a antiguidade tardia em textos - o fim do imperio romano - andre bueno

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O Fim do Império Romano . Do Escravismo à Servidão - A transformação das condições de trabalho e do estatuto jurídico dos trabalhadores no final da antiguidade, séc. V- X (comentado por Mayte Vieira). . Prólogo a respeito de dois conceitos muito antigos: Império universal e decadência do Estado – Nesta série de três textos do livro “O Fim do mundo antigo”, Mazzarino discute de forma brilhante a origem dos conceitos de “decadência” do mundo romano e a percepção do fim do mundo antigo (comentado por Alam Arezi)

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Page 1: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

O Fim do Império Romano

. Do Escravismo à Servidão - A transformação das condições de trabalho e do estatuto jurídico dos trabalhadores no final da antiguidade, séc. V- X (comentado por Mayte Vieira).

. Prólogo a respeito de dois conceitos muito antigos: Império universal e decadência do Estado – Nesta série de três textos do livro “O Fim do mundo antigo”, Mazzarino discute de forma brilhante a origem dos conceitos de “decadência” do mundo romano e a percepção do fim do mundo antigo (comentado por Alam Arezi)

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. Final dos tempos ou crise no Império – Na continuação do 1º texto, Mazzarino coloca em questão: como o império romano percebe as crises iminentes que abalariam sua estrutura?

. "Inimigos externos" e "Inimigos internos" – Não apenas as invasões bárbaras, mas o próprio império se encontrava solapado em suas estruturas internas. Neste terceiro texto, Mazzarino desenvolve ainda mais as múltiplas possibilidades de analisarmos o mundo romano preste as ingressar na antiguidade tardia.

. Marcas da experiência romana – por Robert Lopez, este texto nos traz um panorama sobre o mundo romano antes da antiguidade tardia, suas estruturas, cultura e geografia.

. Em direção ao Abismo – neste segundo texto, Lopez analisa o impacto das invasões germânicas, e a incapacidade do mundo romano reagir. Mas não seriam estes modelos cíclicos? (Comentado por Mayte Vieira)

. As Invasões Bárbaras pelos cronistas da Época – Nesta seleção de fragmentos, Fernanda Espinosa nos apresenta as invasões bárbaras pelos olhos de cronistas de um império romano à beira da destruição.

. A Crise política no Século 3 - Publicado em 1926, o livro de Ferdinand Lot "O Fim do mundo antigo", apesar de superado, merece um olhar atento pelo modo como trata, de forma abrangente, o final da antiguidade clássica.

. A Restauração do Mundo Romano - Uma outra seção do mesmo livro de Lot.

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. A Instalação dos Bárbaros - Século V - VIII - Neste texto, o consagrado historiador Jacques Le Goff apresenta sua visão sobre a queda do mundo romano, na primeira parte de sua "História do Ocidente Medieval". Comentado por Bruna Colita

Do Escravismo à Servidão

O problema das "origens" do feudalismo gerou inúmeras polêmicas

sobre o fim do Império Romano no Ocidente (século V) e o

surgimento das instituições feudais. Comumente, aceita-se a tese da

junção de formas sociais romanas e germânicas que, justapostas,

engendrariam as bases da sociedade feudal. Este ponto de vista

destaca o fato de que a Idade Média, em suas origens, assiste ao

encontro de povos e civilizações em estágios bastante desiguais de

desenvolvimento. Teríamos, por um lado, sociedades com estruturas

econômicas e sociais bastante complexas no interior do Império

Romano e, de outro, os germanos com sua organização tribal e

nômade (M. Bloch, 1947). Assim, o fim do império e a "quebra" da

economia antiga se explicariam como resultado do "assalto

germânico", que teria como conseqüência a destruição de boa parte

das forças produtivas e a regressão econômica e social (Piganiol,

1965).

Outros historiadores têm procurado ver na própria crise interna do

império, particularmente a partir do século IV, as causas da

decadência romana e sua fragilidade em face dos bárbaros (F. Lot,

1950). É ao longo das crises, e das soluções encontradas pelos

imperadores e juristas romanos, que se esboçarão as tendências que

marcam o feudalismo: ruralização/latifundização e nivelamento

social e jurídico dos trabalhadores, de um lado, e, de outro, a

decomposição do poder público, com sua efetiva distribuição entre

representantes do príncipe. De qualquer forma, a maioria dos

autores contemporâneos concordaria com a afirmação de que "o

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império estava condenado" (G. Bloch, 1921), sendo que a presença

das tribos germânicas teve o papel de tornar complexa uma crise em

pleno curso. Assim, pode-se buscar no mundo romano os elementos

constitutivos fundamentais do feudalismo: os latifundia, o colonato e

a adscrição geral dos trabalhadores, enquanto os germanos

contribuiriam com a noção de fidelidade pessoal, o patrimonialismo

e a inexistência da noção de res pública (F. Lot, 1950).

Um outro aspecto da mesma polêmica, talvez mais ideologizado,

reside na dificuldade em identificar o "motor" da crise. Para

historiadores como Lot e G. Bloch, o expansionismo militar e sua

crise, com a conseqüente dificuldade de refazer os contingentes de

escravos, assim como o colapso das estruturas fiscais e financeiras e

da administração municipal, teriam um papel central na crise

romana. Já para outros, principalmente os historiadores reunidos em

tomo da revista soviética Vestnik Drevnei lstorii, o motor da crise

residiria nas sucessivas revoltas antiescravistas e camponesas (como

as bagaudes) que assolam os últimos anos do Império. Para estes

autores, as "causas" só poderiam ser internas e, sem dúvida,

relacionadas diretamente às lutas de classes que oporiam senhores

(potentiares) e a grande massa de trabalhadores rurais (humiliores).

Tanto S. L Kovaliov quanto E. M. Schtajerman, mal grado as

diferenças de ênfase, centram suas análises no que denominam a

"revolução social antiescravista" que teria marcado, com vagas de

intensidade crescente, a história romana dos séculos III, IV e V

(Schtajerman, 1955).

Mais recentemente, esta mesma tese foi retomada por vários

historiadores preocupados em demonstrar que, sob uma aparente

calma, o Império era, em verdade, varrido por uma surda vaga de

revolta social, normalmente enfrentada com incrível rigor pelas

autoridades romanas (E. A. Thompson, 1952; J. Gagé, 1964; M. E.

Mazza, 1970). Pela construção teórica mais elaborada, destacam-se

dois historiadores contemporâneos: Perry Anderson (1977) e Pierre

Dockès (1979), que denunciam a visão "de classe" da historiografia

tradicional sempre disposta a ver nos movimentos populares

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manifestações de banditismo ou simples "tumultos". Dockès denuncia

estudiosos como Le Glay (1975) que, mais preocupados com "a ordem

social romana e sua manutenção" num mundo assaltado pela

barbárie, não vêem, ou não querem ver, a profunda miséria das

próprias populações romanas submetidas aos potentiares.

Para muitos destes autores, à história impunha decidir entre a

civilização, ou seja, a ordem romana, ou a "anarquia bagaudes",

como escreve Rémondon (1964). Neste sentido, parece fora de

dúvida que Dockés está correto ao denunciar grande parte da

literatura sobre a "crise" como apologética do Império e da sua

ordem social. Na verdade, esta mesma ordem social estava

seriamente abalada desde o reinado de Cômodo (180 D. C. ca*),

quando surge um profundo movimento insurrecional na Gália. Este

movimento, que se estende até o século V, parece ser conseqüência

imediata da pauperização crescente das massas trabalhadoras do

campo.

No seu conjunto, todo o Império parecia empobrecer: fora as grandes

construções de Diocleciano (284-303) em Roma e as reformas feitas,

talvez com excessivo luxo para a época, por Constantino (323-337)

em Constantinopla nada mais se faz nas províncias; as cidades

destruídas pelas primeiras invasões mal são reconstruídas; as minas

são abandonadas e (sinal máximo do empobrecimento romano) os

jogos circenses são interrompidos. Junto ao povo a situação é bem

mais dramática: nos campos, a miséria lança sobre as grandes rotas

bandos de vagabundos e desocupados que, em busca de trabalho,

dinheiro ou comida, se transformavam em bandidos (O. Bloch, 1921).

Daí era um passo para, em bandos mais ou menos armados, surgirem

como real ameaça à ordem estabelecida. Não devemos esperar

grupos organizados politicamente e agrupados em torno de uma

ideologia qualquer. Os motivos da revolta são comuns a todos, e a

organização inicialmente é acidental, fatos que talvez expliquem a

força e persistência da revolta. Na Gália estas revoltas são

denominadas bagaudes, antecessoras da tradicional jacquerie

francesa. O movimento empolga, em pouco tempo, toda a Gália,

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forçando Diocleciano a enviar Maximiniano para reprimir o

movimento de forma extremamente violenta. Depois de ficar

restringido a Saint-Mar e Paris, o movimento bagaude retoma fôlego

e expande-se novamente, inclusive para a Hispânia (Península

Ibérica), e embora seja vencido não foi realmente derrotado, como

bem assinala Georges Duby.

Paralelamente, também a Africa do Norte assistia a um amplo

movimento de rebeldia social. Os camponeses pobres escudados em

movimentos religiosos, como o cisma donatista (separação do bispo

Donato, de Cartago, em 315, rompido com os cristãos que

claudicaram durante as perseguições de Diocleciano), chegaram a

contar com o apoio de 300 bispos (F. Lot) que constituíram uma seita

- milites Christi -, que assume uma feição reformista no campo.

Estes circuncelliones pedem o fim da escravidão, a divisão dos bens e

das propriedades e a abolição das dívidas, promovendo, para tal,

uma verdadeira "guerra aos ricos" (G. Bloch), só interrompida pela

invasão vândala no norte da África.

Tais revoltas, associadas à penetração, violenta ou não, dos

bárbaros, provocam uma profunda sensação de insegurança e de

crise nas autoridades da época. Como não poderia deixar de ser, esse

sentimento é expresso também pela "inteligência" da época,

normalmente cristãos, e mesmo pelos bispos. São obras como as de

Salviano ou Agostinho que se constituem em fontes para os

historiadores, que podem, assim, correr o risco de ler a história da

época através destes homens. Salviano (Do Gubernatione Dei) é

particularmente sensível às associações entre rebeldes e bárbaros,

que transformavam algumas regiões em "lugares onde se vive

freqüentemente a lei natural e onde tudo é permitido".

Devemos entretanto concordar com Duby quando escreve que tais

revoltas permanecerão sempre "mal conhecidas, deformadas". Nada

sabemos sobre as origens sociais destes movimentos; nem mesmo

sabemos se seus protagonistas eram camponeses livres associados a

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escravos ou apenas homens livres. De qualquer forma, Dockès tem

razão em pedir um maior espaço para os movimentos sociais da

época (e não só as doze linhas de Lot no seu excelente livro). Mas

isso não é tudo, pois inferir daí que o Império romano sucumbiu ao

peso da revolta social, como quer, por exemplo, Kevaliev, é ir longe

demais. Na verdade, a mesma série de fenômenos que deu origem às

revoltas sociais parece ter impossibilitado, ao Império, manter a

ordem interna e a defesa dos limes contra a pressão germânica.

Desta forma, entenderíamos que um Estado forte e rico não seria

derrubado nem "por dentro" nem "por fora".

Historiadores como A. Boack, caminhando um pouco nessa linha, têm

buscado outros elementos para explicar a "queda" do Império. Surgiu,

assim, amplo debate sobre o movimento populacional do Império,

opondo, de um lado, Boack com a tese de despovoamento maciço

(em virtude das pestes e das guerras danubianas) e, de outro, M.

Finley que considerava o termo despovoamento muito forte para ser

aplicado a Roma e seu Império. Para Finley (1966) há uma extensa

inter-relação de fenômenos que abrangem da pressão bárbara nas

fronteiras à necessidade de maiores impostos e mais homens para

manter um exército contra estes mesmos bárbaros. A. Bernardi

(1965) também destaca o peso do exército no conjunto da estrutura

estatal romana, assim como da burocracia responsável por

instituições próximas de um "wellfare state" (distribuição dos

alimenta, a anona etc...). Diante de tantas necessidades, o sistema

fiscal teria falhado, permitindo que o mais rico segmento social do

Império evadisse e deixasse de pagar impostos. Excluídos os

potentiores, coube à grande massa do povo, principalmente no

campo, arcar com as despesas do Estado. Ao mesmo tempo,

anunciavam-se duas conseqüências imediatas: as revoltas (mas

também o encomendatio) e a bancarrota do Império.

Avanço social dos escravos, recuo jurídico dos homens livres.

E intensos conflitos de classe da época do Baixo Império acabam por

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se condensar em torno dos séculos IV-V, quando sob efeito da

desorganização interna, gerada pelas comoções sociais, o Império

cederia sob a pressão externa. Assim, o século V marcaria o fim do

Império e o fim do escravismo, que cederiam lugar,

respectivamente, a uma constelação de reinos bárbaros mais ou

menos romanizados e ao desabrochar de relações sociais de novo tipo

como as diversas formas de servidão. Estariam se constituindo os

fundamentos da Idade Média e do regime feudal.

As revoltas sociais e a queda do Império não foram, entretanto,

suficientes para extinguir uma instituição como o escravismo que,

numa sociedade rural, garantia a mão-de-obra mínima necessária aos

grandes domínios. Afirmações como as de G. Hodgett (1971), de que

"as grandes propriedades não funcionavam bem quando trabalhadas

por escravos", daí sua substituição por colonus, padecem de excesso

de simplificação. Tanto as grandes propriedades funcionavam com

escravos que estes continuarão a aparecer nos documentos dos

domínios até quase o século XI.

Para resolver esta dificuldade, P. Dockès elaborou um sofisticado

esquema explicativo, onde mostra não o "fim" do escravismo antigo,

mas os "fins". Segundo ele, o escravismo teria ao menos três fins ou

crises: a primeira, ao longo do século III, quando se daria um

movimento de reforço do grande· domínio rural (villae) com a

montagem do sistema de colonato e o "estabelecimento dos

escravos", agora homini casati (utilizaremos, doravante, a expressão

"estabelecimento dos escravos" e "escravos estabelecidos" como

correspondentes a casati, housed, chasés, em vez de casamento ou

casado em face da óbvia confusão dos termos). Após a crise, como é

sabido, deu-se todo um movimento de reconstrução da ordem

imperial, com os governos fortes do século IV, particularmente com

Diocleciano (284-303) e Constantino (323-337), responsáveis pelo

restabelecimento das condições sociais anteriores. A escravidão volta

a avolumar-se, embora o colonato e os homini casati comecem a

representar o início das transformações em direção a relações sociais

de produção de um tipo novo, como veremos mais tarde.

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Passado o período de tranqüilidade, a ordem imperial é quebrada e a

România é submergida pelas vagas germânicas que provocam a

extinção (apenas momentânea, conforme Dockès) da economia

antiga com a desaparição das villae, e conseqüentemente do

escravismo, em face das invasões, fugas maciças e revoltas como as

que anteriormente descrevemos. Desta forma, o século V assiste ao

segundo fim do escravismo antigo. A vaga germânica traria em seu

bojo formas de organização da produção estranhas ao antigo mundo

mediterrâneo, como a comuna rural. O período que se estende do

século V ao VII é visto como "terra arrasada", de onde brotam as

novas formas sociais, o que, sem dúvida, entra em choque com o

conhecimento mais aceito acerca da continuidade da economia

antiga e, em particular, das instituições latinas.

Por fim, com as guerras imperiais dos carolíngios, teríamos o último

movimento de escravização, com o restabelecimento de

fornecimentos mais ou menos regulares de escravos à Itália e ao

Reino franco, provenientes das fronteiras saxônias, da Britânia e dos

limites eslavas. Este movimento, entretanto, torna-se insignificante

com o fim do império unificado no Ocidente (e das conseqüentes

guerras), impedindo um reabastecimento regular dos mercados

escravistas. Simultaneamente, a expansão dos ideais cristãos, a

mortalidade, as fugas e o movimento geral em direção à servidão

dariam um fim definitivo ao escravismo (séculos X ou XI).

Um primeiro problema que a tese de Dockès coloca é a questão das

fontes. A afirmação do desaparecimento "momentâneo" das villae e

do escravismo, a partir do século V, parece traduzir a dificuldade

documental e não uma realidade que, de resto, permanece bastante

mal conhecida. Duby chama nossa atenção para o fato de que a

documentação mais exata sobre o problema só começa a aparecer

em termo do ano 800 e, assim mesmo, nas províncias do Império

Carolíngio, ou sob sua influência, como Lombardia, Reno, Neustria e

Austrásia. Pode-se, desta forma, tomar com alguma facilidade a

ausência de documentação como uma ausência das formas sociais

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romanas no período. Por outro lado, nada parece apoiar a tese de

que a penetração germânica tenha gerado a desaparição da villae. A

grande maioria dos autores parece concordar com a relativa

continuidade entre os latifundia, ou seja, a grande propriedade

fundiária escravista, a villa e o domínio medieval. Moses Finley

descreve uma nítida tendência ao aumento do tamanho das

explorações rurais romanas ao longo do Baixo Império, chegando

alguns autores, como Clamette, a afirmar que na maior parte dos

casos é a villa da época galo-romana ou bárbara que fornece seu

quadro à senhoria, com o que concorda Duby ao dizer que o quadro

dominial é antigo embora os documentos só o revelem com clareza

no século IX.

Assim, parece ter havido uma justaposição de instituições e culturas,

com as formas germânicas convivendo, lado a lado, com as formas

latinas.

Charles Parain (C.E.R.M., 1971), retomando Marx e Engels, procura

mostrar que "sob uma camada de romanidade" sobreviviam,

particularmente na Gália, velhas estruturas herdeiras de relações

sociais de cunho tribal e coletivista e que teriam sido reativadas com

a penetração bárbara. Esta é, sem dúvida, uma proposição com a

qual M. Bloch concordaria: a velha comunidade celta - e Bloch

acreditava nela - não teria desaparecido inteiramente em face das

noções de propriedade trazidas pelos romanos. Tais "sobrevivências"

teriam adquirido importância através da recriação de um

campesinato livre a partir da população germânica. O importante é o

fato de que este novo campesinato se organizará sob formas

comunais, estendendo sua área útil, através de um continum agrário,

aos bosques e prados. Tal apropriação coletiva de bens naturais

criará uma barreira bastante eficaz à completa expropriação do

camponês, e garantirá a ele, apesar da sua pouca terra, condições de

sobrevivência.

Fustel de Coulanges e R. Latouche negam categoricamente a origem

germânica do uso comunal da terra, acusando seus oponentes de

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utilizarem fontes tardias (século XI ao XV) para provar suas teses.

Para ambos os autores, as práticas comunais eram desconhecidas dos

germânicos, entre os quais já existia a propriedade privada da terra.

Obviamente, a questão assumiu um caráter "político-ideológico", já

que colocava em questão teses defendidas pelo marxismo. Marx e

Engels (particularmente este, na Origem da Família...) retomam o

erudito alemão Von Maurer, que procura, através dos poucos

documentos disponíveis (César, Tácito e Plínio, o Velho), comprovar

o caráter coletivo da exploração da terra entre os antigos germanos.

Entretanto, os historiadores, e mesmo R. Latouche (1956),

concordam em que a forma mais antiga de propriedade conhecida

entre os germanos tinha o caráter familiar e não individual.

O mais importante, porém, é que o sistema de cultivo germânico era

de caráter comunal. Junto à aldeia, cada família possuía uma faixa

de terra estreita e longa, correspondente à ação da velha charrua

germânica. Tais faixas de terra obrigavam a uma estreita

solidariedade entre os diversos vizinhos, dando origem ao sistema

denominado campo forçado, onde os diversos vizinhos possuíam

cultivos homogêneos que facilitavam o trabalho comum. Também

eram de exploração comunal os bosques e prados, sendo

completamente desconhecida a apropriação de seus recursos. Estas

práticas, apoiadas numa vigorosa tradição costumeira, parecem ter

se alastrado por toda a antiga România, ou ao menos às partes não

diretamente incluídas na economia mediterrânea. Várias tradições

célticas teriam sido reavivadas pelo costume germânico, garantindo

ao novo campesinato condições de sobrevivência como homens

livres. Mesmo com o processo de sujeição em massa à servidão, tais

práticas tornaram-se uma garantia de recursos extras aos

trabalhadores rurais.

Assim teríamos convivendo, lado a lado, o trabalho escravo e o

camponês livre com o trabalho comunal e a propriedade familiar. O

processo que deve ser aclarado é o seguinte: como é que homens

livres, com pleno acesso à terra, perderam sua liberdade e escravos

ascenderam a uma situação de semiliberdade, igualando-se aos

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camponeses antes livres? Melhoria social e sujeição jurídica são

termos de uma única equação. Conforme o escravo melhorava sua

situação como "homem estabelecido", os demais segmentos sociais

de trabalhadores rurais iniciavam uma curva descendente na escala

jurídica da sociedade, perdendo sua condição de livres.

No final do Império Romano, a total liberdade poderia ser tão

desastrosa para um homem desprovido de riquezas e sem garantias

políticas quanto a escravidão completa. O ato de libertação do

escravo não lhe dava acesso imediato à cidadania (em alguns casos

tinha que esperar duas gerações) e, ao mesmo tempo, o tornava

bastante vulnerável. Um documento lombardo, datado deste

período, exemplifica esta situação: "seus filhos e filhas... não

querem os quatro caminhos (expressão que representava a completa

liberdade) e se contentam... com a tutela e proteção dos padres e

diáconos de Santa Maria Maggiore de Cremona" (M. Bloch, 1947).

Assim, podemos deduzir que havia graus diferentes de liberdade: os

documentos da época falam em manumisio cum obsequio e

manumisio sino obsequio. No primeiro caso, o ex-escravo permanecia

sob o patronato do antigo senhor, fazendo parte de sua clientela

(com uma série de obrigações estabelecidas), enquanto no último,

abriam-se para ele os "quatro caminhos do mundo", o que era

bastante raro. O mais corrente, porém, era o senhor alterar o

caráter do trabalho escravo, em vez de simplesmente extingui-lo. A

maioria dos senhores tratava de substituir as grandes equipes de

escravos, ou seja, a grande economia agrária escravista, por um

sistema mais adequado, economicamente, às novas condições. Os

grandes exércitos escravos, divididos em decúrias, não mais

compensavam. Principalmente, não compensava ajustar o

contingente escravo a partir dos momentos de "pique" da produção

cerealífera, gerando no restante do ano uma imensa capacidade

ociosa, que diminuiria os rendimentos e manteria o cálculo

econômico do domínio em permanente tensão.

Pelo exposto, não se pode deduzir que a escravidão, em geral, era

antieconômica. Afirmações como "a escravidão não compensava e

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por isso morreu" (F. Engels, 1884) não devem ser levadas ao pé da

letra. Morreu a grande exploração escravista, que é substituída por

pequenas equipes de escravos cujo trabalho é complementado, nos

momentos de "pique", com trabalho remunerado e/ou compulsório. A

simples afirmação de que a escravidão era antieconômica, como já

vimos, esbarra num fato: sua continuidade ao longo da Alta Idade

Média. Alguns exemplos são esclarecedores: a Capitulare de Villis et

Curtis, no primeiro terço do século IX, afirma que " ... se devem

confiar vacas aos nossos escravos para que levem a cabo os serviços

que devem" (Ed. Boretius, 1881); já o Políptico da Abadia de Saint-

Germain-des-Prés informa que " ... a mulher escrava tece sarjas com

lã do senhor e alimenta as aves do curral ... ", e o Políptico de

Irminou enumera 220 escravos... (Nota: políptico é uma palavra

proveniente do latim e quer dizer registro das contas, bens ou

rendas). Mesmo as pequenas equipes de escravos não são mais

mantidas como na época romana. Os senhores passam a entregar a

seu escravo um pequeno lote de terra (casa) que garantiria a

reprodução da família escrava e, simultaneamente, desobrigaria o

senhor e aliviaria o cálculo econômico do domínio. Este escravo

estabelecido, agora homo casatus, deveria entregar ao seu senhor

uma renda in natura (produtos variados), possuindo uma certa

autonomia em relação a sua terra. Sob influência do cristianismo,

adquire o direito de contrair casamento, poupar um pequeno pecúlio

e mesmo comprar terras. Entretanto, fazia parte do domínio e podia

ser vendido ou doado com o mesmo. Mas, principalmente, tinha a

obrigação de fornecer trabalho gratuito ao senhor a qualquer

momento que fosse solicitado, mesmo em prejuízo do seu próprio

cultivo.

O processo de estabelecimento dos escravos não foi imediato e geral.

A própria legislação carolíngia distinguia entre os "mancipia non

casata" ou "servi manuales" e os "jam casati". Mesmo nos domínios,

onde existia um grande número de casata (escravos estabelecidos em

lotes por seus senhores), coexistiam outros escravos ainda na

situação de bens móveis, também chamados de prebendados (ou

seja, que recebiam sua manutenção diretamente do senhor), embora

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seu número decresça rapidamente. Havia, ainda, escravos que

trabalhavam no campo sem casa. Na abadia de Prüm, os tenentes de

mansos livres punham seus escravos à disposição do senhor em vez

de pagarem eles mesmos as obrigações devidas. A maioria, porém -

devemos reafirmar -, era constituída de escravos estabelecidos no

interior do domínio em lotes denominados mansus servilis. O manso

era a unidade econômica e fiscal básica no interior dos domínios (um

domínio estava dividido em vários mansos livres ou servis, como

veremos proximamente).

Paralelamente ao estabelecimento dos escravos expande-se o

colonato, ou seja, a adscrição do antigo trabalhador livre à terra, o

que é definido por F. Lot (1950) como um arrendamento perpétuo e

hereditário, para quem a sujeição à terra era um direito e uma

necessidade.O colonato é, inicialmente, inaugurado pelos próprios

imperadores nos seus imensos domínios africanos, expandindo-se

mais tarde para a Itália e Gália, imitado pelos grandes senhores e,

após o século V, pela aristocracia germânica e a própria Igreja.

Visando inicialmente evitar o despovoamento do campo e a fuga ao

fisco, o colonato transforma-se de um instrumento privado em uma

prescrição de direito público, que assegurava a cobrança dos

impostos, principalmente in natura. Os colonos estavam submetidos

a dois tipos de obrigações: as prestações in natura, cujo montante

era submetido a uma convenção coletiva denominada Lex Saltus

(saltus ou fundus é um nome dado comumente ao grande domínio), e

as corvéias, ou seja, trabalho obrigatório devido ao senhor. Devemos

notar que em matéria de obrigações as diferenças entre o homo

casatus e o colono são de forma e intensidade. Enquanto o escravo

estabelecido não possui qualquer anteparo jurídico e, portanto, é

suscetível a uma exploração desenfreada, embora mantida no nível

do possível, o colono possui um texto jurídico e/ou um conjunto de

tradições que evitam uma superexploração. A generalização do

colonato parece se dever fundamentalmente à insegurança geral da

época e, fundamentalmente, à tomada de consciência por parte dos

camponeses da sua fragilidade perante o fisco.

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Os camponeses livres (rusticus, vicanus ou agricola) também se

tornam objeto de exploração fiscal por parte dos curiales (indivíduos

encarregados da arrecadação dos impostos e de quem Salviano, o

bispo de Marselha no século V, dirá: "Tantos curiales, tantos

tiranos"), obrigando-os a buscar junto aos senhores (potentiores). Tal

proteção se concretizava através de um contrato denominado

precária, pelo qual o pequeno proprietário oferecia sua terra, que

lhe era devolvida como concessão vitalícia ou hereditária por uma

vida (ou seja, incluso o filho do precarista), findo o que tornava-se

necessário renovar o ritual de sujeição. Algumas vezes, o camponês

obtém o gozo de uma terra muito mais ampla do que seu antigo

alodio (palavra proveniente de alod: terra de plena propriedade do

seu ocupante), o que faz com que o contrato perca seu caráter

leonino. Quando o motivo fiscal desaparece, com o próprio fim do

Império, o contrato de precária continua sujeitando amplos

segmentos camponeses, principalmente na época merovíngia. Tal

fato se deve à preeminência, agora, de outros fatores, como: a) os

meios de subsistência restritos dos camponeses; b) a persistência das

dívidas com os senhores; e c) o clima geral de insegurança que fazia

do camponês pasto para todo o tipo de disputas. A extensão do

regime de precária, para aqueles que ainda tinham um lote de terra,

e o colonato, para aqueles que nada tinham (ao lado do movimento

do estabelecimento dos escravos), contribuíram para a sobrevivência

do grande domínio.

Os mesmos fenômenos promovem a homogeneização da condição

social – e mais tarde jurídica – dos trabalhadores rurais, camponeses

e escravos (e mesmo libertos e bárbaros), lançando as bases de um

novo tipo de relação de exploração: a dependência servil.

Todas as três categorias passam a dever ao senhor o pagamento de

rendas in natura, chamadas em latim agrarium, o trabalho gratuito

denominado corvéia. Obviamente, o grau de exploração do

trabalhador depende de sua situação anterior, o que até o século X

será mais ou menos lembrado. Desta forma, um camponês tornado

tenente de uma terra dominial, seja isoladamente ou com toda a sua

Page 16: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

aldeia (vici), não tem as mesmas obrigações que um escravo

estabelecido. Porém, não são as rendas in natura que caracterizam

novo regime. A relação econômica fundamental que caracteriza o

regime dominial, base da sociedade feudal, são as prestações de

trabalho que garantiam o cultivo das terras do senhor: "de fato... os

donos de grandes propriedades concedem tenências, não para

receberem rendas, mas sobretudo para conseguirem serviços

regulares dos trabalhadores agrícolas" (G. Duby, 1964). Estas doações

de lotes de terras aparecem como a forma inicial de doação de um

feudo.

Vejamos como era a organização, no domínio, dos diversos mansos

(mansi). O domínio ou senhoria estava dividido em três grandes

partes: a reserva indominicata, as tenências camponesas e as terras

comuns. A reserva, terra indominicata ou manso senhorial, era a

parte do domínio pertencente diretamente ao senhor. Aí se

localizava a sede senhorial chamada curtis, em latim medieval; corte

em italiano; Hof em alemão e manoir ou manor pelos normandos

(que introduziram a expressão na Inglaterra). Sua administração era

realizada pelo senhor ou um encarregado (major ou villicus, em

latim; maire, em francês; mayer, no baixo alemão e stewart ou

bailiff em inglês). As terras dos camponeses, fossem eles homini

casati ou colonos eram denominadas mansos (mansus, em latim;

hufe, em alemão; hide, em inglês e masia, em catalão), e

correspondem a tenências (tradução de tenure, proposta por Pedra

Moacyr Campos e que mantém a fidelidade à raiz latina, tenire), ou

seja, terras em uso pelos cultivadores, doravante tenentes (do

francês tenancier), sobre as quais não possuíam a plena propriedade

(franc-alleu, alod, alódio). Estes mansos (em latim lar ou fogo, no

sentido de moradia) estavam divididos conforme a condição jurídica

de seus ocupantes. Assim, tínhamos mansos livres (mansus ingenuilis)

e mansos servis, como podemos ler no Políptico da Abadia de Saint-

Germain: “... Focaldo, escravo, e sua mulher, escrava chamada

Ragentisma, homens de Saint-Germain ocupam um manso servil...”

Dependendo da situação anterior do seu ocupante, o manso impunha

uma série de obrigações e alguns direitos que aos poucos são

Page 17: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

confundidos, a ponto de no século XI não mais existirem diferenças

entre mansos livres ou servis. Entretanto, até esta época o manso

continuará como a unidade econômica básica e a chave para a

compreensão do funcionamento da economia dominial. Marc Bloch

(in Seigneurie Française et Manoir Anglais, Paris, A. Colin, 1960) nos

dá a mais clara descrição de um manso: prédios (no sentido de

benfeitorias), campos, prados, hortas freqüentemente dispersas

sobre uma área centralizada numa casa (lar ou fogo, donde mansus)

e que se constituía numa unidade fiscal e de administração para o

senhor, primitivamente associada a uma família – conforme era

compreendida na Idade Média.

Assim, o domínio ou senhoria aparece como "uma empresa

econômica fundada sobre a colaboração do domínio (agora no

sentido restrito do curtis) e das tenências (os mansos), tendo estas

últimas como fornecedoras de mão-de-obra" (M. Bloch), ou como

prefere R. Latouche "uma grande propriedade trabalhada por

pequenos cultivadores". A divisão da antiga Villa entre pequenos

cultivadores explicar-se-ia através da necessidade de: 1) manter o

trabalhador preso à grande propriedade, através de usufruto de uma

terra, e 2) o interesse em expulsar da empresa rural os custos de

reprodução da mão-de-obra necessária, particularmente no caso dos

escravos. Na verdade, o baixo nível técnico obrigava ao uso intensivo

de mão-de-obra (o Monastério de San Giulia de Brescia dispunha de

cerca de sessenta mil jornadas de trabalho por ano, no começo do

século X), que obviamente não podia ser mantida através de salários

ou com moradia e alimentação garantidas pelo senhor (como no caso

dos escravos). Desta forma, os mansos forneciam todo o trabalho

necessário para o senhor (que poderia ter alguns escravos e

assalariados), evitando o desembolso de numerário, seja na compra

de escravos (cada vez mais difícil), seja no assalariamento.

Inversamente, ao longo de toda a Alta Idade Média, os camponeses

tenentes de mansos estavam obrigados à entrega de ovos, galinhas,

leitões, como uma renda devida ao senhor, além do que deviam

também algumas moedas de prata, requisitadas como pagamento

pelo uso de benfeitorias senhoriais ou antigos impostos que os

Page 18: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

senhores recolhiam. Porém, um ponto deve ficar claro: a relação

econômica fundamental era a prestação de corvéias, ou seja,

trabalho gratuito. As rendas não eram suficientes para sustentar a

classe senhorial, constituindo-se num ganho suplementar e nunca na

relação básica.

O modelo que acabamos de descrever é considerado a forma clássica

de funcionamento do regime dominial: a profunda associação entre a

reserva indominicata (a terra do senhor) e as tenências (mansos)

através da prestação de trabalho gratuito (corvéia) por parte dos

camponeses tenentes. Tal modelo foi construído a partir da

documentação francesa, particularmente de Saint-Germain próximo

a Paris, publicada por B. Guérard. Entretanto, conforme avançamos

em direção ao século X e às regiões periféricas ao Império Carolíngio,

parece-nos difícil reafirmar o modelo parisiense. Na Germânia, por

exemplo, a associação entre a curtis ou reserva senhorial e os

mansos só parece real no caso dos mansos servis, cujo trabalho é

complementado por equipes de escravos (ainda numerosos nas áreas

periféricas, como a fronteira eslava ou a Inglaterra). Na Itália, as

prestações in natura e trabalho são logo substituídas por pagamento

em dinheiro: os tenentes de San Giulia vendiam seda no mercado de

Brescia, no século X, e entregavam ao senhor cinqüenta soldos por

cada dez libras de produto vendido (G. Luzzatto, 1950). Por outro

lado, o sistema parece desabar em face da confusão entre mansos

livres e servis, com a tendência à equiparação das obrigações de

ambos em face da pressão interna causada pelo crescimento da

população e da produção agrícola.

Em suma, o modelo de funcionamento clássico do domínio tem

apresentado sérias dificuldades em face de uma documentação mais

recentemente publicada. Sobretudo a visão de uma economia

fechada ou natural parece estar sendo colocada em dúvida, já que a

publicação de novos documentos mostra a presença marcante do

comércio local e da moeda na vida camponesa durante a Alta Idade

Média. O próprio documento-base do modelo dominial francês, a

Capitulare de Villiset Curtis, já apontava para este fato. O item 28

Page 19: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

deste documento estabelece que a cada Quaresma "no domínio do

Ramos cuidem (os camponeses) de acordo com nossas prescrições de

trazer o dinheiro proveniente dos nossos benefícios...”. Ao mesmo

tempo, pode-se constatar, através do convite à compra de melhores

sementes, a existência de um mercado local voltado para as

necessidades de uma comunidade rural. Já o Políptico da Abadia de

Irminon refere-se à distribuição diária de ao menos quatro dinheiros

aos pobres, movimentando um total de mais de mil e quinhentas

peças por ano. Sem dúvida, são sinais da reforma monetária

empreendida pela monarquia franca, no século VIII, e do

renascimento – na verdade retomada – da vida urbana e do comércio

interno entre 750 e 850, na região entre o Sena e o Reno. As listas de

ofícios existentes para os séculos IX e X mostram uma sociedade mais

diferenciada no seu aspecto profissional, menos modelisticamente

polarizada entre camponeses e senhores. Em Saint-Germaindes-Prés,

a lista de trabalhadores considerados necessários engloba as

seguintes profissões: ferreiros, prateiros ou ourives, sapateiros,

curtidores, carpinteiros, fabricantes de escudos, pescadores,

passarinheiros, roupeiros, "gentes que saibam fazer cerveja",

padeiros, "gentes que saibam fabricar redes para a caça, a pesca e a

captura de enxames”...

Parece difícil aceitar o modelo produzido a partir do conceito de

economia natural, como Dopsch, Pirenne e os historiadores

soviéticos, e mesmo o conceito de "consumo agrário direto" proposto

por Slicher Van Bath parece colocar idênticos problemas. Entretanto,

o que chamamos de "regime dominial clássico" - villa, composta pela

casa do senhor com a reserva (indominicata) mais as terras e bens

comunais rodeados pelas tenências, livres ou servis, que deviam

rendas, em dinheiro e/ou em espécie, além das corvéias que

garantiam o cultivo das terras senhoriais (a reserva indominicata) -

deve ser mantido como o melhor modelo para a compreensão da

economia da Alta Idade Média (França Carolíngia).

Reis fracos, senhores fortes num tempo de guerras.

Page 20: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

Nos séculos IX e X a economia e a sociedade no ocidente cristão

sofrem profundas modificações. De um lado, dá-se uma

homogeneização da condição jurídica das camadas pobres da

sociedade, com a confusão entre a condição de livre e de escravo, de

colono e de homem (escravo) estabelecido. Tal confusão acabará por

nivelar as obrigações que ambas as categorias deviam aos seus

senhores. Ao mesmo tempo, os camponeses livres, proprietários

alodiais de suas terras, sofreram dura pressão objetivando sua

colocação sob "proteção" de um poderoso. Os próprios direitos que

distinguem o livre (franc) do resto da população acabarão se

tornando um fardo: a obrigação de comparecer aos tribunais e de

acompanhar o senhor nas suas expedições militares são encargos por

demais pesados para quem deve cuidar de suas próprias terras, que

ao somar-se à insegurança produzida pelas invasões húngaras e

normandas explicarão a generalização da condição servil.

Os camponeses preferiam colocar-se sob a proteção de um senhor,

ao qual entregavam seu alódio, recebendo-o de volta como uma

tenência e pagando direitos e serviços, em troca de proteção e

dispensa de uma série de dispendiosas obrigações. Em troca desta

segurança, no mais relativa, o antigo camponês alodial equiparava-se

com o antigo colono e, mesmo, com os homini casati. A desaparição

das diferenças entre livres e não-livres anuncia uma mudança

essencial na sociedade: o aumento do poder dos senhores, às

expensas do Estado.

O antigo Estado romano – o onipresente Império – foi substituído, a

partir do século V, por reinos bárbaros de estruturas diversas e

frouxas em face das instituições políticas romanas. Entretanto, as

próprias necessidades da guerra e da conquista de terras levam ao

fortalecimento dos laços que uniam o chefe do bando armado com

seu próprio povo. A base deste novo Estado é um juramento de

fidelidade pessoal entre o chefe e seus companheiros de guerra (os

comes), o que é um fato novo. Em Roma, a fidelidade era devida ao

Estado e às Instituições, e quando se desvia para o Imperador é

Page 21: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

através do culto imperial, ou seja, a divindade que encarna o poder

do Estado. Com os bárbaros, a fidelidade é um problema pessoal, de

homem a homem. Assim, o rei manterá relações de fidelidade com

cada um de seus grandes nobres, procurando reduzir a influência da

aristocracia guerreira, sempre muito influente nos negócios do

"povo". O caminho escolhido pelo rei é a compra da fidelidade

através da doação de terras, que ademais impunha deveres aos que

as recebiam em face de quem as davam. Para os reis bárbaros, o

reino é compreendido como uma posse patrimonial que pode ser

partilhada ou dada em usufruto quando o rei deseja retribuir um

serviço ou doar condições para que um servidor se sustente e

mantenha os serviços de que a realeza necessita.

O mecanismo, desta forma, encerra em si uma profunda contradição:

permite ao rei comprar a fidelidade de seus servidores mas, a longo

prazo, fragmenta o reino. Ao mesmo tempo a nobreza guerreira

mantém uma presença importante nos conselhos que assessoram o

rei, e que representam o povo. Não é o rei que encarna o, povo, pois

esse não é um magistrado. Seu poder provém do fato de ser chefe da

guerra e da conquista. A representação popular fica a cargo do

mallus, conselhos locais que cuidam da administração e da justiça e

que, mais tarde, são reduzidos a funções judiciais e aprisionados por

um senhor que passa a presidi-Ias. Este mallus vai do nível local ao

do Reino. A assembléia geral, que se torna o mallus do palácio, é

presidida pelo chefe guerreiro (judex), inicialmente o rei e, a partir

dos últimos merovíngios, o conde (comes ou maire) do palácio.

Significativamente a extensão da noção de monarquia patrimonial às

finanças impede a existência da noção de erarium, o erário, ou seja,

o tesouro do Estado independente do tesouro do rei, o que

possibilitava – como no caso das terras – a doação pelo rei de uma

fonte fiscal sob a forma de beneficium, visando manter ou retribuir

um servidor.

Também a justiça sofre profundas mutações: o rigor romano na

punição dos crimes (particularmente com Constantino) cede lugar a

uma noção "privada" da lei. Para os germanos não há uma idéia de

Page 22: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

que o crime fere o Estado mas, sim, a família da vítima. Assim, o

culpado é obrigado a pagar uma multa (o wergeld) à família da

vítima, sendo que o tribunal deve atuar como intermediário entre as

partes. A existência de um Estado com tais características é

fundamental para a compreensão da vassalagem e do uso do

benefício. Para a monarquia franca, particularmente sob os

merovíngios, a única forma disponível de pagar por um serviço ou de

garantir que um servidor tenha condições de cumprir com suas

obrigações foi através da doação de um benefício (beneficium,

henner), a um ponto tal que alguns autores (J. Calmette, 1947)

afirmam que a base do regime feudal é a concessão do benefício.

Mas, o que era o benefício? Na verdade, tudo poderia ser

transformado em benefício, desde uma terra até um imposto devido

ao rei, e que este cedia a um terceiro. O benefício deveria garantir a

manutenção do servidor do rei, num momento em que cargos e

serviços não podiam ser remunerados com salários. Assim, o rei

usando suas prerrogativas patrimoniais cedia um fisc (ou feudo) que

possibilitasse ao beneficiado cumprir com certas obrigações

(militares, administrativas, judiciais ou de qualquer outro tipo). Tal

prática foi continuada pelos carolíngios, embora alguns deles tenham

se esforçado para manter sob seu controle os mecanismos de

autoridade. As invasões dos séculos IX e X, porém, acabam por

pulverizar os últimos esforços nesse sentido. Ao doar um benefício, o

rei normalmente cedia com as terras os seus direitos sobre a

população local, de forma tal que o beneficiado substituía o rei em

seu domínio. O risco de autonomização dos diversos domínios era

teoricamente evitado com o juramento de vassalidade, ou seja, o

devotamento pessoal, contrato entre doador e receptor de um

benefício. Tal juramento fazia do beneficiado um homem do seu

senhor, para com quem doravante teria obrigações estipuladas

contratualmente. A quebra da lealdade devida (felonia) implicava,

automaticamente, a perda do benefício recebido. Este liame

pessoal, prática germânica que unia o chefe da guerra aos seus

guerreiros, passa a ser intimamente associado à doação de um

benefício, como garantia de lealdade.

Page 23: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

A união entre benefício e vassalidade é considerada, pela maioria

dos historiadores, como início da época feudal. Os carolíngios vão

incentivar a doação de benefícios em plena posse mediante a

vassalagem, o que implicava o juramento de fidelidade, permitindo

que seus "fiéis" possam por sua vez fazer doações, multiplicando,

assim, a "espessura" da hierarquia feudal. Este desejo, nítido a partir

de Carlos Martel (prefeito ou judex do mallus de 715 a 741), tem

uma finalidade básica: aumentar o número de vassalos que deveriam

comparecer à guerra com seus vassalos (os chamados "vavassalos"),

ou seja, o número de vassalos pertencentes à categoria dos miles

(cavaleiros), pequena elite constituída de ginetes (nem todos os

nobilis, senhores com um benefício ou feudo, eram cavaleiros,

miles). Sob outro aspecto, o desejo do soberano, ou dos seus

prefeitos, vai de encontro ao dos senhores: a eles interessa a

vassalagem, pois, como pagamento dos serviços prestados, o

soberano entrega-lhes terras em benefício.

Havia duas formas básicas de o soberano conseguir os serviços de que

necessitava, ou ainda recompensar as pessoas de sua confiança:

mantê-los no seu palácio, sustentando-os, ou doar benefícios, com o

que eles se sustentariam (no início poderia ser dinheiro, rendas ou

terras). Logo formar-se-á uma distinção entre estas duas formas: os

primeiros vão ser considerados vassus pobres, portanto, inferiores

aos segundos, principalmente quando estes recebem terras como

benefício. A doação de benefícios (a expressão será substituída por

fief ou feudum por volta de 1080 em Francia, enquanto na Alemanha

continuará a vigorar a expressão beneficium aos poucos substituída

por Lahen), como forma de pagamento e manutenção dos laços de

fidelidade, vai ser grandemente incentivada pelos carolíngios, que

procuram utilizá-la como forma instantânea de ação, sem se

aperceberem de suas prováveis conseqüências.

A união entre benefício e vassalagem progride rapidamente com os

carolíngios (714-987), particularmente sob Pepino I (741-768), em

face das crescentes necessidades militares e políticas (a unificação

Page 24: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

dos francos). Marc Bloch identifica este momento como sendo

fundamental para o estabelecimento da sociedade feudal: agora

temos a conjugação da grande propriedade, com uma elite militar e

o trabalho compulsório por parte dos camponeses. É interessante

notar que se esta união favorece, de imediato, a ação dos

carolíngios, a partir de um rei menos enérgico ela dará origem a

inúmeros problemas de autoridade: o surgimento de uma vassalagem

ampla e a difícil distinção de quem é senhor lígio (de lidig,

principal), ou ainda o abandono da vassalidade real pela de um nobre

mais rico em terras. Por outro lado, a identificação entre vassalidade

e benefício é tão forte que os nobres obedecem o soberano porque

são seus vassalos beneficiados e não por serem seus súditos.

por TEIXEIRA, F. C. Sociedade Feudal. São Paulo: Brasiliense, 1984.

Comentário sobre o texto, por Mayte Vieira

Neste texto o autor busca de uma forma simples e concisa expor as

origens das relações de trabalho e da sociedade feudal. Com base na

discussão de vários historiadores, com pontos de vista nem sempre

concordantes, traça as modificações destas relações e seu impacto

desde a desagregação do império romano até o império carolíngio.

Sua análise contradiz algumas idéias como a do fim do escravismo

com o fim do império romano. Na verdade, a relação entre senhor e

escravo apenas foi alterada, de escravo, visto como propriedade e

totalmente sustentado pelo senhor, passou a servo com obrigações

de busca de sustento próprio, ao mesmo tempo produzindo o

sustento do senhor em sua propriedade. Estas alterações

influenciaram também as relações com o camponês livre, que para

fugir do peso dos impostos passou a trabalhar também como servo

nas grandes propriedades.

A origem dos feudos foi baseada na junção das culturas romana e

germânica, os romanos contribuíram com suas noções de colonato e

latifúndio, enquanto os germanos com suas noções de propriedade e

Page 25: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

fidelidade pessoal a um rei ou general. Assim estabeleceu-se o

feudo: colonos agricultores com fidelidade ao senhor proprietário

das terras então arrendadas.

Nesta nova forma de relação, o senhor beneficia com a terra

enquanto o colono fornece seu trabalho. No final tem-se a sociedade

feudal: a grande propriedade com sua elite militar e o trabalho

compulsório do camponês.

Prólogo a respeito de dois conceitos muito antigos: Império universal e decadência do Estado

Naturalmente a ruína do mundo antigo não é um fato isolado na

história: em outras ocasiões o espírito do homem se viu às voltas com

vicissitudes crepusculares - lentos desgastes de organismos estatais

ou destruições violentas. A história do Oriente antiqüíssimo pode nos

oferecer o confronto mais característico. Enquanto a crise do mundo

antigo entre os séculos V e VII d.C. levou, sobretudo no Ocidente, da

unidade imperial romana à fragmentação, uma evolução de certo

modo oposta levara - três milênios antes, e numa região de enorme

importância para a história da civilização humana (a baixa

Mesopotâmia) - da pluralidade feudal dos Estados sumérios à

monarquia universal do Estado semítico de Akkad. Em outras

palavras: da mesma forma que entre os séculos V e VII d. C. uma

parte considerável do Estado supranacional romano se dissolveu, por

volta de 2500-2300 a.c. as numerosas cidades sumérias, que nunca

tinham concebido a idéia de um império universal, entraram numa

sofrida agonia devido exatamente a essa sua incapacidade.

Acontecimentos extremamente longínquos no tempo, diferentes e

até mesmo opostos em termos de estrutura, e ainda assim

semelhantes, uma vez que em ambos os organismos novos brotavam

sobre um terreno revolto e as antigas estruturas cediam sob o peso

de sua própria antigüidade. Ninguém podia assistir sem um mínimo

de emoção ao grande ocaso que ocorreu nesses dois episódios e

ainda em outros comparáveis a eles: a vida dos contemporâneos,

quase rompida ao meio, movia-se agitada entre o velho e o novo. Por

Page 26: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

isso, diante do fato altamente dramático que arranca os demónios do

passado à antiga veneração, a humanidade sempre se perguntou com

ansiedade se por acaso seria possível afastar a dura prova. Aqui está

a gênese do conceito de decadência, que em certo sentido coincide

com o de culpa coletiva, de "grande pecado". Entretanto no caso do

fim do mundo antigo há mais: não apenas os contemporâneos, como

também os pósteros consideraram tal crise algo exemplar e

paradigmático: uma advertência que trazia consigo a chave para a

interpretação de toda a nossa história. Por isso mesmo pode ser

interessante o confronto, ao qual já nos referimos, com a crise dos

Estados sumérios, quase três mil anos antes.

