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A BIOPOLÍTICA E A CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE NACIONAL:
ENTRE A EUGENIA NEGATIVA DE RENATO KEHL E A REDENÇÃO DO
JECA TATU
Priscylla Alves LIMA
Maria de Lourdes Faria dos Santos PANIAGO
Universidade Federal de Goiás (UFG)
RESUMO
A nova ordem, inscrita no período das duas Guerras Mundiais, trouxe inquietações a todas as
sociedades que organizavam-se sob a forma da comunidade imaginada. O Brasil não se excluiu
desses acontecimentos: havia uma necessidade premente da elite local de formar uma nova
identidade brasileira, pois a imagem que nos representava naquela época, construída por
viajantes como Louis Agassi, versava sobre a população miscigenada, formada pelas “raças
infectas”, portanto “feia , doente, e preguiçosa” cujo expoente máximo era a figura do Jeca Tatu
, criado pelo escritor Monteiro Lobato. Este, fascinado pelas políticas eugenistas, fundou a
Revista do Brasil, na qual lançava todos os seus pareceres sobre os modos de vida dos povos
sertanejos, culpando suas heranças genéticas miscigenadas de transmitirem a “preguiça” e a
“indolência”. Ainda nesse panorama, o médico Renato Kehl guiou as primeiras sociedades
eugênicas, elaborando e divulgando projetos, políticas e leis que incentivavam a implantação da
higiene racial, num claro exemlo da biopolítica, conceito tão discutido pelo historiador francês
Michel Foucault. Este trabalho tem como arcabouço teórico a Análise do Discurso de Linha
Francesa, analisa as produções textuais tanto do médico e dos seus associados quanto do
escritor, e observa a busca duma identidade nacional baseada na economia de poderes em torno
da população e sua saúde, que promovia e tentava destruir a imagem de Jeca Tatu. Nosso olhar
recai sobre um saber médico como um elemento fundamental no exercício do poder
fundamentado no racismo. Pretendemos observar, através do pós-estruturalismo de Foucault, de
que forma o Estado construiu a identidade de um brasileiro miscigenado que “adoecia” o país,
que para ser uma nação forte, precisa ser curado dessa enfermidade.
Palavras-chave: Biopolítica; Jeca Tatu; Identidade.
A Linguística, por muito tempo, em suas várias vertentes, definiu e redefiniu o
conceito de enunciado, a unidade mínima do processo de interação humana, à qual
muitas análises são destinadas. Algumas correntes mais estruturalistas analisaram o
enunciado numa abordagem extremamente intrínseca ao texto. O desgaste gerado pelo
tempo neste tipo de estudos, arautos das investigações autônomas da língua, dá espaço
às novas concepções sobre estes fragmentos do discurso, compreensões estas que levam
em conta as implicações sociais dos sujeitos falando.
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O pós estruturalismo que, doravante, recobre estudos históricos e psicológicos,
também vai jogar seu manto sobre a ciência da linguagem, e vai permitir uma nova
demarcação de limites para a caracterização do termo, muito aprofundado nos estudos
foucaultianos. No encontro com a arqueologia de Michel Foucault que a Linguística
caracterizou o conceito e considerou-o no tempo e no espaço, suas condições sócio
históricas de produção, bem como os sujeitos que o proferem e como este age sobre os
mesmos, como ele os perpassa e os pode transformar.
A abstração foucaultiana nos interessa, pois o enunciado é a unidade
fundamental do discurso, à qual se atribuem efeitos de verdade muito interessantes para
alimentar mecanismos de poder formadores de sujeitos. Para Foucault, o enunciado:
[...] é uma função de existência que pertence, exclusivamente, aos
signos, e a partir da qual se pode decidir, em seguida, pela análise ou
pela intuição se eles ‘fazem sentido’ ou não, segundo que regra se
sucedem ou se justapõem, de que são signos, e que espécie de ato se
encontra realizado por sua formulação (oral ou escrita). Não há razão
para espanto por não se ter podido encontrar para o enunciado
critérios estruturais de unidade; é que ele não é em si mesmo uma
unidade, mas sim uma função que cruza um domínio de estruturas e
de unidades possíveis e que faz com que apareçam, com conteúdos
concretos, no tempo e no espaço (FOUCAULT, 2000, p. 99).
Dessa forma, se o enunciado se define pela presença dos signos em rotação nas
interações pela linguagem, sendo observado através de suas condições de produção
sócio-histórica e de seu aspecto relacional, o qual, para Foucault (2000), se traduz nas
relações de poder, afirmamos que, este enunciado, como uma função responsável por
conteúdos concretos no tempo e no espaço, dá vazão aos processos de interação
humana.
Sabendo também que a linguagem está no centro dos procedimentos humanos,
no cerne da mediação das relações sociais, e que inúmeras séries de operações
referentes à nossa natureza se estabelecem nesta, esses mesmos enunciados podem gerar
efeitos de verdade responsáveis inclusive por formar sujeitos, por direcionar
comportamentos.
De uma forma clássica, platônica, segundo Japiassú (2006), a verdade é
determinada como o ajustamento da faculdade de conceber, de compreender, própria
dos sujeitos, às suas realidades, é uma “propriedade dos juízos, que podem ser
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verdadeiros ou falsos, dependendo da correspondência entre o que afirmam ou negam e
a realidade de que falam”. (Idem, p. 276). Porém, a verdade, como algo
inquestionável, característica do pensamento grego, encontra uma profunda crítica no
arcabouço teórico filosófico nietzschiano, que assim prescreve:
O problema da veracidade é totalmente novo. Fiquei surpreso. Nós
consideramos que naturezas como Bismarck pecaram nesse ponto por
indolência, outras como Richard Wagner por falta de modéstia;
condenaríamos Platão por causa de sua pia fraus (piedosa fraude),
Kant por causa da maneira com que deduz seu imperativo categórico,
enquanto a fé certamente não chegou a ele por essa via. Finalmente, a
dúvida se volta contra si mesma: duvida-se da dúvida. E chega-se a
revogar na dúvida a legitimidade da veracidade, e seus limites. [...]
Como é possível que se tenha tentando demonstrar logicamente a
verdade? No conflito das “verdades”, procura-se a aliança da
reflexão. Todo verdadeiro esforço para a verdade nasceu de uma luta
cujo desafio era uma convicção sagrada e da emoção dessa luta; o
homem não se interessa de outra forma à origem lógica das ideias. [...]
De onde vem o gosto pela verdade ? – Em primeiro lugar, não
tememos mais perder-nos; depois, esse gosto aumenta nosso
sentimento de potência, mesmo para conosco [...] não há mundo
verdadeiro. Há, por conseguinte, apenas uma aparência perspectivista,
cuja origem está em nós.( NIETZSCHE, 2010, p. 238-241)
A inexistência nietzschiana da verdade e a “vontade de potência” que esta gera
no indivíduo, são reflexões que, em Foucault, estão intimamente ligadas às
“micropráticas de poder”. Segundo esse filósofo francês, a produção da verdade se
localiza no nosso mundo, em oposição ao mundo das ideias platônico, onde se
localizariam todas as verdades. Seguindo a linha de raciocínio foucaultiana, este
processo de produção é repleto de coações, produzindo no nosso meio “efeito
regulamentadores de poder” (FOUCAULT, 2008, p. 12).
