidores como os alicerces deste edifício. Para

Schopenhauer, esta supervalorização da razão como faculdade humana que

determina ou não o valor de uma ação moral acabou gerando uma dependência

entre elementos que não são necessariamente complementares, ou seja, a razão

deve ser entendida apenas como uma faculdade capaz de criar conceitos e de

condicionar a linguagem, sendo, portanto entendida como uma representação

abstrata que coloca a humanidade à frente apenas dos animais irracionais que

dispõem apenas de representação intuitiva.

Como esta análise, Schopenhauer empreende uma tentativa de reconduzir a

razão para seu devido lugar, ou seja, para a condição de uma mera faculdade

humana que tem a função criadora de conceitos que são incapazes de definir o valor

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de uma ação moral, mas ao contrário, o seu essencial seria simplesmente a sua

capacidade distintiva da qual todo o ser humano é munido na criação de conceitos.

Essa faculdade, a razão, na visão de Schopenhauer, é totalmente dependente

das intuições que temos do mundo exterior e deve ser entendida como uma forma

do próprio entendimento. Como ele mesmo nos menciona sobre a razão,

É a faculdade de conhecimento que também os animais possuem, apenas em grau diferente, e que nós temos no mais alto grau, a saber, a consciência imediata e anterior a toda experiência da lei da causalidade, que, como tal, constitui a forma do próprio entendimento e aquilo no que consiste toda sua essência. (SCHOPENHAUER, 1995, p. 56).

Por isso, essa faculdade racional, na visão de Schopenhauer, foi utilizada

como uma mistura perigosa na qual a lei moral encontrou sua mais expressiva

proposição em dimensões sintéticas apriorísticas.

3.3 Liberdade e necessidade, uma reflexão que conduz à doutrina dos

caracteres

O binômio Liberdade-necessidade, que cruza a segunda parte da obra Sobre

o fundamento da moral24 na qual, Schopenhauer ao abrir o capítulo sobre a forma

imperativa da ética de Kant, de imediato atribui altíssimo mérito a Kant pelo fato de

ter conseguido expor a relação entre liberdade e necessidade. Para Schopenhauer,

esta é uma das maiores contribuições da Kant à humanidade, ou melhor,

considero esta doutrina de Kant da coexistência da liberdade com a necessidade como a maior das realizações da profundeza humana. Ela e a estética Transcendental são os dois diamantes na coroa da fama kantiana que nunca esmaecerá. (SCHOPENHAUER, 1995, p. 90).

A investida de Schopenhauer ganha novas proporções quando aponta para a

Vontade como a essência do mundo e a razão como um subproduto seu, pois a

partir desta consideração, a essência do homem passa a ser a sua vontade e seus

mais variados atos volitivos, e não mais um mero processo abstrato. Schopenhauer

exclui a possibilidade da liberdade para o sujeito e a transfere para a vontade, pois,

para o pensador, todos os nossos desejos e vontades revelam a essência íntima da

24

São obras interligadas: Sobre o fundamento da moral, embora publicada em 1840, é a continuação das reflexões da obra Sobre a liberdade da Vontade de 1939 e Contestação ao livre arbítrio de 1841.

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coisa-em-si e a razão, por sua vez, apenas o seu modo de análise, crítica ou

julgamento.

Estando o homem preso a um determinismo e a uma necessidade empíricos,

torna-se impossível qualquer tipo de liberdade, pois essa, ao contrário, deve

encontrar-se apenas em níveis inteligíveis, noutras palavras, em níveis essenciais,

ou seja, com relação à Vontade.

Desse modo, não se pode falar de liberdade de modo direto e positivo, mas,

de modo inverso, de uma liberdade que se manifesta de modo indireto e negativo.

Assim, não é possível ao homem desfrutar da liberdade empírica, pois para

Schopenhauer esta não existe. Pode, em contrapartida, remeter-se à liberdade da

Vontade, a única possível a que o homem pode lançar mão.

O conceito de liberdade torna-se negativo nesta consideração, pois que só

pode ser alcançada num patamar de essencialidade que não existe no mundo

empírico e que se deixa ver de um modo indireto ou negativo em sua manifestação

no mundo do determinismo e da necessidade.

Este mundo tomado como representação e Vontade, tem em seu primeiro

momento uma constituição totalmente submetida ao princípio de razão do devir, e,

por conseguinte, à lei de causalidade. Com base nessa afirmação, Schopenhauer

opera uma apreciação na qual entende o indivíduo como um fenômeno entre os

outros fenômenos, e por conta deste status fenomênico não pode romper direta e

positivamente as amarras do reino da necessidade causal, justamente por estar

totalmente inserido nesse universo de causalidade e condicionamentos que

reforçam sempre e mais tais amarras, impossibilitando qualquer noção de liberdade.

Como o próprio pensador afirma (SCHOPENHAUER, 2005, p. 308) “a

conduta humana está fixamente determinada desde o nascimento e no essencial

permanece a mesma até o fim da vida”. Schopenhauer ilustra essa questão com um

exemplo no qual uma vara é posta na posição vertical e quando retirada de seu

equilíbrio, objetivamente, ela só poderá cair para um determinado lado já

determinado necessariamente. Essa oscilação independe de significações e

relativismos subjetivos, mas ao contrário, depende unicamente da constituição da

índole interior do caráter inteligível. Nesse caso, “o intelecto apenas pode clarear e

tentar entender os motivos que o levaram a realizar tal ação” (SCHOPENHAUER,

2005, p. 376).

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Por conta desse rigor causal imposto pela condição dos fenômenos, torna-se

impossível falar de liberdade individual ou livre arbítrio, pois esta apresenta-se

apenas como uma ilusão, ou ainda, um engodo assimilado ao longo dos tempos.

Essa ilusão se mostra mais evidente nos discursos em que há uma defesa de uma

liberdade absoluta dos atos humanos assim como de seu querer, ou seja, que os

indivíduos são sempre livres para querer e para agir de acordo com suas

deliberações. Para o pensador, essa liberum arbitrium indifferentae, ou seja, a

liberdade absoluta do querer não pode oferecer uma explicação plausível para a

moralidade, não resistindo a um exame profundo e atento, mostrando fragilidade e

ausência de fundamento.

Para Schopenhauer, o indivíduo jamais é livre para não querer algo, pois ele

pode não efetivar aquilo que quer, porém, jamais será livre para não o querer.

Sempre querendo, o indivíduo jamais pode ser considerado livre, pois agir e querer

manifestam-se de maneira unívoca, como sendo um condição para existir do outro.

Assim sendo, agir e querer permanecem condicionados intimamente nas discussões

posteriores em que Schopenhauer aprofunda a discussão na obra Contestação ao

Livre arbítrio, datada em 1839, no qual reafirma que tudo o que acontece, acontece

necessariamente e a partir disso concorda com a proposta kantiana de que o

problema da liberdade é indissociável do problema da moralidade, pois a liberdade é

a ratio essendi da lei moral e a lei moral é a ratio cognoscendi da liberdade.

Para que não se imagine encontrar aqui inconseqüências, quando agora denomino a liberdade condição da lei moral e depois, no tratado, afirmo que a lei moral seja a condição sob a qual primeiramente podemos tornar-nos conscientes da liberdade, quero apenas lembrar que a liberdade é sem dúvida a ratio essendi da lei moral, mas que a lei moral é a ratio cognoscendi da liberdade. (KANT, 2002, p. 6).

Schopenhauer afirma que não podemos jamais decidir ou escolher sobre o

que devemos ou não querer, mas, apenas querer, refreando constantemente essas

manifestações da Vontade por meio do intelecto. Para o pensador, o intelecto

funciona como um espectador, que embora também seja uma das muitas

objetivações da Vontade, tenta modular o seu querer, impedindo-o de efetivar-se por

conta da conveniência ou das imposições sociais. Não havendo liberdade empírica,

não há, portanto, livre-arbítrio.

Essa afirmação entra em choque com as pretensões de independência de

uma razão que até então era entendida como livre, autônoma e capaz de

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fundamentar a ética. A partir de Schopenhauer, que destronando a razão de

qualquer possibilidade de escolha ou seleção daquilo que se quer, outro fundamento

deve ser apresentado para a ética, modificando o procedimento da pesquisa e do

próprio fundamento ético. Nesse novo modelo, uma nova compreensão de liberdade

deve ser considerada com base num resgate da real condição existencial do homem

inserido no mundo.

A discussão ética schopenhaueriana está voltada para uma condição

existencial de um mundo que é representação e Vontade, que reconhece este

mesmo mundo como um campo de desejo e sofrimento. Para o filósofo, a condição

existencial é puro sofrimento, pois em todo lugar manifesta-se o querer e o sofrer

como condições necessárias para sua realização. Desse modo, não há, uma

finalidade última ou próxima, posto que esta realidade é sem fundamento e sem

propósito, pois todos os seres existentes, racionais ou não, encontram-se num

perpétuo esforço para subsistirem e manterem-se vivos o que lhes provoca um

profundo sofrimento existencial.

Presos nesse determinismo e nessa necessidade, a vida não pode passar de

uma luta contra esse interminável sofrimento que manifesta-se sempre em todos os

lugares e em todos os tempos de modo positivo. No caso específico do homem,

esse sofrimento torna-se mais evidente por conta de sua faculdade abstrata e sua

consciência que o revelam que os conceitos de felicidade, alegria e contentamento

são negativos.

A ilusão do livre arbítrio pode até mesmo nos fazer acreditar que a realidade

não é sobreposta de dor e sofrimento e nos induzir ao pensamento de que

realmente podemos fazer escolhas e poder ser feliz. Este tipo de entendimento

reflete uma ilusão fundamental da individualidade que, por sua vez, conduz a um

egoísmo, pois relaciona tudo ao seu redor dentro dos conceitos de ‘bom’ e ‘ruim’,

que nunca são absolutos, mas ao contrário, relativos a cada indivíduo e seu universo

de preferências. Arremata o filósofo que esta noção equivocada e individualizante

impede o homem de ver o que é verdadeiramente virtuoso e autêntico na existência.

Desta forma, Schopenhauer (2005, p. 56) confirma como legitima a

concepção kantiana de que causa e efeito estendem-se por todo o mundo da

experiência, afirmando que cada ato individual é determinado por causa ou motivos

anteriores. Essa percepção fatalista torna-se uma fonte de conforto e tranqüilidade,

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pois ao perceber que nada pode ser feito para alterar o curso dos eventos, o homem

descobre que o esforço para mudar o mundo rapidamente perde sua força.

Schopenhauer nega enfaticamente a concepção comum de que ser livre

significa poder fazer as coisas exatamente como escolhemos fazê-las. O pensador

vai mais longe ao afirmar que é uma ilusão pensarmos ter uma certeza inabalável de

que somos senhores dos nossos atos, pois o nosso senso de responsabilidade

revela um caráter inato auto-determinado e independente da experiência. Da mesma

forma como as árvores e as flores são manifestações efêmeras da Idéia platônica,

cada ação pessoal e individual é a manifestação espaço-temporal do caráter inato e

inteligível da pessoa (SCHOPENHAUER, 2005, p. 28). O desenvolvimento do

caráter envolve a expansão da nossa individualidade inata, o que traz como

conseqüência uma maior paz de espírito

Permanece, todavia verdadeiro que nossas ações são acompanhadas por uma consciência da própria potência e da originariedade, graças à qual nós as reconhecemos como nossa obra e todos se sentem como autores reais de suas ações e, por isso mesmo, responsáveis moralmente. (SCHOPENHAUER, 1995, p. 88).

Toda ação só pode resultar do caráter do indivíduo e de seus motivos. Desse

modo, o caráter vem a ser a índole de um indivíduo que se dá a conhecer

empiricamente que jamais muda, nem se altera. Schopenhauer afirma que o homem

é dotado de três caracteres, que ao seu tempo são: o inteligível, que está para além

do mundo fenomênico, ou seja, na Vontade; o empírico, que é o único que temos

acesso, pois está no mundo espacial e temporal; e o adquirido, que advém por meio

da prática ou exercício.

Mas, como se dá sua compreensão? Para Schopenhauer, a educação,

embora tenha sua especificidade, não é capaz de alterar o que existe na alma, pois

segue Platão que afirma na República (1997, p. 251) que, querer “enfiar na alma o

conhecimento, é um erro, pois as lições que fazem entrar à força na alma nela não

permanecerão”, pois, a faculdade do conhecimento vem de dentro da alma para

fora, tendo em vista que esta faculdade é inata à alma. A educação, assim, não será

mais do que uma arte de conversação, a arte de fazer visita à alma, pois vista ela já

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possui 25. Os indivíduos são fenômenos das Idéias no tempo, no espaço e na

pluralidade.

O caráter de cada homem isolado, em virtude de ser por completo individual e não estar totalmente contido na espécie pode ser visto como uma idéia particular, correspondendo a um ato próprio de objetivação da Vontade. Esse ato mesmo seria seu caráter inteligível, enquanto seu caráter empírico seria o fenômeno dele. O caráter empírico é absolutamente determinado pelo caráter inteligível, o qual é sem-fundamento, isto é, não está, enquanto coisa-em-si, Vontade, submetido ao princípio de razão (forma do fenômeno). O caráter empírico tem de fornecer num decurso de vida a imagem-cópia do caráter inteligível, e não pode tomar outra direção a não ser aquela que permite a essência deste último. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 224).

Disto podemos analisar que a Idéia de cada ser obedece a uma gradação da

Vontade, sendo assim, o caráter empírico é a atualização do caráter inteligível de

modo temporal, espacial e plural. O caráter inteligível reside na Vontade livre e

imortal, pois coincide com a Idéia, ou de acordo com as palavras de Schopenhauer,

“com o ato originário da Vontade que nela se objetiva” (2005, p. 221). Schopenhauer

alarga a compreensão de caráter empírico afirmando que:

Em verdade, não é apenas o caráter empírico de cada homem, mas também o caráter empírico de cada espécie animal, sim, de cada espécie vegetal e até mesmo de cada força originária da natureza inorgânica que deve ser visto com fenômeno de um caráter inteligível, isto é, de um ato indiviso e extratemporal da Vontade. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 221).

Desse modo, Schopenhauer analisa a grande variedade e diversidade dos

fenômenos nos quais a Vontade objetiva-se a exemplo da diversidade das idéias

platônicas de um modo gradual. São as gradações da objetivação nas quais a

Vontade expõe-se em meio à multidão de indivíduos permanecendo,

essencialmente, imóvel em meio à mudança.

O Caráter Inteligível é o Ser, em sua máxima expressão. Por isso, constitui o

ser de cada indivíduo, mas não pode ser conhecido fora da esfera fenomenal, ou

seja, é na determinação espaço temporal que podemos ter acesso a ela. Nestas

condições de pura liberdade, próprias da Vontade, é que o caráter humano é

entendido como imutável, uno e verdadeiramente livre, posto que a única liberdade

25

Platão no capítulo VII de A República apresenta as virtudes da alma e as virtudes do conhecimento. As virtudes da alma não são inatas e podem ser adquiridas pelo hábito e pelo exercício, enquanto que, as do conhecimento contêm algo de divino e nunca perdem sua força. Tanto umas quanto outras virtudes podem ser úteis e salutares, imprestáveis e prejudiciais dependendo de sua natural inclinação.

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que temos acesso reside no Ser. Se subtrairmos toda temporalidade e espacialidade

encontraremos o caráter inteligível. O caráter inteligível, enquanto fenômeno,

portanto, temporal e espacial, é o caráter empírico. E nada escapa a essa relação,

pois até mesmo as ações isoladas do corpo dizem respeito ao ato isolado da

Vontade.

O caráter inteligível coincide, portanto, coma Idéia ou, dizendo mais apropriadamente, com o ato originário da Vontade que nela se objetiva. Em verdade, não é apenas o caráter empírico de cada homem, mas também o caráter empírico de cada espécie animal, de cada espécie vegetal e até mesmo de cada força originária da natureza inorgânica que deve ser visto como fenômeno de um caráter inteligível, isto é, de um ato indiviso e extratemporal da Vontade. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 221).

O caráter empírico e adquirido são atos da Vontade enquanto fenômenos

circunscritos neste mesmo tempo e nesta mesma pluralidade. Os indivíduos são

fenômenos das Idéias inseridos no tempo e no espaço, portanto, na pluralidade dos

vários modos de existir. Assim como existem vários modos de existência, também

existem vários graus de objetidade, sendo uns baixos, outros mais elevados. Nos

graus mais baixos de objetidade, o ato (ou Idéia) continua a manter uma unidade do

fenômeno, ou seja, uma dificuldade em desenvolver-se e tornar-se plenificado. Ao

contrário, nos graus mais elevados de objetidade, há a prevalência de ‘uma série de

estados e desenvolvimentos’ que propiciam tanto o querer quanto o conhecer

(SCHOPENHAUER, 2005, p. 220). O Caráter Empírico é o fenômeno, que por sua

vez, só pode ser conhecido na realidade espaço-temporal revelando assim, a

conduta do ser humano; e, por meio desta conduta, pode-se revelar o caráter de um

homem. Desta forma, a conduta revela o caráter, que revela o Ser. Daí que a

máxima “operari sequitur esse”, o agir do ser de cada homem e pelo qual sabemos

quem ele é.

O Carter Adquirido é a esfera do aprender, ou seja, do conhecimento

produzido pela experiência de vida, que gera um autoconhecimento no qual, via

conhecimento, torna-se possível, até mesmo alterar a conduta de um indivíduo; Não

modifica a Vontade, mas a clarifica e a possibilita a condição de reflexão de si

mesma, empregando outros meios e recursos para sua efetivação no real, não

significando assim, que o caráter inteligível se modifique, pois este é inalterável, mas

que se saiba diferente. Ao compreender o seu querer, o homem é capaz de

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conduzir-se no modo mais consciente, pois sabe o que é e o que quer. O caráter

adquirido pode nos levar a entender nossa conduta.

[...] a Vontade expor-se como um ímpeto cego, um impelir abafado, obscuro, distante de qualquer capacidade imediata de conhecimento, trata-se da espécie mais simples e débil de sua objetivação. Como ímpeto cego e esforço destituído de conhecimento, a Vontade também aparece em toda a natureza inorgânica, ou seja, em todas as forças originárias, cuja investigação e descoberta de suas leis é tarefa da física e da química, sendo que cada uma dessas forças se expõe para nós em milhões de fenômenos similares e regulares, sem vestígio algum de caráter individual, meramente multiplicadas por tempo e espaço, isto é, pelo principium individuationis, parecidas a uma imagem multiplicada pelas facetas de um vidro. (SCHOPENNAUER, 2005, p. 214).

Leandro Chevitarese (2010, p. 145) resgata a proposta de José Tomás Brum

e Rüdiger Safranski a respeito de uma espécie de sabedoria existencial teatral como

consideração da proposta de uma eudemonologia empírica que pode apontar para

uma ‘ética da melhoria’ quando esta viabiliza ao indivíduo um autoconhecimento

para aprender a lidar com aquilo que se é, sabendo que não pode decidir o enredo

da peça teatral, nem os papéis de outros personagens, muito menos o seu, nem o

cenário, mas que reconciliado com seu papel, pode, “no transcorrer da turnê,

encontrar outras formas de interpretar seu personagem no mesmo drama que já

está em cartaz, fazendo arte do que lhe é inevitável” (2010, p. 145).

A gradação ocorre de modo que no reino vegetal e animal não temos causas,

nem motivações, mas apenas excitações, posto que esta efetivação da Vontade

ainda não é constituída de conhecimento. E, no que tange aos graus mais elevados,

Schopenhauer explica que a Vontade após trilhar o longo caminho da gradação de

sua efetivação, chega a um ponto no qual o indivíduo, expressando a idéia, não

depende nem se move por simples causa ou mera excitação como inorgânicos, os

vegetais e animais não-racionais, mas, neste estado superior, age por meio de

motivos e de uma chave hermenêutica que Schopenhauer reconhece como o

conhecimento que segundo uma exigência deste estado pode ajudar, auxiliar ou

mesmo iluminar a visão de mundo. Pois,

A Vontade, até então a seguir na obscuridade o seu impulso, com certeza e infalibilidade, inflamou neste grau de sua objetivação uma luz para si, meio este que se tornou necessário para a supressão da crescente desvantagem que resultaria da profusão e da índole complicada de seus fenômenos, o que afetaria os mais complexos deles. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 215).

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Em cada homem de maneira isolada o caráter pode ser visto como uma Idéia

particular e em cada Idéia particular, por sua vez, identificamos um ato próprio da

objetivação da Vontade, ou seja, o ato particular a que fazemos alusão é tão

somente o seu caráter inteligível, e o caráter empírico viria a ser o fenômeno deste

ato. Inteligível e empírico são, pois dois momentos de uma mesma variação. O ato é

o caráter inteligível e o fenômeno o caráter empírico deste. Com tal identificação,

podemos considerar, na perspectiva do autor que o caráter empírico é

absolutamente determinado pelo caráter inteligível, e que aquele não subsiste sem

este. Schopenhauer (2005, p. 224) chega a asseverar que o caráter empírico não

pode tomar outra direção no decurso da vida, pois ele é ‘imagem-cópia’ do

extremamente essencial que constitui o caráter inteligível e não do inessencial.

3.4 A Lei de Motivação

Para o filósofo (SCHOPENHAUER, 1995, p. 22), a vontade humana está

absolutamente submetida à natureza, tendo em vista que há uma lei que determina

sua necessidade de forma efetiva, que se chama lei da motivação. A lei da

motivação é a única lei demonstrável da vontade humana, à qual esta, como tal,

está submetida, onde cada ação só pode dar-se como conseqüência de um motivo

suficiente. As leis morais, independentes de regulamentação humana, da instituição

estatal ou da doutrina religiosa, não podem ser admitidas como existentes sem uma

prova, ou seja, que o agir humano é determinado pelos motivos, por isso, defende

que, o valor moral de uma ação é definido exatamente pela ausência, ou não, de

motivação egoísta (SCHOPENHAUER, 1995, p. 124).

