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A ARTE DE ENVELHECER COM SAÚDE INTEGRAL E PAZ INTERIOR: INTRODUÇÃO À GERONTAGOGIA HOLONÔMICA EDUCAÇÃO E ESPIRITUALIDADE

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A ARTE DE ENVELHECER COM

SAÚDE INTEGRAL E PAZ INTERIOR:INTRODUÇÃO À

GERONTAGOGIA HOLONÔMICA

EDUCAÇÃO E ESPIRITUALIDADE

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ADILSON MARQUES

2011

A ARTE DE ENVELHECER COM

SAÚDE INTEGRAL E PAZ INTERIOR:INTRODUÇÃO À

GERONTAGOGIA HOLONÔMICA

EDUCAÇÃO E ESPIRITUALIDADE

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© do autor – 2011

Direitos reservados desta ediçãoRiMa Editora

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www.homospiritualis.org

M357g

Marques, Adilson

Gênero e espiritualidadeimagens e do imaginário do invisível Carlos: RiMa Editora, 201 88 p. ISBN – 978-85-7656

1. Espiritualidade3. HomossexualidadeII. Autor.

a

:A arte de envelhecer com saúde integral e paz interior:

introdução à gerontagogia holonômica / Adilson Marques –São Carlos: RiMa Editora, 2011

16-0

1. Envelhecimento. 2. Terceira idade. 3. Gerontagogia.4. Espiritualidade. 5. Cultura de paz. I. Títuto. II. Autor.

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Dedicado aos alunos da UATI e a todos quedespertaram meu amor e interesse no

estudo do envelhecimento humano.

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SUMÁRIO

Apresentação......................................................................9

Envelhecimento e Individuação ..................................... 11

A cidade e o idoso .......................................................... 33

Envelhecimento e Espiritualidade: para além daconsciência da finitude ............................................... 47

Mediunidade na terceira idade ...................................... 64

Do estatuto do idoso à celebração da vida .................... 73

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APRESENTAÇÃO

Este livro reúne conferências e palestras apresentadasem diferentes eventos, ao longo dos últimos anos. Em 2011,completo 15 anos de experiência com a Gerontagogia, a edu-cação de pessoas idosas. Os primeiros contatos com a tercei-ra idade começaram no SESC, quando atuei como anima-dor cultural. O encanto por esses atores sociais me levou afazer um doutorado em Educação, cuja tese se chamou:“Nossas lembranças mais pessoais podem vir morar aqui:sociagogia do (re)envolvimento e anima-ação cultural”.

Assim que defendi a tese, em maio de 2003, deparei-mecom um concurso público para lecionar na UniversidadeAberta da Terceira Idade (UATI), um projeto da prefeituramunicipal de São Carlos. Fiz a inscrição no último dia e, fe-lizmente, consegui a vaga para iniciar uma nova experiênciacom idosos, em agosto daquele ano, ministrando uma disci-plina chamada “Cultura e Memória”. Com o passar dos anos,fui introduzindo outras disciplinas e oficinas, entre elas, “Cri-ação de Textos Literários”, “Meditação Integrativa”, “Tera-pias Alternativas para a Terceira Idade”, “Identificando Plan-tas Medicinais” etc.

Buscando sempre articular teoria e prática, refletindo so-bre o processo gerontagógico de forma criativa, processual einterativa, e sempre que possível, participando de eventos sobreo tema, elaborei alguns documentos sobre a educação de pesso-as idosas que, mesmo não tendo o rigor de uma pesquisa acadê-mica, abordam o universo da terceira idade com profundidade.

Acreditando que estes estudos possam ser de interessedos próprios idosos e de quem atua profissionalmente compessoas desta faixa-etária, resolvi revisar alguns destes do-cumentos, os que eu considerei mais significativos, e reuni-los em um livro, contribuindo modestamente para se pensara Gerontagogia no Brasil.

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O primeiro texto, Envelhecimento e Individuação, foiapresentado em agosto de 2011 no II Colóquio Internacionaldo Imaginário, realizado na cidade de Natal/RN, evento orga-nizado pela Universidade Estadual do Rio Grande do Norteem parceria com outras instituições de ensino. Nele, procurorefletir sobre a individuação na pessoa idosa e como a criaçãode textos pode ser uma ferramenta útil neste processo.

O segundo, chamado “A Cidade e o Idoso”, foi apresen-tado no SESC São Carlos, em 2010, em um evento para aterceira idade, e discute o imaginário do idoso e a constru-ção do sentimento topofílico, ou seja, a constituição dos ter-ritórios de vida cotidiana ou espaços afetivos, buscando com-preender a dimensão arquetípica do envelhecimento e o pa-pel da cidade neste processo.

O terceiro artigo é a transcrição de uma palestra reali-zada na Fundação Educacional São Carlos, em 2004, e de-nominada Envelhecimento e Espiritualidade. Tratou-se deum evento para cuidadores de idosos e fui convidado paraabordar a dimensão espiritual do envelhecimento. O quartoé uma reelaboração do paper que apresentei no XI FórumNacional de Coordenadores de Projetos da Terceira Idadede Instituições de Ensino Superior, em Recife, no ano de 2009,chamado “A mediunidade na terceira idade”, onde procurocompreender a emergência espiritual de pessoas que desco-brem que são médiuns após completarem 60 anos de idade.

Por fim, apresento o texto encaminhado para divulga-ção da oficina “Do estatuto do idoso à celebração da vida”,que ministrei, em 2009, no evento internacional chamado“A hora dos direitos humanos na educação”, realizado naUNESP de Araraquara.

Estes textos demonstram o que venho chamando deGerontagogia holonômica, onde a dimensão espiritual e a energé-tica da mente e das emoções são fatores que devem ser leva-dos em consideração ao se pensar o processo de envelheci-mento e a descoberta da consciência da (in)finitude.

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ENVELHECIMENTO E

INDIVIDUAÇÃO

Nunca o envelhecimento ganhou tanto destaque comonas últimas décadas. O aumento da expectativa de vida pos-sibilitou o surgimento de um novo consumidor exigente: oidoso. Para melhor atendê-lo, novos campos de trabalho sãocriados, como é o caso da Gerontologia, e uma infinidade deserviços, sobretudo no campo do lazer, oferece opções de usoe ocupação do tempo livre para essa parcela da população.

Porém, pouca preocupação existe em relação ao proces-so de individuação vivenciado pela pessoa idosa. Aindividuação é um conceito básico da psicologia analíticaproposta por Carl Gustav Jung, e está relacionada com aauto-realização do ser humano, integrando sua personalida-de (ego) ao Self, sua essência anímica.

Jung utilizou pinturas criadas por seus pacientes pararealizar seus estudos. Particularmente, desde 2003, utilizoem minhas pesquisas a criação de textos ficcionais ou auto-biográficos para dar valor à imaginação ativa e colocar apessoa em contato com os estágios importantes de sua vida;e também utilizo técnicas de meditação integrativa ebionergética para valorizar o autoconhecimento e possibili-tar mais estabilidade emocional e psíquica ao idoso.

Através destas práticas de anima-ação cultural já é pos-sível notar que muitos idosos conseguem se libertar de pen-samentos e lembranças negativas ou autodestruidoras e ini-ciam uma nova fase em suas vidas, muito mais rica de signi-ficados e plenitude existencial.

Podemos dizer que a arte de escrever ajuda na organi-zação dos pensamentos e na revisão da própria experiência

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de vida enquanto a meditação, com seu fundamentopsicossomático, favorece o autoconhecimento e a revita-lização da mente e, como conseqüência, mais equilíbrio esaúde física. Enfim, podemos dizer que cada poema ou con-to escrito é um tumor a menos no corpo físico, assim comocada lágrima, bocejo ou salivação produzida pela meditaçãodiminui a probabilidade de artroses, pressão alta e tantasoutras doenças consideradas como crônicas e típicas da ter-ceira idade.

Infelizmente, muitas pesquisas no âmbito da Geron-tologia ainda se baseiam em uma filosofia positivista. Ape-sar de importantes, tais pesquisas ainda se prendem à mani-pulação quantitativa e “objetiva” de seu objeto de estudo: oidoso. Ainda carecemos de uma reflexão sobre a dimensãosubjetiva do envelhecimento. Neste contexto o idoso não podeser visto como objeto, mas, sobretudo, como sujeito. E, comotal, confuso, indefinido e que não obedece a um padrão decomportamento e de valores imposto socialmente.

Mesmo que modestamente, pretendo com esta confe-rência ajudar nesta reflexão sobre a dimensão subjetiva doenvelhecimento. Assim, primeiramente, falarei sobre o quedenomino como anima-ação cultural e, em seguida, apresen-tarei uma interpretação arquetípica de alguns dos textos cri-ados pelos alunos da Universidade Aberta da Terceira Ida-de, na cidade de São Carlos/SP, entre os anos de 2008 e 2011,na disciplina Criação de Textos, por mim ministrada. Elesnos dão uma mostra de como o exterior e o interior se inte-gram na mente criativa do idoso e nos ajuda a compreenderque o mundo feito de medidas e demarcações estanques so-bre o envelhecimento serve apenas para pesquisas padroni-zadas sobre o tema, uma vez que a individuação caminhapor dimensões mais abrangentes e holísticas, onde o físico, opsíquico e o social manifestam vínculos entre si, mas que sãointegrados distintamente pelo Self de cada espíritohumanizado.

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Assim, enquanto o idoso cria personagens, diálogos etc.,ele projeta sua própria experiência de vida na personagemde ficção. E tal processo favorece o chamado “processo deindividuação”, uma vez que, ao escrever ou mesmo narrarexperiências de vida, novos universos simbólicos vem à tonae o processo gerontagógico se torna mais rico com a manifes-tação de imagens e arquétipos que vão ganhando forma du-rante as narrativas. Esta possibilidade de refletir ludicamentesobre a própria experiência de vida propicia o autoconhe-cimento e cria condições mais favoráveis para a realizaçãodo Self (Eu profundo).

Não é à toa, por exemplo, que as práticas educativas doOriente valorizam tanto as narrativas e a contação de histó-rias, pois elas possuem um caráter transformador, integran-do o campo do consciente (elemento de diferenciação indivi-dual) e do inconsciente (campo da união cósmica). Além dis-so, estimulam a memória, o raciocínio e a criatividade, tãonecessários como a atividade física ou uma alimentação maissaudável nesta etapa da existência humanizada.

O ato de escrever e de narrar um texto é um dos maissignificativos recursos em qualquer trabalho de anima-açãocultural, que seria, conforme apresentei em minha tese dedoutorado, defendida em maio de 2003, na FEUSP, um pro-grama sócio-cultural voltado para o autoconhecimento e paraa realização do Self, partindo da experiência de vida parachegar à consciência da (in)finitude.

A anima-ação cultural e o (re)envolvimento humano:em busca da alma hermesiana

"O mundo de Hermes não é de modo algum um mundoheróico. (...) Sua essência possui a liberdade, a amplidãoe o fulgor por meio dos quais reconhecemos o reino deZeus." Walter F. Otto In Rafael LÓPEZPEDRAZA. Hermese seus filhos. São Paulo: Paullus, 1999, p. 150.

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A Ação Cultural pode ser tanto um campo de atuaçãovoluntária como profissional, porém, sua praxis atinge, namaioria das vezes, um determinado público em um momen-to específico de sua vida cotidiana: aquele em que não seencontra trabalhando. É no tempo do “ócio” que a AçãoCultural, em um sentido hermesiano, consegue se manifes-tar de uma forma plena.

E como afirma Beatriz FÉTIZON, em seu livro Sombrae Luz (2002:216):

Ócio não significa não fazer nada – no sentido de estar inativo.Inativo não é o ocioso – é o morto. Não agir é não viver. Estarocioso é afirmar-se desobrigado do agir compulsório, heterônomo,heterodeterminado. É por isso que o ócio é humano: ele é violador.Então, por ser violador, é humano e enquanto humano, é cria-dor. Mesmo quando não é criativo. A condição de criador é daordem das potencialidades e a distância que vai do criador àefetividade da criação pode ser, às vezes, a mesma que medeiaentre o pertencer à humanidade e ser um infra-homem – ou seja,pertencer à humanidade e não ser autoconstruído plenamentehumano. Se, no desfrute do ócio, meditamos ou nos divertimos,ou se fazemos ambas as coisas porque o deleite de nosso meditarnos divirta, pouco importa. O importante é rompermos com oimposto, violarmos a imposição, a norma, o dado. Humano por-que violador; e criador porque humano. Exercemos, pois, a hu-manidade, no ócio – e na humanidade conferimos dignidade aotrabalho, subproduto do ócio e a ele subordinado.

A expressão Ócio representava na Antigüidade um va-lor indispensável para a vida livre e feliz. Era o ócio que per-mitia o cultivo do espírito. O trabalho, ao contrário, era umaforma de punição aos escravos e uma desonra para os ho-mens livres pobres.

As expressões ergon (em grego) e opus (em latim), muitasvezes traduzidas como trabalho, representavam, na Anti-güidade, as obras produzidas e não a atividade de produzi-

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las. Acredita-se que a palavra latina que originou o vocábu-lo trabalho foi tripalium, uma espécie de instrumento usadopara empalar escravos rebeldes e derivada de palus, um tipode poste onde se empalavam os condenados.

O ócio, portanto, não é negativo em si mesmo, comomuitas vezes acreditamos, mas uma possibilidade para a re-alização do ser humano como “neótono neg-entrópico”, ouseja, como um ser aberto para o mundo, lúdico-explorador,permanentemente incompleto e inacabado, um ser do peri-go, do risco e da desordem, remetendo ao que vou chamarde Homo spiritualis, portanto, à liberdade, ao princípio doprazer e aos mitos “noturnos” como Dioniso e Orfeu, porexemplo, que são mitos extáticos e religiosos, mas também,trágicos, uma vez que, nossas atitudes são condicionadaspelas estruturas do imaginário e por nossos fantasmas, emsentido psicanalítico.

Nesse sentido, vamos definir ócio como o tempo vividoem que o humor, o prazer, a contemplação etc. são fruídossem outra finalidade a não ser a satisfação experimentadanaquele momento. Ocorre quando experimentamos um “es-tado de espírito” livre de prometeísmos. Ou seja, livre davontade de querer conhecer, conquistar, controlar, permi-tindo-se uma abertura à faticidade do imponderável, do in-compreensível, do inefável, do sensível. Em suma, sua ocor-rência se dá quando há o predomínio da razão simbólicasobre a razão instrumental; ou quando há uma autogestãodo tempo vivido sem uma lógica de utilidade.

O ócio, podemos dizer, é regido por Ananke, a forçactônica que ajuda Zeus a governar o mundo e que é a únicadeusa sem altar ou imagem a que se possa rezar. ParaPLATÃO, Ananke e Nous (que seria o logos, o princípio inte-lectual) são os dois princípios fundamentais (arquétipos). E,ao contrário de Nous, Ananke possibilita o indeterminado, oinconstante, o anômalo, aquilo que não pode ser entendido

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nem predito. Para Platão, trata-se de uma força criadora,uma "causa errante".

E no processo de individuação podemos dizer que essadimensão arquetípica também está presente, sendo Nous(mente/razão) e Ananke (corpo/emoção) as polaridades com-plementares que devem ser integradas para não sofrermos a"síndrome de Orestes", ou seja, de termos a alma dilaceradaentre os dois arquétipos primordiais.

Nesse sentido, ao propor o termo anima-ação cultural,procuro valorizar o prefixo anima - que na psicologia analíti-ca de Jung tem uma conotação peculiar, referindo-se ao prin-cípio feminino no homem – para definir um programa deação cultural ou uma inter(in)venção em um grupo humanoem que a sensibilidade e a espiritualidade são seus“catalisadores”.