A passagem dos pequenos e decadentes Estados teocráticos dos

sumérios para o grande Estado universal de Akkad por volta de 2500-

2300 a. C. foi marcada pelos esforços dos sumérios de Uma, que,

comandados por Lugal-zage-si e prestes a desaparecer, tentaram

instaurar aquele Estado universal que apenas os semitas de Akkad em

breve criariam. Um grande contemporâneo, Urukagina, governador

da cidade suméria de Lagash, acreditara combater a decadência de

seu Estado com reformas que ao mesmo tempo constituíam um

retorno às instituições sumérias originárias; e condenara com um

protesto vigoroso a tentativa "universalista" dos sumérios de Uma.

Assim, a interpretação de Urukagina para a crise que abalava de alto

a baixo o velho mundo sumério, criador de elevadíssimos valores cul-

turais e artísticos, prendia-se ao passado. Ele julgava encontrar as

causas de tal ocaso na avidez da classe dirigente, em especial dos

sacerdotes; vangloriava-se por acabar com as injustiças, adotando de

novo a ordem antiga e obrigando os sacerdotes a renunciar a seus

bens para devolvê-los ao deus Ningirsu (ou seja, no fundo, ao

Estado).

Fiel a seu deus Ningirsu, Urukagina denunciava as violências e as

ambições dos homens de Uma. No entanto a idéia do império

universal que os sumérios de Uma não puderam realizar foi mais

tarde a grande idéia que ao longo de milênios o Oriente ântero-

asiático realizou em diversas formas: do Estado de Akkad (pouco

Page 27: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

depois de Urukagina) aos impérios da Assíria e da Babilónia e, por

fim, ao grande império persa destruído por Alexandre Magno em 334-

327 a.C. A partir de Alexandre Magno ela foi transmitida ao

Ocidente.

O império romano também se baseava nessa idéia. Depois de suas

grandes conquistas mediterrâneas, conciliou a antiga idéia de

cidade-estado com a outra - tão antiga quanto o Estado de Akkad -,

do império universal acima da cidadeestado e das "nações" que vivem

no império. Da Europa à Ásia e à África, o novo Estado renovou a vida

nas cidades antigas; novas cidades surgiram, sobretudo na Europa e

na África; o império se sobrepôs às nationes, como no Oriente os

grandes Estados universais (em especial o aquemênida) haviam se

sobreposto às diversas "línguas" dos povos acima mencionados. No

ódio ou no amor, Roma dominou as consciências. De maneira que a

crise do mundo sumério sob Urukagina apresenta-se à memória dos

homens como um episódio, "redescoberto" há cerca de cinqüenta

anos; enquanto a crise da unidade romana sempre apareceu como a

chave para entender a história do mundo, quando as antigas formas

começam a ser substituídas pelas novas. E, na verdade, com a

consideração da crise do mundo antigo (e mais exatamente do

mundo romano), o conceito de decadência atinge um conteúdo ideal

eterno.

Há nele o drama das "nações" que, através de dificuldades e

convulsões, começam a mover-se - a revelar-se, às vezes - por entre

a estrutura do grande império que desmorona; e o aparecimento de

novos povos na grande cena do mundo clássico; a passagem de uma

administração centralizada e burocrática, à qual corresponde uma

economia monetária, para uma economia que no Ocidente antecede

o feudalismo e no Oriente procura conciliar serviço militar e trabalho

nos campos; a lenta atrofia de uma agricultura que procurou

alcançar o equilíbrio entre o trabalho servil e o dos colonos ligados à

gleba. Ao mesmo tempo, o triunfo da cidade cristã de Deus, segundo

a ideologia agostiniana. Há, em suma, a morte do mundo clássico:

uma morte acompanhada pelo declínio de valores e das formas so-

Page 28: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

ciais em seu interior, pelo aparecimento de germanos, eslavos e

árabes fora de suas fronteiras.

A crise do império romano tem ainda duas outras características,

estreitamente relacionadas. A primeira pode ser formulada da

seguinte maneira: em certo sentido, precedeu o fim do mundo antigo

a grande crise que desde a Guerra do Peloponeso (e depois ainda

mais no século IV a.C.) atormentou o mundo grego e que desde o

início foi percebida pelo maior historiador de todos os tempos:

Tucídides. A segunda é quase um corolário da primeira: a crise do

poderio romano foi temida e, dir-se-ia, diagnosticada desde o século

II a.C., ou seja, desde os tempos das grandes conquistas

mediterrâneas. No estágio atual de nossos conhecimentos podemos

dizer que o conceito de decadência se difundiu na Itália como

decorrência da crise agrária que se seguiu a tais conquistas. Marcas e

conseqüências da crise, entre o século II a.C. e os primeiros decênios

do século seguinte: a proletarização dos camponeses romanos; a con-

tração das terras cultivadas por pequenos proprietários[1]; a

presença de mão-de-obra "importada e bárbara" em regiões agrícolas

como a Etrúria[2]; a nova legislação agrária e a relativa aspiração de

camponeses itálicos à cidadania romana.

O antigo ideal etrusco dos "séculos" - cada um com aproximadamente

o tempo de vida de um homem, ou melhor, um pouco mais -

forneceu um esquema à consciência de um crepúsculo de certos

valores tradicionais. Já por volta de 100 a.C. (de acordo com alguns

estudiosos, até mesmo 200 a.C.) foi escrita na Etrúria uma página

dos livros "Vegóicos", sobre a qual pesa a previsão de uma

decadência culpada:

Quando se atribuiu a terra da Etrúria, Júpiter quis que campos e

terrenos fossem delimitados por marcos de fronteira ... No entanto,

[

[

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devido à avidez do oitavo século, prestes a começar e último[3], os

homens, com aflita culpa, violarão aquelas pedras, tocando-as e

removendo-as. Porém quem as tocar e ampliar o próprio terreno e

diminuir o do outro será punido pelos deuses. Se isso ocorrer por

culpa dos servos, eles terão amos mais severos. Se for por culpa dos

amos, a estirpe do culpado será destruída, toda a sua gente morrerá,

vítima de males e feridas, debilitada em seus membros. Tempes-

tades e turbilhões arruinarão a terra; seus produtos serão atingidos

por chuva e granizo, esgotados pela canícula, destruídos pela ferru-

gem. E [haverá] muitas dissensões no meio do povo. Saibam que isso

ocorrerá caso tais delitos venham a ser cometidos.

Assim esse texto etrusco, que chegou até nós através da tradução

para um latim popular, dava por volta do ano 100 a.C. uma voz

sagrada - a da "ninfa" Vegóia - ao conceito do ocaso da "nação"

etrusca; os etruscos acreditavam que à sua nação (ou, como

costumavam dizer, ao seu "nome") estivessem destinados "ao todo

oito séculos" (yÉvYn, na formulação grega de Plutarco); e o texto

vegóico declarava que o último dos oito séculos, já próximo, teria

encerrado a história etrusca em meio à ruína da agricultura, por

culpa dos "delitos" de amos ou de servos (os "servos" etruscos tinham

juridicamente o direito de posse).

O conceito de uma decadência da terra cujos produtos já não dão

rendimento era difundido, mesmo que com um sentido diferente,

também em outras regiões da Itália. Lucrécio, contemporâneo de

Cícero, apresenta-nos o camponês de sua época atormentado pela

surda resistência que a terra opõe. No entanto a lamentação do

camponês torna-se em Lucrécio uma amarga constatação da

decadência como fato materialisticamente determinado:

Eis que já nosso tempo decaiu (fracta est aetas). A terra, cansada, a

muito custo cria pequenos animais - ela que criou todas as gerações

humanas e deu à luz gigantescos corpos de feras. - Além disso, há

[

Page 30: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

tempos ela mesma espontaneamente criou para os mortais as

douradas colheitas e as frondosas videiras; deu doces frutos e pastos

verdes; e agora estes crescem a muito custo, com nosso esforço.

Utilizamos bois e camponeses e arado; mas os campos mal e mal nos

compensam, a tal ponto são avaros e exigem trabalho. E já,

sacudindo a cabeça, o velho lavrador suspira com freqüência;

lamenta seu vão trabalho e compara o tempo de hoje com os tempos

que passaram; muitas vezes louva a sorte de seu pai. Triste, o

plantador de uma videira envelhecida e lânguida acusa a ação do

tempo e culpa nossa época; protesta que os homens de antes, cheios

de piedade, encontravam vida fácil em pequenos campos, embora

fosse bem menor seu pedaço de terra. Com suas lamentações, não

percebe que todas as coisas apodrecem lentamente, caminhando

para a sepultura, desgastadas pelo longo caminho do tempo spatio

aetatis defessa vetusto).[4]

Não que Lucrécio negue o progresso (a experientia mentis

pedetemptim progredientis, como costumava dizer: "experiência do

espírito em marcha rumo ao progresso"); mas para ele a decadência

é um fato da natureza, que diz respeito à natureza, e não à "mente"

dos homens. O vir-a-ser leva ao que os homens chamam de morte:

trata-se de um velho conceito de Empédocles, talvez mesmo de

Leucipo (outro filósofo grego do século V), que no epicurista Lucrécio

se reveste de sofrida amargura.

Porém os fatos humanos sempre procuram uma medida humana: o

conceito de decadência não pode reduzir-se apenas ao esgotamento

do solo. O próprio Lucrécio não dizia que os homens, impulsionados

pelo falso terror da morte, derramam nas guerras civis o sangue

fraterno? E que odeiam e receiam até mesmo a mesa dos

consangüíneos? Sua época parecia-lhe dominada "pelo amor à riqueza

e pelo cego desejo de honras, que induzem os míseros mortais a

transgredir os limites do direito e muitas vezes a tornar-se cúmplices

e ministros de culpas, procurando noite e dia galgar, à custa de

[

Page 31: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

enormes sacrifícios, os cumes do poder". Acompanhava seu

determinismo naturalístico a consciência de viver" em tempos

infelizes para Roma", patriae tempore iniquo. Esse drama humano

que o epicurista Lucrécio reduzia ao falso terror da morte era

também um drama histórico, uma conseqüência das grandes

conquistas mediterrâneas e, aos olhos dos contemporâneos, o

anúncio de uma decadência já não cósmica (como a crise da

agricultura, segundo Lucrécio), e sim política e humana.

Dentre os contemporâneos de Lucrécio, Cícero também dava essa

explicação política e humana; contudo, um século antes uma atenta

consideração do drama agitara a consciência de pensadores e

políticos no âmbito do círculo dos Cipiões. Aqui também vemos uma

característica do problema "decadência de Roma": séculos e séculos

antes de sua queda, o imperium supranacional dos romanos era

objeto de ansiedade por parte dos homens que contribuíram para sua

definitiva afirmação. Já no século II a.C. Comélio Cipião Nasica

Corculum, o cônsul do ano 155 a.C., ficou famoso por sua tese

anticatoniana, segundo a qual era preciso deixar Cartago de pé, pois

a existência desta última se fazia necessária para evitar a

decadência do Estado romano. Porém, o próprio conquistador de

Cartago, Comélio Cipião Emiliano, teve o obscuro pressentimento da

morte, próxima ou longínqua, de Roma. Na época, 146 a.C., Políbio,

o grande historiador do círculo dos Cipiões, encontrava-se perto dele

e captou o instante de tristeza do comandante. "Tomou-me a mão

direita", conta ele, "e me disse: 'Políbio, sim, isto é lindo;

entretanto, não sei como, receio e pressinto que outro venha a dar a

nossa pátria a mesma notícia' (que agora é dada a Cartago)." Nascido

na Grécia, Políbio não tinha Roma por pátria; na verdade, porém,

apaixonara-se pela cidade dominadora com a intensa alegria de

quem está consciente de assistir a um momento admirável e

grandioso. Com esse estado de espírito, ele, historiador

"pragmático", analisou as causas da futura "ruína" de Roma.[5]

[

Page 32: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

É até por demais evidente que sobre todas as coisas pairam ruína

(rprJopa) e mudança: a necessidade natural basta para nos dar tal

convicção. Duas são as formas pelas quais cada tipo de Estado cos-

tuma perecer: uma é a ruína que vem de fora; a outra, ao contrário,

é a crise interna (ev aUToí\-); difícil de prever a primeira, deter-

minada a partir de dentro a segunda ... De fato, quando uma co-

munidade superou muitos e graves perigos e chegou a um poderio e a

um domínio indiscutíveis, fatos novos ocorrem: a felicidade nela

instala sua sede, a vida volta-se para o luxo, os homens almejam

alcançar as magistraturas e as demais distinções. Seguindo-se nesta

direção, a aspiração às magistraturas ou o protesto dos que se vêem

repelidos originará a decadência (Ti'i, E7l'l Tà XEZpOV JLETCl'-

(3011..0,); a soberba e o luxo farão o resto. As massas populares da-

rão seu nome à crise: sentir-se-ão ofendidas pelos que querem acu-

mular riquezas; outros, cobiçando magistraturas, as insuflarão e

adularão demagogicamente. Sobrevirá então a rebelião das massas;

excitadas, cheias de esperanças, não mais quererão obedecer, nem

permanecer nos limites do direito fixado pelos grandes; haverão de

querer todo o poder ou o máximo de poder. Depois a constituição

terá o nome mais belo que existe: democracia e liberdade; e na

verdade será a pior possível, o domínio da massa (bxÀOKpaTía).

Assim, o historiador tinha como certa a futura cprJop& do Estado

romano e considerava suas causas claramente previsíveis no tocante

aos conflitos de classe internos. Com relação às "causas externas"

("as migrações dos povos", cinco a seis séculos depois), não ousava

fazer previsões abertamente, ainda que tivesse muito a dizer sobre

isso. Não limitava seu olhar a Roma: a potência do imperium de Ro-

ma e, ademais, o fim previsível encaixavam-se em sua visão dos

Estados de alta cultura do Oriente: tanto dos que haviam

desaparecido muito tempo antes, como dos que em sua época caíam

sob os golpes de longínquos povos bárbaros. Políbio dizia que o

império dos romanos era infinitamente superior a todos os antigos

impérios universais:

Page 33: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

O império dos persas foi um tempo grandioso... ; durante doze anos

(os espartanos) com muito esforço mantiveram a hegemonia sobre os

gregos... ; vencidos os persas, os macedônios acrescentaram a seu

domínio o império da Ásia; ainda assim, apesar de parecerem donos

de imensas regiões e de grande poderio, todos eles deixaram a maior

parte do mundo fora de seus domínios. Mas tal não fizeram os ro-

manos: não submeteram apenas algumas partes do mundo, e sim o

mundo quase inteiro; e deixaram seu império invencível para os que

vivem em nossos dias, insuperável para os que virão.

Políbio conhecia muito bem os Estados que a expansão da Macedônia

criara na Asia; era amigo pessoal do rei selêucida Demétrio I. Esse

decadente Estado selêucida, que já se estendera da Síria até o Irã

oriental, poderia ter sugerido à sua inteligência uma confusa imagem

do que na realidade foi a grande crise do mundo antigo:

desmembrara-se pedaço por pedaço; dele se separara o Estado grego

de Bactriana, consolidado em 206 a.C. sob o rei Eutidemo; por fim,

em 130 a.C. os povos cavaleiros nômades, provenientes da Ásia

central, aterrorizaram e "barbarizaram" a Bactriana grega, posto

avançado nevrálgico do mundo helenístico. "Barbarizado": Políbio

usava o termo. Ele refletia a respeito desses novos acontecimentos

do ano 130 a.C., que atingiram um mundo espacialmente muito

afastado do império romano, mas que, como este, expressava a

cultura clássica antiga. As invasões dos bárbaros no mundo antigo

anunciavam-se, assim, no Irã oriental, seis séculos antes da formação

dos reinos romano-bárbaros no Ocidente. Políbio compreendeu, pelo

menos em parte, a terrível lição; e numa passagem atormentada e

significativa[6] colocou na boca de Eutidemo - o criador da potência

bactriana - uma ponderada previsão da "migração de povos" novos

Estados de alta cultura.

A mim, Eutidemo, cabe o título e a dignidade de rei (independente

[

Page 34: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

do Estado selêucida). Se Antíoco não está de acordo, nem eu, nem

ele estamos seguros do poder. [Vale dizer: a barbarização ameaça

tanto meu Estado como o dele.] De fato, não há poucas multidões de

nômades, e ambos - Antíoco e eu - corremos sério risco com sua

irrupção: se tivermos de enfrentar seu ímpeto, o país com certeza

será barbarizado. Isto disse Eutidemo... E Antíoco (III, o Grande)

compreendeu a importância dos argumentos acima mencionados e se

dobrou à proposta de Eutidemo.

Podemos a esta altura resumir. Nas Histórias de Políbio já se

encontram os dois motivos que até nossos dias sempre predominaram

na interpretação do fim do mundo antigo: de um lado, a explicação

"interna", que Políbio já aplica à estrutura constitucional do império

romano, deduzindo sua futura ruína da impossibilidade de superar os

conflitos de classe; de outro, a explicação "externa", que Políbio

aplica à "barbarização" do Estado greco-bactriano, em que uma

grande estrutura de cultura clássica, misturada à cultura iraniana,

foi submergida por uma onda de nômades iranianos, estes

impulsionados por uma vaga de hunos, encerrados em sua

cavaleiresca armadura de ferro, atraídos para o Estado bactriano

como ocorreu mais tarde (cinco a seis séculos depois) com os godos

em relação ao império de Roma.

Entre as duas interpretações opostas da crise antiga - interpretação

"interna" e interpretação "externa" - evolui no pensamento de Políbio

a reflexão sobre a grandeza e a decadência de Roma. A época

posterior à de Políbio abordou das mais variadas maneiras o tema da

decadência. "interna"; o texto vegóico - já o vimos - com tons de

comoção religiosa, relativos à Etrúria, e não a Roma; na verdade, as

condições agrícolas da Itália eram então bem diversas nas diversas

regiões (por exemplo, entre os etruscos predominava o latifúndio,

entre os mársios a pequena propriedade; e assim os primeiros foram

hostis, enquanto os segundos se mostraram favoráveis a Lívio

Druso).[7] No entanto as guerras civis e a guerra de Espártaco

revelaram a crise agrícola da Itália; Lucrécio, apesar de sua tese de

[

Page 35: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

que a decadência era um fato natural, devido ao cansaço da terra,

não esqueceu o aspecto humano e os grandes problemas que

agitavam a vida de Roma em decorrência das conquistas. Por isso é

que ele, epicurista, não falava em "decadência", mas em "terror falso

da morte". Diferentemente de Políbio, a ênfase de Lucrécio não recai

mais sobre a rebelião das massas; o "terror da morte" atua no foro

interior das ambições insatisfeitas.

Em Cícero o conceito da decadência de Roma assume um duplo

aspecto: é decadência de costumes e falta de homens realmente

grandes (virorum penuria). "Antes de nosso tempo o costume pátrio

permitia o aparecimento de personalidades insignes, e o costume

antigo e as instituições tradicionais eram conservados por

personalidades eminentes. Em nossa época, ao contrário, o Estado é

como uma pintura excelente, só que evanescente devido à idade; e

não houve interesse nem em devolver-lhe as cores de antigamente,

nem em conservar ao menos sua forma e suas linhas externas."[8] Até

o "anticiceroniano Salústio, em suas tímidas análises,[9] volta-se para

a consideração das classes dirigentes que sonham com riqueza e

magistraturas; para ele a decadência está ligada ao desaparecimento

da virtus (um motivo que voltará a aparecer em Maquiavel). Assim,

em Salústio a crise dos costumes e o advento da luxuria têm uma

evidente conseqüência política; como mais tarde em outro

historiador, Veleio, situam-se, grosso modo, em 146 a.C. Esta era, de

resto, a doutrina de Posidônio (já Calpúrnio Pisão datava em 154 a.C.

o início da decadência moral; posteriormente Lívio afirmará que ela

remonta ao ano de 188 a.C.), acompanhada, em Salústio, de uma

participação apaixonada que mais se parece com uma polêmica. Foi

nessa época que se utilizou pela primeira vez no mundo romano a

palavra "declínio" no sentido de "declínio do Estado": inclinata res

publica é fórmula de Cícero e de Salústio. E a visão salustiana da

decadência tem um fundo de tristeza geral: a fórmula "tudo que

nasce tem um fim" (omnia orta intereunt) aparece duas vezes nesse

historiador. De resto, em seu pressentimento do fim de Roma há

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muito menos resignação do que em Políbio. Ele não renuncia à

esperança; muito pelo contrário. Escreve a César:

Este é meu pensamento. Como o que nasceu morre, quando a fa-

talidade se abater sobre a cidade de Roma, os cidadãos entrarão em

conflito com os cidadãos; e só então, cansados e esgotados, cairão

nas mãos de algum rei ou de alguma nação. De outra forma, nem o

mundo inteiro, nem todos os povos juntos poderão romper ou

danificar este império de Roma. É preciso, portanto, consolidar os

bens da concórdia, destruir os males da discórdia.

A hipótese segundo a qual o fim do mundo antigo se deva somente às

guerras civis afasta, de certa maneira, o grande medo: um homem

superior poderá trazer de volta a concórdia. É bem verdade que o

reinício das guerras civis depois da morte de César reinstalou o

desespero em muitos meios: no epodo XVI, Horácio fala - e aqui

usamos termos polibianos - em "ruína interna" (suis et ipsa Roma

viribus ruit) e "ruína externa" (barbarus heu cineres insistet victor et

urbem eques sonante verberabit ungula). Entretanto a esperança no

homem que iria colocar um ponto final nas guerras civis desfazia as

ansiedades de muitos; fora a esperança de Salústio. (Um historiador

italiano, Aldo Ferrabino, disse por isso que "Roma, aquela Roma que

Salústio contempla, não tem seu fim na decadência".)

A perspectiva de um fim necessário ficou afastada até mesmo no

plano religioso. Com relação à Etrúria foram abandonadas as antigas

profecias que consideravam o oitavo saeculum como o último e

estabeleciam seu início em 88 a.C.; o arúspice Volcácio acrescentou

o século nono e o décimo, corrigindo todo o tradicional cálculo

etrusco dos saecula. No entanto, sobretudo para Roma, o otimismo

dos augúrios teve um significado profundo. A fé na vida triunfou

sobre ogrande medo da morte iminente. Na época de Varrão, um

certo Vétio chamara a atenção para o significado augural dos doze

abutres vistos por Rômulo: uma vez que - disse ele - na época Roma

Page 37: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

tinha atravessado os primeiros 120 anos de sua fundação, lhe

estavam destinados não mais doze dezenas de anos, e sim doze

séculos, 1200 anos; para esse profeta amigo de Varrão a morte de

Roma situava-se mais ou menos ( diríamos nós) na época de Átila.

A astrologia sugeriu ainda outras especulações. Ao conceito de uma

"decadência" mais ou menos necessária e preestabelecida sobrepôs-

se o da "nova fundação" de Roma em ciclos fixos: com a introdução

do calendário cesariano de 365 dias, pensou-se em grandes ciclos de

365 anos, depois dos quais as comunidades encontram a morte ou a

renovação. Concluiu-se, portanto, que, assim como no 365ª ano de

sua fundação Roma havia "ultrapassado" o prazo de morte (o incêncio

gálico) graças à intervenção de Camilo, novo Rômulo, assim também

no final do novo ciclo de 365 anos a partir de Camilo encontrava em

Augusto - honrado com o poder tribunício no ano de 23 a.C. - seu

"novo Rômulo" .[10]

De fato, César e seu "filho" Augusto superaram o período das guerras

civis; depois deles, graças ao estabelecimento do Estado de Augusto

em 27 e em 23 a.C., o problema polibiano da decadência de Roma

colocava-se em termos diferentes. O império romano viverá ainda

cinco séculos no Ocidente (em algumas partes do próprio Ocidente,

mais sete, oito, até mesmo dez séculos, tendo continuado em sua

forma "romã" ou bizantina); no Oriente, como império "bizantino",

terá sua grande crise no século VII e, amputado em regiões vitais,

continuará até o império latino de 1204 e, mais tarde, depois do

parêntese latino, até 1453. Uma perspectiva que se prolonga

amplamente no tempo. Ainda assim o problema de Políbio continuará

a ser colocado desde os primeiros séculos do império fundado por

Augusto; ou seja, colocar-se-á o problema da morte de Roma antes

mesmo que Roma de fato pereça.

A esta altura as categorias ideais do problema já estão deslocadas no

espaço e no tempo. No espaço, porque Roma não mais se encontra

[

Page 38: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

no centro da cidade antiga ou da própria Itália; pontilhou suas

províncias de colônias; e a partir de Trajano (98-117) poderá haver

imperadores romanos que não nasceram na Itália; desde o ano de

212 todas as pessoas livres das províncias, excetuando-se os

dediticii,[11] obtiveram a cidadania italiana. No tempo, porque a

esta altura o problema da "rebelião das massas", colocado por Po-

líbio, não pode ser apenas o das massas proletárias de Roma, nas

quais pensava o historiador, ou da Itália; é o problema das massas

camponesas sírias, ilírias, celtas, africanas, egípcias - enfim, das

"nações", 'f.l3WIJ, que vivem nas províncias do imenso império

romano. Não mais, como na época das guerras civis, a crise da classe

dominante se acrescentava à insatisfação do proletariado romano ou

italiano; no fim do mundo antigo, o império universal romano deverá

analisar o problema das massas fanáticas na África donatista, na Síria

nestoriana, no Egito monofisita; acrescente-se a isso a hostilidade

dos camponeses celtas e panânios ainda não de todo romanizados,

presos à terra por um vínculo extremamente forte. Problema,

portanto, das nações. E havia, além disso, o problema da ameaça de

"barbarização", que Políbio assinalara na longínqua Bactriana. Com o

passar dos tempos ele agora amadurecia para a própria Roma:

problema das "causas externas" de decadência, como teria dito o

próprio Políbio.

O pressentimento de um fim "cientificamente" previsível, da forma

como se encontra em Políbio (ou entendido em termos éticos, como

em Cícero e Salústio), estabelecia, já na cultura da Roma

republicana, uma estreita correlação entre o conceito da decadência

e o da previsibilidade dos fatos históricos. Por esse motivo, a

"profecia" polibiana tornou-se atual por excelência em outra época,

na qual se acreditou ser possivel prever o curso fatal da história: a

época do romantismo. Há um século, em 1858, surgiu um livro de

Lasaulx, A força profética humana nos poetas e nos pensadores, obra

romântica do início ao fim. Hoje em dia esse livro caiu em justo

esquecimento, porém na época teve considerável sucesso, pois a

tese que sustentava a da "previsibilidade da história" - contava ao

[

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mesmo tempo com aguerridos defensores e com adversários combati-

vos, destacando-se entre os últimos Gervinus. Claro que Políbio era o

grande trunfo da argumentação de Lasaulx: se o historiador do

período republicano conseguira "prever" a crise do Estado romano,

todas as demais "profecias", por exemplo a de Nicola Cusano a

respeito da revolução contra os príncipes alemães, ou a de Leibniz a

respeito da grande revolução "gerada pela crítica", adquiriram

cidadania na história do espírito. Mas no fundo das hipóteses

românticas sobre a "previsibilidade" da história estava sobretudo a

teoria hegeliana dos tempos de realização e da velhice pacificadora.

Assim, com toda a certeza, o Políbio dos românticos estava muito

longe do autêntico Políbio, que preferia os fatos aos esquemas;

entretanto a época polibiana e salustiana tem em comum com o

preocupado romantismo de cem anos atrás a inquietante percepção

de uma conexão entre o conceito de decadência e a previsibilidade

da história.

Sob este aspecto Políbio está para a crise da república romana como

Burckhardt e Nietzsche estão para a crise de nosso tempo. Em ambos

os casos trata-se de homens que julgam viver numa época madura (a

fundação do máximo império do mundo, para Políbio; a cultura do

século XIX, para Burckhardt e Nietzsche), mas acreditam também

vislumbrar densas sombras nos acontecimentos futuros. Iludem-se ao

julgar que seu pessimismo tem justificativa "científica"; na verdade

forçam os fatos a caber no leito de Procusto de algumas premissas.

Já o mito da progressiva decadência, tal como se exprime (nos

albores da civilização clássica) na doutrina de Hesíodo do progressivo

afastamento da idade do ouro, tem uma origem religiosa inconfundí-

vel: é o conceito do "eterno retorno", que Mircea Eliade estudou num

livro famoso. Um ponto de vista análogo, formulado de maneira

cíclica, leva-nos ao conceito dos saecula que nascem e morrem;

como vimos, ele deu lugar, na Itália antiga, à doutrina "vegóica" que

colocava o fim da nação etrusca no oitavo saeculum e a interpretava

como um castigo do deus Tinia ("Júpiter"). Diante do empenho

histórico, o homem ainda tem outra atitude possível: julgar que a

decadência pode ser superada através de uma retomada das

Page 40: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

organizações antigas; é - como mencionamos - a fórmula de

Urukagina, já no terceiro milênio a.C.; pode-se compará-la à

doutrina de Salústio segundo a qual "é preciso consolidar os bens da

concórdia" para afastar a morte de Roma; mesmo o conceiro da "nova

fundação" por mão de Camilo e de Augusto encaixa-se neste quadro.

A interpretação naturalística de Lucrécio, segundo o qual a deca-

dência se resolve no cansaço da terra, desloca o problema para um

plano biológico-cósmico; ao contrário, a imagem ciceroniana do

decadente Estado romano como de uma pintura envelhecida e

evanescente traz à mente a idéia de velhice num plano ético-

político. Cícero insiste na virorum penuria. No mundo antigo, como

no moderno, o conceito de decadência evolui entre perspectivas

muito diversas.

Notas[1] Recentemente Tibiletti, in "Atti del X Congresso lnternazionale di

Scienze Storiche", Rel. II (1955), 235 ss.; Kousitchin, in "Vestnik

drevnej istorii", 1957, l, 64 ss.[2] S. Mazzarino, "Historia', 1957, pp. 110 ss[3] Sobre esta tradução, in "Historia", 1957, cit., p. 112.[4] Lucrécio II, vv. 1150 ss.[5] 5. Cf. recentemente Mioni, Polibio (1949), pp. 49 ss.; Ryffel,

Mtm(3oÀ~ 7roÀLTELWV (1949),180 ss; Ziegler, R. E., XXI, 2 (1952),

1495 ss.; Sasso, in "Rivista storica italiana", 1958, 333 ss.[6] Políbio XI, 34.[7] O tribunato de Lívio Druso, em 91 a.C., tem importância capital

para o entendimento da história romana. Distribuindo terras na Itália

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aos cidadãos romanos, Lívio Druso contrariava os interesses dos

grandes proprietários de terras donos de escravos; por outro lado,

dava certa vantagem aos pequenos camponeses da Itália, aos quais

prometia a cidadania romana; dessa forma eles também poderiam

participar da distribuição de terras (assim, Bernardi in "Nuova rivista

storica" 1944-45,60 ss.; muito diferentemente Gabba, in

"Athenaeum" 1954,41 ss.) ou pelo menos não ficariam prejudicados.

Colocados diante da perspectiva aberta por Druso, os agricultores da

Itália reagiram de duas maneiras opostas. Mársios, sanitas, lucanos -

em especial os primeiros - alinharam-se com ele; viram na conquista

da cidadania romana, entre outras coisas, uma forma segura de

defender suas pequenas propriedades ou de participar - num futuro

próximo - da fundação de colônias. Ao contrário, os camponeses

etruscos, que em sua maioria eram lautni de origem estrangeira (por

exemplo, egípcia: "Historia", 1957, 110 ss.), adotaram em geral uma

posição de franca hostilidade a Druso, em obediência a seus patrões

latifundiários. Concluindo: ao latifúndio etrusco-umbro opõe-se a

pequena propriedade nas terras dos mársios, sanitas e lucanos. Esta

diferença na agronomia italiana do século I a.C. poderia ter deixado

marcas até no baixo império. De acordo com alguns estudiosos o Sul

da Itália viria a ser no baixo império a terra ideal para a "exploitation

de peu d'étendue", ou seja, o oposto da Itália setentrional. (Déléage,

La capitation du Bas·Empire, 1945,219 ss.: onde porém

erroneamente Codex theodosianus XI 12, I refere-se à Itália, e não à

Gália; além disso a diferença de denominação iugum e millena não

me parece que implica uma diferença de extensão.) De qualquer

maneira, em algumas regiões pode-se constatar certa continuidade

da agronomia italiana durante toda a época imperial (por exemplo,

os vinhos de Cesena eram procurados tanto no século I d.C. como no

IV d.C.: Codex theodosianus I, 6); houve uma cesura na Idade Média,

com o sistema longobardo das "igrejas próprias", que atingiu o

latifúndio toscano. [Observe-se, entre outras coisas, que no baixo

império a Tuscia et Umbria enquadrase, em sua acepção normal, na

jurisdição de Roma; é "Itália meridional".][8] Cícero, De re publica, V, 1,2.

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[9] Recentemente Steidle, Sallusts Historische Monographien, in

"Historia", Einzelschr. H. 3 (1958).[10] Com esta hipótese eu explicaria o trecentesimus sexagesimus

quintus annus agitur de Lívio, no célebre discurso de Camilo, para o

qual sobretudo Hubaux chamou a atenção. Na explicação que

proponho Lívio derivaria a idéia dos círculos de Augustos; supera-se,

assim, a objeção, que sempre foi oposta a Hubaux, da

impossibilidade de um "grande ano" de 365 anos antes do calendário

de César. Cf. recentemente Hubaux, Rome et Véies (1958).[11] Sobre esta constituição, promulgada pelo imperador Caracala em

212, cf. infra, cap. II. Infelizmente não sabemos com precisão quem

eram os dediticii que Caracala excluía do benefício da cidadania. Em

termos de puro direito, chamamse dediticii todos os habitantes do

império não ligados a Roma por um tratado de aliança (foedus); mas

em 212 o termo tinha uma acepção muito mais limitada. Todavia, de

acordo com alguns estudiosos (entre eles o autor do presente volu-

me), podia abranger consideráveis massas camponesas - por

exemplo, no Egito - não assimiladas a cultura greco-romana; de

acordo com outros, referia-se tão somente a bárbaros acolhidos no

império em épocas relativamente recentes. (Outra categoria de

dediticii compunha-se de escravos libertos que, por culpas anterio-

res, não podiam obter a cidadania romana ou latina.) A fórmula

usada por Caracala que chegou até nós (Papyrus Gissensis 40) diz:

"Concedo, portanto, a cidadania dos romanos a todo[s os peregrinos

d]o orbe, cabendo [tal doação] a... exceção feita para os dediticii."

(As diversas interpretações propostas pressupõem sempre um

[/l]ÉVOVTOÇ intransitivo; eu o entendo como transitivo e, portanto,

traduzo-o "cabendo". Recente literatura e discussão: D'Ors, in

"Emerita" 1956, p. 10; Oliver, in "American Journal of Philology"

1955, p. 297.)

por MAZZARINO, S. O fim do mundo antigo. São paulo: Martins

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[

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Page 43: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

Fontes, 1991

Comentário por Alam Arezi

Numa minuciosa perspectiva de pesquisa, Mazzarino expõe as

diferentes visões sobre o final do mundo antigo, dando ênfase a

relatos de Historiadores que previam a queda de Roma e, o final dos

tempos.

As diferentes formas de pensamento, divididas entre paganismo e

cristianismo remontam a um cenário onde profecias providas de

fatores diversos, como as invasões bárbaras, guerras e disputas

internas pelo poder influenciam a dialética da época. O fim do

mundo antigo é alcançado pelo medo que divide o império (Estado

universal de Roma) em duas partes; a do ocidente e do oriente.

O que também exerce um enorme peso nesse pessimismo eminente

são os contatos entre diferentes povos. Esse ‘aculturamento’, além

de prejudicar a unificação do império, torna-se justificativa para

guerras civis internas, o que causa um esfacelamento maior ainda da

dignidade e vitalidade de um império que previa seu fim desde o

começo: “Omnia orta intereunt” – tudo o que nasce tem um fim,

frase dita por Salústio (século II a.C).

Assim, presume-se que foram vários os fatores que efetivaram caos

na baixa idade antiga (mais especificamente no império Romano) e,

o que Mazzarino traz com seu texto até nós, é epistemologicamente

completo, entretanto, não existe verdade total.

Final dos tempos ou crise no Império

Com o advento de Augusto, a estrutura política se transformou e os

grandes medos desapareceram: Roma e a Itália estavam salvas, as

províncias organizadas de forma definitiva.

Muitas pessoas da geração que testemunhou tal renascimento - a

segunda geração a partir de Augusto - não queriam mais ouvir falar

Page 44: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

em decadência dos costumes e outras crendices do gênero. O poeta

Ovídio pertencia a essa geração; os antigos protestos dos

"ruminantes" como Varrão o incomodavam. O que pretendiam esses

apologistas da Antigüidade, críticos ferrenhos do luxo e da avaritia?

"Há quem goste do passado", dizia Ovídio, "mas eu me sinto feliz por

ter nascido agora; esta época convém à minha maneira de viver."

Longe de falar em decadência, ele gostava de falar em progresso

técnico (as minas, o comércio) e cultural: "Hoje, percebe-se que há

bom gosto (cultus); e nosso tempo procura escapar daquela rusticitas

que ainda se notava entre os antigos antepassados."[1]

Entretanto velhos problemas ainda se arrastavam, sobretudo de

ordem econômica. O declínio da agricultura italiana acentuou-se

diversas vezes: duramente atingida na época das guerras civis,

arruinada - já no período da revolta de Espártaco - pelo sistema das

plantações. Crises financeiras colocavam à mostra dificuldades

evidentes. Se na época de Sila o poeta Lucrécio lamentara o cansaço

da terra, procurava-se agora um remédio na sabedoria dos homens.

No tempo de Domiciano, um agrônomo célebre, Columela, voltou a

lamentar a decadência da agricultura italiana. Elogiava os velhos

tempos: a mesma antiga querela que Ovídio julgara insuportável.

Havia outro problema que o otimismo de homens como Ovídio não

conseguia resolver. A fundação do principado instaurou um regime

monárquico baseado na auctoritas do príncipe. A classe dirigente viu

esfacelar-se a antiga tradição da liberdade republicana. Foi um golpe

muito sério, sobretudo no início. A amargurada saudade da antiga

lIberdade, Juntamente com a idéia de que o novo regime monárquico

é sinal de velhice, permeia uma amarga página de Sêneca pai,

escritor que nasceu na era republicana e morreu durante o império

de Calígula. Do fundo de sua dor, o venerável ancião sem esperanças

sonhava com a antiga Roma republicana, e o olhar desiludido

reevocou o trágico episódio das guerras civis.

A primeira infância de Roma se deu sob as ordens de Rômulo seu

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Page 45: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

fundador e como que nutridor; depois transcorreu a adolescência sob

os demais reis; quando começava a ficar adulta, não tolerou a

servidão; e, abandonado o jugo, preferiu obedecer às ieis antes que

aos reis. Essa adolescência encerrou-se por ocasião do término da

guerra púnica; então reforçou-se o poderio de Roma e teve início sua

juventude. De fato, destruída Cartago, que durante longo tempo lhe

dificultara o caminho do império, Roma estendeu seu poder sobre

todo o mundo, por terra e por mar; até que, subjugados todos os reis

e as nações, não tendo mais preocupações com guerras, empregou

mal suas próprias forças e acabou por esgotar-se. Esta foi sua

primeira velhice; quando, dilacerada pelas guerras civis e atingida

por uma crise interna, recaiu no regime monárquico como numa

segunda infância. De fato, depois de perder a liberdade defendida

sob o comando e a iniciativa de Bruto, envelheceu assim, como se

não tivesse forças para se sustentar a não ser recorrendo ao apoio

dos monarcas.

Nesta análise biológica da história de Roma,[2] percebese um retorno

ao conceito ciceroniano do Estado romano como "pintura

evanescente devido à idade"; porém no escritor da época de Calígula

o conceito de decadência "senil" é ao mesmo tempo um grito de dor

e uma exaltação da liberdade - a liberdade como época da

juventude. Deveremos nos lembrar de Sêneca ao recordar a doutrina

humanista, segundo a qual caberia atribuir ao regime imperial a

inclinatio de Roma, mesmo a doutrina de Seeck a respeito da

"eliminação dos melhores".[3]

Não é por acaso que nos séculos I e II os próprios círculos dirigentes

do império começaram a utilizar o termo "declínio" (inclinare) para o

que diz respeito aos costumes e à literatura; em Plínio encontramos

inclinatis iam maribus e em Quintiliano inclinasse elaquentiam. Uma

transferência, portanto, do conceito de inclinare (que em Cícero se

aplica ao Estado) para a esfera da cultura; é o período em que se

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fala de decadência das artes (Petrônio) e da eloqüência (Tácito e

Quintiliano). Assim, a tradição romana, representada pelas classes

senatoriais e pela alta cultura, elaborou uma espécie de humanismo

próprio: na história moderna o conceito de inclinatio será

exatamente a grande descoberta do século XV. Juvenal retomou o

velho tema da luxuria geradora de males abordado por Varrão: "Pior

que as armas, a luxuria nos oprimiu e vinga o mundo, sobre o qual

triunfamos; desde que a pobreza romana desapareceu, não há delito

que não seja cometido entre nós."

Fora do mundo da tradição, que se exprime de maneira admirável no

conceito de Sêneca de velhice-monarquia, uma profunda revolução

espiritual conferiu renovada tragicidade à crise que envenenava o

mundo clássico: a revolução cristã. Em algumas de suas

manifestações, ela pode ser comparada a certas expressões

contemporâneas do mundo judaico, humilhado e desarticulado pela

conquista romana e pela opressão resultante; por exemplo, pode-se

mencionar o Comentário de Hababuc, um dos textos que as des-

cobertas do mar Morto trouxeram à luz, no qual se denuncia o drama

espiritual do judaísmo e se atribui a culpa disso a um sacerdote

ímpio: "Aquele", identifica-o o Comentário, "que, por causa da ofensa

cometida contra o Mestre de Justiça e os membros de sua

comunidade, foi entregue por Deus às mãos de seus inimigos para

que o destruíssem de um golpe, com amargura para sua alma: tendo

agido de forma ímpia com relação a seus eleitos." O Comentário de

Hababuc, condena esse “sacedorte ímpio” e todos os “que se

calaram quando o mestre de justiça foi punido e não o ajudaram

contra o homem de mentiras que ofendeu a Lei”: à condenção do

“sacerdote ímpio” e do “homem de mentiras" o Comentário

acrescenta uma implacável aversão aos romanos (Kittim), os quais

"sacrificarão às suas insígnias, e seus instrumentos de guerra serão

por eles adorados".

Ao conceito de decadência substitui-se aqui o de "culpa" religiosa; e

os romanos, juntamente com os judeus que traíram, são os

execrados autores da ofensa a Deus. Mais tolerante para com o

Page 47: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

império romano, o cristianismo primitivo (que se formou, ainda

assim, no mesmo âmbito do renascimento espiritual judaico)

revelou, entre outras coisas, um gravíssimo aspecto da crise do

mundo antigo: a opressão social que caracterizava o domínio romano

sobre os camponeses das províncias. São Tiago, que como Jesus

acabou condenado à morte, expressou nos primeiros tempos do

império esta sua interpretação da crise do mundo, considerada a

partir do atormentado ponto de vista do universo palestino-judaico,

onde se moviam poderosas as novas idéias que um dia fariam o

mundo clássico dobrar-se sobre si mesmo.

Ó ricos, chorai gritando sobre vossas misérias, que estão prestes a

chegar.

Vossa riqueza está apodrecida, e vossas roupas corroídas pelas tra-

ças; enferrujados vossos ouro e prata, e sua ferrugem testemunhará

contra vós e comerá vossas carnes, como fogo. Acumulastes tesouros

nos dias do fim. Eis que a paga dos que fizeram a colheita em vossas

terras, desembolsada por vós, grita; e o grito dos trabalhadores

chegou aos ouvidos do Senhor dos exércitos. Vivestes na Terra em

meio ao luxo e aos banquetes, alimentastes vossos corações no dia

do sacrifício. Julgastes e matastes o justo, e ele não vos opõe

resistência.

Nessas antiqüíssimas sinagogas de cristãos sentavam-se ao lado dos

camponeses palestinos alguns cavaleiros romanos, "homens que

tinham o anel de ouro", como os designava São Tiago; uns e outros

ouviam a dramática profecia de São Tiago sobre o fim de um mundo

dominado pelo privilégio. Podemos talvez imaginar os olhares

acabrunhados dos cavaleiros romanos, a ânsia de libertação dos

camponeses palestinos, em torno dos quais o domínio dos privilegia-

dos erguera uma espécie de prisão invisível. Logo a nova fé

conquistou enormes massas de fiéis; e o conceito do fim iminente do

império romano com toda a probabilidade dominava o espírito

daqueles cristãos que, incontável massa, foram queimados como

Page 48: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

tochas e martirizados cruelmente na Roma de Nero. Aliás, para eles

o conceito do fim de Roma estava intimamente ligado à idéia do fim

do mundo: o Anticristo chegaria em breve, o sopro do Senhor o

destruiria. Com o passar do tempo, uma vez que o fim do mundo não

parecia mais iminente (e já São Paulo advertira nesse sentido), a ati-

tude dos cristãos em relação à crise imperial diferenciou-se de forma

acentuada: alguns, exaltando a obra da Providência, conciliavam,

confiantes, império de Roma e cristianismo; outros desprezavam o

império e procuravam, com dissimulada alegria, uma explicação

satisfatória para a queda iminente devido à chegada do Anticristo,

Nero redivivo, prestes a ser derrotado pelo sopro do Senhor.

De qualquer maneira, dois textos sagrados inspiravam sua

expectativa. Um era o Livro de Daniel, escrito entre 167 e 165 a.C.

Este livro (citado também num discurso de Jesus no Evangelho de

Mateus) parecia declarar que quatro monarquias se sucedem na

história, dominando o mundo, representadas nos membros da estátua

sonhada por Nabucodonosor, respectivamente na cabeça de ouro, no

peito e nos braços de prata, no ventre de cobre, nas pernas de ferro;

os dedos dos pés da estátua, de ferro misturado com argila. Além

disso, a visão de Daniel contemplava quatro bestas - também

interpretadas como as quatro monarquias. O fim do mundo era

posterior ao desaparecimento da última monarquia: este era um

ponto em que se concentravam temores e esperanças.

O outro grande livro, o Apocalipse de São João, via a serpente dar

sua força a uma besta que emergia do mar com sete cabeças e dez

chifres, senhora de cada estirpe e povo e língua e nação, adorada

por todos os habitantes da Terra; via um anjo indicar numa mulher

triste "a cidade grande que tem o reino dos reis sobre a Terra" e

outro anunciar o fim da "cidade grande, a forte Babilônia", cuja

morte os mercadores choram... Neste simbolismo apocalíptico

numerosos exegetas viam prenunciar-se o fim do mundo, a queda de

Roma, a maior de todas as cidades. Quase um século depois de São

João, por volta do final do reinado de Marco Aurélio (morto em 180

d.C.), um poeta sibilino cristão imaginou o ocaso anticrístico de

Page 49: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

Roma, marcado pela impiedade e pelo sofrimento, originado pela

opressão que pesa sobre os provincianos e enche de riquezas as casas

do imperador. Nesse poeta o fim do mundo romano é certeza reli-

giosa, não pressentimento comovido; as imagens apocalípticas

misturam-se com a visão da iminente carestia e da guerra civil. Ele

abomina a universalidade de um império em que, como num imenso

cadinho, obrigavam-se diversas nações a uma única têmpera. Por isso

mesmo, faiscante de ódio, sua evocação não é um exame de motivos

que levarão à morte do império: trata-se antes de uma maldição,

que com tumultuosa ansiedade invoca o esfacelamento de um Estado

injusto. No fundo, para esse poeta sibilino o César romano é o

inimigo dos provincianos: a idéia das nações oprimidas, que de algum

modo transparecera, ainda que timidamente, em escritos do período

de Augusto, adquiria sob o impulso luminoso da nova fé uma grande

força moral e combinava-se com a certeza da decadência e do

iminente fim de Roma.

Um monarca velho [Marco Aurélio] terá longo domínio: tristíssimo

rei, que encerrará todos os tesouros do mundo, conservando-os em

suas casas, para que depois, quando vier dos confins da Terra o

fugitivo matricida [o Anticristo, Nero redivivo], sejam dados a todos,

para grande riqueza da Ásia. Então chorarás, ó rainha soberba,

rebento da latina Roma: abandonado o laticlavo dos governadores,

vestirás o traje de luto; não haverá mais glória para tua soberba;

nem poderás reerguer-te, infeliz, estarás dobrada. E, de fato, cairá a

glória das legiões aquilíferas. Onde está então teu poder? Que terra,

injustamente submetida por tuas estultícies, será tua aliada? Entre

os homens de toda a Terra haverá grande confusão, quando o

Onipotente, aparecendo no Tronco, julgar as almas dos vivos e dos

mortos e o mundo inteiro. Nem então serão caros aos filhos os pais,

nem aos pais os filhos, por causa do sacrilégio e do sofrimento

desesperado. Seguir-se-ão ranger de dentes, e dispersão, e cativeiro,

quando as cidades caírem e se abrir a Terra. E quando o dragão

vermelho vier sobre as ondas, com o ventre cheio, e atormentar teus

filhos, e vierem carestia e guerra civil, será o fim do mundo e o

último dos dias, e para os gloriosos chamados o julgamento de Deus

Page 50: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

imortal. Desapiedada ira haverá, em primeiro lugar, contra os

romanos, época sedenta de sangue e vida infeliz.

Mal para ti, itálica terra, grande estirpe bárbara: não entendeste de

onde surgiste, nua e indigna, à luz do sol, para de novo cair nua, no

mesmo lugar, e por fim vir ao Juiz, pois tu mesma injustamente

julgas... Mãos gigantescas te farão cair sozinha, pelo mundo, lá de

tua altura; e jazerás embaixo da terra; desaparecerás queimada de

nafta e asfalto e enxofre e muito fogo, e serás pó durante séculos; e

quem quer que olhar ouvirá do Hades o grande gemido de dor e o

ranger de dentes, e tu que batas no peito ateu com as mãos ...

Porque o império de Roma, num tempo florescente, antiga senhora

das cidades ao redor, desapareceu. A terra de Roma florescente não

vencerá, quando o vencedor (Anticristo) vier da Ásia com Ares.

Quando tudo isso estiver cumprido, ele virá para a Urbe que se

ergue: (ó Roma), completarás 948 anos, quando o destino de morte

se abater violento sobre ti, cumprindo o valor numeral de teu nome.