Esta lei de motivação é uma forma da lei causal, ou seja, a causalidade

mediada pelo conhecimento. A partir da raiz suficiente do agir, Schopenhauer busca

demonstrar (Beweis) a compaixão como o único e genuíno fundamento para a

moralidade estabelecendo nove premissas que são os pressupostos desta

manifestação.

A primeira premissa estabelece (1995, p. 125), com a mesma necessidade da

raiz da causalidade, assim como uma pedra não pode mover-se sozinha, mas antes

necessita de um impulso externo a ela capaz de tirar-lhe da inércia, assim também

no campo do agir humano, nenhuma ação acontece sem motivo suficiente. Deste

modo, Schopenhauer anula qualquer possibilidade de neutralidade das ações,

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noutras palavras, não existem ações desinteressadas, sejam elas quais forem.

Andar, comer, escovar os dentes, ajudar uma idosa a atravessar a rua, servir uma

xícara de chá a alguém ou abrir uma correspondência, todas as ações têm um

motivo suficiente para acontecer.

A segunda, afirma que um motivo suficiente só se efetua quando um outro

motivo não torna necessária sua cessação, de outro modo jamais conseguiríamos

atualizar nenhuma ação, pois embora desejemos inúmeras coisas, só podemos

querer atualizar uma vontade por vez, sendo que esta vontade atualizada é superior

àquela que foi cessada. A atualização de uma, incorre na interrupção de outra.

A terceira premissa afirma que uma ação só acontece basicamente por dois

motivos, ou por bem-estar ou por mal-estar com relação à vontade do agente,

significando com isso que não há, na visão de Schopenhauer, outro móvel possível

para sua consumação e estes jamais podem coincidir, ou melhor, nunca um agente

pode querer seu bem e ao mesmo tempo o seu mal-estar. Trata-se de uma condição

“ou” e não de uma conexão “e”, ou seja, ou age-se por bem-estar ou por mal-estar

do agente. Nisto assemelha-se à quarta premissa que como conseqüência da

primeira, afirma que estabelece-se o bem-estar ou o mal-estar como fim último de

qualquer ação um determinado ser suscetível. De acordo com a quinta premissa,

este ser suscetível, podem ser ou o próprio agente, ou um outro ser. No segundo

caso, este outro ser participa passivamente da ação e não ativamente.

Temos na sexta premissa uma determinação de que uma ação, seja ela qual

for, se realizada tendo como fim último o bem-estar ou mal-estar do agente, é

considerada por Schopenhauer egoísta. Noutras palavras, sempre quando agimos,

queremos ou assegurar nossa manutenção e saciar nossas necessidades básicas

de sobrevivência ou queremos evitar o desconforto ou a dor. O conteúdo da sétima

premissa contempla a ações por omissão, que na visão de Schopenhauer ou são

efetivadas por motivos ou por contramotivos incluindo-se entre todas as premissas

anteriores.

A oitava premissa estabelece que uma ação com o fim egoísta opõem-se

naturalmente à uma ação de valor moral, pois uma ação nunca pode ter dois fins

últimos, mas apenas um e como conseqüência um anula o outro. Neste ponto

Schopenhauer afirma que uma ação verdadeiramente moral não pode ter como fim

um motivo egoísta mediato ou imediato de nenhuma forma. Para uma ação ter

motivo moral é necessário que o seu motivo seja totalmente desligado do agente da

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ação e conjugado sempre e de modo definitivo ao outro. Eliminando assim qualquer

possibilidade de motivação pessoal. Uma ação moral é uma ação voltada para o

bem-estar outro e nunca para o bem-estar ou mal-estar de si mesmo. Nisto consiste

a última premissa.

A partir desta análise, Schopenhauer afirma que a finalidade de uma ação é o

que caracteriza o valor moral da mesma, ou seja, se uma ação tem como finalidade

o bem-estar ou o mal-estar de si mesmo, então, nesta não há valor moral sendo

catalogada como antimoral. Mas se a finalidade de uma ação é o bem-estar de um

outro ser que não o agente da ação, temos o que Schopenhauer caracteriza como

ação moral. Assim o pensador separa as duas compreensões de uma ação de

acordo com sua finalidade como antimorais e morais.

Na visão do autor, na base das motivações humanas estão duas categorias, a

saber, as motivações antimorais e as motivações morais. A partir desta análise

expositiva da lei causal e da lei da motivação, o autor explica que existem três

motivações principais para o agir humano: o egoísmo, a maldade e a compaixão.

As motivações antimorais são o egoísmo e a maldade. Enquanto que no

respectivo contrário, temos como motivação moral a compaixão, ou Mitleid. De longe

o mais predominante destas motivações entre os homens é o egoísmo. Para o

filósofo, o egoísmo é uma motivação primária e comum a todos os animais racionais

e não racionais justamente por estar por trás de qualquer ação, determinando,

especificamente nos homens, o valor moral de uma ação.

O egoísmo, para Arthur Schopenhauer, é o ímpeto para a existência e o bem-

estar, uma busca excessiva do bem pessoal de maneira a desconsiderar os

interesses e bens alheios, ou melhor dizendo, é o desejo do homem de conservar

incondicionalmente sua existência, por isso não vê limites e quer livrar-se da dor

originada do querer. Note-se que os verbos utilizados pelo filósofo são: buscar,

querer, desejar, manter, conservar, e existir, o que denota uma ênfase na tentativa

de cessar a dor originada deste querer. Enquanto primeira motivação elencada por

Schopenhauer, o egoísmo não ocupa esta posição por mera conveniência, mas

porque estar profundamente inserida na natureza humana de modo a ditar quase

que a totalidade de nossas ações.

O egoísmo não é abordado como uma patologia ou um falso conceito como

expresso pela palavra Selbstsucht, que quer dizer amor-próprio. Mas, ao contrário, é

visto como Eigennutz, ou seja, um interesse próprio, expressando assim, uma

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orientação racionalmente guiada e reflexivamente planejada (SCHOPENHAUER,

1995, p. 114). Porém, Schopenhauer junta homens e animais nesta motivação

antimoral, afirmando que ‘podemos chamar os animais de egoístas, mas não de

interesseiros’. Talvez a motivação antimoral, denominada egoísmo, seja melhor

compreendida em dois momentos: um que diz respeito a todos os seres vivos em

sua expressão básica de subsistência no qual plantas, seres orgânicos e

inorgânicos, animais humanos e não-humanos estejam incluídos; e um segundo

momento, como um egoísmo exclusivo de animais humanos.

De acordo com a indicação de vícios derivados da motivação antimoral

egoísta, que analisaremos a seguir, outra categoria de espécie de seres não poderia

fazer parte desta composição, mas, apenas os humanos. Ora, avidez, inveja, luxúria,

orgulho e vaidade só podem fazer sentido no universo humano dada a

impossibilidade dos animais não-humanos em refletir, planejar e guiar-se pela razão

para tal fim.

Há no íntimo de homens e feras um ímpeto básico para a conservação de si

que os impele a evitar a fome, a sede, o cansaço, a perseguição, e toda espécie de

fardo a que a existência está submetida, como uma predisposição natural que reside

no âmago de sua condição. É uma fonte que não conhece limites para a

manutenção de suas forças em detrimento das necessidades de outros, como o

próprio pensador Schopenhauer (2005, p. 114) nos diz:

O egoísmo, de acordo com sua natureza, é sem limites: o homem quer conservar incondicionalmente sua existência, a quer incondicionalmente livre da dor à qual também pertence toda penúria e privação, quer a maior soma possível de bem-estar, quer todo o gozo de que é capaz e procura ainda, desenvolver em si outras aptidões de gozo. Tudo o que se opõe ao esforço de seu egoísmo excita sua má vontade, ira e ódio: procurará aniquilá-lo como a seu inimigo. Quer o quanto possível, desfrutar tudo, ter tudo. Porém, como isto é impossível, quer, pelo menos, dominar tudo. ‘Tudo para mim e nada para o outro’ é sua palavra de ordem.

Dentro de um processo hipotético de escolha entre a aniquilação do mundo

ou de um indivíduo, Schopenhauer (1995, p. 115) defende que a maioria das

pessoas escolheria, sem sombra de dúvidas, a aniquilação do primeiro, justificando

que, “o egoísmo é colossal, ele comanda o mundo”. Desta feita, cada indivíduo

torna-se, pelo menos para si, o centro do mundo. Um centro para o qual tudo

converge, fazendo de tudo, e de todos meios, para alcançar seus fins. Tal

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consideração supervalorizada de si mesmo advém, na visão do pensador, de uma

compreensão imediatizada que todo indivíduo tem de si, ou seja, ele é

imediatamente para si mesmo, enquanto que o outro é mediatamente representado.

Em outras palavras, a consciência que cada um tem de sua subjetividade é

significativamente, não ‘um mundo’, como uma correlação com as demais coisas,

mas ‘o mundo’. Designando deste modo, tudo o que existe como objeto

mediatamente representado pelo indivíduo mesmo. Nesta compreensão de mundo,

tudo o que vive ou existe, portanto, tudo o que é objetivo, deve estar à disposição

daquele que representa, por meio de sua autoconsciência. A realidade e tudo o que

a circunda constitui menos importância do que esta visão subjetiva que adquire

como ele mesmo nos diz: ‘uma grandeza colossal’, quando o ‘eu’ se percebe como

centro e razão indiscutível do existir.

Muito embora o egoísmo sustente esta valorização exacerbada do ‘eu’ que

tudo representa mediatamente, e a si mesmo imediatamente, inversamente percebe

de soslaio que seu ‘eu’ é apenas um microcosmo inserido num macrocosmo.

Explicando melhor, cada indivíduo egoísta tem uma noção do que vem a ser a

finitude que chega com a morte, e que tudo aquilo que tem significância para ele,

encontra um fim. Logo, ao findar-se o sujeito, finda-se também o mundo. Ninguém,

de outro modo, crê que possa existir ad inifitum, sobrepujando essa noção básica de

limite imposto, pois isso foge ao seu controle e ao seu desejo de dominar.

Entendemos assim, que o indivíduo egoísta, por força de sua natureza, dá ouvidos à

esta potência antimoral em detrimento do bem-estar e conservação dos outros como

a única razão a ser seguida, até pelo menos que chegue a morte ou uma motivação

moral, que Schopenhauer chamará de ‘autêntico motivo moral’. Na vida cotidiana, a

maioria dos homens verifica esta natural inclinação e contra ela impõe o exercício da

cordialidade, que para o pensador, nada mais é do que uma ‘hipocrisia disfarçada’

que a todo custo tenta ocultar seus reais objetivos de tudo dominar, e de tudo

desejar.

A possibilidade de existência de uma nação de indivíduos egoístas faz

Schopenhauer rememorar sua herança contratualista na qual Hobbes é citado por

meio de sua célebre frase “bellum omnium contra omnes”, ou seja, “a guerra de

todos contra todos” (HOBBES apud SCHOPENHAUER, 1995, p. 117). Nessas

condições, indivíduos, antes dominadores, agora assumem-se como concordantes

no que tange ao Estado, as Leis, e a boa convivência, porém, não por inclinação

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natural ou motivação legitimamente moral, mas por medo recíproco e por via

negativa. A negatividade é a acesso pelo qual, na visão schopenhaueriana, surgem

o Estado e a justiça, como veremos a seguir.

Reconhecida por Schopenhauer, como “a primeira e a mais importante

potência que deve ser combatida” (1995, p. 117), o egoísmo deve ser mais

duramente enfrentado e, portanto, mais profundamente estudado. Cabe à motivação

moral, ladeada pela virtude da justiça e da caridade, combater esta potência.

A primeira das virtudes apontadas é reconhecida por sua cardealidade desde

a Antiguidade, como será visto adiante, e a segunda, embora não conste entre

aquelas, encontra-se, para o filósofo, num patamar de excelência, nobreza e

dignidade. É por meio da virtude da caridade que é possível combater as motivações

antimorais em suas muitas gradações, a saber, a malevolência, fruto da colisão

entre egoísmos, a cólera, ou ira, e por fim, a maldade. Tendo esse diagnóstico como

parâmetro, por vezes, parece incompreensível crer no nobilitar das motivações

humanas, mas não de todo impossível, pois com freqüência vemos repercutir no

mundo as duas motivações, morais e antimorais, não obstante “neste mundo, a

indiferença e a aversão estejam em casa” (GOETH apud SCHOPENHAUER, 1995,

p. 118).

Dessa condição profundamente centrada em si mesmo, e ao mesmo tempo,

tão natural, que é o egoísmo, surge um leque de vícios, erros, fraquezas e

imperfeições de toda espécie que são capazes de conduzir o indivíduo à vilania,

maldade e crueldade, ou noutras palavras, à alegria maligna (Schadenfreude). Esta,

por sua vez, enquanto grau elevado da potência antimoral, não tem sua raiz na

natureza, mas na preponderância daquilo que escapa dela, ou seja, no não-natural.

Nas palavras de Schopenhauer (1995, p. 120), “a primeira raiz é mais animal, a

segunda mais diabólica”. A inveja, embora seja reconhecida pelo filósofo, como uma

fraqueza humana, portanto, partícipe do egoísmo, quando graceja com a alegria

maligna, torna-se uma ‘alta potencia antimoral’ elevada à sua máxima revelação. Por

isso, Schopenhauer chega a afirmar que ‘num certo aspecto a alegria maligna é o

oposto da inveja’, pois esta, busca sua felicidade nos bens e vantagens alheios,

aquela, busca o sofrimento e a dor do outro. É neste ponto que separam-se as duas

motivações antimorais: enquanto uma tem como objetivo final o bem próprio, a outra

sente desmedido prazer no sofrimento do outro. Prazer para si e dor para o outro

são as tônicas que delimitam estas motivações.

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A máxima maligna é “neminem iuva, imo omnes, si forte conducit, laede”, ou

seja, “não ajudes a ninguém, mas prejudica a todos, se acaso fores levado a isso”

(SCHOPENHAUER, 1995, p. 120). Em dois momentos distintos, percebe-se que o

primeiro é apenas de uma crueldade teórica, quando afirma que ‘neminem iuva’, ou,

não ajudes a ninguém. Esta máxima conduz o espectador a uma omissão prazerosa

diante de um quadro de dor e miséria presenciado. Poderíamos chamá-la de alegria

maligna teórica. E no segundo momento, torna-se uma alegria maligna prática,

quando afirma “imo omnes, si forte conducit, laede” (SCHOPENHAUER, 1995, p.

120), ou, “prejudica a todos, se acaso fores levado a isso”. O indivíduo malvado

confirma com seus atos, a satisfação experimentada na visão do mesmo quadro de

dor refletida no outro. Regozija-se intensamente com o padecer de outros seres:

plantas, animais humanos ou não-humanos e entristece-se imensamente com a

alegria dos mesmos. Neste indivíduo, a dor do outro é o seu motivo para agir.

Analisando a questão mais de perto, Schopenhauer indica que há vícios

especiais que surgem das duas potências. Sendo assim, do egoísmo vemos nascer

a avidez, a glutonaria, a intemperança, a luxúria, o interesse próprio, a avareza, a

cobiça, a injustiça, a dureza de coração, o orgulho, a vaidade etc. Da maldade, por

sua vez, surgem a alegria maligna, a curiosidade indiscreta, a maledicência, a

insolência, a petulância, o ódio, a ira, a traição, o rancor, o espírito de vingança, a

crueldade etc. Esta indicação, ou mesmo classificação, sugerida por Schopenhauer

é muito útil para o estudo aprofundado das motivações antimorais e sua relação com

a natureza humana, pois fornecem traços fundamentais para análise ética dos

caracteres (inteligível, empírico e adquirido), tendo em vista que “não há nenhum

homem que não tenha algo destes três tipos” (SCHOPENHAUER, 1995, p. 181).

Procedendo dessa maneira, Schopenhauer conduziu sua discussão de modo

diferente dos muitos outros moralistas que iniciaram suas reflexões a partir das

virtudes e finalizaram com os vícios. Este começou, pois, “considerando o lado

obscuro da natureza humana” (SCHOPENHAUER, 1995, p. 120), assim como o

fizera Dante conduzindo o leitor inicialmente para o inferno, depois para o purgatório

e, ao final, para o céu. Parece-nos curioso, que Arthur Schopenhauer tenha deixado

para o final aquilo que nominou como “a única e genuína fonte da moralidade”

(1995, p. 157), a compaixão. O que revela pontos significativos de seu pessimismo

teórico e de seu otimismo prático. Tal será sua análise trajetória que conduzirá à

salvação, ou seja, a compaixão.

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Do que foi visto, vimos que a maldade, então, quer o mal alheio, enquanto

que a compaixão (Mitleid), quer o bem-estar alheio (SCHOPENHAUER, 1995, p.

131). Estes são seus motivos que juntamente com as situações, vemos guiar as

ações humanas para seus fins de acordo com cada caráter específico.

O auxílio para essa questão o buscado em Rousseau que, especificamente

sobre os seres humanos, nos comunica que: “Não é próprio do coração humano pôr-

se no lugar de pessoas que são mais felizes que nós, mas somente daqueles que

são mais dignos de pena” (ROUSSEAU apud SCHOPENHAUER, 1995, p. 131).

Essa relação se estabelece por que o ser humano identifica-se com a dor, que pode

ser entendida como falta, como carência, como necessidade e, ou, como desejo de

modo que sua participação é positivamente encarada, pois estes ativam a profunda

identificação do espectador rumo à dor do sujeito sofredor. Cessada a dor e o

sofrimento, surge o alívio ou contentamento. Não só o ser humano é capaz deste

salto, mas também, os animais não-humanos. Como vimos anteriormente,

compartilhamos com estes o universo representacional intuitivo.

O que se segue logo após, é que a natureza do contentamento, ou de outro

modo, a felicidade, é na visão schopenhaueriana, uma ação negativa, sendo que

naturalmente não dispomos de condições para a inclinação à dor do outro, a não ser

pela percepção positiva da dor e em seguida a felicidade positiva que esta desperta.

Felizes e satisfeitos, no modo de ver de Schopenhauer, somos indiferentes à dor

daquele que sofre. Sendo assim, podemos nutrir uma afeição profundamente

identificada com quem sofre, abandonando a indiferença natural que reside em todo

ser humano em seu estado de tranqüilidade cotidiano, como podemos perceber

nascer uma alegria maldosa em nossos corações. Isto dependerá do caráter a que

cada um está sujeito.

3.5 A proposta schopenhaueriana para a moral.

A leitura e a análise da realidade fenomenal é o ponto de partida da ciência

ética e por isso o Mitleid, como fundamento moral, deve estar para além dos

conceitos, das regras e das prescrições sociais. Com base nisso, entenda-se que o

conceito, ou sinal gráfico, pode inclusive ofuscar uma possível análise de um

determinado fato ou problema. Por exemplo, Max Scheler (apud MANNION, 2003, p.

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222), em sua obra The Nature of Sympathy, entendeu compaixão como ‘pena’ ou

‘sentimento simpático’.

Para Nietzsche, um dos maiores críticos da compaixão, a compaixão era uma

doença, como pena, como piedade enquanto um sentimento depressivo. “Eu

compreendi a moral da compaixão, cada vez mais se alastrando, capturando e

tornando doentes até mesmo filósofos, como o mais inquietante sintoma dessa

nossa inquietante cultura européia” (NIETZSCHE, 2009, p. 11). Para Cartwright

(1989 apud MANNION, 2003, p. 206) como Nietzsche analisou não é possível

alcançar sucesso, pois sua crítica circunscreve o Mitleid ao mundo imediato e à uma

realidade. Nietzsche tinha formação literária, logo o problema revelou-se pelo viés

do universo lingüístico, tanto quanto a partir do estilo. Note-se também que

Nietzsche teve acesso à leitura do Mitleid a partir, não da própria obra Sobre o

fundamento da moral, em alemão, mas, por meio de intérpretes ingleses Kaufmann

e Hollingdale que usaram o conceito de Mitleid como pena o que se tornou uma

interpretação negativa e não válida de Mitleid.

Por isso, é preciso, neste ponto, detalhar bem os conceitos, afim de que não

nos percamos em definições ambíguas e distorcidas naquilo que envolve o sentido

real do termo compaixão no pensamento de Arthur Schopenhauer.

O termo simpatia vem do grego, sympátheia, significa conformidade de

gênios, ou uma tendência semelhante a uma inclinação capaz de reunir pessoas;

uma relação sempre agradável ou, mesmo, instintiva, que atrai pessoas ou idéias.

Empatia, por sua vez, que também tem origem grega, empátheia, notabiliza-se como

uma leitura psicológica na qual há uma tendência para sentir o que se sentiria caso

se estivesse na situação e circunstâncias experimentadas por outra pessoa. O termo

pena tem origem latina e significa sofrimento, padecimento ou aflição. Misericórdia,

de origem latina, misericordia, ou seja, coração miserável, é sinônimo de compaixão

quando esta é suscitada pela miséria alheia. O termo compaixão tem origem latina

compassione, que significa um pesar que em nós desperta a infelicidade, a dor, o

mal de outrem e pode ser sinônimo de piedade, pena, dó ou condolência.

Diferentemente da definição trivial de dicionário, que entende a compaixão

como um pesar que em nós desperta a infelicidade, a dor, o mal de outrem, o

caminho da proposta schopenhaueriana segue outras veredas. Freqüentemente um

termo é utilizado pelo outro o que pode provocar conclusões díspares em seus fins.