Nesse contexto, o animagogo deve possuir uma almafratriarcal capaz de criar as condições para que o grupo (cri-anças, idosos, adolescentes etc.) possa realizar os seus pró-prios sonhos através de projetos culturais, transformando,assim, o que seria uma mera intervenção sobre um grupo,em uma inter(in)venção com o grupo. Essa alma é diferente,portanto, da prometéica que caracteriza ainda hoje o pro-cesso educativo formal e algumas práticas de Ação Culturalem que predomina a figura de um “herói”, normalmentecentralizador e autoritário, mais preocupado em alimentaro próprio ego do que em disseminar “cultura”.

É importante salientar que ao problematizar a posturaracionalista acima, não estou negando a necessidade de pro-jetos. A diretividade presente em um projeto não tolhe a cri-ação – um elemento importante em qualquer programa deação cultural -, pois não estabelece como deve ser o “produ-to final”, nem coloca em formas rígidas o processo criativo; odirigismo, ao contrário, anula-o totalmente.

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De forma resumida, podemos encontrar na práxis daanima-ação cultural os seguintes mitos diretores: Orfeu,Perséfone, Dioniso, Kairós, Hades, Hermes, entre outros. Aestrutura de imaginário predominante aqui é antifrásica ou“noturna”, usando a nomenclatura de Gilbert Durand. Nela,há o predomínio da neg-entropia em seu funcionamento euma forte vinculação com a idéia de não-intervenção sobregrupos. Porém, a anima-ação cultural apresenta tambémuma relação com as imagens crepusculares, expandindo asensibilidade para com o outro e com a alma. Em sua dimen-são crepuscular, as atividades que normalmente compõemum programa de anima-ação cultural são aquelas que possi-bilitam uma ponte entre a luz e a sombra ou entre a vigília eo repouso. Sua característica transicional favorece a amiza-de e a cooperação.

Assim, é importante salientar que a anima-ação cultu-ral, pelo menos do ponto de vista aqui discutido, implica emum religare, mas não, necessariamente, enquanto uma reli-gião. Nessa dimensão psíquica, a questão do feminino e docorpo, ou seja, o aspecto sombrio e ctônico que a imaginaçãodiurna procura combater, se integra ao seu oposto, às ima-gens esquizomóficas e heróicas. Assim, a anima-ação cultu-ral se realiza, normalmente, através de atividades deintroversão ou de atividades que apresentam forte homologiacom a Alquimia ou que nos faz reconhecer que é através denós, mas não a partir de nós (ou seja, de dentro da persona-lidade, mas não a partir do ego) que encontramos tudo oque necessitamos, mas que, por não termos consciência des-se fato, procuramos, desesperadamente, do lado de fora.

As atividades que compõe um programa de anima-açãocultural têm como função fazer brilhar dentro de nós, aindaque, tenuamente, a Vida e a Luz, porém, uma Luz que nãoemana de nós (em outras palavras, do ego), mas que, no en-tanto, está dentro de nós. A anima-ação cultural vem aoencontro da crítica junguiana ao cristianismo oficial de sua

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época, pois acentua a idéia de que todo ser humano abrigano mais fundo de sua psique (no Self) uma centelha divina,uma parte da Divindade. Assim, não haveria necessidade decorrer atrás de Deus, pois Ele já se encontra dentro de nós.

Na anima-ação cultural, seja ela hermesiana, dionisíacaou pânica, aproximamo-nos do que HEIDEGGER chamoude Arte Poemática, em suma, temos a revalorização fáticada Arte e também do mitologizar que, para a razão, comonos lembra JUNG, é uma especulação estéril, porém, para ocoração e para a sensibilidade é uma atividade vital e salu-tar que confere à existência um brilho ao qual não se quere-ria renunciar.

Buscando concluir essa reflexão, podemos dizer que aanima-ação cultural busca valorizar a neg-entropia e, doponto de vista hermenêutico, a dimensão simbólica de cadagrupo. O processo de criação tende também a promover adimensão “fática” da existência, o que significa valorizar alémdas preocupações com o conteúdo, seja este “crítico”,“civilizador”, “revolucionário” etc., o ser humano, o afetuale a interação social. Assim, pode-se dizer que a anima-açãocultural é, sobretudo, uma inter(in)venção cultural voltadapara o processo de (re)envolvimento humano, após tantasdécadas pautadas pelo (des)envolvimento do ser humanoem relação ao outro, à natureza e à sua própria alma.

E um dos motivos que leva uma pessoa idosa a se socia-lizar através de grupos para a terceira idade é a necessidadede recuperar sua auto-estima, abalada pela aposentadoria,morte do cônjuge, abandono por parte da família etc. E asatividades que vou apresentar nesta conferência vêm semostrando de grande valia neste processo.

A produção de textos ficcionais ou autobiográficos e ameditação integrativa e bioenergética podem ser pensadascomo um trabalho arte-terapêutico que estimula a imagina-ção ativa e, por permitirem um acolhimento sadio e respei-

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toso, aumentam a auto-estima e favorecem a sua integraçãocom o mundo atual.

As atividades que vamos abordar podem ser realizadascom grupos de idosos pertencentes a qualquer classe social,grau de escolaridade e opção religiosa. Todas elas visam fa-zer com que o exterior e o interior se integrem na mente cri-ativa do idoso, estimulando a simplicidade, a serenidade di-ante dos “erros” e uma atitude de abertura e curiosidadediante de novas idéias, experiências e possibilidades sadiasde viver o processo de envelhecimento.

É preciso lembrar, porém, que a forma de sentir, pensare agir do animagogo influenciará diretamente o imagináriodo grupo-sujeito, favorecendo ou não a vontade de partici-par das atividades, e propiciando a construção de um relaci-onamento afetual com a instituição que promove o evento etambém com os demais participantes do projeto.

A motivação pode facilmente esvanecer caso não haja aexperiência do sensível e as trocas sensoriais que apenas aconvivência fluida, conflitual e “ecológica” com o outro, notempo e no espaço físico cotidiano, é capaz de sustentar, poisa vontade, a motivação e o interesse dependem da sinergiaentre a razão e os sentidos para ser constantemente retro-alimentada.

Por isso, em todo e qualquer programa de anima-açãocultural, o participante deve ser pensado de forma integral enão como se apenas tivesse a função psíquica pensamento,menosprezando as outras tão bem estudadas por JUNG (asensação, a intuição e o sentimento). Uma visão holística doprocesso é fundamental para valorizar também o corpo, aalegria e a felicidade durante o processo criativo e vivencial.

De forma geral, em um programa de anima-ação cultu-ral com idosos, é aconselhável:

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t Possuir uma formação teórica consistente, tanto emrelação ao conhecimento das atividades que vai suge-rir, concebida a partir de uma perspectiva histórico-cultural, quanto em relação à apropriação e uso dosrecursos e ferramentas tecnológicas para colocar aatividade em prática;

t Valorizar a cooperação, estimulando o compartilharde saberes e experiências entre os participantes daatividade;

t Estimular a “neg-entropia”, ou seja, a abertura aoimponderável, ao indizível, ao caótico, ao paradoxaletc., enxergando o processo criativo como um fenô-meno aberto e inconcluso, não cedendo, assim, ànormatização burocrática e a rotinização alienantedo trabalho.

t Aceitar o cotidiano como esfera privilegiada para atua-ção, uma vez que é o campo do e sobre o imaginário.

* * *

A prática didática do animagogo não deve ser vista comoum ato solitário ou individualista. Ao contrário, ela ésociagógica. A anima-ação cultural se coloca como um pro-cesso educativo que exige a solidariedade e a cooperação.

A criação de textos e a dimensão subjetiva do envelhecimento

Passaremos, agora, a refletir sobre o processo de criaçãode textos em um programa animagógico, utilizando para tan-to alguns textos criados pelos alunos da Universidade Aber-ta da Terceira Idade, na cidade de São Carlos/SP, na discipli-na Criação de Textos.

Em primeiro lugar, é importante salientar que ninguémé capaz de vivenciar o tempo totalmente no presente. Aomesmo tempo, não há recordação sem um apoio no presen-

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te. Assim, “reviver” o passado só é possível com o encadea-mento em um tema afetivo, necessariamente, presente e ela-borado.

Como o nosso objetivo é valorizar a dimensão subjetivado envelhecimento, os temas afetivos que os participantesvão expor devem ser acolhidos com muito respeito. As recor-dações sempre se manifestam relacionadas a eixos de racio-nalização que tornam patentes diferentes temas afetivos. Aoestimular um grupo de idosos a criar um texto a partir daprópria experiência de vida, suas angústias existenciais rapi-damente ficam evidentes, daí a necessidade de acolher deforma fraterna o participante.

Uma das dinâmicas que realizo é identificada como“Texto autobiográfico simbólico” e é uma atividade realiza-da em 4 horas. A atividade se inicia com uma reflexão sobreas vicissitudes da vida, ou seja, as alternâncias de momentospositivos e negativos, prazerosos ou desprazerosos na exis-tência humana. Após essa introdução, os participantes vãofalar livremente sobre suas angústias e temas afetivos que osincomodam ou agradam, escrevendo alguns tópicos em umafolha de papel.

Em seguida, o participante vai criar um “alter ego”, ouseja, uma personagem na qual vai projetar os seus valores. Apersonagem de ficção poderá ser um animal ou qualqueroutro elemento escolhido pelo participante. A terceira etapaserá criar o contexto da história e, finalmente, inserir diálo-gos entre personagens. Apresento abaixo, o texto denomina-do O Colibri, de uma aluna da escola, onde ela se projeta nafigura do pássaro e narra um fato por ela vivido e que a fezse sentir culpada.

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O COLIBRI

Em certa manhã, conheci um colibri. Tratava-se de umpássaro pequenino, colorido, tão formoso, mas muito preo-cupado com o bem estar da comunidade onde vivia. Ele eramuito ansioso... Por essa razão, batia as asas com incrívelrapidez, indo de um lado para outro. Sua preocupação che-gava às raias do absurdo. Por ser muito emotivo, sofria comos problemas dos habitantes da sua comunidade. E tambémpensava muito em sua casa, em seus filhotes e com a alimen-tação dos mesmos. E como era inseguro com relação ao futu-ro deles.

Apesar de tanto sofrimento, era um pássaro que amavaas plantas, os animais e toda natureza, tendo uma predile-ção especial pelas flores que colorem e enfeitam a vida.

Mas, o seu verdadeiro problema, era não perceber queexistiam no mundo animais falsos e hipócritas. Como preza-va muito as amizades sinceras e sentia muito prazer em reu-nir a numerosa família, fator de muita alegria para ele, acha-va que todos pensavam e se comportavam como ele.

E como era estudioso esse colibri! Passava parte do tem-po livre adquirindo conhecimentos, convivendo com outrosseres, quer da sua espécie ou de outras, buscando novas in-formações culturais. Porém, todo o seu conhecimento erateórico. Faltava-lhe a experiência de vida.

Em sua ingenuidade, aproveitou um dia ensolarado parapassear e voar para lugares longínquos de sua casa. Quisaproveitar o dia para conhecer novas paragens, outras cida-des e contemplar a exuberância da natureza. Mas como éum pássaro de temperamento tímido, preferiu voar sozinho.

E neste dia, feliz em seu passeio solitário, o colibri parouem um lago cercado de flores, onde costumava sempre des-cansar. E lá estava uma raposa que saciava sua sede. Ele não

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conhecia aquele animal, nem tinha o visto em algum livro. Esentindo a necessidade de comunicar-se e de fazer amizade,aproximou-se da raposa que, ao perceber o pássaro, iniciouum diálogo:

— Bom dia colibri! Vejo que você, como todos da suaespécie, visita as flores para alimentar-se. Você vem semprea este local?

— Bom dia! Eu gosto de conhecer novos lugares, sem-pre atraído pelo perfume das flores. E gosto de parar nestelago para me reabastecer, antes de prosseguir em minhas vi-agens. Mas nunca te vi por aqui, você é novo no lugar?

— Sou sim, estou chegando agora. Sou uma raposa egostaria de fazer parte da comunidade. Você poderia me apre-sentar aos seus amigos?

— Posso sim, com muito gosto. Vejo que você é bem fa-lante, logo estará integrado em nosso meio.

E lá se foram os dois a conversar enquanto a raposa seapresentava a todos que encontravam pelo caminho.

— Chamo-me Edo. Sou um raposo. Fui cognominado deo “raposão Edo”.

Os outros animais ficaram com o pé atrás, mas como oraposo Edo se apresentava como amigo do colibri, o aceitamna comunidade. Em pouco tempo fez amizade com todos.Ele se mostrava muito gentil, se oferecendo para ajudar emtudo que fosse possível. Com sua falsa atitude, conquistou aconfiança dos habitantes do local. Mas, como toda raposa,era matreiro e bajulador. Fazia rasgados elogios às criaturasmais eminentes, chegando às raias do ridículo.

Alguns meses se passaram e, após conseguir a confiançade todos, mostrou realmente quem era. O falso raposão,muito vaidoso, queria mesmo aparecer. Sagaz como era, co-meçou a lançar mão da intriga, caluniando, prejudicando os

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animais de maior prestígio daquela pacata comunidade e,tanto fez, que acabou sendo eleito para dirigir a mesma.

Porém, sua gestão foi um caos e por causa de sua incom-petência e falsidade, foi ficando cada vez mais isolado politi-camente. Não demorou muito e todos perceberam a que oraposão Edo não merecia a confiança que nele depositarame foi expulso daquele local.

O colibri pediu perdão aos outros animais por ter sidoingênuo e se comprometeu a tomar mais cuidado com quemtrazia para dentro da comunidade.

* * *

É possível encontrarmos neste texto autobiográfico e sim-bólico as inquietudes do idoso diante da vida e, no processocriativo e no acolhimento com o grupo, ele tem a oportuni-dade de trabalhar tais emoções, colocando para fora angús-tias e sofrimentos, prevenindo, dessa maneira, o surgimentode inúmeras doenças psicossomáticas. Os suportes da me-mória, que são o tempo e o espaço, tornam patentes as emo-ções, as percepções, as sensações e os pensamentos de an-gústia. Neste caso, o acolhimento fraterno ao aluno se faznecessário, possibilitando um suporte psicológico para queretrabalhe e encontre seu equilíbrio interior e, grada-tivamente, aumente sua auto-estima, assim como o seuautoconhecimento.

Outra atividade realizada no curso é a criação de umtexto sobre a infância, ou seja, onde o idoso narra algum fatovivido naquela fase da vida e que a pessoa jamais se esque-ceu. Vou apresentar o texto feito por um senhor de 72 anos.Podemos dizer que neste texto encontramos uma interação“fática” com o passado, ou seja, onde o universo de angústianão se faz presente.

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LEMBRANÇAS E REFLEXOS

Há coisas na vida que não tem explicação. Entre elas,está minha aversão por carne. Causa-me espanto que pesso-as comam carne com tanta avidez, saboreando e deleitan-do-se com o cheiro que, para mim, é tão desagradável quemarcou um momento de minha vida de forma inesquecível.

Que idade eu tinha? Cinco... Talvez seis anos...

Lembro-me de meus pais visitando meus avós maternosna cidade de Pederneiras e o quintal enorme com muitas ár-vores também grandes e frondosas... Mas será que era mes-mo tudo tão grande ou eu é que era pequeno?

O chão era coberto de folhas secas que farfalhavam sobmeus pés, enquanto os pássaros nos ramos disputavam fru-tos. E o ambiente da casa era místico, misterioso e alegre porcausa do canto dos pássaros, enchendo o ar de trinados emelodias.