O sibilino cristão pressentia como iminente o fim do mundo antigo

(e, em conseqüência, do mundo): estabelecia o fim dos tempos 948

anos depois da fundação de Roma, ou seja, em 195 d.C. Porém,

mesmo neste caso a ansiosa

espera apocalíptica não se concretizou. A Marco Aurélio, sob cujo

reinado o sibilino escrevia, havia sucedido Cómodo: jovem monarca

cheio de contradições, fisicamente belíssimo mas portador de uma

doença senil, orgulhoso a ponto de se apresentar como o “Hércules

romano” que sabe matar as feras e combater como um gladiador, e

não obstante apaixonado por Márcia, uma cristã a quem concedera

quase todas as honras de imperatriz. Mais uma vez, com ele, a idéia

do fim do mundo ficava afastada: era um imperador pacifista, e pós

um fim às guerras empreendidas por seu pai contra os bárbaros que

ameaçavam as fronteiras romanas. Mas o conceito da decadência do

império não chegou a ser abandonado; as antigas classes dirigentes,

pagãs e admiradoras de Marco Aurélio diziam que uma idade de ferro

tivera início com o advento de Cómodo. Para elas os bons tempos

terminaram com o falecido imperador. Cássio Dion, historiador que

foi senador nesse período, dizia: "[depois da morte de Marco], a

Page 51: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

história passou de um império de ouro para um de ferro,

enferrujado." Herodiano, outro historiador (talvez um liberto

imperial) que viveu em Roma nesse período, também achava que a

morte de Marco Aurélio marcava o início de uma época de

decadência:

Se alguém considerar o período a partir de Augusto, desde que o

império dos romanos tomou forma monárquica, não encontrará nos

anos - cerca de dois séculos - até Marco nem sucessões tão cerradas

de reinos, nem acontecimentos de guerras civis e externas tão

variadas e movimentos de nações e ocupações de cidades em nosso

império e fora dele; e terremotos, e perturbações atmosféricas, e

vidas fora do normal de usurpadores e imperadores, como antes nãó

há lembranças a respeito, ou são muito raras.

A decadência do mundo antigo apresentava-se aos dois pagãos,

Cássio Dion e Herodiano, em termos de todo antitéticos aos

formulados nos últimos tempos de Marco pelo poeta sibilino cristão.

No entender deste último a morte de Roma coincidia com o reinado

de Marco; já os dois pagãos achavam que tal reinado fora a última

idade de ouro do Estado. Na visão do sibilino, o fim de Roma

representava a justa condenação da opressão tributária e das guerras

de Marco Aurélio; na interpretação de Herodiano, ao contrário, a

grande crise tinha início no momento em que Cômodo, o imperador

pacifista, preferira as delícias de Roma à guerra e às geleiras sobre o

Danúbio, e esta predileção por Roma inspirara sua vida "fora do

normal", "paradoxal", para usar o vocábulo grego de Herodiano.

Depois de Cômodo, o ano dos cinco imperadores (193), a guerra civil,

o império dos Severos. Continua, então, entre muitos cristãos, a

grande espera, e Montano julga iminente a queda deste mundo. No

Ponto, camponeses cristãos deixam seus campos, vendem seus bens,

esperam o dia do Juízo; e para esta espera do fim iminente, homens

e mulheres e crianças da Síria vão ao encontro do Reino de Deus no

deserto. Tertuliano reza "para que o fim seja adiado", pro mora finis.

A essa altura intervém um grande escritor cristão: Santo Hipólito.

Page 52: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

Naturalmente, em sua indagação a respeito do fim do mundo ele

também parte do Livro de Daniel e do Apocalipse de São João. Em

seu Comentário a Daniel, Santo Hipólito exptessa de uma forma

inesquecível esse sentido do fim do mundo que coincide com o fim

do império romano. Situa-o em 500 d.C.: uma data próxima daquela

já "prevista" pelo pagão Vétio (que, como vimos, previra para Roma

doze séculos de vida). Contudo é enorme a diferença entre Vétio,

pagão da época de Varrão, e Santo Hipólito, cristão da época dos

Severos: Santo Hipólito atribui o fim de Roma ao surgimento das

"democracias”.

Os dedos dos pés (da estátua no sonho de Nabucodonosor) pretendem

mostrar as democracias vindouras, que se separarão umas das outras

como os dez dedos da estátua, nos quais o ferro será misturado com

a argila.

Estas "democracias" surgem das "nações": "enquanto dez reis", diz

Hipólito em outra parte, "dividirão entre si o império segundo as

nações". Sobre a forma e a data da morte de Roma, Hipólito previu

corretamente; de fato, o fim do mundo antigo foi em grande parte

uma vitória das partes sobre o todo, da periferia sobre o centro

enfraquecido. A perspectiva apocalíptica atraía o olhar de Hipólito

para as contradições internas e para o destino final do império do

mundo. De resto, o problema das "nações", "democracias" que um dia

dividiriam entre si o império de Roma, sempre dominou o

pensamento de Hipólito.

Uma vez que o Kyrios (Senhor) nasceu no 42º ano de Augusto, quando

começou o florescimento do império romano, o Kyrios (Senhor)

chamou, através dos Apóstolos, todas as nações e todas as línguas e

delas fez uma única nação de fiéis cristãos, que trazem, em seu

nome, o nome do Kyrios, o novo nome. O império que nos domina

segundo o poder de Satanás pretendeu imitar tudo isso; e assim

também ele, reunindo os mais fortes de todas as nações, arma-os

para a guerra, chamando-os pelo nome de romanos.

Page 53: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

Esta visão acentuava um aspecto da crise: a condição das nações no

Estado universal de Roma. Mais tarde outro escritor cristão examinou

a crise da vida moral: um aspecto mais genérico, porém igualmente

interessante; um tema salustiano que se manifestou na dramática

atmosfera do século III d.C. Tratava-se de um insigne retórico de

Cartago: Cipriano. No grande império oficialmente pagão, os cristãos

não constituíam uma diminuta minoria, mas eram parte considerável

da população, cientes da força de sua fé; se na época de Cômodo a

própria concubina do imperador, Márcia, fora cristã[4], cinqüenta

anos depois as comunidades cristãs se fortaleceram ainda mais; o

próprio imperador Felipe, o Árabe, que governou de 244 a 249, era

considerado cristão.

Na época de Felipe, o Árabe, Cipriano converteu-se ao cristianismo.

A fúria da guerra tomara conta do império sob o antecessor de

Felipe; o novo imperador, cristão ou próximo dos cristãos,

estabelecera a paz. No entanto isso não bastava para tranqüilizar o

ânimo angustiado de Cipriano. O zeloso neófito julgava perceber um

inexorável declínio dos valores no cotidiano da sociedade romana - o

que equivalia a uma sentença de morte. Protestava contra as guer-

ras: "Se alguém comete um homicídio, este é considerado crime; se o

homícidio se realiza em nome do Estado, é considerado virtude." Na

própria administração da justiça ele via se desfazerem as esperanças

de uma sociedade melhor: "As leis estão inscritas nas doze tábuas, e

os direitos nos editais públicos - mas o juiz vende seu voto a quem

pagar melhor"; falsificam-se os testamentos; "o direito estabeleceu

uma aliança com o delito". Em 251 a tragédia se agravou: Décio, um

imperador pagão, governava desde 249. Cipriano, na época com

cinqüenta anos, voltou à luta. Contra os pagãos que atribuíam os

males do Estado à nova fé, pretendeu reafirmar, no escrito a

Demetriano, seu conceito de um decadência inexorável do mundo

envelhecido. Este era uma tema lucreciano, como vimos; Cipriano,

entretanto, retomava-o por conta própria; sentia em toda parte o

cansaço senil e o toque frio da morte.

[

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Deves saber que este mundo já envelheceu. Não tem mais as forças

que antes o sustentavam; não mais o vigor e a força pelos quais

antes se sustentou. Mesmo que nós, cristãos, não falemos nem ex-

ponhamos as advertências das Sagradas Escrituras e das profecias

divinas, o mundo já fala de si e com os próprios fatos documenta seu

ocaso e sua queda. No inverno já não há abundância de chuvas para

as sementes, no verão não mais existe o costumeiro calor para

amadurecê-las, nem a primavera se mostra alegre com seu clima, e

muito menos fecundo é hoje o outono. Reduziu-se nas minas

esgotadas a produção de prata e ouro; reduziu-se a extração dos

mármores; empobrecidos, os veios a cada dia fornecem uma

produção menor. Há falta de agricultor nos campos, de marinheiro

nos mares, de soldado nas casernas, de honestidade no foro, de

justiça no tribunal, de solidariedade nas amizades, de perícia nas

artes, de disciplina nos costumes. Acreditas mesmo que um mundo

tão velho possa ter a energia que a juventude ainda fresca e nova

pode encontrar há tempos? É preciso que perca vigor tudo que, com

a aproximação do fim, se volta para o acaso e a morte. Assim como

em seu ocaso o sol envia raios menos luminosos e quentes, assim

também menos luminosa é a lua em seu declínio; e a árvore, antes

fértil e verde, à medida que os ramos secam, torna-se estéril e

disforme em função da velhice.

Culpas os cristãos, se tudo diminui com o envelhecimento do mundo.

Mas com certeza não é culpa dos cristãos se os velhos têm as forças

diminuídas, se não ouvem mais como outrora, se não têm a rapidez e

o poder visual do passado, a firmeza e a galhardia e a saúde de outra

época; antigamente os longevos chegavam a oitocentos e novecentos

anos, agora a muito custo atingem os cem. Vemos meninos

encanecidos; os cabelos desaparecem antes de crescer; a vida já não

termina, mas começa com a velhice...

Quanto à maior freqüência das guerras, ao agravamento das

preocupações com o aparecimento de carestias e esterilidade, à fú-

ria de doenças que deterioram a saúde, à devastação que a peste

opera em meio aos homens - isso também, é bom que saibas, foi

previsto: que nos últimos tempos os males se multiplicam e as ad-

versidades assumem aspectos os mais diversos, e, com a aproxima-

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ção do dia do juízo, a condenação indignada de Deus decreta a ruína

dos homens. Em tua tola ignorância da verdade, erras ao declarar

que essas coisas acontecem porque não honramos os deuses;

acontecem porque não honrais a Deus.

Dois motivos se fundem em Cipriano: De um lado, a análise da crise

romana: ou seja, uma perspectiva pessimista com colorações

retóricas (sobretudo salustianas), como motivos biológicos (a velhice,

como Sêneca e em Floro; certas considerações climatológicas e

geonômicas fariam pensar em modernos, como Huntington e Liebig).

De outro lado, a idéia do iminente fim anticrístico do mundo. São as

duas expressões da angústia humana nesse atormentado período do

império romano: a observação pessimista e a apocalípitca certeza. A

primeira aplica categorias que se relacionam, mais ou menos, com o

quadro da tradição antiga: a segunda, que transforma o fim do

Estado no fim do Tempo, encerra um conteúdo de tragicidade cristã

e se lança para o futuro queimando o passado atrás de si.

Notas[1] Ovídio, Ars Amatoria III, v. 121 ss.: uma verdadeira exaltação do

progresso.[2] Sobre este texto de Sêneca pai cf. Hartke, Römische Kinderkaiser

(1950), 393 ss. A idéia da velhice de Roma encontra-se de novo em

Floro: cf. P. Zancan, Floro e Livio (1942) 13-20 (fundamental para a

história do conceito de decadência nesse período). Em geral, cf.

Pöschl, in "Gymnasium", 1956, 190 ss.[3] Com terminologia moderna, alguns diriam que para Sêneca pai a

história é "história da liberdade". Diferentemente dos antigos, os

modernos intérpretes da história como história da liberdade muitas

vezes procuram evitar formulações biológicas: basta pensar em

Croce e em Rüstow.

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[4] Ou pelo menos muito próxima dos cristãos: o bispo Hipólito, que

exprime o mais intransigente cristianismo, chama-a 'PiÀóvos',

"piedosa"; era devota do bispo de Roma, Vítor; cf. infra, cap. 7

"Inimigos externos" e "Inimigos internos"

Na literatura mundial, outro escritor cristão do século lII d.C,

Comodiano, foi o primeiro a apresentar os germanos, mais

precisamente os godos, como protagonistas da queda de Roma. Sob o

império de Décio, violento perseguidor dos cristãos, os godos

invadiram e saquearam a península balcânica; em Abrito, numa

terrível batalha entre os pântanos, o próprio imperador morreu no

ano de 251; em 252-253 os godos foram ter à Asia Menor, chegando

até Eféso. Sob a impressão desse acontecimento e dos que se se-

guiram (até a mais recente perseguição anticristã ordenada por

Valeriano em 257-258 e à desastrosa guerra persa conduzida pelo

mesmo imperador), por volta de 260 Comodiano escreveu seu

Carmen apologeticum. Ele não conseguia aceitar que durante mais

de dois séculos grande parte do mundo romano tivesse permanecido

surda à mensagem da fé cristã; em outro escrito, perguntava

indignado: "Por que fostes crianças (afinal, só crianças podem

acreditar nos raios de Júpiter) durante duzentos anos?"[1] No Carmen

apologeticum sua indignação contra o império perseguidor trans-

borda. Uma ardorosa necessidade de vingança, um forte anseio de

justiça perpassa seus versos admiráveis: ele evoca com desprezo os

pagãos aprisionados pelos bárbaros e com implícita alegria os godos

invasores que se fraternizaram com os cristãos. Ao rei dos godos,

Kniva, dá o nome de Apolion, o "exterminador", retirado do

Apocalipse de São João; a invasão dos bárbaros entra no quadro

apocalíptico do fim do império, projetado no futuro próximo.

Evidentemente não foi Comodiano que introduziu os germanos na

literatura dos povos clássicos. Já na época de Alexandre Magno, um

viajante de Marselha, Pítea, falara desses povos do norte, e, por

[

[

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volta de 200 a.C., uma coleção grega de "coisas estranhas"[2]

mencionara "germara", povos do extremo norte, "os quais não vêem o

dia", assimilados etnicamente aos celtas; Eratóstenes e Posidônio

haviam dado algumas informações sobre o mundo germânico.

César[3] distinguiu esses povos dos celtas, sublinhando, entre outras

coisas, a falta de uma classe sacerdotal entre os germanos (aspecto

realmente importante para a história de sua cultura). Tácito,[4] no

ano de 98, delineou um quadro das "virtudes" germânicas,

relacionando-as com o "costume pátrio" dos romanos, que julgava

obscurecido pelo recém-chegado "legalismo" e pelos demais efeitos

da civilização. No entanto mesmo sua avaliação do germanismo não

era lá muito nova; em diversos aspectos ligava-se à contraposição

feita por Posidônio entre natureza e cultivo, selvagens e civilização

decadente - que foi doutrina do estoicismo, expressa também na

célebre nonagésima epístola de Sêneca, o filósofo. Assim, não

podemos forçar a contraposição de Tácito entre "virtudes"

germânicas e decadência legalista dos romanos: ele teria louvado as

"virtudes" de qualquer outro povo em estado natural, como, por

exemplo, os indômitos bretões, cuja ferocidade destacou em oposi-

ção à "moleza" resultante de uma paz duradoura.

Somente o olhar dos cristãos, voltado para o futuro, como o de todas

as minorias criadoras, pôde intuir (mais de um século e meio depois

de Tácito) a posição dos germanos como povo máximo da nova

história, contraposto a Roma; percebeu-a, é bom lembrar, graças a

um poeta genial,[5] Comodiano, que via o juízo de Deus na careta

blasfema dos romanos perseguidores. O espírito revolucionário desse

intransigente cristão encontrava-se, assim, com os novos povos que

dentro de alguns séculos iriam fazer história, e já agora a faziam,

atirando-se com fúria sobre as cidades do velho império. Sob alguns

aspectos, esses povos podiam acolher a nova fé melhor que os velhos

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Estados clássicos, perturbados até a medula com a grande revolução

espiritual cristã, mas ainda assim presos, na forma exterior e oficial,

a uma fortíssima tradição; de fato, a conversão dos visigodos ao

cristanismo teve início a partir das famílias cristãs que se

"confraternizaram" com eles no século III, durante a invasão. Em sua

fantasia, Comodiano transformou a invasão dos godos numa ameaça

contra "Roma", ou seja, contra todo o império; uma febril ansiedade

o levava a antecipar os tempos. Na verdade, um século e meio

depois, os godos de Alarico (a essa altura cristãos, não mais pagãos

como os descritos por Comodiano) iriam atacar de chofre o império

não mais perseguidor.

Início do fim será a sétima perseguição contra nós: eis que já bate à

porta e se reúne na espada: (por punição divina) fará atravessarem o

rio os gados que irrompem (no império). Com eles estará o rei

Apolion, terrível no nome, que pelas armas deterá a perseguição aos

cristãos. Dirige-se a Roma com muitos milhares de homens e por

decreto de Deus os subjuga e aprisiona. Muitos senadores,

prisioneiros, chorarão; blasfemam contra o Deus do céu, vencidos

pelo bárbaro.

No entanto, em toda parte estes (gados) pagãos dão alimentos aos

cristãos, que procuram alegremente como irmãos, preferindo-os aos

lascivos acloradores de ídolos falazes. De fato, os godos perseguem

os pagãos e subjugam o Senado. Esses males se abatem sobre os que

perseguiram os cristãos; dentro de cinco meses os perseguidores são

mortos pelo inimigo.

Pela maneira de encarar a posição dos germanos na história do

império, Comodiano permanece isolado no século III. Outro grande

escritor cristão, Dionísio, bispo de Alexandria, limitava-se na época a

definir a decadência do império em termos de crise demográfica e

desaparecimento apocalíptico do gênero humano.

Surpreendem-se e perguntam-se de onde vêm as pestes contínuas, as

mortes de todos os tipos, o variado e enorme despovoamento;

perguntam-se por que a cidade tem ao todo - incluídas as crianças e

Page 59: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

os anciãos - um número de habitantes igual apenas ao dos velhos de

outros tempos. O fato é que na época o número de homens entre

quarenta e setenta anos ultrapassava o dos homens de hoje entre

catorze e oitenta anos; em nossos dias, os muito jovens são os

companheiros dos muito velhos.

Por trás de todo pessimismo cristão, violento como o de Comodiano

ou reflexivo como o de Dionísio, havia a convicção apocalíptica do

fim do mundo, mais ou menos próximo, de qualquer maneira certo.

Na verdade, os livros sagrados de certa forma pareciam garantir esse

fim: o Livro de Daniel, o Apocalipse de São João. Por isso os pagãos

procuraram atacar esses livros, quase recolhendo o sufocado pro-

testo dos seguidores de Cristo. Porfírio, que conhecia muito bem os

textos sagrados do Cristianismo, por volta de 269 levou a fundo sua

ofensiva na célebre polêmica Contra os Cristãos: seu canto de cisne.

No livro XII dessa obra; tenta demonstrar que o Livro de Daniel não

podia dar nenhuma certeza sobre a decadência e o fim iminente do

império de Roma. Com surpreendente perspicácia, que o torna o

maior orientalista da Antigüidade, observa que nesse texto a última

das "quatro monarquias" indica a monarquia selêucida, não o império

romano. O Daniel, conclui, não contém uma profecia sobre a queda

do mundo romano; mais simplesmente, exprime a tensão entre o

judaísmo e o helenismo do século II a.C. Contudo as investigações

filológicas não podem vencer as grandes revoluções espirituais. A

tradição eclesiástica da época continuou a procurar rio Livro de

Daniel a confirmação da inflexível condenação do império de Roma:

neste sentido, escreveram cristãos como Eusébio, Apolinário,

Metódio de Olimpo. Por volta do ano 407, num célebre Comentário a

Daniel, São Jerônimo retoma este ponto de vista:

Dizemos o que todos os escritores eclesiásticos nos transmitiram: no

fim do mundo, quando o reino dos romanos deverá ser destruído, dez

reis dividirão entre si o mundo romano...

Quando São Jerônimo escreveu o Comentário a Daniel, fazia quase

um século que o império era cristão. Constantino, senhor de Roma

Page 60: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

desde outubro de 312, convertera-se ao Deus dos cristãos,

abandonando a religiosidade pagã que ainda se arrastava no aparato

jurídico. Em seu isolamento, as velhas classes tradicionalistas, que

ainda antes de Constantino atribuíam aos cristãos a crise de Roma,

continuaram a falar em decadência. Não protestavam abertamente

contra a cristianização do Estado, mas, retomando velhos cálculos

astrológicos, limitavam a vida do cristianismo a um "ano grande" de

365 anos.[6] Sobretudo protestavam contra Constantino, que

introduzira uma nova burocracia e policiais: o historiador Aurélio

Vítor atribuía a estes últimos a "ruína" do Estado romano.[7] Assim, o

conceito da decadência romana, que para os cristãos já era uma

questão de exegese bíblica, tornou-se para os pagãos o cuidado

obsessivo com um doente que precisava sarar de qualquer maneira.

Juliano, o Apóstata, dizia que o império estava "doente" e em

declínio; esforçou-se por introduzir um conteúdo novo na tradição

enferrujada. Ao mundo ideal de Juliano pertencia um crítico de

Constantino (portanto, com toda probabilidade, um pagão) que

dirigiu a um imperador desconhecido (ao que parece, Constâncio II)

um texto[8] no qual eram "lançadas" propostas de reformas

econômicas, de reforma do aparato burocrático, de novas máquinas

de guerra. Não conhecemos o nome desse escritor; mas sem dúvida

ele nos deu um interessante documento sobre a maneira como o

conceito de "decadência" era desenvolvido pelos homens mais

dedicados à conservação do Estado romano. A inteligente

consideração dos fatos reais não diminuía sua surpreendente

capacidade de sacrifício. O anônimo autor do escrito que acabamos

de citar tirava a idéia da nova conjuntura econômica e social para

dela deduzir suas propostas.

Sob Constantino teve início a emissão abundante de ouro; com isso,

mesmo para compras de pequena importância, a base da transação

passou a ser a moeda de ouro, substituindo a de bronze, antes

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considerada de grande valor. Acredita-se que a origem dessa avidez

por riqueza seja a seguinte: tendo-se confiscado o ouro e a prata e

as muitas pedras preciosas que se encontravam nos templos,

acendeu-se em todos o desejo de dai e de ter. Infelizmente a

emissão de cobre - que, como dissemos, havia sido marcado com a

efigie dos monarcas - já era enorme e grave; ora, por não sei qual

loucura, verificou-se uma emissão de ouro ainda maior. Tão grande

circulação de ouro encheu de riquezas as casas dos poderosos, que se

tornaram assim mais ilustres, em prejuízo dos menos abastados; o

proletariado sucumbia sob a violência. Portanto, a classe dos pobres,

afligida pelas dificuldades e induzida a tentar delitos, perdeu todo o

respeito pelo direito e todo sentimento nobre; confiou sua vingança

às artes do mal; devastando os campos, abandonando-se ao

banditismo, espalhando o ódio, atingiu duramente o Estado; e,

passando de um crime a outro, encorajou usurpadores, cuja

insolência, por outro lado, em vez de exaltá-los, serviu para

enaltecer, ó excelente imperador, tua coragem.

Será, portanto, dever de tua sabedoria limitar a emissão monetária,

preocupando-se com o contribuinte, e no futuro propagar a glória de

teu nome. Reflete e muito (ó imperador) na lembrança daqueles

anos felizes: considera os reinos célebres da pobreza antiga, quando

os homens sabiam cultivar os campos e renunciar à riqueza; sua

incorrupta parcimônia os recomenda pelos séculos com louvor e

honra. Sim: chamamos áureos os tempos que não tinham ouro.

Entre os males intoleráveis que atingem o Estado está a fraude na

emissão e na circulação das moedas de ouro: ela exige nas compras a

astúcia fraudulenta do comprador, e se aproveita da dura

necessidade em que se encontra o vendedor; e tais inconvenientes

impedem um desenvolvimento normal dos negócios. Portanto, até

mesmo para isso deves encontrar remédio; reúnam-se os mestres

moedeiros, que terão de cuidar das emissões de moedas de ouro e

divisionárias numa ilha isolada, longe para sempre do contato com as

regiões vizinhas; assim não poderão causar dano ao Estado mantendo

com outras pessoas relações capazes de induzi-los à fraude. De fato,

na solidão serão fiéis a seu dever; tampouco haverá possibilidade de

fraudar onde não há oportunidade de tráfico ilícito...

Page 62: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

A esses males que atingem as províncias pela avidez de riquezas

acrescenta-se a execrável cobiça dos governadores, desgraça do

contribuinte. Sem respeito nenhum pelo cargo que ocupam, julgam-

se enviados para a província a fim de explorar os contribuintes; tanto

mais tristes quanto a injustiça é exercida, assim, por aqueles que

deveriam reparar os males e, como se não bastasse sua iniqüidade,

cada um deles, quase que para agravar a crise, envia cobradores

destinados a esgotar os bens dos contribuintes com todo tipo de

roubo; certamente esses governadores acreditam não se istinguir o

suficiente se permanecerem sozinhos em suas culpas...

Depois de referir os males do Estado, aos quais as augustas pro-

vidências darão fim, passamos agora a tratar da enorme crise que

deriva da manutenção do exército: todo o nosso sistema tributário

sofre gravemente com isso. Para evitar uma longa discussão,

formularei em breves palavras minha solução para tão grave crise.

(Em vez de vinte ou 25 anos, como acontece normalmente), os

soldados cumpram tão-somente alguns anos de serviço, de forma que

após cinco anos ou mais não pesem para os cofres do Estado...

Assim, não apenas o Estado será aliviado de uma grave despesa,

como também se reduzirão as preocupações imperiais nesse sentido;

ademais, um maior número de homens será encorajado ao serviço

militar nas regiões onde a longa duração de tal serviço induz muitos

a evitá-lo.

Naturalmente, por trás dessas propostas e advertências (às quais se

seguiam projetas de novas máquinas bélicas) revela-se sobretudo

uma preocupação; o anônimo autor queria que o império

aproveitasse ao máximo suas energias demográficas. Elas estavam

gravemente reduzidas nos campos e, portanto, no exército (cujos

contingentes eram recrutados entre os camponeses); enquanto isso,

além do limes, os bárbaros (como dizia o anónimo) "ladravam em

volta". Se, como acreditamos, o anônimo escreveu sob Constâncio II,

pouco antes do advento de Juliano em 361, pode-se dizer que era

uma pessoa de sorte; não viu, ou ainda não tinha visto, a definitiva

investida dos bárbaros sobre a imensa presa. Mas o simples

pensamento de que o enorme desastre pudesse um dia recair sobre o

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império o fazia meditar sem sossego.

Hoje em dia é fácil sorrir de propostas como a do isolamento forçado

dos moedeiros. Nossa época é por demais astuta para acreditar que

os doentes levantem da cama depois de um tratamento violento. Mas

esses homens - o anônimo que escreveu sob Constâncio II, Juliano, o

Apóstata, e muitos outros - amavam seu Estado até a loucura. Tão

loucamente quanto o tinham odiado Comodiano e Arnóbio; pois o

império de Roma podia ser objeto de ódio infinito e também de

infinito amor. E por isso as propostas desesperadas do tipo da ilha

dos moedeiros merecem nosso respeito; como o merece o desespero

de Juliano, que, na miragem de uma violenta batalha campal,

queimou sua frota do Tigre. Por outro lado, algumas propostas do

anônimo eram muito inteligentes; seu pedido de deflação foi atendi-

do por Juliano; sua proposta de um exército de camponeses antecipa

em dois séculos e meio a reforma temática de Heráclio.[9] Mas

devemos respeitar sobretudo sua previdente tristeza. Em 375 teve

início a catástrofe.

Como na época de Comodiano, os movimentos dos povos ameaçavam

o coração clássico do império. Em 375, época de guerra na Itália,

Sátira, o irmão de Santo Ambrósio, apressou-se em deixar a África,

onde estava desde algum tempo, e voltar para Milão. Do outro lado

do império, Valente acolheu os gados como mercenários; quando a

convivência com os bárbaros se revelou impossível (e a culpa com

certeza coube às classes dirigentes romanas, que odiavam os

forasteiros), não se pôde evitar o conflito entre romanos e godos; em

378, depois de uma campanha militar das mais dramáticas, Valente

acabou derrotado e morreu em Adrianópolis. Para aplacar os

vencedores, Teodósio, sucessor de Valente, teve de ceder-lhes o

comando militar da Ilíria. Sob o impacto da catástrofe, os homens se

questionaram novamente a respeito das causas do desastre. Um

panegirista, Temístio, comprazia-se em minimizar esses males; num

discurso dos primeiros dias de 381, mostrava-se satisfeito com o fato

de Teodósio ter cedido províncias da Ilíria aos bárbaros.

[

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Os cristãos sempre consideraram a hipótese de que a catástrofe

indicasse não apenas decadência, como o fim do mundo. Em 386-

388, comentando a profecia de Jesus sobre a destruição do templo

de Jerusalém e a consummatio saeculi, o bispo de Milão, Santo

Ambrósio, traçou um balanço da tragédia. De um lado, sua

perspicácia política acentuava a gravidade da insurrecttio de hunos

contra alanos, de alanos contra godos, enfim da migração dos povos;

de outros, denunciava uma crise moral que em seu estilo adquiria

tonalidades bíblicas. Assim,'falava de inimigos externos e inimigos

internos, hostes extranei e hostes damestici. Por uma estranha

coincidência encontrava-se com Políbio, que também falara (num

plano exclusivamente histórico) de eventuais "causas externas" e

"causas internas" da decadência de Roma. (Ao leitor de hoje ocorre

espontaneamente a comprovação com Toynbee, com as categorias

de "proletariado externo" e "proletariado interno"; entretanto em

Toynbee estes são predicados sociológicos, e em Santo Ambrósio

trata-se de conceitos genéricos.) O bispo de Milão, cristão muito leal

ao império, chegava mesmo a considerar sacrilégio a aceitação da

moda bárbara por parte de um bispo; viu os godos representados no

povo de Magog, a respeito do qual Ezequiel falara. Eles eram os

hostes extranei; hostes domestici, ao contrário, eram as paixões,

sobretudo a ambição por dinheiro e domínio, que tinha afastado os

homens do caminho primitivo e, no fundo, do direito de

natureza.[10]

As palavras celestes têm as melhores testemunhas em nós mesmos,

sobre os quais desabou o fim do mundo. Quantas guerras e que

noticias catastróficas chegam até nós! Os hunos voltaram-se contra

os alanos; os alanos contra os gados; os godos contra taifalos e

sármatas; exilados de suas sedes, os gados fizeram de nós mesmos,

na Ilíria, os exilados na própria pátria; tampouco ainda se percebe o

fim de tudo isso. Por toda a parte há carestia; e a peste abate-se

igualmente sobre homens e bois e sobre os outros animais; de forma

que, mesmo não tendo sido diretamente atlngidos pela guerra,

[

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devido à peste nos encontramos nas mesmas condições dos que

foram derrotados. Enfim, estamos no ocaso do seculo e, portanto,

alguns males do mundo nos precedem; mal do mundo é a carestia,

mal do mundo é a peste, mal do mundo é a perseguição.

Mas há também outras guerras, que o cristão deve enfrentar: as

batalhas das opostas cobiças; e os conflitos das paixões; os inimigos

internos são muito mais graves que os externos... Entretanto o forte

diz: se diante de mim se estendem os acampamentos, não deverá

temer meu coração; se contra mim se erguer a batalha, manterei

minha esperança (Salmo 26).

Na mesma época em que Santo Ambrósio escrevia essas linhas,

Amiano Marcelino trabalhava em seus Anais: o livro de história mais

insigne e ponderado que o baixo império produziu. Marcelino era um

pagão de Antioquia, mas não escreveu sua obra com uma perspectiva

confessional. Acreditava na possibilidade de uma historiografia

"objetiva". Como Santo Ambrósio, não gostava dos germanos (por

exemplo, via sob uma luz totalmente imoral, as primitivas iniciações

juvenis dos taifalos). Com uma análise do costume huno, procurou

explicar a origem da onda bárbara que arrastara tudo à sua frente; e

tinha objetividade suficiente para reconhecer que o episódio de

Adrianópolis fora de certa forma desejado pela classe dirigente

romana, que dava, aos godos carne de cão em troca de seus fIlhos

reduzidos a escravidão. Ele via a origem da decadência romana na

burocratização excessiva e na opressão tributária; por isso mesmo

sua crítica recai sobre Constancio II; sua admiraçao (na verdade

contida dentro de limites precisos) volta-se para Juliano, que, na

Gália, já com o título de César, reduzira o tributo de 25 para 7 solidi.

Esta atitude espiritual situa-se no mesmo plano dos conselhos do

anânimo, que repreendera Constantino pela emissão abundante de

ouro, e os governadores pela "cobiça execranda, ruína do

contribuinte". No fundo, a obra de Amiano foi toda uma epopéia da

res publica, que corria o risco de sufocar sob o emaranhado das

multidões bárbaras que pressionavam as fronteiras e das alistadas no

exército imperial, das deserções e das traições dos soldados, das

misérias que humilhavam a vida urbana de Roma, das lutas pelo

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trono episcopal romano. Cada relato, cada página de seus Anais

parece levar de volta idealmente ao pensamento da catástrofe de

Adrianópolis (378). Amiano escreveu na época de Teodósio, o Grande

(379-395), dominada pela lembrança daquela batalha com a

horripilante cena final do imperador derrotado, queimado no

incêndio. Sob o mesmo Teodósio[11] parece ter vivido Vegécio, escri-

tor muito menos importante do que Amiano e todavia também

obcecado pela idéia de uma gravíssima decadência de Roma.

Amiano é pagão; Vegécio, pelo menos formalmente, é cristão.

Entretanto ambos escrevem como que em meio a um opressivo vazio

e à vaga sensação de que algo se perdeu em 375: Amiano com a

implacável melancolia do grande historiador; Vegécio com o

otimismo erudito de quem expõe soluções impossíveis e deteriora

termos venerandos que a essa altura já são sombras de si mesmos. O

termo venerando que nele se toma mágica panacéia é legião;

remédio para a decadência é a antiga disciplina legionária. Um re-

médio certamente tão genérico e abstrato como haviam sido vivas e

atuais, embora às vezes utopísticas, as propostas do anónimo que

escreveu sob Constâncio II. Quanto à explicação da crise, Vegécio

corretamente a procura na insensibilidade dos proprietários, que

evitam mandar para o servico militar seus melhores colonos e

oferecem elementos que "não prestam", gente que não daria nem

mesmo para o trabalho nos campos. Em última análise, um

"diagnóstico" preciso, um remédio arqueológico. Todavia, se o diag-

nóstico de Vegécio a respeito da decadência foi esquecido, algumas

de suas fórmulas militares (aliás, vegecianas até certo ponto) ainda

ressoam em nossos ouvidos, tendo agradado inclusive a Maquiavel.

Essas gastas propostas de Vegécio não constituíam, portanto,

soluções, mas argumentos para os queixumes literários a respeito da

decadência. Em alguns casos até serviam de consolo para quem

queria esquecer que no coração do império, na região da Ilíria,

Teodósio, o Grande, tivera de aquartelar os soldados godos,

vencedores em Adrianópolis. Debruçados sobre o esforço erudito de

[

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Vegécio, seus leitores podiam concluir que a crise de Roma não era

um fato novo, pois já aí a época de Aníbal - dizia seu autor -

conhecera algo semelhante" em decorrência da longa paz que se

seguiu a primeira guerra púnica" . No entanto, quando o mouro

Gildão se rebelou contra Roma, mais uma vez sentiu-se profunda-

mente o perigo; até Claudiano, poeta do general Stilicon, disse que

"o próprio tamanho do império prejudica Roma'.' Gildão foi vencido.

Em 401 e 402, Stilicon venceu Alanco na ltália. Todavia os romanos

daquela época tiveram de fazer certo esforço para acreditar, por

exemplo, mais nas panegíricas efusões do paganizante Claudiano que

no pessimismo do cristão Sulpício Severo, que, por volta do ano 400,

tornou a lembrar que os pés da estátua de Nabucodonosor eram de

argila. Em 406, Stilicon venceu o ostrogodo Radagaiso, porém no

mesmo ano hordas de bárbaros caíram sobre a Gália; mais tarde

alguns chegaram à Espanha; alanos, suevos, vândalos. Uma parte do

império começou a se desintegrar.

E em 408 Stilicon foi morto; em 410 Alarico ocupou Roma. Com a

morte de Alarico, seus visigodos encaminharam-se para o norte da

Itália, rumo à Gália; mais ou menos nessa época, Oriêncio, um

homem do mundo que se tornara religioso sob o peso do drama,

escreveu seu Commonitorium: "A Gália", dizia, "é uma fogueira só."

Não era apenas a decadência do império, mas o destroçamento. O

Commonitorium de Oriêncio reduzia a origem dos males aos

primeiros pecados graves; luxúria, inveja, avareza, ira, mentira. No

final do Commonitorium, os novíssimos: a morte, o inferno, o céu, o

juízo. Com este pequeno poema estendido para o além tem início,

poder-se-ia dizer, a Idade Média (nove séculos depois, o mesmo

motivo do pecado e dos novíssimos produzirá a síntese espiritual da

Idade Média que é também a máxima obra poética dos cristãos: A

Divina Comédia). O conceito da decadência separa-se da esfera das

propostas e das previsões; em Oriêncio torna-se um assustado remor-

so diante dos pecados, uma pura espera do julgamento divino.

Por que narrar os funerais de um mundo que vem se arruinando ao

seguir a lei comum de tudo que se extingue? [Aqui também,

Page 68: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

portanto, o eco do omnia orta interelmt de Salústio.] Por que insistir

sobre o número daqueles que morrem no mundo, enquanto tu

mesmo, ao contrário, vês teu último dia chegar depressa?" Bem-

aventurado aquele que, considerado este solene juízo, para o qual

olham as cidades e as nações, pode esperá-lo com coração firme e

expressão serena, descansando sobre a inocência de sua vida.

Em 416 outro poeta cristão da Gália escreveu o célebre Carmen de

providentia, em que o conceito de "juízo de Deus" e da "cidade

celeste" dá o tom à resignada consideração dos recentes desastres e

à condenação dos pecadores.

Esta pessoa chora as somas de ouro e prata que perdeu; aquela outra

lamenta o enfeite que lhe foi arrancado, os colares que as esposas

dos godos dividiram entre si... Mas tu, que choras por teus campos

parados, pelas casas abandonadas, pelos deambulatórios de teu

castelo incendiado, não seria melhor chorar por teu verdadeiro mal,

se conseguisses ver a devastação que há no fundo de teu coração?...

Evitemos erguer contra nós, com lamentações raivosas, a justa có-

lera divina; não acusemos o juizo de Deus, que mais que o abismo

infinito supera os meios de nossa razão e de nossa raiva.

Notas[1] Este texto é fundamental para o importante problema da datação

de Comodiano; cf., por exemplo, Courcelle, Histoire littéraire des

grandes invasions germaniques, 1948, 127 ss. (com conclusões

diferentes das nossas).[2] Trata-se de uma edição que não chegou até nós do de mirabilius

auscultatianibus do Pseudoaristóteles (outras quatro redações

chegaram até nós) e consultada por Estêvão de Bizâncio, s.v. fkpjJ-

apa (ou de sua fonte).[3] Walser, in "Historia", Einzelschr. H. 2.

[

[

[

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[4] Walser, Rom, dans Reich und die fremden Völker in der

Geschichtsschreibung der frühen Kaiserzeit (1951).[5] É bom lembrar o parecer de Huysmans: "Un seul poète chrétien,

Cammodien de Gaza, représentait dans sa bibliothèque l'art de L 'an

lII.. Ces vers tendus, sombres, sentant le fauve... ".[6] Hubaux, in "Antiquité Classique", 1948, 143 ss.[7] Daqui a polaridade Diocleciano-Constantino: cf. S. Mazzarino,

Aspetti sociaciali del quarto secolo (1951); Seston, RAC IlI, 1036-1037

(1955).[8] Thompson, A Roman Reformer and lnventor (1951); cf. Andreotti,

in "Rivista di filologia classica", 1953, 164. Vale a pena reafirmar

(para o que diz respeito à datação) que tyrannus pode ser somente o

usurpador; um homem como Firmus não poderia ser indicado como

tyrannus.[9] A avaliação da reforma temática de Heráclio é de extrema

importância para a compreensão da história romana e da medieval:

Heráclio situa-se exatamente no limite entre Antigüidade e "Idade

Média bizantina". Este importante imperador bizantino, que governou

de 610 a 641, suportou o avanço árabe, que arrancou Egito e Síria ao

império; entretanto pôde rechaçar o avanço persa, que ameaçava

submergir toda a Ásia Menor. E este sucesso deveu-se, sem sombra

de dúvida, à reforma temática. Com ela, Heráclio estabeleceu

circunscrições regionais em que destinou a seus soldados, a título

hereditário, "propriedades para soldados": cada circunscrição

regional chamou-se thema, "corpo de armada". - Sobre a origem da

reforma temática de Heráclio discutiu-se muito: a opinião mais

difundida (recent. Ostrogorsky, Histoire de l'Etat byzantin, trad. fr.,

1956, 125 ss.) a reconduz ao sistema dos soldados limitanei ("dos

limites") do baixo império: neste caso a reforma de Heráclio não

[

[

[

[

[

[

Page 70: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

seria uma inovação propriamente dita, porém manteria instituições

romanas vigentes desde o século IV d.C. Na realidade, contudo, os

limitanei do baixo império a rigor nunca foram soldados-colonos. [Cf.

Seston, in "Historia", 1955, 284 ss.; Jones, in "Classical Review"

1953,114. - Diferentemente, Van Berchen, L'armée de Dioclétien et

la réforme canstantinienne, 1952). O principal argumento

apresentado por Van Berchen é, porém, um texto do historiador

bizantino Malalas que diz que Diocleciano colocou os duques "mais

para dentro dos acampamentos"; se, como acredito, a expressão de

Malalas se refere somente àqueles "limites mais internos" de que fala

Amiano XXIII 5, I, deduz-se que mesmo os duques se encontram no

limes - embora numa linha mais interna - e que portanto os limitanei

não são - como afirma o ilustre estudioso suíço - soldados-

camponeses muito distintos dos demais soldados. ][10] Para se entender toda a "apologética cristã da história", pode-se

consultar o fundamental ensaio de Straub in "Historia", 1950, 52 ss.[11] Para o que diz respeito à datação de Vegécio, cf. o que observo

em Giannelli-Mazzarino, Trattato di storia romana, II (1956), 542-

543. [= S. Mazzarino, L'impero romano. Bari 1988. pp.831-833.

N.d.R.]

MAZZARINO, S. O fim do mundo antigo. São paulo: Martins Fontes,

1991

Marcas da Experiência Romana

1. A COMUNIDADE MEDITERRÂNEA: LIMITES E VIZINHANÇAS

“Antes de mais, é preciso que se saiba que o Império Romano contém

por toda a parte a fúria das nações que uivam à sua volta, e que a

pérfida barbárie, protegida pela natureza dos lugares, cobiça de

todos os lados as nossas fronteiras.” É nestes termos que um obscuro

autor do século IV, pouco depois da conversão de Constantino ao

cristianismo, descreve o campo entrincheirado em que se convertera

[

[

Page 71: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

a Respublica Romana, essa grande comunidade dos povos greco-

romanos.

A luta fora muito menos árdua durante o período áureo de Augusto

ou o período argênteo de Trajano. Transformara-se numa série de

combates sem quartel durante o período férreo de Galieno,

complicando-se com terríveis convulsões internas. Depois, mercê de

um esforço quase sobre-humano, o Império reerguera-se. O

Imperador recuperara autoridade sobre as tropas, o exército soubera

uma vez mais conter os Bárbaros, e a Respublica, enfraquecida mas

convalescente, conseguira um adiamento precioso. E embora a

constituição do Império, as suas leis, a economia ou a arte já não

fossem as mesmas do tempo da juventude – seria acaso possível

sobreviver quatro séculos sem transformações? – as fronteiras não se

haviam alterado.

Regiões civilizadas e mundo bárbaro

Na força da juventude, o poderio romano atingira os limites do

mundo civilizado e ultrapassara-os até para anexar as mais férteis ou

as menos atrasadas das regiões bárbaras. Na idade madura,

imobilizara-se em longo corredor que as fortificações do limes

protegiam contra os embates desordenados dos nômades e dos

seminômades a norte ou a sul: bárbaros da planície ou da floresta

onde a vinha jamais conseguia sol bastante para dar fruto, bárbaros

do deserto arenoso ou pedregoso onde a oliveira ardia sem dar flor.

A ocidente, era o oceano a abrir-se num abismo, onde seria loucura

aventurar-se alguém. A oriente, a Pérsia oferecia o espetáculo de um

Império menos poderoso e menos requintado do que o Romano, mas

governado não obstante, de acordo com princípios assás

semelhantes, um Império que se havia de tolerar provisóriamente,

visto terem fracassado as tentativas para o subjugar. Mais distante,

mal conhecida, a China – Serica, o império da seda – construía outras

muralhas contra outros bárbaros. Estes três estados tão cheios de

orgulho – Roma, a Pérsia, a China – formavam uma cadeia quase

contínua do Atlântico ao Pacífico, alternando-se, sem o saberem, na

Page 72: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

tarefa de organizar os povos civilizados e de deter os selvagens.

É certo que nem todos os “selvagens” o eram da mesma maneira aos

olhos dos Romanos. A Etiópia perdera quase por completo o contato

com o Egito, depois de sucessivamente ter sido sua vassala e sua

soberana, mas gozava no entanto de certo crédito, sobretudo porque

se situava na origem do ouro, de especiarias variadas, e nas

nascentes do Nilo, mais precioso ainda do que o ouro. Também a

India havia deslumbrado os Gregos pelas suas riquezas e mantido

ligações comerciais e culturais com as províncias levantinas do

Império Romano. Os Arabes não se faziam notar pela riqueza nem

pela força, mas algumas tribos suas visitavam com regularidade os

postos fronteiriços romanos da Síria e da Mesopotâmia, últimos

portos das caravanas antes do “mar sem água” do deserto, e aí

haviam colhido elementos de civilização. Mesmo os Germanos, dizia-

se, apesar da ferocidade natural, lá tinham as suas virtudes. Aos

escritores forneciam por vezes modelos para o retrato ideal do

selvagem nobre; aos exércitos, corpos auxiliares aguerridos; aos

mercadores, clientes com poucas exigências e, se os deuses se

mostravam propícios, escravas loiras.

É verdade que os deuses tinham demonstrado bem a sua cólera no

século III, mas essa dura prova pertencia já ao passado. Reconstruído

militar e administrativamente por uma série de grandes chefes,

desde Cláudio II (268-270) até Diocleciano (284-305), reconciliado

com a irresistível religião de Cristo por Licínio e Constantino (306-

337), o Império considerava crise passageira essa tempestade, no

decurso da qual um imperador fora capturado pelos Persas, um outro

morto pelos Godos, enquanto as melhores províncias desertavam.

Vistas bem as coisas, os Germanos, tal como os Berberes não

submetidos, que em tantos aspectos lhes eram semelhantes, não

pareciam tão de recear como o Estado civilizado dos Persas. Na

época do texto que citamos ao abrir este capítulo, o imperador

Juliano (360-363) - último campeão dos costumes antigos - daria uma

imagem bem nítida deste ponto de vista, ao voltar as costas aos

Germanos, derrotados mas não aniquilados, a fim de tentar uma vez

Page 73: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

mais concluir vitoriosamente o velho duelo com a Pérsia.

Assim, os limites do Império pouco se haviam deslocado no decurso

dos séculos. A sul, eram os desfiladeiros do Atlas, uma catarata do

Nilo e, nas outras partes, o deserto: alguns fortins puderam ser

abandonados sem que a situação mudasse sensivelmente. A oriente,

o deserto servia também de fronteira na Palestina e na Síria; daí até

aos desfiladeiros do Cáucaso, estendia-se uma região montanhosa

onde, sucessivamente, tanto Roma como a Pérsia se disputaram com

dureza algumas faixas de terreno sem resultado duradouro. A norte,

o Danúbio e o Reno, os grandes rios que cortam em dois aquilo a que

chamamos Europa, marcavam a fronteira entre a România e a

Barbária. Este limite prolongava-se, para lá do mar do Norte, até as

montanhas entre a Inglaterra e a Escócia. Na Escócia, na Suábia, na

Romérua e (se, em 180, Marco Aurélio não tivesse morrido cedo

demais) na Boémia, o Império concebera a ambição de proteger a

sua fronteira com uma cortina de fortificações exteriores, mas fora

obrigado a renunciar a tal. Aliás, mesmo sem essas fortificações, a

barreira continuava a aguentar-se. Era por certo uma fronteira bem

longa, mas que se justificava pelo fato de seguir, mais ou menos em

linha paralela, as margens do Mediterrâneo, de maneira a resguardar

uma faixa de profundidade quase constante, ao longo do mar.

O Império, dom do Mediterrâneo

Diz-se que o Egito é um presente do Nilo. Com quase tanta razão se

poderia afirmar que o Império Romano foi um presente do Mediterrâ-

neo. Este caráter físico, orgânico, distingue-o com nitidez dos outros

impérios da Antiguidade, que tinham por eixo um vale, e dos grandes

reinos medievais, centrados numa planície ou num planalto. Assim se

pode aplicar à comunidade greco-romana a encantadora imagem que

Platão dava dos Gregos, seus concidadãos, debruçados de perto ou

de longe sobre o mar “como rãs à volta de um charco”. Na verdade,

o Mediterrâneo mantinha unida a imensa Respublica Romana,

assegurando-lhe um clima relativamente uniforme e comunicações

relativamente fáceis. A própria Roma, ao comando: no centro,

Page 74: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

transmitia ordens e recebia por barco o seu sustento graças a Óstia e

ao Tibre.

A rede dos cursos de água e das estradas permitiu sem dúvida aos

Romanos uma certa penetração no interior das terras. Com engenho

e persistência os colonos conseguiram aclimatar plantas e métodos

mediterrâneos a alguma distância dos seus locais de origem (como

em relação à vinha, que propagaram em direção ao norte). Contudo,

quanto mais os Romanos se afastavam do mar quente e temperado,

menos à vontade se sentiam. Tornavam-se mais complicados os

problemas “logísticos” e administrativos, atenuava-se-lhes a

faculdade de assimilação dos povos submetidos, afrouxava-se-lhes

também a vontade de dominar os orgulhosos. Embora gostando de

chamar ao seu império “universal”, tiveram geralmente o bom senso

de parar sempre que se lhes tornava difícil retemperar as forças

mediante o contacto fácil com o Mediterrâneo revivificante.

Uniformidade de clima e facilidade de comunicações tornaram possí-

vel esse dilatado milagre do Mundo Antigo: a transformação de uma

amálgama desconexa de povos em comunidade harmoniosa e

homogênea. O imperador que celebrou o primeiro milenário da

fundação de Roma, em 248, era de origem árabe; diziam mesmo que

abraçara a doutrina subversiva e baixa dos cristãos. Que importa?