[...] a “verdade” é centrada na forma do discurso científico e nas
instituições que o produzem, está submetida a uma constante incitação
econômica e política (necessidade de verdade tanto para a produção
econômica, quanto para o poder político); é objeto, de várias formas,
de uma imensa difusão e de um imenso consumo (circula nos
aparelhos de educação ou de informação, cuja extensão no corpo
social é relativamente grande, não obstante algumas limitações
rigorosas); é produzida e transmitida, sob o controle, não exclusivo,
mas dominante, de alguns grandes aparelhos políticos ou econômicos
(universidade, exército, escritura, meios de comunicação); enfim, é
objeto de debate político e de confronto social (as lutas ‘ideológicas’ )
... Por “verdade” entende-se um conjunto de procedimentos regulados
para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento
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dos enunciados. (...)A “verdade” está circularmente ligada a sistemas
de poder, que a produzem e apóiam, e a efeitos de poder que ela induz
e que a reproduzem. “Regime” da verdade. (Idem, Ibidem, p.13)
Se a verdade é também fabricada no seio das instituições de grandes aparelhos
políticos, podemos afirmar que o Estado tem a capacidade de produzir verdades,
fazendo-as circular entre os sujeitos de determinado território devido às suas
necessidades capitais, pois segundo Foucault “é preciso produzir verdades para produzir
riquezas.” (FOUCAULT, 2002, p. 90)
Sendo assim, voltamos o nosso olhar para o panorama brasileiro: quais
enunciados na concepção foucaultiana do termo, o nosso Estado proferiu, que efeitos de
sentidos possíveis foram observados através do tempo, e que puderam ser notados
nestes enunciados, os quais surgiram regulamentando poderes como verdades no
interior das organizações sociais nacionais? Que textos foram responsáveis por gerar
efeitos de sentido se utilizando de enunciados para agenciar a formação de sujeitos
nesses espaços?
O termo “subjetivação” designa, para Foucault, um processo pelo
qual se obtém a constituição de um sujeito, ou mais exatamente, de
uma subjetividade. Os “modos de subjetivação” ou “processos de
subjetivação”do ser humano correspondem, na realidade, a dois tipos
de análise: de um lado os modos de objetivação que transformam os
seres humanos em sujeitos- o que significa que há somente sujeitos
objetivados e que os modos de subjetivação são, nesse sentido,
práticas de objetivação, de outro lado, a maneira pela qual a relação
consigo, por meio de um certo número de técnicas, permite constituir-
se como sujeito da sua própria existência. Foucault destaca, num
primeiro momento, três modos principais de subjetivação “os
diferentes modos de investigação que buscam atingir o estatuto de
ciência, como a objetivação do sujeito falante na gramática ou na
linguística, ou ainda aquela do sujeito produtivo na economia e na
análise das riquezas, as práticas divisoras, que dividem o sujeito no
interior dele mesmo (ou em relação aos outros sujeitos) para
classificá-lo e fazer dele um objeto – como a divisão entre o louco e o
são de espírito, o doente e o homem saudável, o homem de bem e o
criminoso, etc. enfim, a maneira pela qual o poder investe o sujeito ao
se servir não somente dos modos de subjetivação já citados, mas
também ao inventar outros: é todo o jogo das técnicas de
governamentalidade. Num segundo momento, a questão de Foucault
parece se inverter, se é verdade que os modos de subjetivação
produzem, ao subjetivá-los, algo como sujeitos, como esses sujeitos se
relacionam consigo mesmos ? [REVEL, 2002, P. 82-83].
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Direcionamos o nosso olhar para o Brasil da segunda metade do século
dezessete até as primeiras décadas do século dezenove, num período histórico que
envolveu, além de outros acontecimentos, as Guerras Mundiais e seus desdobramentos,
o surgimento das teorias evolucionistas darwinistas e o fascismo em suas várias
vertentes. Estas ocorrências e as condições de produção em que surgiram geraram
vários textos e vários enunciados que muito influenciaram as eminências políticas e
intelectuais brasileiras a lidarem com as identidades nacionais de maneira a desconstruí-
las e construí-las, tentando formar sujeitos ao sabor dos discursos mais produtivos,
analisando e agenciando os corpos em termos de docilidade, utilidade e produtividade
econômica.
A nova ordem, inscrita no período das duas Guerras Mundiais, trouxe
inquietações a todas as sociedades que se organizavam sob a forma de Estado. O Brasil
não se excluiu desses acontecimentos: havia uma necessidade premente da elite local de
formar uma nova identidade brasileira, pois a imagem que nos representava naquela
época, construída por viajantes como Louis Agassi, versava sobre a população
miscigenada, formada pelas “raças infectas”, portanto “feia, doente, e preguiçosa” cujo
expoente máximo era a figura do Jeca Tatu, criado pelo escritor Monteiro Lobato.
Nesse panorama, o médico Renato Kehl guiou as primeiras sociedades
eugênicas, elaborando e divulgando projetos, políticas e leis que incentivavam a
implantação da higiene racial.
Este trabalho observa a busca duma identidade nacional baseada na economia
de poderes em torno da população e sua saúde, economia esta que, ao mesmo tempo,
promovia e tentava destruir a imagem de Jeca Tatu. Nosso olhar recai sobre um saber
médico como um elemento fundamental no exercício do poder fundamentado no
racismo intrínseco nos princípios da eugenia. Pretendemos observar, através do pós-
estruturalismo de Foucault, de que forma o Estado construiu a identidade de um
brasileiro miscigenado que “adoecia” o país, que para ser uma nação forte, precisa ser
curado dessa enfermidade.
Para tanto, analisaremos certo tipo de enunciados e seus efeitos de sentido,
produzidos desde os relatos que viajantes pesquisadores estrangeiros como Louis Agassi
realizaram aqui no Brasil, passando pelas pesquisas científicas do médico eugenista
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brasileiro Renato Kehl, pelas produções e a forma pela qual os enunciados proferidos
por esta vertente da ciência se relacionaram com as variadas identidades culturais
brasileiras, até o final da década de trinta, na qual as descobertas dos sanitaristas a
respeito da bacteriologia fizeram com que as ocorrências da enunciação antes
emergidas, se diluíssem, não por completo, mas para se misturar a outras, se
recombinando e formando outras perspectivas no seio dos desejos de pertença.