Tudo isso despertava em mim a admiração, mas tam-bém a vontade de caçá-los para poder sentir suas pluma-gens em minhas mãos. Eu gastava horas construindoarapucas que davam muito trabalho, mas não pegavam nada.

Também ficava horas observando o meu avô. Em umatosca bancada de marceneiro, ele entregava-se ao mister deconfeccionar artesanalmente violões e guitarras. Não sei por-que eu tinha medo dele, embora o meu avô nunca ralhassecomigo. Talvez fosse pelo fato de minha avó chamá-lo de “se-nhor Antonio”. Se ela o tratava tão cerimoniosamente é que,por certo, ele deveria ser muito bravo!

Mas o que eu quero contar é o seguinte. Em um deter-minado momento, minha avó me chamou e quando, corren-do, atendia ao seu chamado, fui surpreendido por um san-duíche enorme que mostrava, entre duas metades pálidasde pão, um recheio de carne vermelha demais para o meu

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gosto. Tentei esquivar-me de todos os modos que imagineino momento: “não estou com fome; com certeza vai tirar-meo apetite para o almoço; daqui a pouco eu venho...” Mas ainsistência da minha avó não deixou margem para discussãoou recusa.

Sem possibilidade de negar-me ao suculento lanche, se-gundo a opinião dela, comecei a luta contra o monstro! Ata-cava-o a dentadas, mas o vermelho da carne parecia lábios adebocharem de mim. Os bocados que eram pequenos cresci-am na minha boca e se recusavam a serem engolidos. Foiuma luta cruel e desigual, sob o olhar bondoso e amoroso daminha avó: “come querido que está uma delícia!”.

Com muito sacrifício consegui negociar com ela e deixarmetade para mais tarde. A metade derradeira nunca maisme viu porque daí por diante quando minha avó gritava pelomeu nome, antes que eu respondesse, minhas pernas, semque eu as pudesse controlar, levavam-me apressadamentepara bem longe!

Meus avós morreram, a casa com seu quintal mudou dedonos; mas um dia, já homem feito, passando por Pedernei-ras, não pude resistir à tentação de passar pela frente dacasa e esticar o olhar para dentro. As lembranças da minhainfância e a figura bondosa da minha avó ainda estavam lá.

Eu estava tão distraído nas minhas recordações quan-do uma voz familiar veio de dentro me chamando: “Toninho,venha comer o lanche que preparei para você!”.

Não tive nem tempo para pensar, pois, minhas pernasnum reflexo repentino e incontrolável levaram-me depressapara bem longe. Nunca me esqueci, nem da minha avó, nemdaquela carne vermelha, mas nunca mais passei por lá...

* * *

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Podemos notar como o humor, o prazer, a contempla-ção e o entretenimento alimentam o processo criativo e es-tão presentes no texto desse aluno. Em suma, é patente apresença da razão simbólica sobre a razão instrumental. Emoutras palavras, podemos dizer que o texto manifesta umavivência saudável do ócio possibilitado pela terceira idade,liberto da desobrigação do agir compulsório e heterônomopresente na maior parte das relações de trabalho. O textotransmite também a sabedoria que a experiência constróipara superar as vicissitudes da vida.

O texto autobiográfico também pode ser feito na formade poesia. Uma forma fácil e agradável para se fazer isso, eque a maioria dos alunos da terceira idade aprecia, é atravésde paródias de canções conhecidas.

Reproduzo abaixo um poema escrito também por umaluno da UATI que parece se divertir com o esforço penoso ea fadiga típicos da terceira idade, demonstrando resiliênciadiante da “fatalidade” que é o processo de envelhecimento:

MEUS ESQUECIMENTOS

Onde esqueci minha bengala?Será que foi no banco ou na rua?

Será que almocei, nem me lembro mais...Temperei o bife com sal?

Parece que a carne estava crua...Onde esqueci minha dentadura?E os meus óculos, onde estarão?

Não consigo nem achar minhas abotoaduras...Olha! Minha bengala em cima do colchão!

Passo o dia procurando, acho isto e perco aquilo.Acho que já estou gagá...

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Será que encontro o caminho do asilo?Tento em vão revitalizar-me e ter mais ânimo.

Relembrar de tudo, ter mais esperança...Mas sei que é um sonho impossível...

Onde já se viu poder voltar a ser criança!Às vezes me pergunto:

Fui um bom pai? Será que fui um bom filho?Sei que a vida é um jogo de cartas marcadasE nos tornamos o que não desejávamos ser.

Que Deus nos acolha hoje e no instante de morrer!

* * *

O texto apresenta uma aceitação da fatalidade do devir.O aluno demonstra que não gostaria de envelhecer, mas avida é um “jogo de cartas marcadas”, como se quisesse dizer:não temos como escolher as cartas, mas temos a possibilida-de de fazer o melhor possível com aquelas que estão em nos-sas mãos.

O envelhecer faz parte da vida. Porém, esse processopode ser revelador e violador, no sentido de se ter uma acei-tação ativa do envelhecimento, aproveitado os recursos quea vida nos dá. Meditar e se divertir com o fato de ser idosotambém é uma maneira de dizer sim à vida, com todas asvicissitudes que acompanham o processo de envelhecimen-to e também para a morte.

E esse processo é bem evidente quando se pede ao alu-no um texto com tema livre. Lembremos que JUNG, porexemplo, ao defender que o inconsciente não podia mais serpensado como um mero depósito psicobiológico de instintosreprimidos, mas que deveria ser aceito como um princípioativo inteligente (em sua dimensão mais profunda, o Self li-garia o indivíduo à humanidade, à natureza e ao cosmos),passou a aceitar a necessidade de interação entre elementos

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conscientes e inconscientes ou a constante troca de informa-ção e fluidez entre ambos para que a individuação se pro-cessasse, ou seja, o processo de maturação psíquica que trans-cende os estreitos limites do ego e do inconsciente individu-al, de forma que aceitemos o irracional e o paradoxal comoválidos em si mesmos.

Esse processo demonstra a realidade da dimensão espi-ritual no esquema universal das coisas. Ou seja, o elementoespiritual é parte orgânica e integral da psique. Ele é a cente-lha divina que se localiza no Self. Assim, a verdadeiraespiritualidade, ou a sua busca, é um aspecto pulsional doinconsciente coletivo, independente do condicionamento dainfância e da vida.

Esses três elementos (interação consciente e inconscien-te, a aceitação do irracional e do paradoxo, e a presença dadimensão espiritual no esquema universal das coisas) apare-ce, frequentemente, no processo criativo com idosos, umavez que a morte parece cada vez mais presente na vida doidoso. Seus textos, de alguma forma, manifestam essa preo-cupação ou preparação para o momento em que a foice deCronos virá ceifar mais uma existência.

Apresentarei abaixo um texto que demonstra essa preo-cupação com o tempo que passa e com a morte, apesar dotema ser livre. E ele foi escrito em 2010 por uma idosa queveio a falecer no inicio do ano letivo de 2011.

SAUDADE DA FIGUEIRA

... Era ela que mais chamava a atenção de todos quepor ali transitavam. Sim, era ela a mais bonita, a maisfrondosa e a mais imponente árvore daquela praça: a ines-quecível Figueira.

Até hoje, quando se referem a ela, chamam-na de Fi-gueira amiga. Árvore de grande porte, raízes profundas e

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galhos enormes como se fossem braços abertos para o céu.Sua sombra acolhia a todos sem distinção.

Ninguém sabia dizer, ao certo, quantos anos ela tinha.Alguns diziam que era uma árvore centenária. Certamente,ela viu os primeiros fiéis cheios de Fé carregando a imagemda santa e entrando em procissão na igrejinha, no dia de suainauguração. Também viu as primeiras casinhas brancas seavolumando a sua volta e as pessoas que vinham de longepara a vilinha que almejava crescer e se tornar uma cidade.Todos encontravam nela a sombra acolhedora para refres-car-se na estação mais quente do ano e esquecer-se dos com-promissos, contemplando a tranqüilidade local, pois acolhiaa todos que ali vinham em busca de abrigo e proteção.

E quantas promessas de amor ela não escutou. Quantoscorações não foram gravados nela com o nome dos casais.Em sua memória devem estar gravadas as conversas dos ido-sos que relembravam o passado e contavam histórias paraas crianças, tudo ao som do borbulhar sereno e sem pressado riacho que corria tranqüilo, ladeira abaixo, em direção àLagoa Serena.

E como ela também deve ter se divertido com as crian-ças que brincavam sob sua copa, o dia inteiro, criando brin-quedos com seus frutos e sementes.

De onde ela estava, dava para ver muitas coisas e, comcerteza, ela viu os carros de boi que desapareciamgradativamente da paisagem, os bondes que trafegavam pe-los trilhos que se deterioravam, os automóveis e ônibus quecomeçavam a ocupar o espaço das ruas, além do comércioque não parava de crescer no centro da cidade.

Anualmente, o inverno traz ventos fortes e chuvas friase pesadas, mas a Figueira a tudo resistia como um guerreirovalente e robusto, pois suas raízes estavam fincadas profun-damente no solo. Porém, numa manhã triste, chuvosa e fria,

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alguns homens chegaram na praça, trazendo nas mãos fo-lhas de papel assinadas por autoridades. Várias pessoas seaproximaram curiosas e souberam que aqueles homens láestavam para derrubá-la. Diziam que ela estava velha e co-locava em risco a vida da população.

E foi sob protesto e com lágrimas nos olhos que assisti-mos a derrubada de nossa amiga Figueira, sem que nadapudéssemos fazer. Porém, tenho a certeza que ela não mor-reu, pois estará sempre presente em nossas lembranças e nashistórias que contaremos para os netos, ensinando-os a amar,a respeitar e a preservar a natureza.

* * *

A valorização da subjetividade no processo de envelhe-cimento torna a vida mais agradável e feliz. E o processo decriação de textos, como uma atividade lúdica, ajuda na me-mória, estimula o raciocínio e, sobretudo, permite a expres-são da criatividade. Além disso, ao ver o seu texto fazendoparte de uma exposição, a auto-estima da pessoa idosa au-menta de forma considerável.

Mas não devemos imaginar que seja somente no aspec-to cognitivo e emocional que a criação de textos é uma ativi-dade cultural importante. Ela apresenta uma dimensão es-piritual. Ou seja, ajuda no processo de individuação ou dereencontro com a própria essência, o Self. Trabalhando emo-ções, sentimentos de perda ou luto etc. durante o processode autoconhecimento, a transformação interior é inevitável.A experiência de vida ganha uma dimensão até então desco-nhecida. A vida passa a ter um sentido, mesmo quando acre-ditamos que as vicissitudes negativas sejam em mais quanti-dade que as positivas.

A criatividade só é capaz de se expandir ligada a umaespiritualidade dinâmica. E a criação de textos é uma formade propiciar essa ligação, valorizando a subjetividade da pes-

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soa idosa e sua experiência de vida. Assim, sentindo-se moti-vado e capaz de superar suas frustrações e sofrimentos, com-preende que toda e qualquer mudança deve começar nelemesmo. Em outras palavras, durante o processo criativo, oidoso vai sendo estimulado a se conscientizar das suas atitu-des, percebendo as que geram infelicidade e sofrimento, pas-sando por um processo de auto-aceitação dos seus sentimen-tos e pensamentos para, na etapa seguinte, tomar consciênciaque é o responsável por seus atos e por suas escolhas, valori-zando sua integridade física, mental, emocional e espiritual.

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A CIDADE E O IDOSO

Esta comunicação tem como base a Tese de dou-toramento Sociagogia do (re)envolvimento e anima-açãocultural, defendida em maio de 2003, na Faculdade de Edu-cação da USP. Ela procurou interpretar um programa de açãocultural realizado no ano de 1997 no SESC Rio Preto, com ogrupo da terceira idade, chamado “Nossas lembranças maispessoais podem vir morar aqui”.

Durante aquele ano, os frequentadores do grupo mon-taram uma exposição de fotos sobre a cidade, contendo 24painéis. Em cada um, fotografias de fragmentos da paisa-gem urbana de São José do Rio Preto, realizadas em 1927,podiam ser comparadas com fotos dos mesmos locais, reali-zadas no ano de 1997. Os painéis traziam também algunsdepoimentos de idosos que participaram do projeto.

A pesquisa para a seleção das fotos, a elaboração de tex-tos, o projeto gráfico para os painéis e montagem dos supor-tes foram realizados em aproximadamente 2 meses, em reu-niões semanais dentro da unidade. Para a sua realização, ogrupo contou também com a colaboração de instituiçõescomo o COMDEPHACT (Conselho Municipal para a Defe-sa do Patrimônio Histórico, Artístico, Cultural e Turístico deS. J. Rio Preto) e de voluntários que souberam do projeto ese ofereceram para ajudar. Assim, ao contrário de um pro-grama tradicional de ação cultural, em que normalmente seintervêm sobre um determinado grupo (apesar de a pessoaser livre para participar ou não), aqui o grupo participoudas decisões que envolviam o processo, inclusive o “como” asatividades seriam realizadas. O critério utilizado para esco-lher as fotos que fariam parte da exposição, entre as cente-nas de fotos publicadas no “álbum ilustrado”, foi o seguinte:

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t fotos de lugares que de alguma forma foram repre-sentativos para eles (palco de uma experiência ines-quecível, por exemplo);

t durante aquele momento de contemplação das fotos,seriam selecionadas as que possibilitassem que lem-branças agradáveis emergissem, como se estivessemguardadas em algum lugar profundo da alma.

Nesse momento de escolha ficou patente a linha tênueque separa o prazer da dor. E como uma foto não possuirealidade e valor em si mesma, o que dificulta uma decisãoobjetiva e desapaixonada, uma vez que cada pessoa traz umreferencial (uma vida) muito particular, o momento de deci-são não se restringiu ao critério de beleza ou de feiura, deenquadramento perfeito ou não, mas sim de como aqueleconteúdo retratado emociona, produz sensações e lembran-ças dolorosas ou de prazer. Assim, a decisão para o grupo foimuito difícil.

A alternância de manifestações de alegria e de tristeza,conforme as lembranças emergiam naquele momento de de-cidir quais fariam parte da exposição mostrou claramenteque a fotografia nunca é apenas um instrumento de repro-dução e congelamento de uma imagem. Não importa se ela écaptada em um instante de rara criatividade técnica ou deuma forma banal e amadora, o importante para o idoso é acomunicação singular que estabelece com cada fotografiacontemplada. Assim, enquanto algumas são tratadas demodo vago, não produzindo nenhuma emoção, outras foto-grafias são capazes de produzir catarses, em alguns casos,dolorosas.

E o problema da escolha levantou uma questãosociagógica ou talvez animagógica interessante. As imagensescolhidas não apresentavam uma qualidade técnica ou es-tética que justificasse uma exposição para eternizá-las nemeram imagens de fácil consumo. Para o grupo ali reunido,

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mais importante que a fotografia da Catedral, era a lem-brança das missas, dos casamentos ou de outras atividadesali realizadas; mais importante que a fotografia da praçaCoronel Salles, era a lembrança dos namoros, dos encontros,das manifestações sociais ou políticas que ali foramvivenciadas.

É importante ressaltar que o grupo definia como gosta-ria que a exposição fosse realizada, o que deveria conter ospainéis etc., mas quem dava o encaminhamento “técnico”eram os animadores culturais do SESC. Estes faziam aintermediação com a organização. Não tenho condições deafirmar se este convívio social poderia ser chamado deautogestão. Dentro do grupo, parece-me que sim, mas nãocom a organização que financiou o projeto, pois, quisesse ounão, o animador cultural representava a organização e nãoo grupo. Em última instância seria a decisão da organizaçãoque prevaleceria e não a do grupo. Isso ficou bem patente nadecisão do número de painéis para a exposição. O grupo ha-via selecionado material para a confecção de 50 painéis fo-tográficos, mas o recurso liberado pela organização foi sufi-ciente apenas para a confecção de 24 painéis, o número queno final prevaleceu.