Acostumados de há séculos a viver em conjunto sob um governo

único, os habitantes do Império haviam adquirido uma maneira

comum de observar e de agir. Um cidadão que se deslocasse de

Eburacum (York) a Alexandria ou de Trebizonda a Cádiz não se sentia

mais estrangeiro do que um francês de hoje que viaje de Lille a

Marselha, Genebra ou Liège. Todos os homens livres eram cidadãos,

e se é verdade que nem todos os cidadãos gozavam dos mesmos

direitos, também as desigualdades se revelavam quase constantes de

uma ponta à outra do Império. Mesmo os escravos viram imperadores

filósofos impor os primeiros limites às arbitrariedades dos seus

senhores. Bem depressa a crise econômica e demográfica

preencheria o abismo que os separava dos homens livres: a liberdade

tornar-se-ia um fardo para os pobres enquanto a rarefação da mão-

Page 75: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

de-obra tornaria os escravos mais preciosos. Por todo o Império,

exército, administração, escolas, teatros, salões eram os cadinhos

onde, à chama do patriotismo romano, se fundiam resistências e

particularismos.

É verdade que não houve patriotismo que chegasse para eliminar por

completo as indiferenças e os descontentamentos. Contudo, a

ausência de concorrência tornava quase impossíveis as traições.

O mais ardente dos nacionalistas de hoje tem de admitir que a sua

própria nação faz parte de uma grande família onde as diferenças

culturais são pouco profundas; aos olhos dos seus cidadãos, a Roma

antiga era a única comunidade humana no meio desses seres meio-

homens que eram os Persas, ou desses semi-lobos que eram os

Bárbaros. Ponto de vista este pouco ampliado pelo universalismo de

alguns escritores cristãos.

Unidade e diversidade

Não há dúvida de que subsistiam diferenças regionais de idioma, de

leis, de instituições, de ritos, mas atenuadas, cobertas por uma

superfície homogênea, brilhante, sólida. Duas línguas eram quase

universalmente compreendidas, se não faladas com a mesma

fluência: o latim no governo e na ação, o grego no pensamento e na

elegância. Uma literatura bilingüe, mas una nos temas e no espírito,

conservava a forma primitiva dos idiomas dominantes, enquanto um

latim e um grego populares iam a pouco e pouco suplantando os

falares regionais. Artes e técnicas exprimiam-se igualmente num

idioma uniforme, apesar das variações impostas pelas disparidades

de talento e de instrução, de hábitos ou de clima. Elaborado por

juristas de gênio e enriquecido pela prática quotidiana, o direito civil

enterrava cada vez mais os costumes particularistas. A pouco e

pouco, os inúmeros cultos e deuses locais tinham-se fundido num

sincretismo nivelador. Ao mesmo tempo, as “superstições” místicas

do Oriente haviam feito recuar as “religiões” formalistas da tradição

ocidental. Por último, o cristianismo levara a melhor sobre as outras

Page 76: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

crenças universalistas orientais. De resto, a duração e a violência da

luta não podem esconder dos nossos olhos as influências recíprocas,

as semelhanças profundas entre as deusas-mães e as trindades de

todos os tempos, as afinidades entre um Celso e um Orígenes ou

entre um Santo Agostinho e um Juliano.

Como é natural, a camada niveladora não se mostrava igualmente

espessa em todas as classes ou em todas as províncias. Dentro

daquilo a que chamamos a civilização greco-romana, o acento

colocava-se sobre o termo “romano” na parte ocidental do Império,

e sobre o termo “grego” na parte oriental. Por razões opostas, a

Inglaterra e a Palestina estavam menos profundamente

“romanizadas” do que a Hispânia e a Dalmácia. Os Judeus,

orgulhosos de um passado ilustre, não queriam deixar-se

despersonalizar por uma cultura estrangeira; a Grã-Bretanha não fora

ocupada durante tempo suficiente ou colonizada com intensidade

bastante para absorver a fundo a cultura superior dum povo mais

evoluído. Da mesma forma, se as aristocracias urbanas não achavam

extremamente difícil tomar por modelo a aristocracia da Cidade por

excelência, já os camponeses - como sempre e em toda a parte -

conservavam um culto pelo torrão natal mais ou menos marcado,

consoante a distância a que se encontravam das cidades, do mar ou

das vias de comunicação. No principio do século V, um magistrado-

bispo da Círenaica terminava o seu elogio da vida rústica do interior

com estas palavras mordazes: “Sem dúvida que sabemos continuar a

existir um Imperador vivo, porque os exactores do fisco no-lo

recordam todos os anos; mas quem ele seja, é coisa bem menos

clara. Há entre nós alguns que julgam que o nosso rei é ainda

Agamémnon, filho de Atreu”. Persiste o fato de que Agamémnon

fazia parte do patrimônio comum da cultura greco-romana e de que

a ignorância ou o descontentamento dos rústicos só raramente

causou à Respublica Romana revoltas organizadas.

2. FORÇAS TRADICIONAIS

A experiência dos tempos modernos habituou-nos a ver na centra-

Page 77: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

lização administrativa o cimento dos impérios, e no comércio um

corretivo à ação dissolvente dos interesses agrícolas locais. Ora, a

unidade política do mundo mediterrâneo clássico assentou pelo

contrário na proteção aos governos locais, enquanto a sua unidade

econômica se construiu essencialmente sobre a uniformidade de

pequenas comunidades agrícolas.

O Império, uma república

Por muito, muito tempo, este império romano, que nunca deixou de

se querer chamar Respublica, prodigalizou esforços para suster os

corpos, organismos e comunidades particularistas que o pudessem

aliviar duma ou doutra função governamental. “Não existe paz sem

exército, exército sem soldo, soldo sem tributo; o resto é comum

entre nós”; nestas palavras, atribuídas por Tácito a um general

romano que se dirigia aos Gauleses, estão resumidos os ideais, e até

as realizações da política imperial. Mesmo os mais despóticos

imperadores do século I, os Calígulas e os Neros, pouparam em geral

aos pequenos senados das cidades provinciais, as humilhações que

gostavam de infligir ao grande Senado de Roma. Á medida que as

exigências da guerra e o peso da administração aumentavam, o

governo central viu-se evidentemente forçado a alargar as suas

atribuições e a multiplicar os seus cargos. Mas mesmo então, a

repugnância em levar a cabo uma centralizacão que não estava de

acordo nem com as tradicões nem com as possibilidades econômicas

e militares, se manifestou por uma série de medidas que conduziam

ao fracionamento. O alto comando (ou seja, o cargo de Imperador,

não o Império, que era e continuou a ser indivisível) foi partilhado

entre duas ou mesmo quatro pessoas. Cada um dos postos militares e

administrativos provinciais estava em condições de se bastar a si

próprio, tanto quanto o permitiam as situações particulares. Aos fun-

cionários municipais, presidentes dos corpos de misteres,

proprietários de grandes domínios, foram garantidos poderes

bastantes para transmitir as crescentes necessidades do governo a

quem dependesse deles.

Page 78: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

De todas as colaborações que podia solicitar, o Império só deixou

inexplorada a dos mercadores. Quando muito, foram estes

convidados a ajudar as autoridades nas requisições, por meio das

quais se tentava abastecer o exército e a burocracia sem recorrer ao

mercado livre. Esta indiferença não deixava de ter vantagens,

poupando aos comerciantes a intervenção nos negócios de um

governo que por força não compreenderia os seus interesses. Em

contra-partida, limitava os benefícios mútuos que a comunidade

política e econômica mediterrânea e a sua classe mercantil teriam

podido obter. Tornaremos adiante ao papel do comércio na vida

econômica do Império; limitemo-nos por ora a verificar que na vida

política ele desempenhou um papel insignificante. Por um paradoxo

da história, o único Estado que controlou todo o Mediterrâneo e dele

fez o seu centro de gravidade, viveu e morreu como nação de

agricultores.

O exército camponês

Quem não conhece a história edificante de Cincinato voltando ao

arado depois de cada vitória? Essa história nunca deixou de

representar o ideal supremo de Roma, ainda que a realidade cada

vez mais se distanciasse dele. Depois de a guerra ter enriquecido ou

empobrecido quase todos os pequenos proprietários independentes

do território latino, buscaram-se mais longe os Cincinatos, no resto

da Itália, na Gália, nos Balcãs. As colônias propagaram a boa

semente, os exércitos estabeleceram viveiros em todas as

guarnições, e a árvore, sempre ameaçada mas sempre renascente,

recebeu a proteção de leis especiais. No século III, foram

camponeses ilírios que salvaram o Império da derrocada. No

desmoronamento geral do século V, as derradeiras resistências aos

Bárbaros vieram, não dos grandes, quantas vezes dispostos a

colaborar com o vencedor, mas dos soldados camponeses, únicos ou

quase únicos a conservar propriedades livres ao longo da fronteira.

Os outros camponeses proprietários tinham sido absorvidos de há

muito pelos grandes domínios, resignados e até felizes por trocar a

independência pela segurança; porque os grandes senhores, a quem

Page 79: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

abandonavam a propriedade plena da sua parcela de terra, podiam

melhor do que eles fazer face aos flagelos reiterados das invasões, às

catástrofes mais frequentes das más colheitas, às sangrias regulares

e crescentes do fisco.

Se os pequenos proprietários (e, na sua falta, os mercenários

bárbaros) constituíam o núcleo do exército, eram os médios e os

grandes proprietários quem preenchia os quadros militares e

administrativos. Já muito anteriormente, durante as perturbações

que precederam a extinção da República, o seu monopólio fora

ameaçado por uma classe ascendente, a dos “cavaleiros”. Por

estranho que isso nos possa parecer, depois de séculos de cavalaria

feudal, o termo designava então plebeus enriquecidos pelo

comércio, pelos empréstimos e pelos fornecimentos de víveres. Pode

perguntar-se qual seria o destino do Império se estes “cavalheiros de

indústria” tivessem vencido: talvez resultasse mais vigoroso, mais

empreendedor, certamente menos estável. Mas a prudência de

Augusto e dos seus sucessores apoiou-se nas boas famílias dotadas de

bens de raiz, e naturalmente de um espírito conservador e

moderado.

Enquanto a média propriedade manteve o seu lugar ao lado do

grande domínio, o Império possuíu uma base bastante larga de

alicerces camponeses. Só começou a periclitar no momento em que a

classe média foi por sua vez engolida pela crise econômica e militar,

deixando apenas lado a lado grandes senhores e trabalhadores

esfomeados.

As células urbanas, células fundamentais

Enquanto subsistiu, foi esta classe média de proprietários que deu

alma às células fundamentais que formavam o Império: as cidades-

estados. Estas células eram anteriores ao próprio Império e mesmo à

cultura greco-romana. Ligavam-se ao tipo mais simples de

organização humana que pode resultar da fixação ao solo de uma

comunidade anteriormente seminômade ou nômade: um núcleo

Page 80: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

fortificado, colocado no meio de uma região agrícola.

O território da cidade-estado mostrava-se de início pequeno bastante

para poder reunir facilmente, no abrigo central, homens e produtos

e protegê-los contra a inclemência da natureza, fazer frente aos

inimigos comuns, partilhar as emoções da prece ou os prazeres do

banquete. A princípio, a cerca podia limitar-se a incluir um único

edifício para os deuses e os chefes, além de um grande espaço vazio

para reuniões. A pouco e pouco foram-se multiplicando as casas e a

aldeia passou muitas vezes a cidade, povoando-se de

administradores, artífices e mercadores, como também de

proprietários rurais. Mas estes continuaram a dominar a vida política

e social da cidade, ao mesmo tempo que asseguravam a sua união

material e moral com a zona abastecedora. O termo civitas, cidade,

que hoje reservamos à capital industrial e mercantil de um vasto

território agrícola, aplicava-se sem distinção ao território e ao seu

núcleo (urbs). O carácter específico do núcleo não resultava da

profissão dos seus habitantes, mas sim do fato de que eles viviam

lado a lado, enquanto normalmente os outros “cidadãos” se achavam

dispersos.

Era quase inevitável que a cidade-estado não fosse mais do que uma

etapa no caminho do império ou da nação. Cedo ou tarde, uma

civitas mais desenvolvida do que as outras ou um chefe militar hábil

e bem secundado haviam de impor a sua força a várias cidades-

estados. Esboçaram-se unidades de maior âmbito, decalcadas muitas

vezes sobre regiões naturais: foi assim que o vale do Nilo viu os seus

“mornos” independentes apagarem-se sob o domínio dos reis-deuses

que controlavam a distribuição das águas vivificantes.

Contudo, nem sempre a geografia era favorável à integração da

cidade num império. Na maior parte da Grécia e da Península Itálica,

erigia montanhas, cavava fossos em torno de cada cidade-estado,

dando-lhe em troca uma nesga de mar como única saída para o

mundo. Por isso se achou muitas vezes retardado o desenvolvimento

do estado rnonocelular em organismo mais complexo. A célula teve

Page 81: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

assim tempo de amadurecer dois gérmenes que, noutras partes,

englobados cedo dernais na pesada estrutura de um império, se

atrofiaram: um individualismo mais tenaz, reforçado de

solidariedade mais estreita. Os habitantes conheciam-se melhor:

para se dedicarem a uma expressão coletiva, que refletisse de perto

gostos e interesses, não tinham necessidade de recalcar as suas

personalidades. Na Grécia e na Itália, quando a cidade acabou por

sucumbir, era já tarde para apagar o patriotismo local. Mais valia

então utilizá-lo, transformar em colaboradoras as vencidas da

véspera.

Roma, ela própria cidade-estado, foi mestra nesta arte que lhe valeu

a duração do seu poderio. Mesmo que apoiada numa burocracia cada

vez mais numerosa, o seu exército incomparável jamais teria

bastado, sem o concurso das cidades, para manter a coesão de

império tão vasto e, em última análise, mediocremente povoado:

império que, além do mais, nunca conseguiu transformar-se em

verdadeira monarquia hereditária. A sua estrutura celular,

consolidada onde já existia e introduzida onde faltava, assegurou a

continuidade e a uniformidade da civilização mediterrânea. O mapa

do Império apresenta-se como um ponteado denso de cidades-esta-

dos (500 no Norte de África apenas), com manchas indecisas aqui e

além, onde tribos recentemente submetidas ou admitidas como

“aliadas” faziam a sua aprendizagem de romanização e de vida

municipal.

A crise das cidades

Graças às cidades, podia o imperador em tempo normal “governar

todo o mundo por cartas, sem se deslocar”, como o notava no fim do

século II um romano da Grécia. Infelizmente, no século III esta rotina

tornara-se a exceção. Os imperadores corriam de uma ponta à outra

das fronteiras para afirmar por toda a parte a sua presença, para

colmatar as brechas através das quais os Bárbaros se precipitavam

sobre as civitates, já esgotadas pelas contribuições extraordinárias.

Nestas condicões, era inevitável que as cidades sofressem danos

Page 82: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

irreparáveis. Contudo, desastres desta ordem restituíram aos núcleos

urbanos das cidades-estados a funcão originária que haviam perdido

à medida que se desenvolviam e embelezavam com teatros e

ginásios, com aquedutos e com mercados, ao abrigo da muralha

contínua das fronteiras invioladas e distantes. Cada cidade recebeu

guarnições e encerrou-se de novo nas suas muralhas privativas. Roma

como as outras.

Os progressos do absolutismo e as necessidades econômicas obriga-

ram os imperadores do IV século a contar muito mais com uma

pletora de empregados do que com uma escolha de colaboradores. O

peso da sua mão aumentou sobre a população dos núcleos urbanos, a

tal ponto que ricos e pobres se esforçaram por fugir para o campo,

onde o controle era mais difícil. Seria contudo menos exato dizer que

a política imperial foi deliberadamente destrutiva: nos limites em

que o pôde, esforçou-se por manter vivas as células constitutivas do

Império. Todavia, era-lhe necessário explorar sem piedade os

cidadãos. Nos centros prósperos do Oriente, e mesmo em várias

cidades da Gália Setentrional, da Inglaterra, da África ou da planície

do Pó, a operação não impediu uma modesta recuperação

econômica. Se nas outras cidades, em que a retração das cercas

atesta a profunda decadência, a pele do paciente foi arrancada, não

constituiu isso má vontade. É que o paciente nada mais tinha para

dar!

3. TENSÕES NOVAS

Coube às cidades levar a bom termo a última grande tarefa que no

seu crepúsculo o Império do século IV veio a cumprir: a definição da

ortodoxia cristã e a sua propagação entre os “pagãos” (pagani: em

bom latim, camponeses). Porque a Igreja decalcara a sua

organização sobre a própria estrutura do Império, escolhendo para os

concílios as capitais de província e para as sés episcopais os núcleos

de cidades-estados. Era daí que um clero bem disciplinado e isento

de contribuições fiscais dirigia a evangelização do território. Aliás, o

cristianismo apresentara-se desde o início como um movimento

Page 83: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

essencialmente urbano. Tanto os primeiros aderentes (proletários)

como os prosélitos de combate (intelectuais) recrutaram-se

sobretudo nos centros mais povoados e mais abertos a inovações.

Reforçando os núcleos urbanos numa época em que a crise

econômica e militar os atingia, a Igreja atuava portanto como fator

de equilíbrio.

Lei divina e lei humana

Os que acusam o cristianismo de ter acelerado a dissolução do

Império Romano confundem o sintoma com a causa. Não há dúvida

de que a ordem antiga havia de estar bem enfraquecida para que a

nova religião se pudesse afirmar apesar da hostilidade geral das

classes dirigentes. Mas o cristianismo ofereceu ao império cristão

uma fonte de entusiasmo mais fresca do que os velhos cultos oficiais

do politeísmo. De resto, o progresso da autocracia parecia exigir uma

religião exclusivista: os Persas tinham-na encontrado no monoteísmo

de Zoroastro; e os últimos imperadores romanos do III século haviam-

na procurado na mesma direção com o culto do Sol. No século IV, os

cristãos não passavam de uma minoria, mas o seu espírito de

disciplina podia ser útil; em 314, após os primeiros editas de

tolerância, o Concílio de Arles propunha já que fossem

excomungados todos aqueles que se recusassem ao serviço militar. É

verdade que para abraçar o cristianismo tinham os imperadores de

renunciar à deificação póstuma que o paganismo lhes concedera.

Compensaram-na, porém, tomando a direção da Igreja. Não valeria

mais refletir os raios projetados pela luz única do que dar

nascimento a estrelas medíocres, num embaciado firmamento de

deuses? Através do cristianismo, o Império alargava até ao céu as

fronteiras que tinha na Terra: a sua causa não era já apenas a dos

civilizados contra os bárbaros; era também a dos crentes contra os

infiéis.

Toda a crença que se arroga o monopólio da verdade contém um

gérmen de intolerância: se as perseguições não a sufocam, o que

fazem é torná-la muitas vezes mais intransigente ainda. Não foi

Page 84: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

preciso um século para que o cristianismo se transformasse de

perseguido em perseguidor. Em 311, o imperador Galério abrira-lhe a

porta estreita da indulgência, “a fim de que a república goze de uma

perfeita prosperidade”; em 341, Constâncio proibia os sacrifícios

pagãos, exceto nos templos situados fora das cidades; em 392,

Teodósio colocava fora da lei toda a manifestação desses cultos, aos

quais, não obstante, permanecia ligada a maioria da população rural.

No próprio seio da Igreja, as querelas entre seitas rivais não

esperaram pelos editos de tolerância para se manifestarem. Mais

encarniçadas se tornaram quando os concílios passaram a contar com

a ajuda do Estado para dar execução às suas ordens. Mas todos esses

combates religiosos só vieram sublinhar os conflitos, inevitáveis já,

entre os aspirantes ao Império, as velhas rivalidades das províncias.

Por isso, enquanto os dissidentes tiveram esperança de converter o

Estado ao seu ponto de vista, dirigiram os seus ataques, mais do que

contra o governo, contra os governadores. “Na realidade”, dizia

Optatus, um bispo africano do século IV, “a República não está

inclusa na Igreja, mas é, sim, a Igreja que está inclusa na República,

isto é, no Império Romano, visto que acima do Imperador não há

senão Deus.”

Mais tarde, a intransigência dos “ortodoxos” contra os “heréticos”

viria fornecer uma nova base de patriotismo. Os Romanos viram nos

Arianos bárbaros inimigos tanto da fé como da nação. É sem dúvida

este sentimento que vibra na inscrição gravada por volta de 580 por

um humilde soldado balcânico, num grego mal alinhavado e tocante:

“Senhor Cristo, ajuda e protege a România!”

Porque tinha mais para oferecer do que os cultos pagãos, a Igreja

cristã não mostrou a mesma docilidade. Teodósio “o Grande”, que se

diz ter sido condenado por Santo Ambrósio de Milão a uma

penitência, depois do massacre da população de Salônica, inaugurou

em 390 a série dos imperadores que compraram a salvação da alma

com uma humilhação. Mas que na vida quotidiana não repugnavam à

Igreja os compromissos com o Estado, prová-lo-á a história milenária

Page 85: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

de Bizâncio. Já o Evangelho separara o domínio de César do de Deus;

e o desprezo afetado por um Santo Agostinho pela Cidade terrestre

sublinhava que era impossível governá-la segundo a estrita lei da

Cidade celeste.

Por seu lado, o Império pagão nunca se preocupara com teologia. O

seu politeísmo fora prático, concreto. Idéias abstratas e princípios

morais cabiam antes no âmbito da filosofia (para os eleitos) e do

direito (para todo o povo). Eram inevitáveis divergências entre a

filosofia greco-romana e a religião judaico-cristã, ainda que a

maioria dos pensadores não julgasse difícil reconciliá-las. Mas não

havia antagonismo real entre o cristianismo e o direito que

proclamava, pela voz de um Ulpiano: “As regras do direito consistem

em viver honestamente, não lesar ninguém, dar a cada um o que lhe

é devido.”

Contudo, se os sacerdotes tivessem tomado à letra a recomendação

de Jesus de não alterar um iota à Lei mosaica, ou se os juristas

tivessem insistido demasiado na fórmula segundo a qual “a

jurisprudência é o conhecimento das coisas divinas e humanas”,

conflitos de autoridade, senão de doutrina, teriam rebentado sem

demora. Felizmente que sacerdotes e juristas se mostraram

igualmente razoáveis durante os anos decisivos da adoção do

cristianismo pelos imperadores. A colaboração do Estado e da Igreja

começou com base na separação dos poderes.

Será necessário sublinhar a importância da mensagem espiritual que

a Lei de Israel, interpretada pelos cristãos, transmite à Idade Média?

No eclipse das leis e da filosofia antigas, frente aos adoradores da

força e da violência, os seus arautos nem sempre se mostraram

dignos dela. Todavia, a exaltação dos humildes, dos pobres, dos

pacíficos não deixou de permanecer a voz da bondade clamando no

deserto, uma voz que nada poderia já sufocar.

A responsabilidade dos imperadores

Page 86: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

Os humildes necessitam da proteção do Estado, a Igreja enfileira ao

lado da ordem imperial. Estando assim o cristianismo fora de causa,

será o absolutismo dos imperadores do século IV que se deve acusar

de ter sapado a Romana Respublica? Uma vez mais, convirá não

confundir causas e sintomas. Depois das tempestades do século III,

deixou de haver corpo legislativo ou administrativo que se fizesse

respeitar pelos seus próprios meios; uma autocracia enérgica era o

único freio possível contra a anarquia. Aliás, poderá dizer-se que

Nero e Caracala, embora sem uma tão forte pressão das

circunstâncias, se importaram mais com a liberdade do que

Diocleciano e foram mais respeitadores da moral do que Constantino?

Senadores e magistrados urbanos fugiam às responsabilidades,

tornadas um peso excessivo; um número crescente de intelectuais

desesperava da Cidade dos homens e voltava-se inteiramente para

Deus. Os soberanos despóticos e brutais, que, no século IV, se

encarregaram da defesa da comunidade greco-romana, foram,

apesar dos seus erros e dos seus crimes, os melhores sustentáculos

da parte de liberdade que podia ser salva.

O que é que se podia salvar? Não por certo a realidade, ao menos

porém o princípio. Praticamente, a liberdade política morrera muito

antes do século IV. Apesar da sua preocupação pelas formas

republicanas, Augusto transmitira aos sucessores um poder ilimitado.

Se os Antoninos se obstinaram ainda em pedir conselhos ao Senado,

já não teriam aceito ordens. Os imperadores dos últimos séculos

vestiram-se de púrpura e exigiram que os súditos se prosternassem

em sua presença. Contudo, o direito romano, fiel às concepções

originárias, persistia em ver neles magistrados exercendo o imperium

(o poder de comandar e de se fazer obedecer) por delegação do

povo. Era apenas um ideal, mas bastava para colocar o imperador

num plano bem diferente do dos reis por direito de conquista ou por

investidura divina, que lhe iam suceder na Idade Média.

4. O IMPÉRIO DE PÉS DE BARRO

De todas as medidas urgentes que os imperadores tomaram para

Page 87: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

ocorrer às necessidades extraordinárias do século IV, foram as

ordenações econômicas que pareceram na época, como ainda hoje

parecem, as mais opressivas.

Seriam as alterações e as falsificações da moeda que causavam a

subida dos preços? A lei pretendia estabilizá-los a um nível inferior e

fixo, de ponta a ponta do Império. Havia cidadãos que se mostravam

incapazes de pagar os impostos ou de prestar os serviços a que eram

obrigados? A lei impunha aos vizinhos - burgueses da mesma cidade,

camponeses da mesma aldeia, membros do mesmo corpo de ofícios

ou da mesma família - que pagassem ou servissem em seu lugar. Mas

acaso esses vizinhos tentavam subtrair-se ao fardo, mudando de

residência ou de profissão? A lei proibia-lhes deixar o seu posto, a

que acorrentava também os filhos. A única alternativa que subsistia

era a de pagar em dinheiro ou em gêneros.

Impostos sem piedade

Aplicada intermitentemente, uma legislação rigorosa como esta teria

podido arrancar um esforço supremo a uma população

sobrecarregada; mas mantida em vigor durante dois séculos, saldou-

se por desastre quando não se mostrou impotente.

Os poderosos encontraram o furo para se esquivarem às ordens; os

menos fortes foram devorados enquanto os mesquinhos

desapareciam da lista dos contribuintes. Mas o governo não largava a

presa, até quando as circunstâncias o teriam permitido. Conquanto

Constantino “Magno” tivesse eliminado os rivais, evitado as guerras

com o exterior e confiscado os tesouros dos templos pagãos, nem por

isso deixou de acorrentar como escravos os colonos fugitivos e de

impor sobre as trocas um imposto, que os exactores fiscais tinham de

extorquir à chicotada. Foi sobre estes alicerces que Constantinopla

se construiu.

Todavia, que o agravamento do fisco no crepúsculo do Império não

nos faça esquecer as próprias bases da economia mediterrânea

Page 88: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

antiga, não bastante robustas, equilibradas e elásticas para

aguentarem o peso e os choques que tinham de sofrer. Não é sem

custo que o apreendemos: essa Respublica, cujos monumentos sem

cessar admiramos e que, durante séculos, assegurou às populações

um nível de vida mais elevado, no seu conjunto, do que tudo aquilo

que até então se conhecera ou se viria a conhecer por muito tempo

ainda - essa Respublica era, não obstante, um colosso de pés de

barro.

Agricultura sem excedentes

Com efeito, a agricultura romana - se é lícito falar em termos gené-

ricos de uma atividade tão variável de região para região, ou até de

aldeia para aldeia dentro dum mesmo termo - tendia a empregar o

maior número de braços para obter do mínimo de terreno o máximo

rendimento possível. Contudo, e excetuadas algumas províncias mais

férteis mas super-povoadas, como o Egito, esse rendimento

mantinha-se medíocre, mau grado o engenho e os esforços dos

agrônomos. Na Itália, a colheita de trigo não excedia, em média, o

quádruplo da sementeira.

Apesar de tudo a população atingira densidade considerável para a

época, visto que os camponeses viviam frugalmente dos produtos da

terra. Os animais contribuíam pouco para a alimentação e para os

trabalhos dos campos. Para lhes exigir mais, haveria que abandonar-

lhes também uma área mais extensa das terras de cultivo, o que

seria um luxo absurdo para as velhas cidades-estados mediterrâneas!

Os camponeses eram obrigados, se queriam estender as culturas, a

transformar os montes em terraços, a irrigar os terrenos áridos, a

enxugar os pântanos. Preferiam limitar-se, em matéria de animais,

ao gado miúdo, facilmente alimentado com o que era inutilizável

pelos homens, e arrancar do solo, com o suor do rosto, uma

subsistência mínima. A saúde não se ressentia, visto que o clima do

Mediterrâneo convida a uma nutrição ligeira; mas era-lhes de todo

impossível acumular excedentes.

Page 89: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

Nas províncias conquistadas havia menos tempo, como a Grã-

Bretanha ou mesmo a Gália Cisalpina, os horizontes eram mais

vastos, o gado mais numeroso e a população mais rarefeita.

Substituindo os métodos primitivos dos indígenas pelas técnicas

mediterrâneas, os Romanos teriam podido criar aí uma agricultura de

abundância a partir de um equilíbrio feliz entre campos, pastagens e

reservas. Teriam podido aprender algumas técnicas do Norte

adaptadas ao clima, ao terreno e à riqueza em gado, tais como a

atrelagem em fila, cujo emprego na Gália Cisalpina nos é descrito

por Plínio. Infelizmente os conquistadores, habituados à falta de

espaço, não apreciaram no seu justo valor as vantagens dos sistemas

de exploração célticos ou germânicos, à base de habitações

rarefeitas e de vastas extensões de prados e de florestas. Pareciam-

lhes o produto de uma cultura atrasada e dissipadora, mais do que

de uma natureza generosa. Por isso os Romanos multiplicaram,

comprimidas em xadrez regular, as suas habituais aldeias onde os

camponeses laboriosos e parcimoniosos cultivavam à maneira de

horta a maior parte do solo.

Todavia, se é verdade que os pequenos cultivadores, que formavam a

maioria da população, não dispunham de excedentes apreciáveis, os

grandes senhores estavam em condições de os acumular pelo

trabalho dos escravos e dos camponeses dependentes. Se aplicassem

os rendimentos no comércio, na indústria e na finança, teriam

podido pôr em movimento toda a economia. Só raramente e contra

vontade o fizeram. Uns, consumiam eles próprios tudo o que podiam,

dispersando o resto em liberalidades; outros, só sonhavam em

alargar os seus domínios em terras e em escravos. Alguns iam até ao

ponto de organizar pequenas indústrias destinadas a abastecer os

seus domínios sem recorrer aos mercados urbanos, mas nenhum ou

quase nenhum queria arriscar a reputação na verdadeira manufatura,

destinada à venda pública.

Comércio sem prestígio

A usura, conquanto mais desconsiderada ainda, tentava os aristocra-

Page 90: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

tas com a elevada taxa de juro; mas as aparências exigiam que se

servissem de homens de palha, o que impedia a transformação dos

usurários em banqueiros. Sucedia o mesmo com o comércio. Aliás,

uma lei do século V, que se ligava às tradições e às leis da época

republicana, proibia aos nobres, aos ricos e aos altos funcionários as

operações mercantis, “a fim de que os plebeus e os negociantes

possam vender e comprar mais facilmente.”

Tais eram os obstáculos que limitavam as profissões a que chamamos

urbanas, prejudicadas já pelo medíocre rendimento do trabalho e

pelo fraco poder de compra da população agrícola. Poderosos e

pequenos, capitalistas agrários e trabalhadores das cidades viviam

em assás boa harmonia, porque não colaboravam uns com os outros.

Diga-se em verdade que a aristocracia não era insensível aos serviços

que mercadores, lojistas e artífices lhe prestavam, conseguindo-lhe o

que faltava nos grandes domínios. Burocratas e militares eram os

melhores clientes destes citadinos que as autoridades tratavam com

benevolência, até porque a sua prosperidade engrossava o

rendimento líquido do fisco, enquanto a sua penúria poderia originar

levantamentos de massas. Mas uma benevolência tão desdenhosa não

podia engendrar compreensão verdadeira. A administração e os

benfeitores particulares, se não desprezaram por completo tudo o

que era de interesse público, construiram mais teatros e aquedutos

do que molhes ou moinho. As soberbas estradas militares que

sulcavam o Império quase não atendiam aos interesses da economia

mercantil: eram estreitas, rígidas, de manutenção dispendiosa. E,

embora o Estado, em princípio, não interviesse nos negócios

privados, não se preocupava quando os tinha de subordinar a

interesses políticos. O comércio com o exterior, suspeito de abrir a

porta à espionagem e ao contrabando, era fiscalizado, limitado.

Quanto ao comércio interno, não lhe davam acesso a operações tão

frutuosas como o abastecimento maciço em cereais e em sal ou a

exploração das minas; o próprio Estado as assegurava, graças aos

tributos em gêneros, ou reservava-as para monopólios. Os corpos de

ofícios só eram tolerados ou sustentados pelas suas funções de

assistência mútua e de utilidade pública.

Page 91: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

Sem dúvida que entre a gente do comum havia quem amealhasse

dinheiro fora da agricultura. Conquanto exaltem esta última como a

única profissão susceptível de dar bem-estar sem sacrificar a

dignidade, os escritores do Império sublinham o carácter lucrativo do

empréstimo a juro e do comércio a grande distância (sem contar a

caça ao testamento, cuja importância na época imperial testemunha

que não era fácil enriquecer nos empreendimentos produtivos). As

ocasiões não podiam faltar aos usurários e aos mercadores, num

império tão extenso e povoado. O requinte da civilização greco-

romana, a moderação dos direitos aduaneiros internos, incitavam às

atividades financeiras e comerciais. Mas aqueles que faziam fortuna

por estes meios seguiam na maior parte dos casos o conselho de

Cícero, ele próprio chegado à razão: “Se o mercador, saciado ou

antes satisfeito com o seu ganho, se retira... para o campo e para os

bens fundiários, parece-me merecer todos os elogios.” Para os

usurários, este fim de carreira era quase imposto pela necessidade

de tomar o lugar dos camponeses endividados, cujas terras haviam

feito confiscar. E assim o dinheiro ganho com tanta fadiga ou com

tantos perigos no comércio ou na usura enterrava-se finalmente no

solo, em vez de fertilizar os empreendimentos que o tinham

produzido.

Artesanato sem equipamento

Era praticamente impossível amealhar no artesanato, atividade que

Cícero qualifica como sórdida e indigna de homem livre. Com efeito,

o magro rendimento do trabalho manual, que só se servia dos

instrumentos mais simples, limitava os benefícios, até porque a

concorrência de numerosos escravos interdizia aos artífices livres o

aumento de preços. Sem dúvida que a técnica greco-romana chegara

a inventar máquinas assás aperfeiçoadas, mas os trabalhadores é que

não eram suficientemente ricos para as comprarem e os capitalistas

nem de longe se preocupavam com fornecer-lhas.

Só para lembrar um exemplo, diga-se que o moinho de água surgiu no

Page 92: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

extremo oriental do Império já no século I antes de Cristo. Um

epigrama grego, primeiro tributo da Musa ao progresso industrial,

proclamara o alívio que assim era trazido às moedoras de grão. Mas

este moinho não foi adotado em Roma antes do século IV; e fora de

Roma, só se viria a generalizar durante a Idade Média. De resto, que

fazer dos braços tornados inúteis pela introdução de uma máquina?

Só empreendedores sem coração sonhariam em engordar com a fome

dos pobres... se é que não achavam mais simples fazer trabalhar

multidões de escravos e de proletários mal alimentados. Conta-se

que o imperador Vespasiano, por muito indiferente que fosse ao mau

cheiro de certas fontes de receita[1], declinou a oferta de uma

máquina para levantar colunas com pouca despesa: “Deixai-me dar

de comer ao povo miúdo”, disse. Este povo miúdo, reduzido muitas

vezes a viver das liberalidades dos grandes, formava o elemento mais

numeroso da população das metrópoles antigas e contribuia, com os

seus protetores ricos, para tornar as cidades parasitas do campo mais

do que centros industriais e comerciais.

A mediocridade do ouro

A abastança discreta dos primeiros séculos do Império, essa aurea

mediocritas, tão cara ao mundo mediterrâneo antigo, era portanto

resultado de dois círculos viciosos. Vamos encontrá-los em quase

todas as grandes civilizações agrárias da Antiguidade, especialmente

na China onde se perpetuaram até aos tempos modernos. Em baixo,

os trabalhadores manuais eram pobres porque tinham falta de

animais e de máquinas, e tinham falta delas porque eram pobres; no

cimo, o comércio e a finança não dispunham de capitais suficientes

porque eram desprezados, e eram desprezados porque lhes faltavam

os capitais.

Assim se nos mostra esta economia de saturação, sem reservas, sem

possibilidade de progresso, mas que permitiu à aristocracia prosperar

e ao povo multiplicar-se enquanto a ordem e a paz não foram

perturbadas. Era impossível modificá-la sem a destruir, nem destrui-

[

Page 93: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

la sem impor a todos penosos sofrimentos. Era preciso que os

trabalhadores fossem dizimados para que se poupassem as suas

forças e se melhorasse a sua retribuição. Era preciso que

mercadorias e crédito deixassem quase de se encontrar para que o

seu valor fosse reconhecido; era preciso que os núcleos urbanos

fossem cortados do seu território para que um novo casamento entre

cidade e campo se organizasse sobre bases mais equitativas.

Veremos dentro em pouco que os primeiros sintomas dessa trans-

formação se manifestaram, dolorosamente, desde o crepúsculo do

Império. Seria injusto criticar os imperadores do século IV por não

terem compreendido as possibilidades do futuro e, agarrando-se

desesperadamente ao passado que se desmoronava, tentarem

amarrar cada obreiro ao seu mister, cada empregado ao seu cargo,

cada soldado ao seu posto, e mesmo cada preço ao seu nível

anterior. A enxurrada arrastaria decretos e imperadores, mas foram

precisos vários séculos para que a Idade Média conseguisse varrer as

ruínas e construir uma economia ao mesmo tempo mais flexível e

melhor equilibrada - a economia que serviu de base à civilização

européia contemporânea.

5. EPÍLOGO

Os imperadores do século IV conseguiram, bem ou mal, resolver a

maior parte dos problemas que pareciam antes condenar a

civilização mediterrânea à destruição. Mas a longa crise e os

remédios heróicos para a superar haviam de tal forma agravado as

fraquezas constitucionais da sociedade romana que não restava já

margem bastante para fazer face à guerra. Só com uma longa paz se

teria podido reconstituir essa margem, mas tal prorrogação não foi

concedida. O verão de São Martinho terminou em novas

tempestades.

Antes de findo o século IV, os hunos de Átila subjugaram os Ger-

manos que eram seus vizinhos, e obrigaram outros a buscar a

salvação numa “fuga para a frente” no interior do território romano.

Page 94: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

Nova série de invasões se abateu sobre o Império durante todo um

século. Não seriam elas mais irresistíveis do que as do século III, mas

o Império é que já não podia despender esforços prolongados em

todas as direções ao mesmo tempo. O Ocidente foi perdendo

província após província; o último ato representou-se em 476.

Batera-se contudo tempo bastante para conseguir ao Oriente um

prazo suplementar, que permitiu a Constantinopla seguir o seu

caminho e viver, não sem glória, mais um milênio.

Os pormenores da agonia não poderiam reter a atenção do leitor que

se apressa para a Idade Média. Todavia, para conhecer os materiais

de que a Idade Média se serviu na construção do seu próprio edifício,

temos de voltar atrás e de observar a crise mais grave e mais

prolongada, de que a queda do Império Romano não é senão um

episódio: a decadência de toda a Euro-ásia durante os primeiros

séculos da nossa era.

[1] Ao filho que lhe censurava o lançamento do imposto sobre as

latrinas públicas, Vespasiano apresentou uma moeda proveniente da

arrecadação a fim de verificar que “não cheirava”.

Por LOPEZ, R. O Nascimento da Europa. Lisboa: Cosmos, 1979.

Em Direção ao Abismo

1.TODO UM HEMISFÉRIO EM CRISE

“O mundo envelhecido já não conserva o antigo vigor... o inverno já

não tem chuva bastante para alimentar as sementes, nem o verão

sol que chegue para alourar as searas... as montanhas desventradas

oferecem menos mármore, as minas estão esgotadas, há menos

prata e ouro... os campos carecem de agricultores, o mar, de

marinheiros, os acampamentos, de soldados... já não há justiça nos

julgamentos, competência nos ofícios, disciplina nos costumes... a

epidemia dizima o gênero humano... o dia do Juízo aproxima-se.”

[

Page 95: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

Redigida por volta de 250 por Cipriano, esta lista de desventuras

(que nós resumimos) pretende oferecer a prova científica de que as

profecias, tanto cristãs como pagãs, começavam, inexoravelmente, a

realizar-se. O “fatal VI milênio depois da Creação” acerca-se do fim.

A longa luta entre Deus e o Diabo precipita-se para a explosão final.

Que importa se a sucessão dos acontecimentos desmentiu as

previsões de Cipriano? O sentimento de que o “Dies Irae” está

iminente persistirá durante séculos, exasperando-se a cada nova

invasão, precisando-se a cada epidemia de fome, criando uma

psicose do Anticristo que todo o homem mau parece encarnar.

O medo não se dissipará senão pouco a pouco e no curso da renova-

ção da Baixa Idade Média, não se prestará ao ridículo senão no século

XVIII, para renascer, sob outra forma, na nossa época - a da loucura

racial e da ciência nuclear. Procuramos reconforto na esperança de

que, a despeito de tudo, a razão prevalecerá, o progresso

permanecerá sobre a terra; os contemporâneos de Cipriano

retomavam coragem espiando, nos sinais da Morte, o anúncio da

Ressurreição.

As trombetas do Juízo Final não se fizeram ouvir no fecho do “sexto

milênio”, mas o mundo antigo também não lhe sobreviveu. Não se

abismou de súbito nas chamas dum Apocalipse: em 476, a deposição

do último imperador romano no Ocidente, que nos habituamos a

considerar como marco inicial da Idade Média, passou quase

despercebido fora da Itália. Mas a mudança, conquanto gradual, nem

por isso foi menos radical. Se Platão ou Alexandre Magno voltassem a

terra sete ou oito séculos depois da morte, ao tempo de Juliano ou

mesmo desse infeliz Rômulo destronado em 476, teriam encontrado

sem dificuldade quem os escutasse e os admirasse; cento e cinqüenta

anos mais tarde, pareceriam estranhos e incompreensíveis aos

contemporâneos dum Dagoberto ou dum Agilulfo.

De Roma à China

Page 96: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

A revolução foi tão extensa quão profunda. Tudo leva a crer que os

abalos se propagaram dum extremo ao outro do continente euro-

asiático, onde quer que Estados organizados e civilizados faziam

frente aos Bárbaros. Infelizmente, não temos da história persa o

conhecimento bastante para estabelecer um paralelo frutífero entre

as suas vicissitudes próprias, nos primeiros séculos da nossa era, e as

do Império Romano na época do seu declínio. Aliás, as profundas

diferenças entre as estruturas políticas, econômicas e sociais dos

dois impérios vizinhos não permitiriam uma comparação rigorosa. O

caso mostra-se bem outro no que respeita à China, cujo passado

conhecemos melhor e cuja estrutura fundamental, não obstante o

enorme afastamento material e cultural, não era muito diversa da de

Roma.

Ora, tanto na China como no mundo mediterrâneo, os sintomas de

mal-estar tinham começado a revelar-se desde o século II da nossa

era e a tornar-se alarmantes desde o III. As lutas civis, a divisão do

Império, a efêmera restauração da unidade, a conquista da capital e

duma metade do Império pelos Bárbaros do Norte que nele se haviam

infiltrado há já longo tempo - todo esse drama se desenrola no

Extremo-Oriente com o mesmo andamento e quase os mesmos

intervalos que no Extremo-Ocidente, apenas com a diferença de que

a “Bizâncio” da China não sobreviveu na metade oriental, mas sim na

metade meridional do Império. Na China, como no mundo

mediterrâneo, a crise política e militar de superfície faz-se

acompanhar por uma profunda crise econômica e religiosa. O velho

confucionismo, ressequido na repetição de fórmulas, cede o passo a

um taoísmo indígena, mas transformado pelas influências hindus, e,

sobretudo a um budismo a todos os títulos estrangeiro e místico,

ascético, monacal. A população empobrece e rarefaz-se,

especialmente nas províncias que sucumbem aos invasores; os

cidadãos procuram subtrair-se à opressão fiscal, quer emigrando quer

acolhendo-se à proteção dos poderosos.

Será preciso sublinhar que as semelhanças entre as duas revoluções,

a chinesa e a mediterrânea, perdem em nitidez logo que nos

Page 97: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

debrucemos sobre o pormenor? Todavia, tais semelhanças

permanecem assas impressionantes para que nos perguntemos se não

terá havido uma causa comum a evoluções tão paralelas. E a esta

pergunta segue-se uma outra: as crises política e militar precederam

as crises econômica e religiosa ou sucederam-lhes? É talvez o

problema da galinha e do ovo: se é verdade que as guerras civis e as

invasões dilapidaram os recursos materiais e orientaram os espíritos

para novas crenças, também o enfraquecimento econômico e o tédio

do século suscitaram as perturbações e entregaram o país aos inva-

sores. Seja: mas entre as tensões concomitantes que conduziam à

ruptura do equilíbrio, não existirão graus ou até mesmo uma

progressão cronológica?

Exclui-se a morte violenta

A hipótese de uma morte violenta das civilizações antigas, na

seqüência de choques bélicos, não basta para explicar tudo.

Excluam-se as guerras civis: tanto a história de Roma como a da

China estão cheias delas do princípio ao fim. E então as invasões? A

verdade é que os impérios romano e chinês não foram aniquilados,

visto que mantiveram uma considerável parcela do seu território. Até

mesmo nas províncias ocupadas, os invasores não desrespeitaram

formalmente, não destruíram por sistema a autoridade do império.

Torna-se, aliás, impossível explicar as vitórias dos Bárbaros a não ser

por falhas da armadura romana e chinesa. Na verdade, a pressão dos

povos nômades e seminômades ao longo das grandes muralhas

agravou-se a partir dos meados do século II. E em breve se tornou

inevitável abrir válvulas de escape, convidando algumas dessas tribos

a emparceirarem com os defensores das muralhas: o que não

impediu a pressão de tudo subverter. Talvez que investigações

aturadas, nos setores limítrofes da história, como a arqueologia e a

lingüística, permitam um dia que o problema seja visto com mais

clareza: Mongóis, Turcos, Sármatas ou Germanos, as tribos das

estepes formavam confederações em constante mudança cuja pro-

gressão se mantém como fio condutor da história das invasões. Além

Page 98: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

disso, julgamos entrever alguns elementos materiais do êxito dos

Bárbaros: o progresso da metalurgia, oriundo de um centro de

difusão na Ásia central, forneceu-lhes espadas mais fortes e mais

flexíveis do que as dos Chineses e as dos Romanos, os

aperfeiçoamentos representados pelo estribo, a ferradura, os jaezes,

aumentaram a sua mobilidade.

Frente a povos melhor organizados, mas enquistados nas suas

posições defensivas, dispunha de bons trunfos um inimigo que

atacava a matar em deslocações contínuas. E se bem que os Bárbaros

raramente tivessem triunfado em batalhas campais ou tomado de

assalto uma cidade, a verdade é que constituíam uma força de

desgaste seríssima com o decorrer do tempo.

Não que fossem muito poderosos nem muito encarniçados. Romanos

e Chineses recrutaram tantos Bárbaros quantos quiseram e nunca os

acharam menos fiéis do que os contingentes nacionais - pelo menos

até ao momento em que, tendo quase desaparecido tais

contingentes, os Bárbaros compreenderam que se podiam apropriar

das províncias de que eram, afinal, os únicos defensores. Mas ainda

então, bastaram muitas vezes para os reter presentes, honrarias,

outorga de naturalização e até a sua própria convicção de que eram

incapazes de tomar conta do governo. Aliás, eles próprios se

dividiam em pequenos grupos mutuamente hostis, dilacerados por

ódios implacáveis entre famílias e até entre irmãos. É fato que não

deixaram literatura que testemunhe dos seus pensamentos; mas as

lendas, reunidas muito mais tarde, concordam com as descrições dos

historiadores romanos e chineses em mostrar que o monopólio dos

vícios não era detido pelos povos civilizados nem os povos atrasados

monopolizavam as virtudes.

E depois, os Bárbaros eram tão pouco numerosos! Sorrimo-nos hoje

da historiografia romântica que pintou as invasões como uma

avalanche de massas humanas mal contidas na “estreiteza” das

vastas planícies do Norte, ao lermos que o povo ostrogodo, na sua

totalidade, guiado por Teodorico à conquista da Itália, pôde

Page 99: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

encerrar-se durante alguns meses dentro dos muros de Pavia, sem

mesmo de lá desalojar os habitantes. Os Vândalos, ao que parece,

não ultrapassavam o número de 80.000, incluindo aliados, mulheres

e crianças. Mesmo quadro na outra extremidade do hemisfério: os

T’opa, que dominaram a China do Norte durante quase dois séculos,

não contavam, segundo se afirma, mais do que 50.000 combatentes;

toda a população de origem tátara da região em que se situava a sua

capital, contava 14.700 pessoas (ou famílias?), incluindo o resto das

invasões precedentes.

Os argumentos de São Cipriano

Reconsideremos os queixumes de São Cipriano. No meio de mani-

festos exageros, encontramos aí os dados essenciais da situação. Por

um lado, as populações dos impérios tinham diminuído; por outro

lado, haviam envelhecido moralmente, ou seja, perdido tanto a

energia necessária para sustentar o antigo equilíbrio como a

flexibilidade indispensável para o ajustar às novas exigências. A

corrupção dos costumes, provavelmente menos grave e universal do

que os moralistas de então e de hoje pretendem, há de ter

ocasionado menos estragos do que a resignação defendida pelo

cristianismo e pelo budismo. Desviadas do poder efetivo, vergadas ao

peso dos impostos, votadas à miséria, as massas deixavam andar,

mesmo quando a sua vida estava em jogo. Quanto às elites, não só se

encontravam desmoralizadas, a ponto de freqüentemente pactuarem

com os Bárbaros, como ainda tinham perdido até a faculdade de um

pensamento original.

Esta demissão do espírito, que mais adiante retomaremos, seria

apenas derivada do afrouxamento duma sociedade demasiado tempo

amolecida pelo bem-estar? Ou prender-se-ia antes à decadência

física diretamente manifestada no declínio da população?

Desse declínio não nos é permitido duvidar, apesar das numerosas

exceções locais e da dificuldade em lhe medirmos as proporções

exatas. E ele não nos surpreenderá se considerarmos que a taxa de

Page 100: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

aumento das sociedades antigas, mesmo nas condições mais

favoráveis, estava estreitamente limitada pela insuficiência da

higiene, pelos defeitos da alimentação, pela dureza do trabalho,

pela freqüência dos casamentos precoces e pela exposição dos

recém-nascidos. Bastava uma leve deslocação de qualquer destes

fatores para criar um déficit. As guerras eram mais mortíferas pela

miséria que geravam do que pelos combates em si. Fontes

impossíveis de verificar falam-nos de uma intensificação do controle

dos nascimentos nos meios laicos; o monaquismo diminuiu

igualmente o número dos progenitores.