Arthur Schopenhauer (2005, p. 417), em algumas passagens, faz uso de conceitos

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comuns como simpatia, piedade, ou mesmo comiseração para designar a

experiência compassiva, Mitleid, o que nos leva crer que não é uma mera questão

focada num conceito ou num mero sentimento 26 (SCHOPENHAUER, 1995, p. 177).

Mannion (2003, p. 207) propõe que “[...] possamos ver o Mitleid como um

conceito explanatório buscando dar sentido à nossa relação com a realidade última”.

Isso sugere que quaisquer paralelos com os vários sistemas de crenças religiosas,

deontológicas, normativas ou teleológicas sejam, a partir daqui, abandonados, pois

os mesmos não refletem a real significação da compaixão de Schopenhauer. Os

conceitos mudam no tempo e no espaço, por isso os mesmos devem ser

considerados apenas como exploratórios. A conotação dada à compaixão pelos

demais sistemas morais e religiosos não é inerente à sua significação dentro da

proposta schopenhaueriana, pois de meros conceitos é impossível fazer surgir as

virtudes da justiça e da caridade. O Mitleid, afastado de qualquer fundamentação

psicológica ou teleológica da moral, está fundamentado totalmente dentro da

natureza humana. De acordo com suas próprias palavras: “Uma moral sem

fundação, portanto simples moralizar, não pode fazer efeito, pois não motiva. Uma

moral que motiva, só pode fazê-lo atuando sobre o amor próprio”

(SCHOPENHAUER, 2005, p. 468).

Para Schopenhauer, os fundamentos da ética apodreceram e agora

necessitam de novos apoios e, de acordo com sua visão, foi exatamente isso que

motivou a Sociedade Real da Dinamarca a propor uma pergunta tão significativa

acerca de um fundamento da moral mais coerente para seu tempo. Era o sinal da

carência de um fundamento real.

O pensamento de Schopenhauer opõe-se a qualquer tipo de moral de fundo

deontológico, teleológico27 ou normativo, firmando-se como uma análise descritiva

da moral, ou seja, é uma tentativa de explicar o fenômeno moral não a partir de

causas abstratas, especulativas, irreais ou conceitos que se encontram fora do

mundo, mas a partir do que existe em concreto, como uma forma de enxergar o agir 26

“Thus, I suggest, we can view Schopenhauer´s Mitleid as na explanatory concept seeking to make sense of our relation to ultimate reality. This suggests parallels wih numerous religious belief systems”. MANNION, Schopenhauer, religion and morality: the hamble path to ethics, 2003, p. 207. 27

O termo teleologia foi inicialmente cunhado por Christian Wolff para caracterizar aquela parte da filosofia natural que intenciona explicar o fim ou a finalidade das coisas. Por ética teleológica entenda-se que uma ética que acenta-se sobre uma definição na qual todo o discurso acerca da conduta tem a intenção de sugerir um fim específico. Nesta perspectiva, incidiria sobre a filosofia prática quando na realização de uma ação, esta poderia ser entendida como boa ou má dependendo do objetivo alcançado no qual o resultado final a obtenção de um valor que poderia ser entendido como um bem. Etimologicamente, Télos, fim, e Logos, discurso.

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humano por meio de uma lente cujo caráter pragmático está incrustado no tempo

presente e no existente real, como ele mesmo nos diz: “somente o presente é aquilo

que existe e se mantém firme e imóvel”, pois é só com isso que podemos contar no

processo de análise do agir moral (SCHOPENHAUER, 1995, p. 363). Para o

pensador (2005, p. 24-362), só existe o tempo real, ou seja, o ‘agora’. E, só pode

haver um modo de analisar o fenômeno ético, e esse modo encontra força na ética

descritiva.

Ética descritiva é uma ética que se opõe às éticas normativas, prescritivas ou

mesmo formalistas e busca descrever um ato moral. Por isso preocupa-se em

entender o que as pessoas fazem, por que elas o fazem, quais suas motivações e

não o que devem ou não fazer. Essa ética questiona o agir em lugar do agido ou o

fazer em lugar do feito. Daí a rejeição ao fundamento moral kantiano. A partir disso,

a filosofia tem a tarefa teórica de manter uma atitude puramente contemplativa, não

obstante a proximidade do objeto investigado e sempre inquirir, sem jamais

prescrever regras (SCHOPENHAUER, 2005, p. 353). Em sua tarefa teórica, a

filosofia deve interpretar e explicitar o existente, trazendo-o ao conhecimento e

buscar fazer todas as relações em todas as dimensões possíveis, sob todos os

pontos de vista (SCHOPENHAUER, 2005, p. 354).

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4 A apresentação da ética compassiva como resposta ao enigma

do mundo

A partir da leitura do Livro III, da obra O mundo como vontade e

representação, Schopenhauer nos apresenta uma reflexão do mundo, retomado

agora pela ótica da representação, que servirá como uma análise de um dos

primeiros modos de negação da vontade, a estética. Assim sendo, adentraremos

pelos portões de seu pensamento único, via estética, a fim de refletirmos sobre esse

tipo de experiência que é capaz de proporcionar à humanidade um momento, que

muito embora breve, ainda sim, se apresenta intenso e apaziguador, podendo

inclusive libertá-lo da dor e dos sofrimentos existenciais.

4.1 A estética

A contemplação estética pode oferecer à humanidade a possibilidade de

enxergar para além das formas estabelecidas no tempo, no espaço e na

causalidade, que representam o princípio de razão, provocando um tipo de

sentimento no qual os seres humanos, os únicos capazes de apreciação estética, a

possibilidade momentaneamente de abandonar suas individualidades e diferenças.

Este abandono é verificado como sendo uma suspensão da volição e dos desejos,

fontes de toda dor existencial, que se caracteriza por um estado de tranqüilidade e

alívio que provoca, inclusive, uma espécie de esquecimento passageiro da condição

concreta a que estes mesmos seres antes estavam sujeitos. Essa tal suspensão, ou

elevação dos sentidos, acontece independentemente de decisões racionais, análises

conceituais, ou abordagens discursivas e abstratas, mas se manifesta única e

exclusivamente por meio de um estado de contemplação que é conduzido por um

conhecimento que é totalmente intuitivo.

Esse estado é entendido como um tipo de conhecimento ainda purificado de

todo e qualquer determinismo espaço-temporal, e por isso é concebido como um

conhecimento puro. Schopenhauer identifica esse conhecimento puro com a Idéia

platônica que, como visto anteriormente, vem a ser a objetidade imediata da vontade

que ainda não se tornou representação, mas ao contrário, é entendida como um

intermediário. Sendo assim, a Idéia, enquanto ato originário da Vontade

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(ursprüngliche Willensakte), estaria numa ordem de gradação que, decrescente, viria

da Vontade, se tornando Idéia28, e por fim, se objetivaria na idéia de espécie.

Esses graus, identificados com as Idéias de Platão, escapam ao princípio de

razão, portanto, à multiplicidade e à pluralidade dos fenômenos e remetem ao que é

imutável e permanente. Mediante infindáveis níveis, as Idéias manifestam as

incontáveis objetidades da vontade como formas eternas e inalteráveis que não

nascem, nem perecem e por isso mesmo são entendidas como modelos

arquetípicos de todas as coisas. Os fenômenos, enquanto individualidades,

mostram-se entre as coisas efêmeras e passageiras que não podem ser contadas

entre aquilo que é essencial.

A verdadeira essência não se encontra nos indivíduos de uma espécie, como

por exemplo, entre os eqüinos, em um ou outro cavalo, mas unicamente em sua

Idéia, pois enquanto os indivíduos surgem e desaparecem, por existirem no tempo e

no espaço, sua Idéia permanece sempre única. A Idéia não pode ser explicada

racionalmente, pois esta participa da Vontade, mas ainda sim, comunica-se com ela.

A Vontade, por sua vez, não pode ser qualificada por que é cega, irracional e

inconsciente. Deste modo, a Idéia não se encaixa no Princípio de razão Suficiente

que tem a pretensão de explicar tudo o que existe no mundo fenomenal.

Schopenhauer assinala que (2005, p.377), o homem, sendo o fenômeno mais

perfeito da Vontade, é o único sujeito que, mais do que um ser capaz de apreender,

é capaz também de intuir por meio de seu entendimento a Vontade. O homem seria

então, o sujeito puro do conhecimento que por meio da experiência intuitiva, como

no caso da estética, pode desligar-se temporariamente de todo determinismo e

necessidade impostos pelo princípio de razão apreendendo a Idéia. A manifestação

artística seria um modo efetivo pelo qual o homem poderia intuir e manifestar a

Idéia, e esta, por sua vez, passaria a ser concebida como objeto da arte.

Realizar a experiência estética e entrar num nível de contemplação mais

elevado seria uma possibilidade reservada apenas a esse sujeito puro do

conhecimento que intuindo a Idéia por meio da arte consideraria o mundo não mais

pelo filtro do princípio de razão, enquanto tempo, espaço e causalidade, mas pelo

filtro da sensibilidade e da intuição, oferecendo assim, uma visão mais abrangente e,

28

Há uma diferença básica entre a Idéia para Platão e a Idéia para Schopenhauer: a Idéia para Platão há um contraponto da idéia no mundo fenomênico como que um respectivo correlato. Já para Schopenhauer, não existe esta correlação entre o mundo e a idéia, pois esta se constitui na espécie e não na multiplicidade das coisas.

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por isso mesmo, mais plena da existência. Ao desligar-se momentaneamente da

ordem imposta pela vontade, esse sujeito puro do conhecimento, contemplador por

natureza, pode inclusive libertar-se dos desejos, conflitos e necessidades próprios

da condição existencial a que está preso. O contato com a Idéia por meio da

contemplação estética pode proporcionar ao homem uma espécie de abandono

parcial de sua subjetividade e de sua personalidade originadas de sua relação com o

mundo representacional.

Como há homens mais e outros menos aptos para, via conhecimento intuitivo,

captar a Idéia e expressá-la artisticamente, também há uma semelhante variação de

graus para a fruição de um mesmo fenômeno estético, ou seja, nem todos os

homens podem criar artisticamente, assim como nem todos os homens podem ser

capazes de apreciar nem a natureza, nem uma obra de arte. Para Schopenhauer, a

experiência estética não se reduz às artes humanas, pois a natureza também é

capaz de proporcionar em alguns espectadores o prazer da fruição estética, quando,

por exemplo, admiramos o pôr do sol no fim do dia ou as estrelas em alta noite.

Compreende-se que cada indivíduo tem seu grau de capacidade intuitivo,

tanto para a assimilação quanto para a expressão, dados os graus a que a vontade

se objetiva. E para se alcançar um estado de tranqüilidade e paz pela contemplação

estética é preciso para isso que haja uma ocasião externa ou disposição interna,

noutras palavras, uma espécie de arrebatamento no qual o espectador é arrancado

subitamente da servidão da vontade e de seus respectivos motivos fazendo o

conhecimento se sobressair ao querer. Esse estado se dá quando o sujeito puro do

conhecer se sobressai sobre o sujeito do querer.

Esse sujeito puro do conhecer é comparado ao gênio que apresenta desde

tenra idade a aptidão e a inclinação para deixar-se absorver pela arte e pelo belo. Já

o homem comum, diferentemente, busca entender a arte por meio de conceitos e

abstrações reforçando ainda mais as determinações do princípio de razão. Por isso,

para Schopenhauer (2005, p. 253), “a arte é obra do gênio”.

O gênio, entrando num estado de contemplação estética, torna-se capaz de

abandonar toda a subjetividade inerente à sua personalidade, afastando-se dos

desejos e de seus respectivos motivos, deixando-se absorver pelo conhecimento

intuitivo, o que lhe permite enxergar objetivamente a Idéia pura e simplesmente. O

gênio é aquele que é capaz de captar as Idéias eternas através da contemplação e

repeti-la por meio da arte, pois em sua essência, esse sujeito traz consigo uma

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predisposição para tal. A genialidade desse sujeito puro é aquilo que Schopenhauer

chamou de objetidade mais perfeita da vontade, justamente porque nela o sujeito

pode perder-se na intuição de seu objeto e tornar-se um com a essência do mundo

num estado de contemplação comparável a uma iluminação. Para Schopenhauer,

quando o sujeito puro entra nesse estado de contemplação e de conhecimento, um

outro sentido muito mais intenso do que os outros surge. Um sentido que o filósofo

denomina olho cósmico. Nesse instante, ao despertar esse sentido cósmico, tudo se

revela como claro e consciente, fazendo ampliar o campo de visão para além do

fenomenal no qual o gênio pode, por meio desse estado contemplativo, apreender

as Idéias contidas nas coisas e identificar-se com o que há de mais eterno na

existência.

A arte para Schopenhauer será assim definida como um momento áureo da

exposição de Idéias, ou modo de consideração das coisas independentes do

princípio de razão, e a genialidade como aquela faculdade cognitiva do conteúdo

dos objetos, ou seja, dos fenômenos, capaz de tornar sua verdade exponível numa

obra artística. O substrato do mundo pode ser assim, apreendido por meio do belo

em sua positividade, mas ainda por meio da via artística, através da qual podemos

comunicá-lo à humanidade e, a partir disso, possibilitar a satisfação do

conhecimento intuitivo.

Essa comunicação artística é capaz até mesmo de apresentar-se de modo

sublime (Erhaben), momento em que o espectador pode se elevar (Erhebung) de um

estado de determinação, para um estado de consciência e conhecimento. Ao entrar

em contato com a arte sublime o espectador pode manter um nível de consciência e

ainda assim desligar-se momentaneamente do horizonte de relação do Princípio de

Razão. Durante o estado sublime, o sujeito pode abandonar toda sua subjetividade e

satisfação pessoal e elevar-se para além da condição fenomênica negando a

determinação conscientemente.

A arte, para Schopenhauer (2005, p. 505), proporciona um estado em que o

sujeito, perdendo-se na contemplação consciente, é capaz de captar e intuir a

espécie e não o particular, ou seja, por meio da arte alcança-se o grau mais elevado

de humanidade, ou seja, a Idéia de homem. A contemplação estética possibilita ao

sujeito puro do conhecimento, livre de toda e qualquer determinação, entrar em

contato com essas idéias eternas e expressá-las por meio das artes, pois nisso

reside sua finalidade. Ou seja, a finalidade da arte é poder comunicar, via intuição, a

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Idéia. De outro modo, não é possível comunicá-la, ou seja, a Idéia jamais pode ser

expressa por meio de conceitos, cálculos ou discursos controlados pela faculdade

racional, mas por uma instância anterior a toda abstração, sendo ela de caráter

exclusivamente intuitivo. Por isso, as muitas tentativas de se expressar a Idéia fora

da esfera do conhecimento intuitivo não alcançam êxito, pois manifestam apenas

uma experiência instrumental ou mesmo superficial daquilo que verdadeiramente

viria a ser a Idéia enquanto objeto exclusivo da intuição.

A partir do contato do sujeito com a Idéia é possível abandonar a condição

efêmera dos objetos particulares e elevar a consciência para níveis mais universais.

Nesse nível, aquele que alcançou, via intuição, um conhecimento mais intenso e

significativo, é capaz de libertar-se das amarras da dor e do sofrimento impostos

pela existência e redimir o sentido da vida. Ora, uma existência assim tomada como

dor e pesar só pode ser carente de sentido e, sendo assim, só pode ser resgatada

de tal absurdo por meio de um conhecimento que seja livre de toda dependência e

servidão para com o mesmo mundo. Assim, a contemplação estética pode oferecer

ao homem a possibilidade de libertar-se de todo o desejo, fonte das dores, e

alcançar as Idéias, fonte da redenção, pelo menos momentaneamente.

Em sua obra Metafísica do Belo, que é uma série de anotações de aulas

ministradas por Schopenhauer, estabelece-se um vínculo entre a estética e a

possibilidade de libertação do sofrimento do homem que se dá tanto por meio da

fruição da natureza quanto da arte. Nessa obra, o belo natural antecede ao belo

artístico, ou seja, um espectador humano, inicialmente volta-se para a admiração

das belas formas dispostas na natureza intuindo-as de modo espontâneo e imediato,

e apenas posteriormente as comunica por meio da arte a Idéia apreendida em sua

visão.

Dentre as artes, Schopenhauer considera a música como a primeira

manifestação da Idéia, por ser ela a mais excelsa de todas as artes, justamente por

que ela não é uma cópia ou repetição de alguma Idéia das coisas do mundo, mas

uma linguagem universal da coisa-em-si que é capaz de reproduzir todos os graus

de objetivação da Vontade constituindo-se num análogo deste mesmo mundo,

fazendo às vezes do inorgânico e do orgânico, sobre o qual se assentam os demais

sons e vozes. A música correspondente a uma organização paralela que é a

organização das Idéias dentro da hierarquia das artes, pois funciona como um

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espelho da Vontade, na qual ela se contempla e se conhece29. A música é “a

objetidade mais adequada da Vontade, que expõe para todo físico o metafísico, para

todo fenômeno a coisa-em-si” (2005, p. 345), por isso reflete uma linguagem

universal no mais supremo grau.

4.2 O ético

No capítulo IV da obra O mundo como vontade e representação

Schopenhauer retoma as análises do mundo, agora pela perspectiva da vontade,

apontando a ética compassiva como o fundamento moral das ações humanas.

Nessa perspectiva, adentraremos os portões da ética a fim de desvendar o enigma

da moralidade.

Esse fundamento só pode ser encontrado por meio da experiência imediata

com o mundo, ou seja, nas relações diretas com os seres e não em hipóstases da

razão como defendera Kant. É através da experiência com o mundo, que o

verdadeiro fundamento moral pode ser efetivado, tendo em vista que é na arena das

relações com os indivíduos reais que se dão as inferências para uma proposta

moral. Esses indivíduos sentem, desejam, querem, decidem e efetivam suas ações

cotidianamente, e é por isso mesmo que um fundamento moral deve ter como ponto

de partida a realidade fenomênica como condição para a sua realização.

A compaixão, como fundamento moral, parte de um duelo direto contra o

egoísmo por ser esse o impulso mais evidente da natureza humana que se estrutura

numa visão fragmentada da realidade. Em verdade, a compaixão só existe porque

existe esse ímpeto individualista para combater e o campo de combate desse duelo

é campo fenomênico, pois sem a experiência com a realidade, a força da ilusão do

fenômeno não teria necessidade de oposição. Desse modo, o egoísmo que gera a

ilusão do ‘eu fenomênico’ que se perfaz nas pluralidades desperta em alguns

homens, de acordo com seu caráter, o sentimento de compaixão como fundante das

ações morais. A experiência compassiva é capaz de destruir a separação entre o

‘eu’ e o ‘não-eu’, que é uma ilusão provocada por meio do princípio de razão, e fazer

o homem estabelecer uma outra relação voltada para valores mais essenciais, tais

29

Jair Barboza resgata a frase de Thomas Mann na qual comparou a obra de Schopenhauer O mundo como vontade e representação com “uma sinfonia em quatro movimentos”. (SCHOPENAHUER, 2003, p. 20).

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como a compreensão da Idéia de humanidade, ou a compreensão da importância da

vida dos demais seres vivos. Nesse aspecto, a compaixão mostra-se como uma

superação da ilusão produzida pelos fenômenos estabelecidos no tempo e no

espaço que são responsáveis pela multiplicidade e, conseqüentemente, pela

individualidade.

Por meio do egoísmo, o indivíduo, mergulhado na ignorância de um

entendimento no qual o mundo é tomado apenas como representação, se vê como

centro do mundo e razão da existência, impõe aos demais seres o peso da

afirmação de sua vontade, ao afirmá-la por meio de seu corpo buscando satisfação

de suas necessidades básicas e a manutenção da estrutura corpórea. A Vontade se

mostra por meio de motivos que apontam unicamente para a conservação de si,

mas que, todavia, não se detém num motivo específico, mas ao contrário, num

alargamento do querer em geral no qual a vontade manifesta-se de modo muito

mais contundente, como garantia de satisfação plena e contentamentos infindáveis.

Esse querer, afirmativo e constante da vontade, não é conduzido por nenhum

tipo de conhecimento, mas ao contrário, apresenta-se como um fluxo intermitente e

amálgamo que preenche a existência de um modo geral, pois afirmar a vontade é

também afirmar o corpo, e, satisfazer ao corpo é satisfazer o egoísmo, tendo em

vista que este é sempre afirmação da vontade, que busca antes de tudo o bem-estar

pessoal e a satisfação individual. Afirmar a vida é conseqüentemente afirmar a

morte.

Num grau mais profundo de egoísmo, esse, também poderoso sentimento,

pode, inclusive, levar a uma radicalização do desejo de domínio a níveis de

crueldade e de perversidade. Nessa digressão, repousa no egoísmo expresso

principalmente no impulso sexual, ou seja, na procriação, uma certa vergonha,

compartilhada com a doutrina cristã, na qual a afirmação da vida, reafirmada por

meio do impulso sexual, confirma ainda mais a força auto-afirmativa da vontade. A

natureza empenha-se em consolidar um processo de autoconservação de si por

meio desse impulso sexual com o objetivo claro de propagar a espécie. Desse

modo, morte e geração alternam-se como espelhos de um mundo que, enquanto

fenômeno, dinamizam a dor e o sofrimento na existência.