Nas reuniões semanais, participavam, em média, dozepessoas. Esse número aumentava ou diminuía de acordo coma disponibilidade de tempo de cada um. Porém, o que eradecidido em uma reunião era sempre acatado pelo grupo,independente de quem havia ou não participado. Esse pro-cesso ocorreu de uma forma tranqüila, possivelmente, pelofato dos idosos demonstrarem certo desinteresse por marcarum posicionamento intelectual ou ideológico, como se vê ro-tineiramente em outros grupos. Ninguém parecia interessa-do em estabelecer um poder absoluto sobre os demais, im-pondo na base da força ou da sedução suas idéias. Organi-zar a exposição se parecia muito mais com um jogo ou umabrincadeira em que todos deveriam ganhar.

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De certa forma, o idoso parece aceitar com mais natu-ralidade a vivência do não-acabado. Ou seja, compreendeque o conhecimento inacabado e o conhecimento doinacabado é o único conhecimento autêntico. Nesse sentido,os educadores e os animadores culturais têm muito a apren-der com os idosos, sobretudo que os homens e o mundo sãoinacabados.

Coincidência ou não, o álbum ilustrado da Comarca deRio Preto, livro de onde foram retiradas as fotos, estava com-pletando 70 anos de idade em 1997 e a idéia de se fazeruma exposição comparativa, mostrando a cidade em 1927 eem 1997, conquistou todos os idosos. Os animadores cultu-rais do SESC tentaram estimular os participantes para pro-duzirem as fotos, mas o grupo decidiu que um “profissional”deveria fazer este serviço.

Assim decidido, um fotógrafo foi contratado tambémpara fazer as fotos recentes dos locais escolhidos pelo grupo,procurando manter o mesmo ângulo e foco da imagemreproduzida no livro de 1927. Apesar de os idosos não acei-tarem a idéia de produzir as fotos, isso não significa que seabandonou o modelo aberto ou neg-entrópico de criação. Acriatividade, a possibilidade de invenção continuou predo-minando nos encontros seguintes. Também não podemosdizer que passou a existir uma gerontocracia, com o grupodando ordens para os “técnicos” do SESC. Sem a necessida-de de relações formalizadas e hierarquizadas, os encontroscontinuaram sempre flexíveis e animados, seja pelos jovens,seja pelos velhos. Talvez até mais por estes, uma vez que,alguns jovens estudantes que se engajaram voluntariamenteno projeto pareciam, no início, querer agir como “Pai” dosidosos, ou como um “burocrata-soberano”, mas logo conse-guiam se desarmar e entrar no ritmo do grupo. Isso talvezseja uma demonstração de que nem sempre os velhos são osresponsáveis pela sociagogia burocrática ou heróica, no qualalguém surge como aquele que sabe o que é melhor para to-

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dos, em que a vontade desmesurada de ajudar ou de fazer o“bem” costuma ser acompanhada por uma vontade tam-bém desmesurada em não levar em consideração a vontadedo outro, os seus desejos e suas aspirações.

O grupo chegou a discutir a possibilidade de organizaruma “monitoria” para visitá-la, idéia que foi em seguida aban-donada, pois cada visitante idoso deveria se constituir emum monitor para seus filhos e netos. Essa idéia foi, então,divulgada nos releases enviados para os meios de comunica-ção local, estimulando as pessoas mais idosas para trazerseus netos e deixar que “suas lembranças mais pessoais”morassem ali naquele momento. Das quase 50 fotosselecionadas, foram escolhidas 24 para a confecção dos pai-néis, pois o custo unitário de cada painel era de aproximada-mente 100 reais e a Organização havia destinado 2.500 re-ais para a montagem de toda a exposição. A abertura daexposição ocorreu no dia 18 de julho de 1997.

Para a maioria dos participantes, a cidade do presente émuito melhor para se viver do que aquela do passado. Al-guns lamentavam a destruição da antiga catedral e muitosse consideravam enganados pela campanha realizada nadécada de 1970 para a construção de uma nova catedral.Alguns criticavam o poder público por não possuir uma po-lítica de preservação da memória local, principalmentearquitetônica, e que a cidade deveria ter um museu bem or-ganizado para estimular nos mais jovens a preocupação coma “memória”. Porém, idolatrar o passado como se fosse ne-cessário resgatar um tempo perdido, foi uma representaçãoque não predominou durante todo o processo.

Em relação às imagens escolhidas para compor os pai-néis, é curioso assinalar que, com raras exceções, as fotosselecionadas representam não apenas seus espaços expressi-vos de outrora, alterados, destruídos, abandonados, substi-tuídos por outros no desenrolar dos fios da vida de cada um,

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mas também representavam uma "participação mística"grupal ou coletiva, uma vez que espaços e locais públicos -não necessariamente estatais - é que foram selecionados: asescolas onde estudaram, a antiga catedral, o centro comerci-al, a ferroviária etc.

E adentrando na dimensão imaginária da exposição, emseu aspecto arquetipológico, podemos notar que as imagensrelacionadas ao projeto "Nossas lembranças mais pessoaispodem vir morar aqui!" fornecem pistas para associá-las aoimaginário noturno, segundo Gilbert Durand, especificamen-te ao mito de Hermes.

Entre as 24 imagens escolhidas para a exposição final,três foram consensuais, ou seja, todos os participantes vota-ram nelas: o correio, a ferroviária e a Santa Casa. Vamos nosdeter nas imagens e comentários feitos sobre elas, pois forne-cem inferências que nos ajudam a identificar o mito diretorpresente na escolha das imagens. As duas primeiras imagens,o correio e a ferroviária, referem-se diretamente a "comuni-cação", talvez o atributo mais conhecido de Hermes. O cor-reio foi, durante décadas, a forma mais econômica de comu-nicação com a família, sobretudo para os imigrantes. SãoJosé do Rio Preto é uma cidade que cresceu, sobretudo como predomínio de trabalhadores que imigraram da Itália e doOriente Médio, durante o século XX.

Alguns idosos ainda se lembravam da época em que to-dos sabiam quando alguém recebia uma carta do exterior edas relações mais pessoais que se estabeleciam com os funci-onários do correio. Outros comentavam as reuniões de famí-lia organizadas para ler uma carta. Era, muitas vezes, o acon-tecimento principal da semana para eles. A lembrança ouaté mesmo a apercepção de como o correio havia sido essen-cial para a vida comunitária em que estavam inseridos pare-cia acender no olhar de cada participante uma centelha deencanto para a vida cotidiana e também para o presente alivivido.

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A impressão que tive quando alguns idosos comenta-ram a importância do correio em suas vidas era de descober-ta de uma dimensão vivencial até então desconhecida. Ouseja, todo o passado que remetia a uma vida sem qualidadese tornava, naquele momento de contemplação de uma ima-gem antiga do correio, uma manifestação numinosa carrega-da de sentido.

Uma hipótese para compreender esse processo talvezesteja no aspecto simbólico das formas. E o correio se mostracomo um criador de vínculos, transcendendo seu sentidoimediato e sua organização burocrática. Talvez por isso afoto do correio manifestou nos idosos uma profunda e inde-lével marca, como se conservassem as moléculas e as vibra-ções das correspondências trocadas com familiares, amigos eamantes durante dezenas de anos. Enfim, existem coisas in-visíveis sustentando as coisas visíveis. As formas arquetípicasnão são quimera ou devaneio metafísico. Elas nos ajudam acompreender as paradoxais agregações sociais ou os encon-tros afetivos que garantem uma sensibilidade “ecológica”grupal.

E o correio parece ter cumprido para esse grupo de ido-sos o papel de catalisador de atributos hermesianos. As lem-branças despertadas através da observação da fotografia docorreio demonstram que o correio também era uma “formaque informa”. A contemplação da foto fez com que emergis-se uma memória coletiva dentro do grupo, manifestando umadeterminada maneira de ser, pensar e sentir que não era ne-cessariamente consciente em todos, mas que havia se torna-do um “habitus” incontornável, um “saber incorporado” emcada vivência particular, mesmo quando utilizado sem mui-ta atenção.

Naquele momento de fruição das imagens do livro, hou-ve de certa forma, uma apercepção coletiva de que o correiohavia sido para todos aqueles idosos um tipo de cimento paraa vida cotidiana, um misterium conjunctionis que agora se

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revelava em seu esplendor e como o responsável pela “parti-cipação mística” no cotidiano da cidade de São José do RioPreto algumas décadas atrás.

Por seu lado, a estação ferroviária era o local de ondepartia e chegava o mais eficiente meio de transporte do mu-nicípio, na primeira metade do século XX. Podemos dizerque ela também é um "emblema" hermesiano, pois era o ins-trumento capaz de ligar aquele distante município à capitaldo estado e as outras cidades importantes do interior comoAraraquara e Campinas. O apito do trem e o aroma da anti-ga fábrica da Swift marcavam a rotina e a experiência dosensível em tempos idos. Conforme alguns idosos salienta-ram, “o tempo naquela época era lento e cheio de meandroscomo o trem e as ferrovias”. A contemplação da foto da fer-rovia, na década de 1920, parecia, “epifanizar” a vida ba-nal. A fotografia se tornava um meio de reduzir o fosso entreo mundo sensível de cada participante e a razão técnica dosplanejadores que fizeram com que a ferrovia e a estação fer-roviária se tornassem um empecilho na atual paisagem ur-bana da cidade. Apesar de ser uma foto “feia”, ela não deixade ser uma foto “estética”, no sentido de proporcionar umsentir comum, de produzir um “consenso” de sentimentospartilhados (cum-sensualis).

Atualmente, apesar de praticamente abandonada, aferrovia, como no passado, ainda parece ser um local para asocialidade, na minha opinião, também um forte atributohermesiano. Ainda hoje é possível ver algumas pessoas pas-sando pela ferrovia e, por alguns momentos, permitindo-se aintrusão do fútil ao parar para proporcionar um pouco deprazer aos sentidos, contemplando a forma da estação e dostrilhos que rasgam o infinito com suas formas sensuais. Agindoassim, essas pessoas iluminam um diferente “sistema” navivência urbana, no qual o ócio metanóico rompe com a cor-reria paranóica predominante. Mas é necessário apontar queesses dois “sistemas” convivem juntos e se complementam.

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Esses sistemas são transtemporais e se repetem de modocíclico, quase de maneira idêntica, em períodos históricosdiferentes. Assim, se a correria paranóica é o “sistema” quepredomina nas grandes e médias cidades, isso não significaque não exista brechas para outros “sistemas” mais ociosos econtemplativos que semeiam o nomadismo no ar, capaz deiluminar um pensamento vagabundo à imagem da errânciasocial e que convida à contemplação. No caso da ferrovia,que no Brasil atual perdeu sua vitalidade como meio de trans-porte de passageiros e de encontros, não quer dizer que noaspecto simbólico ela também esteja morta. Ela ainda é umelemento fazedor de vínculos, de religação. Pelo menos paraalgumas pessoas que conseguem se aperceber de seu conteú-do mais amplo.

Quase desvinculados da força da “razão instrumental”,os idosos são, quase sempre, os maiores especialistas na arteda contemplação, portanto, aqueles que se pautam pela ra-zão interna (ratio seminalis) e que conseguem elevar-se aci-ma da “situação humana”, que passa a ser tratada comomatéria de uma obra de arte. Por isso, apesar de feia, a fotoda ferroviária possibilitava aos idosos vivenciar uma atmos-fera estética carregada de emoções, sentimentos e afetos com-partilhados.

A terceira imagem que foi consenso no grupo foi a daSanta Casa. Esta escolha demonstra também como para osidosos a manutenção da saúde, seja a própria, seja a da fa-mília é uma preocupação constante. Mitodologicamente, sepensarmos que o caduceu de Hermes é o emblema adotadopela medicina moderna, podemos também associar a ima-gem da Santa Casa, escolhida pelo grupo, ao mito de Hermes,apesar de sabermos que o herói-deus da medicina é Asclépio.Sobre este a narrativa mais conhecida é a que afirma ser elefilho de Apolo com a mortal Corônis. Educado por Quíron,chegou a ressuscitar vários mortos, entre eles, Hipólito, o fi-lho de Teseu. O seu atributo era uma serpente enrolada em

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um bastão, simbolizando a vida que renasce e se renovaininterruptamente. Em relação ao caduceu de Hermes, umavareta sobre a qual se enrolam duas serpentes em sentidoinverso, temos a representação do antagonismo e do equilí-brio entre o “diurno” e o “noturno”. O caduceu foi, original-mente, um símbolo da paz. Posteriormente, o caduceu pas-sou a simbolizar também o poder divinatório e também o decurar, representando o equilíbrio psicossomático. Voltandoàs fotografias, se nas duas imagens anteriores foi possívelobservarmos o Hermes primaveril, ou seja, “veloz” e “aéreo”,nesse momento, encontramo-nos com o Hermes Psicopompoou alquímico, com o Hermes curador. Podemos dizer que setrata do Hermes das folhas de Outono.

Praticamente, todos os participantes do grupo de ido-sos já utilizaram os serviços da Santa Casa. De uma formageral, essa instituição de saúde local goza de muito prestígioentre os idosos que participaram do projeto. A cidade de SãoJosé do Rio Preto possui uma rede de saúde, pública e priva-da, para a qual se dirigem pessoas de vários estados brasilei-ros em busca da cura para seus problemas. Quase todas asespecialidades médicas podem ser encontradas no municí-pio. Apesar do crescimento e da variedade de serviços naárea da Saúde, a Santa Casa ainda é uma forte referênciaafetiva para os idosos. Muitos acompanharam e contribuí-ram para a sua construção. Outros passaram por momentosdifíceis ou tiveram parentes que precisaram do serviço da-quela instituição.

Outras três imagens selecionadas para a exposição, ape-sar de não terem sido escolhidas por unanimidade, foramrepresentativas para mais de 80 % dos participantes: as pra-ças centrais da cidade, o antigo cinema e a catedral. Essasimagens também reforçam a alma hermesiana do grupo, umavez que manifestam lugares públicos, profanos e sagrados,onde a integração humana e o estar junto são importantes.A praça central da cidade, onde também se localiza a Cate-

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dral, costuma sediar apresentações musicais e outros even-tos como feiras de artesanato. Apesar de a considerarem pe-rigosa, hoje em dia, ela ainda é um ponto de encontro paramuitos idosos que ali jogam conversa fora, jogam dominóetc.

Apesar do perigo real representado, ou melhor, apresen-tado pelos assaltantes, pedintes e consumidores de drogas,outros freqüentadores assíduos, a praça ainda é o local daproxemia, sobretudo para os idosos do sexo masculino. É olocal onde a razão e a paixão andam juntas nas lembrançascontemplativas daqueles que passam horas conversandosobre ideologia, sexo, política, futebol etc. de uma maneiramais “ecológica” ou orgânica, bem diferente do formalismo edo pedantismo das instituições racionais da modernidade.Nos encontros realizados na praça pode-se dizer que se põeem ação um conhecimento intuitivo construído a partir deuma experiência interiorizada (intuire).