Uma explicação cíclica?

Mas os fatores mais interessantes são talvez os de caráter cíclico. Se

bem que a história médica da humanidade não tenha sido escrita,

sabe-se que os grandes flagelos endêmicos e epidêmicos estão

submetidos a flutuações de longa duração, que mais não fosse pelas

altas e baixas das imunizações coletivas. Ora, parece que a mais

terrível das moléstias contagiosas, a peste, entrara numa fase de

extrema virulência a partir da grande epidemia de 180, que vitimou

Marco Aurélio, o último dos “bons imperadores” romanos, e minou o

poder dos imperadores Han em benefício dum médico-taumaturgo.

Desde então, as assolações do flagelo repetiram-se com intervalos

cada vez mais próximos até cerca dos meados do século VI,

conhecendo nova recrudescência no VIII, para depois passar a

segundo plano até a Grande Peste de 1348. Da mesma maneira,

durante os últimos séculos do Império e os primeiros da Idade Média,

a malária (cuja evolução nos escapa fora do Ocidente) tornou

inabitáveis vastas regiões que se repovoariam na Baixa Idade Média

para se esvaziarem de novo a partir do século XIV. E uma vez que

esta doença se relaciona com o escoamento das águas, somos

levados a reler as afirmações de São Cipriano que tão ridículas

pareceram: “O inverno já não tem chuva bastante...”

Os homens de ciência começam justamente a prestar atenção a

certas flutuações do clima que se apresentam como periódicas:

Page 101: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

variações do limite meridional dos glaciares e dos gelos flutuantes,

mudança de nível dos lagos, diferença nos anéis de engrossamento

anual das árvores, avanços e recuos na área da vinha ou da oliveira.

A estes dados, que se podem ler no livro objetivo da natureza,

convém acrescentar os informes, quantas vezes suspeitos, dos

cronistas acerca de inundações, secas e fomes. Nada disto foi ainda

catalogado sistematicamente nem interpretado com a prudência e a

sutileza indispensáveis. Mas não reste dúvida de que o estudo do

clima nos poderia ajudar a compreender a aparente simultaneidade

das principais flutuações demográficas e econômicas de longa

duração, através da Euro - ásia.

Ficaria por determinar se tais fenômenos de decadência física e

moral afetaram tanto bárbaros como civilizados: problema quase

insolúvel, uma vez que nos falta todo e qualquer testemunho escrito.

Todavia, alguns indícios arqueológicos e geológicos, o fato de o clima

e a doença não conhecerem fronteiras, e, sobretudo o

comportamento dos Bárbaros depois que entraram no círculo das

grandes civilizações sedentárias, tudo nos leva a crer que a sua

condição não foi radicalmente diversa.

Não se tome turbulência por vigor, nem imaturidade por juventude.

É fato que a sua organização, bastante frouxa e rudimentar, se

acomodava melhor à diminuição dos homens e ao delíquio do

pensamento. Mas o seu triunfo não constituiu o dote de uma força

fresca, capaz de provocar uma reação salutar. Limitou-se, sim, a

acelerar a decadência já decidida dos decrépitos povos dos impérios.

2. OS ESTADOS BÁRBAROS NO OCIDENTE

No Ocidente, a dissolução do Império no século V deu lugar à eclosão

de numerosos Estados bárbaros de grandeza medíocre, talhados ao

acaso das conquistas e dos mútuos empurrões, mas freqüentemente

decalcados sobre unidades geográficas (tal como o Vale do Ródano

para os Burgúndios), econômicas (as regiões ricas em trigo para os

Vândalos), ou administrativas (a prefeitura da Itália para os

Page 102: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

Ostrogodos). Alguns desses estados, notoriamente o dos Francos,

cobriam a fronteira desaparecida. Outros, um tudo nada mais

primitivos, organizaram-se no coração da Germânia, que a

germanização do mundo mediterrâneo aproximava de certo modo

deste. Da mesma maneira se esbatia a linha de demarcação entre os

Celtas independentes da Irlanda e da Escócia e os seus primos

romanizados, os Bretões, que as invasões a pouco e pouco

comprimiam nos redutos da Grã-Bretanha ocidental e da Bretanha.

Por seu lado, os Bascos mantinham a independência, embora,

colocados num outro reduto, perdessem o verniz romano.

Difícil aproximação entre Bárbaros e Romanos

Amputação do Oriente, inclusão de uma parte do Norte, substituição

da unidade pela pluralidade: eis os compassos iniciais da sinfonia

européia que havia de suceder à harmonia greco-romana. Mas faltava

ainda muito para que os instrumentistas estivessem prontos. Por toda

a parte, salvo na Grã-Bretanha, que os Anglo-Saxões arrancaram aos

seus habitantes através de uma luta prolongada e sem quartel, de

bom grado permitiram os Bárbaros aos seus súditos romanos que os

desembaraçassem dos cuidados de uma administração cujas leis e

engrenagens se revelavam demasiado complexos para a sua

mentalidade. Por toda a parte, menos em Itália onde os Ostrogodos

se esforçaram um tanto por assimilar o direito e as instituições dos

seus súditos, os Bárbaros transportaram consigo o seu mundo,

mantendo os costumes nacionais e uma estrutura política pouco mais

evoluída do que a de um bando armado. Fora neste estádio que

Roma os admitira no território, ao tempo do seu poderio, esperando

que aprendessem as regras da vida civil e se incorporassem nas

cidades. Mas agora as cidades-estados desmoronam-se e os

aprendizes, tornados patrões, são incapazes de conceber uma

organização que permita às duas sociedades justapostas harmonizar-

se e fundir-se.

A harmonia não teria sido tão difícil de realizar com uma

aproximação ao nível mais abaixo. Os Bárbaros, soldados por

Page 103: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

profissão ou por vocação, mas também camponeses nos intervalos

das migrações ter-se-iam podido entender com os simples aldeões do

mundo mediterrâneo mais ràpidamente do que com os senhores ou

com os intelectuais que os serviam por interesse ou resignação. As

massas estavam preparadas para acolher bem quem quer que

aliviasse a opressão fiscal e senhorial que os tornara indiferentes à

ruína do Império. Mas os Bárbaros não tinham conquistado o poder

para se confundirem com os humildes. Foi precisa a invasão bizantina

e a defecção maciça do clero e da aristocracia italiana para que

Tótila (541-552), o mais generoso dos reis germânicos, emancipasse

em grande número escravos e colonos e os convidasse a unirem-se a

ele - tarde demais, uma vez que ele próprio chegara ao último

extremo. Contudo este caso mantém-se isolado. Em geral, a

aproximação processou-se no escalão de cima, entre os antigos e

novos senhores, reunidos pelo desejo de conservar tanto quanto

possível a organização fiscal e senhorial romana cujos frutos

compartilhavam. Mas este acordo só podia fazer·se plenamente

quando o lento progresso da elite bárbara se encontrasse com a

rápida decadência da elite romana. E isso exigiu tempo.

Na primeira linha: Godos e Francos

Desde o princípio, à sinfonia européia faltou também um chefe de

orquestra. Os Godos dos dois nomes (“Brilhantes” ou Ostrogodos e

“Sabedores” ou Visigodos) eram os mais evoluídos dos Bárbaros, os

únicos dotados duma concepção imperial, embora muito vaga.

Destroçados pelo imperador Cláudio II em 269, reconstruíram com

Ermanarico uma vasta confederação que os Hunos vieram a esmagar

no século IV. No século V, o rei dos “Godos Sabedores”, Ataúlfo,

acariciou por um instante a idéia de “transformar o Império Romano

em Império Gótico” (se é que os seus propósitos não foram mal

compreendidos pelo limitado historiador que no-los refere).

Finalmente, o rei dos “Godos Brilhantes”, Teodorico, senhor da Itália

e das províncias circunvizinhas (493-526), esforçou-se por organizar

sob os seus auspícios uma liga de reis bárbaros que se estenderia da

Alemanha à África. Contudo estes reis não mostraram qualquer

Page 104: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

entusiasmo por essa primeira tentativa pacífica de concerto europeu,

e os Godos, enfraquecidos já pelas suas antigas lutas, não se

firmavam com muita solidez nos seus domínios. Paradoxalmente, era

a sua conversão ao cristianismo, anterior à de todos os outros

Germanos, que mais os prejudicava, visto terem aceitado a nova

religião numa época em que a doutrina ariana não havia perdido

ainda as últimas batalhas no Império. Arianos e propagadores do

arianismo junto dos seus vizinhos bárbaros, os Godos inspiravam aos

seus súditos católicos mais aversão do que se fossem pagãos.

Antagonismo religioso, desconfiança entre Romanos e Germanos

encurtaram os dias da “renascença” prematura que se esboçou em

Itália com Teodorico. Não bastava que a aristocracia italiana se

tivesse habituado à dominação estrangeira no tempo do seu

predecessor, Odoacro (“homem de boa vontade”, no dizer de um

cronista condescendente), nem que Teodorico tivesse sido legitimado

por uma espécie de investidura concedida pelo imperador de

Constantinopla e que se tivesse desembaraçado de Odoacro pela

guerra e pela traição. Não bastou igualmente que Cassiodoro,

ministro romano do rei ostrogodo, organizasse a administração e

redigisse a correspondência oficial segundo todas as formas usuais no

defunto Império, nem que ao povo se oferecessem novamente jogos

de circo e que as vitórias do rei sobre outros Bárbaros trouxessem de

novo à Itália alguns reflexos do antigo esplendor.

Não fora preciso que Teodorico se romanizasse inteiramente, sem

com isso perder o ascendente sobre os Ostrogodos; coisa impossível,

ainda que a desejasse. Mas que pretendia ele afinal? As pomposas

cartas de Cassiodoro, a história compilada pelo godo Jordanes, a

lenda romana que nos pinta um Teodorico diabólico, engolido por um

vulcão em castigo dos seus pecados, a lenda germânica que dele faz

um herói sem mácula, devolvem-nos quatro imagens bem diferentes.

Concordam apenas em sublinhar-lhe a grandeza. O seu reinado

assinala-se à posteridade pelos mosaicos bizantinos e pelo túmulo

bárbaro de Ravenna, e pelas obras filosóficas de Boécio, o último dos

Romanos antigos, o primeiro dos escritores medievais. Mas Boécio,

Page 105: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

depois de longamente servir Teodorico, foi acusado de ter cons-

pirado com o imperador de Constantinopla, e executado. O reino

sobreviveu alguns anos a Teodorico, mas a verdade é que os seus dias

estavam contados.

Antes mesmo de se ter desmoronado o entendimento romano-gótico,

já os votos da Igreja e a lei da selva se haviam encontrado para

eleger um povo mais evoluído, mas mais novo do que os Godos: os

Francos de Clóvis.

Aos embustes que lhe permitiram anexar aos seus os outros pequenos

reinos francos, por onde se espalhava um povo relativamente

obscuro, às vitórias externas que lhe entregaram a maior parte da

Gália e fragmentos da Germânia, ao faro que o levou a escolher Paris

como capital, Clóvis (481-511) acrescentou a decisão que devia fazer

dos Francos, pagãos havia pouco, os paladinos do catolicismo

ameaçado pelos Arianos. Era armar-se de argumentos mais

convincentes do que a devoção cristã, mas herética dos Godos e do

que os seus esforços para se entenderem com os Romanos.

Será preciso acrescentar um fato de ordem material? Dado que as

fontes não mencionam uma distribuição geral de terras como foi

feita aos outros povos bárbaros, pretendeu-se deduzir daí (talvez

erradamente) que os Francos não perturbaram de modo algum a

aristocracia local no gozo dos seus bens. Seja como for - e não

obstante o fato de os usos codificados na lei sálica serem muito mais

impermeáveis ao direito romano do que as outras leis bárbaras da

época - a colaboração da elite franca com a elite galo-romana foi

particularmente íntima. Ajudou os filhos e os netos de Clóvis a

alargar as conquistas do fundador do Estado.

Senhores da mais vasta e fértil região do Ocidente, os Francos eram

de longe os mais poderosos entre os povos bárbaros -

demasiadamente poderosos para não comprometerem toda e

qualquer possibilidade de confederação de Estados como a que

Teodorico havia esboçado, demasiado belicosos para deixarem em

Page 106: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

paz por muito tempo os seus fracos vizinhos. Iriam eles reconstituir

em seu proveito a unidade de um Ocidente alargado pela acessão da

Alemanha? Se os seus reis se compraziam na guerra, sobretudo como

desporto e processo de enriquecimento, não faltavam, todavia vozes

a inspirarem-lhes ambições imperiais. Essas ambições, ostentavam-

nas, desde antes da primeira metade do século VI, nas moedas de

ouro com a efígie coroada de Teodeberto I (534-547), uma das quais

atribui ao neto de Clóvis o título de Augusto.

ÚLTIMO REGRESSO DA ROMA LAICA, PRIMEIRO ÊXITO DA ROMA

ECLESIÁSTICA

Se freqüentemente os reis bárbaros se emplumaram com títulos

romanos, como as dignidades concedidas pelos imperadores do

Oriente ou a bizarra justaposição do atributo "Flavius" a um nome

teutônico, quer isso significar que Roma e só Roma lhes oferecia a

idéia dum Estado que ultrapassava a conglomeração de tribos e

transcendia a força material.

Nada mais os poderia reunir além desta uniformidade de costumes -

interdições e apetites (hesitamos em dizer «ideais») - que toda a

sociedade proto-histórica adquire a certo nível de vida, e o fundo

comum de tradições, de artes e de técnicas que haviam assimilado

na estepe asiática quando da alvorada das suas migrações.

Porque falavam, quase todos, dialetos germânicos sensivelmente

aparentados, compreendiam-se uns aos outros, embora a raça

estivesse longe de ser una. Até os povos mais ciosos de antepassados

haviam acolhido no seu seio os salvados de todos os grupos nômades

ou seminômades da Euro-Ásia do Norte que, num momento ou

noutro, ficaram colhidos nos seus redemoinhos: Báltico-Eslavos,

Iranianos, Turcos, Mongóis. Alguns desses restos chegaram mesmo a

conservar a sua identidade no momento da vaga final, como os

Alanos (Iranianos) associados aos Vândalos, ou os Esciros e

Turcilingos (Huno-Turcos?) de Odoacro, o obscuro protagonista de

476. Casamentos e ritos de iniciação acabaram por dissolver essas

minorias: elas, porém deixaram vestígios.

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Modelo huno, modelo bizantino

A epopéia germânica e a poesia escandinava iam colocar em lugar de

primeiro plano Atila, rei dos Hunos, embora marido duma germana

(Íldico na história, Kriemhild na lenda)... Aliás, para bárbaros em

movimento, a confederação de hordas controladas por um grande

guerreiro, de que o Estado huno constituía o mais terrível, mas

também o mais poderoso dos exemplos que os Germanos

conheceriam, era indubitavelmente o modelo de organização política

mais fácil de copiar.

Num meio sedentário e cultivado, este modelo tornava-se inutilizá-

vel. Por isso os Germanos ficaram fascinados pela idéia imperial

romana, presente a todos os espíritos. Mas é claro que não podiam

fazer do império sua propriedade absoluta enquanto um imperador

dos Romanos reinasse em Constantinopla e se proclamasse

igualmente soberano do Ocidente, com a aprovação unânime da

Igreja católica. Longe de o discutir, a maior parte dos reis

germânicos reconheceram de bom grado esse direito eminente, com

a condição de lhes não serem exigidas nem tropas, nem dinheiro,

nem obediência. Era-Ihes indiferente que as suas próprias moedas

fossem cunhadas com o nome e a efígie dos imperadores e os seus

documentos datados segundo os cônsules nomeados em

Constantinopla. Isso vinha mesmo escorar o seu crédito

internacional, até maior afirmação de prestígio.

O novo rosto do Império

Constantinopla não o entendeu, porém, do mesmo modo. O que ela

fazia era preparar em silêncio o momento em que pudesse

reivindicar toda a herança romana do Ocidente. E em 533 - meio

século antes de os imperadores chineses do Sul expulsarem, por sua

vez, os Bárbaros para lá da Grande Muralha - os exércitos do

imperador Justiniano puseram-se em movimento. Em menos de um

ano, Belisário conquistou o reino Vândalo, mas já foram precisos

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dezoito anos de encarniçadas lutas para dominar o reino ostrogodo.

Narsés, o eunuco, conseguiu-o em 553, conquanto prosseguissem

resistências isoladas até 563. E ainda as tropas “romanas” (cujo

grosso, aliás, consistia em mercenários bárbaros) tomaram a Anda-

luzia aos Visigodos e varreram para lá dos Alpes os Francos que,

aproveitando-se da confusão, se tinham apossado da Itália do Norte.

É certo que a Itália fora devastada de lés a lés, e que as praças

fortes avançadas do reino vândalo em África foram submersas pelos

Berberes; mas as cicatrizes teriam desaparecido se uma paz

duradoura tivesse sucedido à guerra prolongada.

Num quarto de século, a quase metade do antigo Ocidente será recu-

perada e quase todo o Mediterrâneo voltará a ser um lago romano:

“Nunca Deus permitiu aos Romanos tais conquistas, salvo no nosso

reinado”, exclama Justiniano na sua primeira Novela.

Contudo, e se bem que uma outra das suas leis exprimisse “a espe-

rança de que o Senhor nos concederá o restante deste império que os

Romanos... perderam por indolência”, Justiniano não tentou

consumar o projeto perseguindo até ao fim Francos e Visigodos.

Extenuado pelo esforço, o Império tinha necessidade de quanto lhe

restava em exército e em dinheiro para conter os Persas, que

cobiçavam um corredor até ao mar Negro, e os Bárbaros (antigos e

novos) que, na sua totalidade, ameaçavam os Bálcãs.

Conseguiu vencer tais dificuldades, mas não mais encontrou a

tranqüilidade precisa para completar as conquistas de Justiniano.

Precárias conquistas tem-se dito: de fato, em 568 os Lombardos

invadiram a Itália; entre 571 e 624 os Visigodos retomaram a

Andaluzia; a partir de 670 os Árabes darão assalto à África do Norte.

Seja. A verdade, porém é que já não era pouco ter readquirido a

África por século e meio; quanto à Itália, o que não soçobrou nos

primeiros desastres foi defendido palmo a palmo. Ravenna, só a

abandonaram em 751, Siracusa em 876, Bari em 1071 e ninguém

poderá dizer em que momento Veneza se desligou de Bizâncio.

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Sobretudo, pelo fato do seu regresso belicoso ao coração do

Ocidente, o Império surgia aos olhos dos Bárbaros com um rosto

totalmente diverso do que mostrara a sua aparente agonia no século

V. Sobreposta à Roma defunta, Constantinopla viva oferecia-lhes um

modelo menos majestoso, mas mais atraente e melhor adaptado à

época.

É claro que a sua influência foi mais incisiva sobre os Lombardos,

rudes sucessores dos Ostrogodos num território reduzido e que os

domínios bizantinos cortavam ou bordejavam a todo comprimento.

Mas exerceu-se sobre os Visigodos e mesmo sobre os Anglo-Saxões

que, de tempos a tempos, nele hauriram regras de cerimonial,

princípios de administração e elementos de cultura. Quanto aos

Francos, viram a sua carreira imperial retardada de dois séculos pela

contra-ofensiva do único império legítimo: será, pois de espantar

que, geralmente, se mostrassem hostis, não obstante várias

tentativas de aliança em que a boa fé faltava a ambas as partes?

O papa, soberano contra vontade

A velha Roma do Tibre, destronada pelos Bárbaros, desvalorizada

pelos Bizantinos, abandonada pelos burgueses e pelos nobres,

encontrou na sua miséria uma nova razão de grandeza. As bases da

sua carreira medieval vieram-lhe do passado antigo. A doutrina da

supremacia do Bispo de Roma sobre os colegas tinha-se desenvolvido

lentamente, no tempo em que a cidade era a capital dum imperador

pagão; mais rápidos foram os seus progressos com os imperadores

cristãos ali não residentes. Em 445, um dos últimos Augustos do

Ocidente, Valentiniano III, ordena ao episcopado das suas províncias

que aceite como lei “tudo quanto for sancionado pela autoridade da

Sé apostólica”. Todavia, esta autoridade choca ainda com tenazes

resistências interiores e exteriores.

Por um lado, o clero africano e oriental, incitado pelos patriarcas

"das grandes metrópoles como Constantinopla e Alexandria, teimava

em favor da doutrina da igualdade básica de todos os bispos. Por

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outro lado, o imperador, chefe laico da Igreja, reservava-se o direito

de convocar os concílios, vigiar-lhes as deliberações, fazer cumprir

as decisões e, devido a isso, exercer um controle discreto, mas

efetivo sobre toda a matéria de fé.

Estas pressões diminuíram desde que o Ocidente foi arrancado ao

Império por Bárbaros indiferentes (porque arianos) ou deferentes

(porque recém-católicos). O papa não tinha concorrentes sérios

entre os bispos da Europa ocidental e encontrava-se desobrigado do

poder político do imperador. Foi assim que em 494 Gelásio I,

retomando com mais ousadia as teses enunciadas pelos seus

predecessores e por Ambrósio de Milão, pôde escrever ao imperador

residente em Constantinopla que “o império do mundo se reparte

principalmente por dois poderes: a autoridade sagrada dos pontífices

e o poder real; o encargo dos sacerdotes é tanto mais pesado quanto

no juízo divino deverão prestar contas pelos próprios reis”. Não era

ainda a teoria, mas já o prelúdio da subordinação de César a Pedro:

como chefe da Igreja, o papa afirmava o seu direito de julgar o

imperador no tribunal da penitência.

Programa quimérico, visto que o clero era indócil, o rei, ariano, e

lmperador, freqüentemente heterodoxo! O sucessor de Gelásio,

acusado por uma parte do clero, teve de se remeter ao julgamento

dum concílio de bispos italianos, convocado por Teodorico. A

reconquista imperial da Itália permitiu a Justiniano extorquir à força

a dois papas concessões às idéias teológicas do clero oriental.

O que libertou o papado e lhe permitiu estabelecer definitivamente

a supremacia sobre todo o Ocidente foi a invasão lombarda. Sustida

durante dois séculos às portas de Roma, fez do território romano

zona de fronteira nominalmente bizantina, mas obrigada a contar

com os seus próprios meios. Assim o bispo de Roma torna-se a pouco

e pouco num soberano temporal, independente contra vontade.

Não é de admirar que o papa, absorvido pelos problemas imediatos

deste equilíbrio precário, não tivesse compreendido logo as suas

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vantagens a longo prazo. Mas Gregório I procede já como mediador

entre Bizantinos e Lombardos, reúne as províncias destituídas de

governo eficiente e organiza a primeira dessas grandes missões que,

partidas de Roma, hão-de converter todo um povo bárbaro ao

cristianismo e, do mesmo passo, à autoridade romana: a missão do

monge Agostinho - Santo Agostinho de Canterbury - junto dos Anglo-

Saxões. Os progressos da evangelização foram, evidentemente,

lentos e sofreram numerosos recuos temporários antes de toda a

Inglaterra estar cristianizada, pelo menos superficialmente, por fins

do século VII. Enquanto se afadigavam com os pagãos, os missionários

de obediência romana tinham de enfrentar a onda co-beligerante, e

não necessàriamente aliada, dos missionários celtas, cuja

organização e observância se tinham desenvolvido no isolamento e

não se conformavam por completo com a norma romana. Mas aqueles

triunfaram no Sínodo de Whitby (664), e a Inglaterra tornou-se a

ovelha mais conformista do redil de Roma.

As Igrejas fundadas até então aceitavam, é fato, a preeminência

papal, mas estavam organizadas no quadro dos diferentes Estados.

Até mesmo no Estado ostrogodo, aliás, a jurisdição de Milão assumia

atitudes de autonomia para com Roma. Mas as Igrejas instituídas por

Gregório e seus sucessores - Igrejas anglo-saxônicas a partir de 597,

lombarda e frísia no decurso do século VII, alemã no século seguinte

- submetem-se já a uma disciplina mais “católica”, isto é,

“universal” ou supranacional... Esse exemplo havia de incitar as

Igrejas do Ocidente mais antigas a cerrar fileiras em volta do papa e

a lançar as bases dessa união de católicos romanos que, à falta de

unidade política, antecipará, sob o aspecto religioso, a formação da

comunidade européia.

A POBREZA DO ESPÍRITO

Os progressos incessantes da organização da Igreja católica romana,

na época em que os reinos e o Império estavam por assim dizer

atolados, não se explicam com certeza pela sua força material,

quase insignificante, nem mesmo pelas riquezas temporais,

Page 112: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

consideráveis já, se bem que inferiores àquelas que haveria de

acumular mais tarde.

Como sempre, os seus verdadeiros tesouros estavam no céu. Mais do

que nunca a sua intimidade com a Cidade de Deus impunha-a aos

grandes e tocava os vencidos, os insatisfeitos, os desesperados da

Cidade dos homens.

Em nada amesquinhamos a glória dos que escolheram Deus se

observarmos, todavia que, em dadas circunstâncias, pode ser mais

difícil permanecer no século do que dele desertar.

A vida eclesiástica podia responder a todas as vocações. Alguns mer-

gulhavam nas querelas teológicas, tanto mais animadas quanto iam

constituir daí em diante a principal manifestação do que subsistia em

matéria de atividade intelectual. Outros votavam-se aos labores

quotidianos da administração, aumentados pelo desfalecimento do

Estado ou pela confiança dos governos que transferiam para o clero

algumas responsabilidades do abastecimento, da justiça e até mesmo

da defesa, asseguradas até então pela administração laica.

Consagravam-se outros ainda à conversão dos heréticos e dos pagãos,

sabendo, além disso, que freqüentemente se tornaria necessário

ensinar aos convertidos os rudimentos da vida civil. Por último, e

eram estes os mais numerosos talvez, havia os que entreviam na paz

do claustro o único meio de resolver individualmente os problemas

que, numa sociedade corrompida e ensangüentada, lhes pareciam

sem saída.

Os mosteiros: um êxito

Os mosteiros constituíram o maior êxito da Alta Idade Média. Que

exemplo o de um Cassiodoro, ministro romano de quatro reis

ostrogodos, escritor adestrado em todas as sutilezas da retórica e da

erudição, que, uma vez dissipados os seus sonhos terrestres, acaba

os dias ditando as regras da instituição monástica que ele próprio

fundara!

Page 113: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

No entanto, não é ele, mas sim um homem mais modesto, Bento de

Núrcia, quem transmite às gerações futuras a fórmula em que a

longa experiência do monaquismo oriental, destilada, se adapta às

aspirações do Ocidente. É verdade que, recentemente, se pôs em

questão a originalidade da regra que leva o seu nome: ela derivaria

em grande parte de um modelo anterior. Como quer que seja, foi o

seu texto que se afirmou e assegurou nos conventos beneditinos o

triunfo do bom senso, do equilíbrio entre os rigores do ascetismo e os

imperativos da saúde mental e física. “Escuta meu filho, os preceitos

do mestre... Quem quer que tu sejas, renuncia ao teu querer para

cingires as armas poderosas e esplêndidas da obediência e militares

sob as ordens do verdadeiro rei, Cristo Senhor.”

Em breve o apelo ressoou do Monte Cassino a Roma, à Inglaterra, à

Espanha, à Gália, à Alemanha. E, a pouco e pouco, suplantou as

regras que outros venerados homens, como Cesário de Arles e

Columbano de Irlanda, haviam difundido. Voltadas ao trabalho

manual ou intelectual, do mesmo modo que à oração, as

comunidades monásticas constituíram durante longo tempo os únicos

herdeiros do espírito de ordem e de organização latino, as únicas

aglomerações capazes de aumentarem e de se multiplicarem no seio

da dispersão e da desorientação geral.

Estas comunidades reassumiram em parte as funções de focos

culturais e de centros econômicos que os núcleos urbanos deixavam

escapar. Nas regiões que ainda não possuíam cidades, como a

Irlanda, desempenharam esse papel na medida das suas

possibilidades. Não obstante isso foi na Irlanda que o individualismo

sem compromisso, o desejo de se subtrair completamente à

convivência dos homens para se entregar ao diálogo frente a frente

com Deus, se mantiveram durante mais tempo. Em 891, a Crônica

Anglo-Saxônica relata-nos a história de três monges “que se

evadiram da Irlanda num barco sem remos porque aspiravam a viver

como peregrinos pelo amor de Deus”. Com mais utilidade para a

salvação de seus irmãos, outros monges, em busca de isolamento,

Page 114: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

aventuraram-se junto dos pagãos para lhes conquistar a alma. Outros

ainda encerravam-se nas celas a fim de estudar e transcrever os

textos clássicos que a sociedade caída na barbárie deixara de

compreender.

A Igreja: uma potência

Já não é preciso fazer o elogio da Igreja da Alta Idade Média: os

escritores da época, quase todos eclesiásticos, dele se

encarregaram. Sem o propósito de os criticar, notemos, contudo que

esses altos feitos constituíram o rédito dum enorme investimento. E,

muito embora não exista nenhum recenseamento digno de fé, não

há, sem dúvida, exagero na avaliação de que pelo menos uma pessoa

em cada vinte pertencia ao clero e que a proporção era ainda mais

forte entre os homens de talento e de boa vontade. Tais homens não

tinham o direito de prestar à Terra um cuidado que não fosse

subordinado aos seus deveres para com o Céu. Era-lhes interdito

combater e ter filhos. Deviam consagrar ao serviço divino uma parte

considerável dos recursos que acumulavam pelo próprio trabalho e

pelo dos fiéis. Numa época em que o rendimento do trabalho e o

excedente dos nascimentos sobre os óbitos dificilmente

ultrapassavam o mínimo indispensável à sobrevivência da sociedade,

a Igreja recebia, pois do mundo laico muito mais do que o supérfluo.

A despeito das aparências, os Estados bárbaros eram demasiado

fracos para se medirem com ela. A sua hostilidade acabou por

quebrar o reino lombardo, os seus amplexos por atrofiar o reino

visigodo, a sua prosperidade por enfraquecer os reinos anglo-saxões.

E foi necessário todo o prestígio dos Carolíngios para restabelecer um

certo equilíbrio em benefício dos Francos.

No seu conjunto, e não obstante as inevitáveis irregularidades numa

comunidade tão numerosa, a Igreja da Alta Idade Média era mais

culta e benéfica do que a média dos fiéis. Embora não estivesse de

todo isenta do abatimento geral.

Não esqueçamos que, desde o seu começo, o cristianismo se depa-

Page 115: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

rava aos melhores representantes da civilização clássica como “uma

superstição insensata e excessiva” na medida em que apelava para a

sensibilidade e para a fé mais do que para o senso comum e para a

razão. Contudo, antes do eclipse da cultura greco-latina, uma

plêiade houve de pensadores originais que consorciou a nova religião

e a filosofia. Os grandes heterodoxos do princípio do século III

racionalizaram, através duma interpretação alegórica, os mistérios

das Escrituras (Orígenes) ou celebraram com ousadia até mesmo os

seus aparentes absurdos (Tertuliano). Os concílios do século IV e da

primeira metade do V definiram a profissão de fé, não sem dilacera-

ções, contudo, dado que o triunfo da cristologia grata aos Ocidentais

provocou no Oriente revolta atrás de revolta: alünos, nestorianos,

monofisitas.

O pensamento cristão atingiu a sua cumeada com os padres que

assistiram à agonia da Roma Imperial: Ambrósio, Jerônimo, Agostinho

de Hipone. Depois, e subitamente, houve um retrocesso. As disputas

teológicas que antes haviam conduzido à sutil definição dum

problema tão capital, como era a inserção de Cristo na Trindade e

sua encarnação “consubstancial ao Pai segundo a divindade e a nós

segundo a humanidade (...) em duas naturezas sem mistura, sem

transformação, sem divisão e sem separação” (Concilio de

Calcedónia, 451), girarão daqui em diante, no Ocidente, à volta de

questões tão modestas como a forma da tonsura e a data da festa da

Páscoa. Entre os três doutores anteriores a 476 e o quarto, Gregório

Magno, que a tradição coloca no mesmo plano, existe um abismo.

Este último condena o estudo da literatura clássica, interpreta as

Escrituras como um ramo de moralidades que é preciso descobrir sob

o véu da alegoria e demonstra a doutrina através duma florescência

de milagres em que Deus e o Diabo, igualmente humanizados, se

afrontam. O ciclo fechou-se; razão e senso comum parecem ceder o

passo à sensibilidade e a fé.

Mas teremos o direito de nos escandalizar? Homem de Estado, admi-

nistrador, propagandista, Gregório I dirige-se às massas, deixando

aos seus predecessores mais eruditos o cuidado de satisfazer os raros

Page 116: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

espíritos que os compreendem. Recomenda aos missionários que

prestem atenção aos ritos e aos sentimentos dos pagãos, de modo a

conduzi-las gradualmente à verdade; é o primeiro a chamar aos

Lombardos «inomináveis» e o primeiro a estender-lhes os braços;

resigna-se a que um imperador de talento lhe chame néscio e adula o

seu ignóbil sucessor. E sempre e sem esforço, coloca-se ao nível das

suas ovelhas mais ingênuas porque, a par de ser o herdeiro da

Antiguidade como governador de Estado, é um homem do seu tempo

no que respeita ao ensino da palavra de Deus. Tal a razão do seu

imenso sucesso.

IMATURIDADE GERMÂNICA

Os círculos dirigentes laicos dos tempos bárbaros, entre os séculos VI

e IX, eram, tanto quanto os círculos religiosos, ingênuos e dominados

pelas emoções. Mas o que pode ser considerado, sob certos aspectos,

como uma virtude para os homens da Igreja, raramente o é para os

homens de Estado. O cognome de "pio" ou "clemente", atribuído

pelas crônicas da Idade Média a alguns soberanos, designa

geralmente um néscio ou um fraco. A natureza essencialmente

militar da autoridade exigia que os chefes se inspirassem, não no

cordeiro, mas no lobo ou na raposa.

O soberano

Com efeito, o ideal clássico do imperador magistrado, exercendo o

imperium exclusivamente por delegação do povo e para satisfazer

aspirações, expressas ou tácitas, da comunidade, era demasiado

abstrato para uma época grosseiramente realista e destituída de

massas populares atuantes. A idéia do soberano detentor do mandato

divino, familiar entre os povos orientais e já enxertada na tradição

da Cidade-Estado pelos últimos imperadores romanos, mostrava-se

mais acessível aos Germanos. As suas lendas ligavam por vezes as

famílias reais aos deuses ou aos feiticeiros, a Igreja Católica pregava

a estes bárbaros a missão sagrada da monarquia, Bizâncio sugeria-

lhes o exemplo dum imperador coroado pelo patriarca (desde 457) e

Page 117: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

que se proclamava “igual aos Apóstolos”. Mas a coloração religiosa

permanecia superficial. No fundo, o rei mantinha-se o que havia sido

na época das migrações: o general do exército, o juiz das partilhas e

da fruição das conquistas. Isto torna-lhe mais difícil preservar o

poder se cessou a sua ação conquistadora e aumentar as suas rique-

zas a fim de as redistribuir entre os que o seguem.

Em princípio, o rei detinha a autoridade por delegação, da mesma

maneira que o magistrado e o vigário celeste. Tal como o magistrado

corrupto e o vigário ímpio, o general incapaz perdia a coroa. Um

intervalo de paz permitia, por vezes, às tribos confederadas que

retomassem a sua autonomia: os Lombardos passaram sem rei

durante dez anos; os Anglo-Saxões, se de onde em onde

reconheceram um rei federal (Bretwalda), a maior parte do tempo

contentaram-se com “reinos” tão pequenos como um ducado

lombardo ou um condado franco, dado que os seus inimigos, os

Celtas, estavam ainda mais parcelados. Por outro lado, o extraor-

dinário êxito militar dos primeiros Merovíngios permitiu a Clóvis

fundar uma dinastia, e aos seus sucessores repartir o reino como se

se tratasse duma herança privada. A partir do século VII, as disputas

e a incapacidade dos reis permitiram à aristocracia franca cercear o

patrimônio real, fazendo-se comprar por distribuições de terras em

plena propriedade. Mas mais de um século decorreu até que

prefeitos do palácio, aristocratas e intendentes da Coroa se

atrevessem a ocupar o trono à sombra do qual tinham feito fortuna.

Em contrapartida, a aristocracia visigoda e lombarda resistiu com

êxito aos esforços de vários reis enérgicos no sentido de

estabelecerem dinastias próprias. Foi em vão que alguns deles

tentaram consolidar o poder com arremedos do cerimonial bizantino:

só à força havia respeito e ela embotava-se à menor sutileza.

Nenhum dos reis relativamente civilizados da baixa época lombarda

igualou o prestigio do primeiro conquistador, Alboino. Este, depois

de ter esmagado os Gépidas na região danubiana, assassinado o rei e

desposado a sua filha, viu-se forçado a abandonar aos Avaros o seu

reino transalpino para conseguir um maior na Itália (568-572). Teria

Page 118: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

talvez chegado a ser um outro Clóvis se não tivesse cometido o erro

de, num momento de embriaguez, oferecer à mulher de beber pelo

crânio do pai transformado em taça. Ela não apreciou a brincadeira e

mandou-o assassinar. Tal é a história que nos é contada, duzentos

anos mais tarde, por Paulo Diácono, historiador piedoso, mas

patriota: sem uma palavra de censura a respeito de Alboino, infamou

a «leviana» que imolara o herói a rancores pessoais.

Fraqueza das instituições

Das capacidades do rei dependia a solidez do reino, porque as

instituições estavam apodrecidas ou eram rudimentares. Não bastava

ter conservado as peças do maquinismo e o pessoal romano; fora

preciso reformá-los para travar a sua dissolução. Bizâncio oferecia o

exemplo de reforma moderada, mas as influências bizantinas

mostraram-se demasiado tardias e demasiado superficiais para se

implantarem vigorosamente, salvo em alguns sectores da

administração lombarda (casas da moeda, policia e alfândegas) e,

num grau menor, em outras administrações bárbaras.

Quanto às instituições germânicas, adaptadas a pequenos grupos em

constante deambulação e ao combate, enfraqueceram com as

tarefas mais pesadas que lhes impunha a fixação num território

extenso. A assembléia popular foi-se reunindo cada vez mais

raramente e perdeu a autoridade política, salvo em Espanha onde se

achou reforçada pela estranha fusão com os concílios da Igreja. Os

bandos de “companheiros” e de “fiéis” que rodeavam os chefes nas

batalhas e nos banquetes mostraram mais perseverança à mesa do

que no campo da honra. As organizações de tribo, de aldeia e de

família perderam coesão, e os seus vínculos com o governo central

debilitaram-se.

No entanto, as instituições germânicas sobreviveram melhor do que

as romanas, porque melhor adaptadas à contração do Estado. A

pouco e pouco este renunciou ao imposto direto, com grande alívio

da população. Reconstruiu-se sobre o rendimento dum patrimônio

Page 119: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

público, cada vez mais estreito, e criou inúmeras peagens nas

estradas quase desertadas pelo tráfego ou arruinadas por falta de

conservação. Em contrapartida, o Estado deixava de prestar serviços,

mesmo aqueles que poderiam ser rendáveis. A guerra, só a fazia com

intermitência, e só muito irregularmente prestava uma justiça

assente em multas.

Haveria, é claro, que matizar este quadro. Os reis lombardos soube-

ram aumentar as terras da Coroa e os régulos ingleses estabelecer

cadastros vigorosos. Em contrapartida, na França - e só ai - houve

bispos que persuadiam os reis a queimar os registros do fisco para

salvarem a alma. Impostos sem a compensação de serviços pareciam-

lhes puras extorsões. Mas a desordem e a regressão, se bem que não

fossem uniformes, não deixaram de ser menos gerais.

Ruína da cultura

A cultura não escapou a esta decadência. À fonte artística da Ásia

Central, tinham os Germanos ido buscar alguns motivos: entrelaçados

geométricos, animais estilizados, predileção pelos vidrilhos, pelos

esmaltes compartimentados e as pedras preciosas coloridas. Esta

expressão de um espírito pouco inclinado a observar o real e o

humano chegou a marcar as artes dos povos orientais muito

civilizados (Chineses, Persas, Bizantinos) e conjugou-se facilmente

com a arte dos Celtas, igualmente bárbara e ainda mais próxima do

zoomorfismo. Se bem que pudesse atingir a beleza, nomeadamente

na ourivesaria, faltavam-lhe, contudo as possibilidades infinitas de

renovação, de aprofundamento e de requinte que oferecem os

estilos mais intelectualizados.

As raras obras-primas germânicas são quase todas dos primeiros

séculos ou devidas aos povos mais primitivos; o resto não passa de

repetição dum pequeno número de fórmulas, que uma ornamentação

excessiva ou uma simplificação exagerada desfiguraram finalmente.

Passemos em silêncio as raras tentativas de representar a figura

humana. Houve acaso uma arquitetura germânica em madeira, digna

Page 120: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

desse nome? Nada chegou até nós e aquilo que conhecemos de

séculos mais recentes não leva de modo algum a supor que ela se

tenha desenvolvido paralelamente à arquitetura de pedra ou de

tijolos que continuou sendo a especialidade dos vencidos.

É igualmente difícil pronunciarmo-nos sobre as lendas épicas cujo

eco nos foi transmitido pela tradição oral. Nos poemas da idade

feudal que mais tarde as utilizaram, só a estrutura tem antiguidade

garantida, e ela compõe-se em regra duma série bastante curta de

façanhas atribuídas a um grande número de guerreiros de copadas

genealogias. Só os Anglo-Saxões escreveram as suas lendas desde a

época bárbara, misturando com as narrativas sobre os seus próprios

tempos, as recordações da sua pré-história no continente europeu.

Em tão vasta literatura há uma obra de valor: Beowulf. O verso não

deleita o ouvido acostumado às harmonias clássicas; as aliterações

formam um desenho que lembra os entrelaçados dos iluminadores,

mas a luta do herói contra as vagas, os monstros marinhos e a

cobardia dos homens reveste-se de sombria grandeza. Esta é

interrompida no final do poema por uma nota de bondade desen-

corajada onde os críticos viram a mão de um homem da Igreja

guiando a do bardo, como na Chanson de Roland. Ao lado desta

poesia, os exercícios em latim de alguns reis e dignitários bárbaros

fazem uma triste figura.

Pobreza de direito

De gustibus non est disputandum. É plenamente legítimo que alguns

estetas contemporâneos se extasiem perante a arte dos Bárbaros,

com a condição de não lhe concederem profundidade de pensamento

ou de inspiração, que lhe foi estranha. O mito do “bom selvagem”

mostra-se difícil de morrer! Todavia, já não se confunde, como

outrora, a anarquia ou a impotência do Estado bárbaro com o

espírito de liberdade. Sucederá o mesmo quanto às suas formas

jurídicas?

Nos numerosos textos que chegaram até nós, quase não se encon-

Page 121: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

tram esforço de síntese, definições teóricas, separação nítida entre

direito dos particulares e direito da comunidade ou do Estado. O

direito de obrigações por assim dizer não existe: troca-se objeto por

objeto, ou então, se o escambo não se pode fazer in loco, o devedor

entrega ao credor um penhor, real ou simbólico. Os processos não se

julgam em função dos fatos ou das provas sobre as quais o

julgamento há-de ser proferido, mas segundo a credibilidade geral

do acusado, que se defende graças ao juramento e ao de seus

íntimos, quando não apela para o juízo de Deus através do duelo ou

dos ordálios. A pena raramente castiga a pessoa do culpado como

violador da segurança pública; consiste normalmente em multas,

fixadas segundo uma tabela - tanto por um braço cortado, tanto por

um dente partido e que devem ser pagas ao ofendido ou ao Estado,

em geral sem atender às circunstâncias ou à vontade daquele que

ofendeu.

É claro que se notam diferenças de código para código, sobretudo

por influência do direito romano e da religião, fatores de ordem, de

piedade e de clarividência. Mas uma tal influência nunca foi

constante nem progressiva. Já no século V Godos e Burgúndios

acolhiam o direito romano do tempo no seu direito nacional. Os

Bárbaros dos dois séculos seguintes nada aproveitaram do

monumento jurídico de Justiniano. Foi com dificuldade que a Igreja

lhes ensinou alguns princípios do seu próprio direito e, a partir dele,

do direito romano. Em última análise, a imaturidade dos Germanos

mostrou-se menos nociva quando do choque inicial do que durante a

longa inação que se seguiu. Os frutos estragaram-se antes de terem

amadurecido.

DECREPITUDE ROMANA

“A Grécia conquistada conquistou o seu orgulhoso vencedor”: tantas

vezes verificado, o adágio não se aplica muito bem aos primeiros

séculos da Idade Média. É verdade que os Bárbaros adaptaram a

religião dos Romanos vencidos, exatamente como os Romanos tinham

adaptado a da Palestina submetida. Serviram-se em regra do latim

Page 122: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

como língua escrita. Apropriaram-se de não poucas instituições e

idéias greco-romanas, não sem transmitirem por sua vez algumas das

suas às populações dominadas; e se não substituíram a manteiga pelo

azeite, não tardaram a apreciar os méritos do vinho. Não obstante, a

romanização da cultura germânica atrasou-se até a assimilação física

das minorias conquistadoras pela massa romana, geradora do

primeiro renascimento neolatino. Foram precisos aos Francos pelo

menos quatrocentos anos para se tornarem franceses; mais tarde

cem anos haviam de bastar aos Normandos, cuja origem não era

menos germânica. Isto levar-nos-ia a pensar que a Alta Idade Média

se estiolou numa dupla inércia: se os alunos eram refratários, aos

professores faltava zelo.

Um historiador da economia e da sociedade hesita em dar opinião

sobre problemas que historiadores da arte, da literatura e das idéias

dominam com a sua erudição e as suas preferências - estas últimas,

naturalmente, influenciadas pelas flutuações do gosto

contemporâneo. Não será melhor consultá-los a eles? Dir-nos-ão, sem

dúvida, que as idéias da época bárbara, mesmo entre os “Romanos”,

foram desprovidas de originalidade; que a literatura latina, depois de

ter produzido até meados do século VI certas obras de mérito,

algumas mesmo notáveis, se afundou por muito tempo; que a arte,

em contrapartida, conseguiu vencer uma grande crise para atingir

novas alturas, muito afastadas dos cumes da arte clássica, mas de

singular beleza, pelo menos nas regiões acessíveis às influências

bizantinas. Nomes de autores que hoje só eruditos lêem, mas que

durante muito tempo foram célebres - Orósio, Boécio, Fortunato -

ocorrem-nos à memória. Mais familiares, as imagens dos mosaicos de

Ravenna e de Roma, dos frescos de Castelseprio, da ourivesaria, das

miniaturas e dos esmaltes, reunidas em centenas de coleções,

enchem-nos de encanto as recordações. Sem nos determos nos

pormenores, assinalemos alguns dados essenciais que os monumentos

artísticos e as obras literárias oferecem para interpretar a sociedade

que os produziu.

Arte rígida, arte anônima

Page 123: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

O que nos impressiona em primeiro lugar é a dissolução gradual da

personalidade. A figura humana não se elimina como na arte

bárbara, mas a atenção desvia-se cada vez mais dela para se

consagrar ao vestuário e às insígnias do poder e do oficio. O retrato

individualizado e realista converte-se numa efígie estereotipada, de

olhos esbugalhados para o vazio, de traços simplificados, de gestos

contidos, sempre vista de frente. O mesmo sucede nas letras, onde a

biografia não é abandonada, mas se confina, sobretudo às vidas

estereotipadas de santos, verdadeiras máquinas de fazer milagres,

desprovidos das dúvidas, das imperfeições e das tonalidades que

caracterizam qualquer criatura de carne e osso. No século V já, a

história não procurava outra explicação para os reveses do Império

Romano para além da cólera dos deuses abandonados ou do

descontentamento do Deus novo. Com Gregório de Tours, converte-

se numa amálgama de anedotas comuns, de pecados e de

intervenções divinas anunciadas por aparições de meteoros, tudo

justaposto com a mesma despreocupação de perspectiva que vemos

nos monumentos figurados do tempo.

A história desce mais baixo ainda na coleção de crônicas conhecida

pelo nome errôneo de “Fredegário”; os seus próprios compiladores,

aliás, deram-se conta desta mediocridade. Quando um deles se

queixa de que “o mundo envelhece, o gume da sabedoria embota-se,

ninguém é igual aos oradores do passado nem ousa pretender sê-lo”,

só lhe podemos é dar razão. Regressão da cultura e da técnica? Sem

dúvida alguma: já no século IV, quando Constantino “o Grande” quis

decorar o seu arco de triunfo com a delicadeza da arte que lhe

parecia ser a época da perfeição, mandou arrancar medalhões ao

arco de Adriano. Quanto ao resto, teve de se contentar com uma

decoração mais rude, que, aliás, nos agrada da mesma forma. Mais

irremediável ainda do que a crise técnica (que podia resolver-se com

uma mudança de fórmula) é a crise do homem: o abaixamento da

força e da dignidade individuais.

Como é que a personalidade humana teria podido inspirar aos

Page 124: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

artistas da Alta Idade Média o interesse ou a confiança de que gozava

nas antigas cidades romanas? Os cidadãos tinham-se visto privados de

iniciativa própria pelo poder imperial; depois, quando este se

desmoronou, caíram na insegurança. Os Bárbaros calcaram-nos aos

pés, enquanto por seu lado o cristianismo os exortava à humildade e

lhes lembrava a iminência do Juízo Final. Roídos pela miséria,

dizimavam-nos as epidemias. Para sobreviver, a arte tornou-se

anônima e coletiva.

O seu triunfo mais esplendoroso encontra-se no canto litúrgico. Tal

como o cristianismo, fora importado do Oriente para o Ocidente

muito antes de findo o Império. Mas foi somente na obscuridade da

era bárbara que tomaram em definitivo forma as salmodias severas e

solenes, os diálogos entre o narrador e o coro, o canto alternado dos

grupos corais que se respondem na antífona, os hinos em que as

inflexões e o ritmo populares substituem a prosódia quantitativa da

Antiguidade. Passando em silêncio os nomes dos compositores, a

tradição exalta dois organizadores: Ambrósio, amigo e antagonista de

Teodósio “o Grande”, no canto que ressoa ainda nas igrejas da

diocese de Milão, e Gregório I, Magno, no canto que domina todo o

resto do mundo católico. É provável que os respectivos méritos

estejam engrandecidos pela ignorância de inúmeros colaboradores e

continuadores; porém, quanto ao fundo, a tradição parece incon-

testável.

Arte envolta em símbolos

Não é possível exagerar o poder sugestivo da linguagem, ao, mesmo

tempo abstrata e direta, da música sobre os corações simples: Ario,

no dizer dos inimigos, arrastou para a heresia almas ingênua ensinan-

do-lhes melodias tiradas dos cantos de soldados e de marinheiros.