Sendo a afirmação da vontade de vida, o ponto de partida da desigualdade,

manifesta por meio do egoísmo, torna-se essa também a condição de

aprisionamento do indivíduo ao princípio de razão. Desse modo, o egoísmo é

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apontado por Schopenhauer (2005, p. 426) como ponto de partida de um luta

contínua entre indivíduos e todas as espécies, pois cada ser “quer tudo para si, quer

tudo possuir, ao menos dominar, e assim aniquilar tudo aquilo que lhe opõe

resistência”. É por meio do corpo que esse domínio se dá, e é por ele que a vontade

se afirma.

Diante de um quadro extremamente afirmativo da vontade, quando um

indivíduo busca afirmar-se por meio de seu próprio corpo invadindo os limites da

afirmação de um outrem, pela violência ou pela astúcia aquilo que se conhece por

injustiça. O exercício da injustiça, pode se dar pela ocorrência da violência ou pela

astúcia, sendo que para Schopenhauer a segunda é mais danosa que a primeira,

pois invade dissimuladamente minando a confiança e em seguida destilando o maior

de todos os venenos, a traição. A astúcia também pode ser vista, em algumas

circunstâncias como um artifício de contraposição à injustiça, ou seja, em caso de

ameaça de morte alguém pode legitimamente trancafiar seu invasor num quarto a

fim de resguardar sua segurança pessoal ou, noutro caso, até mesmo utilizar de

falsa promessa a fim de escapar de um ardil preparado contra si.

Por exemplo, a tomada de uma propriedade só pode ser consumada, para

Schopenhauer via injustiça, ou seja, pela força ou pela astúcia. Portanto, a mentira,

a manipulação ou desejo de dominação também são para Schopenhauer formas de

violência, tendo em vista que estas se apóiam numa base injusta e negativa. Nisto

se sustenta a legalidade jurídica e a validade dos contratos.

Para podermos compreender a noção de justiça e injustiça, “devemos nos

ater não às palavras, mas aos conceitos” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 434). A

justiça na verdade é um conceito que só existe por relação inversa à injustiça, ou

seja, “jamais se falaria em justiça se não houvesse injustiça” (SCHOPENHAUER,

2005, p. 435). O conceito de justiça pode ser visto como fraco, justamente por ser

este respectivo contrário da injustiça, e só existir mesmo em função dela. Mas,

nessa perspectiva, justiça não é nada mais do que uma mera negação da injustiça,

pois o conceito de justiça está intimamente ligado ao conceito de egoísmo, tendo em

vista que a idéia de justiça é uma proposta de se reverter essa tendência

dominadora incrustada nos seres desejantes.

Se a justiça, que é base das instituições estatais e religiões, trabalha com a

mesma compreensão e assim, torna-se complicado falar de uma justiça

naturalmente dada, mas que surge como em relação ao dado como injusto.

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Ressalta-se que, um ato (SCHOPENHAUER, 2005, p. 434) pode ser cruel,

mas não necessariamente injusto como quando, por exemplo, alguém recusa-se a

ajudar a outrem numa situação urgente de necessidade ou quando considera com

calma a morte alheia por inanição em meio ao próprio excedente. Isso pode explicar

porque a legislação não pode ser aplicada para provocar um estado de justiça, mas

apenas para amenizar o impulso egoísta, e isso revela o motivo pelo qual “qualquer

tentativa de impor a moralidade pode falhar” (JORDAN, 2008, p. 172). Nesse

sentido, a virtude real é uma questão de disposição e é caracterizado pela

abnegação pessoal, o que leva a pensar que mesmo sob forte pressão da lei alguns

homens ainda se mantêm resolutos em praticar a violência e a injustiça, o que

certamente faz surgir um paradoxo expresso na idéia de que a lei só poderia ser

aplicada sob a ameaça de punição. Como tal, a natureza da virtude em si, significa

que a ética não pode ser imposta pelo Estado, cujo único meio de motivação é

“apelar para o auto-interesse” (JORDAN, 2008, p. 173).

Os conceitos de “injustiça e justiça são simples determinações morais, ou

seja, são aquelas determinações válidas em relação à conduta humana enquanto

tal, e em relação à íntima significação dessa conduta humana em si”

(SCHOPENHAUER, 2005, p. 436), e para tanto não devem ser consideradas

enquanto conceitos suficientes, únicos e sólidos de uma sociedade, muito menos de

uma opinião particularizada. De acordo com Schopenhauer (SCHOPENHAUER,

2005, p. 431) “não existe direito legítimo de ocupação, mas tão somente uma

legítima apropriação ou aquisição da coisa pelo emprego originário das próprias

forças de trabalho sobre ela”, ou seja, que se um indivíduo ao chegar numa

propriedade, que não tem dono, trabalha, planta, colhe, produzindo para sua

manutenção e, de súbito, é roubado, enganado, ou forçado a abandonar o fruto de

seu labor, então isto caracteriza-se como injustiça. No que concerne á propriedade

podemos ler a esse respeito (SCHOPENHAUER, 2005, p. 432) que,

Não há posse moralmente fundada, a não ser que haja uma cessão voluntária da parte de todos, algo assim como uma recompensa por serviços prestados, o que pressupõe uma comunidade regida por convenção, O Estado. – Em contrapartida, o direito de propriedade moralmente fundamentado nos termos acima deduzido dá, de acordo com a sua natureza, ao possuidor um poder sobre o próprio corpo. Infere-se daí que sua propriedade pode ser transmitida através de troca ou doação a outros, os quais possuem a coisa com mesmo direito moral que o transmissor”.

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O estado de natureza hobbesiano que exalta o bellum omnium contra omnes,

“Guerra de todos contra todos” (HOBBES apud SHOPENHAUER, 2005, p. 427) é

expressão máxima do egoísmo que faz parte da natureza humana. A contingência,

enquanto conteúdo da lei da natureza, é parte integrante do agir humano na leitura

de Locke, bem como a motivação compassiva de Rousseau. Estes componentes

estruturam o pensamento schopenhaueriano no que diz respeito à sua compreensão

de sujeito moral e de Estado.

Schopenhauer, então, apresenta um acréscimo ao pensamento dos

contratualistas ao discutir a temática ética-política fundamentada, agora, a partir do

viés metafísico. Tarefa esta que revela-se extremamente complexa, posto que o

fundo comum imediatamente ligado à natureza humana, portanto a todos os

indivíduos, agora é a Vontade. Para Schopenhauer, o ético deve ser pressuposto do

pensamento político, não havendo avanço em caso de abandono da primeira.

Dentro do processo analítico de um conjunto egoísta o pensador não desamarra o

ético do político, pois, para ele, as idéias de justiça e injustiça só fazem sentido

nesse exercício prático, ou seja, na práxis.

Tendo como ponto de partida uma compreensão da natureza humana como

eminentemente egoísta e individualista, Schopenhauer entende que o homem,

largado à condição de um simples estado de natureza, jamais poderia minimizar seu

potencial de violência e dominação. Para tanto, surge o Estado na tentativa de

conter o ímpeto comum dos homens, qual seja, o da própria conservação à revelia

de tudo o mais. Como reforça Schopenhauer (2005, p. 439):

A razão reconhece, a partir daí, que tanto para diminuir a dor e o sofrimento espalhados por toda parte ou reparti-los de maneira mais equânime possível o melhor e o único meio é poupar a todos a dor relacionada ao sofrimento da injustiça, fazendo-lhes renunciar ao gozo obtido com sua prática. – Esse meio, facilmente divisado e gradualmente aperfeiçoado pelo egoísmo, o qual, usando a faculdade da razão, procedeu metodicamente e abandonou o seu ponto de vista unilateral, é o contrato de Estado ou a Lei.

Contudo, a vontade e a disposição individual, não devem ser de maneira

alguma assunto de Estado, porque o papel do Estado se circunscreve apenas ao ato

intentado ou praticado na medida em que este está em relação com a outra parte

lesada. A vontade particular, como pulso próprio, enquanto incontrolável, não é

função do Estado tentar controlar, mas apenas o exercício dela na práxis, ou seja,

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os pensamentos e intenções não são da alçada do Estado, mas suas efetivações

em concreto. Por isso Schopenhauer (2005, p. 440) descreve que um indivíduo pode

transitar livremente com idéias de roubo e de envenenamento e não ser matéria de

estudo para o Estado.

É só por meio de um acordo comum que surge o Estado, ou seja, da

necessidade eminente de coibir a supremacia injusta de algumas vontades sobre

outras e proporcionar o bem-estar dos indivíduos numa atmosfera de

complementaridade. Nesse sentido, o Estado ainda deve poder “criar seres cuja

natureza permita que sempre sacrifiquem o próprio bem-estar em favor do bem-estar

público” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 440), a fim de se alcançar uma noção

aproximada a uma noção de família, cujo bem-estar é completamente inseparável

do bem-estar do país, evitando o abuso, a anarquia e o despotismo.

O Estado surge diante dessa condição humana de injustiça, com a clara

função de coibir a injustiça e a violência. Posteriormente, esse mesmo Estado deve

propiciar condições materiais e morais de bem-estar para que, neste terreno fértil

para a ética, possa fazer nascer uma política forte com indivíduos autônomos e

conscientes, com uma consciência melhorada30. Para o filósofo, quando separados

desses princípios, os governos deparam-se com seus limites extremos, ou seja, as

repúblicas, se contaminadas pela injustiça, tendem à anarquia do mesmo modo que

as monarquias, acometidas do mesmo mal, tendem ao despotismo. Tendo em vista

que egoísmo é uma motivação natural e que o individualismo torna-se impraticável

no plano social, então cabe ao Estado coibir o impulso egoísta que possa vir a

reinaugurar a máxima hobbesiana de “guerra de todos contra todos” com

mecanismos legais, portanto, normativos. Isso, porque o Estado não pode ir além

desse ponto e “não pode mostrar um fenômeno semelhante ao oriundo da

benevolência e do amor recíproco universais” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 442).

Surge uma imensa dificuldade para Schopenhauer, no que diz respeito ao

papel do Estado, em apontar a função de desenvolver nos indivíduos um

comportamento moral que se aproxime do ideal compassivo. Muito embora “o

Estado perfeito deva buscar criar aparelhos ou mecanismos de fomento à educação,

e à cidadania, para desenvolver as pessoas a grande dificuldade, para

30

Indicamos para aprofundar essa questão do Estado, jurisprudência e legislação e da possibilidade de uma ‘consciência melhorada’ a leitura de JANAWAY, Christopher; NEIL, Alex. (org.)Better Consciousness, Schopenhauer´s Philosophy of Value. Wiley-Blackwell, 2009.

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Schopenhauer, é atribuir ao Estado a função de desenvolver nesses mesmos

indivíduos uma dimensão moral, pois para ele as pessoas devem individualmente

tentar desenvolver-se em sua condição humana. Por isso, o Estado deve deixar

cada querer se exercitar para que a motivação parta de cada um. Com isso, não é

culpa do Estado se as pessoas não querem se aperfeiçoar e melhorarem-se

mutuamente, por isso repete inúmeras vezes a máxima senequiana, velle non

discitur (SCHOPENHAUER, 2005, p. 382), ou seja, que o querer não se ensina, ou,

não se ensina a querer o bem, de si e do outro, assim como não se ensina a querer

melhorar de vida e aprender.

A lei e todas as suas formas de normatividade, enquanto regras e normas de

conduta, surgem como instrumentos que regulam as relações, ou seja, amenizam o

egoísmo, enquanto impulso primário da humanidade de modo que o Estado se

apresenta como um grande regulador de condutas, ou com o estabelecedor de

regras de conduta. A legislação é a parte da moral que encara as ações de modo

passivo, ou seja, descreve todas as ações nas quais esteja assegurado que

nenhuma injustiça aconteça. O Estado faz uso da lei como direito positivo para que

ninguém sofra injustiça e a doutrina da moral que ninguém pratique a injustiça.

Para a Vontade não há critérios de justiça e injustiça. As idéias de justiça e

injustiça, para Schopenhauer, surgem como meros conceitos. O Estado surge como

um mecanismo de controle e regulação do impulso egoísta do homem, que como

Estado de valor normativo, surge da extrema necessidade de coibir o egoísmo. O

Estado, então, surge de uma necessidade de se controlar o ímpeto conquistador dos

homens a fim de proteger os demais de se tornarem uma vítima da injustiça.

Por meio da imagem de uma focinheira31 Schopenhauer afirma que o Estado

serve apenas para vigiar o animal feroz manifesto nos homens. E se ainda assim,

alguns homens ultrapassam os limites impostos pelas leis e normas de conduta, o

Estado tem o direito de punir os contraventores a fim de que os mesmos não. Mas,

se para, além disso, ainda se mantiver uma condição de injustiça, cada indivíduo

também tem o direito de exercer, sem injustiça, a coação, ou seja, caso alguém

queira impor sua vontade contra a de um outro contra a sua vontade, então a partir

disto, tem o direito de “manter-lhe sob limites ao alcance do meu direito à coação”

(SCHOPENAHUER, 2005, p, 435).

31

Ver também José Thomaz Brum, O pessimismo e suas vontades, p. 44.

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O Estado tem o direito objetivo de punir aqueles que descumprirem a lei

estabelecida como um contrato, a fim de impedir que se menosprezem os direitos

individuais alheios. Pois fora do Estado não há direito penal. Que isso se difere

completamente da vingança isso é certo. O código penal é um mecanismo legal que

o Estado instaura para impedir o dano e prevenir o terror, tendo em vista a natureza

humana tão inclinada ao domínio dos demais. A partir disso percebe-se uma crítica

do filósofo a essa dimensão do Estado em servir e promover o egoísmo. E mesmo

que todos, racionalmente, tendam a contribuir com o bem-estar mútuo, ainda assim

isto não seria compaixão. Por isso, a compaixão é apresentada por Arthur

Schopenhauer como um fundamento moral de cunho metafísico, fundamento este

que está para além de uma noção de Estado civil, pois, por meio apenas do Estado,

de acordo com o filósofo, não é possível realizar um salto qualitativo rumo à ações

morais, por conta disso é que ainda precisamos de legislação, ou seja, de um

contrato.

Para o pensador, o Estado, que surge unicamente desse contrato, pode ser

mais ou menos imperfeito dependendo da contaminação, ou não, pela anarquia ou

pelo despotismo. As repúblicas apresentam maior inclinação à anarquia e as

monarquias ao despotismo. A solução para fugir a esse dilema seria o meio termo

encontrado na monarquia constitucional que poderia encontrar a prática da justiça

uma via capaz de indicar os limites entre o exercício da conduta e o controle da

injustiça por meio de uma ciência política em consonância com uma legislação

necessariamente correlata. Isso, sem jamais esquecer que na moral, a vontade,

essa disposição íntima, que não é assunto de Estado, é o único objeto real a ser

considerado nesse enredo, pois para o estádio apenas a intenção ou o próprio ato

podem ser considerado matérias de discussão.

Com base nisso, se o Estado conseguisse ofertar as condições de segurança

e de desenvolvimento das devidas potencialidades educacionais, culturais e

artísticas, propiciando um ambiente favorável para o exercício da ética, fomentando

a predisposição do exercício da vontade particular em consonância com a vontade

dos outros, então as pessoas, poderiam ser estimuladas a uma convivência

qualitativa em comunidade, o que possibilitaria talvez às pessoas constituir e manter

um Estado em que se possa abandonar o ponto de vista unilateral, mediante um

acordo comum.

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Até lá, entretanto, afirma o pensador (SCHOPENAHUER, 2005, p. 440), algo

pode ser alcançado na existência “semelhante a uma família, cujo bem-estar é

completamente inseparável do bem-estar do país, de maneira que pelo menos nas

grandes questões, nunca um pode ser favorecida sem que o outro também o seja”.

Um indivíduo nascido num ambiente favorável moralmente, muito embora não nasça

compassivo, pode alcançar uma consciência melhorada, que é a satisfação sentida

após cada ato desinteressado (SCHOPENAHUER, 2005, p. 475) que visa ao

aprimoramento do si e do outros. A gratuidade das relações seria a marca definitiva

desse fundamento moral, justamente por trazer consigo o sinal da justiça

desinteressada e da caridade genuína.

O fundamento que Schopenhauer deseja apresentar parece resistir a tomar o

mundo como fracionado, ou fragmentado. Antes, inclina-se ao que une e

complementa a participação imediata do existir dos indivíduos, no sentido de coibir

totalmente seu sofrer, de forma a alcançar uma condição de bem-estar coletivo livre

das ilusões próprias do princípio de individuação, que impõe, contrariamente, a

indiferença, a omissão e o abandono.

Esse fundamento, de acordo com a proposta apresentada por Arthur

Schopenhauer (SCHOPENAHUER, 2005, p. 129), é a compaixão, apontada como o

alicerce para a moralidade e descrita como “a participação totalmente imediata,

independente de qualquer outra consideração, no sofrimento de um outro e,

portanto, no impedimento ou supressão deste sofrimento, como sendo aquilo em

que consiste todo contentamento e todo bem-estar e felicidade”. Não é uma

divagação ou quimera fruto da imaginação, mas um fato real fincado no solo da

natureza humana. Como bem marca o filósofo (SCHOPENHAUER, 1995, p. 135):

[...] esta mesma compaixão é um fato inegável da consciência humana, é-lhe essencialmente própria e não repousa sobre pressupostos, conceitos, religiões, dogmas, mitos, educação e cultura, mas é originária e imediata e, estando na própria natureza humana, faz-se valer em todas as relações e mostra-se em todos os povos e tempos.

A compaixão, para Schopenhauer, é um fato natural e um fenômeno

cotidiano, e a sua dedução nasce não da racionalidade dedutiva como propunha

Kant. Ao contrário, esse fundamento compassivo é inato e indestrutível em cada

homem, pois encontra-se cravado na natureza humana e torna-se verificável por

meio de motivos, pois, como dito anteriormente, para Schopenhauer (2005, p. 468),

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“uma moral sem fundação, portanto um simples moralizar, não pode fazer efeito,

pois não motiva e o que nasce daí não tem valor moral algum”. Uma moralidade sem

motivos pode simplesmente ditar normas e projetar regras, mas jamais pode

fundamentar a ação de nenhum homem, tendo em vista a ênfase conceitual que se

deseja impor sobre as virtudes. Antes, adverte-nos Schopenhauer (2005, p. 224-

468),

pode-se pouco formar um virtuoso por meio de discursos morais e sermões quanto o foi formar um único poeta com todas as estéticas desde Aristóteles, [...], pois o conceito é infrutífero para a verdadeira essência íntima da virtude, assim como o é para a arte.

Fora desta configuração natural, a humanidade pode apenas visar a uma

simples descoberta mecânica que pode auxiliar na domesticação dos instintos

egoístas e maldosos por meio das leis civis e da normatização na qual a coação

seria a régua de medida comportamental. Se, portanto, a moral só pudesse ser

fundada nas religiões positivas ou nas leis, pouco restaria, ou mesmo inexistiria,

uma moral fundada na natureza das coisas ou do homem. Por conta disso, o

conselho que Schopenhauer dá aos estudiosos éticos é de olhar um pouco para a

vida humana e tentar extrair dela a resposta para tal questão, pois, isso poderia soar

mesmo paradoxal, como ele mesmo o confessa, mas tornar-se-á condição única e

exigência propedêutica necessária para se atingir a compreensão deste tema.

Relembra-nos Schopenhauer (1995, p. 103) que, “Encontrar-nos-íamos num grande

e muito juvenil erro se acreditássemos que todas as ações justas e legais do ser

humano fossem de origem moral”.

Tendo em vista que a virtude genuína e original não pode ser ensinada, pois

não é comunicável por meio de discursos, ela deve brotar, não de palavras ou

conceitos abstratos, mas do conhecimento imediato intuitivo no qual o sujeito pode

reconhecer num outro ser a mesma essência existente nele. Para o pensador, se a

virtude pudesse ser repassada com tanto êxito, a humanidade, que há séculos

empreende esforços nesse sentido, já teria alcançado sucesso. Na verdade, o que a

vivência expressa na realidade mostra é que o conceito que é subordinado ao

serviço e à elaboração de abstrações, e que foi largamente utilizado por meio de

dogmas, mostra-se infrutífero tanto para a essência íntima da virtude, tanto quanto

para a arte, porém, apresenta-se como influente na exposição das condutas

humanas. Nesse sentido, a influência da conduta sobre os atos mais externos dos

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homens ocasionou, sem sombra de dúvidas, uma mudança nos hábitos e costumes

dos homens, mas jamais conseguiu transformar a sua disposição de caráter.

As proposições morais anteriores, de acordo com Schopenhauer, não podem,

de modo exato, produzir no homem nenhuma ação boa e correta, nem deter as

ações que sejam más e injustas, assim como não podem suster o homem em seu

equilíbrio. Antes, essas combinações artificiais de conceitos jamais servirão para

impulsionar qualquer homem às virtudes da justiça e da caridade. Para isso, lembra-

nos a máxima senequiana ‘Velle non discitur’, ou, o querer não se ensina, pois este

traz consigo um caráter já predisposto e, portanto, seu agir deriva de seu ser, ou na

frase latina, ‘operare sequitur esse’, ou melhor, o agir deriva do ser32.

O Mitleid schopenhaueriano, enquanto fundamento moral, exige menor

reflexão, exercícios meditativos ou abstrações, e mesmo o homem menos preparado

para especulações poderá verificar tal assertiva. Portanto, para Schopenhauer,

tornar-se-á uma exigência imprescindível para aqueles que buscam uma

fundamentação mais sólida e consistente para a ética, abandonar as velhas

convicções morais e lançar-se em busca de outra menos sofrível na qual repousa

simplesmente a apreensão intuitiva, impondo-se imediatamente a partir da realidade

das coisas. Com base nisso, Schopenhauer observa que, uma moral que se queira

fundamental, deve atuar contra o amor próprio, pois atuando contra tais abstrações

individualistas torna-se, o investigador, capaz de apontar para virtudes realmente

autênticas e não o seu contrário.