1. A ANÁLISE DO DISCURSO E PROPOSTA DE TRABALHO
Nosso escopo geral se constitui em investigar, calcando-nos na Análise do
Discurso Foucaultiana ,os enunciados produzidos pelos seguintes sujeitos: Estado
brasileiro, comunidade eugênica brasileira, veículos midiáticos como a “revista do
Brasil” e escritores como Monteiro Lobato, durante o período que abrange a segunda
metade do século XVIII e o início do século XIX, para tentar relatar os efeitos de
sentido possíveis de serem depreendidos de alguns enunciados, abordando a vertente
francesa derivada dos trabalhos de Michel Foucault. Segundo Faure:
Concretamente, portanto, trata-se de mostrar como, nessa dinâmica de
relações mais intensas, nascem e se desenvolvem novas abordagens
médicas do corpo, sem jamais perder de vista que elas modificam e
são modificadas pela prática da medicina, pelas relações entre
médicos e doentes. Finalmente, elas mudam as atitudes e as crenças da
população em relação ao corpo, ao mesmo tempo em que se adaptam
a elas. Ao invés de desenvolver sucessivamente esses três registros (
a ciência, a prática e o imaginário ), ou estabelecer uma cronologia
forçosamente triunfalista, escolhemos aqui, apesar do artifício, expor
sucessivamente as concepções científicas do corpo em torno de duas
operações centrais da medicina contemporânea, a clínica e a
fisiologia. Nesta medida veremos como as disciplinas estão longe de
fornecer respostas unívocas e completas às questões colocadas pelo
corpo e seu funcionamento. Com efeito, por detrás da via mais visível
e mais conhecida que consiste em dividir o corpo para melhor
descrevê-lo e tratá-lo, os médicos não esquecem que o corpo também
é o corpo de uma pessoa, que está integrado num contexto físico e
humano que o ameaça tanto quanto pode ser ameaçado (...) Mais
numerosos, mais presentes, mais visitados, os médicos penetram em
meios sociais até então separados de sua influência (2005, p. 16)
De maneira mais específica, visamos marcar a singularidade desses
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enunciados, particularmente nos detendo em suas relações com as identidades culturais
organicamente brasileiras, oriundas dos processos de miscigenação aqui realizados.
Definir e descrever estas identidades, bem como os diferentes lugares de sujeito as viam
e como as diferentes instituições tentaram subjetivar/objetivar os indivíduos
considerados não produtivos apelando até mesmo para um processo de apagamento e
construção de novas pertenças.
2. ANÁLISE DO DISCURSO: METODOLOGIA APLICADA
A Análise do Discurso observa o homem falando, fabricando textos, estuda a
língua funcionando para a produção de sentidos. A problematização por ela lançada diz
respeito à maneira pela qual são gerados os significados, criando, assim,
inteligibilidades a partir do que é dito ou escrito em si, que é visto como um lugar de
produção ao mesmo tempo simbólico e político. Três domínios se entrecruzam em sua
constituição: a Linguística, o Marxismo e a Psicanálise. A neutralidade dos textos
produzidos pelas esferas sociais é descartada e a linguagem é tomada em sua opacidade:
A Linguística constitui-se pela afirmação da não-transparência da
linguagem: ela tem o seu objeto próprio, a língua, e esta tem sua
ordem própria. Esta afirmação é fundamental para a Análise do
Discurso, que procura mostrar que a relação
Linguagem/Pensamento/Mundo não é unívoca, não é uma relação
direta que se faz termo-a-termo, isto é, não se passa diretamente de um
a outro. Cada um tem sua especificidade. Por outro lado, a Análise de
Discurso pressupõe o legado do materialismo histórico, isto é, o de
que há um real da história de tal forma que o homem faz história mas
esta também não lhe é transparente. Daí, conjugando a língua com a
história na produção de sentidos, esses estudos do discurso trabalham
o que vai se chamar a forma material (não abstrata como a da
Linguística) que é a forma encarnada na história para produzir
sentidos: esta forma é portanto lingüístico-histórica. (ORLANDI,
2001, p. 34)
Assim, concebemos a língua não como uma estrutura abstrata, mas como
acontecimento produzido por sujeitos (na concepção da psicanálise) que se encaixam
em determinados lugares históricos, sendo assim afetados por eles – o real é afetado
pelo simbólico e este tem uma ligação muito forte com as determinações políticas.
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Sendo assim, a AD acredita que o sujeito discursivo tanto produz quanto assimila
sentidos que tentam realizar processos de subjetivação, de construção de identidade e
consecutivamente, de produção de realidades. As relações travadas pela linguagem são
relações construídas entre sujeitos cujos efeitos de sentidos são estabelecidos entre
locutores (GREGOLIN, 2001, p. 21).
Em seu quadro teórico, nem o discurso é visto como uma liberdade
em ato, totalmente sem condicionantes lingüísticos ou determinações
históricas, nem a língua como totalmente fechada em si mesma, sem
falhas ou equívocos. As sistematicidades linguísticas – que nessa
perspectiva não afastam o semântico como se fosse externo – são as
condições materiais de base sobre as quais se desenvolvem os
processos discursivos. A língua é assim condição de possibilidade do
discurso. (GREGOLIN, 2001, p. 22)
Dessa forma, a AD tece teorias sobre os efeitos de sentido, objetivando
entender como os aparatos simbólicos geram significações, observando, para tanto, os
movimentos de intelecção, assumindo-os como fatos pertencentes ao campo simbólico,
que interferem no “real” do sentido. Não há a procura de um verdadeiro, de uma
verdade oculta atrás do texto. Há gestos de interpretação que o analista, com seu
dispositivo, tem que se tornar pronto a entender. Compreender como algo produz
sentidos. A prática de leitura do analista forma o seu dispositivo de análise.
Feita a análise, e tendo compreendido o processo discursivo, os
resultados vão estar disponíveis para que o analista os interprete de
acordo com os diferentes instrumentais teóricos dos campos
disciplinares nos quais se inscreve e de que partiu. Nesse momento é
crucial a maneira como ele construiu seu dispositivo analítico, pois
depende muito dele o alcance de suas conclusões. (GREGOLIN, 2001,
p. 28)
Historicamente, os sujeitos se filiam uns aos outros através dos processos de
identificação, que são plurais e contraditórios. Um mesmo objeto de análise pode
significar diferentemente em uma mesma língua, bastando para isso, uma mudança de
posição de sujeito, assim, Orlandi versa sobre a tarefa do analista:
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[...] O analista deve poder explicitar os processos de identificação pela
sua análise: falamos a mesma língua mas falamos diferente. Se assim
é, o dispositivo que ele constrói deve ser capaz de mostrar isso, de
lidar com isso. Esse dispositivo deve poder levar em conta ideologia e
inconsciente assim considerados. [...] dizemos que o analista do
discurso [...] não interpreta, ele trabalha (n)os limites da interpretação.
Ele não se coloca fora da história, do simbólico ou da ideologia. Ele se
coloca em uma posição deslocada que lhe permite contemplar o
processo de produção de sentidos em suas condições. [2001, p.61]
Especificamente, o fazer do analista, o nosso método, será baseado nesse
conjunto de regras direcionadas à pesquisa, regras estas que resguardam em si também o
aspecto de ciência, pois para se passar à investigação das práticas discursivas, é
necessário o arcabouço teórico da análise, cujas considerações a respeito do enunciado
são feitas a partir não de abstrações, ou da frase alienada do seu contexto, ou mesmo
focando as estruturas gramaticais de forma autônoma: analisar para nós significa
encarnar o enunciado na história, dando a ele um reflexo contextualizado em sua
ontologia, o enunciado em relação a outros enunciados, que se suportam ou se repelem,
e associamos até mesmo as escolhas gramaticais e lexicais aos discursos que impelem
os signos a se rotacionarem, atravessados pela função enunciativa.
3. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
A partir das considerações feitas por Foucault, pensamos que as relações entre
os indivíduos são estabelecidas, entre outros meios, através dos textos orais e escritos.