Mas a música representou bem o domínio único da abstração. No

geral, a era bárbara viu as idéias abstratas concretizarem-se em

símbolos materiais e as explicações teóricas enrouparam-se nos véus

da alegoria.

Page 125: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

Por certo que não há aqui novidade. Se a arte clássica glorificava os

seus ideais sob os traços humanos dos deuses, a arte orientalizante

do Baixo Império envolvia-os já num simbolismo animal, vegetal ou

inanimado, cada vez mais vicejante e emaranhado. A alegoria

ocupara sempre um lugar importante no arsenal da literatura, tanto

greco-romana como hebraica; mas a era bárbara distingue-se pela

exaltação da alegoria e pela preponderância do símbolo. Não basta

que o culto hebreu, sem imagens, ceda lugar ao antropomorfismo

tradicional; é preciso ainda que o Filho do Homem seja representado

como pavão, peixe, cordeiro ou monograma. Não basta que a

alegoria escore e complete o raciocínio; sufoca-o também.

Podemos ainda sorrir quando um Africano do V século, Marciano

Capella, imagina um Casamento da Filologia e de Mercúrio, a guisa

de título e prelúdio dum tratado sobre as sete disciplinas que

formarão a base do ensino medieval. Mas já nos alarmamos quando

um francês do século VII, que pretende chamar-se Vergílio Maron,

decompõe o latim numa série de línguas herméticas e aconselha a

escrevê-lo em forma de enigmas figurados, para afastar os profanos.

De igual modo, na Filosofia personificada que consola Boécio na

prisão, nos princípios do século VI, ainda ecoa algo do pensamento

antigo; mas já cem anos mais tarde, Isidoro de Sevilha irá buscar

sobretudo os seus erros aos autores antigos que guarnecem as quinze

secções da sua biblioteca. A sua enciclopédia, cuja fama duradoura

contribuiu poderosamente para baixar o nível intelectual da Idade

Média, esforça-se por explicar “tudo o que é preciso conhecer”, a

partir da etimologia: declara que formiga (formica) vem de “levar

migalhas” (feret micas), e que noite (nox) vem de “tornar nocivo” (a

nocendo), porque faz mal aos olhos...

Contudo, note-se uma diferença importante entre estes dois

escritores do século VII, Isidoro e Vergílio. O último agarra-se ao

latim como a um título de nobreza. Era um desses romanos cultos

que afetavam o mesmo desprezo, fosse pelos bárbaros mal-cheirosos

e vestidos de peles, fosse pelos rústicos atolados na ignorância, na

superstição e no servilismo. Abrigados atrás das defesas duma

Page 126: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

retórica caduca, de temas frustes e de linguagem arcaica -

linguagem que se tornava cada vez mais incompreensível, não só

para os ocupantes, mas também para a maioria dos vencidos - estes

romanos eram destroços condenados a desaparecer. Dentro do

mesmo espírito, no século VI o historiador da Reconquista bizantina,

Procópio, insistia em chamar Italianos apenas aos grandes

proprietários e em ignorar os autóctones mais pobres e os seus

patrões ostrogodos. Isto ajuda-nos a compreender os motivos por que

não persistiram na Itália as vitórias de Justiniano.

Não sejamos, todavia excessivamente severos para com estes

teimosos defensores do passado: apesar de tudo, o latim era a única

língua que o escol de todo o Ocidente ainda compreendia. Mesmo um

Gregório I, que se gabava de ter “desprezado a arte do discurso

inculcada pelas regras do ensino mundano”, via-se forçado a

empregar o latim para se fazer entender pelos quadros eclesiásticos.

Recomendava, é certo, que a religião falasse aos iletrados na língua

das imagens – o que prova não ter muita confiança na instrução

latina que, por ordem dos concilias, os padres deviam ministrar às

crianças das paróquias.

Isidoro e o princípio da nova Espanha

Isidoro (aprox. 560-637) escrevia também em latim, língua dos seus

antepassados, mas nem por isso deixou de celebrar a rendição das

derradeiras fortalezas bizantinas ao seu rei: “Finalmente, a raça

valente dos Godos... arrancou-te, Espanha, aos Romanos... hoje o

soldado romano é servidor dos Godos”. Melhor poderia dizer que era

já Espanhol? A erudição que ostenta nem sempre é mais segura do

que a de Vergílio, o gramática, embora seja menos caduca; muitas

vezes, pertence ao domínio eterno do folclore- o mundo de Esopo e

do Romance da Raposa. O processus de involução aproximava-se do

fim; no fundo do abismo, a decadência romana iria em breve juntar-

se à imaturidade germânica. A medida que as idéias se embrumavam

na alegoria, que a arte se imobilizava no símbolo, que a língua se

maculava de vulgarismo e que a clareza do direito romano se perdia

Page 127: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

nos usos do direito popular, mais compatível com os costumes

bárbaros, aproximava-se o dia em que vencedores e vencidos,

poderosos e pobres, mutuamente se haviam de compreender.

Uns cinqüenta anos depois da morte de Isidoro, era a Espanha que

parecia preceder os outros Estados bárbaros no caminho dessa

metamorfose. As suas leis abastardadas aplicavam-se tanto aos

Visigodos como aos Romanos. A sua assembléia de nobres e de

prelados funcionava como um parlamento embrionário. Certas

instituições feudais parece terem aí encontrado o berço. Um

dos seus reis, Vamba, julgou mesmo possível estabelecer o

recenseamento militar universal - pedra de toque da unificação

nacional - e submeter-lhe até os eclesiásticos e parte dos escravos. E

certo que fracassou.

A Espanha achava-se dilacerada, tanto pelo desacordo profundo

entre o rei e os grandes senhores, como pelo seu acordo específico

em dois pontos: perseguir os Judeus (isto é, o núcleo da burguesia) e

opor-se à libertação das classes servis. Quando os Árabes a

invadiram, em 711, bastou uma batalha para que o reino se

desmoronasse. Outros reinos tomaram então a dianteira, mas a

Europa nova não tinha possibilidade de se edificar enquanto os

próprios fundamentos da sociedade não fossem renovados e

consolidados.

AS INCÓGNITAS

É sempre difícil ao historiador compreender o que se passa por baixo

das camadas superiores da população e fora dos centros urbanos;

porque os camponeses são uma gente lenta e silenciosa, e o seu

sulco, tão profundo quão obscuro, só à escala de séculos é que

modifica sensivelmente a paisagem. Os raros escritores da era

bárbara não se debruçam sobre a vida quotidiana. E a custo que às

vezes nos informam das bruscas calamidades que vêm transformar

em desespero a miséria apática das multidões anônimas.

Page 128: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

Vejam-se três exemplos tomados ao acaso: “Quando Chilperico

encontrou a morte... os de Orléans e os de Blese, reunidos, caíram

sobre as gentes de Châteaudun e massacraram-nas de improviso;

incendiaram as casas, as provisões e tudo o que lhes era difícil

transportar; apoderaram-se dos rebanhos e pilharam tudo o que

puderam levar. Mas durante a retirada, os habitantes de Châteaudun

e de Chartres... fizeram-lhes, sofrer o mesmo tratamento que

tinham recebido” (Gregório de Tours). “A Córsega está tão oprimida

pela tirania dos exactores e pelo peso das exacções que os

habitantes só a custo lhes podem prover, vendendo os seus próprios

filhos. É por isso que são obrigados a deixar a república [o território

bizantino] e a fugir para junto dos inomináveis Lombardos. Que

teriam eles a recear demais grave ou demais cruel por parte dos

Bárbaros?” (Gregório I). Depois de três anos de seca, “uma terrível

fome espalhou-se pelo povo e destruiu-o... Diz-se que era freqüente

grupos de quarenta e cinqüenta pessoas, esgotadas pela fome,

encaminharem-se para o abismo ou para o mar, e aí se precipitarem

todas ao mesmo tempo, de mãos dadas” (Beda).

Nível de vida miserável

É claro que não devemos imaginar as condições normais da vida a

partir destas catástrofes. Aliás, as desordens locais reduziam as

possibilidades de guerras generalizadas. A enormidade do sacrifício

exigido pelos impostos resultava numa fuga regular perante os

encargos mais pesados. A mortalidade suscitada por uma fome

eliminava os excedentes de população e tornava menos vulneráveis

os sobreviventes. Mas se é verdade que cada mal traz consigo o seu

próprio remédio, esse remédio, durante a era bárbara, traduz-se

sempre por uma amputação.

Documentos legislativos, arqueológicos ou lingüísticos, tudo enfim

que nos ajuda a descobrir qualquer coisa na neblina dessa época nos

leva a concluir que as grandes personagens temporais e espirituais só

vestígios conservam do antigo luxo e que a massa foi obrigada pouco

Page 129: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

a pouco a renunciar a todo o conforto material. E preciso que a Itália

lombarda esteja bem pobre para que o furto de quatro cachos de

uvas retenha a atenção do legislador; é preciso que o trem de vida

dos Anglo-Saxões tenha baixado muito para que a palavra lord

(originàriamente “guarda do pão”) se imponha como a mais usada

entre os trinta e seis sinônimos que exprimem, no Beowulf, a idéia

de “chefe” ou de “senhor”; é preciso que as compras dos pobres

tenham diminuído muito para que a moeda de bronze, instrumento

habitual das transações miúdas durante o Império, cesse de ser

cunhada no Ocidente. Em contrapartida, a moeda de ouro continua a

circular para as trocas internacionais e o entesouramento dos ricos;

conquista mesmo regiões que a não tinham conhecido antes da era

bárbara, como a Escandinávia ou a Irlanda. É, sem dúvida, um

sintoma de progresso dessas regiões, mas, sobretudo do nivelamento

gradual da Europa inteira numa economia que faz da moeda o

depósito da riqueza mais do que o instrumento quotidiano do

consumo.

População rarefeita

Como vimos, profunda e prolongada crise demográfica acompanhou

esta contração econômica. Essa crise, se não apagou o contraste

entre o mundo mediterrâneo, sedentário e relativamente compacto;

e o mundo nórdico, de população dispersa e flutuante, tornou-o,

contudo menos nítido.

É verdade que, em vastas extensões da Europa setentrional e

oriental, a emigração dos Germanos e seus aliados agravou a

regressão demográfica. No entanto, o vazio atraiu novas tribos

nômades: Eslavos, Baltas, Avaros, Búlgaros... Eram porventura menos

numerosos e mais primitivos do que os antigos ocupantes? Talvez,

mas a sua intervenção não conseguiu alterar sensivelmente uma

paisagem que nunca os homens tinham remodelado à sua

semelhança.

Finalmente, foi o antigo território romano que sofreu a

Page 130: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

transformação mais profunda, ainda que as suas vicissitudes não

sejam mais do que a conclusão de tendências já pronunciadas muito

antes da queda do Império. Havia muito que os grandes latifundiários

desertavam os centros urbanos para se instalarem nos seus solares

rústicos (villae, os futuros “castelos”). Por seu turno, os camponeses

abandonavam as aldeias devassadas, buscando o abrigo dos grandes

domínios. Florestas, pântanos e charnecas invadiam as terras

abandonadas. Esta evolução, que tendia a destruir o quadriculado

uniforme das culturas mediterrâneas, foi acelerada pela influência

dos hábitos rurais dos Bárbaros e da regressão demográfica. Quase

por toda a parte se foi desfiando a rede das cidades e baralhando o

xadrez dos campos cultivados; e entre as aglomerações alastravam

grandes espaços desabitados.

Presenças romanas na geografia agrária e urbana

Todavia, o cunho da romanidade clássica era tão profundo que seria

preciso um esforço muito decidido para o aniquilar. Ninguém o

desejava. E certo que os Bárbaros não se inclinavam para a

civilização das cidades: a tendência que tinham para a agricultura e

para a caça, a antipatia que professavam pelo acanhado da rua e do

campo fechado são disso testemunho. Mas alguns tomaram gosto

pela vida urbana, sobretudo entre os Lombardos. Outros fundaram

aldeias de pequenos proprietários, a imagem das do Norte primitivo.

Por outro lado, a inércia das tradições agrícolas mediterrâneas

demorou o progresso inevitável do grande domínio e impediu muitas

vezes os camponeses de aproveitarem o despovoamento para

arredondar os seus campos.

Ainda hoje se encontra, aqui e além, o quadriculado regular dos

agrônomos romanos, desenhando os limites imutáveis que

contiveram inúmeras gerações de camponeses. E é com espanto que

se reconhece também, no coração de várias cidades modernas, que a

Idade Média despovoou e reconstruiu alternadamente, o

quadriculado mais cerrado dos urbanistas romanos. As cidades são

sempre menos conservadoras do que o campo e foram atingidas mais

Page 131: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

duramente. Mas a Igreja não se podia desinteressar delas, porque nas

cidades colocara o eixo das dioceses episcopais. Fez mais:

exatamente como a colonização romana quando se apoiara sobre os

municípios, a propagação da fé implicou a fundação de novas

dioceses, cuja sede central se tornou a origem de uma cidade

localizada em territórios que nunca as haviam conhecido. Também o

comércio, embora enfraquecido, agüentou vários núcleos urbanos e

criou muitas vezes outros novos. Apesar da sua decadência física e

moral, as cidades da era bárbara continuaram, portanto a

desempenhar um papel não de desprezar.

Revolução sem abalos: chegada da servidão

Tenhamos cuidado em não menosprezar estas sobrevivências que

transmitiram à Europa medieval fagulhas da grande luz clássica. Mas

a época bárbara conta mais por aquilo que transformou do que por

aquilo que conservou. Se nenhuma das transformações veio

embelezar a face do mundo, mais do que uma preparou o terreno

para dias melhores. Aquela que toca de perto o maior número – o

desenvolvimento da servidão – realizou-se quase sem abalos, por uma

miríade de fraquezas ou de iniciativas privadas, sancionadas de

tempos a tempos por uma medida legislativa. Como a maior parte

das revoluções da Alta Idade Média, esboçou-se muito antes do fim

do Império e só atingiu o termo na época dos Carolíngios; no entanto

o seu progresso, quase ignorado pelas fontes, preenche a história das

multidões desconhecidas do período bárbaro. Pouco a pouco, os

homens livres das classes inferiores e a maioria dos escravos

fundiram-se numa classe nova: os servos.

Se só ao de leve mencionamos os escravos da Roma antiga é que a

historiografia quase não se ocupa dos animais domésticos. Ora, leis e

costumes da Antiguidade classificavam os escravos com o gado. Este

princípio não era invalidado nem sequer minorado pelo fato de

algumas almas meigas se afeiçoarem por um “bicho” favorito ou de

almas nobres se devotarem a proteger os animais falantes contra a

crueldade dos donos. A natureza oferecia, contudo aos escravos um

Page 132: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

remédio inacessível ao cão de luxo ou ao cavalo de corrida; podiam

ser libertos e reivindicar a qualidade de homens, de cidadãos,

“porque, segundo o direito natural, todos os homens são iguais”. O

direito civil clássico, com o seu espírito lúcido, não admite quaisquer

condições intermédias entre escravidão e liberdade, nem tonalidades

no seio destas categorias. Mas já o direito da Roma decadente dis-

tingue vários subgrupos, tais como os “poderosos” e os “humildes”

entre os cidadãos, os “idôneos” e os “rústicos” entre os escravos. O

direito dos Bárbaros e o da Igreja viriam multiplicar estes escalões;

só o mais alto assegurava a totalidade dos privilégios; o mais baixo

impunha a servidão total, enquanto os outros percorriam todos os

graus imagináveis de semiliberdade e de semi-servidão. Por último,

destes limbos do pensamento jurídico saiu a figura do servo, adscrito

ao solo ou ligado ao seu senhor por obrigações indignas de um

homem livre, mas livre (ou quase) nas relações com terceiros.

Esta evolução legal não deve talvez muito às transformações do

pensamento religioso e político com as quais se tem querido muitas

vezes ligá-la. Não há dúvida de que a Igreja veio insistir nas

afirmações dos filósofos pagãos quanto à igualdade natural de todos

os homens, mas não sonhou, mais do que eles, em deitar por terra a

instituição imperfeita que parecia indispensável neste mundo

imperfeito. Por um lado, recomenda que não se maltratem os

escravos e louva os fiéis que, levados por uma caridade excepcional

ou pelo desprezo das riquezas, vão ao ponto de libertá-los. Mas, por

outro lado, opôs-se muitas vezes a que eclesiásticos utópicos ou

pródigos comprometessem a estabilidade econômica de uma casa

religiosa, emancipando os seus escravos. Aliás, à defesa, por razões

religiosas, da igualdade humana contra o sistema medieval de escra-

vidão e servidão não poderíamos pedir eficácia maior do que viriam a

ter os protestos contra o racismo moderno, quaisquer que fossem a

sinceridade e o poder de convencer dos seus paladinos. Quanto aos

Bárbaros, se julgaram vantajoso deixar uma vaga semi-liberdade,

compatível com a imprecisão dos seus costumes, às nações vencidas

que seria pouco prático reduzir à escravidão coletiva, não foi

certamente por respeito da igualdade natural dos homens. Todos os

Page 133: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

povos bárbaros possuíam já escravos antes das migrações.

Continuaram a recrutá-las depois da conquista e pelos mesmos meios

que Roma: nascimento, guerra, tráfico, condenações penais, dívidas,

compra de filhos aos pais e, às vezes, consenso voluntário.

Avanço dos escravos, recuo dos homens livres

Somente - e aí reside a explicação fundamental da evolução jurídica

- a crise demográfica atingiu os não-livres ainda mais duramente do

que os outros. Como já se observou o rebanho humano é o mais deli-

cado, o que se reproduz mais dificilmente. Desde o primeiro século

do Império que se levantavam queixas quanto à sua insuficiência;

apesar de subidas temporárias, o declínio numérico dos escravos

tornou-se cada vez mais grave durante a decadência romana e a era

bárbara. Um rebanho que diminui deve ser poupado. Foi preciso

melhorar o tratamento do escravo, conceder-lhe uma quase

capacidade jurídica, encorajá-lo a constituir família fornecendo-lhe

uma casa rústica (casa) e assegurando-lhe a perpetuidade da gleba

que cultivava. Se era artífice, fixava-se-lhe o salário e conferia-se-

lhe proteção legal bem definida. Eram apenas expedientes de

criadores de gado ameaçados nos seus bens, mas as “bestas”

aproveitaram-nos, com grande vantagem para aquilo a que

chamamos civilização.

Se os ganhos dos escravos poderiam levar a crer num certo progresso

dos sentimentos humanitários, para nos desenganar bastaria que nos

debruçássemos sobre a sorte dos homens livres. Com exceção da

classe dominante e de uma classe média cada vez mais exígua, foram

escorregando, de degrau em degrau, até ao ponto em que o

camponês (colonus) se tornou igual ao escravo provido de casa

(servus casatus), e o nascimento livre nada acrescentou às vantagens

do artífice.

Na raiz destes males, como na da fortuna dos escravos, encontramos

a crise demográfica. Vimos que, quando o Império teve de exigir

sacrifícios crescentes em impostos e em corvéias a uma população

Page 134: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

decrescente, aplicou aos corpos de ofícios, às comunidades aldeãs e

a outros agrupamentos, o princípio da responsabilidade solidária. Os

vivos e os que podiam pagar ficaram com o fardo de se desobrigar

em vez dos que desapareciam e dos insolventes. O trabalho deixou

de ser uma profissão livremente escolhida para se converter em

officium, em cargo público irrevogável. Quem não queria carregar

com o fardo tinha a possibilidade de se “encomendar” a um

poderoso, isto é, de lhe subordinar a liberdade (a plena propriedade

dos bens e o direito de trabalhar para outros além dele) a troco da

transferência das responsabilidades.

Mas seria esta verdadeiramente uma salvação? O poderoso, premido

pelo fisco e ainda mais pela falta de mão-de-obra, só restituía aos

encomendados bens e iniciativa em troca de obrigações pouco menos

pesadas do que aquelas a que fugiam.

A era bárbara prosseguiu nesta evolução. Vimos que o Estado se tor-

nou menos exigente, mas mais fraco, em proveito exclusivo dos

poderosos. Já não bastava ser rico para permanecer independente;

era preciso estar bem armado. A maioria dos homens livres que não

se tinham ainda “encomendado” viram-se entregues à arbitrariedade

de um senhor. A pouco e pouco, mesmo a recordação da antiga

liberdade se perdeu: os corpos de oficias e as comunidades aldeãs

converteram-se em simples equipes servas, e as leis puniram como

“sediciosas” as raras tentativas dos desclassificados livres para forçar

a mão aos senhores. Seja dito que esses entes semi-livres, à maneira

dos semi-escravos, encontraram certa proteção no fato de a raridade

da mão-de-obra obrigar todo o administrador cuidadoso a tratá-los

bem.

Falência ou promessa?

Seguramente que a era bárbara não foi no todo e em toda a parte

Império das trevas. Basta que nos situemos no ponto de vista da

Alemanha, em vez de conservar os olhos fixos no mundo greco-

romano, para que a relação entre Antiguidade e Alta Idade Média se

Page 135: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

ponha ao contrário.

Para os Germanos, os primeiros séculos da Idade Média marcaram a

ruptura das barreiras que, durante a Antiguidade, os tinham mantido

à margem dos grandes focos da civilização mediterrânea e da religião

cristã, e haviam retardado os seus primeiros passos para uma vida

política estável e organizada. Os Romanos, esses, só aprenderam dos

Germanos técnicas secundárias como o uso dos esquis e o fabrico do

feltro. Contudo, entraram em contacto com uma sociedade que,

vivendo sob outro clima e noutro n1vel intelectual, tinha encontrado

soluções diferentes para certos problemas comuns. Algumas dessas

soluções continham gérmenes que, embora não pudessem produzir

grande coisa na Europa estéril da era bárbara, haviam de frutificar

na aurora européia da Baixa Idade Média. Disso falaremos a seu

tempo.

Em suma, as invasões deram o golpe de misericórdia a uma cultura

que se petrificara depois de haver atingido o apogeu, e que parecia

condenada a morrer. Pensa-se nesses cruéis bombardeamentos da

nossa época que, destruindo velhos e abalados edifícios, tornaram

possível a reconstrução de um bairro segundo critérios mais

modernos. Mas se nos lembrarmos de que a reconstrução, depois da

avalanche dos Bárbaros, se fez esperar quatro ou cinco séculos,

hesitaremos em conceder a honra aos responsáveis pela destruição.

A voz de Pangloss[1] sopra-nos ao ouvido que, se a civilização antiga

não tivesse sido expulsa do seu belo castelo a grandes pontapés, a

civilização moderna não teria podido florescer. Que se teria passado,

na verdade, se o castelo não tivesse sido abandonado? Para esboçar

uma resposta, voltemo-nos para a ala que não mudou de proprietário

– o Império Bizantino.

Comentário sobre o texto, por Mayte Vieira

[

Page 136: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

De uma forma detalhada, pontual e com linguagem simples, Robert

S. Lopez, apresenta o mapeamento do nascimento da Europa. Com

suas origens na decadência de Roma, período da Antiguidade Tardia,

que descreve ponto a ponto, com cada uma de suas mudanças e suas

conseqüências no mundo e na sociedade romana.

Segundo o autor, estas modificações não ocorrem somente em

Roma, às margens do mar Mediterrâneo, mas também em toda a

Asia. Ele traça um paralelo entre Roma e China, buscando

apresentar as semelhanças entre as duas civilizações neste mesmo

período. Ambas lutam contra invasões bárbaras externas, mudanças

de costumes, mudanças religiosas, mudanças que alteram todo o seu

quadro social e cultural.

Quanto ao declínio e a “queda” do Império Romano, são analisadas

todos os fatos que levaram, em conjunto, a ruína de todo o sistema.

As influências bárbaras nas fronteiras, a crise das cidades, as

tensões novas geradas com o cristianismo, o absolutismo e ao mesmo

tempo, a fraqueza dos imperadores, as altas taxações de impostos,

a agricultura arcaica somente para subsistência, o preconceito

cultural com o comércio e os trabalhos manuais, as tensões internas

causadas com as pressões externas das invasões bárbaras, as

mudanças impostas pelos novos governantes bárbaros, a perda da

identidade cultural e social romana, que passou a uma mescla com a

germânica.

Um quadro sombrio de todas as modificações que, juntas – o autor

nos mostra que não foram problemas isolados, mas toda uma

associação deles que colaborou para a decadência romana –

modificaram toda uma civilização e prepararam o caminho para o

nascimento da Europa e do sistema feudal.

[1] O preceptor de Candide, no romance de Voltaire, ensina que "as

coisas não podem ser diferentes do que são: como tudo é feito para

[

Page 137: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

um fim, tudo existe necessàriamente para o melhor fim.” Através do

seu otimismo que nenhum desastre desmente (tudo vai pelo melhor

no melhor dos mundos possíveis) é a filosofia de Leibniz que o

pensador francês pretende atingir. (V. M. G.)

Por LOPEZ, R. O Nascimento da Europa. Lisboa: Cosmos, 1979.

As Invasões Bárbaras pelos cronistas da Época

LAMENTAÇÕES DE S. JERÓNIMO SOBRE O SAQUE DE ROMA (410)

«Quem acreditaria que Roma, edificada pelas vitórias sobre todo o

universo, viesse a cair (1); que tivesse sido simultâneamente a mãe

das nações e o seu sepulcro; que as costas do Oriente, do Egipto e da

África, outrora pertencentes à cidade dominadora, fossem ocupadas

pelas hastes dos seus servos e servas; que em cada qia a santa Belém

(2) recebesse como mendigos pessoas de um e outro sexo que haviam

sido nobres e possuidoras de grandes riquezas?»

(S. Eusebii Hieronymi, Commentariorum in Ezechielem Prophetam,

lib. iii, in J. P. Migne, Patrologiae Cursus Completus, Series Latina, t.

xxv, Paris, 1884, col. 75.]

(1) S. Jeronimo refere-se ao saque de Roma pelos Visigodos em 410.

(2) Tendo morrido o papa Dâmaso I e sido eleito o papa Sirício (384),

adversário de S. Jeronimo, este, que havia passado três anos em

Roma, retirou-se para Belém na Palestina, onde edificou um

convento e um hospício.

1. AS GRANDES INVASÕES DOS SÉCULOS IV E V

QUANDO, no fim do século IV, nas regiões do mar Negro, os Hunos se

precipitaram sobre os Godos, desencadeou-se a primeira grande

invasão, a qual lançou sobre o Império Romano, ainda intacto, uma

avalanche de povos de raças e proveniências variadas.

Se os Alanos e sobretudo os Hunos causaram grandes devastações na

sua rápida investida, a importância política desta passagem foi, no

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entanto, quase nula. Perdendo a unidade, ambos os povos se

fundiram com as populações locais, passando a desempenhar um

papel secundário.

Outro tanto se não pode dizer dos Gados, que, deixando o local onde

estacionavam no vale do Dniepre, vieram a fundar no seio da

romanidade estados duradouros e com certa originalidade cultural.

Como repercussão destas grandes migrações vindas do Oriente,

outras tribos, abandonando a Germânia, irromperam no Império. De

entre estas, os Vândalos, os Suevos e os Burgúndios conseguiram

fundar reinos autónomos, cuja independência foi todavia de curta

duração.

O ASPECTOS E OS COSTUMES DOS HUNOS

Para um romano civilizado como Amiano Marcelino (c. 330-391) os

Hunos revelavam-se de um primitivismo difícil de conceber e

ameaçador.

[ ... ] O povo dos Hunos, pouco conhecido pelos antigos

monumentos, vivendo por trás da lago Meótis.(1), perto do oceano

Glacial, excede todos os modos de ferocidade. [ ... ]

Todos eles têm membros completos e firmes, pescoços grossos, e são

tão prodigiosamente disformes e feios que os poderíamos tomar por

animais bípedes ou pelos toros desbastados em figuras que se usam

nos lados das pontes.

Tendo porém o aspecto de homens, embora desagradáveis, são rudes

no seu modo de vida, de tal maneira que não têm necessidade nem

de fogo nem de comida saborosa; comem as raízes das plantas

selvagens e a carne semicrua de qualquer espécie de animal que

colocam entre as suas coxas e os dorsos dos cavalos para as aquecer

um pouco.

Vestem-se com tecidos de linho ou com as peles de ratos-silvestres

Page 139: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

cozidas umas às outras, e esta veste serve tanto para uso doméstico

como de fora. Mas uma vez que meteram o pescoço numa túnica

desbotada, não a tiram ou mudam até que pelo uso quotidiano se

faça em tiras e caia aos pedaços.

Cobrem as cabeças com barretes redondos e protegem as pernas

hirsutas com peles de cabra; os seus sapatos não têm forma nenhuma

e por isso impedem-nos de caminhar livremente. Por esta razão não

estão nada adaptados a lutas pedestres, vivendo quase fixados aos

cavalos, que são fortes, mas disformes e por vezes sentam-se à

amazona e assim exercitam as suas tarefas habituais. É nos seus

cavalos que de dia e de noite aqueles que vivem nesta nação

compram e vendem, comem e bebem e, inclinados sobre o estreito

pescoço do animal, descansam num sono tão profundo que pode ser

acompanhado de sonhos variados.

Ninguém entre eles lavra a terra ou toca num arado. Todos vivem

sem um lugar fixo, sem lar nem lei ou uma forma de vida

estabilizada, parecendo sempre fugitivos nos carros onde habitam; aí

as mulheres lhes tecem as horríveis vestimentas, aí elas coabitam

com os seus maridos, dão à luz os filhos e criam as crianças até à

puberdade. Nenhum deles se for interrogado poderá dizer donde é

natural,. porque, concebido num lugar, nasceu já noutro ponto e foi

educado ainda mais longe.

[Ammianus Marcellinus. com trad. inglesa de John C. Rolfe, liv. XXXI

2, 1 a 11, Harvard University Press, 1939, pp. 381 a 387.] ,

1. Mar de Azov

CARACTERISTICAS DOS ALANOS

Como em relação aos Hunos, o nomadismo e o espírito guerreiro dos

Alanos foram as características que mais impressionaram o autor

romano Amiano Marcelino (c. 330-391).

Page 140: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

Quase todos os Alanos são altos e formosos, com os cabelos quase

louros, um olhar terrível e perturbado , ligeiros e velozes no uso das

armas. Em tudo são semelhantes aos Hunos, mas na maneira de viver

e nos costumes, menos selvagens. Roubando e caçando, andam de

um lado para o outro, até sítios tão distantes como a lagoa Meótis (1)

e o Bósforo Cimério (2) e também até à Arménia e Média.

Assim como para os homens sossegados e plácidos o repouso é

agradável, assim eles encontram prazer no perigo ena guerra: É

considerado feliz aquele que sacrificou a sua vida na batalha,

enquanto que àqueles que envelheceram e deixaram o mundo por

uma morte fortuita atacam com terríveis censuras de degenerados e

cobardes; e não existe nada de que mais se orgulhem do que de

matar um homem, qualquer que ele seja: como glorioso despojo do

assassinato, cortam-lhe a cabeça, arrancam-lhe a pele e colocam-na

sobre os seus cavalos de guerra como jaez.

Não se vê entre eles nem um templo, nem um lugar sagrado, nem

mesmo se pode discernir um tugúrio com um tecto de colmo, mas

com um ritual bárbaro enterram no chão uma espada desembainhada

e adoram-na reverentemente, como ao seu Marte, a divindade

principal destas terras por onde vagueiam.

Ignoram o que seja a servidão, tendo nascido todos de sangue nobre,

e mesmo agora escolhem como chefes aqueles que se distinguem na

experiência quotidiana da guerra.

[Ammianus Marcellinus, com trad. inglesa de John C. Rolfe, Iiv. XXXI,

2, 17 a 25, Harvard University Press, 1939, pp. 390 a 395.]

1. mar de azov.

2. atual estreito de kertch, ligando o mar negro ao mar de azov.

A INSTALAÇÃO DOS VISIGODOS NO IMPÉRIO (SÉCULO IV)

O historiador godo Jordanes (século VI) relata-nos a razão da

Page 141: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

entrada dos Visigodos em terras romanas (376) e da sua conversão

ao arianismo.

Os Visigodos, ou seja aqueles outros aliados e cultivadores do solo

ocupado, estavam aterrados [como o haviam estado os seus]

parentes e não sabiam que fazer, por causa do povo dos Hunos.

Porém, depois de longas deliberações, de comum acordo, enviaram

embaixadores à România, ao imperador Valente (1), irmão de

Valentiniano I (2), o imperador mais velho, para dizer que se ele lhes

desse, a fim de a cultivarem, uma parte da Trácia (3) ou da Mésia

(4), se submeteriam às suas leis e decisões. Para que pudesse ter

maior confiança neles, prometeram tornar-se cristãos, se lhes

dessem professores [que falassem] a sua língua.

Quando Valente ouviu isto, concedeu alegre e prontamente o que ele

próprio havia tencionado pedir. Recebeu os Getas (5) na região da

Mésia e colocou-os aí como uma muralha [de defesa] para o seu reino

contra outras tribos (6). E como naquele tempo o imperador Valente,

contaminado pela perfídia ariana, tivesse fechado todas as igrejas do

nosso partido, enviou-lhes como pregadores os que favoreciam a sua

seita (7). Eles foram e imediatamente infundiram nesse povo rude e

ignorante o veneno da sua perfídia. Assim os Visigodos foram feitos,

pelo imperador Valente, arianos em vez de cristãos. Além disto, por

afeição, pregaram o Evangelho tanto aos Ostrogodos como aos seus

parentes Gépidas, ensinando-os a reverenciar esta perfídia, e

convidaram todos o povos da sua língua, de onde quer que fossem, a

ligarem-se à mesma seita. Eles próprios, como dissemos,

atravessaram o Danúbio e estabeleceram-se na Dácia Ripense (8), na

Mésia e na Trácia, com autorização do príncipe.

Em breve a fome e a indigência caiu sobre eles, como muitas vezes

acontece a um povo que ainda não está bem estabelecido numa

região.· [Os abusos e as traições dos chefes romanos provocaram

uma revolta dos Godos, que acabaram por dominar a situação.] [ ... ]

Assim este dia pôs fim à fome dos Godos e à segurança dos Romanos,

porque os Godos, não mais como estrangeiros e peregrinos, mas sim

Page 142: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

como cidadãos e senhores, começaram a governar os habitantes e a

dominar, sob o seu próprio senhorio, todas as regiões do Norte até ao

Danúbio.

Quando o imperador Valente soube disto em Antioquia, aprestou

imediatamente um exército e partiu para a região da Trácia. Aí deu-

se uma terrível batalha (9) e os Godos venceram. O próprio

imperador ficou ferido e fugiu para uma herdade perto de

Hadrianópolis (10). Os Godos, não sabendo que um imperador estava

escondido numa tão pobre cabana, lançaram-lhe fogo (como é

habitual proceder com um inimigo cruel), e assim ele foi cremado

em esplendor real. [...]

[Jordanes, Romana et Getica, in Monumenta Germaniae Historica-

Auctorum Antiquissimorum, t. v, pars prior, Berlim, 1882, p. 92.]

(1) Imperador do Oriente de 364 a 378. (2) Imperador do Ocidente de

364 a 375. (3) Na actual Bulgária. (4) Na actual Bulgária. (5) Jordanes

confunde os Getas, povo da Trácia com os Godos. (6) Em 376. (7) Na

realidade a arianização dos Visigodos iniciara-se alguns anos antes,

mercê da pregação do bispo godo Ulfila. (8) Ainda na actual Bulgária.

(9) A batalha de Andrinopla (9 de Agosto de 378). (10) Ou Andrinopla.

Ê hoje a cidade turca de Edime.

O SAQUE DE ROMA POR ALARICO (410) E AS INCURSÕES BÁRBARAS NA

GÁLIA E NA ESPANHA

Em 410, Roma foi pela primeira vez saqueada por povos germanos,

os Visigodos, chefiados por Alarico. Se materialmente os estragos

não foram desmedidos, o acontecimento foi no entanto

profundamente sentido pelos Romanos. Pela mesma época, outras

hordas bárbaras atravessaram a Gália e a Península Ibérica. O texto

que se segue é de um contemporâneo destes acontecimentos, Paulo

Orósio.

E assim, no ano 1164 depois da fundação da cidade (1), foi-lhe feito

Page 143: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

um ataque por Alarico (2): embora a memória deste facto ainda seja

recente, nenhuma pessoa que veja a multidão dos Romanos e que os

oiça falar admitirá, como eles próprios dizem, que alguma coisa

tenha acontecido, .salvo se, por acaso, tomar conhecimento do fogo

pelas ruínas que ainda existem. Nesta invasão, Placídia, filha do

príncipe Teodósio (3) e irmã dos imperadores Arcádio (4) e Honório

(5), foi capturada e tomada como mulher por Ataulfo (6), parente de

Alarico, como se, de.vido a um juízo divino, Roma a tivesse entregue

à maneira de refém e penhor especial. Com efeito, unida pelo

casamento ao mais poderoso rei bárbaro, ela foi de grande utilidade

para a república. Entretanto, dois anos antes do ataque a Roma,

excitados por Estilicão (7), como já disse, os povos dos Alanos, dos

Suevos, dos Vândalos, e muitos outros com eles, esmagaram os

Francos, atravessaram o Reno, invadiram as Gálias e com um rápido

ímpeto chegaram até aos Pirenéus: retidos durante um tempo par

esta barreira, disseminaram-se pelas províncias vizinhas (8).

[Pauli Orosii, Historiarum adversus Paganos. in J. P. Migne,

Patrologiae Cursus Completus, Series Prima. t. XXXI, Paris, 1846,

cols. 1166-1167.]

(1) Em 410. O saque durou apenas três dias: de 24 a 27 de Agosto. (2)

Governou os Visigodos até à sua morte, em 410. (3) O imperador

Teod6sio I (379-395). (4) Imperador do Oriente (395-408). (5)

Imperador do Ocidente (395-423). (6) Governou os Godos de 410 a

415. (7) General de origem vândala, que serviu o imperador Honorio

na luta contra às incursões germanas e foi pelo mesmo imperador

mandado assassinar em 408. (8) A invasão da Espanha deu-se no final

de 409.

A INVASÃO DA PENÍNSULA IBÉRICA PELOS VÂNDALOS, ALANOS E

SUEVOS

A Península Ibérica, desarmada e enfraquecida por lutas internas,

não ofereceu qualquer resistência aos bárbaros que a invadiram.

Page 144: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

Muito ràpidamente os invasores dividiram entre si as terras

conquistadas. Santo Isidoro de Sevilha (c. 560-636) relata-nos esse

episódio.

Na era de 446 (1), os Vândalos, os Alanos e os Suevos ocuparam a

Espanha, mataram e destruíram muitos nas suas sangrentas

incursões, incendiaram cidades e saquearam as propriedades

assaltadas, de forma que a carne humana era devorada pelo povo na

violência da fome. As mães comiam os filhos; e também os animais,

que se haviam acostumado aos cadáveres dos que morriam pela

espada, de fome ou de peste, eram mesmo levados a destroçar os

vivos; desta maneira quatro pragas dizimaram toda a Espanha, sendo

cumprida a predição divina que há muito tinha sido escrita pelos

profetas.

Na era de 449 (2), depois da terrível devastação das pragas pela qual

a Espanha foi destruída, os Bárbaros, decididos finalmente pela graça

de Deus a fazer a paz, sortearam as províncias para as ocupar. Os

Vândalos (3) e os Suevos ocuparam a Galécia(4); os Alanos, a

província da Lusitânia(5) e a Cartaginense (6); porém os Vândalos,

cognominados Silingos, abandonada a Galécia e depois de terem

devastado as ilhas da província Tarraconense (7), voltando a trás

tiraram à sorte a Bética (8). [ ... ]

[Sancti Isidori, Hispalensis Episcopi, Historia de Regibus Gothorum.

Wandalorum et Suevorum. in J. P. Migne, Patrologiae Cursus

Completus. Series Latina, t. LXXXIII, Paris, 1862, cols. 1076 e 1077].

1) Era de César, ou Hispânica, correspondente a 408 da Era Cristã.

(2) Em 411. (3) O grupo dos vândalos Asdingos. (4) Ou seja, a actual

Galiza espanhola e o território português até ao rio Douro. (5) Grosso

modo correspondente ao território português. (6) Abrangendo uma

grande parte do Centro e Sueste da actual Espanha. (7) Norte e

Nordeste da Espanha. (8) Correspondente à actual Andaluzia

espanhola.

Page 145: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

Depois de uma estadia de vinte anos em Espanha, os Vândalos

(divididos em dois grupos, Asdingos e Silingos), perseguidos pelos

Visigodos, que lhes haviam cortado a retirada. por terra,

atravessaram o Mediterrâneo e ocuparam parte da província da

África, única do Ocidente até então poupada às incursões germanas.

É de Santo Isidoro de Sevilha (c. 560-636) o texto que se transcreve.

Na era de 467 (1) Genserico, irmão de Gunderico, sucedeu-lhe no

reino por quarenta anos. Este, que de católico se havia tornado

apóstata, foi o primeiro levado a transitar para a perfídia ariana.

Tendo abandonado a Espanha, atravessou com todos os vândalos e as

suas famílias (2), desde o litoral da província da Bética até à

Mauritânia e África. Valentiniano Júnior (3), imperador do Ocidente,

não se lhe podendo opor, fez a paz (4) e concedeu pacificamente a

parte da África que os Vândalos possuíam, aceites por um juramento

as condições de que nada mais invadiriam. [Genserico] porém, sobre

cuja amizade ninguém duvidava, profanada a inviolabilidade do

juramento, invadiu Cartago (5) com o engano da paz e transferiu em

seu próprio proveito todos os poderes depois de ter afligido os

cidadãos com diversos géneros de tormentos. Em seguida devastou a

Sicília (6), cercou Panormo (7), introduziu a pestilença ariana por

toda a África, afastou os sacerdotes das igrejas, fez muitos mártires

e, de acordo com a profecia de Daniel.

transmutados os mistérios, entregou as igrejas dos santos aos

inimigos de Cristo. [ ... ]

[ ... ] Genserico, nãó' contente com as devastações da terra de

África, passou a Roma (8), transportado por navios, destruiu os bens

dos Romanos durante catorze dias e trouxe consigo a viúva de

Valentiniano, as suas filhas e muitas mulheres de cativos; e pedida a

paz, por meio de enviados, ao imperador (9), remeteu a viúva de

Valentiniano para Constantinopla e uniu pelo matrimónio uma das

filhas [de Valentiniano] com o seu filho Huguerico.

[Sancti Isidori, Hispalensis Episcopi, Historia de Regibus Gothorum,

Wandalorum et Suevorum, in J. P. Migne, Patrologiae Cursus

Completus, Series Latina, t. LXXXIII, Paris, 1862, cols. 1077 e 1078.]

Page 146: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

(1) 429. (2) Nesta migração (429) parece terem-se incluido tanto

Vândalos Asdingos e Silingos como alguns alanos e hispano-romanos.

(3) Valentiniano lU (423-455). (4) O acordo foi assmado em Bona a 11

de Fevereiro de 435. (5) Em Outubro de 439. (6) Em 440. (7) A actual

Palermo. (8) No ano 455. (9) O imperador do Oriente, Marciano (450-

457).

A QUEDA DO IMPÉRIO ROMANO DO OCIDENTE (476)

Com a deposição de Rómulo Augústulo em 476 pelo bárbaro

Odoacro, desapareceu o Império Romano do Ocidente. Jordanes

(século VI) narra-nos sinteticamente este episódio.

Oreste (1), tendo tomado o comando do exército, partiu de Roma ao

encontro dos inimigos e chegou a Ravena, onde parou para fazer

imperador seu filho Augústulo (2). [ ... ]

Porém, pouco depois de Augústulo ter sido estabelecido imperador

em Ravena, por seu pai Oreste, Odoacro, rei dos Turcilingos (3),

tendo consigo ciros (4), hérulos (5) e auxiliares de diversas tribos,

ocupou a Itália. Oreste foi morto e o seu filho Augústulo expulso do

reino e condenado à pena de exílio no Castelo Luculano, na

Campânia.

Assim, o Império do Ocidente do povo romano, que o primeiro dos

Augustos, Octaviano Augusto, tinha começado a dirigir no ano 709 da

fundação da cidade de Roma, pereceu com este Augústulo no ano

quinhentos e vinte e dois (6) do reinado dos seus antecessores e

predecessores. Desde aí Roma e a Itália são governadas pelos reis dos

Godos.

Entretanto, dominada toda a Itália, Odoacro rei destas tribos, para

estabelecer o terror entre os Romanos, matou no início do seu

reinado o conde Bracila junto de Ravena e conseguiu dominar o seu

reino durante quase treze anos, até ao aparecimento de Teodorico,

por quem subsequentemente temos sido dirigidos.

Page 147: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

[Jordanes, Romana et Getica in Monumenta Germaniae Historica

Auctorum Antiquissimorum, t. v, pars prior, Berlim, 1882, pp. 119-

120.]

(1) Romano nascido na Panónia, foi secretário do rei huno Átila. (2)

Rómulo Augústulo, imperador de 475 a 476. (3) Odoacro,

possivelmente um rúgio (lat. Rugii), tornou-se chefe dos exércitos

mercenários no Norte da Itália. Se alguns autores o cognominaram

Rei dos Rúgios, outros chamam-lhe Príncipe dos Ciros. Os Turcilingos

são um povo de origem obscura, arrastado para ocidente pela

invasão huna. (4) Ou esciros (lat. Scri), tribo germânica do Baixo

Vístula. (5) Os Hérulos (lat. Aeruli), outra tribo germânica que surgiu

à luz da História no século III, na região ao norte do mar Negro, junto

do Dniestre. (6) Rómulo Augústulo foi deposto em 4 de Setembro de

476.

por Espinosa, F. Antologia de textos históricos medievais, Lisboa, Sá

da Costa, 1972

A Crise política no Século 3

O poder do imperador romano, não obstante ser um dos mais

absolutos que o mundo jamais conheceu, não era de essência

monárquica. O príncipe não é todo-poderoso por ser tido como

descendendo dos deuses, tal como sucede no caso dos monarcas do

Oriente e dos reis de certos povos germânicos. É todo-poderoso

porque encarna na sua pessoa a Respublica, a autoridade do povo

romano, a qual é absoluta. O seu poder não é, pois, um poder de

índole pessoal, e ainda menos de ordem hereditária, é, sim, uma

delegação.

O poder baseia-se, antes de mais, nas forças armadas. O imperador é

quem detém, por delegação, o comando do exército, comando esse

de carácter absoluto como todo o verdadeiro comando. A este

comando chama-se imperium. Durante o período republicano,

inúmeros personagens vieram a deter o imperium, sendo então

Page 148: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

investidos no cargo de generais-em-chefe, de procônsules. Tais per-

sonagens vieram a ser imperatores, nas só. durante o tempo de dura-

ção de uma campanha; um dia apos o triunfo, esse poder absoluto

expirava. A institucionalização do Império constituía em limitar a um

só o número de pessoas ao qual era conferido o imperium, e em lhe

conferir uma tal dignidade para toda a vida.

Na sua essência, o império não deixa de ser igualmente uma

magistratura. A idéia da soberania do Estado continua teoricamente

a planar sobre o imperador, encarnação da Respublica. E se este

recebe o título de Augusto, isto é, de santo, de sagrado, tal é, sem

dúvida, por ele ser o símbolo vivo da Dea Roma. Aquando da sua

morte, decide-se se deve ou não ser deificado, ou, diríamos nós,

santificado, se o seu numen ou génio irá ou não receber as honras

divinas.

Será que o imperium proconsular não possui mais do que este

aspecto militar? Ou será que também reveste uma faceta civil,

judicial? Tal aspecto é ainda, hoje em dia, objecto de discussão.

Parece evidente que o imperium, ainda que constituindo o elemento

estável, sólido, do poder do príncipe, não bastava para conferir à sua

autoridade uma real plenitude jurídica, pela boa razão de que o

poder proconsular só pode exercer-se fora de Roma (até Séptimo

Severo) e da Itália. Assim, o imperador auto-investe-se do poder

tribUnicio em vida, o qual lhe confere o direito de intercersio ou de

protecção global do povo romano, tornando a sua pessoa sagrada,

inviolável. Mas só vem a tomá-lo após o precedente, pois este é,

verosimilmente, fundamental.

Em torno deste núcleo, foi possível virem a congregar-se outras

funções: o imperador é pontifex maximus, censor, princeps senatus;

e detém ainda, de quando em quando, o consulado, se bem que tais

títulos não lhe proporcionem qualquer aumento considerável de

poder. Talvez a partir de Vespasiano, o conjunto dos direitos, de que

o fasces representava o poder imperial, passa a ser concedido em

bloco por um senatusconsulto, que é, ao mesmo tempo, uma lei (a

Page 149: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

lex regia) proclamada no campo de Marte. Esta lei confere o

imperium, mas de modo algum o poder tribunicio.

A magistratura imperial não tem por objecto substituir a república

pela realeza. Inicialmente, o império apresenta-se como um

expediente. Um poder ditatorial permanente, a fim de poder

solucionar as convulsões sociais e politicas que ameaçam a existência

da república romana, é confiado ao primeiro cidadão do Estado: tal é

o significado de princeps. Mas os órgãos legais do Estado, o Senado e

os comidos, subsistem nos primeiros tempos do Império. O poder

legislativo não constitui um atributo exclusivo do imperador: ele

detém a iniciativa das leis, mas tal como qualquer outro magistrado,

e assim que as suas constituições, as suas acta, passarem a ter força

de lei, a sua base jurídica residirá provavelmente no poder tribunicio

de que está investido.

Por outro lado, na capital, o imperador também não dispõe, nos

inicios do principado, de verdadeiros funcionários de administração

central; até Adriano, vai ter de ir buscar ao seu núcleo de «amigos»

os elementos conscltutivos do conselho indispensável a qualquer

chefe de Estado.

Mas a antiga máquina subsiste. Tendo os comícios morrido de

velhice, a administração e as finanças, assim como a legislação,

vieram a concentrar-se nas mãos do Senado.

Se o conjunto do território tivesse continuado a ser governado por

este, o Império teria vindo a ser uma aristocracia, encabeçada por

um ditador militar. Na realidade, tal nunca veio a suceder. a papel

do imperador nunca cessou de aumentar a expensas do papel do

Senado. Na prática real dos factos, o imperador não só chamou a si o

comando do exército e o poder de decisão quanto à guerra e à paz,

como também veio a apoderar-se de todo o poder do Estado, criando

inclusive uma administração própria. De facto, logo desde o inicio, o

principe e o Senado repartiram entre si as diferentes provincias. A

fim de administrar aquelas que a si mesmo reservara, o imperador

Page 150: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

teve necessariamente de arranjar os seus governadores, as suas

finanças-(o seu fiscus oposição ao aerarium); e como era ele quem

dispunha da força, os seus abusos relativamente a todos os dominios

possuídos pelo Senado foram constantes.