Atentemos nesse sentido que, o fundamento da compaixão não é uma

simples emoção ou um superficial sentimento, mas ao contrário, um princípio real e

uma experiência intuitiva, pois muito embora a palavra em alemão sentimento

(Gefühl) nos leve a reduzir a compreensão da extensão do conceito de compaixão a

uma mera emoção, isto não será possível, pois sua explicação denota muito mais do

que superficialmente possa parecer. Essa conotação apresentada por

Schopenhauer parece nos instigar a vôos mais largos com respeito à discussão da

moral.

32

Sêneca, como preceptor de Nero, tinha a missão de prepará-lo para o exercício da política prática por meio de uma educação esmerada, sob os princípios de humanidade, coragem, justiça, domínio próprio e prudência para que ele fosse capaz de demonstrar ser soberano na posse de todas as virtudes. “A realidade mostrar-se-ía refratária aos ideais estóicos plantados por Sêneca durante a educação do discípulo”. (OLIVEIRA, p. 79-82).

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Não se trata, entretanto, de uma superficial oposição entre um

sentimentalismo versus racionalismo, mas de uma experiência (Erfahrung) enraizada

na vivência de mundo, como algo mais profundo e escondido na natureza humana

que merece ser explorado da uma maneira mais apropriada. A resposta

schopenhaueriana à questão da moral busca afastar qualquer emotivismo,

relativismo ou sentimentalismo de fontes humanas ou explicações divinas,

desejando apenas restituir o peso, a importância e a relevância da provocação inicial

acerca do fundamento da moral. Na visão do filósofo, a compaixão, para além de

discursos e abstrações, estabelece-se de forma vívida e intuitiva, posto que

encontra-se no mundo real e na natureza humana.

Com base na afirmação de que toda ação humana só pode acontecer

mediante motivos, logo se infere que, esses mesmos motivos podem ser analisados

com base no princípio de razão suficiente do agir. E é a partir dessa raiz que o

homem torna-se capaz de conhecer os motivos pelos quais realiza uma ação. A raiz

suficiente do agir revela que as ações são movimentos do corpo. Essa raiz revela

que toda ação acontece por meio de motivos e que as abstrações só podem

satisfazer a própria razão.

Decerto que os dogmas abstratos e os conceitos têm uma inegável influência

sobre a conduta dos homens, ou seja, sobre os seus atos exteriores, do mesmo

modo que o hábito e o exemplo o exercem. Todavia, nenhuma proposta externa

conseguirá modificar a disposição de caráter que se apresenta como algo mais

interior. Desse modo, a o conhecimento abstrato poderá fornecer apenas os motivos

e com isso mudar apenas a direção da Vontade, mas jamais poderá modificar a

Vontade mesma. Por isso que todo o conhecimento abstrato possível de ser

comunicado à humanidade só pode fazer efeito sobre a Vontade por meio de

motivos. Esses muitos motivos fazem a Vontade desejar incontáveis coisas, mas

jamais pode fazê-la parar de desejar. Noutras palavras, nenhum conhecimento

abstrato pode mudar a vontade, mas ao contrário, unicamente os motivos. Pode-se

mudar apenas a direção da vontade, mas nunca a Vontade mesma

(SCHOPENHAUER, 2005, p. 469).

Os dogmas adotados pela humanidade ao longo de tempos e lugares

diferentes podem guiar a vontade fazendo-a mudar de direção constantemente por

meio de motivos, mas são impotentes diante da condição verdadeira do homem em

sua intimidade. Por isso, não obstante, esses dogmas poderem mudar os motivos, o

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homem permanece sempre o mesmo em seu interior. Exemplificando, alguns podem

dar grandes somas de dinheiro a instituições de caridade ou distribuir todos seus

bens a outros extremamente carentes, ou mesmo entregar seus corpos às fogueiras

sem que isso possa se caracterizar necessariamente numa ação legitimamente

moral. Para essa consideração devem-se levar em conta as condições internas de

cada ação, pois aqueles podem fazê-lo com vistas em firmes convicções em

recompensas, neste ou em outros mundos, de acordo com suas crenças, bem

como, por reconhecimento, honra ou reputação.

Eis por que algumas ações são indiferentes para a humanidade com relação

ao seu valor ético33. Não têm valor ético, justamente porque a vontade não pode ser

mudada de fora, por ser ela imutável. O que muda são as maneiras como ela se

exterioriza por meio dos inúmeros motivos que sempre assolam os seres vivos e

desejantes.

Para se saber se um ato é moral ou não, é preciso que se possa distinguir,

especificamente, em que realmente se apóiam os seus motivos, se em dogmas ou

se em sua íntima disposição moral. Schopenhauer (2005, p. 470) declara que, “eis

porque quase nunca podemos julgar com acerto moral os atos de outrem e raras

vezes os nossos”, o que representa uma enorme dificuldade no processo de

descrição do mesmo. Dogmas, exemplos e o hábito sem sombra de dúvidas podem

exercer uma poderosa influência sobre os atos de homens e de povos, mas, esses

mesmos atos são apenas imagens vazias que nem sempre refletem a disposição de

caráter e, conseqüentemente, o sentido moral de uma ação.

Porém, em si, todos os atos (opera operata) são meras imagens vazias; só a disposição de caráter que conduz a eles fornece-lhes sentido moral. Este, por sua vez, pode em realidade ser o mesmo, apesar da diversidade exterior dos fenômenos. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 470).

Um homem, a partir de sua disposição de caráter, num determinado grau de

maldade, pode experimentar as agruras e tormentos da prisão e da morte dolorosa

ou mesmo vivenciar as benesses de uma vida sem preocupações sem que isso se

derive de sua inclinação natural ou moral, pois aquilo que de mais essencial existe

em sua intimidade pode até mesmo nunca ser revelado em sua exterioridade. Tal

33

Schopenhauer reserva o § 66 e § 67 da obra O mundo como vontade e representação especificamente à discussão sobre a compaixão como fundamento para a moral. E o § 68 para a discussão sobre a ascese.

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dificuldade em sondar o mais profundo de cada indivíduo possibilita aos mesmos

viver uma vida inteira sem que jamais seus planos e intenções possam ser

descobertos, permanecendo encobertos pela máscara de dogmas, hábitos ou

conveniências sociais. Assassinatos, canibalismos e todo tipo de perversões, bem

como intrigas cortesãs, opressões ou sutis maquinações compartilham em graus

diversos de uma única e mesma essência.

Entenda-se que a realidade, embora se apresentando de diversos modos,

certas vezes, pode revelar que as inúmeras exteriorizações fenomenais dos atos

humanos desvelam um ato de origem verdadeiramente moral, isso se dá quando o

ato realizado coincide com a intenção projetada. Mas isso se dá também de modo

misterioso e reservado.

Um ato realizado a partir de uma autêntica bondade de disposição, assim

como circunscrito numa atmosfera de virtude desinteressada, e envolvido por uma

áurea de pura nobreza, indiscutivelmente não se origina de um tipo de conhecimento

erigido por via abstrata, mas de um tipo de conhecimento muito mais imediato e

intuitivo que não pode ser ensinado ou comunicado, posto que brota do mais íntimo

do caráter de cada indivíduo com disposição para tal. Raciocínios e especulações

industriosas podem no máximo analisar e descrever, sem jamais possibilitar aos

homens adquiri-los ou fazê-los brotar de seu meio, pois sua expressão não

encontra-se centrada em palavras, mas em atos concretos e na conduta da vida dos

homens.

Com base nessa afirmação, uma discussão sobre uma possível teoria da

virtude não pode ser intentada por meio de investigações abstratas, tendo em vista

que a essência desse conhecimento não encontra-se estruturada no exercício de

conceitos. Estes no máximo só podem apontar e tentar interpretar as ações reais.

Tendo em vista que os conceitos de bom e mau não podem fazer referência

direta à autenticidade da essência de um ato moral, resta, ainda, uma análise

daquilo que poderia ser considerado como justo num sentido e grau intermediários

para além de noções meramente conceituais. Um agente de uma ação justa, nesse

sentido, seria aquele que voluntariamente, sem imposições estatais, dogmáticas, ou

especulações abstratas é capaz de reconhecer e aceitar os limites morais entre o

justo e o injusto, sem nunca intentar afirmar sua própria vontade com relação a outro

indivíduo. Negando a vontade, impedirá que outros seres possam sofrer e, ao

mesmo tempo, aumentará a possibilidade de bem-estar dos mesmos.

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O indivíduo justo, nesse sentido, evitará cometer crimes, recusando-se a

infligir dor e sofrimento, e fazendo valer o direito, a propriedade e o respeito a todas

as formas de vida por encontrar nelas uma identificação essencial para além do

princípium individuationis, quebrando a sua aparente barreira temporal e espacial.

Diferentemente, o homem mau, que ao afirmar sua vontade, negará todas as

vontades e encontrará nesse princípio um obstáculo absoluto e quase

intransponível.

Ao contrário, pelo seu modo de ação, o homem justo mostra que reconhece seu essência, a Vontade de vida como coisa-em-si, também no fenômeno do outro dado como mera representação, portanto reencontra a si mesmo nesse fenômeno em certo grau, ou seja, desiste de praticar a injustiça, isto é, não inflige injúrias. Exatamente neste grau vê através do Véu de Maia e iguala a si o ser que lhe é exterior, sem injuriá-lo. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 471).

No íntimo dessa justiça, que não tem mais um caráter meramente negativo,

brota uma profunda intenção de refrear e negar o ímpeto afirmativo da própria

vontade, com a clara finalidade de servir à vontade alheia como a efetivação de um

grau supremo de disposição para a justiça associada à uma autêntica bondade que

ultrapassa questões de direito de propriedade, manutenção das próprias forças

físicas, assim como de satisfações pessoais. Nesse grau de negação, serão

repreendidas todas as possibilidades de realização de ações que objetivem o luxo, o

prazer ou o ganho pessoal, podendo inclusive direcionar o homem, ao cabo, a uma

vida de pobreza voluntária e renúncias, como no caso daqueles que assumiram uma

orientação ascética.

Essa justiça voluntária quebra as barreiras da ilusão impostas pela

temporalidade e pela espacialidade possibilitando um olhar que se eleva

gradativamente a níveis em que encontram a benevolência, a beneficência positiva,

e a caridade independente do vigor e da energia daquele que a dispõe. O

conhecimento que emana dessa experiência pode conduzir à igualdade e à

equanimidade e, por fim, ensinar ao homem a resignação como ponto de equilíbrio

existencial (SCHOPENHAUER, 2005, p. 472).

Em contrapartida, essas características manifestas em seus graus de

negação trazem como conseqüência da comparação entre o homem bom e o

homem mau uma superioridade do último com relação ao primeiro. Para

Schopenhauer, o homem bom deve ser considerado como um fenômeno da

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Vontade originalmente mais fraco do que o homem mau, justamente por ser este o

exemplo mais cabal e a expressão mais intensa da efetivação da cegueira e do

domínio auto-afirmativo. Todavia, o homem bom, por meio do conhecimento, pode

dominar aquele ímpeto cego e diferenciar-se de indivíduos que externalizam ações

aparentemente bondosas, mas que, assim que seja possível, por conta da

debilidade de sua vontade, mostram-se em sua essencialidade basicamente por não

conseguirem manter uma consistência em sua auto-abnegação e em sua prática de

bondade e justiça.

De outro modo, e com rara exceção, quando alguém não mais estabelece

diferenças entre si mesmo e os outros, e efetiva ações tais como doações

generosas aos carentes, ajuda e socorre aos necessitados, ou ainda, protege com a

própria vida a vida de outros seres, racionais ou não, independente de

considerações abstratas, dogmas ou discursos, mas de modo imediato e intuitivo, e

quase impulsivamente a um só golpe, pode ser considerado como alguém que

venceu a barreira da diferença e da individualidade, e pode ser chamado justo. Seu

motivo não é nem o sofrimento alheio, como um modo de alegria imediata, assim

como se dá com o malvado, muito menos a satisfação do próprio bem-estar, como

se dá com o injusto, mas muito diversamente, o homem justo busca furtar-se a

provocar sofrimento a qualquer tipo de vida, chegando mesmo a decidir-se por

aliviá-los se em situação de privação sofrida.

O ‘eu pessoal’ cede lugar ao ‘eu alheio’, quebrando a rede causal de

diferenças e estabelecendo uma condição de identidade entre ‘eus’. Para o homem

nobre essa diferença e essa individualidade são insignificantes, posto que nascem

da forma fenomenal expressa pelo principium individuationis e consagram a tônica

da ilusão e da separabilidade (SCHOPENHAUER, 2005, p. 473). O homem bom, ou

nobre, não se prende mais ao enredo daquele princípio, mas sente-se totalmente

afetado pela dor do outro como se aquela dor fosse realmente a sua. Tal afetação

provoca uma retomada do equilíbrio, ou seja, esse homem busca restabelecer o

equilíbrio por meio de uma conduta de renúncia dos gozos pessoais, da aceitação

das privações existenciais, e por fim, da tentativa de alívio do sofrimento dos outros

como um modo de reconhecimento de que o que é mais essencial do seu fenômeno

identifique-se com o que é mais essencial do fenômeno alheio. Isso, sem recorrer a

cálculos ou planos, mas de modo imediato. Isso inclui todo o que vive, racional ou

não, pois

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[...] o Em-si do seu fenômeno é também o Em-si do fenômeno alheio, a saber, aquela Vontade de vida constitutiva da essência de qualquer coisa, que vive em tudo: sim, ela se estende até mesmo aos animais e à toda a natureza, logo, ele também não causará tormento a animal algum. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 474).

Com o aumento da clareza de consciência do homem é possível

proporcionar uma diminuição do sofrimento imposto a animais de carga e trabalho,

tendo como base que a afirmação da existência do homem não deve ser causa de

privação ou negação da existência do animal. Por conta disso, deve-se encontrar

uma justaposição ou uma justa medida entre o uso da força de trabalho animal e a

necessidade dos demais homens sem incorrer em injustiça. Evitar o sofrimento de

outros representa uma elevação da capacidade de compreensão da essencialidade

de todos os seres escondida nas individualidades e no principium individuationis,

que permite o exercício da justiça.

Essa elevação e clareza de consciência reverberam nessa ótica como uma

cura da ilusão e do engano propiciados por aquele princípio e identificados com

práticas de obras de amor. Para o autor, ser curado dessa ilusão e praticar obras de

amor são uma única e mesma coisa, posto que ambas são o que se pode chamar

de sintomas inevitáveis e infalíveis daquele conhecimento imediato e intuitivo.

Ao praticar atos egoístas que remetem ao remorso e ao arrependimento

somos impelidos a uma dor de consciência que se revela como um incômodo

existencial por reconhecermos a nós mesmos como de fato somos, revelando nossa

essência. De outro modo, o resultado ou a sensação de satisfação que os homens

sentem a cada vez que realizam atos totalmente desinteressados é entendido por

Schopenhauer como o surgimento da boa consciência, ou seja, é o reconhecimento

imediato que nasce das essências entre fenômenos. A boa consciência confirma o

conhecimento intuitivo de que,

Ao contrário da dor de consciência, [...] a boa consciência é a satisfação sentida após cada ato desinteressado. Esta surge de semelhante ato, nascendo do reconhecimento imediato da nossa própria essência em si no fenômeno de outrem, dar-nos novamente a confirmação deste conhecimento: que o nosso verdadeiro eu não existe apenas na própria pessoa, este fenômeno individual, mas em tudo o que vive. Desse modo, o coração se sente dilatado; enquanto no egoísmo, contraído. (SCHOPENAHUER, 2005, p. 475).

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O homem egoísta, envolvido em questões particulares e individuais concentra

todas as suas energias em preocupar-se com as ameaças e perigos que

constantemente o assolam e desenvolve uma postura pautada na ansiedade e no

medo, por considerar todos os fenômenos como seus inimigos, e que fazem nascer

a angústia. A angústia é essa participação de seu ‘eu’ em questões transitórias e

passageiras que geram preocupação, torpor e inconstância existencial. O homem

justo, desligado de todas as preocupações e angústias da existência, por

compreender-se em meio a fenômenos amigáveis, sente nascer em si uma

jovialidade de ânimo, uma calma e uma confiança próprias daqueles que centraram

suas vidas na disposição virtuosa e colhem como conseqüência uma boa

consciência. Muito embora, a sorte humana que não pode encontrar a felicidade de

modo direto e positivo, ainda assim, isso não mais o angustia, pois sente-se

consolado pelo conhecimento surgido da visão das essências.

Essa disposição de conduta não se estabelece por meio de leis, normas ou

por uma pretensa noção de dever, mas por meio de um conhecimento expresso

simplesmente através de uma compreensão essencialmente íntima e convicta de

que todos os seres vivos compartilham de uma única e mesma essência. Para

Schopenhauer, essa essencialidade, ou em-si dos objetos, encontra-se em cada

fenômeno por meio da Vontade. Ela é aquilo que existe em tudo e em todos.

Um agir consciente, de modo que a conduta humana possa conduzir-se para

uma possível redenção, deve portar consigo a firmeza e a convicção de que isso se

dá apenas no plano da negação daquela Vontade de vida que perpetua todo querer

e, conseqüentemente, todo sofrer. Essa ação erigida por meio da doação de si ao

outro é identificada pelo autor como amor. Ao que, em suas palavras

(SCHOPENAHUER, 2005, p. 476), “parece uma sentença paradoxal”, mas que na

verdade representa a expressão máxima de seu pensamento, ou seja, “todo amor

(ágape, caritas) é compaixão”.

Há uma distinção entre o amor que é Eros e o amor que á Ágape. Amor que é

Eros é demasiadamente debatido na obra Metafísica do amor como aquele instinto

de preservação individual exposto por meio do desejo sexual próprio dos poetas e

dos enamorados34. Nessa obra, o autor afirma que “a finalidade última de todo

empreendimento amoroso [...] é a composição da próxima espécie”

34

Schopenhauer aprofunda a questão do amor Eros no Capítulo 44, Metafísica do amor sexual. El mundo como voluntad y representacion II, p. 584.

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(SCHOPENHAUER, 2003c, p. 82). Já o amor que é Ágape, tal qual ocorre no campo

da arte, exalta o que há de mais excelso e sublime e que só pode ser encontrado

por meio da negação da vontade. Um é oposto do outro. Um afirma a Vontade,

enquanto o outro a nega enfaticamente. A capacidade de amar compassivamente

permite ao homem modular o querer, enquanto ato volitivo particular, com relação

aos outros quereres possibilitando uma convivência significativa a nível coletivo. Por

isso mesmo, Schopenhauer nos apresenta a idéia de compaixão, como amor, ou

seja, o único e genuíno fundamento moral para a motivação dos seres humanos.

Distintos são os entendimentos de amor enquanto Eros, e amor enquanto Ágape.

Nessa distinção, o amor a si próprio é Eros, e o amor a outrem, desprovido de

qualquer mediação, é Cáritas ou Ágape. Um é mediado e o ouro imediato.

A visão privilegiada que se dá por meio do princípio de individuação viabiliza,

em um grau menor, a justiça e, num grau maior, uma disposição de caráter

propriamente boa e é capaz de igualar os homens num único modo de

consideração. Para o autor, entre indivíduos desconhecidos e estranhos uns para os

outros, não há fundamento algum que conduza estes mesmos a preferirem

voluntaria e conscientemente o bem-estar e a vida de outrem em detrimento da sua

própria. E, há apenas uma tipo indistinto de caráter capaz de manifestar uma

bondade suprema e uma nobreza perfeita, neste grau de pureza. Schopenhauer

denomina esse caráter de compassivo.

E quando sacrifícios assim descritos ganham proporções maiores, e

indivíduos caminham em direção à morte certa em amparo da comunidade, ou da

pátria, defendendo importantes verdades universais ou impedindo que maiores

catástrofes aconteçam, então, este indivíduo de caráter compassivo terá atingido

níveis mais excelentes em seu agir de maneira a alcançar a Idéia de humanidade. A

compreensão de que o sofrimento é parte constitutiva da realidade, e que a

felicidade só pode ser alcançada de modo negativo, ou seja, por uma espécie de

reação existencial, outro tipo de contentamento deve tomar o seu lugar. Este é o

conhecimento da condição de padecimento de um outro que torna-se o único motivo

possível para a satisfação e a alegria.

Vimos ainda que, as alegrias mentem ao desejo, ao afirmarem que seriam um bem positivo quando em verdade são de natureza meramente negativa, tão-somente o fim de um padecimento. Nesse sentido, não importa o que a bondade, o amor e a nobreza de caráter possam fazer pelos outros, tem-se aí sempre apenas o alívio dos sofrimentos; conseguintemente, o que pode

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mover a bons atos, a obras de amor é sempre e tão-somente o conhecimento do sofrimento alheio, compreensível imediatamente a partir do próprio sofrimento e posto no mesmo patamar deste. Daí, no entanto, segue-se o seguinte: o amor puro (ágape, caritas), em conformidade com sua natureza, é compaixão; e o sofrimento que ele alivia, ao qual pertence todo desejo insatisfeito, tanto pode ser grande quanto pequeno. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 477).

A felicidade, que nunca ‘é’ de modo positivo, mas sempre é acrescentada à

vida de modo artesanal, apenas pode ser conquistada por uma via negativa. A

compaixão, longe de ser um simples conceito, é apontada por Schopenhauer como

fonte autêntica das virtudes e cura contra o egoísmo e o amor-próprio.