A praça ainda parece ser a grande Universidade Livreda Terceira Idade, local onde se processa o “pensamento eró-tico”, ou seja, no sentido proposto por MAFFESOLI como o“pensamento amoroso da vida em sua integralidade”. Nasconversas “jogadas fora” na praça não há espaço para oracionalismo abstrato. É o “vitalismo” que ali encontra am-biente para se renovar. Mas como disse anteriormente, apraça parece se assumir como um locus quase que exclusiva-mente masculino. Para as mulheres, a praça foi importanteno passado quando era um local para se passear com os paisou quando, adolescentes, lá se encontravam antes de ir paraas festas ou bailes. A praça hoje em dia é, segundo elas, um“local de passagem” ou um “lugar perigoso”. Porém, inde-pendente da interpretação de gênero, o que cria vínculos coma praça, em um caso ou em outro, é a vida. Em outras pala-vras, podemos dizer que esse local da cidade ainda expressauma vida encarnada e enraizada que forma e des-forma emprofundidade o mundo real dos idosos.

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Outra imagem escolhida pelo grupo foi a Catedral. Elaestá contida na praça, mas, ao mesmo tempo, é um localindependente. É o espaço do sagrado. E acompanhando asdiscussões no interior do grupo pude perceber a concretudecom o tema e a devoção do grupo para com o sagrado. Mes-mo assim, apesar de ampla maioria se considerar católica, osidosos não negligenciavam outras formas de vida religiosa.Todos tinham algum parente que, por alguma razão, preci-sou buscar ajuda em centros kardecistas, de umbanda etc. eapoiavam essa atitude.

Possivelmente, se Hermes for o mito da Terceira Idade,podemos compreender esse processo, uma vez que a empatiacomunitária desse Deus permite o engendramento de umagenerosidade com outras formas de religião. O idoso pareceser mais tolerante com a organicidade religiosa, aceitando acomplementaridade e a interdependência entre os diferen-tes credos, percebendo que há uma liga interna entre os ele-mentos eminentemente díspares.

No caso da catedral, os idosos, independentemente docredo religioso, parecem manter com a mesma certa “afini-dade eletiva”. Sobre a imagem da catedral repousam lem-branças que permitem uma restituição do Eu e do Outro, daunicidade e da diversidade, de momentos de prazer e de dor.Essa ambiência orgiástica não foi levada em consideraçãopelos arquitetos que projetaram a nova catedral, na décadade 1970, quando o racionalismo moderno passou como umtrator por cima da sensibilidade orgânica que se encontravaplasmada na forma antiga da catedral, apagando as impli-cações sociais, políticas, religiosas e culturais de toda umageração de rio-pretenses.

Não tão unânime como a catedral, mas também capazde gerar fortes impactos emocionais na maioria dos partici-pantes, está a imagem do antigo cinema. Este também fica-va na praça central da cidade. Em 1997, quando fizemos o

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trabalho fotográfico, descobrimos que no local funcionavauma famosa loja de eletrodomésticos e nenhum vestígio doaconchego que parecia existir no antigo cinema havia resta-do.

Ao contrário da atual loja, a fala dos idosos em relaçãoao antigo cinema que ali funcionava era de que o mesmoagregava, criava vínculos. Pode-se inferir, a partir das falascontemplativas do grupo, que o cinema possuía uma inegá-vel organicidade. Na troca dialógica entre a luz e a sombra,abstraia-se da rotina e vivia-se um “momento figural”. O ci-nema parece ter deixado uma marca profunda e indelével noscorações de uma geração que viveu e sofreu com a modernidadee seu apetite des-enfreado por des-envolvimento.

Não vejo necessidade de me estender pelas demais ima-gens utilizadas na exposição. Acredito que através do poucoque apresentei é possível discutir que o produto final pare-ce-me ser, de fato, bem hermesiano. Dessa forma, uma açãocultural aberta, dinâmica e que possibilita livre curso à cria-ção é algo imprevisível, porém, este trabalho com idosos de-monstrou que esse procedimento tende a valorizar as ima-gens noturnas de apaziguamento, integração e envolvimento.Em minha opinião, Hermes parece ter sido o mito presentena seleção das imagens. E por que Hermes? Em suma, este éum mito complexo e com diferentes atributos, sendo várioscontraditórios. E como salientou Gilbert DURAND é umdos mitos mais representativos do imaginário "dramático".

O inventivo mensageiro de Zeus, amigo dos mortais e ocondutor de suas almas (psicopompo) após a morte é, nainterpretação de vários estudiosos como Joseph CAMPBELL,C.G. JUNG, Karl KERÉNYI, entre outros, um mito criadorde vínculos. Os primeiros locais de culto ao deus da comuni-cação foram em encruzilhadas onde se encontravam ashermas, normalmente pilhas de pedras que indicavam o lu-gar onde o viajante se encontrava. Nesse sentido, podemosver em Hermes um deus criador de vínculos afetuais (ou re-

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ligiosos, se pensarmos na expressão latina re-ligare) com oslugares. Em suma, é Hermes quem estimula a afeição peloespaço vivido, a topofilia da poética do espaço de GastonBACHELARD, aprofundada nos estudos fenomenológicosdo geógrafo chinês Yi-Fu TUAN. Poderíamos pensar tam-bém em Héstia, a deusa dos lares, mas essa me parece muitomais restrita ao lar do que à cidade ou ao ambiente comoum todo. Por sua vez, Hermes, enquanto um deus do um-bral e da porta, mas também das encruzilhadas e das entra-das das cidades, representa o movimento e a relação com ooutro. Hermes representa também as trocas nas relações, atroca de conhecimento com os demais, nossa capacidade deouvir o que pensam os outros e, com eles, aprender um pou-co mais também.

Hermes simboliza o diálogo, o instrumento capaz de porfim aos desentendimentos e contrariedades. Hermes nos lem-bra que falar e escutar são uma arte e que a versatilidade e acapacidade de adaptação nos tornam mais leves e toleran-tes. Com Hermes, aprendemos a multiplicar nossos interes-ses, criando uma série de oportunidades na vida, encontran-do pessoas, participando do que ocorre no mundo. Hermesnos possibilita integrar a luz e a sombra. E dessa polaridadesurgem imagens que surpreendem e encantam. Viver o mitode Hermes nos torna mais versáteis, polêmicos e inquietos.E agradeço aos idosos com quem convivi em 1997, pois elesme ajudaram a expandir o Hermes que se escondia dentrode mim.

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ENVELHECIMENTO E

ESPIRITUALIDADE: PARA ALÉM DA CONSCIÊNCIA DA

FINITUDE

Uma das grandes características do período que se de-nomina como “pós-moderno” é a (re)descoberta daespiritualidade. Se a modernidade matou o sentimento reli-gioso dogmático e conservador, com sua visão cientifica eprogressista, a pós-modernidade veio para valorizar o senti-mento espiritual pleno, sem vínculos religiosos ou doutrina-ções. Nunca as pessoas demonstraram tanto interesse porquestões espirituais, refletindo sobre as questões básicas dahumanidade: de onde viemos? Para onde vamos? E o queestamos fazendo aqui?

E como as respostas fornecidas pelas religiões não maisse sustentam, pois os dogmatismos e os excessos de rituais jánão satisfazem a curiosidade natural e a busca por informa-ções de jovens, adultos ou idosos, muitos ramos espiritualistasse constituíram, inclusive favorecendo a criação de umaindustria espiritualista, formada por editoras especializadasna produção de revistas, livros, CDs, DVDs etc. No meio detanta informação desconcertante e contraditória, faz-se mis-ter a elaboração de estudos consistentes, sem apologias a essaou aquela religião, sem falso moralismo ou mistificações, como objetivo apenas de esclarecer as pessoas e educá-las espiri-tualmente para uma vida humanizada plena, sem medo, semterrorismo, sem lamentações, enfatizando, apenas, que oimportante é amar, ter Fé em Deus (e não em doutrinas) eser feliz incondicionalmente.

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Para iniciar essa conversa sobre envelhecimento eespiritualidade, vou falar de um pequeno livro publicado em1926, chamado Death-Bed Vision, do físico irlandês SirWilliam Fletcher Barret. Este opúsculo foi publicado nomesmo ano em que seu autor veio a falecer. Death-Bed Vision,algo como “visões no leito-de-morte”, descreve inúmeros ca-sos observados por profissionais da saúde de pacientes emestado pré-agônico que narram visões de parentes já faleci-dos, de paisagens desconhecidas e outros fatos trans-cendentais. Muitas das visões foram narradas por pacientesque ainda se encontravam lúcidos, ou seja, tinham consci-ência do ambiente físico em que se encontravam e percebi-am, neste, a presença de seres de outras dimensões. Outrofato significativo apontado pelo autor foi o relato do motivoda presença daqueles seres, segundo os pacientes: eles esta-vam ali para conduzi-los para um outro plano de existência,um plano post-mortem. Mais de oitenta anos se passaram eeste livro continua desconhecido no meio acadêmico. Médi-cos, enfermeiras e psicólogos continuam tratando o fato como“alucinação” e não dando valor a estes relatos tão comunsnos hospitais e asilos. Um estudo mais profundo destas ima-gens, tendo como heurísticas as contribuições das teoriasantropológicas do imaginário, da psicologia transpessoal, doespiritismo e da parapsicologia, entre outras, poderia contri-buir para uma melhor compreensão desse fenômeno, tornan-do, assim, a morte um fato menos temido, pois, como afir-mava Platão, o verdadeiro sábio é o que se prepara paramorrer e o que menos medo tem da morte.

Falar sobre este tema para um público formado por pes-soas que vão se especializar no cuidado de idosos é uma ta-refa delicada. Pois, apesar de todas as evidências empíricasda continuidade da vida após a morte física, seja através dafenomenologia mediúnica ou, mais recentemente, com oavanço da chamada transcomunicação instrumental (con-tato através de modernos equipamentos tecnológicos com

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seres que já deixaram o veículo físico), ainda não temos co-nhecimentos suficientes na academia para falar emespiritualidade, libertos de pré-conceitos religiosos.

Mas vou começar esse bate-papo com uma afirmação:o espírito não envelhece; Ele adquire responsabilidade. E essaresponsabilidade exige muitas existências ou, como quiserem,muitas encarnações. Mas, vamos, primeiramente, atentarpara um fato histórico: em todas as civilizações, indepen-dentes do tempo e do espaço, existiram pessoas “idosas”, ex-pressão politicamente correta para não falarmos de pessoas“velhas”. Porém, historicamente, o envelhecimento não erauma condição “natural”, uma vez que, antes do século XX,a expectativa de vida do conjunto da população raramenteultrapassava a casa dos 60 anos de idade, a faixa etária ins-tituída pela modernidade para a pessoa ser considerada ido-sa. Apenas para ilustração, no século XIX, no Brasil, tivemosa Lei do Sexagenário que dava liberdade aos escravos commais de 60 anos. Somente um número ínfimo de negros be-neficiou-se dessa lei, já que poucos escravos conseguiam so-breviver por tanto tempo. Para se ter uma idéia, ainda hoje,em rincões da África, a expectativa de vida mal supera acasa dos 30 anos. Nesse contexto, um jovem de 18 anos deidade teria razão em dizer: “nossa, como estou velho!” Emuma sociedade onde a expectativa de vida é de 30 anos, al-guém com apenas 18 anos já teria passado da “meia idade”...

Estou brincando com as palavras com um único objeti-vo. Percebermos a relatividade de nossos conceitos. Necessi-tamos construir uma “consciência histórica” de tudo o quequisermos discutir. Ou seja, sempre procurar contextualizaras expressões que utilizamos rotineiramente, compreenden-do quando foram criadas e o que pretendem representar.Sei que nossa tendência é a de “naturalizar” o mundo. Faze-mos isso com tanta freqüência que não nos damos conta queestamos sempre interpretando e reconstruindo o mundo apartir do nosso olhar atual, a partir do presente. Em outras

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palavras, o que pretendo ressaltar é que o “idoso” é, sobre-tudo, uma construção histórica e social e não, necessaria-mente, um fenômeno natural.

Apenas por curiosidade, alguém sabe quando surgiu oconceito idoso? O idoso, como uma categoria sociológica,surgiu no chamado “primeiro mundo” nas primeiras déca-das do século XX. Nestes países, o número de pessoas queatingia a idade de 60 anos mentalmente saudáveis, com dis-posição física e, sobretudo, com muito recurso financeiro, eraalto. Isso tudo reunido fez com que o idoso, teoricamente,uma pessoa com mais de sessenta anos, se tornasse um alvode preocupação social, política e econômica. Além disso, essafaixa da população despertou o interesse de promotores deeventos, que criaram diferentes tipos de programas sociais,como vilas específicas para idosos, políticas de lazer e de tu-rismo para a “terceira idade”, clubes, festas etc.

Desta forma, o idoso passou a ter opção de entreteni-mento e onde gastar seu dinheiro, para a alegria de todos.Obviamente, existiam também projetos sócio-culturais nosquais o idoso colocava seu conhecimento e experiência devida a serviço da comunidade. Mas, em linhas gerais, erammais privilegiadas as políticas de entretenimento para a ter-ceira idade, deixando a experiência de vida em segundo pla-no. Não me parece que a situação atual seja tão diferente.Em resumo, pode-se dizer que o “idoso” é fruto da pós-modernidade, de um diferente cenário sócio-cultural capazde aceitar, em alguns casos, a pluralidade de regras e de com-portamentos surgidos a partir de novas condições materiais,como também imaginárias.

Somente em um contexto sócio-cultural em que haja arelação descentralização – autonomia – democracia é quepodemos compreender a existência dos idosos e de outrostantos novos “atores sociais”, como os homossexuais, os ne-gros etc. Mas, e no chamado “terceiro mundo”? Como fica aquestão do idoso nos países “emergentes” ou “periféricos”,

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também chamados de “subdesenvolvidos” até algumas dé-cadas atrás? Nestes países que mal ingressaram namodernidade é possível pensar uma política similar para oIdoso? Nestes países a população começou a envelhecermuito mais tarde, uma vez que os avanços da medicina e ascondições sócio-ambientais que permitiram aumentar a ex-pectativa de vida consolidaram-se somente a partir da déca-da de 1950. Mas isso não resultou, necessariamente, em umprocesso de envelhecimento “saudável”. Com a grande di-versidade sócio-econômica e cultural entre as diversas regi-ões de um mesmo país, como é o Brasil, não é possível imagi-nar que haja somente um tipo de idoso, o que dificulta ado-tar uma política única e de forma generalizada. Talvez umapolítica similar àquela que foi aplicada no chamado “pri-meiro mundo” seja adequada para alguns bolsões “primei-ro-mundistas” existentes em países do “terceiro mundo” ondeos idosos representam, paradoxalmente, a “tradição damodernidade”.

Vou explicar o que entendo por esse palavrão: a “tradi-ção da modernidade”. Sabemos que a principal característi-ca da modernidade é sua insurgência contra a tradição, po-rém, se compreendermos que a pessoa que vive a experiên-cia de ser idosa neste final do século XX e início do séculoXXI é aquela pessoa que viveu os momentos áureos da“modernidade”, podemos identificar valores “modernosos”em sua “memória”. Assim, sua tradição é a modernidade enão aquilo que costumamos identificar como não-modernoou como pré-moderno. É importante ressaltar que não estouinterpretando este fato como algo negativo. A tradição, comopermanência de um passado distante e “folclórico”, é con-servadora. O idoso a que nos referimos não é tradicional,pois é fruto de uma estrutura social marcada pela transfor-mação tecnológica e cultural do século XX. No idoso de hojejá se encontra elementos da globalização econômica. Ou seja,ele é diferente, portanto, do idoso estudado por Ecléa Bosi,

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na década de 1970, que trazia em sua fala um mundo ante-rior à Revolução Industrial ou que dela havia sido excluído.É por isso que sua psicologia ficou conhecida como “psicolo-gia do oprimido”.

Com base nas memórias coletadas por Ecléa Bosi,Marilena Chauí concluiu na introdução do livro Memória eSociedade que o “velho não tem armas. Nós é que temos delutar por ele”. Mas isso foi há trinta anos. O idoso de hoje,que viveu os valores da modernidade, até namora pelainternet. E o que dizer de nós que temos entre 30 e 40 anosde idade hoje ou nos adolescentes que serão os idosos dasegunda metade do século XXI?