Não iremos aqui voltar a traçar um esboço da evolução, lenta mas

continua, que veio a transformar o principado num regime

monárquico ou quase. No século III, uma tal evolução estava ainda

longe de ter terminado. Sob o principado de um jovem bastante

novo, Alexandre Severo (12 de Março de 222 - Fevereiro-Março de

235), o Senado parece estar em vias de retomar um papel de

primeiro plano adentro do Estado romano:

«Ele fornece o conselho de regência e secunda a imperatriz (mãe)

Mammora. Atingida a maioridade, Alexandre não toma qualquer

decisão sem ouvir a opinião do Senado; remete para este a escolha

dos seus principais funcionários, dos prefeitos do pretório e da

cidade, assim como dos governadores a destacar para as províncias

proconsulares; e pede-lhe ainda frequentemente que escolha

candidatos para as restantes provindas. Em Roma, põe à disposição

do prefeito uma comissão de catorze personagens consulares encar-

regadas de o ajudarem a prestar justiça e de repartirem entre si a

tarefa de vigiar cada um dos quarteirões da cidade. Concede aos

prefeitos do pretória a dignidade senatorial, a fim de que um

senador romano só possa ser julgado por um outro senador. Não

envia qualquer rescrito, não emite qualquer constituição sem antes

ter ouvido o seu conselho, onde predominam os senadores. É ele

próprio quem nomeia os cônsules, mas encarrega o Senado da sua

designação. Restringe a autoridade dos procuradores imperiais e

submete a sua eleição à aprovação popular; restabelece o aerarium a

par do fisco ... Nada vem perturbar este acordo entre os dois

poderes, reunidos no âmbito dessa nova forma de governo a que

Herodiano chama aristocracia (VI, I). “A idéia do império senatorial é

já quase uma realidade; alguns há que sonham mesmo em

restabelecer a República, e tais esperanças podem detecetar-se

inclusive nos discursos feitos por Dione Cássio a Mecenas e a

Page 151: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

Augusto”.

E é precisamente no termo deste reinado, com o assassinio de

Alexandre Severo e de sua mãe, que rebenta a tremenda crise que

esteve a ponto de levar à total desagregação do mundo romano e a

pôr, assim, termo à sua dvilização, a qual, nos principios do século

lil, era ainda tão notavelmente brilhante.

Vem, então, à luz do dia, sem quaisquer dissimulações, o vicio

fundamental do Império. a Império Romano, a despeito das apa-

rências, não possui uma constituição. Baseia-se apenas na força,

numa força bruta desencadeada pelos mais baixos desejos.

Este poder absoluto do primeiro cidadão, concentrando e resumindo

em si a majutas do povo romano, quem é que o confere? Não assenta

em qualquer base sólida, legal. Quem designava o ditador militar, o

imperador? O Senado, e sobretudo o exército, força guerreira do

povo romano, ao sabor das circunstâncias, na persecução de um

objectivo de interesse geral. Mas, mesmo após se ter dissociado do

povo romano, o exército continua a exercer uma acção

preponderante na escolha do senhor do Estado. Parece que o poder

do imperador só passa a usufruir de uma total plenitude legal quando

o princeps pôde obter ao mesmo tempo a concordância do exército e

a concordância do Senado. Mas a qual dos dois poderes cabe a

iniciativa legal? Ninguém o sabe. A designação pelo Senado seria mais

tranquilizadora, mas não é a mais legitima. Na realidade, é o

exército quem designa o imperador, pois é ele quem detém a força.

Por vezes, chegou a acontecer ter tomado a iniciativa de pedir ao

Senado para ser este a escolher, mas um tal pedido ocultou sempre

uma ordem ou uma armadilha.

Na época antiga da história de Roma, o exército é pouco numeroso,

formando um só corpo: pode acontecer que venha a designar

espontaneamente o homem de quem espera a salvação. Mas desde o

século I antes da nossa era, desde o nascimento da instituição do

exército permanente remunerado, já não há um exército, mas sim

Page 152: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

exércitos. O imperador é o chefe a quem obedecem e de quem

esperam a vitória e o saque. Quando há só um chefe, um só

imperador, o exército dispersa-se, passando as legiões (24, 30, 32,

etc.) a acampar nas diversas fronteiras do Império, junto ao Reno, ao

Danúbio ou ao Eufrates. Este afastamento de Roma e da Itália

começa por beneficiar a guarda imperial, inicialmente constituída

por nove e mais tarde por dez das coortes pretorianas aquarteladas

em Roma. Não obstante, a partir da segunda metade do século I é já

patente a participação das legiões fronteiriças na eleição do

imperador; e, desde os fins do século II, tal vem mesmo a ser de

regra, já que o predomínio dos pretorianos fora quebrado por

Séptimo Severo (I93-ZII).

Os motivos de intervenção do exército, ou melhor, dos exércitos, não

são dos mais altruístas: põem-se e depõem-se imperadores por

dinheiro ou por razões de amor-próprio. As legiões chegam, por

vezes, a apoiar um personagem militarmente incapaz quando este é

rico (Didius Julianus). Mais tarde; cansam-se dele e acabam por o

matar. E matam-no também no caso de o imperador ser demasiado

rígido com a disciplina. Matam por capricho, matam por prazer, ou

até mesmo, por vezes, por motivos já relativamente plausíveis, tal

como no caso de o eleito se revelar incapaz de vencer os Bárbaros.

Como é natural, estes exércitos lutam entre si, já que cada um deles

pretende impor o eleito da sua escolha. No século li, estes exércitos

já nem sequer precisam de ser excitados por ambiciosos. A sua

agitação parece ser espontânea; repentinamente. de um dia para o

outro, um dado exército decide dar o poder a pessoas que tremem

de medo em aceitá-la. No período de cerca de meio século posterior

à. morte de Alexandre Severo, ser eleito imperador é um trágico

destino. Os eleitos (tais como Gordiano, Decius, Satuminus, Tetticus)

aceitam o principado como quem aceita uma sentença de morte. A

doença que não cessou de acometer o mundo romano durante os dois

primeiros séculos do Império, e até mesmo após Macius e Sylla, vem

a eclodir num acesso de febre convulsiva. Já não há povo romano. O

Senado não passa de uma sombra; o representante da Respublica, o

chefe do Estado, déspota todo-poderoso e temível, torna-se no

Page 153: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

escravo submisso de um monstro de cem cabeças, qual Calibão sem

ideal, sem fé e sem lei: o exército dito «romano». E a história do

Império passa a ser, e sê-lo-á para todo o sempre, apenas uma série

ininterrupta de pronunciamentos militares.

O homem que atrasou em meio século a catástrofe, Séptimo Severo,

pôs de lado toda a hipocrisia; não se prestou a comédias, tal como os

seus predecessores. Consta que teria dado aos seus filhos, no seu

leito de morte, na Bretanha, o seguinte conselho: «Enriqueçam a

soldadesca e marimbem-se para o resto». Caracala veio a agir

conformemente a este conselho cínico.

Não nos seria possível voltar a traçar aqui um esboço da história do

período dito dos Trinta Tiranos. Eis apenas um quadro genérico do

Império na altura em que alguns soldados simples e rudes

conseguiram pôr um travão à anarquia reinante.

A indisciplina dos exércitos coincide com um aumento de actividade

dos Bárbaros junto às fronteiras do Reno e do Danúbio. Na Mésia, os

Gados franqueiam o Danúbio. O imperador Decius é vencido e morto

(Nov. de 251); e nem sequer foi possível encontrar o seu corpo. No

Oriente, o perigo é ainda mais grave. A velha monarquia dos Partos.

que por muito tempo fora funesta aos Gregos e aos Romanos,

acabava de se desmoronar. Um novo império persa veio a ser

instituído por Arquedir em ZZ6-227. Os Arsácidas tinham conservado

algo do helenismo; em matéria de religião, eram indiferentes. Com o

persa, vem a triunfar uma nova religião, o masdeismo, a qual é

sustentada e propagada por uma poderosa organização sacerdotal, a

dos magos.

Os Persas são autênticos fanáticos. Nos países conquistados, deitam

por terra todos os templos e impõem o masdeismo: assim aconteceu

na Arménia quando Sapor (Shapour) a subjugou. O parsismo é

incompativel com a cultura greco-latina. São duas civilizações em

confronto. O choque foi extremamente violento e desastroso para os

Romanos. O imperador Valeriano foi feito prisioneiro (260) pelo rei

Page 154: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

dos Persas, Sapor, o qual lhe teria infligido tratamentos dos mais

humilhantes, tal como servir-se do seu cativo como estribo para

montar a cavalo.Um baixo-relevo gigantesco, o de Nakesh-i-Roustem,

perto de Persépolis, mostra Valeriano de joelhos diante do rei persa,

a cavalo. Segundo afirma a lenda, aquando da morte do cativo, a sua

pele, depois de curtida, tingida de vermelho e empalhada, esteve

durante vários séculos dependurada num templo persa.

Galieno, filho e sucessor de Valeriano, foi incapaz de resgatar ou de

libertar o pai. Tudo o que pôde fazer foi entregar o comando das

forças militares, dando-lhe o titulo de dux e, mais tarde, de

imperator (mas não de Augusto), a Septimius Odenath, o qual, de

origem árabe, reinava como senhor todo-poderoso no oásis de

Palmira, a meio caminho entre a Siria e o Eufrates. Odenath

conseguiu vir a conter o inimigo com tropas sirias e árabes, equi-

padas à romana.

Este Galieno, sob cujo reinado trinta tiranos - na realidade, dezoito

competidores - vieram a dilacerar o Império, tem uma muito má

reputação. Mas não nos devemos esquecer de que só o conhecemos

através de um testemunho tardio e hostil, o do pretenso Trebonius

Pollion. Sucede que foi sob o seu principado que rebentaram as

revoltas que acabaram por vir a dividir o Império em vinte parcelas

distintas. Como estas foram simultâneas, Galieno só conseguiu

conservar a Itália. A Panónia elegeu sucessivamente Ingenuus,

Regalianus, Aureolus; o Egipto, Macrianus, Aemilianus; a Grécia,

Valens; a Tessália, Pison; a Isáuria, Trebolliamus; a Africa, Celsus. Os

Gálios obedeceram, durante cerca de vinte anos (257-274) a

imperadores privados, tais como Posthumus, Victorinus, Tetricus.

Existem em tal facto indícios de um particularismo, senão nacional,

pelo menos regional. Nenhum destes imperadores deseja realmente

separar-se de Roma, constituir um Estado à parte. Não se trata de

separatismo (excepto em Pai mira, sob o reinado de Zenóbia). Todos

ou quase todos combatem os Bárbaros, tal como no caso de

Posthumus, o qual, tendo derrotado os Francos, manda cunhar

Page 155: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

moedas com a inscrição: salus provinciarum. Mas, se uma tal

situação se tivesse mantido por longo tempo, o Império ter-se-ia

fragmentado em seis, oito ou dez parcelas. A cabeça de cada pro-

vincia ou grupo de provincias teria reinado um imperador demasiado

fraco para triunfar sobre os outros. Com o tempo, o particularismo

provincial teria acabado por vir a engendrar as nacionalidades. A

situação na segunda metade do século liI teria vindo a ser a dos

séculos V e VI. Só que, em vez dos reinos romano-germânicos dos

Ostrogodos na Itália, dos Visigodos na Espanha, dos Francos e dos

Burgúndios na Gália, ou dos Vândalos em Africa, teríamos tido

Estados de cultura romana, facto que talvez tivesse tido o seu

interesse, na condição de tais parcelas do Império terem estado à

altura de resistir à pressão das forças bárbaras. O aumento de uma

tal pressão, a partir do século III, é tão forte que as perdas da

Romania em prol do germanismo ter-se-iam revelado ainda mais

graves. Fosse como fosse, é a uma série de imperadores iliricos que

ficou a dever-se, em 274, a partir de Aureliano, o restabelecimento

da unidade imperial, a expulsão dos Bárbaros, o esmagamento do

particularismo oriental, gaulês, etc., assim como a ruína definitiva

do poder do Senado.

Infelizmente, este restabelecimento quase milagroso da unidade

imperial em nada alterou o vicio fundamental do Império. Pelo

contrário, o frenesi febril do exército vem a exasperar-se. Os

imperadores acabam todos por perecer às mãos dos seus próprios

soldados. Galieno, o qual tinha, contudo, conseguido proteger a

Itália contra os Alamanos, após ter derrubado diversos usurpadores e

reconquistado a Panónia, vem a ser morto por ser tido como

demasiado brando (268). Tácito, velho senador aceite pelo exército

apenas por ser rico, é morto ao fim de seis meses sob a acusação de

fraqueza: mas, na realidade, a verdade é que, como já não tem

nada, visto ter distribuído toda a sua fortuna pelos soldados, estes

optam por suprimi-la (275). Homens dos mais notáveis, velhos

soldados saldos das fieiras, tais como Aureliano e Probus, vêm a ser

assassinados pelos seus companheiros de armas a pretexto de serem

demasiado exigentes com a disciplina. Por maiores que tenham sido

Page 156: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

os serviços prestados ao Estado, ou ao próprio exército, isso em nada

conta. No dia seguinte, após o crime, é possível que os soldados

lamentem a loucura cometida, mas tal não os impede de recomeçar

na primeira ocasião.

É preciso descobrir qualquer coisa, seja o que for, desde que seja

diferente.

LOT, Ferdinand O Fim do Mundo Antigo e o princípio da Idade Média.

Lisboa: Ed.70, 1985 (original, 1926)

A Restauração do Mundo Romano

O grande mérito do novo eleito dos soldados, o dálmata Diocles, que

veio a mudar o nome para Diocletianus, denotando ser de origem

bastante humilde, consistiu em ter posto de lado toda a ficção.

Desde há vários séculos que o «povo romano» não era mais do que

um fantasma. Mas o Senado mantinha ainda uns restos do seu antigo

prestígio. A ilusão de uma república romana por si dirigida viera a

renascer no século III. Mas a história dos imperadores caros ao

Senado, como Alexandre Severo, os Gordianos, ou Tácito, pusera a

nu toda a impotência deste corpo decrépito. Diocleciano pô-lo

deliberadamente de lado: mesmo em relação à elaboração das leis e

dos regulamentos administrativos, este não mais voltou a ser

consultado. Mas aonde buscar então um apoio?

No dia seguinte ao da sua vitória sobre Carino (284), Diocleciano

compreendeu que, tal como vinha sucedendo aos seus predecessores

desde há quase meio século, não lhe seria possível conservar só para

si a totalidade do poder; sabia perfeitamente que doravante o

Império já não poderia continuar a ser dirigido por um só senhor. A

sabedoria recomendava-lhe, pois, que se adiantasse ao inevitável,

associando-se a um companheiro e escolhendo-o de modo a que mais

tarde não corresse o risco de este se vir a tornar num seu rival e

inimigo. Diocleciano optou por escolher um companheiro de armas,

Maximiano, ao qual o uniam laços de amizade. Este, homem rude e

Page 157: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

sem instrução, possuía pelo menos os talentos militares que parecem

ter faltado ao imperador, e respeitava em Diocleciano a

superioridade intelectual: consentiu, assim, em ser a força ao serviço

da inteligência. Os cognomes de Iovius e de Herculius oficialmente

adaptados pelos dois amigos, foram uma ostensiva manifestação da

existência deste conceito. E a escolha foi feliz: Hércules nunca traiu

Júpiter. Nomeado César e, mais tarde, pouco tempo decorrido (a

partir de 286), “Augusto”, Maximiano foi realmente o braço direito

de Diocleciano.

Mas mesmo esta medida foi insuficiente. Os ataques dos Persas na

Ásia e dos Germanos na Europa, a par das constantes perturbações e

revoltas na Bretanba, no Egipto e na Mauritânia, acabaram por

exceder as forças dos dois «augustos». Em 293, Diocleciano deu mais

um passo no sentido do desmembramento do poder. Ambos os

imperadores passaram a ter um lugar-tenente, o qual recebeu o

imperium o poder tribunicio, o diadema, logo, o exercicio efectivo

do poder, mas apenas o título de «César», facto que o mantinha

numa posição de subordinação relativamente ao respectivo

«Augusto». Diocleciano tomou por colaborador Galério, um dácio

inculto, mas bom soldado; Maximiano um ilirico de origem distinta e

de trato agradável, Constâncio Cloro. Cada um dos Césares

proporcionava assim ao seu «Augusto» as qualidades que a este

faltavam. Por outro lado, as alianças familiares vieram a estreitar os

laços politicos: os dois Césares, já casados, tiveram de repudiar as

respectivas mulheres a fim de desposarem, um deles, Galério, a filha

de Diocleciano, e o outro, Constâncio, a enteada de Maximiano.

Finalmente, estes genros tornaram-se artificialmente, por

«adopção», nos filhos dos seus sogros. Diocleciano reservou para si o

Oriente, encarregando Galério da vigilância das provincias

danubianas; ao outro César couberam os dominios da Gália e da

Bretanha. Se de facto houve partilha do poder, não chegou a haver

desmembramento do Império: cada «Augusto» dispunha do direito de

vistoriar todo o território confiado ao seu “César”. A unidade de

legislação e de administração subsistiu, teoricamente indivisa, entre

os dois «Augustos», ainda que, na prática, tal tivesse sido atributo

Page 158: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

exclusivo do qual Diocleciano permaneceu sempre como a mola

impulsionadora de toda a máquina.

A partir de 293, segundo consta, Diocleciano fixou a data limite no

termo da qual, considerando ter cumprido a sua missão, renunciaria

voluntariamente ao poder. Para prevenir qualquer conflito futuro,

exigiu de Maximiano, no templo de Júpiter Capitolino, o juramento

de que abdicaria ao mesmo tempo que ele.

Pela força das coisas, o “império” viera a tornar-se de uma

magistratura num poder monárquico. E tentou-se rodeá-lo de um

brilho, de um prestigio ficticio.

De origem humilde, tal como todos os seus predecessores (depois de

Galieno), Diocleciano julgou poder patentear uma tal transformação

rodeando a pessoa do imperador com todo um cerimonial à moda

oriental. Retomou o uso do diadema mistico, símbolo de eternidade,

que Aureliano fora buscar aos Sassânidas. Permitiu que o

qualificassem de senhor (dominus), mas urna tal qualificação nunca

foi oficial. Sob o seu principado, os cargos de cortesão continuam a

ser reputados como inferiores aos cargos públicos. Foi apenas na

segunda metade do século IV que os primeiros vieram a subir na

hierarquia em detrimento dos segundos, à medida que se ia

obscurecendo a ideia de serviço público.

A organização do exército, centro nervoso do poder, foi certamente

objecto de preocupações muito especiais da parte do imperador.

Infelizmente, no respeitante a este período, a história do exército

romano é das mais obscuras. Eis aquilo que parece ser mais ou menos

certo:

Os «pretorianos», tão perigosos um século antes, assistem a uma

diminuição progressiva e continua das suas prerrogativas. Já Séptimo

Severo expulsara das suas coortes os itálicos, homens turbulentos e

enfatuados, vaidosos da sua origem, para nelas dar lugar aos

soldados mais distintos das legiões pr07inciais. Diocleciano

Page 159: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

reformula-as essencialmente à base dos seus compatriotas iliricos,

homens rudes e dedicados. Sob o seu sucessor Constantino, o próprio

nome de pretoriano, mal afamado, vem a desaparecer. As «coortes

urbanas», da responsabilidade do prefeito da cidade, são reduzidas a

um número limite.

O chefe do pretório, o prefeito do pretório, que já foi comparado

com o grão-vizir dos Estados muçulmanos, fora uma personagem

temivel nos séculos II e III: por mais de uma vez, mandara massacrar

o imperador para tomar o seu lugar. O desdobramento da prefeitura

irá diminuir a área geográfica do seu poder. Posteriormente, antes

do termo do reinado de Constantino, o Império será dividido em

quatro prefeituras. Mas a medida de principal eficácia consistirá em

reduzir o prefeito do pretório a funções quase exclusivamente civis,

confiando o comando efectivo a «senhores da milicia»,

transformação essa que será levada a cabo por Constantino. Um

certo número de legiões, deslocadas da província para a Itália e

qualificadas de «palatinas», constituem uma segunda guarda, rival e

contrapeso da primeira.

Uma importante medida, o fraccionamento da legião em seis

destacamentos, tantos como o número de tribunos existentes, e

provavelmente iniciado antes de Diocleciano, vem a ter continuidade

sob o seu reinado. Cada um destes destacamentos tem vida

autónoma, estando aquartelados, já não apenas nas fronteiras, mas

também nas praças fortes em que, por volta dos anos 260-270, as

cidades vieram a transformar-se.

A distinção entre «legiões» e «auxiliares» tende a esbater-se. A

cavalaria, indispensável para lutar contra os Godos, os Persas, etc.,

vem a adquirir uma importância crescente, particularmente no seio

da guarda imperial, a Schola.

No respeitante ao comando, Diocleciano prossegue igualmente uma

prática anterior. Assim, já em 261 Galieno (morto em 268) afastara a

ordem senatorial do comando das legiões. Por inveja, por receio,

Page 160: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

sem dúvida, mas também por necessidade. Para os homens desta

classe, o exército não era uma carreira, mas antes um estágio pre-

paratório de futuras funções civis. Ora, este tipo de vagabundagem

já não era compativel com as necessidades do século. Os seis filhos-

familia no comando de cada uma das legiões não passavam

fatalmente de simples amaci0res; quanto aos jovens pertencentes à

ordem, muitas vezes bem modesta, dos senados provinciais, os

decuriões, careciam de experiência e prestigio. Deste modo,

Diocleciano veio também a afastá-los do exército. Os tempos eram

duros. Para lutar contra os Bárbaros e os Persas eram precisos

profissionais. A decisão de atribuir o alto comando a oficiais oriundos

da ordem equestre ou, pior ainda, saidos das próprias fileiras, foi

bem mais uma imperiosa necessidade do que um simples capricho de

tirano. Após Galieno, todos os imperadores pertencem a esta última

categoria: foram subindo lentamente, grau após grau, partindo do

mais baixo, até alcançarem o trono imperial, que surge como sendo

o termo normal de uma carreira militar.

A tendência mais corrente consiste em confiar os grandes comandos

fronteiriços, ou até mesmo internos, a cortesãos que ao seu novo

titulo de duques acrescentam a qualificação de comes} isto é, de

amigo do príncipe. O comitatus que durante longo tempo não passou

de um simples elemento decorativo, virá, mais tarde, a tornar-se

numa função.

Se é verdade que os homens de elevada e de média origem se

encontram afastados do exército, facto que trará graves

conseqüências, pelo menos sob o reinado de Diocleciano, também é

verdade que o comando não parece ter sido entregue a bárbaros

recentemente naturalizados, o que, pouco tempo volvido, virá a

tornar-se num hábito.

Seria temerário pretender precisar qual o alcance das alterações

introduzidas no armamento e na táctica. Contudo, é inegável haver

uma certa influência oriental iraniana. Tendo de lutar contra cava-

leiros, a infantaria passa a usar um armamento mais leve e maleável.

Page 161: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

O archeiro, um asiático, adquire uma importância como até então

nunca conhecera no mundo romano. Uma parte da cavalaria,

bastante aumentada numericamente, passa a ser couraçada, reves-

tindo-se de uma cota de malha da cabeça aos pés: o «cavaleiro»

medieval surge, assim, a partir dos fins do século ITI. Quanto ao

moral do exército, a única coisa realmente importante, parece ter

voltado a ser, mais uma vez, bastante bom. O Império, não só não

correu nenhum perigo sério, como também pareceu retomar uma

maior unidade no estreitamento dos laços territoriais de dominação;

os Bárbaros da Europa e da África foram contidos e a Pérsia recuou:

viu-se obrigada a ceder cinco provincias no alto vale do Tigre e a

permitir o restabelecimento do reino da Arménia sob o protectorado

de Roma (297) Estes sucessos são ind1cio de um restabelecimento

social não negligenciável: «o exército, em muitos aspectos, resume

em si a civilização de um povo», observou Victor Duruy.

Depois da força, o exército, vem o seu alimento, o imposto. O

imperador deu-o clara e energicamente a entender. Necessitava de

dinheiro para aumentar o fausto imperial, talvez não tanto por gosto

pessoal como por necessidade politica, a fim de deslumbrar as

populações. Atribui-se a este reinado uma célebre inovação fiscal, a

avaliação da contribuição fundiária em caput ou jugum. Na sequên-

cia de cada operação cadastral (revista, em principio, de quinze em

quinze anos), as forças contributivas de cada circunscrição financeira

são contadas relativamente a um número determinado de caput.

Este caput ou jugum não é uma unidade real, geométrica, mas sim

uma unidade fiscal, estabelecida mediante grosseiras aproximações:

na Siria, cada caput é constituido por cinco arpents de vinhas

(Arpent: antiga medida agrária francesa que valia 50 a 51 ares

conforme as regiões), ou então por vinte arpents de boa terra de

cultivo ou por quarenta de terras de média valia ou ainda por

sessenta de terras de qualidade inferior; pode ainda ser constituído

por duzentos e vinte e cinco pés de oliveiras em pleno rendimento ou

por quatrocentos e cinquenta de oliveiras de segunda categoria.

Noutros lados, o jugum parece ser a «charruada» de terra, a quanti-

dade necessária à subsistência de uma familia de camponeses.

Page 162: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

A repartição operava-se seguidamente por «cidades» e em cada

cidade por dominios; cada proprietário devia um certo número de

caput ou de fracções de caput consoante a importância da sua

fortuna territorial.

Uma tal reforma patenteava inúmeras vantagens. Durante muito

tempo, as provincias tinham pago o seu «tributo» ora em espécies

amoedáveis, ora em géneros, ora de ambas as maneiras, em virtude

de antigas convenções que, se eram vantajosas para determinadas

parcelas do Império pouco sobrecarregadas, já eram bastante

onerosas para outras. Doravante, cada circunscrição passou a pagar

em função da sua riqueza fundiária; a própria Itália passou a estar

também submetida ao imposto fundiário em géneros.

Sobretaxas e reduções de impostos passaram a ser facilitadas. O

indice de cada caput parece ter sido de uma real estabilidade: o

número de sete soldos de ouro, digamos vinte francos de 1913, valor

intrinseco, como principal caput, parece ser de regra nos séculos IV e

V. Os contribuintes das civitates, conhecendo o número dos juga do

seu pequeno Estado e o número de impostos que este era

regularmente obrigado a suportar, encontraram neste sistema certas

garantias, ainda que relativas, ao mesmo tempo que o poder,

podendo conhecer com bastante exactidão qual a vastidão dos seus

recursos, estava, do mesmo modo, em melhores condições de

estabelecer o seu orçamento.

Como complemento às medidas fiscais, devemos assinalar uma

tentativa no intuito de dar remédio à grande crise economica que

assolava o mundo romano. Diocleciano veio a ser bem sucedido

precisamente aonde Aureliano fracassara. Em 296, restabelece uma

moeda forte. Volta a pôr em circulação o verdadeiro denário de

prata, moldado à razão de 96 por libra e com 3.41 g. de peso, tal

como no reinado de Nero, sob o nome de argenteus minutulus ou

argenteolus; o antoninianus, depreciado em último grau, desaparece

ou só continua a circular enquanto moeda de bilhão. A moeda de

Page 163: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

ouro, o aureus, foi moldada à razão de 60 por libra e passou, por

consequência, a pesar 5.45 g. Em 301, no intuito de fazer baixar os

preços, o imperador lembrou-se de criar uma moeda câmbio corrente

em bronze argentado, o denarius communis, representando 1/50000

da libra de ouro, e passando assim a libra de ouro de 327 gramas a

valer 240.000 gramas de bronze.

Neste mesmo ano, a fim de pôr cobro às desastrosas especulações

originadas pelas perturbações monetárias, o imperador, num Edictum

de pretiis rerum venalium, julgou possível fixar, não o preço dos

géneros alirnenticios, do vestuário, dos objectos de uso corrente, dos

salários, das compensações, etc., mas sim o limite máximo a poder

ser exigido. O édito parece ter de facto visado, muito em particular,

a Pars Orientis. O insucesso foi total: os mercadores esconderam os

seus produtos, os preços subiram e houve tumultos. O édito teve,

mais tarde, de vir a ser revogado.

Não será decerto inútil assinalar que o número das provincias foi

elevado para uma centena. As vantagens decorrentes de uma tal

medida eram de dupla ordem: sendo menos alargadas - algumas

delas desmesuradamente vastas- as provincias passaram a poder ser

melhor administradas e o poder passou a não ter tanto a temer dos

governadores, já que os seus recursos tinham sido, assim,

razoavelmente diminuidos. De resto, houve uma tendência para

exagerar as inovações de Diocleciano neste campo: ele só aumentou

em catorze unidades o número de províncias, e doze delas no

Oriente. Facto infinitamente mais importante, o Senado foi des-

pojado da administração das provincias que, durante vários séculos,

lhe tinham sido reservadas: todas passaram a estar doravante à

disposição do imperador.

Por outro lado, surge um novo agrupamento, a diocese, englobando

em si diversas provincias. A cabeça de cada uma delas (chegaram a

haver doze) está um vigário, intermediário entre o praeses,

governador da provinda, e o prefeito do pretório; com esta medida,

a autoridade deste último vem a ser ainda mais circunscrita.

Page 164: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

Na capital, Diocleciano prossegue muito mais na senda das

transformações anteriormente iniciadas e inova muito menos. Desde

o inicio do século III que os escravos libertos tinham sido afastados.

Os funcionários administrativos, mesmo os subalternos, tinham sido

militarizados; estes empregados, ditos officiales, possuem titulos que

lembram os diversos graus do exército: centuriões, corniculários,

optiões, etc. Tornam-se em ajudantes dos altos funcionários, tais

como os Caesariani, que têm por missão executar as decisões dos

agentes do fisco. O serviço de escritório é qualificado de «milicia».

O corpo que impulsiona toda a vida politica e administrativa é o

conselho do principe, o Consistório. Este vem, assim, a completar a

lenta evolução que, em três séculos, transformou o círculo de amigos

do pr1ncipe num órgão de Estado, num «Conselho de Estado». O

imperador exige dele um árduo trabalho.

A atividade legislativa de Diocleciano foi, com efeito, considerável.

Nenhum outro imperador nos legou um tão grande número de

rescritos ou de éditos: duzentos ao todo. A intenção que lhe preside

é das mais louváveis. O príncipe procura reprimir as fraudes,

proteger os fracos, o escravo, a mulher, o devedor, o homem livre

pobre contra o rico, o colono contra o seu «dominus», o pai contra a

ingratidão dos filhos.

A reforma do foro judicial prossegue e completa-se. No foro civil, a

dupla instância, in jure perante o pretor, in judicio perante o jurado

designado pelo primeiro, vem a simplificar-se: é apenas ao

magistrado, detentor do conhecimento de fundo, que compete

decidir. É certo que o magistrado não passa de um funcionário, mas

também a extrema complexidade do sistema antigo podia vir a

acarretar inconvenientes. No foro criminal, a cognitio extraordinaria

vem a substituir-se ao procedimento formalista: quem toma em mão

o inquisitio é o magistrado e não o acusador. O imperador é

desfavorável ao emprego da tortura. Desconfia da policia mili-

tarizada e licencia os «frumentários», espiões e agentes provoca-

Page 165: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

dores que infestam a capital e as províncias.

Mas não nos devemos deixar enganar pelas aparências. Esta

abundante legislação, cheia de boas intenções, não tem, contudo,

qualquer originalidade. O conselho, que fala em nome do principe,

limita-se a repetir decisões já antigas. Quando Lactâncio, um seu

malevolente contemporâneo, declara que neste reinado a ciência

juridica deixara de existir, não deixa de ter uma certa razão. Na

opinião de um bom juiz, e tendo em conta a simplicidade das

questões relativamente às quais o imperador é consultado, parece já

não haver advocacia forense, já não haver magistratura. A ignorância

é tal que o príncipe vê-se constantemente obrigado a intervir para

indicar quais as regras de direito que os governadores de províncias

devem aplicar. Mas, pelo menos, deve reconhecer-se a este filho de

escravos dálmatas o mérito de ter favorecido os estudos de direito

(nomeadamente em Beirute) e de ter sentido a necessidade da

formação de um grande corpo, o Conselho do príncipe, onde viriam a

concentrar-se os parcos conhecimentos jurídicos da época.

«E depois, deve dizer-se, em defesa dos magistrados desse tempo,

que a sua ignorância era, por vezes, desculpável e que a sua tarefa,

nessa época, era bem mais difícil do que no passado. Tinham de

aplicar leis romanas a povos que até então tinham usufruído de uma

quase total autonomia. Já vimos que os predecessores de Diocleciano

trabalharam no sentido da romanização do Império do ponto de vista

legislativo. Muito estava ainda por fazer, e Diocleciano foi um dos

que mais eficazmente contribuíram para generalizar o uso do direito

romano. É certo que a unidade legislativa ainda não é uma realidade.

Diocleciano permite que se invoquem os regulamentos municipais e

os costumes locais, ainda que só em casos de menor importância ...

É sob o reinado de Diocleciano que começam a surgir as expressões

jus romanorum, leges romanae em vez de jus civile Romanorum, jus

nostrom, jus gentium. O direito romano conservara até então, em

certa medida, um caráter de direito municipal. Criado para suprir as

necessidades de uma cidade, não tinham sabido, pelo menos no'

respeitante aos actos que apresentavam um caráeter religioso, dar-

Page 166: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

lhe a necessária maleabilidade que permitisse torná-lo num direito

nacional.»

A bem dizer, a Cidade antiga era um cadinho bastante acanhado para

nele refundir o mundo. Sem qualquer tipo de atividade, de ordem

material ou espiritual, Roma tornara-se num obstáculo à expansão da

Romania. Enquanto Aureliano a tinha feito rodear de uma nova

muralha, bem mais espaçosa, como se visse nela o palladium do

Império, como se lhe desejasse uma nova vida, Diocleciano

abandonou-a deliberadamente e de seguida. A partir de 284, Roma

cessa de ser realmente a capital do Império. É antes um santuário

onde têm lugar certas cerimónias rituais, os vicennalia, os «triunfos»

- e estes vão tornar-se extremamente raros; é um museu

incomparável; é uma cidade morta. O imperador reside no Oriente,

de preferência em Nicomédia, nos confins da Europa e da Asia. O seu

colega estabelece-se em Milão, para melhor poder vigiar os Bárbaros

que ameaçam os Alpes. Os seus lugar-tenentes, os «Césares»,

acampam em Treves e em Sírmio, espiando o ataque dos Germanos

ou dos Iranianos europeus (Sármatas, Roxolanos, Iáziges). Doravante,

o principe só em raras ocasiões virá a Roma e sempre por pouco

tempo; sente-se aí deslocado, como um provinciano e, por outro

lado, os assuntos do Império bem depressa dela o afastam. É

flagrante o contraste entre a existência dos imperadores dos fins do

século TIl e IV e a dos seus predecessores que nunca deixavam a

«Cidade» e nela dissipavam a saúde, a razão e a vida em orgias

estúpidas ou dementes.

Em resumo, a acção de Diocleciano, tanto quanto nos é possível

julgar, dada a extrema escassez das fontes disponíveis, surge-nos

como bem sucedida e de grande alcance. Conseguiu voltar e dar ao

Império, se não a prosperidade, pelo menos uma sua imagem. E é

Lactâncio, um cristão, seu inimigo, quem no-lo atesta. E o mesmo no

caso dos monumentos: termas das mais famosas, o palácio de Salona

(Split) na Dalmácia, basllicas, pórticos, e inúmeras construções civis

e militares, em Roma, em Milão, em Antioquia, em Edessa. Sem ser

propriamente um letrado, o imperador favorece os estudos: cria a

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escola de Nicomédia, enquanto Constância Cloro reconstrói as

escolas de Autun. As artes e as letras também tiveram, pois, a sua

parte nesta restauração do mundo romano.

Vinte anos passaram após a morte de Caros, sendo os mais felizes

que o mundo romano conheceu desde Séptimo Severo. Depois de ter

ido a Roma celebrar os seus vicennalia e «triunfado» em companhia

do seu colega (Novembro de 304), Diocleciano julgou ser chegado o

momento de dar lugar aos novos. A sua obra parecia-lhe já

suficientemente sólida e sentia chegar a velhice - estava perto dos

sessenta anos - e os efeitos da doença. Abdicou solenemente perto

de Nicomédia, diante do templo de Júpiter, a I de Maio de 305. No

mesmo dia, no Ocidente, o Hercúlio, obrigado pelo seu juramento,

renunciava, tremendo, ao manto púrpura. Sem dúvida que o sistema

da tetrarquia virá a desagregar-se um dia após esta dupla cerimónia.

Mas, na realidade, tal era mais um expediente do que um sistema

propriamente dito. E quanto a ser cura para os males de que o

Império enfermava, isso, de modo algum. Já não era pouco ter

sabido inventar um remédio de acaso que permitisse ao paciente

retomar forças contra os futuros assaltos do destino.

Diocleciano e o Cristianismo

O fim do reinado de Diocleciano vem a ser marcado por uma medida

que deixou uma mancha indelével na memória do grande político: o

retomar da perseguição contra os cristãos. Mas convém que nos

detenhamos um pouco em tal facto.

Há já cerca de dois séculos e meio que o Império sofria de um mal

interno. o cristianismo. O antagonismo entre o Estado romano e a

Nova Lei. letargicamente adormecido durante intervalos mais ou

menos longos, renascia periodicamente com inconcebível furor. O

poder pretendia exterminar a seita; os cristãos não lhe opunham

mais do que a força da inércia, mas uma tal força era invencível.

Page 168: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

É necessário esforçarmo-nos por manter um certo distanciamento a

fim de podermos compreender quais os motivos da violência deste

antagonismo, ou até mesmo qual a sua razão de ser. A tolerância de

Roma para com as religiões estrangeiras é um facto bem conhecido.

A única religião que, a par do cristianismo foi objecto de

perseguições. O judaísmo, deve-o às imprudências e às fanáticas

provocações dos seus adeptos. Mais ainda, após a destruição de

Jerusalém, instalou-se um modus vivendi que deu aos judeus toda a

liberdade de consciência e até mesmo de práticas, ainda que estas

(tal como a circuncisão) fossem interditas aos restantes habitantes

do Império.

É digno de nota assinalar que as perseguições são retomadas em

momentos críticos da história do Império, tal como no caso dos

trágicos reinados de Décio e de Valéria, em alturas em que a opinião

popular, inquieta, procura uma causa para as desgraças públicas. Os

cristãos, reputados como maus cidadãos, sendo inimigos dos deuses

cujas iras desencadeiam, eram os “traidores” predestinados para

servirem de bodes expiatórios.

Mas nada de semelhante consegue discernir-se no termo do

principado de Diocleciano, o qual, pelo contrário, vem a findar num

ambiente de prosperidade. O imperador só se decidiu a retomar as

perseguições após longas hesitações que duraram vários anos (de 299

a 303). A razão que o terá levado a decidir-se por uma política de

repressão permanece envolta em mistério. Houve quem se

interrogasse sobre se tal não teria sido fruto dos lamentáveis

incidentes ocorridos no seio do exército. Os cristãos eram tidos por

pouco dotados para carreiras militares. Certas seitas, como por

exemplo os montanistas, declaravam o serviço militar incompativel

com o cristianismo. Mas o montanismo fora condenado e a Igreja

«católica» não era tão pragmática. A pouco e pouco, o

cristianismo conseguira mesmo insinuar-se no exército, onde já

dispunha de adeptos. Será que houve quebras de disciplina, recusas

de cumprir ordens para efetuar sacrifícios? É possível. Mas tal não

passa de simples suposição.

Page 169: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

Deve assinalar-se que, nessa época, Diocleciano estava sob a

influência de Galério, cuja mãe era uma fervorosa pagã, e que

transmitira ao filho o seu ódio pelo cristianismo. A verdade é que

entre a Igreja cristã e o Estado, mesmo nos periodos de acalmia,

nunca houve mais do que uma trégua tácita, precária, à mercê do

menor incidente. O pretexto para a ruptura parece ter sido o

incêndio do palácio de Nicomédia. Tratava-se da cidade favorita de

Diocleciano: em alguns anos, transformara-a na mais bela cidade do

Oriente depois de Antioquia e de Alexandria.

Assim, tanto a última perseguição como a primeira, ordenada por

Nero, foram desencadeadas pela crença na mania incendiária dos

cristãos.

Esta última perseguição foi a mais longa: durou, pelo menos, cerca

de oito anos (303-311). A despeito da tradição, não é seguro que

tenha sido das mais cruéis, pelo menos durante o reinado de

Diocleciano. Atacou-se mais as coisas do que as pessoas. As igrejas

foram fechadas ou destruídas e os livros santos queimados. O número

de vítimas não parece ter sido muito elevado. Os magistrados

revelaram-se de uma extrema complacência, fatigados e entediados,

tal como era seu hábito neste tipo de assuntos.

O próprio Lactâncio, o adversário cristão de Diocleciano, ao

escarnecer das suas precauções, das suas longas hesitações. da

facilidade com que os romanos se contentavam com uma retratação

simulada, dá-nos assim testemunho da relativa moderação da

repressão.

Mesmo assim, é certo que os cristãos acusaram o golpe, sem que.

contudo. nada permitisse pressagiar a sua longa resistência. e muito

menos o seu triunfo final.

Foi precisamente no ano imediato ao início das perseguições que

Diocleciano julgou chegado o momento de abdicar, considerando que

Page 170: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

a sua obra já fora levada a bom termo. No grandioso retiro que

desde há muito mandara preparar nos confins do seu pais natal, em

Salona, nunca foi perturbado, disso podemos estar certos. por

quaisquer escrúpulos relativos à legitimidade do seu édito. ou por

quaisquer inquietações quanto à sua eficácia. A abolição do

cristianismo representava o coroamento da sua obra de restauração

do Império, há tanto tempo disperso, dilacerado, fragmentado:

doravante não haveria mais do que um rebanho sob a autoridade de

um pastor de várias cabeças.

A sucessão de Diocleciano

Será que Diocleciano chegara a regulamentar detalhadamente o

sistema daquilo a que se chamou a tetrarquia? Talvez não, e de

qualquer modo não importa. Este sistema tinha a sua lógica interna.

Determinava que os «Césares» se sucedessem aos «Augustos» e

tomassem por seu turno, outros «Césares» como adjuntos. Era da

tradição que um dos Augustos tivesse uma espécie de preponderância

sobre o outro. Galério seguiu, pois, as vias traçadas pelo seu

antecessor ao designar os dois novos Césares, Severo e Maximiano

Daia. É certo que eram assim afastados do trono os filhos de

Maximiano e de Constância, Maxêncio e Constantino; mas também

isso era conforme ao espirito da tetrarquia, em que a escolha do

senhor e o parentesco fictício se sobrepõem aos pretensos direitos do

sangue. Só que aqui veio a esbarrar-se na força das circunstâncias.

Os príncipes desapossados rebelaram-se e a confusão recomeçou.

Após sete anos de lutas, o poder veio a tombar, a Ocidente, nas

mãos de Constantino, vencedor de Maxêncio na Pons Milvius, perto

de Roma (28 de Outubro de 312). Mas foram ainda precisos mais doze

anos para que o filho de Constância Cloro (falecido em 306)

conseguisse tornar-se senhor de todo o Império. Inicialmente,

tentou-se prolongar o sistema de Diocleciano. Constantino deu a sua

irmã em casamento a Licinius, sucessor de Galério; vencedor do seu

colega por várias vezes, decidiu poupá-la e deixou-lhe o Oriente. Foi

apenas em 323 que Constantino se decidiu a assumir a sós o governo

Page 171: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

do Império e a suprimir o seu rival. A tetrarquia, tal como a diarquia,

já não tinha futuro; o seu tempo passara. Quando chegar a altura de

tomar as suas últimas disposições (337), Constantino dividirá o

Império pelos seus filhos e pelos seus netos, tal como se de um

património se tratasse. Ora, isso é já uma partilha à carolingia ou à

merovingia, unicamente fundamentada nos direitos do sangue.

Restavam-lhe três filhos, todos sucessivamente proclamados Césares.

O Império foi, assim, dividido em três partes. Constantino ficou com

o Ocidente (Gália, Bretanha, Espanha) Constâncio com o Oriente,

incluindo, o Egipto, e Constante com a Itália, incluindo o Illyricum e

a Africa. Mas os netos também não foram esquecidos. Um deles,

Dalmácio, devia ficar no seu lote com a Trácia, a Macedónia e a

Acaia, e um outro, Anibaliano, com uma parte da Arménia e do

Ponto, recebendo o titulo oriental de «rei dos reis».

A unidade do Império foi restabelecida em proveito de Constância

com a supressão dos sobrinhos, massacrados pelo exército (337), com

a vitória de Constante sobre o seu irmão Constantino II em Aquileia,

o qual foi morto (340), e com o assassinato do primeiro, do

vencedor, vitima do «magister militum», Magnus Magnentius (350).

Com efeito, a sucessão por filiação não pusera termo às revoltas dos

generais e às suas tentativas de usurpação do Império. Contudo,

deve reconhecer-se que a partir de Diocleciano passaram a ser mais

raras e nunca foram bem sucedidas. Em 353 Constâncio, tendo

derrotado e morto Magnêncio, fica senhor de todo o Império. Mas, a

partir de 361, vê-se a braços com a revolta do seu primo Juliano

(filho de Júlio Constâncio, irmão de Constantino o Grande), que

nomeara César com a missão de defender a Gália contra os Bárbaros.

Depois dos curtos reinados de Juliano (+ 26 de Junho de 361) e de

Joviano (+ 17 de Fevereiro de 364), uma nova dinastia instala-se no

trono, na pessoa de um soldado intrépido e cruel, Valentiniano. Mas

no próprio dia da sua eleição pelo exército, reunido na planície de

Dadastania, a 26 de Fevereiro de 364, os soldados, aclamando-o,

exigiram que se associasse a um companheiro de armas. Valentiniano

escolheu o seu irmão, Flavius Valens, e confiou-lhe o Oriente com a

Page 172: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

Peuinsula Balcânica. A efectiva separação do Império em dois

grandes blocos tornara-se numa necessidade imperiosa. Desde esta

época, estas duas metades não mais voltaram a unir-se, salvo por um

lapso de tempo perfeitamente insignificante, sob o reinado de

Teodósio (três meses: fins de Setembro de 394 a Janeiro de 395).

LOT, Ferdinand O Fim do Mundo Antigo e o princípio da Idade Média.

Lisboa: Ed.70, 1985 (original, 1926).

A Instalação dos Bárbaros - Século V - VIII

O Ocidente medieval nasceu sobre as ruínas do mundo romano. Nelas

encontrou, ao mesmo tempo, apoios e desvantagens. Roma foi o seu

alimento e foi a sua paralisia.

Antes do mais, Roma legou à Europa medieval a dramática

alternativa que a lenda das suas origens simboliza: a Roma fechada,

do pomerium e do templum, que triunfa da Roma sem limites, sem

muralhas, em vão planeada pelo infeliz Remo.

Posta por Rômulo sob o signo do fechado, a história romana, mesmo

nos seus êxitos, é apenas a história de uma grandiosa clausura. A

Cidade reuniu em seu redor um espaço, dilatado pelas conquistas até

ao perímetro ótimo de defesa, que a si própria se impôs no século I

encerrar atrás do limes - verdadeira muralha da China do mundo

ocidental. E, no interior desses muros, explorou sem criar: não houve

nenhuma inovação técnica depois da época helenística, a economia

era alimentada pela pilhagem, as guerras vitoriosas forneciam a

mão-de-obra servil e os metais preciosos recolhidos nos tesouros

acumulados pelo Oriente. Roma foi inexcedível nas artes

conservadoras: a guerra, que foi sempre defensiva apesar das

aparências da conquista; o direito, construído sobre a infra-estrutura

dos precedentes, que precavia contra as inovações; o sentido do

Estado, que assegurava a estabilidade das instituições; a arquitetura,

que por excelência era a arte da habitação e da permanência.

Page 173: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

Essa obra-prima de imobilismo que foi a civilização romana sofreu na

segunda metade do século II a erosão de forças destrutivas e

renovadoras.

A grande crise do século III minou o edifício. A unidade do mundo

romano desfez-se e o seu coração - Roma e a Itália deixou de irrigar

os membros, que procuraram viver com vida própria as províncias

emanciparam-se e passaram a ser, por sua vez, conquistadoras.

Espanhóis, gauleses e orientais invadiram o Senado. Os imperadores

Trajano e Adriano eram de origem espanhola e Antonino de

ascendência gaulesa; na dinastia dos Severos, os imperadores foram

africanos e as imperatrizes sírias. O édito de Caracalla, em 212, deu

direitos de cidadania romana a todos os habitantes do Império. Esta

ascensão das províncias manifesta em igual medida o êxito da

romanização e o aumento das forças centrífugas. O Ocidente

medieval vai herdar dessa luta: unidade ou diversidade, cristandade

ou nações?

Outro desequilíbrio, mais profundo: o Ocidente perde substância em

proveito do Oriente. O ouro que paga as importações de luxo foge

para o Leste, produtor e intermediário, cujos mercadores judeus e

sírios monopolizam o grande comércio. As cidades do Ocidente

entram em anemia e as do Oriente prosperam.

A fundação de Constantinopla - a nova Roma – por Constantino (324-

330) materializa esta inclinação do mundo romano para o Oriente. E

esta clivagem vai marcar também o mundo medieval: os esforços

para a união entre o Ocidente e o Oriente não resistirão a uma

evolução definitivamente divergente. O cisma está inscrito nas

realidades do século IV. Bizâncio continuará Roma e, sob as

aparências da prosperidade e do prestígio, prolongará até 1453, por

trás das suas muralhas, a agonia romana. O Ocidente empobrecido e

barbarizado terá de repetir todas as fases de um levantar vôo que no

fim da Idade Média lhe abrirá os caminhos de todo o mundo.

Ainda mais grave: a fortaleza romana, de onde as legiões partiam

Page 174: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

para a captura dos prisioneiros e para a pilhagem, está, ela própria,

cercada; e dentro em breve cederá ao assalto. A última grande

guerra vitoriosa data de Trajano e o ouro dos Dácios, em 107, foi o

último grande repasto da prosperidade romana. Ao esgotamento do

exterior vem somar-se a estagnação interior - em primeiro lugar, a

crise demográfica, que agudiza a penúria de mão-de-obra servil. No

século lI, Marco Aurélio contém o assalto bárbaro no Danúbio, onde

morre em 180; o século III vê um assalto geral às fronteiras do limes,

assalto que amaina menos por efeito dos êxitos militares dos

imperadores ilíricos de fins do século e dos seus sucessores que

devido à acalmia obtida com a aceitação, como federados, aliados,

dos Bárbaros - admitidos no exército ou nas margens interiores do

Império: primeiro esboço de uma fusão que vai caracterizar a Idade

Média.