Da mescla entre amor que é Eros e do amor que é Ágape, que para o autor é

mais freqüente do que imaginamos, vê-se brotar a amizade como canal de

confluência entre egoísmo e compaixão. A maior parte deste sentimento reside no

fato de se querer a própria satisfação por meio da presença do amigo que dá por

meio de sua individualidade. A outra parte acontece por meio da satisfação

desinteressada no bem-estar desse mesmo amigo.

Ao contrário, quando nos sensibilizamos com a nossa própria condição

exposta à dor e ao sofrimento, e choramos a nossa sorte não o fazemos por legítima

compaixão, mas por fantasia. Nesses termos, a dor sentida em nós mesmos não

pode servir como parâmetro de autenticidade moral, pois quando somos nós

mesmos o objeto de comiseração dá-se o que Schopenhauer denomina de duplo

desvio. O duplo desvio se dá por conta da representação realizada pelo próprio

agente compassivo com relação ao objeto de compaixão, ou seja, a sua dor. O

resultado disso é o choro que devido a uma sensação repentinamente sentida em

seu corpo e, por conta de sua repetição na reflexão, a pessoa acredita que seu

estado é digno de compaixão, mas que na verdade isso não passa de uma mera

representação que em nada guarda consigo de imediato e que em nada remete

diretamente à um certo grau de dignidade de caráter. Uma prova disso é que muitas

pessoas podem facilmente chorar e nada virtuoso portarem em suas intenções,

assim como o seu contrário, em que pessoas duras de coração mesmo

profundamente sensibilizadas com a dor do outro e inclinadas a ajudá-las, nada

manifestam com relação e essa exteriorização física chamada choro.

Exemplificando, crianças que sofreram algum tipo de sofrimento só choram quando

lastimam a dor por conta da representação dada.

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A compaixão, nesse sentido não poderia desempenhar seu papel de

identificação na alteridade, posto que, nesse caso, a identificação acontece apenas

consigo mesmo. Assim, quando comovidos pela condição de dor e sofrimento de

outros seres, choramos e lamentamos devido ao fato de nos colocarmos juntos e

vivamente com aqueles no campo da fantasia. A fantasia é, portanto, um longo

desvio no qual, ao final, somos nós mesmos o nosso próprio objeto de compaixão,

por vermos imaginativamente naqueles que sofrem a nossa própria sorte.

Ao ponto que, para o agente de autêntico caráter compassivo toda a

bondade, amor, virtude e nobreza de caráter só podem se originar da negação da

Vontade que supera o ódio, a maldade, a injustiça e o egoísmo. O conhecimento

intuitivo, pois, é o único capaz de enxergar por entre o principium individuationis e

libertar o homem da visão fragmentadora fazendo-o suprimir a diferença entre o

indivíduo e os outros seres, elucidando de modo mais perfeito a possibilidade da

bondade, do amor desinteressado e do auto-sacrifício como o mais generoso gesto

que pode ser compartilhando nesta condição existencial. Na verdade, o

conhecimento intuitivo ao libertar o homem daquela condição de sofrimento, viabiliza

encarar todos os sofrimentos do mundo como seus, pois em seu íntimo nada

estranha e nada o inquieta, tendo em vista que para o agente compassivo tudo lhe é

igualmente próximo e ligado, demonstrando uma visão das coisas interligadas ou

conectadas. Para aquele que renuncia a Vontade num grau mais intenso e elevado

o conhecimento intuitivo que desnuda o ‘todo’ e revela as essências torna-se o único

motivo para o seu agir. Ele torna-se o seu quietivo da Vontade.

4.3 As virtudes: Justiça e Caridade

Para Arthur Schopenhauer, a inclinação natural do homem é para buscar a

saciedade e a satisfação dos prazeres para sua subsistência, impondo a qualquer

um que seja, homem ou fera, a sua vontade como regra. Para isso, violência e dor

podem ser recursos facilmente utilizados em meio a este conflito de vontades.

Porém, quando vemos o outro numa condição de submissão, ou mesmo de

sofreguidão, somos assaltados por uma experiência espontânea e natural na qual

brota uma estranheza e uma admiração daquela condição subjugadora inicial. O que

nos impelia a conquistar e dominar é agora causa de espanto para nós, freando os

instintos causando comoção por parte do espectador que agora se vê numa

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condição de similaridade de papéis. Quem antes era dominador, depois, se a

natureza continuar expressando-se assim, pode ser dominado e deste modo, a dor

do subjugado revela-se condição inicial para que o espectador, ou mesmo o

dominador, seja tocado pela sensação de injustiça posta. A partir dessa experiência

nasce a compaixão, fonte das virtudes.

De acordo com Schopenhauer, da compaixão brotam as virtudes da justiça e

da caridade, expressas na máxima neminem laede, imo omnes, quantum potes,

iuva, ou, não prejudiques a ninguém, mas ajuda a todos quanto puderes, contemos

duas sentenças das quais as ações correspondentes podem ser divididas, segundo

o pensador, em duas classes de virtude: a justiça e caridade.

A primeira das virtudes é a justiça na qual, surgida da compaixão, fenômeno

ético originário por natureza, pode determinar a ação ou não do indivíduo, tornando

o sofrimento do outro no seu motivo para agir. Opondo-se aos motivos egoístas e

maldosos impedindo o sofrimento do outro e ajudando ativamente o sofredor.

Porém, é este mesmo egoísmo, que é próprio nosso, que leva o homem a agir

compassivamente.

Schopenhauer (1995, p. 135) afirma que, “a virtude da justiça precisa da

experiência mediata para ser representada na consciência e, por fim, ser conhecido

o efeito da compaixão, o sentimento de injustiça”. Apenas após a experiência, pode

a consciência agir em prol do ofendido. Por isso a experiência torna-se condição de

partida e etapa necessária para a análise da moral e da ética no sistema

schopenhaueriano. Neste grau, ainda incipiente de absorção do agente observador,

segundo Schopenhauer, a justiça já surge como um modo de elevação da

efetividade da compaixão capaz de projetá-lo a um modo de operar distinto daquele

que normalmente temos, ou em suas palavras mesmas (SCHOPENHAUER, 1995,

p. 136),

Desta forma, deste primeiro grau da compaixão surge a máxima ‘neminem laede’, isto é, o princípio da justiça, virtude essa que só aqui e em mais nenhum outro lugar tem sua origem mais pura, meramente moral e livre de qualquer mistura, pois, do contrário, teria de repousar no egoísmo.

Schopenhauer afirma que são, portanto, dois graus distintos que podem ser

percebidos aqui, um grau de efetividade que é negativo, no sentido de que a dor

daquele que sofre desencadeia uma tal estupefação naquele que assiste ao

espetáculo de dor que este, ou seja, o espectador, sente-se remetido imediatamente

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à condição daquele que sofre mergulhando assim, na essência do mundo, o

sofrimento. O homem neste momento pára de agir e identifica-se com esta essência

do mundo, a dor de existir, posteriormente, num grau mais elevado de efetividade,

portanto positivo, este mesmo espectador busca não ferir a nada nem a ninguém

evitando o dano a qualquer outro ser que seja, cessando a injustiça que invade o

espaço e o direito do outro. Neste grau mais elevado que não repousa na inércia,

nem no espanto, mas que age na tentativa de cessar a dor do outro encontramos,

de modo completo, diz Schopenhauer, a compaixão.

A máxima ‘neminem laede’ surge deste ainda primeiro momento reservado ao

grau inicial de compaixão. A razão exerce papel de relevante importância nesta

configuração, pois a partir destes princípios expostos por meio de máximas, pode o

homem fazer uso delas sem necessariamente recorrer à compaixão propriamente

dita. Como ele nos diz:

Todavia, não é de nenhum modo preciso que, em cada único caso, a compaixão seja efetivamente despertada, pois muitas vezes ela chega muito tarde, mas em cada alma nobre a máxima ‘neminem laede’ origina-se do conhecimento, alcançado de uma vez por todas, do sofrimento que toda ação injusta traz necessariamente aos outros e que é aguçado através do sentimento do padecer injusto, isto, da prepotência allheia. (SCHOPENHAUER, 1995, P. 136).

Aqui paira uma distinção também importante, na qual a razão é tida como

mantenedora das máximas oriundas da reflexão racional, tomadas ‘de uma vez por

todas’ para o agir humano assegurando que por meio dos assentimentos ‘não minta,

não mate, não roube, não violente e etc.’ sejam seguidos e relembrados

constantemente, mas nunca confundidos com o fundamento da moralidade, que é a

compaixão. Os princípios têm valor, sim, na constituição das ações morais, pois é a

partir deles que podemos traçar um plano seguro para as ações que serão

executadas diariamente e que nem sempre podem estar asseguradas pela

compaixão.

Sem tais princípios, fruto da racionalidade e da reflexão, poderíamos mesmo

até ser abandonados às motivações antimorais quando assaltados pelas impressões

externas e submetidos à espera da experiência da compaixão. Aqui Schopenhauer,

ao corrigir Kant, parece fazer também as pazes com ele, pelo menos quanto ao valor

dos princípios nas ações morais, que nunca podem ser confundidos com o

fundamento. É preciso ter esta distinção clara aos nossos olhos para que possamos

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continuar a questão, pois, para Schopenhauer, máximas e princípios são oriundos

da reflexão e da razão, mas nunca um fundamento moral, pois este encontra sua

mais expressa forma na natureza humana de modo espontâneo e intuitivo. Esta

questão é aclarada quando da afirmação de que,

[...] tais princípios e conhecimentos abstratos não sejam de modo nenhum a fonte originária ou o primeiro fundamento da moralidade, são, no entanto, indispensáveis para levar uma vida moral, como sendo o depósito, o reservatório, no qual está conservada a disposição nascida da fonte de toda a moralidade, que flui a todo instante para que, ao surgir o caso em que se aplique, flua daí através de canais emissários. (SCHOPENHAUER, 1995, p. 137).

Aproximando-se de uma análise sucintamente poética, e com a devida

licença, descrevemos este exemplo como da luminosidade da lua, que enquanto

satélite natural da terra não dispõe de luz própria, pois esta vem do sol, estrela

considerada de quinta grandeza, que refletindo sua luz na lua, é capaz de iluminar

um homem ou uma cidade em meio à alta madrugada. Desse modo, assim também

pode ser entendida a afirmação de que a verdadeira moralidade reside não nas

máximas e princípios, mas sua fonte encontra-se numa instância anterior às

formulações abstratas.

Por conta desta capacidade do homem de relembrar, refletir e tomar decisões

acerca do que é ou não auspicioso, virtuoso mesmo, para si e para os outros,

mantendo assim o domínio da situação e de suas próprias reações diante dos

estímulos externos, pode então exercitar-se por meio do autodomínio. Autodomínio,

portanto, provêm do fato de poder ‘manter e seguir’ os princípios, a despeito dos

motivos que agem em sentido contrário a eles (Schopenhauer, 1995, p. 137).

Para Schopenhauer (1995, p. 138), quando dizemos que um homem é justo,

dizemos que este foi indiretamente atingido pela compaixão, ou seja, que esta

compaixão atua apenas indiretamente através de princípios e não como ‘actu’, deste

modo o Mitleid schopenhaueriano é acessado de modo indireto via estes princípios

estando neste caso apenas em ‘potentia’. Porém, apesar desta condição,

Schopenhauer dá à justiça o título de ‘virtude genuína e livre’ e que tem sua origem

indiscutível na compaixão.

Se, por acaso, os preceitos e máximas escolhidas como justiça opuserem-se

ao instinto egoísta, então esta tornar-se-á o meu motivo para agir, e indiretamente

pode ser tomada como compaixão. Se, ao contrário, tais preceitos e máximas

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tornam-se frágeis e cedem aos apelos egoístas, então a justiça, enquanto

verdadeira justiça só pode ser encontrada na própria fonte originária, ou seja, na

compaixão. Rever este ponto. Atenção aqui.

A compaixão é indireta quando o indivíduo age por meio destes preceitos,

enquanto ‘potentia’. Mas, relembra Schopenhauer, que ‘a compaixão está sempre

pronta para manifestar-se em’ ‘actu’ (SCHOPENHAUER, 1995, p. 138). Na

humanidade existem vários exemplos de ações daqueles que seguem inúmeros

preceitos sem serem jamais com isso justos, assim como são muitos os exemplos

daqueles que agem justamente, não motivados por máximas e preceitos, o que pode

validar tal questão. É o mesmo argumento usado para combater a crítica cética na

qual é defendido que “não há nenhuma moral natural independente do estatuto

humano” (SCHOPENHAUER, 1995, p. 102).

Schopenhauer nos explica por meio de um exemplo que em uma situação

simples, na qual um indivíduo que hipoteticamente acha grande soma de dinheiro

alegra-se inicialmente, mas em seguida retoma ‘o caminho da justiça’ por conta da

representação da inquietação, da aflição, e dos lamentos de quem perdeu aquela

mesma soma. Isso se potencializa caso quem perdeu seja pobre, doente e

necessitado desta quantia.

Como foi visto, a justiça consiste na compreensão de sua negatividade, ou

seja, na supressão da dor proporcionada pela invasão, ou violência sofrida, da

vontade individual (SCHOPENHAUER, 1995, p. 140). Positivo, por que o que se

manifesta por si mesmo é a dor, de outro modo, contentamento e prazer são

negativos, ou uma mera supressão daquela dor sentida (SCHOPENHAUER, 1995,

p. 132).

Como nos descreve o autor, compreendemos os conceitos de justo e injusto

‘a priori’, pois os conhecemos anteriormente ao direito positivo, e estes, por sua vez,

nascem da ligação do conceito empírico de dano, dor, violência, invasão com aquela

regra que o entendimento puro fornece ‘a priori’. Schopenhauer, para dar mais força

ao exemplo, evoca a experiência dos selvagens que sabem distinguir o injusto do

justo de modo bem prático sem o recurso de abstrações e estratagemas. É o puro

direito ético, ou direito natural, que independe de religiões, normas ou máximas é

capaz de responder à questão do que é ou não justo e do que ou não injusto.

Injustiça dupla é o que Schopenhauer (1995, p. 144) definiu como quando alguém

que tivesse uma obrigação e a violou e ainda invadiu o direito do outro.

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116

O conceito de dever que apresenta-se como pagamento a uma dívida, ou

obrigação ficando deste modo um conceito extraviado e sem peso ético. Sendo

assim, o dever tornou-se um conceito extraviado e sem expressão. A seu ver, dever

é obrigação, tendo e vista que “todos os deveres repousam sobre uma obrigação

contraída” (1995, p. 145).

A injustiça pode encontrar, pois, dois caminhos para se estabelecer no agir

humano, que são a força e astúcia. Pela força qualquer indivíduo gozando de

disponibilidade física pode impor, violentar, agredir e até mesmo matar. Pela astúcia,

também qualquer indivíduo, nem tão bem disposto fisicamente, pode apresentar

motivos falsos, ou mentiras, estimulando aqueles a quem quer de modo enganoso a

fazer o que se deseja. Sendo assim, a traição é vista dentro da categoria das

injustiças duplas, pois quando é violada uma obrigação, é ao mesmo tempo um

direito.

Por isso, a fim de nos defendermos podemos fazer uso tanto da força, quanto

da astúcia, ou mentira. Ela é defesa contra a curiosidade indiscreta,

conseqüentemente, contra o dano. No exemplo dado pelo autor, numa estrada a

caminhar, se alguém nos perguntasse de onde vimos, para onde vamos,

poderíamos evitar o risco de roubo ou morte ao fornecer respostas falsas muito mais

do que se disséssemos respostas imprecisas. Schopenhauer desfere uma critica à

moral kantiana em sua Doutrina da virtude, que aborda a mentira como uma

ilegitimidade, cheia de predicados desonrosos, o que considera como infantil e

insosso. Tal pecha deveria ter sido desferida contra a alegria maligna, que na visão

schopenhaueriana, pertence ao que é propriamente diabólico. Conclui afirmando

que, “toda mentira testemunha o medo: isto é o que o condena à morte”

(SCHOPENHAUER, 1995, p. 151).

Tendo apontado a justiça como a primeira e fundamental virtude cardeal,

Schopenhauer recorda que também os filósofos da Antiguidade tomaram-na em

destaque, porém cometendo o erro de alijar desta cardealidade a virtude da caridade

(cáritas, ágape). Em sua opinião (SCHOPENHAUER, 1995, p. 151), até mesmo

Platão, “que mais alto se eleva na moral” não a descreveu com a devida

profundidade, chegando apenas até a justiça desinteressada e espontânea. Mesmo

tendo esta existido desde há muito tempo na história da humanidade, só alcançou

maior evidência por meio de religiões como o cristianismo e o budismo. Essa virtude,

profundamente humana, tem como fundamento um profundo ato identificador com o

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outro que é capaz de estender-se até mesmo aos seus inimigos, pois o sofrimento

dele, a partir da proposta de revisão da justiça como virtude vinculadora, pode

tornar-se o meu também.

Um segundo grau de efetividade como esse, se nos apresenta, porém, com

caráter positivo. Por meio da caridade somos impelidos tanto a não causar dano a

ninguém, como a ajudar se preciso. Essa virtude é uma participação imediata, tendo

em vista que não se apóia em nenhuma argumentação, pois, para Schopenhauer

(1995, p.152), “nem dela precisa, pois tem origem clara” na experiência intuitiva dos

homens e mulheres. Por meio da máxima ‘omnes, quantum potes, iuva’, ou, ‘ajuda a

todos quanto puderes’. Ela é a resposta se existem, ou não, valores morais, pois,

livre de todos os motivos egoístas, desperta um contentamento íntimo conhecido por

‘consciência boa’, ou ‘consciência pacificadora’. É, para Schopenhauer, uma

participação direta e mesmo instintiva no sofrer alheio. O que nos leva a perguntar

qual o critério utilizado por ele para distinguir uma ação caritativa de uma não-

caritativa. Este estabelece uma condição básica, ou seja, a ação, de acordo com as

motivações originárias, cada uma com seu motivo, deve ser a condição de análise.

Segundo essas motivações, egoísmo, maldade ou compaixão, elas

apresentam seus respectivos motivos, ou seja, o bem próprio, o sofrimento alheio, e

o bem alheio. A caridade tem, portanto, um caráter de gratuidade, generosidade,

altruísmo e imediatêz que pode mesmo parecer que estamos a falar de algo não

humano, o que é contradito por Schopenhauer quando este apresenta a caridade

com uma das experiências mais comuns e cotidianas da humanidade.

Assim, podemos indagar: É natural proceder de modo que o sofrimento do

outro torne-se o meu motivo para agir? É normal um móvel totalmente outro que não

o ‘eu’, para que se possa provocar minha comoção e minha atividade

desinteressada? Schopenhauer (1995, p. 155) nos diz que,

Isto pressupõe que eu me tenha identificado com o outro numa certa medida e, conseqüentemente, que a barreira entre o eu e o não-eu tenha sido, por um momento, suprimida, só então a situação do outro, sua precisão, a sua necessidade e seu sofrimento tornar-se-ão meus. Só então não o olho mais como alguém que é para mim estranho e indiferente e totalmente diferente de mim, como me dado pela intuição empírica, mas eu sofro com ele nele, embora sua pele não encerre meus nervos. Só por meio disso o seu mal, a sua necessidade tornam-se motivos para mim. Fora disso, só podem ser motivos os meus próprios.

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Esse é o critério que melhor pode explicar uma ação dotada de valor moral

para Schopenhauer. O autor chama este processo de mística, ou seja, uma verdade

que a razão não consegue descobrir pelo caminho da experiência. E, no entanto, é

algo cotidiano. Ou seja, em vários lugares e em todos os tempos, os homens ajudam

e socorrem outras pessoas sem muita reflexão, pois isto deriva-se de um misterioso

processo íntimo da ética. Desta intimidade, um conjunto de outras virtudes pode fluir

justiça e a caridade, formando uma unidade com estas e possibilitando mesmo uma

discussão sobre uma ética das virtudes em Schopenhauer35.

Parece-nos paradoxal, como mesmo nos alerta Schopenhauer, esta

discussão sobre uma fundamentação da moral por meio da compaixão, porém, em

sua perspectiva, é a mais legítima das questões éticas, pois para o mesmo, a ética

é, na verdade, “a mais fácil de todas as ciências, já que não há nada mais para

esperar a não ser que todos tenham a obrigação de construir a si mesmos” (1995, p.

155). Na visão do autor, muitas determinações religiosas têm, assim como no

cristianismo, prescrições “semelhantes, pois estão fundadas no sentimento do que

deduzi aqui (o Mitleid) e em que, aliás, só a necessidade alheia e nenhuma outra

consideração tem de ser o meu motivo quando minha ação deve ter valor moral”

(SCHOPENHAUER, 1995, p. 154).

Schopenhauer (1995, p. 157) chama de ‘confirmação’ ou ‘prova decisiva’ um

exemplo hipotético no qual dois jovens, Caio e Tito, que podem realizar um

homicídio sem correrem o risco de serem capturados, mas que desistem de levarem

a cabo seus projetos. A decisão de Caio reflete as propostas morais mais variadas

como as religiosas, os sistemas filosóficos, os deontológicos, os normativos e etc. Já

a decisão de Tito expressa a opinião de Schopenhauer quando da razão de uma

escolha compassiva. Ou seja, uma ação que surgiu de uma fonte pura e que está

alicerçada sobre critérios de justiça espontânea e de caridade desinteressada,

alcançando assim o status de nobreza moral e generosidade autênticas

(SCHOPENHAUER, 1995, p. 122). Um tipo de decisão, qualquer que seja ela,

expressa empiricamente o caráter inteligível de um indivíduo. O caráter egoísta

efetivará sem mais problemas o seu desejo de conservação de si e de satisfação

35

Richar Taylor faz um prefácio, New Essays in honor of his 200th Birthdays obra de 1988 descrito na nota de rodapé nº 152 de Mannion. “Talvez ganhássemos mais se lêssemos sua ética da compaixão como uma possível ética da s virtudes”. A possibilidade de uma ética das virtudes (virtue ethics) em Schopenhauer pode aliviar a compreensão e o peso de seu pessimismo e desvelar uma nova perspectiva, a do pessimista virtuoso. (MANNION, 2003, p. 216).