Tudo que é dito passa por um agenciamento que resultará num arquivo, uma soma que
recebe o estatuto de verdade. Segundo o teórico francês, o arquivo é um jogo de regras
para que a função enunciativa resulte numa materialidade, e estas regras aparecerem em
determinada época, a saber:
Chamarei de arquivo não a totalidade de textos que foram conservados
por uma civilização, nem o conjunto de traços que puderam ser salvos
de seu desastre, mas o jogo das regras que, numa cultura, determinam
o aparecimento e o desaparecimento de enunciados, sua permanência
e seu apagamento, sua existência paradoxal de acontecimentos e de
coisas. Analisar os fatos de discurso no elemento geral do arquivo é
considerá-los não absolutamente como documentos (de uma
significação escondida ou de uma regra de construção), mas como
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monumentos: é - fora de qualquer metáfora geológica, em nenhum
assinalamento de origem, sem o menor gesto na direção do começo de
uma archê - fazer o que poderíamos chamar, conforme os direitos
lúdicos da etimologia, de alguma coisa como uma arqueologia
(FOUCAULT apud REVEL, 2000 p.18).
À luz da abordagem pós-estruturalista, o arquivo abrange o conjunto dos
discursos que foram transformados em textos dentro de um certo recorte temporal, e que
prosseguem através da história.
Existe um controle que normaliza a produção dos dizeres e que ordena o
verdadeiro e o falso, e esta é cheia de particularidades, por exemplo: o discurso
eugênico1 recebeu o estatuto de verdade nas instituições que o produziram e
reproduziram. Foi usado pelo poder político brasileiro, principalmente na época do
Estado Novo, sendo espalhado com a ajuda das instituições científicas, estatais e da
indústria da comunicação. Ele foi fabricado no seio acadêmico e disseminado através
das grandes instituições políticas (no caso o Estado, a Literatura e alguns meios de
comunicação e propagandas). O cidadão tinha o seu lugar marcado de acordo com a
carga genética que lhe foi atribuída no momento da concepção.
Segundo Hall (2004, p. 13), a identidade é a convicção de pertencimento
construída social e historicamente. Ou seja, pormenores básicos que nos levam a
conduzir nossas condutas de determinada forma, como integrantes de grupos
específicos, não estão descritos em nossos genes, não são biologicamente definidos e
sim historicamente formados.
Fazer parte de um grupo significa adotar certos padrões de comportamento,
além de formar uma imagem de si mesmo e dos outros. Essa adoção de determinados
paradigmas acontece no decorrer da vida do sujeito, através das práticas de
subjetivação/objetivação que citamos na introdução. Baseando-nos no conceito de
comunidade imaginada presente em HALL (1994, pg. 50) acreditamos que uma cultura
nacional é um meio de construção de significados que prepondera sobre nossas ações.
Ser sujeito requer que o indivíduo, apesar de sua autonomia, se identifique, a priori,
com algo mais abrangente: uma nação a que ele reconheça como sua pátria. A nação
1 Segundo o dicionário AULETE: “Diz-se do indivíduo apto a produzir prole forte e saudável.”
Acrescentando :“discurso que se refere à necessidade de que, na sociedade, predominem
indivíduos aptos a produzirem prole forte e saudável, com determinadas características físicas”
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como lar “tem um poder de gerar um sentimento de identidade e lealdade” (SCHWARZ
apud HALL, 2004, p. 48)
Sendo assim, acreditamos nas afirmações desse mesmo autor quando ele afirma
que “uma cultura nacional (...) é uma estrutura de poder (...)”. O poder nos indica que o
Estado também tem uma definição do que é ser sujeito e isso sugere que todos os que
estão dentro dos limites de seu território estão suscetíveis a sofrer as consequências das
práticas de subjetivação que o governo engendra para produzir docilidade, utilidade e
riquezas.
Observando as relações entre o enunciado, o discurso, o arquivo, as vontades
de verdade, vamos descrever como se deu a construção da identidade brasileira,
analisando a ruptura tanto histórica quanto lingüística que diluiu o ufanismo eugênico
em outras formas de racismo e que elevou os estudos das condições do meio ao estatuto
de verdade direcionada ao conhecimento do fato de que muitos dos aspectos
patogênicos do ser humano, outrora atribuídos à etnia, após a ascensão dos estudos
científicos bacteriológicos, foram relacionados às condições de higiene, saneamento
básico, nutrição e até mesmo das informações que as relações sociais podem
proporcionar. Melhor esclarecendo: como um ideal de nação calcado na higiene racial e
no melhoramento genético eugênico racista, pouco a pouco foi cedendo lugar à
necessidade da comunidade imaginada se focar nas particularidades do meio para
fabricação de indivíduos produtivos, a mudança das políticas que o Estado desenvolveu
para os corpos dos cidadãos.
O A PRIORI HISTÓRICO: PRIMÓRDIOS DE UMA CONSTRUÇÃO
IDENTITÁRIA BRASILEIRA: ROMANTISMO UFANISTA, UFANISMO
EUGÊNICO E O NASCIMENTO DO BIOPODER E DA BIOPOLÍTICA – DO
BOM SELVAGEM AO JECA TATU
Segundo Foucault (2000, p. 146), a condição para que enunciados façam
parte de uma determinada realidade, ou seja, recebam o estatuto de verdade, é a vontade
de verdade. Na medida em que ela coage o discurso, fazendo com que ele legitime e
circule saberes que vão conduzir ações, é necessário que nos voltemos para a discussão
dos efeitos de poder: as estratégias de objetivação e dominação abordam as políticas
divisórias, que construíram, primeiramente, o espaço ufanista indianista, o ufanista
eugênico, e posteriormente, o espaço ufanista multiétnico na formação de uma
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identidade brasileira.
No princípio, separa-se o verdadeiro e o falso, depois, o enunciado que recebe
o estatuto de verdade é ligado a efeitos específicos de poder, os quais são representantes
de uma ação política e uma ação econômica, que se materializam nos atos de
linguagem.
No procedimento de criação de uma identidade brasileira, uma das primeiras
a causar amplo efeito adveio da literatura de ficção, em que escritores do Romantismo
do século XVII, como José de Alencar, transformaram o silvícola no símbolo do povo
brasileiro e o fundiram ao conceito rousseauniano do estado de natureza humano,
colocando em destaque o mito do “bom selvagem”.
Euclides da Cunha, na virada do mesmo século, em sua obra OS SERTÕES,
realiza um elaborado trabalho sobre a identidade brasileira na parte do livro que fala
sobre “o homem” enfatizando a interferência do meio sobre o modo de vida, dissertando
sobre a gênese dos mestiços sem preconceito, além de analisar tipos distintos como o
gaúcho e o jagunço. Ao descrever o sertanejo, Euclides exalta a força do mesmo, algo
totalmente diferente do que se verá num discurso que veio posteriormente, oriundo não
do meio da Literatura de prosa, mas do meio acadêmico, um século depois:
Devido a situações econômicas experienciadas no Brasil, já em fins do
século XIX a representação simbólica da totalidade do povo brasileiro
por um segmento étnico singular (o elemento indígena) cai em desuso
no campo intelectual. Não obstante, o componente simbólico da
generosidade será apropriado, de diferentes formas, por inúmeros
escritores, obras e canais de comunicação e do poder, a posteriori
SILVA, 2007, p.03
As novas ordens mundiais que estabeleceram as configurações territoriais, cuja
gênese estava inscrita no período que abarcou as duas Guerras Mundiais, trouxeram um
arranjo de inquietações usuais a todas as sociedades que, sob a influência do
capitalismo, organizavam-se sob a forma do Estado Nacional (SILVA, 2007) e da
comunidade imaginada (HALL, 1994). O historiador Eric Hobsbawn (1996) acredita
que, principalmente, o período entre guerras inscreveu em todo o mundo um novo
nacionalismo que instigou a formação das identidades nacionais e o fortalecimento dos
Estados.