Possivelmente, seremos idosos bem menos desarmadosque os estudados por Ecléa Bosi, em seu clássico livro. Emoutras palavras, não podemos ter uma mentalidade estan-que sobre o que é o processo de envelhecimento. Mais doque um processo natural trata-se de um processo históricoonde cada época ou cada sociedade tem o seu próprio idoso,com características próprias e singulares. Assim, se a socie-dade moderna estudada por Ecléa Bosi, em sua vertente ca-pitalista ou socialista, destruiu os suportes materiais e espi-rituais da memória do idoso sem recursos econômicos, exclu-indo-o dos sabores da modernidade ou tornando-o depen-dente da família ou de um cuidador em algum asilo ou outrainstituição, onde sua única esperança é o dia em que a lâmi-na de Cronos será usada para ceifar os liames que o impedede se libertar, existem aqueles que não querem ninguém lu-tando por ele, mas que reivindicam atividades sociais, cultu-rais, recreativas, espirituais e corporais (sempre adaptadaspara cada situação) para que seu tempo ocioso seja não ape-nas ocupado, mas reinventado de forma constante e neg-entrópica, possibilitando a ele o prazer e a felicidade quemerecem e necessitam.

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E vemos também, diariamente, idosos que desejam con-frontar o tesouro do qual são guardiões com os novos tesou-ros que estarão sendo garimpados e lapidados pelos mais jo-vens, seus filhos e netos, pois o ser humano não pára de criare recriar o mundo em que vive. Assim, o que gostaria de res-saltar é que as políticas para atender o idoso não podem sergeneralistas, mais adaptáveis a cada situação específica. Emuitos idosos já não se satisfazem apenas com atividadesrecreativas e de entretenimento. Eles já possuem a concep-ção de que são cidadãos e não apenas alguém que possuidinheiro para gastar em festas e viagens.

Vamos nos deter um pouco em outro assunto que estárelacionado diretamente com o processo de envelhecimentoe o surgimento do ser idoso: a longevidade. É somente com oaumento da longevidade que podemos discutir temas comoa Terceira, a Quarta e até, quem sabe um dia, a Quinta Ida-de. Mas é importante lembrarmos que longevidade não é,necessariamente, sinônimo de qualidade de vida, mas podeser um de seus componentes. E, em matéria de longevidade,ninguém supera os orientais. A prática regular de exercíciosfísicos, uma alimentação mais natural e saudável e um estilode vida menos estressante e espiritualizado garantiram aosorientais esse privilégio. E é interessante assinalar que todasessas práticas ou hábitos se assentam em uma base filosóficae moral que tem como dogmas a imortalidade da alma e areencarnação. Nesse contexto, o cuidado com o corpo físicotem um significado bem diferente da corpolatria ocidental,presente nas academias de ginástica.

Nas filosofias orientais, o corpo físico é o templo sagra-do da alma e merece toda nossa atenção e carinho, mas, umdia, ele deverá ser abandonado pela alma eterna, após cum-prir sua estadia na Terra. Aqui no Ocidente, ao contrário,parece que nos confundimos com o corpo e queremos queele se transforme em algo eterno e imperecível. Daí o trata-mento patológico ao corpo que observamos com frequencia.

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Essa distinção entre corpo e espírito no Ocidente, leva aosfanatismos extremistas. De um lado, a corpolatria dos mate-rialistas e, de outro, o abandono do corpo pelos que se dizemespiritualistas, como se o corpo fosse apenas uma prisão.Envolto por filosofias dicotômicas, o Ocidente ainda nãoaprendeu o valor do caminho do meio, presente em váriasfilosofias orientalistas. Um conto, cujo autor não recordo onome, tem o seguinte enredo: quando um ocidentaldesencarna, o espírito abandona o corpo e nem olha paratrás, como se o corpo fosse um lixo desprezível que o mante-ve “encarcerado” e sem “liberdade” durante tanto tempo. Ooriental, ao contrário, volta-se e, mesmo vendo o seu corpoestando inerte e em decomposição, agradece toda a oportu-nidade de crescimento e aprimoramento espiritual que ele oproporcionou durante sua estada na Terra.

É por isso que as atividades físicas e a alimentaçãoregrada não visam à criação de um corpo perfeito, pois este éperecível, mas sim proporcionar condições mais adequadaspara que a alma possa se aprimorar e se libertar do samsara(a roda da encarnação). Por isso, todas as atividades cotidi-anas para os orientais adquirem um sentido sagrado, possu-em uma significação transcendente. Assim, para a manuten-ção da saúde e, por conseguinte, obtenção da longevidade, omelhor caminho está na modificação de atitudes perante avida. Não precisamos nos tornar monges budistas ou iogues,mas podemos adotar alguns dos seus princípios sem aban-donar o olhar cientificista típico do Ocidente. Um dos maio-res culpados pelo nosso mal-estar na modernidade e adver-sário da longevidade é o estresse, além de uma alimentaçãopobre em verduras que são fontes de ferro, magnésio, cobre,zinco, como também o excesso de aditivos artificiais.

De certa forma, a filosofia oriental para a saúde é a deque “é melhor prevenir do que remediar”. No Oriente, o bommédico não é aquele que cura, mas o que impede o seu paci-ente de ficar doente. Assim, práticas saudáveis diminuem os

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riscos de enfermidades físicas e psíquicas e, conseqüentemen-te, a diminuição da necessidade de medicamentos químicos.A medicina oriental (massagem, fitoterapia, acupuntura, te-rapias energéticas etc.) é soft comparada à Ocidental, masfunciona perfeitamente bem quando o enfermo ajuda noprocesso de cura mantendo hábitos saudáveis. De certa for-ma, o enfermo também é responsável por seu tratamento, jáque a cura nunca vem apenas do exterior. O consumo deágua, nem antes nem após as refeições para não diluir ossucos digestivos, é importante para eliminarmos resíduos denosso corpo. Alem disso, 80% de nosso corpo é água, e deve-mos repor sempre esse precioso líquido que perdemos emnosso cotidiano. Ações e hábitos diários pautados no bomsenso é a receita Oriental para se ter uma boa saúde e, con-seqüentemente, viver por longas décadas.

A alimentação oriental não é, como alguns pensam, ex-clusivamente vegetariana. Ela costuma ser balanceada enatural, com o consumo equilibrado de proteínas, gorduras,carboidratos, frutas e vegetais. E a prática de atividades físi-co-mentais como T’ai Chi, Yoga entre outros, é importantepara a manutenção do tônus muscular e, em parceria comtécnicas de respiração e de meditação, facilita a digestão, aeliminação de gases do pulmão, o sono etc. possibilitandovigor e saúde ao corpo e à mente. Em resumo, exercícios apro-priados, respiração profunda, abstenção do consumo de ci-garros e uma alimentação saudável regeneram os tecidos eretardam o envelhecimento.

Se conseguirmos criar uma rotina diária com consumoequilibrado de gorduras, proteínas, carboidratos, frutas everduras frescas e procurarmos manter uma relação harmo-niosa de trabalho, descanso, sono e lazer, sentiremos em poucotempo um profundo impacto em nosso bem-estar físico, men-tal, emocional e espiritual. Essa relação deve ser levada ain-da mais a sério em casos de depressão e, se possível, abolindoo consumo de açúcar refinado ou de produtos que conte-

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nham cafeína e, sobretudo, o uso de bebidas alcoólicas e dro-gas, o processo de restauração e o re-equilíbrio emocionalocorrem mais rapidamente.

Superar o medo é outra coisa que precisamos atentar sequeremos ter uma vida longa e saudável. As filosofias orien-tais nos ensinam a não ter medo, seja da crítica, da morte,das mudanças, do fracasso, do que quer que seja. O medopode paralisar, pois é um estado emocional desagradável eleva, muitas vezes, a estados de angústia injustificáveis. Acuriosidade, que é um “impulso” saudável e natural nas cri-anças, com o passar do tempo e com a experiência adquiri-da, é substituída pela precaução. Esse processo é saudável sea precaução não se transformar ou se degenerar em medo. Eesse processo é muito mais comum do que possamos imagi-nar. Assim, da curiosidade saudável passamos a ter medo dodesconhecido. Encolhemo-nos dentro de uma concha quesupomos ser um mundo familiar ou de pleno domínio e pas-samos a rejeitar tudo que possa romper a casca que nos pro-tege do mundo exterior, deixando de ter confiança em nos-sas próprias capacidades criativas. E é através do medo, tam-bém, que surge o dogmatismo religioso, cientifico e tantosoutros.

Mas, assim como ocorre em outras faixas etárias, o ido-so costuma ser tratado como um consumidor. Essa palavra émuito interessante. De uma metáfora bizarra criada porpublicitários, transformou-se em categoria sociológica. Ori-ginalmente, ela comparava o ser humano ao estômago, ór-gão que digere os alimentos que caem em seu interior. O ob-jetivo dos publicitários era nos transformar em consumido-res de toda e qualquer quinquilharia. Infelizmente, pareceque conseguiram. Hoje existe até órgãos que protegem o con-sumidor. Quem sabe, um dia, teremos órgãos que protejam,de fato, o cidadão. Como vimos nos itens anteriores, a condi-ção do idoso nos países “emergentes” não é das melhores.Muito ainda está por ser feito para que o idoso possa alcan-

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çar o status de “cidadão”. Porém, cidadania não é apenaster direitos, e pode ser enriquecida e exercida através, porexemplo, do voluntariado. Ou seja, o idoso também poderiater oportunidades para disponibilizar seus conhecimentos esuas experiências adquiridas com o passar dos anos auxili-ando a comunidade. Com isso, quem sabe, além de ser a“melhor idade”, esse período de nossas vidas também pode-ria ser classificado como o momento da fratern(a)idade.

Essa forma de envelhecimento “participativo” poderiacontribuir para que não houvesse mais a marginalização so-cial do idoso, podendo interagir com pessoas de outras clas-ses sociais e faixas etárias. Tanto o idoso como a comunidadeganhariam com o trabalho voluntário, pois, ao contrário doque se pensa, a energia, a experiência e a generosidade doidoso podem ser um imenso potencial criador e inventivoque não pode ser desperdiçado. Devemos pensar que é tam-bém um direito poder mobilizar-se, ser voluntário. Normal-mente, o que falta são canais, meios instituídos para que oidoso integre-se e participe livremente. A possibilidade deusar o tempo livre para a solidariedade é uma maneira de sedoar, de mostrar o talento muitas vezes oculto ou desvalori-zado pela própria família. E, como é dando que se recebe, oenriquecimento de vida propiciado pela convivência compessoas diferentes, permite ao idoso a oportunidade de apren-der coisas novas, distantes das novelas e dos programas pas-teurizados da TV e, acima de tudo, permite a ele satisfazer-se por se sentir ainda uma pessoa útil.

É importante que o idoso seja pensado como umbeneficiário, que tenha todos os seus direitos garantidos. Éimportante que viva, de fato, a “melhor-idade”. Mas, se forpossível ser valorizado como uma pessoa que ainda tem ini-ciativa e se solidariza com a transformação social, ou seja,que possa ser integrante da frater(a)idade, possivelmente terámuito mais auto-estima e força de vontade. Ao comparti-lhar alegrias, ajudar a aliviar a dor e o sofrimento alheio, ao

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cuidar de alguém mais necessitado, sempre de uma formadesinteressada e com o coração aberto, o idoso estará lapi-dando ainda mais sua alma eterna, assunto com o qual en-cerraremos nossa comunicação.

A noção de consciência da finitude foi criada pelos estu-diosos da Terceira Idade. Para eles, uma das característicasdo ser idoso é a percepção de que a morte se aproxima. Po-rém, a própria ciência caminha para comprovar que a vidanão se extingue com a morte do corpo físico e que a reencar-nação é um fenômeno natural. Mas, para nós Ocidentais,embrenhados no dogmatismo materialista, tais idéias nosparecem estranhas. É por isso que precisaremos fazer umexercício de imaginação para conceber que o espírito (cons-ciência ou mente) existe independente do nosso corpo físicoe, o mais importante, que ele antecede nossa existência cor-poral. Em outras palavras, podemos imaginar o corpo físicocomo sendo a roupa especial que o espírito necessita parasua aventura/missão na Terra, assim como precisamos de umaroupa especial para realizar mergulhos no fundo do mar.

Várias pessoas vivenciam casos, classificados pela psi-quiatria como sendo “alucinação” ou “demência”, em que oidoso começa a falar que esta vendo familiares ou amigosdesencarnados. Se esse fato fosse analisado sem dogmatismo,a psiquiatria iria perceber que se trata de um fato natural.Os amigos ou familiares queridos, já desencarnados, vêm re-almente recepcionar aquele ser que, em breve, retornará aomundo da “anti-matéria”. Se aceitarmos sem preconceito essefato, conseguiremos entender melhor a função da memóriano idoso. Gerontólogos, psicólogos sociais entre outros, per-guntam-se, freqüentemente:

“Será verdade que o tempo passa mais devagar para osidosos? Eles vivem no passado porque a velhice não os deixalembrar de coisas do presente? A perspectiva de futuro seestreita porque a morte física deles se avizinha?”

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Para essas questões, inúmeras hipóteses materialistas sãoformuladas: para uns é a sociedade moderna que, ao margi-nalizar o idoso, retira-o do mundo produtivo fazendo comque o passado se torne seu único universo; para outros, tra-ta-se de distúrbios neurológicos, genéticos etc. Porém, de umponto de vista mais amplo, qual seria a função das reminis-cências na vida dos idosos? E como as lembranças se entre-laçam com o crescimento espiritual?

Sabemos que o passado e o futuro são apenas constru-ções e reconstruções mentais realizadas a partir das experiên-cias do presente vivido. Assim, estamos freqüentementecriando e recriando o nosso passado. Esse se torna mais ale-gre, mais dinâmico ou mais triste de acordo com o nosso “es-tado de espírito” atual. Assim, é óbvio que as condições ma-teriais ou a solidão da velhice estimulam esse redirecio-namento da vida do idoso para o mundo interior. Mas asreminiscências têm, também, um impulso interno, profun-do. As lembranças do passado são necessárias para que pos-samos avaliar nossa atual encarnação. E esse processo refle-te uma necessidade evolutiva inata ao espírito, relacionadaao seu desejo de se aprimorar cada vez mais. Nesse sentido,a revisão da vida é, também, uma forma de lembrança in-tencional, estruturada em torno de eventos e de pessoas paraque, o próprio idoso faça uma auto-avaliação de como apro-veitou sua vida na Terra.

E essa avaliação ou autoconhecimento é importante atépara entendermos certas enfermidades, pois muitas vezes asdoenças não são frutos da ação de vermes ou por enfermida-des ditas naturais da velhice, mas da influência do espíritosobre o corpo físico. Ou seja, são doenças psicossomáticas.Assim, a preguiça que pode gerar reumatismo é um “atribu-to” do espírito, a gula que causa desarranjo no sistema diges-tivo é também um “atributo”, e assim sucessivamente. Emsuma, as doenças físicas, quase sempre, são somatizações ge-radas a partir do acúmulo de energias negativas em nosso cor-

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po energético (perispírito para os espíritas ou pranamayakoshapara os hindus), produzidas pelo nosso próprio pensamentoou sentimentos deletérios ou por atitudes estimuladas pelainveja, pelo egoísmo etc. Mas, para compreendermos esseprocesso, é necessário, em primeiro lugar, entender como fun-ciona esse corpo energético que citamos acima e como eleinfluencia o nosso corpo físico. Os orientais, que há milêniosacreditam na vida após a morte e na reencarnação, sabemque o nosso corpo físico é o reflexo deste corpo energético.Assim é que surgem as chamadas “doenças cármicas”. Tra-ta-se de uma forma de purificação do corpo energético quedrena para o corpo físico as impurezas acumuladas em dife-rentes encarnações comprometedoras.