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básica de sua condição existencial sem preocupar-se com o outro que sofre. O

caráter compassivo será capaz de revoltar-se contra uma ação de crueldade e

vilania e colocar-se no lugar daquele que sofre.

Na última parte de sua obra, obra Sobre o fundamento da moral,

Schopenhauer (1995, p. 196) ousa apresentar à Sociedade Real dinamarquesa o

seu fundamento moral, agora, por via analítica, pois, em seu entendimento, este

fundamento moral proposto também clama por um esclarecimento metafísico, na

verdade é urgente, pois este tem condições de lhe oferecer uma visão de totalidade

de mundo que o método sintético não pode dar. Por isso, “a exigência de que a ética

se apóie sobre a metafísica é incontestável” (SCHOPENHAUER, 1995, p. 199).

Para o filósofo, o conhecimento que temos de nós mesmos não é de forma

nenhuma completo e deve ser esclarecido, não só pelo conhecimento empírico que

se esgota em si mesmo, mas por meio da metafísica enquanto conhecimento que

ultrapassa as condições de espaço e tempo, as manifestações fenomenais, e

vislumbra um nível de consciência que permite se sobrepor a esta multiplicidade

dada. Para o filósofo, é por meio da metafísica que é possível ao homem enxergar

este mundo como Vontade e Representação e, a partir desta essencial distinção,

reconhecer sua própria existência enquanto fenômeno que está em ligação vital com

tudo e com todos compreendendo que a individuação nada mais é do que uma

racionalização das coisas que existem. Sendo assim, para Schopenhauer, a

metafísica esclarece o fenômeno originário da moral, a compaixão.

4.4 A mística do Mitleid

A compaixão, apontada por Arthur Schopenhauer com fundamento para a

moralidade, é descrita nessa secção pela perspectiva metafísica, tendo como

suporte, para isso, o quarto capítulo da obra Sobre o fundamento da moral e o

parágrafo sessenta e seis e sessenta e sete do Livro IV de O mundo como vontade

e representação. Apresentada como opus supererogationis, ou, uma obra que

ultrapassa as exigências, a metafísica, é a chave para a resolução de inúmeros

problemas referentes à abordagem da compaixão Mitleid. A proposta de análise

metafísica esclarece, por exemplo, a relação entre agente compassivo e agente

sofredor.

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A explicação da compaixão deve ser dada por meio do Idealismo

Transcendental de Schopenhauer, como confirma David Cartwright (1988 apud

MANNION, 2003, p. 207), “o que é importante aqui é o idealismo transcendental de

Schopenhauer, porque Mitleid apenas faz referência ao fenomenal, enquanto que a

individualidade que é transcendental apenas é aniquilada no terreno do noumenal”36.

Isso significa que a questão metafísica deve ser compreendida dentro de seu

Idealismo Transcendental. Porém, David Cartwright (2009, p. 138-155) questiona

essa proposta de Schopenhauer ao afirmar que embora a compaixão não necessite

de uma fundamentação metafísica, pois agir de tal maneira pode denotar um

trabalho estreito no qual o cerne do problema seria pôr qualidades na Vontade e

esquecer-se de que a Vontade não pode ser qualificada, ou seja, que o diamante da

teoria de Schopenhauer é melhor sem a bagagem metafísica. No lugar desta, surge

a teoria da naturalização da compaixão. Em suas palavras: “eu não acredito que a

compaixão necessite de qualquer explicação metafísica” (CARTWRIGHT, 1982 apud

MANNION, 2003, p. 209). Essa abordagem admite que um agente compassivo

possa se identificar imaginativamente37 com a dor de um sofredor (Cartwright, 2009,

p. 149). Isso se daria por meio da fantasia (Phantasie).

Schopenhauer não confunde os personagens envolvidos no processo da

compaixão, ou seja, entre o sujeito compassivo e aquele que sofre, as

individualidades permanecem e a distância ou diferença entre estes é mantida,

porém, apenas no plano fenomenal. No plano noumenal, essa distância é quebrada

por meio de uma percepção intuitiva externa denominada por ele como compaixão

que pode ser entendida enquanto participação no estado noumenal do outro que

sofre.

Para o pensador de Dantzig, a dor sentida pelo agente compassivo não é a

dor do sofredor, pois esta pertence somente ao sofredor. Mas, a dor daquele que

sofre motiva imediatamente a participação daquele que a percebe de modo a manter

uma participação na dor dele, porém, sem confundir-se uma com a outra.

Schopenhauer faz questão de estabelecer esta consideração e distingui-la daquela

36

“what is important here is Schopenhauer´s transcendental idealism, because Mitleid only makes in reference to the phenomenal, whereas the individuality that is transcendental is only so annihilated in the realm of the noumenal”. A questão metafísica deve ser compreendida dentro de seu Idealismo Transcendental. (MANNION, 2003, p. 207, tradução nossa). 37

“A participates imaginatively in B´s suffering”.

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feita pelo filósofo italiano Ubaldo Cassina38 em que sustenta que a compaixão

surgida é fruto de uma ilusão momentânea entre aquele que sofre e aquele que

observa. Schopenhauer (1995, p. 133) afirma que,

Não é assim, de jeito nenhum. Mas fica claro e presente, em cada momento preciso, que ele é o sofredor e não nós: e justo na sua pessoa e não na nossa sentimos sua dor, para nossa perturbação. Sofremos com ele, portanto nele, e sentimos sua dor como sua, e não temos a imaginação de que ela seja nossa. E, mesmo, quanto mais feliz for nosso estado e, pois, quanto mais contrasta a consciência dele com a situação do outro, tanto mais sensíveis seremos para a compaixão. A explicação deste fenômeno altamente importante não é porém tão fácil de alcançar apenas pela via psicológica, como o tentou Cassina. Só metafisicamente é que ela pode dar bom resultado [...]

Como esclarece o filósofo, não se trata de um processo industrioso e

imaginativo de confusão entre sofreres39, mas, ao contrário, de uma elevação do

nível de compreensão da relação entre essências, independentemente da diferença

entre fenômenos. Essa identificação estende-se inclusive para com os animais não

racionais, pois, é importante ressaltar que a compreensão dos conceitos de

separabilidade e multiplicidade, na visão do autor, dizem respeito apenas ao

fenômeno, tendo em vista que seja uma e mesma essência que se apresenta em

todos os seres vivos o que faz suprimir a diferença entre o ‘eu’ e o ‘não-eu’, noutros

termos, Véu de Maia, deixando vir à luz sua base metafísica, ou, em suas palavras,

[...] Aquele primeiro aspecto é o que encontramos como sendo aquilo que está no fundamento da compaixão e mesmo como expressão real dele. Seria portanto a base metafísica e consistiria no fato de que um indivíduo se reconhece a si próprio, a sua essência verdadeira, imediatamente no outro.

(SCHOPENHAUER, 1995, p. 207).

Tal processo de identidade essencial entre os seres possibilita, no caso

específico do homem apreender a Idéia, pois a Vontade por meio de seu fenômeno

38

Para aprofundar a questão sobre a participação imaginativa do agente compassivo na dor de um outro ser que sofre sugere-se a leitura de David Cartwright em Schopenhauer´s Narrower Sense of Morality In: The Cambridge Companion to Schopenhauer, 1999, p. 279. 39

O estoicismo compreendia a representação de três maneiras: como representação compreensiva (phantasía katalêptikê), como sensação (aísthesis), e como representação (phantasía). “a phantasía (ou impressão mental) é uma impressão na alma, e tirou-se o seu nome adequadamente da marca feita por um sinete na cera. Há duas espécies de phantasíai; uma apreende imediatamente a realidade, e a outra apreende a realidade, com pouca ou nenhuma nitidez. A primeira, que os estóicos definem como critério da realidade, é determinada pelo existente, de conformidade com o próprio existente, e é impressa e estampada na alma. A outra não é determinada pelo existente, ou, se provém do existente, não é determinada de conformidade com o próprio existente, e não é, portanto, nem clara nem distinta”. (DIÓGENES LAÉRCIO apud OLIVEIRA, 2010, p. 39).

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mais perfeito, o ser humano, alcança uma tal elevação de seu grau de conhecimento

que consegue repetir essencialmente o que há de mais límpido no que diz respeito à

apreensão das Idéias, ou seja, a plena consciência de si. Tal qual a arte, este

conhecimento promove a única e verdadeira liberdade a que podemos ter acesso, a

liberdade noumenal que é exclusiva da Vontade, que por sua vez, é liberta de

necessidade, pois circunscrita no campo fenomenal a liberdade é determinada,

portanto ilusão, presa que está à necessidade espaço-temporal.

A partir disso, dentro da relação entre ética e estética, o conhecimento

intuitivo é apresentado por Schopenhauer (2005, p. 468) como a via pela qual brota

o Mitleid. Maria Lucia Cacciola (1994, p. 164) afirma que:

De fato, a contemplação estética pressupõe a liberdade da vontade, se não no próprio fenômeno, pelo menos no modo de conhecer o fenômeno, já que [...] exige a supressão do corpo. Embora sendo uma representação, o conhecimento do belo é uma suspensão temporária dos interesses da Vontade, que não se submete ao princípio de razão. O ponto de vista estético liga-se, pois, intimamente ao ponto de vista ético, referindo-se ambos à negação do fenômeno da vontade. Na arte é preciso que o sujeito seja, além de corpo, um “puro sujeito do conhecer” para que possa atingir o conhecimento das Idéias, como representações livres do princípio de razão. Na ética, para compreender a “justiça eterna” e ver através do “véu de Maia” e do princípio de individuação, é preciso elevar-se acima do conhecimento que caminha de acordo com o princípio de razão e que está ligado ao conhecimento das coisas singulares.

No entanto, a tentativa de traçar um fundamento a partir de si mesmo ou de

seu amor próprio mediante um conhecimento abstrato, para Schopenhauer, não tem

valor algum. Mas ao contrário, isso só ocorre quando o agente compassivo

reconhece no outro indivíduo a mesma essência que a dele, pois, virtude nenhuma

advém de um conhecimento comunicado em palavras, tendo em vista que em

nenhum tempo ou lugar se viu um ser humano ser emancipado moralmente a não

ser nos sonhos e fantasias construídos pelos homens em suas divagações sempre

infrutíferas. Mas muito ao contrário. Por isso, Schopenhauer (2005, p. 468) nos cita

constantemente a máxima senequiana “Velle non discitur”.

Por isso, a distinção entre esses dois modos de conhecimento, intuitivo e

abstrato, torna-se cada vez mais evidente e necessária para esclarecer o fenômeno

da Vontade:

Em contrapartida, para despertar a compaixão comprovada como única fonte de ações altruístas e por isso como a verdadeira base da moralidade,

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não é preciso nenhum conhecimento abstrato, mas apenas o intuitivo, a mera apreensão do caso concreto, no qual a compaixão logo se revela sem maiores meditações de pensamento. (SCHOPENHAUER, 1995, p. 175).

Como já dito anteriormente, para Schopenhauer, compartilhamos com os

animais irracionais da faculdade do conhecimento intuitivo, posto que é imediato à

experiência. Já o conhecimento abstrato, diz respeito ao processo que permeia a

reflexão conceitual e, portanto, intelectual do indivíduo, tendo em vista que, o

entendimento é o elemento modificador, que transforma a sensação num só golpe

em intuição. E, portanto, não obstante ser, o princípio de razão suficiente, um modo

possível de compreender o mundo, não é por meio dele que se pode explicar a

compaixão, pois ele é capaz apenas de explicar o que existe no mundo fenomênico

e não o que extrapola a ele. Com base nisso, entende-se que o princípio de razão

suficiente não pode dar conta da Idéia da qual a compaixão participa, pois tal

princípio é capaz de explicar unicamente o conceito, nunca a Idéia.

A compaixão extrapola o mundo fenomênico e compartilha da Idéia. Em

verdade, a Idéia entra na constituição da compaixão, pois, enquanto compreensão

mais elevada no ser humano, a compaixão consegue desnudar a Vontade

alcançando a Idéia de beleza. Como realça Schopenhauer (2003d, p. 14), “o belo é

a forma privilegiada de conhecimento das Idéias, acarretando a quem o frui a

neutralização, momentânea, do sofrimento, portanto um apaziguamento do querer”.

Dessa afirmação, infere-se que a Idéia participa da constituição do Mitleid, pois, na

visão do filósofo, é exatamente por meio dela, ou seja, da Idéia, que a compaixão

torna-se capaz de extrapolar este mundo fenomênico e alcançar um nível no qual

cessam-se todas as diferenças entre os indivíduos fazendo surgir um estado de

contemplação puro no qual o sujeito de conhecimento, purificado de toda referência

de materialidade, pode visualizar, por exemplo, a Idéia de humanidade.

A compaixão só pode fazer sentido no mundo fenomênico e com relação a

este mundo fenomênico, tendo em vista que não há, para Schopenhauer, outro

mundo possível a que o homem possa estabelecer uma referência. De acordo com

esta observação, percebemos que o caráter inteligível, que coincide com a Idéia, ou

de modo mais direto, com o ato da Vontade mais originário, manifesta-se

exatamente por meio dela. Ou seja, ao entrar em contato com a Idéia, portanto, com

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a própria Vontade, pode o homem libertar-se do determinismo e da necessidade,

próprios do caráter empírico, e tornar-se livre.

Tanto a ascese, quanto a compaixão, que são modos de negação da vontade,

possibilitam tal investida rumo à liberdade. A compaixão numa suspensão

momentânea e a ascese de modo completo. Notemos que a liberdade mesma

pertence à coisa-em-si, e o indivíduo, enquanto fenômeno, ainda permanece preso

ao determinismo espaço-temporal. Surge, assim, uma contradição do fenômeno

consigo mesmo, tendo em vista que, a Vontade como coisa-em-si contradizendo o

fenômeno, torna possível ao homem um canal de liberdade essencial que reside na

Vontade, sendo eles, o homem e a Vontade, apenas neste sentido, diferenciados de

tudo o que existe. É o que Schopenhauer (2005, p. 373) considera como a primazia

da Vontade sobre o fenomenal, ao que o próprio pensador antecipa a pergunta:

“Como isto é possível?”.

Schopenhauer mesmo nos responde a questão afirmando que essa liberdade

não se estende fenomenalmente, visto que nesse grau mais elevado de

compreensão e visibilidade, como que num espelho límpido, que não é estendível ao

animal dotado de razão, a saber, a pessoa, que jamais é livre, mas é, única e

exclusivamente, ao homem. Com essa abordagem Schopenhauer parece nos

apresentar uma sutil distinção entre, de um lado, a pessoa que parece encarcerada

num universo de necessidades, determinações e cegueira, e de outro lado, o

homem que é capaz de extrapolar o princípio de razão.

A pessoa, para Schopenhauer (2005, p. 374), encontra-se num patamar de

determinação e necessidade ditados pelo querer livre da Vontade, que, por sua vez,

está submerso na pluralidade e na contingência. Essa mesma determinação

encontra-se nas condutas humanas, posto que toda e cada ação é decidida pela

Vontade a partir de cada caráter e seus motivos. Schopenhauer nos dá um exemplo

extraído da experiência no qual, muitas pessoas, quase em sua grande maioria, em

todos os tempos têm defendido ardorosamente sua liberdade e suas ações

individuais e, de modo contrário, até mesmo os mais respeitáveis doutrinadores

religiosos têm negado a possibilidade e a condição de extrema liberdade no plano

fenomenal, dada a distinção entre necessidade fenomenal e a liberdade da Vontade,

exposta na distinção entre o caráter empírico e caráter inteligível. O primeiro, visto

como um ato extratemporal, indivisível e imutável da Vontade e o segundo, como

uma consideração fenomênica do primeiro (SCHOPENHAUER, 2005, p. 375).

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A pessoa encontra-se circunscrita no mundo fenomênico e no princípio de

razão. Já o homem encontra-se num grau elevado, pois alcançou a Idéia como

objetidade da vontade. A partir dessa distinção podemos verificar que a compaixão

não nasce da Vontade, mas ao contrário, da negação da mesma, pois a partir de

seu modo possível de negação, surge uma compreensão, via conhecimento, do

fenômeno moral por meio do Mitleid que é francamente encarada, anunciada e

mesmo sugerida por Schopenhauer (1995, p. 196) como um ‘mistério’, posto que,

embora seja um fenômeno real e cotidiano, a sua origem (Ursprung) é misteriosa

(Geheimnisvoll).

Para se investigar o mistério do Mitleid é necessário ascender a outro nível e

ir além do que é individual e determinado. Schopenhauer afirma que esse nível só

pode ser acessado via metafísica e, por conta disso, deve ser mais profundo do que

comumente se permite, posto que irá apontar para um mistério que não se pode

confundir com um modo de análise religiosa. Para isso, é preciso romper com o Véu

de Maia que impossibilita ver o mundo das essências e por meio do qual não

podemos fundamentar a moral na vontade individual, mas numa Vontade enquanto

princípio metafísico (Wille): eis o mistério, a mística e o enigma do mundo.

Assim, o fenômeno da compaixão é apresentado como um mistério porque a

condição de dar conta das causas foge à incumbência da razão, justamente por ser

esta regida pelo Princípio de Razão Suficiente. Esse princípio, de acordo com o

autor, não tem poder de descrever o fenômeno originário da Mitleid. O Mitleid

participa da Vontade enquanto coisa-em-si e não pode ser explicada via racional,

mas apenas via intuitiva, pois seu grundlos escapa ao princípio de razão (Satz vom

Grunde). Apenas o que está compreendido dentro do mundo fenomenal pode ser

explicado pela razão. Sob a fórmula Veda do “tat-taw-asi”40, ou seja, “isto és tu”,

Schopenhauer faz evocar a expressão máxima que resume o pensamento único de

Schopenhauer porque consegue apontar para a unidade essencial na multiplicidade

fenomenal. A unidade vincula o ‘Eu’ e o ‘outro’, que em realidade é o ‘Eu de novo’.

Para Rüdiger Safranski (2011, p. 429), a compaixão é entendida como a Unio

Mystica e corresponde a

uma autoexperiência da vontade, que se produz em um instante fugaz, durante o qual cessa de afirmar temporariamente a sua individualidade.

40

Citações da expressão “tat-taw-asi” podem ser encontradas tanto na obra O Mundo como vontade e representação quanto na obra Sobre o Fundamento da moral.

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Compaixão é a faculdade de desdobrar, em determinados instantes, a própria experiência individual da vontade para além dos limites do próprio corpo. A vontade ainda conserva toda a sua força dentro do indivíduo, mas, por um certo tempo, não está atuando mais na frente de combate da autoafirmação (Seldstbehaunptungsfront); encontra-se em um lugar (einartigen) estado de dispersão; não se concentra em seu próprio corpo, mas se irradia (schwärmt) para fora e não pode mais distinguir entre seu próprio corpo e o corpo alheio:’tat twam asi!’ (tudo isso és tu).

Por isso a correlação feita por Schopenhauer a respeito da união mística

entre todas as essências vivas. Essas entidades vivas compartilham duma mesma

realidade que equivale exatamente como partículas atômicas de uma natureza

comum. No respectivo hindu é o Espírito Supremo, ou seja, “Assim, o Senhor Krsna

pode ser comparado ao Sol, e as entidades vivas, ao brilho solar”. (Bhagavad-Gita,

Como ele é, p. 826). Ou o expresso pela máxima hèn kai pan, ou, um em todo, que

foi em todos os tempos, a zombaria dos tolos e a meditação para os sábios

(SCHOPENHAUER, 1995, p. 206).

Com base na afirmação de que a motivação principal e fundamental tanto no

homem como no animal, é o egoísmo, quer dizer, o ímpeto para a existência e o

bem-estar, afirma-se que todas as ações humanas surgem, via de regra, do

egoísmo, e é sempre neste sentido que deve ser por fim buscada a explicação de

uma ação dada. Porém, mesmo partindo de uma mesma base egoísta, todos

efetivam suas ações de maneiras particulares e diferentes, como vemos no ser

humano, que em sua totalidade, luta num esforço de manutenção de si podendo até

mesmo para isso roubar, matar, mentir, arquitetar, dissimular e etc.

Não obstante todos os homens guardarem em seu íntimo uma natureza

egoísta, ou maliciosa, alguns pouquíssimos conseguem, por meio de um elevado

tipo de conhecimento intuitivo, agir moralmente a partir de uma identificação com

outro ser, tornando-se capaz até mesmo de colocar a felicidade e o bem-estar do

outro acima do seu próprio. Essa capacidade, embora esteja determinada pelo

caráter inteligível, poder manifestar-se por meio do exercício, ascesis, que pode

inclusive possibilitá-lo controlar o impulso egoísta, próprios dos seres que desejam

gradar níveis de aperfeiçoamento das relações entre si e os outros.

Como dito anteriormente, se uma ação acontece por causa do bem-estar que

proporciona a quem a realizou, então essa ação está alicerçada numa motivação

egoísta. Mas se ao invés disso, a ação é definida por um processo de identidade

com o outro, livre de toda e qualquer interesse ou satisfação de bem-estar

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127

proporcionado, então a ação é moral e entendida como compaixão que, de acordo

com o filósofo, acontece todos os dias em todos os lugares do mundo e que é capaz

de fazer surgir toda justiça e toda caridade como virtudes.