O Brasil não se excluiu desses acontecimentos, e havia uma necessidade
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premente de se lançar os fundamentos da nacionalidade. O aspecto da sociedade
brasileira naquela época era representado pela enorme quantidade de escravos
alforriados, dos índios e dos vários imigrantes e descendentes de colonizadores. Um
padrão multiétnico com uma alta taxa de miscigenação delineava as características
particulares do nosso país. O estudo da genética avançava e o discurso criacionista,
ainda impregnado no meio científico.
Durante a segunda metade do século XIX, viagens eram muito utilizadas para
pesquisadores criacionistas e evolucionistas Para o primeiro caso, temos o exemplo de
Louis Agassiz, que encontrou na Amazônia um bom loco para sua coleta de dados em
interesse da circulação de um tipo de zoologia criacionista que influenciou a América do
Norte a rejeitar os exemplos culturais e étnicos encontrados aqui:
O que à primeira vista logo me impressionou ao ver índios e negros
reunidos foi a diferença marcada que há nas proporções relativas das
diferentes partes do corpo, Como os macacos de braços compridos, os
negros são em geral esguios; têm pernas compridas e tronco
relativamente curto. Os índios, ao contrário, têm as pernas e os braços
curtos e o corpo longo, sua conformação geral é mais atarracada.
Prosseguindo na minha comparação direi que o porte do negro lembra
os Hilobatas esguios e irrequietos, ao passo que o índio tem algo do
orango inativo, lento e pesado.[...] O resultado de ininterruptas
alianças entre mestiços é uma classe de pessoas em que o tipo puro
desapareceu, e com ele todas as qualidades físicas e morais das raças
primitivas, deixando em seu lugar bastardos tão repulsivos quanto os
cães amastinados, que causam horror aos animais da sua própria
espécie, entre os quais não se descobre um único que haja conservado
a inteligência, a nobreza, a afetividade natural que fazem do cão de
pura raça o companheiro e o animal predileto do homem civilizado.
[COLOCAR AQUI A BIBLIOGRAFIA]
Pode-se perceber, nos enunciados proferidos por Agassiz, a extrema tendência
para descrever um homem mestiço zoomorfizado, e a narrativa se utiliza de adjetivos
aviltantes para descrever os indivíduos, e os relatos focam, na maioria das vezes, o
corpo dos criticados. O cientificismo criacionista academicista de Agassiz tem enorme
respaldo nos Estados Unidos.
Na Europa do século 19, as discussões acadêmicas envolvendo a genética e a
evolução das espécies já aplicavam em textos científicos voltados para o estudo da
espécie humana os princípios gerais do darwinismo que estudou a hereditariedade nos
animais.
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Em 1865, poucos anos depois da leitura do livro “A Origem das
Espécies”, escrito por seu primo Charles Darwin, o cientista britânico
Francis Galton publicou dois artigos na Macmillan´s Magazine em
que pretendia provar que a inteligência e as habilidades humanas não
eram funções da educação e do meio, mas sim da hereditariedade.
Quatro anos depois, estes artigos foram expandidos e transformados
no livro “Hereditary Genius” (O Gênio Hereditário), dando origem às
discussões sobre o controle da reprodução human e o papel da seleção
social na preservação das “boas gerações”. Com esta obra, Galton
introduziu um conjunto de idéias que, em 1883, ele denominou de
eugenia, “a ciência da hereditariedade humana”. Suas concepções
eugênicas sobre o melhoramento racial se associaram intimamente às
discussões sobre evolução, seleção natural e social, progresso e
degeneração, conceitos fundamentais que constituíram as idéias
científicas e sociais no final do século XIX (SOUZA, 2006, p.13)
Na primeira metade do século XX, começaram a surgir, tanto na Europa,
quanto nos Estados Unidos as primeiras sociedades eugênicas2, formadas por diversos
grupos entre eles o acadêmico e o judiciário, e que procuravam realizar pesquisas de
forma acadêmica e científica divulgando projetos de engenharia social, políticas e leis
que incentivassem a implantação das idéias eugênicas baseadas no conceito de uma raça
pura (a branca), que traria a cura para as doenças da sociedade como a sífilis, o
alcoolismo, a demência mental através da sua ativa participação no processo
miscigenatório (branqueamento).
Logo, estas idéias chegam também ao Brasil, sendo bem aceitas inclusive por
Getúlio Vargas, admirador de estados totalitários, como o fascista de Mussolini. A busca
de uma identidade nacional baseada numa seleção hereditária pela raça se torna uma
preocupação política, o modelo da miscigenação de preponderância negra e indígena
começa a ser considerado como não adequado, pois derivado de raças consideradas
2 Os eugenistas classificavam as medidas eugênicas como “preventiva”, “positiva” e negativa”.
Conforme a definição de Renato Kehl, a “eugenia preventiva” consistia em combater os
“venenos raciais” responsáveis pela degeneração humana, como o álcool e o tabaco; “fazer a
profilaxia das moléstias epidêmicas e endêmicas”, bem como praticar a higiene e o saneamento
em todos os seus aspectos. A “eugenia positiva” “cuida, por excelência, da boa geração; é
favorável á educação dos jovens no que diz respeito á sua educação sexual (...); se incumbe
também da educação física, do avigoramento pelas regras da boa higiene, dos exercícios bem
compreendidos e praticados”. Por outro lado, a “eugenia negativa” propunha um rigoroso
controle sobre os meios de reprodução humana, proibindo o matrimônio de indivíduos
considerados “inaptos” ou “anormais”; é responsável, ainda, pela formulação de leis que
restrinjam a imigração e que apliquem a esterilização (KEHL, Renato. Sociedade Eugênica de
São Paulo. 1919).
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inferiores, infectas, e vários textos vão se entrecruzar e circular para espalhar a idéia de
ordem e progresso através de um embranquecimento da população, de um novo
conceito para o “ser brasileiro”-, pois as ideias eugênicas reforçavam o aspecto genético
influenciando o corpo, e as patologias (advindas de microorganismos, descobriu-se mais
tarde) nada mais seriam, segundo essa corrente do evolucionismo, os defeitos do corpo
miscigenado, que deveria ser eliminado em nome da purificação de uma configuração
corpórea considerada antiprodutiva, a favor da disseminação étnica de cunho europeu.
Os textos começam a surgir: primeiro nos anais dos congressos eugenistas, depois na
mídia impressa. Jornais e revistas, que se utilizavam das mais diferentes linguagens,
traçavam os perfis ideais e também os arquétipos condenados. A figura do Jeca Tatu,
personagem criado por Monteiro Lobato, está no cerne desse movimento e é, talvez, um
dos emblemas mais fortes deste momento em nossa história. O corpo produtivo é o
corpo embranquecido, livre de todo resquício de miscigenação. E o Brasil deve
transformar seus sujeitos, pois eles são repulsivos, pois produtos do mestiçamento.