Para saber quem era você no passado basta examinarcomo você é no presente. Seu corpo físico atual traz as “mar-cas” de suas encarnações passadas. É por isso que para en-xugar carmas só há dois caminhos: “o suor do trabalho opos-to feito com amor” ou as “lágrimas da dor”. Assim, em linhasgerais, podemos afirmar que sendo o nosso corpo energéticointermediário entre o corpo físico e a alma, devemos com-preender que esta deseja o que quer, o nosso corpo energéticotransmite a ordem e o corpo físico obedece. Mas o nosso cor-po energético também age no sentido oposto. As sensaçõesdo mundo exterior que chegam ao corpo físico são transmiti-das à alma. Porém, o que pretendemos analisar nesse mo-mento é o efeito das alterações psicológicas ou emocionaisdo ser inteligente, portanto, do espírito.

Tais alterações desorganizam vibratoriamente nossocorpo energético e, mais cedo ou mais tarde, tal desorgani-zação chegará ao corpo físico, gerando alguma patologia. Épor isso que no Oriente o médico bom é aquele que previneas doenças, ou seja, que não deixa o seu paciente ficar doen-te, como já afirmamos. Aqui no Ocidente, em que a medici-na foi criada para tratar as doenças e não o doente, seu focose concentra nos sintomas e nunca na causa da enfermida-

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de. No Oriente, o bom médico é um médico da alma, aju-dando a pessoa a superar pensamentos e sentimentos decólera, a leviandade, a maledicência, a crueldade com os se-res humanos, plantas ou animais, a calúnia, a brutalidade, atristeza e o desânimo, etc. A desarmonia mental é a maiorcausadora de enfermidades, independente da idade.

Para que a desarmonia ou o desequilíbrio mental desa-pareça, a prece e o trabalho altruísta são remédios eficien-tes. Praticados diariamente junto com exercícios energéticoscomo o T’ai Chi ou o Yoga, nós teremos muito mais condi-ções de enfrentar nossas “provas e expiações” e não cairmosenfermos do dia para a noite. Vale lembrar apenas que aprece necessita ser feita sempre com amor e não com pala-vras decoradas.

Vou ensinar um simples exercício, que possibilita com-preender um dos benefícios da prece. Essa é apenas uma desuas dimensões visíveis, outras, muito mais importantes acon-tecem. Para compreendê-las, sugiro a leitura do Livro “Evan-gelho segundo o espiritismo”, no capítulo referente à prece.O exercício que vou ensinar é o seguinte. Em primeiro lugar,vocês devem se dirigir para um local tranquilo, de preferên-cia um parque ou praça pública, ou mesmo o jardim ou quin-tal de sua casa. Procure olhar para o céu, mas nunca direta-mente para o sol. Olhe sempre para o lado oposto. Procureuma área do céu com poucas nuvens, sobressaindo o azul.Normalmente, bem cedo ou no fim da tarde, conseguimos osmelhores resultados visuais, mas o exercício pode ser feitoaté em dias de chuva e de noite, apesar de, nestes casos, apessoa necessitar de certo treino para ver o prâna, ou seja,um tipo de fluído ou partícula emanada, sobretudo, pelo sol.Essas partículas ocupam todo o espaço e é ela a responsávelem fazer com que nossas preces cheguem a Deus ou aos bonsespíritos (anjos da guarda para os católicos), que são os seusintermediários.

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Chegando ao local onde a experiência será realizada,vocês deverão contemplar o céu. Não fiquem com o olharatento, concentrado. Ao contrário, quanto mais relaxado eapaixonado for o olhar, melhor. Em pouco tempo, entre doisa cinco minutos, vocês começarão a ver pequenos corpúscu-los prateados que ficam dançando no céu como átomos. Pres-tem atenção apenas aos prateados. Alguns de vocês poderãover manchas acinzentadas. Estas são gelatinas que possuí-mos nos olhos. É fácil diferenciar. Ao movimentar os olhos,estas últimas também se movimentarão. As partículas pra-teadas não estão em nossos olhos, mas no ambiente. Quantomais puro, natural e arborizado o ambiente, maior a con-centração de fluidos ou prâna. Quando vocês começarem aver esses glóbulos de vitalidade, mentalmente façam umaprece sincera e com os olhos abertos. Não vou contar o queacontece para não estimular uma “alucinação coletiva”.Depois vocês podem anotar o que viram ou sentiram.

A nossa mente é uma grande usina atômica, produtorade energia e vibração. E se emitimos vibrações positivas, re-cebemos em dobro as mesmas vibrações; quando emitimosvibrações negativas, por exemplo, pela inveja ou ódio de al-guém, recebemos o mesmo em dobro. Trata-se de uma Leifísica ainda desconhecida por nossos acadêmicos, mas quenada tem de metafísica. Trata-se, na verdade, de hiper-físi-ca. Praticando o exercício acima, vocês verão que em poucotempo estarão mais felizes, alegres, com a mente serena e ocorpo menos dolorido. E se mantiverem o pensamento posi-tivo e hábitos alimentares saudáveis, além de praticar exer-cícios orientados, terão uma vida plena e longa, de corpo ede alma.

Para encerrarmos esse bate-papo e passarmos para asperguntas, a única conclusão que posso passar a vocês é quenão tenham medo de envelhecer e, sobretudo, de morrer, umavez que a morte não existe. Passaremos, naturalmente, deuma dimensão para outra. Estaremos libertos, após o desli-

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gamento do corpo físico, da limitação imposta pelos cincosentidos. E fiquem tranqüilos. Não é porque o idoso vaimorrer velho, que ele vai andar se arrastando pelo mundoespiritual. Como disse na abertura dessa reunião, o espíritonão envelhece. O espírito apenas adquire mais responsabili-dade após cada encarnação. O espírito também se torna maismaduro com suas experiências de vida. Numa próximaencarnação, por exemplo, uma série de situações que vocêsofreu para superar na vida atual não irá te causar nenhumtranstorno. É importante saber que a felicidade é um estadoda alma e não somos felizes justamente por condicionarmosnossa felicidade a três tipos de apegos, amplamente comba-tidos por Buda: o apego material, o apego sentimental e oapego cultural. Quando tivermos, efetivamente, Fé em Deus,como ensinava Jesus, entenderemos que Ele é a causa pri-mária de todas as coisas e que nada acontece sem a permis-são divina. E Krishna nos ensina que o espírito não sofrecom balas, fogo, água ou o que quer que seja do mundo ma-terial, logo, por que ter medo de envelhecer? Pense que enve-lhecer é apenas mais uma oportunidade de vencer o orgulho,o egoísmo e, sobretudo, aprender a ser indulgente com todosaqueles que não compreendem que o idoso já não possui maisa habilidade física, mental ou social de antes.

E vocês, como cuidadores de idosos, procurem dar maisatenção às “alucinações” dos seus pacientes. Quando elesfalarem que estão vendo parentes e amigos já desencarnados,acreditem. Se eles dizem que estão enxergando vultos ne-gros ou seres horripilantes, convide-os para uma prece since-ra por aquele irmão desencarnado que ainda não encontrou“paz de espírito”. Muitos remédios químicos e internaçõespoderão ser evitados se atentarmos para essa dimensão davida humanizada.

Obrigado pela atenção e que Deus ilumine todos vocêsneste importante trabalho como cuidadores de idosos.

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MEDIUNIDADE NA TERCEIRA IDADE

Este paper é fruto de uma pesquisa mais ampla denomi-nada “Gerontagogia Holonômica: a arte de envelhecer comsaúde e paz interior”, que começou a ser delineada no anode 2004 quando fui convidado para ministrar uma palestraem um curso para cuidadores de idosos que ocorreu na Fun-dação Educacional São Carlos (FESC). Naquela ocasião,abordei o tema “envelhecimento e espiritualidade: para alémda consciência da finitude”. Um dos pressupostos daGerontagogia Holonômica é a compreensão de que somosEspíritos eternos e que o Espírito não envelhece. Essa acei-tação da realidade espiritual nos ajuda a compreender vári-os fenômenos que a abordagem materialista não é capaz deexplicar.

Neste trabalho abordarei a experiência de duas senho-ras que descobriram que eram médiuns na Terceira Idade, eque aceitaram com naturalidade o fenômeno e hoje convi-vem de forma harmoniosa com esse potencial psíquico, semque o mesmo afete o seu cotidiano. Ambas são alunas daUniversidade Aberta da Terceira Idade, um dos programasmantidos pela Fundação Educacional São Carlos (FESC),na cidade de São Carlos.

A primeira aluna ingressou na escola no ano de 2005,quando estava com 58 anos de idade. Certo dia, manifes-tando uma desesperadora crise depressiva, além de sofrercom visões e outros fenômenos que a ciência tradicional clas-sificaria como sintomas de esquizofrenia, ela foi orientadapor outra aluna a me procurar. Conversando com ela emparticular, notei que a aluna apresentava sinais de umamediunidade ostensiva e que precisava conhecer melhor ofenômeno para saber lidar com ele. Expliquei o meu pontode vista e ela me respondeu que era católica praticante eque nunca tinha acreditado na possibilidade da mediunidade

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existir. Porém, devido à gravidade de seu problema, pediu-me auxilio.

Com experiência na formação não religiosa de médiuns,desde 2001, a convidei para participar de um novo grupoque estava sendo organizado em meu consultório. Ela esta-ria participando junto com outras pessoas que apresenta-vam um quadro similar ao dela, e todos sem nenhuma expe-riência anterior com a mediunidade.

Ela aceitou participar do grupo e, após alguns meses deestudos, começou a dar “passagem” para entidades espiritu-ais típicas da Umbanda, como os “pretos-velhos”, os “índios”,as “crianças”, os “médicos” e os “ciganos”.

Após adquirir confiança e mais controle sobre esse fe-nômeno, a aluna foi trabalhar em um centro espiritualistalocalizado na cidade de São Carlos/SP que realiza trabalhosde Umbanda e de Apometria. Além da incorporação, elapassou a psicografar mensagens, principalmente de sua mãee de seu marido, ambos já falecidos. Em 2007, ela foi procu-rada por uma jornalista da revista “Sou mais eu!” e foi capade uma edição cujo tema foi “eu converso com os espíritos”.A aluna não deixa de freqüentar a igreja católica, mas hojeaceita o fenômeno mediúnico com mais naturalidade e sere-nidade. “Da mesma forma que a Igreja teve que aceitar quea Terra é redonda e gira em torno do Sol, terá que aceitar,um dia, que nossa pátria é o mundo espiritual e que, quan-do Deus permite, existe a possibilidade de comunicação en-tre os ‘mortos’ e os ‘vivos’, como registra a Bíblia na passa-gem em que o rei Saul conversou com Samuel, já morto”, elaafirma.

Em 2005, gravei um áudio com a aluna “incorporada”,dando passagem para um “preto-velho” que se identificacomo pai Jeremias. O Espírito, no áudio, dá conselhos paraum casal que possui um parente com mal de Alzheimer. Oáudio pode ser acessado na Internet, através do seguinteendereço: http://www.youtube.com/watch?v=xfsfbAoG5-k.

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O segundo caso é de uma senhora com 73 anos de ida-de e também aluna da Universidade Aberta da Terceira Ida-de. Coletei um depoimento dessa aluna, abordando a suaexperiência mediúnica, publicando fragmentos de sua falano livro Gênero e Espiritualidade: introdução ao estudo dasimagens e do imaginário do invisível.

Ela nos narra que por volta dos 40 anos de idade, apóso nascimento de sua terceira filha, começou a manifestar umaforte alergia. Foi orientada por um médico a tomar cortizona,remédio que começou a lhe trazer fortes complicações desaúde, devido aos efeitos colaterais que acarreta no organis-mo.

Convidada para conhecer o trabalho de um Centro Es-pírita na cidade de São Carlos/SP, chamado Luz e Caridade,foi lá que conheceu uma pessoa que lhe indicou um trata-mento com regressão de memória. Durante a regressãoacessou uma lembrança em que aparece em um campo deconcentração nazista, onde teria desencarnado asfixiandogás mostarda. Com a lembrança desse fato, não teve mais oproblema de alergia que tanto a incomodava e não precisoumais tomar cortizona.

Ela nos narra que após o nascimento da filha começoutambém a ter vidências. Hoje ela trabalha como médium nocentro acima, local que freqüenta há mais de 30 anos, semque isso afete ou prejudique sua vida cotidiana. Em suma, amediunidade é mais um fato natural que faz parte de suarotina, apesar de muitos acadêmicos ainda considerarem ofenômeno como um sintoma de patologia mental.

Felizmente, esse quadro começa a dar sinal de falência,e não só no Brasil. Em junho de 2008, aconteceu o I Encon-tro Anual da Sociedade Espiritualidade, Teologia e Saúdenos EUA e, aqui no Brasil, em abril de 2009, no III SimpósioInternacional sobre Religiosidades, Diálogos Culturais eHibridações, na cidade de Campo Grande/MS, aconteceu o

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simpósio temático “Nova perspectiva para o século XXI: odiálogo entre ciência, religião e espiritualidade”, com a apre-sentação de 24 trabalhos.

Entre eles, podemos citar um que tem relação direta como nosso tema: “Estados alterados de consciência, percepçõesextra-sensoriais e mediunidade: percepções que agravam ocurso das doenças mentais?”, apresentado pelos médicos AlexLeite Melo e Leila Dittmar Moreira, trabalho no qual osautores demonstram que a mediunidade é um fenômenonatural e sua prática não pode ser apontada como causa dedoenças mentais, afirmando, inclusive que o DSM-IV, ouseja, o Diagnostic and Statistical Manual of MentalDisorders - Fourth Edition (publicado pela Associação Psi-quiátrica Americana - APA), criou uma nova categoria paraestudos (Problemas espirituais e religiosos) com o objetivode melhor compreender alguns fenômenos, entre eles amediunidade.

E como afirma Denise de Assis, coordenadora dosimpósio temático acima citado:

“Atualmente, fatores religiosos e espirituais têm se confi-gurado como tema de pesquisa na área de psiquiatria. Pormuito tempo, crenças e práticas religiosas estiveram dire-tamente relacionadas à histeria, neurose e delíriospsicóticos, no entanto, estudos recentes têm revelado ou-tro lado da religião, servindo como recurso psicológico esocial para lidar com situações estressantes. Há algum tem-po atrás, religião e saúde mental estiveram estreitamenteligadas. Muitos dos primeiros hospitais psiquiátricos fica-vam em monastérios e eram dirigidos por padres. Comalgumas exceções, tais instituições tratavam os pacientescom mais compaixão do que as instituições do governo.Nos EUA, o primeiro método empregado na área de psi-quiatria foi o ‘tratamento moral’, que envolvia um trata-mento compassivo e humanitário dos doentes mentais. Istose configurou numa revolução para uma época em que os

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pacientes psiquiátricos eram expostos ou internados emcondições desprezíveis nos fundos dos hospitais ou dasprisões. Acreditava-se que a religião exercia uma influên-cia positiva e civilizadora nos pacientes que poderiam serrecompensados por boa conduta assistindo aos trabalhosreligiosos.