4.5 A ascese

Os três modos de negação da vontade são, como já vistos, o estético por

meio da arte, enquanto que os outros dois são éticos, que se dão por meio da

compaixão e da ascese. O exercício da virtude pode levar o homem a uma negação

momentâneo da vontade quando esta ocorre por meio da compaixão. Porém, pela

ascese essa negação pode alcançar níveis definitivos.

Nesse modo possível de negação da Vontade por meio do asceticismo, uma

pessoa que haja experimentado a verdade da natureza humana de um ponto de

vista moral desenvolverá uma repulsa profunda pela condição humana que acabará

perdendo o desejo de afirmar sua vontade em qualquer das suas manifestações

objetivas (SCHOPENHAUER, 2005, p. 482). O resultado dessa experiência é uma

negação da “vontade-de-viver”, que Schopenhauer identifica com uma atitude

ascética de renúncia, resignação ou anulação da vontade, mas que também

comporta a tranqüilidade diante das intempéries existenciais por meio de um

quietivo. É o quietivo da Vontade, que vem a ser esse conceito respectivo

correspondente encontrado no Budismo, através do qual Schopenhauer interpreta

que a vida, plena de frustrações inevitáveis, e, conseqüentemente, que o sofrimento,

causado por essas frustrações, pode ser reduzido ao minimizarmos nossos desejos.

Porém, essa correspondência é apresentada por Schopenhauer como um nível de

compreensão existencial que foi alcançado pela via religiosa, mas que não é a sua

proposta, pois, ao contrário daquela, esta demonstra-se eminentemente mergulhada

na Filosofia e no idealismo transcendental.

Para Maria Lucia Cacciola (1994, p. 159), o fenômeno em que a Vontade

nega sua própria essência, que se revela na aparência, é o da passagem da virtude

para a ascese. A compaixão já não é suficiente, mas surge uma aversão pela

essência, pela própria vontade-de-viver da qual o sujeito é fenômeno. O sujeito nega

a Vontade no seu corpo e a sua ação entra em contradição com seu próprio

fenômeno.

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Mas essa negação da vontade de viver entra em choque com os instintos de

sobrevivência, com as forças físicas e com os prazeres físicos que resistem em

florescer. Antes de atingir esse nível, o homem terá de passar por outros quando o

‘Eu universal’ luta contra o ‘Eu físico’ e ‘individual’, da mesma maneira como o

conhecimento puro luta contra a vontade animal, e como a liberdade luta contra a

natureza, contra seu próprio ‘Eu’. Só depois será possível transcender para o estado

de tranqüilidade (SCHOPENHAUER, 1995, p. 201).

Isso não significa que a vontade esteja sendo destruída, mas apenas seu lado

individualizado, personalizado. Contra a tendência de se aplicar o Princípio da

Razão Suficiente com o propósito de atingir o conhecimento prático, o que criaria a

ilusão de um mundo permeado pelo conflito eterno. Ao transcender a natureza

humana, o asceta resolve o problema do mal, retirando de cena a consciência

individualizante, ou seja, a noção espaço-temporal sobre a qual se dá o sofrimento.

Nesta perspectiva, a razão em nada pode contribuir para a santidade, pois

“por fim, também a virtude e a santidade não se originam da reflexão, mas da

profundeza da vontade e de sua relação com o conhecimento” (SCHOPENHAUER,

2005, p. 108). “A conduta transcorre, como se diz, conforme o sentimento, isto é,

não segundo conceitos, mas segundo o conteúdo ético” (SCHOPENHAUER, 2005,

108).

Tendo isto no horizonte, Schopenhauer avança afirmando que assim como a

Vontade pode afirmar-se de diferentes modos, por ser um ímpeto cego e

inconsciente, ela também pode negar-se quando alcança uma visão iluminada. Se,

pois, podemos afirmar a Vontade ao querermos mais vida, de modo contrário

poderemos negar essa mesma Vontade ao impedirmos o querer. A afirmação da

Vontade significa que, sobre esse ponto de vista, aquele que tenha sido iluminado

pela aura do conhecimento de si e do mundo, tendo a real compreensão dessa

união indestrutível e irrevogável, dissipando a ignorância e sua ilusão, perceberá

que, a negação da Vontade, manifesta-se via conhecimento. Conhecimento no qual

o homem encontrará uma compreensão entre o seu ser e a sua relação com o

mundo, uma necessidade de tornar-se um com o todo, ou seja,

[...] aquele conhecimento leva o querer a findar, visto que agora os fenômenos particulares conhecidos não mais fazem efeitos como motivos do querer, mas o conhecimento inteiro da essência do mundo, que espelha a Vontade, e provém da apreensão das idéias, torna-se um quietivo da

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129

vontade, e, assim, a vontade suprime a si mesma livremente [...] (SCHOPENHAUER, 2005, p. 369).

E a ascese, que de modo definitivo põe fim a todo sofrer, proporciona ao

homem um entendimento de que na vida há momentos de pausa da dor, mas que

não deve se alegrar com eles, pois, quem compreendeu a dinâmica interminável do

querer e do sofrimento, pode contrariamente ver que,

Se compararmos a vida a uma via circular de carvão ardente, com alguns lugares frios, que teríamos de percorrer incessantemente, estes lugares frios consolam quem é envolvido pela ilusão e, num destes lugares frios agora se encontra, ou o vê próximo a si, assim, prosseguindo firmemente sua marcha; porém, o homem que vê através do principium individuationis e reconhece a essência em si das coisas, portanto o todo, não é mais suscetível a um semelhante consolo. Vê a si mesmo em todos os lugares ao mesmo tempo, e se retira. Sua Vontade se vira; ela não mais afirma a própria essência espelhada no fenômeno, mas a nega. O acontecimento, pelo qual isso se anuncia, é a transição da virtude à ascese. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 482).

Após descrever a experiência de disposição da perfeita bondade, do amor

desinteressado e do mais generoso auto-sacrifício pelos outros que é a superação

do egoísmo e da destruição do Véu de Maia, por meio de sua forma de Princípio de

Individuação, Arthur Schopenhauer explica a transição, via conhecimento, da virtude

à ascese. É quando a Vontade encontra o seu quietivo e pode exercitar-se em

expressões de resignação, de castidade e de renúncia de si mesmo posto que “o

fenômeno dessa essência entra em contradição flagrante consigo mesmo”

(SCHOPENHAUER, 2005, p. 482). Ou seja, por meio da ascese, o homem pode

aquietar o pulso avassalador que impera sobre ele e, enquanto fenômeno mais

elevado da Vontade, pode também abolir o egoísmo.

Esse sacrifício, de acordo com Schopenhauer, liberta o homem de toda

representação de instintos afirmativos, pois desse modo, o homem, assim torna-se

sacerdote e sacrifício ao mesmo tempo. De acordo com o próprio Schopenhauer,

morrendo o homem é possível, também morrer o mundo apenas individualizado,

sim, mas não ao ponto de afastar qualquer possibilidade de coerência e sucesso na

apresentação de seu fundamento moral, pois a Vontade ataca sua maior expressão

fenomenal, ou seja, o corpo impedindo assim, a Vontade de se afirmar. Ao negá-la,

o homem que é o que há de mais elevado e elaborado no campo fenomenal alcança

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a morte, esta diferentemente das outras muitas que todos os dias acontecem, é uma

morte muito bem vinda, pois com esta não morre apenas o fenômeno, mas a

essência mesma do mundo que por meio do fenômeno é suprimida revelando a

“alma iluminada em sua mais completa redenção” (SCHOPENHAUER, 2005, p.

485).

Kleverton Bacelar (2010, p. 193) no artigo Sobre a quarta motivação na

psicologia de Schopenhauer, defende que “a quarta motivação moral seria a dor

própria [Eigenes Wehe], ou seja, cada disposição implica em uma disposição de

caráter e que essa quarta motivação induz-nos a pensar em uma disposição de

caráter ascética. Se assim for, alguns indivíduos seriam predispostos ao próprio

mau, à própria dor, ou seja, alguns indivíduos seriam predeterminados à santidade”.

Schopenhauer apresenta Jesus Cristo, Francisco de Assis, além de místicos

hindus como exemplo de homens que negaram a Vontade de vida e suprimiram a

sua própria existência alcançando uma espécie de redenção, ou o nada do nirvana

que supera o sansara 41.

SINGH (2007, p. x) analisa a conexão entre a morte, contemplação e vida

contemplativa na filosofia de Schopenhauer por meio do binômio morte-

contemplação como uma atividade eminentemente do filósofo em basicamente

quatro pontos: primeiro que, quando se reconhece a morte se é impelido a

contemplar a existência humana e a realidade não mais de modo fragmentado e

parcial, mas em sua completude numa perspectiva holística. Segundo, pensar sobre

a morte realça questões referentes ao valor da matéria e da condição da existência

humana, o que pode responder ao enigma da vida quando confrontado com o

pensamento filosófico. Terceiro, isso inspira um modo de vida moderado e

voluntarioso que se opõe ao descuidado materialismo vulgar, propiciando uma vida

prática filosófica autêntica na qual o filósofo pode inspirar-se genuinamente vivendo

com moderação, simplicidade e distanciamento do mundo. E por último, o pensador

é inspirado a invocar o que é mais fundamental em toda a realidade como a crença

em Deus ou em uma transitoriedade em uma carência de substancialidade

41

O nada sansara: significa mundo dos renascimentos contínuos, dos apetites e dos desejos, da ilusão dos sentidos, dos fenômenos do nascimento, do envelhecimento, da doença e da morte. Nirvana: va soprar com o vento, e nir ausência de vento, como adjetivo é extinto, ao pé da letra extinção como a de um fogo. Neravana ou seja, nera sem, vena, vida significando aniquilação. Nirvana é a contraparte de sansara.

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(svabhava) em todas as entidades. A morte, portanto, pode inspirar um pensamento

a desvendar estes conceitos fundamentais.

Todavia, tal redenção não pode efetivar-se por meio do suicídio, pois este ao

invés de negar a Vontade de vida chega mesmo a firmá-la de modo absoluto. A

contradição mais perfeita nesse sentido é o suicídio, pois para Schopenhauer (2005,

p. 505), ele é a obra-prima de Maia, noutras palavras é a contradição da Vontade

consigo mesma por meio da supressão de sua própria vida por meio do suicídio. O

suicídio é querer mais vida do que realmente se pode ter acesso42. Essa

compreensão conduz a uma soteriologia, ou, uma doutrina da salvação que, por sua

vez, pode conduzir a uma eudemonologia.

Tendo a ética sido purificada do Eudemonismo, a soteriologia, ou doutrina da

salvação, é uma das saídas apontadas por Schopenhauer (2006, p. 01) para um

quadro tão crítico da existência, mas ao contrário, este contrapõe-se àquela

propondo uma eudemonologia. E eudemonologia é o estudo da arte de conduzir a

vida de modo mais agradável e feliz possível numa consideração puramente objetiva

pela ponderação fria e madura como algo preferível à não-existência. Essa

compreensão pode ser entendida até mesmo como um eufemismo, pois do ponto de

vista empírico, a verdadeira essência do Ser fica obnubilada pelo Véu de Maia.

Resta-nos a felicidade daquilo que é possível, ou, noutros termos, buscar uma vida

menos infeliz possível. Na visão schopenhaueriana, a sabedoria de vida pode ser

capaz de melhor interpretar e, por isso mesmo, apresentar formas mais adequadas

de conduzir nosso agir humano. Essa realmente talvez seja a liberdade e a

felicidade que nos resta para a vida prática.

42

Schopenhauer aprofunda a questão da morte por meio da negação da vontade e a morte por meio do suicídio no § 69, p. 504. O mundo como vontade e representação.

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132

5 Considerações finais

Arthur Schopenhauer estruturou seu pensamento filosófico em pleno século

XIX a partir de elementos extraídos do Romantismo e do Idealismo alemão. Do

Romantismo, assimilou a compreensão do indivíduo inserido na dinâmica da

redescoberta da natureza e de sua inserção na história. A redescoberta do corpo e

da sexualidade, bem como de uma nova perspectiva de religiosidade desligada da

instituição, levaram o filósofo a uma compreensão de um mundo que era ao mesmo

tempo teórico e prático. Num período de transformações políticas e ideológicas, a

liberdade ganhava força e caminhava em consonância com a uma nova idéia de

política e de ética, muito mais imaginativa, com tons de maior entusiasmo e

atrevimento poético. O Romantismo, embora não possa ser considerado um

movimento filosófico, em sua essência, ofereceu a Schopenhauer os conteúdos para

forjar uma análise da realidade sob um prisma de criticidade, do exame apurado, e

da independência intelectual. O Idealismo alemão que lhe forneceram uma

capacidade de análise e de transcendência necessárias para considerar o mundo

como Vontade e representação.

Do Idealismo Schopenhauer aprofundara questões fundamentais a respeito

do conhecimento humano, de natureza, de totalidade numa perspectiva metafísica,

portanto, filosófica. Porém, sua proposta deveria ser capaz de unir o mundo teórico e

o mundo prático, num esforço de elaboração de um idealismo com bases

confessadamente transcendentais. A partir de então, seu pensamento único seria

influenciado em sua constituição pelas propostas românticas e pelas proposições

idealistas alemãs. Sua filosofia caminhou assim, para a elaboração de um

pensamento único que tinha a pretensão de dar conta da interpretação do enigma

do mundo e de seus muitos lados, entendidos por ele como epistemologia,

metafísica, estética e ética. Com base nisso, a proposta moral de Schopenhauer não

pode ser encarada como fruto de uma influência romântica, por não conterem em si,

direta e objetivamente, seus elementos constitutivos. Mas, de outro modo, esse

fundamento moral deve ser entendido com base em sua releitura idealista

transcendental.

Inferimos também que o Mitleid, enquanto fundamento moral, não nasce de

nenhum sentimento religioso, cristão, budista ou hinduísta, embora haja entre esses

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modos de compreensão da realidade uma correspondência metafísica. O

fundamento apontado por Schopenhauer surge da visão de um mundo tomado como

Vontade e representação. Nesse mundo tomado como vontade e como

representação, o conhecimento intuitivo torna-se a única via possível pela qual uma

ação genuinamente autêntica pode brotar. Ou seja, quando o entendimento lança-se

em direção às coisas do mundo, vemos surgir, a um só golpe, o conhecimento

intuitivo.

O conhecimento intuitivo, que não é racional, mas é inteligente, proporciona

uma chave para a compreensão do mundo tomado em sua totalidade, ou seja,

independente do principio de razão. O conhecimento intuitivo permite enxergar para

além da constituição espaço-temporal, fazendo cessar aquela visão fragmentada e

individualizada do mundo. Tendo em vista que o Mitleid parte da realidade

fenomênica, se faz necessária uma análise da mesma. Esse exame é realizado com

base na Quádrupla raiz. A Quádrupla raiz é o instrumental teórico utilizado por

Schopenhauer por explicar a realidade fenomênica como o reino da necessidade e

da condicionalidade. Por essa razão, não serve para explicar o reino da

essencialidade onde reside a Vontade.

Do outro lado da realidade, o mundo é tomado como Vontade e entendido

como universal, indestrutível, livre, inconsciente e ímpeto cego. Antes de apresentar

o Mitleid como fundamento moral, Schopenhauer tem que se defrontar com o

Imperativo Categórico kantiano que foi classificado por Schopenhauer como um

formalismo apriorístico que hipostasiou a razão. A lei moral, por usa vez, foi vista

como um retorno ao decálogo mosaico por fundamentar-se numa moral com fundo

teológico, de obrigações e deveres. Para o filósofo de Dantzig, a base para a moral

não pode repousar sob dogmas e abstrações conceituais, que apenas servem para

interpretar e explicar um ato moral, mas numa instância anterior e fundamental. A

moral deve se basear em motivos reais e dispostos no mundo, pois pensar a

questão da ética é pensar a questão da liberdade humana.

Para o autor, o homem não dispõe de liberdade empírica, pois encontra-se

circunscrito numa realidade composta por necessidade e determinação. O livre-

arbítrio, pois, é uma ilusão. A única e verdadeira liberdade encontra-se num nível

inteligível, ou seja, na liberdade da Vontade. Assim, em sua falta de liberdade

empírica, infere-se que os homens têm seus caracteres previamente fixados em sua

constituição desde o seu nascimento e que, por isso, essa liberdade só pode ser

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alcançada no plano do inteligível. Nesses moldes, o agir de homens é regido por

uma lei natural e demonstrável denominada pelo pensador como lei de motivação,

que é uma forma da lei causal.

É por meio dessa lei, expressa por meio da quarta raiz do princípio de razão

suficiente, que é possível traçar um caminho que conduza à razão, ao motivo, ao

fundamento, de uma ação verdadeiramente moral. Para Schopenhauer, existem três

motivações principais para o agir humano que são o egoísmo, o amor-próprio e a

compaixão. De acordo com a lei de motivação, uma determinada ação só pode ser

antimoral ou moral. Uma ação é antimoral quando guarda em seu íntimo uma

motivação egoísta baseada na preservação de si ou no mal para o outro. Uma ação

é moral quando a motivação do agente que a realiza é o bem-estar, não seu, mas de

um outro ser racional ou não. Uma ação nesses moldes deriva-se apenas do

conhecimento intuitivo que, assim como na estética, mostra-se como um dos

primeiros modos de negação da vontade, efetivando-se de modo espontâneo,

porém, temporário.

Objetivamente, a compaixão é apontada por Schopenhauer como o único e

genuíno fundamento da moral, pois, para o filósofo, a exterioridade fenomenal, por si

só, não é incapaz de garantir a autenticidade de uma ação moral, servindo por vezes

para encobrir as reais intenções de quem as realiza. Uma ação pode aparentemente

ser considerada boa e esconder uma intencionalidade perversa, assim como o

contrário. Essa condição de impossibilidade em se verificar o que há de mais

fundamental numa determinada ação reflete a dificuldade em se sondar os corações

dos homens, pois para o pensador é lá que se encontram as verdadeiras intenções

de cada ação realizada. O que não significa que ações verdadeiramente

estruturadas sobre pilares de virtude e genuíno valor moral não possam existir. Ao

contrário, o pensador defende que ações moralmente autenticas efetivam-se

cotidianamente em tempos e lugares diversos com muita freqüência, podendo

acontecer independente da força do hábito e de dogmas abstratos. O fundamento

moral apontado por Schopenhauer não repousa sobre especulações ou exercícios

intelectuais, pois não implica obediência aos conceitos. Por isso, muitas vezes o

autor denomina essa experiência como compaixão, por vezes como piedade, por

vezes como caridade. O que significa dizer que o sinal gráfico que indica o conceito

não é o cerne da questão moral, mas o seu entendimento imediato e espontâneo via

intuição.

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Destaca o filósofo que, uma ação autenticamente moral jamais pode ocorrer

forçosamente apenas por meio de leis ou regras, pois quase sempre as ações

realmente morais acontecem independentes delas, ou seja, por via intuitiva e não

abstrata. Ao conhecimento abstrato, caberá apenas a análise e interpretação da

mesma. Uma ação autenticamente moral, vista pela ótica de seu idealismo

transcendental não pode acontecer a partir da afirmação da Vontade, mas, ao

contrário, deve acontecer unicamente por meio da negação da Vontade de vida,

que, por sua vez, não está submetida a leis ou regras. Em contrapartida, quase

sempre essas leis e regras têm servido apenas para conter o ímpeto de dominação

dos homens, e manter a condição de contrato estabelecida por meio do Estado.

A negação da Vontade é uma ação que acontece por meio de um tipo de

conhecimento anterior à razão que apreende a realidade de modo imediato, ou seja,

num só golpe, proporcionando uma experiência sensorial e intuitiva que, tanto no

campo da estética, quanto no campo da ética, é capaz de propiciar ao agente

negador da Vontade um lenitivo momentâneo das causas das dores e do sofrimento

existenciais, ou seja, o querer. O Mitleid é um modo de negação da Vontade

apontada por Arthur Schopenhauer como fundamento autêntico para a moralidade e

que revela-se misterioso como uma espécie de experiência sublime de elevação e

de conhecimento comparáveis à experiência do amor. O filósofo destaca uma sutil

distinção entre o amor que é sexual, Eros, e o amor que conduz à redenção, Ágape.

O amor que é Éros perpetua a existência, o amor que amor que é Ágape liberta da

existência. Este último é o único capaz de ver através do principii individuationis e

renunciar completamente à sua própria Vontade de vida e doar-se inteiramente em

prol da Vontade de vida de outrem. Tal feito ético culmina numa sublimidade tal qual

ocorre na estética, fazendo suspender toda dor e todo sofrimento causado pelo

querer que é a essência do mundo. Da elevação da compaixão surge a ascese que

conduz ao summum bonum, ou seja, à total supressão da Vontade negada de modo

absoluto, assim como na arte.

A proposta de Schopenhauer é a de que a ética não possa ser uma ciência

prescritiva, mas descritiva, o que possibilitará à filosofia exercer seu verdadeiro

papel. A filosofia exercerá, assim, sua tarefa por excelência, ou seja, a de ser arte e

ciência quando, por meio desses dois aspectos, poderá elaborar um discurso

racional constituídos pelas representações conceituais, e, do mesmo modo, expor

interpretativa o mundo a ser decifrado. Fincada no solo da realidade, a filosofia

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desempenhará sua verdadeira missão de compreender o mundo por meio de uma

interpretação que o tomará como vontade e como representação. Com isso, por

meio de seus livros e de sua filosofia, esperamos haver transposto os portões da

Tebas de cem portas que seu Pensamento Único representa. O enigma do mundo

parece haver encontrado no centro de seu pensamento a sua consumação.

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