Assim, o Estado estatiza o biológico, assumindo para si também as formações
discursivas influenciadoras dos enunciados de Agassiz e Galton. A questão da vida
passa a ser interesse dos governantes, e este tipo de economia de saberes em tornoda
população, denominado por Foucault de biopoder, exibe uma forma de ação que ocorre
através do que o autor caracteriza como biopolítica. Diferentemente do poderdisciplinar,
que age sobre o indivíduo, aquele vai exercer controle sobre a população, o coletivo, e
tornará públicos saberes legitimados pelo discurso médico para criar uma nacionalidade
agenciada pelo dispositivo3 do ufanismo eugênico, assim como:
Ao que essa nova técnica de poder não disciplinar se aplica e -
diferentemente da disciplina, que se dirige ao corpo - à vida dos
homens, ou ainda, se vocês preferirem, ela se dirige não ao homem-
3 O termo "dispositivos" aparece em Foucault nos anos 70 e designa inicialmente os operadores
materiais do poder, isto é, as técnicas, as estratégias e as formas de assujeitamento utilizadas
pelo poder. A partir do momento em que a análise foucaultiana se concentra na questão do
poder, o filósofo insiste sobre a importância de se ocupar não "do edifício jurídico da soberania,
dos aparelhos do Estado, das ideologias que o acompanham", mas dos mecanismos de
dominação: é essa escolha metodológica que engendra a utilização da noção de "dispositivos".
Eles são, por definição, de natureza heterogênea: tratam-se tanto de discursos quanto de
práticas, de instituições quanto de táticas moventes: é assim que Foucault chega a falar, segundo
o caso, de "dispositivos de poder", de "dispositivos de saber", de "dispositivos disciplinares", de
"dispositivos de sexualidade" etc. [REVEL, 2005, p.39]
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corpo, mas ao homem vivo, ao homem ser vivo; no limite, se vocês
quiserem, ao homem-espécie.[...] a nova tecnologia que se instala se
dirige à multiplicidade dos homens, não na medida em que eles se
resumem em corpos, mas na medida em que ela forma, ao contrário,
uma massa global, afetada por processos de conjunto que são próprios
da vida, que são processos como o nascimento, a morte, a produção, a
doença, etc. Logo, depois de uma primeira tomada de poder sobre o
corpo que se fez consoante o modo da individualização, temos uma
segunda tomada de poder que, por sua vez, não é individualizante mas
que é massificante, se vocês quiserem, que se faz em direção não do
homem-corpo, mas do homem-espécie. Depois da anátomo-política do
corpo humano, instaurada no decorrer do século XVIII, vemos
aparecer, no fim do mesmo século, algo que já não é uma anátomo-
política do corpo humano, masque eu chamaria de urna "biopolítica"
da espécie humana. (FOUCAULT, 2005)
Ainda segundo o pensador francês, as noções do evolucionismo que versam
sobre a hierarquia das espécies, luta pela vida e seleção que elimina os menos adaptados
tornaram-se uma espécie de fusão do discurso biológico com o discurso político no caso
da eugenia. Os enunciados cientificamente fundamentados buscavam provar as
discrepâncias entre os indivíduos biologicamente superiores e inferiores e: “a medicina
vai ser uma técnica política de intervenção com efeitos de poder próprios. A medicina é
um saber-poder que incide ao mesmo tempo sobre o corpo individual e sobre a
população, sobre o organismo e sobre os processos biológicos e que vai, portanto, ter
efeitos disciplinares e efeitos regulamentadores” (FOUCAULT, 2005, p. 302).
Os mais contundentes textos que faziam apologia à eugenia entre as décadas de
10 e 30, no Brasil, foram, notadamente, na área científica as publicações do médico
Renato Kehl, e, na área da Literatura e do Jornalismo, os do escritor Monteiro Lobato. A
Sociedade de Controle vai delineando a sua preponderância. Lancemos um olhar em um
trecho de um livro de Kehl:
“Não há solução para os males sociais fora das leis da biologia. Não
há política racional, independente dos princípios biológicos, capaz de
trazer paz e felicidade aos povos. Política econômica, conservadora,
democrática, socialista, fascista, comunista, todas essas políticas e
formas de governo falham se não se inspirarem nos ditames da ciência
da vida. Eis, por que, a política por excelência é a política biológica, a
política com base na eugenia”.(KEHL, 1933, p. 57)
Assim, os conceitos sobre raça e formação de uma identidade nacional
impulsionaram a elaboração do pensamento eugênico no Brasil, considerado uma das
nações mais miscigenadas do mundo. O futuro racial e a formação de uma nova
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identidade do brasileiro se destacam. A ideia do atraso nacional perante os outros países
mais industrializados como Inglaterra e Estados Unidos era atribuída à miscigenação
com raças ditas inferiores e somente uma miscigenação com imigrantes europeus seria o
remédio para evitar o colapso da nação brasileira, pensamento que preenchia o
imaginário ufanista das elites nacionais4. Nas palavras de Souza houve, primeiramente,
uma desaprovação explícita em textos internacionais, que colocava o Brasil numa
situação de desprestígio internacional:
A partir da metade do século XIX, muitos cientistas, viajantes e
intelectuais estrangeiros, apoiados nas teorias científicas e nos
(pre)conceitos raciais, haviam pronunciado diversos veredictos
extremamente desfavoráveis ao futuro do Brasil. Escritores como
Arthur de Gobineau, Louis Couty e Louis Agassis - que estiveram no
Brasil durante a década de 1860 - além do inglês Thomas Buckle,
consideravam o Brasil como um “território vazio” e “pernicioso à
saúde”, enquanto os brasileiros eram vistos como “seres
assustadoramente feios” e “degenerados”. Para estes viajantes, uma
conjunção de fatores climáticos e raciais, sobretudo a “larga
miscigenação”, era mobilizada para explicar a suposta inferioridade
do homem brasileiro e a impossibilidade do Brasil acessar os valores
do “mundo civilizado”. Essas representações negativas sobre a
realidade nacional, quando não influenciaram a opinião dos brasileiros
sobre o seu próprio país, ao menos colocaram em dúvida a viabilidade
do Brasil no cenário internacional. (2006, p.23)
Destarte, o enunciado científico do sertanejo como um tipo inferior e inapto vai
ser elevado ao estatuto de verdade pela elite intelectual e transmitido por grandes
veículos de comunicação de massa nacionais e famosos escritores. Jornais como O
Estado de São Paulo, Correio Paulistano, Jornal do Comércio, além da Revista Brazil-
Médico e da Revista do Brasil publicaram ampla propaganda, pareceres e notas sobre a
fundação da Sociedade Eugênica, difundindo a eugenia entre o público bem como
prestando informações sobre as suas ocupações. O Jornal O Estado de São Paulo deu
4 Neste período, o sistema republicano brasileiro estava dominado por amplas oligarquias
regionais que administravam o Estado a partir de relações políticas corruptas, como o
coronelismo, o mandonismo e o clientelismo. De acordo com José Murilo de Carvalho, pelo
menos até o final da Primeira Guerra Mundial, o sistema republicano brasileiro não fez nenhum
esforço para incorporar a grande maioria da população, em especial os negros, mestiços e
sertanejos. Para esse autor, a própria ideia de povo era puramente abstrata e, devido a falta de
direitos que garantissem a cidadania, o próprio povo era, em sua grande maioria, hostil ou
totalmente indiferente ao sistema republicano (CARVALHO,1998, p. 120)
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um enorme apoio ao movimento eugenista em São Paulo, principalmente para os
membros da Sociedade Eugênica, tendo em vista que Julio de Mesquita, diretor e
proprietário do referido jornal, era casado com a filha de Arnaldo Vieira de Carvalho,
presidente da Sociedade, o que teria possibilitado o estreito contato entre estas
instituições (DIWAN, 2003, p. 39).