Os imperadores julgam conjurar o destino ao abandonar os deuses

tutelares, que falharam, pelo Deus novo dos cristãos. A renovação

constantiniana parece justificar todas as esperanças: a paz e a

prosperidade parecem estar de volta sob a égide de Cristo. Mas é

apenas uma curta recuperação. De resto, o cristianismo é um falso

alíado de Roma. Para a Igreja, as estruturas romanas são

simplesmente um quadro onde tomar forma, um alicerce em que

apoiar-se um instrumento para se afirmar. O cristianismo, religião de

vocação universal, hesita em fechar-se nos limites de uma única

civilização. Será, sem dúvida, o principal agente de transmissão da

cultura romana ao Ocidente medieval. Herdará sem dúvida de Roma

e das suas origens históricas, a tendência para dobrar-se só a si

próprio. Mas, além dessa religião fechada, a Idade Média ocidental

conhecerá também uma religião aberta; e o diálogo entre estas duas

faces do cristianismo dominará essa idade intermédia.

Economia fechada ou economia aberta, mundo rural ou mundo

urbano, fortaleza única ou casas diversas - o Ocidente medieval

levará dez séculos a resolver tais alternativas.

Podendo-se encontrar na crise do mundo romano do século III o início

Page 175: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

da profunda perturbação de que sairá o Ocidente medieval, é

legítimo considerar as invasões bárbaras do século V como o

acontecimento que precipita as transformações, que lhes dá um

aspecto catastrófico e que lhes modifica profundamente a aparência.

As invasões germânicas do século V não foram novidade para o

mundo romano. Sem recuar até aos Cimbros e aos Teutões, vencidos

por Mário no princípio do século II a. c., convém recordar que a

ameaça germânica pesava permanentemente sobre o Império desde

o reinado de Marco Aurélio (161-180). As invasões bárbaras foram um

dos elementos essenciais da crise do século III. Os imperadores

gauleses e ilírios do fim. desse século afastaram o perigo durante

algum tempo. Mas - para ficar apenas na parte ocidental do Império -

a grande incursão dos Alamanos, dos Francos e de outros povos

germânicos que em 276 devastaram a Gália, a Espanha e o Norte da

Itália prefiguravam já a grande cavalgada do século V deixou feridas

mal cicatrizadas - campos devastados, cidades em ruínas -,

precipitou a evolução econômica - declínio da agricultura, recuo

urbano -, a recessão demográfica e as transformações sociais: os

camponeses tiveram cada vez mais de colocar-se sob a proteção,

gradualmente agravada, dos grandes proprietários, que assim

passavam a ser chefes de bandos militares, e a situação do colono

estava cada vez mais próxima da do escravo. E a miséria dos

camponeses transformou-se, por vezes, em jacquerie e recordemos

os vagabundos africanos e os bagaldos gauleses e espanhóis, cuja

revolta, nos séculos IV e V, foi endémica.

E também no Oriente aparecem bárbaros que hão de abrir caminho e

que virão a desempenhar papel de capital importância no Ocidente:

os Gados. Em 269 são contidos em Nisch pelo imperador Cláudio lI,

mas ocupam a Dácia e a sua estrondosa vitória em Andrinopla sobre o

imperador Graciano, a 9 de Agosto de 378, se não é aquele

acontecimento decisivo, descrito com terror por tantos historiadores

«romanófilos» (Poderíamos ficar por aqui escreve Victor Duruy -, pois

de Roma nada ficou: crenças, instituições, cúrias, organização

militar, artes, literatura, tudo desapareceu), nem por isso deixa de

Page 176: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

ser o trovão anunciador da tempestade que está a submergir o

Ocidente romano. Estamos mais bem informados a respeito dos

Godos que da maioria dos outros invasores graças à história de

Jordanes, tendenciosa, é fato, visto que é de origem bárbara, e

tardia, já que o autor escrevia em meados do século VI mas utiliza

uma documentação, escrita e oral, séria, especialmente a História

dos Godos, perdida, de Cassiodoro. Historiadores e arqueólogos con-

firmam, grosso modo, as Wanderungen dos Godos descritas por

Jordanes, da Escandinávia ao Mar de Azov através do Mecklemburg,

da Pomerânia e dos pântanos do Pripet. Foi da ilha de Scanzia

(Suécia), que é uma espécie de fábrica de povos, ou, se preferirem,

de matriz de nações - escreve Jordanes -, que os Godos saíram com

seu rei, chamado Berg. Depois de avançar até à morada dos

Ulmerugos (Pomerânia Oriental), com a população a crescer,

resolveram, no reinado do quinto rei a seguir a Berg levar para

diante o exército, com as famílias dos Godos, para procurar morada

mais vasta e territórios mais convenientes, e foi assim que os Godos

chegaram à Chia; a grande fertilidade desta região agradou à hoste;

mas, depois de metade ter passado, a ponte que atravessava o rio

desmantelou-se e não se podia andar para diante nem para trás, pois

a região estava rodeada de pântanos movediços que a cercavam à

maneira de abismo.

As causas das invasões importam-nos pouco. Crescimento

demográfico ou atração por territórios mais ricos, como Jordanes

invoca, foram motivos que provavelmente só atuaram na seqüência

de um impulso inicial que poderia muito bem ter sido uma

modificação do clima, um arrefecimento que, da Sibéria à Escan-

dinávia, teria feito diminuir as terras de cultivo e de criação de gado

dos povos bárbaros e os teria posto em movimento, empurrando-se

uns aos outros, para sul e para oeste até as Finisterras ocidentais: a

Bretanha, que iria ser a Inglaterra, a Gália, que seria a França, a

Espanha, em que só o sul tomaria o nome dos Vândalos (Andaluzia) e

a Itália, que só no norte, na Lombardia, conservaria o nome dos seus

tardios invasores.

Page 177: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

Maior importância têm certos aspectos dessas invasões. Em primeiro

lugar, elas foram, quase sempre, uma fuga para diante. Os invasores

eram fugitivos pressionados por outros, mais fortes ou mais cruéis

que eles. A sua crueldade era muitas vezes a crueldade do

desespero, em especial quando os Romanos lhes recusavam o abrigo

que eles tantas vezes pacificamente lhes pediam. No fim do século

IV, Santo Ambrósio compreende bem estas invasões em cadeia: Os

Hunos precipitaram-se sobre os Alanos, os Alanos sobre os Godos, os

Gados sobre os Taifalas e os Sármatas; os Gados, expulsos da sua

pátria, expulsaram-nos a nós para o Ilírico. E ainda não acabou.

Quanto a Jordanes, acentua que, se os Godos pegaram em armas

contra os Romanos em 378, foi porque tinham sido confinados num

território exíguo e sem recursos, onde os Romanos lhes vendiam a

peso de ouro carne de cão e de animais repugnantes exigindo-lhes os

filhos como escravos em troca de uma escassez alimento. Foi à fome

que os armou contra os Romanos. De fato, há duas atitudes romanas

tradicionais perante os Bárbaros. A princípio, conforme as

circunstâncias e os homens dispunham-se a acolher os povos que se

lhes apinhavam à porta e, mediante o estatuto de federados,

respeitavam-lhes as leis os costumes e a originalidade; desse modo

lhes moderavam a agressividade e faziam deles, em seu proveito,

soldados e camponeses - minorando a crise de mão-de-obra militar e

rural.

Os imperadores que praticaram esta política não ficaram com boa

reputação junto dos tradicionalistas, para quem os Bárbaros eram

mais bestas que seres humanos - e esta segunda atitude foi mais

freqüente.

Constantino - diz o historiador grego Zózimo - abriu a porta aos

Bárbaros foi ele a causa da ruína do Império.

Amiano Marcelino denuncia a cegueira de Valens, que em 376

organizou a travessia do Danúbio pelos Godos. Foram enviados

muitos agentes com o encargo de arranjar meios de transporte para

Page 178: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

aquele povo selvagem. Tomou-se todos os cuidados para que nenhum

dos futuros destruidores do Império Romano, mesmo que sofresse de

doença mortal, não ficasse na outra margem . E tanto zelo, tanto

barulho, para acabar na ruína do mundo romano E o mesmo quanto a

Teodósio, grande amigo dos Godos, amator generis Gothorum

segundo Jordanes.

De entre esses Bárbaros, alguns ganharam especial fama de fieldade

e brutalidade. Eis os Hunos na descrição célebre de Amiano

Marcelino: A sua ferocidade ultrapassa tudo sulcam de profundas

cicatrizes, com um ferro, as faces dos recém-nascidos para lhes

destruir as raízes dos pêlos; e desse modo crescem e envelhecem

imberbes e sem graça, como eunucos. Têm o corpo atarracado, os

membros robustos e a nuca grossa; a largura das costas grandes

assustadores. Dir-se-ia que são animais de duas patas ou então

daquelas figuras mal desbastadas, em forma de troncos de árvores,

que ornamentam os parapeitos das pontes. Os Hunos não cozinham

nem temperam aquilo que comem; alimentam-se de raízes selvagens

ou de carne crua do primeiro animal que apanham e que aquecem

por algum tempo na garupa do cavalo, entre as coxas. Não têm

abrigos. Não usam casas nem túmulos. Cobrem-se com um tecido

grosseiro ou com peles de ratos do campo, cozidas umas às outras;

não têm uma roupa para estar em casa e outra para sair; desde que

enfiam aquelas túnicas de cor desbotada, só as tiram quando elas

estão a cair aos bocados. Não põem pé em terra nem para comer

nem para dormir e dormem deitados sobre o magro pescoço da

montada, onde sonham à sua vontade.

E os Lombardos, no século VI, conseguirão - depois de tantas

atrocidades que cometeram - fazer-se notar pela ferocidade:

selvagens de uma selvajaria pior que a habitual selvajaria germânica.

Claro que os autores destes textos são, principalmente, pagãos,

animados, como herdeiros da cultura greco-romana, de ódio ao

Bárbaro, que, destruindo-a ou aviltando-a, aniquila por fora e por

dentro essa civilização. Mas muitos cristãos, para quem o Império

Page 179: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

Romano é o berço providencial do cristianismo, sentem pelos

invasores a mesma repulsa.

Santo Ambrósio vê nos Bárbaros inimigos destituídos de humanidade

e exorta os cristãos a defender com as armas “a pátria contra a

invasão bárbara”. O bispo Synesius de Cirene chama Citas - sinônimo

de barbárie - a todos os invasores e aplica-lhes o verso da Ilíada em

que Homero aconselha a “expulsar esses cães malditos trazidos pelo

Destino”.

Mas em outros textos o sino toca de outro modo. Santo Agostinho,

embora deplorando as infelicidades dos Romanos, recusa-se a ver na

tomada de Roma por Alarico, em 410, mais que um facto corrente,

doloroso como tantos outros que a história romana conheceu; e

acentua que, ao contrário da maioria dos generais romanos

vitoriosos, que se distinguiram pelo saque das cidades que

conquistavam e pelo extermínio dos seus habitantes, Alarico acedeu

a considerar as igrejas cristãs como locais de asilo e respeitou-as.

Tudo o que de devastações, morticínios, pilhagens, incêndios e maus

tratos se cometeu neste recente desastre de Roma foi obra dos

costumes da guerra. Mas aquilo que sucedeu de maneira nova, essa

selvajaria bárbara que, por prodigiosa mudança da face das coisas,

se mostrou tão suave a ponto de escolher e indicar, para as encher

de povo, as mais vastas basílicas, nas quais ninguém seria tocado,

das quais ninguém seria retirado, às quais muitos foram levados por

inimigos compadecidos para que fossem libertados e das quais

ninguém seria levado em cativeiro nem por cruéis inimigos: isso foi

em nome de Cristo, é aos tempos cristãos que deve ser atribuído.

Mas o texto mais extraordinário vem de um simples monge, que não

tem as mesmas razões que os bispos aristocráticos para poupar a

ordem social romana. Cerca de 440, Salviano, que se intitula padre

de Marselha e é monge na ilha de Lérins, escreve um tratado, Do

Governo de Deus, que é uma apologia da Providência e uma tentativa

de explicação das grandes invasões.

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A causa da catástrofe é interna. São os pecados dos Romanos

incluindo os cristãos - que destroem o Império, entregue pelos seus

vícios aos Bárbaros. Os Romanos eram contra si próprios, inimigos

ainda piores que os inimigos do exterior, pois, embora os Bárbaros já

os tivessem quebrado, eles ainda se destruíam mais por si próprios.

De resto, que havia a reprovar a esses Bárbaros? Ignoravam a religião

e, se pecavam, era inconscientemente. A sua moral e sua cultura

eram outras. Porque condenar aquilo que era diferente?

O povo saxônico é cruel, os Francos são pérfidos, os Gépidas são

desumanos e os Hunos são impudicos. Mas os seus vícios serão tão

culposos como os nossos? A impudicícia dos Hunos será tão criminosa

como a nossa? A perfídia dos Francos será tão digna de censura como

a nossa? Um alamano embriagado será tão digno de repreensão como

um cristão embriagado? Um alano rapaz será tão condenável como

um cristão rapaz? A impostura do huno ou do gépida será de admirar

quando eles não sabem que a impostura é um pecado? O perjúrio de

um franco será algo de inaudito quando ele pensa que o perjúrio é

uma vulgar maneira de falar e não um crime? Acima de tudo - além

das suas opções pessoais, que podem ser discutidas - Salviano dá-nos

as razões profundas do êxito dos Bárbaros. Sem dúvida que houve

superioridade militar. A superioridade da cavalaria bárbara dá à

superioridade do armamento todo o seu valor. A arma das invasões é

a espada comprida, cortante e ponte aguda, uma arma de corte cuja

terrível eficácia é a fonte real dos exageros literários da Idade

Média: capacetes abertos, cabeças e corpos fendidos a meio,

incluindo por vezes o cavalo. Amiano Marcelino anota com horror um

feito de armas deste gênero e desconhecido dos Romanos. Mas

haviam bárbaros nos exércitos romanos; e, passada a surpresa dos

primeiros embates, uma superioridade militar depressa é assimilada

e compartilhada pelo adversário.

A verdade é que os Bárbaros beneficiaram da cumplicidade ativa ou

passiva da massa da população romana. A estrutura social do Império

Romano, em que as camadas populares eram cada vez mais

Page 181: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

esmagadas por uma minoria de ricos e poderosos, explica o êxito das

invasões bárbaras. Ouçamos Salviano: Os pobres estão despojados, as

viúvas gemem e os órfãos são pisados a pés, a tal ponto que muitos,

incluindo gente de bom nascimento e que recebeu educação

superior, se refugiam junto dos inimigos. Para não perecer à

perseguição pública, vão procurar entre os Bárbaros a humanidade

dos Romanos, pois não podem suportar mais, entre os Romanos, a

desumanidade dos Bárbaros. São diferentes dos povos onde buscam

refúgio; nada têm das suas maneiras, nada têm da sua língua e, seja-

me permitido dizer, também nada têm do odor fétido dos corpos e

das vestes dos Bárbaros; mas preferem sujeitar-se a essa

dissemelhança de costumes a sofrer, entre Romanos, a injustiça e a

crueldade. Assim, emigram para os Godos ou para os Bagaldos, ou

para os outros bárbaros que em toda a parte dominam, e não têm de

que arrepender-se com o auxílio. Pois gostam mais de viver livres sob

a aparência da escravidão que de serem escravos sob a aparência da

liberdade. O nome do cidadão romano, que outrora não só era muito

apreciado, mas comprado por alto preço, é hoje em dia repudiado e

evitado, já não, é apenas considerado pouco valioso mas mesmo

abominável. Daí que mesmo aqueles que não fogem para os Bárbaros

se vejam também forçados a fazerem-se bárbaros, como sucede à

maioria dos espanhóis e a uma notável parte dos gauleses e a todos

os que, em toda a extensão do mundo romano, a iniqüidade romana

obriga a já não ser romanos. Falamos agora dos Bagaldos, que,

desapossados por juízes mals e sanguinários, feridos, mortos e tendo

perdido o direito da liberdade romana, perderam também a honra do

nome romano. E chamamos-lhes rebeldes e homens perdidos quando

fomos nós que os obrigamos a serem criminosos.

Tudo fica dito nestas frases: a conivência entre o bárbaro e o

revoltado, o godo e o bagaldo, e a evolução das massas populares

romanas antes da chegada dos Bárbaros. O erudito que disse que a

civilização romana não morreu de morte natural mas que foi

assassinada disse três contra verdades, pois a civilização romana, na

realidade, suicidou-se e este suicídio nada teve de natural nem de

belo; e não está morta, pois as civilizações não são mortais. A

Page 182: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

civilização romana sobreviveu, mediante os Bárbaros, ao longo de

toda a Idade Média e para além dela.

A bem dizer, a instalação de muito bárbaro em solo romano fez-se a

contento de todos. Cloro, panegirista de Constança, declarava no

princípio do século IV: «O chamava trabalha para nós; ele, que

durante tanto tempo nos arruinou com as suas pilhagens, trata agora

de nos enriquecer ei-lo vestido de camponês, ei-lo que se mata a

trabalhar, que freqüenta os nossos mercados ei-lo leva a vender os

seus animais. Grandes espaços ocultos dos territórios de Amiens, de

Beauvais, de Troyes, de Langres verdejam agora por obra dos

Bárbaros. E o tom é o mesmo noutro gaulês, o retórico Pacatus, que

em 389 foi a Roma fazer o pânico de Teodósio. Felicitou o imperador

por ter feito dos Godos Inimigos de Roma, camponeses e soldados ao

seu serviço.

No meio das provações, há espíritos clarividentes que percebem a

solução do futuro: a fusão entre Bárbaros e Romanos. O retórico

Themistius predizia, no fim do século IV de momento as feridas que

os Godos nos fizeram ainda estão frescas; mas bem depressa teremos

neles ,companheiros de mesa e de combate, participantes das

funções públicas.

Afirmações demasiado otimista, pois, se, a longo prazo, a realidade

se assemelhou ao quadro um tanto ou quanto de Themistius, foi com

a notável diferença de que foram os Bárbaros, vencedores, quem

admitiu a seu lado os Romanos vencidos.

Mas a aculturação dos dois grupos foi desde o início facilitado por

determinadas circunstâncias.

Os Bárbaros que se instalaram no século V no Império Romano não

eram aqueles povos jovens mas selvagens, ainda há pouco saídos das

florestas ou das estepes, que foram descontos pelos seus detratores

da época ou pelos admiradores modernos destes. Embora não

fossem, como Fustel de Coulanges exageradamente pretendeu restos

Page 183: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

de uma raça enfraquecida, despedaçada pelas suas lutas internas,

enervada por uma série de evoluções sociais e que perdeu as suas

instituições, tinham já evoluído bastante durante as deslocações, em

vários casos seculares, que por fim os lançaram sobre o mundo

romano. Tinham visto muito, tinham aprendido muito e não tinham

deixado de o fixar. Os caminhos percorridos tinham-nos levado a

constatar com culturas e civilizações em que recolheram costumes,

artes e técnicas. A maior parte deles tinha sofrido, direta ou

indiretamente, a influência das culturas asiáticas, do mundo iraniano

e do próprio mundo greco-romano especialmente da região oriental

deste, que, enquanto se ia fazendo bizantina, continuava a ser a

mais rica e mais esplendorosa.

Traziam consigo técnicas metalúrgicas muito evoluídas, as

incrustações, as técnicas da ourivesaria, a arte do couro e a admi-

rável arte das estepes, com os seus motivos animalescos estilizados.

Tinham sido em muitos casos, seduzidos pela cultura de impérios

vizinhos e criara-se neles uma admiração pelo seu saber e pelo seu

luxo, sem dúvida desajeitada e superficial mas não isenta de

respeito.

Os Hunos de Átila não eram, de maneira alguma, os selvagens

descritos por Amiano Marcelino. Se bem que seja lendária a imagem

de uma corte de Átila aberta aos filósofos, é notável que em 448 um

médico gaulês de nomeada, Eudóxio, comprometido por ligações com

os Bagaldos, se tenha refugiado junto dos Hunos. Nesse mesmo ano,

um embaixador romano de Constantinopla junto de Átila, Prisco,

encontra um romano da Mésia, ex-prisioneiro que se deixou ficar com

os novos senhores, casado com uma mulher bárbara, que lhe gabou a

organização social dos Hunos em comparação com a do mundo

romano.

Jordanes, que, na verdade, é parcial e escreve no século VI, diz dos

Godos o seguinte esta nação teve um rei, Zalmóxis, que foi filósofo e

cuja ciência prodigiosa é atestada pela maioria dos cronistas; já

antes tinha tido homens de grande sabedoria:

Page 184: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

Zeutas, e depois dele Dicineu. Os Godos não tiveram, portanto, falta

de professores para aprender filosofia e sempre foram mais

ilustrados que a maior parte dos Bárbaros; quase igualaram os

Gregos, como no caso de Dion, que escreveu em língua grega a

história dos Godos.

Outro fato de capital importância transformara a face dos invasores

bárbaros. Embora uma parte deles se tivesse mantido pagã, outra, e

não pequena, cristianizara-se. Mas, por um curioso acaso que viria a

mostrar-se carregado de conseqüências, esses Bárbaros convertidos -

Ostrogodos, Visigodos, Burgúndios, Vândalos e, mais tarde,

Lombardos - tinham sido convertidos ao arianismo, que, depois do

concílio de Niceia, era uma heresia. De facto, tinham sido

cristianizados pelo apóstolo dos godos, Ulfila, neto de capadócios

cristãos aprisionados pelos Godos em 264. A criança, “gotizada”,

fora enviada, ainda jovem, para Constantinopla, onde fora ganha

para o arianismo. Voltando para os Godos como bispo missionário,

traduziu a Bíblia para o gótico a fim de edificá-los e assim os fez

heréticos. De modo que aquilo que poderia ter sido um laço religioso

foi, pelo contrário, um tema de discórdia e gerou ásperas lutas entre

os Bárbaros, arianos, e os Romanos, católicos.

Havia ainda a atração exercida pela civilização romana sobre os

Bárbaros. Os chefes bárbaros não só chamaram romanos para seus

conselheiros como muitas vezes procuraram macaquear os costumes

romanos e ornar-se com títulos romanos: cônsules, patrícios, etc.

Não se apresentavam como inimigos das instituições romanas mas

como seus admiradores. Quando muito, podiam ser tomados por

usurpadores eram, simplesmente, a última geração daqueles

estrangeiros, Espanhóis, Gauleses, Africanos, Ilírios e Orientais, que

aos poucos tinham chegado às mais altas magistraturas e ao Império.

Melhor ainda: nenhum soberano bárbaro ousou fazer-se imperador

por si. Quando, em 476, Odoacro depôs o imperador do Ocidente

Rômulo Augústulo, enviou as insígnias imperiais ao imperador Zenão

de Constantinopla dizendo-lhe que um só imperador bastava.

Admiramos mais os títulos conferidos pelos imperadores que os

Page 185: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

nossos, escreve um rei bárbaro a um imperador. O mais poderoso de

todos, Teodorico, tomou o nome romano de Flavius e escreveu ao

imperador: ego qui sum servus vester et filius, (eu, que sou vosso

escravo e vosso filho), declarando-lhe que a sua única ambição era

fazer, do seu reino uma imitação do vosso, uma copia do vosso filho

apenas sem rival). Foi preciso esperar pelo ano 800 e por Carlos

Magno para que um chefe bárbaro ousasse fazer-se imperador.

Deste modo, cada um dos dois campos parecia ter caminhado ao

encontro do outro. Os Romanos, decadentes, barbarizados por

dentro, rebaixavam-se ao nível dos Bárbaros, ainda mal talhados, só

polidos por fora.

Mas ver nas invasões bárbaras um episódio de instalação pacífica e,

como já foi dito jocosamente, um fenômeno de “deslocações

turística”, estaria longe da realidade.

Aqueles tempos foram, sem dúvida, e antes do mais, tempos de

confusão. Confusão devida, em primeiro lugar, à própria mistura dos

invasores. No caminho, as tribos e os povos tinham-se combatido,

tinham-se subjugado uns aos outros, tinham-se misturado. Alguns

deles formaram confederações efêmeras, como os Hunos, que

englobaram no seu exército os restos de Ostrogodos, Alanos e

Sármatas vencidos. Roma tentou romanizar a pressa os primeiros

recém-chegados para deles fazer seu instrumento contra os

seguintes, ainda mais bárbaros. O vândalo Stilicon, tutor do

imperador Honório, utilizou contra o usurpador Eugénio e o seu

aliado franco Arbogast um exército de Godos, Alanos e Caucasianos.

Acontecimentos menores, mas significativos numa frente essencial -

a frente do Danúbio médio, de Passau a Klosterneuburg -, enchem

essa história exemplar que é a Vida de S. Severino, da segunda

metade do século V, tal como foi contada pelo seu discípulo

Eugippius. Severino, vindo do Oriente mas latino, tenta organizar em

redor dos restos das populações romanas do Nórico ribeirinho, com o

Page 186: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

auxílio da tribo germânica dos Rúgios e dos seus «reis», a resistência

à pressão de outros invasores prestes a forçar a travessia do rio -

Alamanos, Gados, Hérulos, Turíngios. O monge-eremita percorre as

praças fortificadas onde se refugiou a população romano-rúgia,

lutando contra a heresia, o paganismo e a fome, e opõe às investidas

dos Bárbaros, na falta de armas materiais, as armas espirituais.

Previne os habitantes contra as ações imprudentes: sair dos

acampamentos para apanhar frutos ou para as colheitas é expor-se a

ser morto ou feito prisioneiro pelo inimigo. Intimida ou faz vergar os

Bárbaros com a palavra, os milagres, o poder das relíquias dos

santos. Mas não tem ilusões. Quando algum otimista ou inconsciente

lhe pede que obtenha do chefe rúgio o direito de fazer comércio,

responde: para quê pensar em mercadorias em lugares onde não

poderão vir mercadores? Eugippius descreve maravilhosamente a

confusão dos acontecimentos ao dizer que a fronteira do Danúbio

está permanentemente perturbada e em situações ambíguas:

utraque Pannonia ceteraque confinia Danuvii rebus turbabantur

ambiguis. Toda a organização militar, administrativa e econômica se

esboroava. A fome instalava-se. As mentalidades e as sensibilidades

estavam cada vez mais embotadas e supersticiosas. E, pouco a

pouco, o inelutável ia chegando. As praças caíram umas a seguir às

outras em mãos de bárbaros e, por fim, depois da morte do homem

de Deus, que fora chefe para todos os fins daqueles grupos de gente

desamparada, Odoacro resolveu deportar para Itália os que ainda

subsistiam. Os deportados levaram consigo os restos mortais de

Severino e colocaram a relíquia num mosteiro próximo de Nápoles.

Assim foi e assim seria durante dezenas de anos o desenlace

freqüente das res ambiguce das invasões.

A confusão aumentava com o terror. E, mesmo que descontemos os

exageros, as narrativas de morticínios e de devastações que enchem

toda a literatura do século V não nos deixam dúvidas acerca das

atrocidades e destruições que acompanharam os “passeios” dos

povos bárbaros.

Eis, segundo Oriênsio, bispo de Auch, a Gália depois da grande

Page 187: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

invasão de 417: Vê com que rapidez a morte pesou sobre todo o

mundo, como a violência da guerra atingiu tantos povos. Nem o chão

acidentado dos bosques espessos ou das altas montanhas, nem a

corrente das ribeiras de rápidos remoinhos, nem o abrigo das

cidadelas e dos muros das cidades, nem a barreira do mar, nem as

tristes solidões do deserto, nem os desfiladeiros, nem as cavernas

encimadas de sombrios rochedos puderam escapar às mãos dos

Bárbaros. Muita gente pereceu vitimada pela má fé, pelo perjúrio,

pela denúncia dos seus concidadãos. As emboscadas fizeram muito

mal, mas também fez muito mal a violência popular. Quem não foi

dominado pela força foi dominado pela fome. A mãe sucumbiu

tristemente com os filhos e seu esposo, o senhor, caiu em servidão

com os seus escravos. Alguns foram pasto dos cães; a muitos, as

casas incendiadas lhes tiraram a vida e lhes serviram depois de pira

mortuária. Nos burgos, nas propriedades, nos campos, nas

encruzilhadas, em todos os sítios, aqui e além ao longo dos

caminhos, se vê morte, sofrimento, destruição, fogo e luto. Uma

enorme fogueira desfez em fumo toda a Gália.

E a Espanha segundo, o bispo Idácio:

Os Bárbaros espalham-se pelas Espanhas; o flagelo da epidemia é

também violento, a tirania dos exatores pilha recursos e fortunas

escondidas nas cidades e a soldadesca esgota o resto. Reina tão atroz

penúria que, sob o império da fome, os homens comeram carne

humana; houve mães que degolaram os filhos para os cozinhar e com

eles se saciar. Os animais, habituados aos cadáveres dos que tinham

morrido de fome, das vítimas do ferro e dos que sucumbiram à

doença, já matam homens em plena saúde; não contentes de

alimentar-se com a carne dos cadáveres, atacam a espécie humana.

Assim, os quatro flagelos do ferro, da fome, das epidemias e dos

animais devastam tudo em todo o mundo e as predições do Senhor

através dos seus profetas realizaram-se.

Eis a macabra abertura com que começa a história do Ocidente

medieval. Continuará a dar o tom durante dez longos séculos. O

Page 188: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

ferro, a fome, as doenças, as feras serão os sinistros protagonistas

desta história. Claro que não foram só os Bárbaros que os trouxeram

consigo. O mundo antigo tinha já tomado conhecimento deles; e, no

momento em que os Bárbaros os desencadearam, tendiam já a voltar

em força. Mas os Bárbaros deram uma violência inaudita a este

vendaval de violência. O gládio, a espada comprida das grandes

invasões, que depois será a arma dos cavaleiros, estende doravante a

sua sombra mortífera sobre o Ocidente. Antes que lentamente se

reate o trabalho construtivo, um frenesi de destruição se apodera

durante muito tempo do Ocidente. Os homens do Ocidente medieval

são bem os filhos desses Bárbaros, semelhantes aos Alanos descritos

por Amiano Marcelino: “O prazer que os espíritos amáveis e pacíficos

encontram no lazer estudioso encontram-no eles nos perigos e na

guerra. A seus olhos, a suprema felicidade é perder a vida no campo

de batalha; morrer de velho ou de acidente é um opróbrio e uma

cobardia que eles cobrem de horríveis injúrias; matar um homem é

um heroísmo para o qual não têm elogios que cheguem. O troféu

mais glorioso é a cabeleira de um inimigo escalpado; serve de

enfeite aos cavalos de guerra. Entre eles não se vê templo nem

santuário, nem sequer um nicho coberto de colmo. Uma espada nua,

espetada na terra segundo o ritual bárbaro, é o emblema de Marte;

honram-no devotadamente como soberana das regiões que

percorrem.

Paixão de destruição que o cronista Fredegário expõe e no século VII

pela boca da mãe de um rei bárbaro ao exortar o filho: “Se queres

realizar uma· façanha e ganhar nome, destrói tudo o que os outros

tiverem construído e mata todo o povo que venceres; pois não és

capaz de construir um edifício superior ao que os teus antecessores

fizeram e não há mais bela façanha com que possas erguer o teu

nome.”

Ora ao ritmo de lentas infiltrações e de avançadas mais ou menos

pacíficas ora ao ritmo de bruscas arremetidas acompanhadas de lutas

e morticínios, a invasão dos Bárbaros modificou profundamente entre

o início do século V e o fim do século VII, o mapa político do

Page 189: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

Ocidente, que estava sob a autoridade nominal do imperador

bizantino.

De 407 a 429, uma sucessão de investidas devastou a Itália, a Gália,

a Espanha. O episódio mais espetacular foi o cerco, conquista e

pilhagem de Roma por Alanco e os Visigodos no ano de 410. Muitos

ficaram estupefato com a queda da Cidade Eterna. “A voz fica-me na

garganta e os soluços interrompem-me ao ditar estas palavras - geme

S. Jerónimo na Palestina. - Foi conquistada a cidade que conquistou

o universo.” Os pagãos acusam os cristãos de terem sido causa do

desastre ao expulsar de Roma os deuses tutelares. Santo Agostinho

encontra no acontecimento pretexto para na Cidade de Deus definir

as relações entre a sociedade terrestre e a sociedade divina.

Desculpa os cristãos e reduz o caso às suas proporções: um fato

vulgar, trágico, que se repetirá - dessa vez sem efusão de sangue,

sine ferro et igne em 455 com Genserico e os seus vândalos.

Vândalos, Alanos, Suevos devastam a Península Ibérica.

A instalação dos Vândalos no Sul de Espanha, embora breve, batiza a

Andaluzia. Em 429, os Vândalos - os únicos bárbaros que possuíam

frota - passaram à África do Norte e conquistaram a província

romana de África, ou seja, as atuais Tunísia e Argélia oriental.

Depois da morte de Alarico, os Visigodos refluíram de Itália para a

Gália em 412 e depois, em 414, para a Espanha, de onde em 418

retiraram para se instalar na Aquitânia. De resto, a diplomacia

romana atuou em cada uma destas fases·. Foi o imperador Honório

quem desviou para a Gália o rei visigodo Ataulfo, e este casou em

Narbonne, a 1 de Janeiro de 414, com uma irmã do imperador, Galla

Placidia. Foi ainda ele que, depois do assassínio de Ataulfo, em 415,

incitou os Visigodos a ir disputar a Espanha aos Vândalos e aos Suevos

e depois os chamou novamente para a Aquitânia.

A segunda metade do século V assistiu a mudanças decisivas. A

norte, bárbaros escandinavos - Anglos, Jutas e Saxões-, depois de

uma série de investidas na Bretanha (a Grã-Bretanha), acabaram por

Page 190: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

ocupá-la entre 441 e 443. Uma parte dos Bretões vencidos atravessou

o canal e instalou-se na Armórica, que passou a chamar-se Bretanha.

Entretanto, porém, o acontecimento mais importante, apesar de

efêmero, foi a formação do Império Huno de Átíla. De fato, fez

tremer tudo. Em primeiro lugar, como oito séculos mais tarde faria

também Gengis-Khan, Átila unificou, por volta de 434, às tribos

mongóis que tinham passado ao Ocidente e bateu e absorveu outros

bárbaros; durante algum tempo manteve com Bizâncio relações

ambíguas, roçando-se pela sua civilização mas espreitando-a, ao

mesmo tempo, como a uma presa - tal como Gengis-Khan faria

depois com a China - para finalmente se deixar persuadir, depois de

uma tentativa nos Bálcãs em 448, a precipitar-se sobre a Gália, onde

o romano Etius, graças principalmente aos contingentes visigóticos

de que dispunha, o deteve em 451 nos campos cataláunicos. O

Império Huno desfez-se e as hordas arrepiaram caminho para leste

quando, em 453, morreu aquele que ficaria na história, nas palavras

de um obscuro cronista do século IX, como o “flagelo de Deus”.

Tempos confusos, com estranhas figuras e estranhas situações. Uma

irmã do imperador Valentiniano II, Honória, toma por amante o seu

intendente. O augusto irmão irrita-se e castiga-a exilando-a para

Constantinopla. A princesa, já por temperamento já por despeito,

faz chegar um anel às mãos de Átila, que fascina as mulheres.

Valentiniano apressa-se a casar a irmã antes que o huno exija a noiva

e, com ela, em dote, metade do Império.

Átila, ao voltar da Gália, precipitou-se em 452 sobre o Norte de

Itália, tomou Aquileia e levou parte da população sob cativeiro. Seis

anos depois, os prisioneiros, que todos julgavam mortos, voltaram.

Muitos deles encontraram as mulheres novamente casadas. O bispo,

embaraçado, consultou o papa, Leão o Grande, e este pronunciou a

sentença: os repatriados tinham direito às mulheres, aos escravos,

aos bens. Mas as mulheres casadas segunda vez não seriam

castigadas a não ser que recusassem os antigos maridos: neste caso,

seriam excomungadas.

Page 191: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

Entretanto, o imperador instalou no Império um novo povo: os

Burgúndios, que por algum tempo tinham estado em Worms, de onde

tinham tentado invadir a Gália, mas que tinham sofrido sangrenta

derrota às mãos de Jétius e dos seus mercenários hunos. O episódio

de 436, em que o seu rei Gunther encontrou a morte, será o ponto

de partida da epopéia dos Niebelungen. Em 443, os Romanos

concederam-lhes a ocupação da Sabóia.

Em 468, os Visigodos de Eurico lançam-se de novo à conquista da

Espanha, que concluem em dois anos.

Surgem então Clóvis e Teodorico.

Clóvis é o chefe da tribo franca dos Sábios, que, durante o século V,

se deslocou primeiro à Bélgica e depois para o Norte da Gália. Junta

em sua volta a maior parte das tribos francas, submete a Gália do

Norte vencendo o romano Siágrio em 486 em Soissons, que passa a

ser a sua capital, repele na batalha de Tolbiac uma invasão dos

Alamanos e conquista finalmente em 507 a Aquitânia aos Visigodos,

cujo rei, Alarico II, é vencido e morto em Vouillé. Quando Clóvis

morre, em 511, os Francos são senhores da Gália com excepção da

Provença.

Os Ostrogodos tinham finalmente caído sobre o Império.

Conduzidos por Teodorico, atacaram Constantinopla em 487, foram

desviados para Itália e conquistaram-na em 493. Teodorico, instalado

em Ravena, ali reinou durante trinta anos e, se os panegiristas não

exageraram muito, deu a conhecer à Itália, que governou com

conselheiros romanos - Libério, Cassiodoro, Símaco e Boécio -, uma

nova idade de ouro. Ele próprio, que tinha vivido como refém na

corte de Constantinopla dos oito aos dezoito anos, era o mais

completo e o mais fascinante de todos os bárbaros romanizados.

Restaurador da pax romana na Itália, só em 507 interveio contra

Clóvis, a quem proibiu que juntasse a Provença à Aquitânia tomada

Page 192: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

aos Visigodos. Não tinha interesse em ver os Francos chegar ao

Mediterrâneo.

No início do século VI, a partilha do Ocidente parece estar garantida

entre os Anglo-Saxões, numa Grã-Bretanha completamente isolada

do continente, os Francos, que têm a Gália, os Burgúndios, limitados

à Sabóia, os Visigodos, senhores da Espanha, os Vândalos, instalados

em África, e os Ostrogodos, que dominam a Itália.

Em 476, um fato menor passa quase despercebido. Um romano da

Panónia, Orestes, que fora secretário de Átila, reúne a seguir à

morte do seu senhor, alguns restos do exército: Escires, Hérulos,

Turcilingos e Rúgios, e põe-nos ao serviço do Império em Itália.

Senhor da milícia, aproveita-se deste fato para depor o imperador

Júlio Nepos e fazer proclamar em 475 o seu jovem filho Rómulo. Mas,

no ano seguinte, o filho de outro favorito de Átila, o esciro Odoacro,

levanta-se contra Orestes à frente de outro grupo de bárbaros, mata-

o, depõe o jovem Rómulo e envia as insígnias do imperador do

Ocidente ao imperador Zenão de Constantinopla. Este acontecimento

parece não ter afetado muito os contemporâneos. Cinqüenta anos

depois, um ilírio ao serviço do imperador de Bizâncio, o. conde

Marcelino, escrevia na sua crónica: “Odoacro, rei dos Godos, obteve

Roma. O Império Romano do Ocidente, que Octávio Augusto, o

primeiro Imperador, começara a reger no ano 709 de Roma, acabou

com o pequeno imperador Rômulo.”

O século V viu o desaparecimento das últimas grandes personagens

que estavam ao serviço do Império do Ocidente: Jétius, o “último

romano”, assassinado em 454; Siágrio, entregue pelos Visigodos a

Clóvis, que o mandou decapitar em 486; e os bárbaros Estilicão,

patrício e tutor vândalo do imperador Honório, executado por ordem

do pupilo em 408, Rimicer, suevo que tinha também o título de

patrícia e que foi senhor do Império do Ocidente até morrer em 472,

e Odoacro, atraído por Teodorico a uma cilada e morto pelo próprio

ostrogodo em 493.

Page 193: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

Até então, a política dos imperadores do Oriente procurara limitar os

estragos: impedir que os bárbaros tomassem Constantinopla

comprando a peso de ouro o seu recuo, desviá-los para a parte

ocidental do Império, contentar-se com uma vaga submissão dos reis

bárbaros, a quem eram prodigamente concedidos títulos de patrício

ou de cônsul, tentar afastar do Mediterrâneo os invasores.

Paz romana, a tranqüilidade que Roma impunha no seu Império pela

força.

amare nostrum não era apenas o centro do mundo romano: era a

artéria essencial do seu comércio e dos seus abastecimentos. Em

419, uma lei promulgada em Constantinopla punia com a morte

quem ensinasse aos Bárbaros as coisas do mar. Teodorico, como já

vimos, retomou essa tradição e impediu Clóvis de chegar ao

Mediterrâneo por meio da tomada da Provença. Mas os Vândalos

tinham ultrapassado essas pretensões ao construir a frota que lhes

permitiu conquistar a África e devastar Roma em 455.

A política bizantina modificou-se com o advento de Justiniano em

527, um ano depois da morte de Teodorico em Ravena. A política

imperial abandonou a passividade e passou à ofensiva. Justiniano

queria reconquistar, senão a parte ocidental do Império Romano por

completo, pelo menos o essencial do seu domínio mediterrânico.

Pareceu conseguir esse intento. Os generais bizantinos liquidaram o

reino: vândalo em África (533-534); depois, com maior dificuldade,

puderam pôr fim à dominação gótica em Itália (entre 536 e 555); em

554 arrancaram a Bética aos Visigodos de Espanha. Efémeros êxitos

que enfraqueceram ainda mais um pouco Bizâncio perante os perigos

orientais e esgotaram ainda mais o Ocidente, tanto mais que, a

partir de 543, a peste negra viera juntar os seus danos aos da guerra

e da fome. A maior parte de Itália, com exceção do exarado de

Ravena, de Roma e dos seu arredores, bem como do extremo sul da

península, foi perdida entre 568 e 572 a favor de novos invasores, os

Lombardos, empurrados para sul por nova invasão asiática - a dos Á

varas. Os Visigodos reconquistaram a Bética no fim do século VI. E a

África do Norte foi conquistada pelos Árabes depois de 660.

Page 194: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

O grande acontecimento do século VII - até para o Ocidente - foi à

aparição do Islão, com a subseqüente conquista árabe. Veremos mais

adiante qual o alcance que para a cristandade teve a formação do

mundo muçulmano. De momento, examinaremos apenas o impacto

exercido pelo Islão no mapa político do Ocidente.

A conquista árabe começou por arrancar o Maghreb à Cristandade

ocidental; depois submergiu a Espanha, facilmente conquistada aos

Visigodos entre 711 e 719, exceptuando-se o Noroeste da península,

onde os cristãos se mantiveram independentes. Dominou por algum

tempo a Aquitânia e, principalmente, a Provença, até que Carlos

Martel a deteve em 732 em Poitiers e os Francos a repeliram para sul

dos Pireneus, atrás dos quais teve de limitar-se ao perder Narbonne

em 759.

De fato, o século VIII foi o século dos Francos. A ascensão dos

Francos no Ocidente, apesar de alguns desaires - por exemplo,

perante Teodorico -, foi, depois de Clóvis, bastante regular. A

grande esperteza de Clóvis esteve na conversão, dele e de todo o seu

povo, não ao arianismo, como no caso dos outros reis bárbaros, mas

ao catolicismo. Pôde com isso jogar a cartada religiosa e beneficiar

de apoio, senão do papado - que era ainda fraco-, pelo menos da

poderosa hierarquia católica e do não menos poderoso monarquismo.

Logo no século VI, os Francos conquistaram, entre 523 e 534, o reino

dos Burgúndios e, em 536, a Provença.

As partilhas e rivalidades entre os descendentes de Clóvis atrasaram

o desenvolvimento dos Francos, que no início do século VIII pareceu

mesmo comprometido pela decadência da dinastia merovíngia - que

passou à lenda na imagem dos «reis preguiçosos» - e do clero franco.

Nessa altura, os Francos já não eram os únicos ortodoxos da

Cristandade ocidental. Os Visigodos e os Lombardos tinham

abandonado o arianismo pelo catolicismo; o papa Gregório Magno

(590-604) iniciou a conversão dos Anglo-Saxões, que confiou ao

monge Agostinho e seus companheiros; e, graças a Willibrod e

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Bonifácio, a primeira metade do século VIII viu o cristianismo

penetrar na Frisia e na Germânia.

Mas, ao mesmo tempo, os Francos estavam já a aproveitar

novamente de todas as suas possibilidades. O clero reformava-se sob

a direção de Bonifácio e a jovem e empreendedora dinastia dos

carolíngios substituía a desvitalizada dinastia merovíngia.

Os mordomos do palácio carolíngios dominavam, sem dúvida, as

rédeas reais do poder havia decénios; mas Pepino o Breve, filho de

Carlos Martel, deu um passo em frente ao conferir todo o alcance

possível à chefia católica dos Francos. Concluiu com o papa uma

aliança favorável a ambas as partes. Apoiado numa falsificação

forjada entre 756 e 760 pela chancelaria pontifical - a pretensa

Doação de Constantino -, nasceu o Estado pontifical, ou Patrimônio

de S. Pedro, fundando o poder temporal do papado, que viria a

desempenhar tão importante papel na história política e moral do

Ocidente medieval. Em contrapartida, o papa reconhecia a Pepino o

título de rei (751) e sagrava-o (754) no próprio ano em que surgia o

Estado pontifical. Estavam lançadas as bases que, em meio século,

iriam permitir à monarquia carolíngia reunir sob o seu domínio a

maior parte do Ocidente cristão e, a seguir, restaurar em seu

proveito o império do Ocidente.

Mas, durante os quatro séculos que mediaram entre a morte de

Teodósio (395) e a coroação de Carlos Magno (800), nascera no

Ocidente um mundo novo, lentamente surgido da fusão do mundo

romano com o mundo bárbaro. Tomara corpo a Idade Média

ocidental.

LEGOFF, J. A civilização do ocidente medieval. Lisboa: Estampa,

1983.

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COMENTÁRIO POR BRUNA LETÍCIA COLITA

Le Goff apresenta uma fase das transformações na Idade Média, ou

melhor, no resultado do que aconteceu na Antiguidade Tardia, às

modificações do Império romano com as influências do cristianismo

onde ele mesmo coloca “o principal agente de transmissão da

cultura romana ao Ocidente medieval”.

Segundo Le Goff, a Idade Média apresentou muitas contradições as

quais demoraram dez séculos para serem esclarecidas, e tudo está

de certo modo incluído para este caos que se apresenta na Idade

Média, tudo é conseqüência desde as invasões e crises no Império

Romano.

Os bárbaros afetam o mundo romano, até os camponeses sentiam-se

constantemente ameaçados e sua situação estava cada vez mais

próxima da dos escravos.

As causas das invasões segundo Le Goff, não são de tanta

importância, de modo geral as cita como necessidade, e a crueldade

dos bárbaros talvez se explique pelo desespero em que

encontravam. Por exemplo, os germânicos viviam numa fria região,

com solo ruim, e a eles foi recusado abrigo, que pacificamente

alguns povos solicitavam aos romanos e lhes era negada.

Muito interessante, nas palavras de Le Goff, é a noção dos bárbaros,

que traz a idéia não somente de povos sanguinários como é comum

na noção geral, mas também de povos que sofreram nas “garras” do

Império romano, passando fome se tornando escravos e perdendo

sua cultura, seus valores.

Os Hunos são descritos por Amiano Marcelino numa visão

praticamente de monstros, animais de duas patas, selvagens e

Page 197: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

grotescos, assim como os Lombardos também são definidos.

Destaca-se as fontes destas definições, a maioria das descrições

destes povos é cristã, ou pagã, ou seja: ódio aos bárbaros. Santo

Ambrósio, é citado como grande inimigo dos bárbaros, e os vê como

cães malditos trazidos pelo destino.

Mas surge um texto, citado por Le Goff extraordinário de Salviano

um monge em 440, que contesta pelo pensamento dos bárbaros, o

qual é de certa forma ingênuo, pois eles não eram cristãos e as

invasões e saques era algo comum, não havendo pecado nem

maldade ( do ponto de vista religioso) nenhum. E ainda comenta que

os próprios romanos foram destruindo seu grande Império.

Segundo uma narrativa de Oriênsio, bispo de Auch a Gália depois da

invasão de 417, ficou em ruínas, nada nem ninguém escapou ileso da

grande invasão, “quem não foi dominado pela força, foi dominado

pela fome”.

Os bárbaros em sua grande maioria admiravam segundo Le Goff, a

cultura e civilização romana adotando em seus reinos o modo de

vida e conduta romano.

Várias características foram sendo adotadas conforme influências de

outros povos, outras regiões, mas podemos citar que o cristianismo

esteve sempre presente e influenciando muitos

reinos,principalmente com armas espirituais.

Os Bagaldos foram expulsos e julgados, desapossados, feridos; e

ainda os julgam “bárbaros”, mas Le Goff cita que: “E chamamo-lhes

de rebeldes homens perdidos quando fomos nós que os obrigamos a

ser criminosos”.

O certo segundo Le Goff é que Roma não foi assassinada, nem morta

naturalmente, através dos bárbaros ela sobreviveu e ainda está

presente, não desapareceu e os bárbaros são responsáveis por essa

Page 198: A Antiguidade Tardia Em Textos - O Fim Do Imperio Romano - Andre Bueno

continuidade.

Em alguns momentos a frieza de Roma era esmagadora ao ponto dos

próprios romanos se juntarem a civilização dos bárbaros para se

refugiarem devido à grande perseguição que ocorria.

Certamente os bárbaros são grandes responsáveis pelas mudanças da

Europa, grandes invasões e investidas marcam principalmente de

407 a 429.

Grandes e inúmeras invasões ocorrem nos seguintes séculos, grandes

dominações no início do século VI, parece estar garantida a partilha

do Ocidente: Anglo-saxões numa Grã Bretanha, os Francos: Gália,

Burgúndios: Sabóia, Visigodos: Espanha, Vândalos:África,

Ostrogodos: Itália.

O século VIII é destacado pelos Francos, que se aliaram as forças

cristãs e com isso se fortaleceram e conquistaram entre 523-534 o

reino dos Burgundiose em 536 a Provença.

Podemos então perceber o apanhado geral aos reinos bárbaros que

Le Goff expõe na sua obra, e principalmente a idéia de ligação e

importância desses reinos a história da antiguidade tardia numa

transição a Idade Média, onde tudo está sendo moldado e preparado

para as grandes modificações do poder em que o cristianismo, e

tudo que este representa como resposta, apareceria nas realizações

dos séculos seguintes.