No final do século XIX, no entanto, o neurologista JeanCharcot e Sigmund Freud começaram a associar religiãocom histeria e neurose. Este fato criou uma divisão quesepararia a religião da saúde mental durante o século XX.Atualmente, este quadro vem mudando. Freud foi um dosgrandes opositores da religião. Em O Futuro de uma Ilu-são, ele esboçou a idéia de que a religião estaria ligada aodesamparo que temos na infância, suprido pela figura dopai, que fornece proteção. Como o reconhecimento destedesamparo continua durante a vida, foi necessária a cria-ção de um pai mais poderoso. Assim o governo benevolen-te de uma providência divina seria capaz de mitigar otemor dos perigos da vida. Por outro lado, também afir-mou que a nossa civilização se ergueu sobre os parâmetrosditados pela religião e caso as doutrinas religiosas caíssempor terra, os homens se sentiriam isentos de toda e qual-quer obrigação de obedecer aos preceitos da civilização,pois dariam vazão a todo seu egoísmo procurando exercerseu poder. Com a chegada do século XXI, uma nova situ-ação começou a surgir na sociedade. O aumento do núme-ro das pessoas ‘sem-religião’. Este fenômeno, atualmente,vem se caracterizando pela distinção entre Religião eEspiritualidade”.

A distinção entre religião e espiritualidade, como apre-sentada acima, é de fundamental importância para se pen-sar o tema mediunidade, uma vez que, enquanto um fenô-meno social, ela está presente em todas as tradições cultu-rais e pode se manifestar inclusive em pessoas sem religião.

Algumas culturas tratam a mediunidade como algo ne-gativo e que deve ser combatida, enquanto outras apóiam a

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sua prática. Porém, como fenômeno bio-sócio-psíquico elatem uma importância filosófica e cientifica que pode vir aprovar ou não a existência da vida após a morte. E comoaponta ainda a pesquisadora Denise de Assis: “

Segundo pesquisa do IBGE, em 1980 o grupo conhecidocomo pessoas ‘sem religião’ representava 1,6% da popula-ção brasileira. No ano 2000, passou a representar 7,3%.Estes dados estatísticos dizem respeito à população brasi-leira, no entanto, tal fenômeno é mundial. A característi-ca marcante deste novo cenário se resume ao fato de queapesar de não estarem vinculadas a nenhum grupo religi-oso, as pessoas adotam formas pessoais de religiosidade,ou a uma busca pela espiritualidade. De acordo comLarson, Swyers e McCullough (1998), os termos religiosi-dade e espiritualidade foram destacados muito recente-mente. A religiosidade além das crenças pessoais em umDeus ou poder superior inclui práticas institucionais, coma freqüência a cultos envolvendo compromissos doutriná-rios de uma religião organizada. Já a espiritualidade dizrespeito a uma busca espiritual individualizada indepen-dente de qualquer outra forma de culto. Dá-se preferênciaà experiência espiritual direta em contraposição às práti-cas de culto das religiões institucionalizadas”.

Apesar de, no Brasil, a mediunidade ainda estar forte-mente ligada a grupos religiosos, já se pode notar sua presen-ça em pessoas que não se preocupam em participar de umareligião institucionalizada. Além disso, a mediunidade podeeclodir na vida de uma pessoa em qualquer faixa etária, in-dependentemente de sua classe social, grau de escolaridadee religião.

Resolvi trazer para reflexão o caso de duas mulheres quevivenciaram o processo “tardiamente” em suas vidas, masque aceitaram o fato e hoje vivenciam a Terceira Idade deuma forma saudável e sem que a mediunidade seja um trans-torno em suas vidas cotidianas.

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Obviamente que a mediunidade, quando não é educadae compreendida, pode sim causar certos transtornos men-tais e emocionais, o que não significa que a pessoa sejaesquizofrênica, louca ou “tomada pelo demônio”. Ao aceitaro fenômeno, estudar e compreender os seus limites e possibi-lidades, a mediunidade pode ser vivenciada de forma sadia,transformando-se em uma agradável companheira de via-gem para aqueles que disponibilizam o seu tempo, amorosa-mente, no auxilio ao próximo.

E a mediunidade é uma dos fenômenos mais comunsque marcam o processo de emergência espiritual de muitaspessoas. O termo foi sugerido por Stanislav Grof para iden-tificar a eclosão de experiências dramáticas que a psiquia-tria tradicional trata como “distúrbios mentais”. A emergên-cia espiritual representa, segundo Grof, uma oportunidadede ascender para um nível superior de consciência, ou seja,de vivência da metanóia, favorecendo a individuação ou aautorrealização do Ser.

Nos dois casos que apresentamos neste estudo, foi pos-sível notar que a experiência vivenciada por estas duas mu-lheres foram relevantes e essenciais para que suas existênci-as ganhassem um novo sentido. Ambas saem deste processocom um grande sentido de bem-estar e chegam a afirmarque curaram algum problema, seja mental, emocional oufísico.

Esse processo de emergência espiritual pode acontecerde inúmeras formas e Grof descreve dez, entre as mais co-muns. São experiências rotineiramente rejeitadas pela ciên-cia tradicional, já que esta considera como real apenas o quepode ser palpável, material e mensurável.

Acredito que este processo necessite ser acompanhadopor uma animagogia (educação espiritualista) para que ametanóia se complete, levando a pessoa a atingir uma “cons-ciência superior” e, o que é mais importante, transformando

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profundamente sua vida, libertando-a de traumas emocio-nais e psicológicos que a faziam sofrer, e a ajudando a en-contrar um sentido e um propósito para sua existência.

Sem esta animagogia, o processo pode se tornar catas-trófico, uma vez que o ego, ao invés de se integrar ao Self, seinflama ainda mais com tais experiências. Nos dois casosapresentados, além da mediunidade, uma das idosas estu-dadas vivenciou uma “experiência com vidas passadas”. Ecomo quase todas as pessoas que passam por tais experiên-cias, ela também relata que as emoções e sensações são in-tensas, assim como a percepção detalhada dos ambientes edas circunstâncias.

Muitos relatam que assim que os conteúdos de umasuposta vida passada emergem plenamente na consciência,diferenças de relacionamento com outras pessoas, temoresinfundados ou enfermidades desapareceram instantanea-mente. Foi o que aconteceu com essa idosa, que teve suarinite alérgica curada ao se lembrar de ter “cheirado gásmostarda” em uma vida passada.

Tais experiências podem ser provocadas por umterapeuta competente. Apômetras relatam que o mesmoacontece com “obsessores”, ou seja, supostos seres incor-póreos que perseguem alguém por algum motivo. No mo-mento que acessam uma experiência passada, normalmenterelacionada com aquilo que acham que é o motivo do ódioque manifestam, esse sentimento tende a se desmanchar euma nova forma de encarar a vida se abre diante deles.

Enfim, são vários os fenômenos que podem propiciaruma emergência espiritual na vida de alguém. E esse proces-so pode acontecer inclusive na terceira idade, com pessoascom mais de 60 anos. Toda e qualquer emergência espiritualpode ser acompanhada de uma crise que abre uma oportu-nidade de renovação interior (metanóia) ou, ao contrário,arruinar completamente a vida dessa pessoa se o processo

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não for acompanhado por uma educação espiritualista(animagogia) que possa dar sentido e conduzir essas crisespara um nível mais profundo de existência.

E estes fenômenos, como é o caso da mediunidade, nãoestão associados com idade, classe social, grau de escolarida-de ou religião. Qualquer pessoa pode, a qualquer momento,vivenciar uma crise que renove completamente sua vida oua arruína, se não for amparada devidamente pela família,pelos educadores, por religiosos ou pelos profissionais dasaúde.

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DO ESTATUTO DO IDOSO ÀCELEBRAÇÃO DA VIDA

INTRODUÇÃO

Desde 1996 venho buscando compreender a dimensãoarquetípica e simbólica da relação envolvimento-(des)en-volvimento humano. E tenho notado que os problemas queafetam a Terceira Idade são, em sua maioria, frutos do pro-cesso de (des)envolvimento humano que se iniciou com amodernidade. Esse processo foi melhor estudado em minhatese de doutoramento, chamada Nossas lembranças mais pesso-ais podem vir morar aqui: sociagogia do (re)envolvimento e anima-ação cultural”, defendida em 2003 na Faculdade de Educa-ção da USP.

Apesar de existir um tempo histórico que costumamosclassificar como modernidade, vamos analisar a questão deoutra forma, sem nos prendermos ao tempo histórico, masvalorizando a atitude, como já fazem alguns pensadores.Partiremos do pressuposto que existem três atitudes diantedo mundo circundante e que todas acontecem simultanea-mente. Porém, em alguns períodos da história, uma ou outrapredomina. Diante da dificuldade de nomear essas três ati-tudes, vamos chamá-las, provisoriamente, de não-moderna,moderna e pós-moderna.

Podemos notar que essas três atitudes (ou ações senti-mentais) estão relacionadas diretamente às três estruturasdo imaginário definidas por Gilbert Durand: a mística, aheróica e a dramática. E podemos também notar forte ana-logia com as três formas de relação com o meio circundante(modalidades de existência) que vou chamar de: envolvi-mento, (des)envolvimento e (re)envolvimento.

Por fim, se fizermos uma comparação com os ensina-mentos espiritualistas, vamos notar que as três atitudes aci-

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ma também mantêm correspondência com os três tipos deorbes organizados, segundo os espiritualistas, para a evolu-ção espiritual humana: o “primitivo”, o de “provas e expia-ções” e o de “regeneração”.

Em suma, essas três atitudes sempre existiram na históriahumana, porém, como já salientamos, uma costuma predo-minar em determinado momento. Em linhas gerais, pode-mos desenhar o seguinte esquema:

Aqui vou apontar uma nova relação. Mircea Eliade, porexemplo, compreendeu que nos “povos primitivos” predo-minava a existência do que ele chamou de Homo religiosus.Por sua vez, entre os povos modernos, ele encontrou o quedenominou de Homo profanus. Mas qual seria o ser humanomais adaptado à atitude pós-moderna, conforme aponta-mos acima? Chamaremos este de Homo spiritualis, uma vezque, nele, predomina o imaginário dramático e a busca pelo(re)envolvimento, não só com a natureza, mas também como seu semelhante e com a sua própria alma.

Podemos notar que o Homo spiritualis não sente necessi-dade de se vincular com as religiões formais. Podemos dizerque ele não tem medo da natureza, como o Homo religiosus,nem vontade de dominá-la, como o faz o Homo profanus. Elemanifesta uma terceira forma de relacionamento com o meioambiente, muito mais harmoniosa e integrativa que as duasanteriores.

Assim, se o Homo religiosus teme a natureza, acreditandoque um trovão representa o ódio de Deus, e o Homo profanusapenas busca dominá-la e explorá-la ao máximo, o Homospiritualis busca harmonizar-se com ela, respeitando seus ci-

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clos e buscando construir um relacionamento saudável, poistem consciência da importância da natureza em sua vida.

Vamos, agora, relacionar tudo isso que falamos com aquestão do idoso. Por exemplo, nos mundos “primitivos”, emque há o predomínio do sentimento não-moderno, o idosocostuma ser respeitado. Em alguns casos, ele é temido. O con-trário, porém, acontece nos mundos de “provas e expiações”,justamente no qual predomina o sentimento moderno. Nor-malmente, nesse cenário, o idoso é considerado um estorvoou alguém que não tem mais como contribuir para o(des)envolvimento da sociedade e, por isso mesmo, é condu-zido para os chamados “depósitos de velhos”.

Felizmente, nos iminentes mundos “regenerados”, emque o sentimento pós-moderno começa a predominar e a açãocom o meio ambiente passa a ser de (re)envolvimento, o ido-so é novamente valorizado e incluído, porém de forma sau-dável e não mais autoritária. A relação com os outros deixade ser patriarcal para se tornar fratriarcal. O idoso não émais o todo-poderoso, mas um amigo mais experiente, cujahistória de vida é valorizada e respeitada.

Em outras palavras, o idoso (des)integrado é um frutoda modernidade, do predomínio do imaginário heróico e do(des)envolvimento humano ainda predominante no mundocontemporâneo. Por sua vez, o idoso (re)integrado é frutoda pós-modernidade, do predomínio do imaginário dramá-tico e do processo de (re)envolvimento humano que começaa florescer no mundo contemporâneo.

Nesse sentido, as escolas e centros socioculturais volta-dos para o idoso já são frutos de diferente atitude, aindaincipiente no mundo atual, mas que começa a tomar formamais clara e definida. Nesses locais, os idosos recuperam suadignidade e humanidade. São tratados como “gente”, elesgostam de afirmar.

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DO ESTATUTO DO IDOSO À CELEBRAÇÃO DA VIDA

No dia 01 de outubro de 2003, o presidente da repúbli-ca Luiz Inácio da Silva, sancionou o Estatuto do Idoso. Masforam necessários 20 anos para ele virar realidade. Em 1983,várias entidades sociais começaram a discutir a necessidadede uma lei que garantisse alguns direitos aos aposentados.E, em 1997, o então deputado federal, Paulo Paim, sistema-tizou várias propostas e apresentou um projeto de lei àcâmera federal, aprovado em 1999, quando uma comissãofoi criada para elaborar o Estatuto do Idoso. E, em 2003, acampanha da fraternidade da CNBB e a novela principal darede Globo, “Mulheres Apaixonadas”, enfatizaram a ques-tão do idoso, ajudando a criar uma ambiência favorável paraa aprovação daquele documento, o que aconteceu em agos-to e setembro, respectivamente, na câmara dos deputados eno senado federal.

Apesar da importância do Estatuto para garantir dife-rentes direitos aos idosos, é no âmbito da Ação Cultural quepodemos atuar para sensibilizar várias gerações e o próprioidoso para respeitar e fazer valer estes direitos.

E como nos sugere Teixeira Coelho, a proposta da AçãoCultural é a de usar o modo operativo da arte - livre,libertário, questionador, que carrega em si o espírito da uto-pia - para revitalizar laços comunitários corroídos e interio-res individuais dilacerados por um cotidiano fragmentante.Essa proposta se insere perfeitamente no contexto dasociagogia do (re)envolvimento humano. E, para que talrevitalização aconteça, é importante o desabrochar do sen-timento topofílico, ou seja, a afeição pelo espaço vivido. Emsuma, a topofilia é cultivada quando uma pessoa ou um gru-po identifica-se com o local, sente-o como seu lar e de seusantepassados e, lembrando o geógrafo chinês Yi-Fu Tuan, casoo grupo deliberadamente mude seu ambiente e o controle,pouco motivo há para sentir saudade ou nostalgia do passado.

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Além disso, é importante salientarmos que o idoso doséculo XXI não é mais aquele idoso estudado por Ecléa Bosi,em meados da década de 1970, que trazia em sua fala ummundo anterior à Revolução Industrial ou que dela haviasido excluído. Não foi por acaso que sua psicologia ficou co-nhecida como “psicologia do oprimido”.

Porém, o idoso de hoje tem por “tradição” justamente amodernidade. Esse idoso traz na alma as marcas da trans-formação tecnológica e cultural, os sinais da globalização;muitos até namoram pela Internet.

Em outras palavras, se a sociedade moderna estudadapor Ecléa Bosi, em sua vertente capitalista ou socialista, des-truiu os suportes materiais e espirituais da memória daqueleidoso sem recursos econômicos, excluindo-o dos sabores damodernidade, hoje em dia, é comum encontrar idosos rei-vindicando atividades sociais, culturais, recreativas, espiri-tuais e corporais para que seu tempo ocioso seja não apenasocupado, mas reinventado de forma constante e neg-entrópica, possibilitando o prazer e a felicidade que mere-cem e de que necessitam.

Em suma, o idoso pós-moderno não é aquele cuja únicaesperança é aguardar o dia em que a foice de Cronos virápara ceifar os liames que o impede de se libertar da dor e dosofrimento, mas aquele que aproveita esse momento de suaexistência humana para celebrar a Vida, para amar e ser feliz.

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