Além de publicações como a Revista do Brasil5, temos, como já foi dito, ícones
da Literatura Brasileira apoiando a eugenia, como Monteiro Lobato, que lança, em
1914, Revista Brazil Médico o personagem Jeca Tatu, num artigo intitulado “Velha
praga”. O personagem é um sertanejo preguiçoso, indolente, um trabalhador rural inapto
a ser inserido na “civilização”, tal qual o Brasil era inapto a ser aceito em uma
comunidade internacional. É uma alegoria da preocupação das elites com o povo
brasileiro.
Porém, muitos estudiosos do tema eugenia discordavam de alguns princípios da
hereditariedade na formação da identidade, atribuindo à pobreza do meio e à falta de
condições sanitárias básicas, as mazelas da sociedade nacional. O avanço das pesquisas
bacteriológicas influenciou muito na mudança de posicionamento de muitos
intelectuais:
“Se, até então, a mestiçagem e o clima eram vistos como as principais
causas da degeneração racial, a ciência demonstrava, agora, que o
atraso do país estaria relacionado às doenças e à falta de saneamento.
De uma interpretação determinista sobre os problemas sociais, a
ciência abriria caminho para uma interpretação médico-sanitarista.”
(SOUZA, 2006, p.28)
É sob essa nova verdade do saber científico que Monteiro Lobato redime Jeca
Tatu de sua culpa pelo seu fracasso e fracasso da nação, analisando o quanto as
condições do meio perenizam o seu sofrimento e as suas precárias condições de vida.
Construindo novos enunciados, ele cria uma verdade resultante do abrandamento do
discurso eugênico na sua fusão com o discurso ufanista:
5 Através das páginas da Revista do Brasil, Coelho-Neto ressaltava a importância da propaganda
que as autoridades médicas de São Paulo vinham fazendo em torno da Sociedade Eugênica de
São Paulo: “realizando conferências, espalhando Boletins, pregando, demonstrando, vai
conseguindo realizar, ainda que lentamente, a obra filantrópica da regeneração do homem, para
cuidar, em seguida, do aperfeiçoamento da espécie” [SOUZA, 2006, p. 35]
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A nossa gente rural possui ótimas qualidades de resistência e
adaptação. É boa por índole, meiga e dócil. O pobre caipira é
positivamente um homem como o italiano, o português, o espanhol.
Mas é um homem em estado latente. Possui dentro de si grande
riqueza em forças. Mas força em estado de possibilidade. E é assim
porque está amarrado pela ignorância e falta de assistência às terríveis
endemias que lhe depauperam o sangue, caquetizam o corpo e
atrofiam o espírito. O caipira não é assim. Está assim. Curado,
recuperará o lugar a que faz jus no concerto etnológico.(LOBATO,
1918, p. 34)
Podemos perceber que havia um mosaico de ideias que se misturavam tentando
reconstruir a identidade nacional através do reconhecimento de que os problemas do
Brasil poderiam ser mitigados. A inferioridade do homem brasileiro pregada pelos
eugenistas mais radicais deu lugar a uma discussão sobre o meio na qual este era
mostrado como um ambiente inóspito e letal pelas suas parcas condições de higiene e
pela falta de interesse, das oligarquias, de inserir os excluídos como os índios e os
negros socialmente dando-lhes condições dignas de sobrevivência. Os sanitaristas
tentaram reverter estes efeitos de poder por meio dos estudos bacteriológicos, que
versavam ser a saúde debilitada do brasileiro uma decorrência não da hereditariedade,
mas de microorganismos presentes no meio. O biopoder pouco a pouco vai modificando
seus enunciados. Também havia uma asserção de que o cruzamento racial feito com
imigrantes europeus era um processo totalmente eugênico pelo fato da freqüência racial
branca ser maior. A construção de enunciados que faziam apologia à miscigenação com
imigrantes fortes (de descendência européia) era considerada como de cunho eugênico e
fator preponderante para a formação de uma nova identidade. Como vemos, esta
formação discursiva em torno da questão identitária nacional carrega elementos
contraditórios, que se contradizem e refutam um ao outro (CLEUDEMAR, 2005,
p.49s). Desaparece o Jeca Tatu fraco e doente.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
No expoente eugênico negativo, podemos depreender efeitos de sentido que
versam a respeito da criação, pelas elites, de uma nova identidade brasileira,
etnicamente moldada, de um novo ideal de corpo nacional, expurgado dos traços
genéticos das etnias qualificadas pelas formações discursivas eugênicas como passíveis
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de serem eliminadas através de um controle legitimado pelo Estado o qual criou o
estímulo à imigração estrangeira européia, e a proibição do casamento de indivíduos
miscigenados: o enunciado científico é basal para o surgimento de um enunciado
jurídico que regulamenta como o Estado pode interferir agindo no corpo, na sexualidade
do indivíduo, proibindo-o de manter relações e assim de gerar descendentes que
porventura possam espalhar as “degenerescências da raça”, a biopolítica se
insinuando estabelece a eugenia como a verdade. Seja ela alinhada a um discurso
criacionista ou evolucionista, o corpo miscigenado, objeto cultural, produto de
interações étnicas, corre o risco de ser eliminado pelas verdades que o combatem. A
ciência, através de seus enunciados, pretende determinar que corpo vai desaparecer e
que corpo vai difundir-se.
O corpo como objeto de preocupação do Estado pode ser considerado também
um operador material do poder, isto é, um dispositivo, pois através dele, o Estado opera
através do corpo do homem negro ou miscigenado, o corpo dito enfermo, doente, por
causa das suas atribuições genéticas. Construindo uma verdade sobre um miscigenado
doente:
Dizer “corpo enfermo”tem só a aparência de uma expressão clara.
Trata-se simplesmente do corpo que, na visibilidade, acha-se
deformado, estragado, diminuído e, por isso, vulnerável, mais fraco
que a maioria dos outros? [...] se, no empírico, há corpos contrafeitos,
ou tornados “malfeitos”, há sempre, ao mesmo tempo, uma maneira,
segundo as épocas, de elaborá-los, no imaginário ou no racional. Não
escaparemos do “construído social”. Por ser sem dúvida uma
banalidade, esta observação toma uma importância considerável num
domínio em que uma de suas originalidades é engendrar medos,
fascinações, ou rejeições particulares. O simbólico, no sentido de
Marcel Mauss, é indissociável do empírico e do “tratamento
social”STIKER, 2005, p. 347
As formações discursivas que acabamos de analisar ligam o homem mestiço a
dois tipos de conceito: o de degenerescência e o de improdutividade. A verdade
resultante é a de abrir o país à imigração européia, evitar a mescla étnica com “raças
inferiores”, criar mecanismos de embranquecimento da população, e os enunciados
tendem ao xenofóbico, arianamente favorável: “ Ninguém poderá negar que no correr
dos anos desaparecerão os negros e os índios das nossas plagas assim como os produtos
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resultantes desta mestiçagem. A nacionalidade embranquecerá à custa de muito sabão de
coco ariano” (KEHL, ANO, p.241). Note que o eugenista não quer apenas o
embranquecimento genético, mas o de toda uma nacionalidade, ou seja, pretende-se
delegar também toda uma memória identitária à exclusão, ao esquecimento:
Se no Brasil pelo caldeamento de sangue resultarmos mestiços acima
referidos, e se estes, com o continuar do mesmo, tendem,
progressivamente, a desaparecer, é porque a raça branca, sendo
superior, prevalece sobre a inferior. Não discutamos se o ponto de
vista dessa superioridade é simplesmente social, segundo a opinião de
Alberto Torres, ou étnica. Comprovado está que os mesmos são
inferiores, representando produtos quase híbridos, faltando-lhes,
apenas, a infecundidade, para receberem essa designação integral. O
mestiço representa o produto de fusão de duas energias hereditárias
diversas, quase antagônicas, fusão de cromossomos quase
irreconciliáveis e que só a benevolência da natureza permitiu se
associarem (KEHL, 1935, p. 242)
A corporeidade é dividida em ariano saudável/mestiço ou outra etnia
degenerada e enferma, através dessas vontades de verdade que surgiram através das
organizações políticas e das relações de poder. O arquivo da época bebe sequiosamente
das fontes xenofóbicas, racistas, eugênicas, erigidas, simultaneamente ou não, em
diversos lugares, em diferentes posições de sujeito e condições de produção. Sem o
conceito de degenerescência, não é possível trabalhar uma sensação de reconstrução
nacional: eliminando o degenerado, teremos um país composto de sujeitos saudáveis,
produtivos.
A existência dos degenerados é um postulado de base, nunca criticado.
A partir daqueles que são chamados de cretinos, indivíduos deficientes
no plano tiroidal e mais frequentemente escrofulosos, ou em casos de
grande doença psíquica e de retardamento intelectual, Morel impôs a
categoria de “degenerado” como uma categoria psiquiátrica genérica.
Esta construção da categoria, muito aleatória, só tem sido possível
porque tinha uma função mais geral do que elaborar a clínica. Convém
notar a sua conivência com os temas novos da evolução das espécies
e da hereditariedade. Se, de acordo com Morel, admitem-se as teorias
criacionistas e se se refere a um “tipo primitivo” quase perfeito,
chega-se à ideia de uma degenerescência possível da espécie: os
degenerados são sinais perigosos disso; além disso, se tem tendência a
pensar, o etnocentrismo obriga, que o tipo perfeito é o homem branco,
e a procurar os tipos degenerados no resto da humanidade. Assim se
faz a ligação entre degenerados e negros, por exemplo. A conclusão é
mais ou menos a mesma se se admitir a evolução sem ideia
criacionista. Aqui se trata de uma degenerescência na espécie: certos
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indivíduos ou grupos humanos a representam; o conluio entre certas
raças e certas afecções ocorre igualmente. Aqui a hereditariedade
desempenha um papel importante. A degenerescência na espécie
implica que se busquem as suas raízes: a hereditariedade oferece a
solução. Hereditariedade que é menos vista como ligada a um dado
biológico (as ideias de Mendel não penetraram ainda verdadeiramente
os meios científicos e menos ainda as mentalidades) do que como
transmissão de taras resultantes de certas circunstâncias dos meios de
vida. Meios físicos, certamente, mas também ambientes sociais. O
alcoolismo é o tipo disso: nos ambientes pobres se bebe, se transmite a
tara aos filhos, isso provoca degenerescências. Desta maneira se pode
ver com bastante clareza o paralelismo entre essa concepção e o que
se disse em outro lugar das “classes laboriosas, classes perigosas”. A
degenerescência permite assim pensar a criminalidade. Os bandidos e
os criminosos saíram da categoria dos degenerados, assim como os
degenerados são o viveiro da criminalidade. O degenerado é a
concentração de todas as taras; e estas estão sempre inseridas no corpo
(STIKER, 2005, p.367).
Então o arquivo levanta até os vocábulos a serem utilizados: o degenerado, o
símio, o repulsivo bastardo. O entendimento de que estas palavras estão sempre ligadas
a uma falha genética, a um desvio de gênese, de cruzamento humano é a verdade
estabelecida. Assim, o enunciado científico do sertanejo como um tipo inferior e inapto
vai ser elevado ao estatuto de verdade pela elite intelectual e transmitido por grandes
veículos de comunicação de massa nacionais e famosos escritores.
O personagem é um sertanejo (um caboclo, um fruto da miscigenação)
preguiçoso, indolente, um trabalhador rural inapto a ser inserido na “civilização”, tal
qual o Brasil era inapto a ser aceito em uma comunidade internacional. É uma alegoria
da preocupação das elites com o povo brasileiro. A figura abaixo, encontrada na Revista
do Brazil retrata, com traços de símio, a infeliz figura:
Revista do Brazil, 1917, pág 26.
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No diálogo travado entre Ruy Barbosa e Jeca, este diz que está com fome mas
não quer ir pegar o prato para que a eminência lhe dê comida. Minimizando o problema
da fome, um dos efeitos de sentido que se pode depreender é que se este brasileiro sente
falta de gêneros alimentícios para comer, é porque está com preguiça de fazer o mínimo
esforço. E a preguiça, segundo as teorias eugênicas, era uma característica genética
própria das raças infectas. A identidade do brasileiro, miscigenado, está condicionada à
indolência.
A cura para os males do Jeca Tatu não serão resumidas no embranquecimento,
mas no tratamento e na modificação dos hábitos do homem do campo. Estado e
corporações farmacêuticas se unem para construir um Brasil para se orgulhar:
Podemos perceber a emergência de outras formações discursivas.Pelo seu
status de autoridade suprema, o eugenismo, e o Estado Novo exerceram o paroxismo do
Biopoder (FOUCAULT, 2002, p. 302) que é o poder de assegurar a vida, mas que no
seu auge, é “uma maneira de defasar, no interior da população, uns grupos em relação a
outros” fazendo uns viverem pela morte de outrem. Assim, justificando essas práticas
por meio do discurso científico a eugenia conseguiu ativar, em certos grupos, o apoio a
ela. O importante era fazer a carga genética “infecta” desaparecer e deixar o ariano
viver, sendo que o racismo inculcado no ideário do cidadão comum era uma das
premissas para o apoio às práticas de proibição matrimonial. Nas palavras de Foucault:
“vai aparecer nesse momento, a ideia de uma guerra interna como defesa da sociedade
contra os perigos que nascem em seu próprio corpo e do seu próprio corpo” É claro que
há resistências, é claro que o governo nunca atingirá a totalidade de seus cidadãos, é
claro que as verdades mudam de acordo com os arquivos, com as vontades de verdade
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de uma época, algo que Nietzsche já previa:
Uma sociedade não tem o direito de permanecer jovem. Até no seu
apogeu, ela expele excrescências e detritos. Quanto mais progride em
audácia e energia, mais se torna rica em descontentes, em deformados,
mais se aproxima de sua queda...Não se suprime a velhice pelas
instituições. Nem a doença. Nem muito menos o vício. (NIETZSCHE,
1996, p.30)
Desse modo, podemos concluir que a tentativa de subjetivação, que ocorre por
princípios excludentes e controladores, nunca será eficaz em sua totalidade. O ser
humano resiste.
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