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Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1 1

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2 Paschoal Lemme | Memórias de um Educador

Paschoal Lemme

Memórias de um Educador

Volume 1Infância, Adolescência, Mocidade

Volume 2Formação Profissional e Opção Política

Volume 3Estudos de Educação e Perfis de Educadores

Volume 4Estudos de Educação, Participação em Conferências

e Congressos. Documentos

Volume 5Estudos de Educação e Destaques

da Correspondência

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Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1 3

Infância, Adolescência, Mocidade

Volume 1

2ª edição

Apresentação de Jader de Medeiros Britto

Prefácio de Antônio Houaiss

Brasília-DF

2004

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4 Paschoal Lemme | Memórias de um Educador

COORDENADORA-GERAL DE LINHA EDITORIAL E PUBLICAÇÕESPatrícia Barcelos

COORDENADORA DE PRODUÇÃO EDITORIALRosa dos Anjos Oliveira

COORDENADOR DE PROGRAMAÇÃO VISUALF. Secchin

EDITOR EXECUTIVOJair Santana Moraes

REVISÃOJosé B. SantosVilson F. Ramos

NORMALIZAÇÃORegina Helena Azevedo de Mello

PROJETO GRÁFICO/CAPA/DIAGRAMAÇÃO/ARTE-FINALMarcos Hartwich

FOTOS DA CAPA E DO FRONTISPÍCIOPaschoal Lemme, 1988 e 1939, respectivamente.

TIRAGEM1.000 exemplares

EDITORIAInep/MEC - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio TeixeiraEsplanada dos Ministérios, Bloco L, Anexo 1, 4º Andar, Sala 418CEP 70047-900 - Brasília-DF - BrasilFones: (61) 2104-8438, (61) 2104-8042Fax: (61) [email protected]

DISTRIBUIÇÃOInep - Coordenação de Divulgação InstitucionalEsplanada dos Ministérios, Bloco L, Anexo 2, 4º Andar, Sala 414CEP 70047-900 - Brasília-DF - BrasilFone: (61) [email protected]://www.inep.gov.br/pesquisa/publicacoes

Lemme, Paschoal, 1904-1997Memórias de um educador / Paschoal Lemme. – 2. ed. – Brasília: Inep, 2004.5 v. : il.

Conteúdo: v. 1. Infância, adolescência, mocidade – v. 2. Vida de família, formação profissional, opçãopolítica – v. 3. Estudos de educação e perfis de educadores – v. 4. Estudos de educação, participação emconferências e congressos, documentos – v. 5. Estudos de educação e destaques da correspondência.

1. Lemme, Paschoal, 1904-1997 - Biografia. 2. Escola pública. 3. Educação de adultos. 4. Lemme,Paschoal, 1904-1997 - Correspondência. 5. Azevedo, Fernando - Correspondência. I Título.

CDU 92:37.011.31(81)

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Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1 5

Em memória de meus pais:Antônio Lemme

(Consenza, Calábria, Itália, 1874 – Rio de Janeiro, Brasil, 1946) eMaria do Nascimento Paes

(Vizeu, Portugal, 1881) – Rio de Janeiro, Brasil, 1968),brasileiros de coração e de direito que,

vencendo enormes dificuldades,souberam criar e educar doze outros

para uma vida de trabalho, estudoe pensamento social avançado.

Recordação carinhosa de:Teófilo Moreira da Costa,

mestre, incomparável que me fez professor.

À Carolina,que me vem suportando, com paciência

e dedicação inigualáveis,há mais de meio século de vida em comum,

com algumas alegrias e muitas decepções e sofrimentos.

Para os 5 filhos e os 11 netos (até agora),que assim saberão, um pouco, quem

foi esse pai e avô, para que não ojulguem com excessiva severidadenem com indulgência demasiada.

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6 Paschoal Lemme | Memórias de um Educador

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Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1 7

Sou homem e nada que é humano me é indiferente.TERÊNCIO

Sou o que sou, como qualquer pessoa: um indivíduo decunho próprio, diferente dos outros, com uma história emque se encadeiam tendências e impulsos ancestrais; umahistória de sonhos, desejos e de experiências próprias, sendoeu a soma de tudo isso.

CHARLES CHAPLIN. História da Minha Vida

As palavras não conseguem expressar os pensamentos comprecisão; de imediato as coisas se tornam diferentes,distorcidas, tolas.

HERMANN HESSE. Viagem ao Oriente

[...] graças te sejam dadas, nobre Shakespeare, que podesdizer todas as coisas, absolutamente todas, tais quais elassão!

SORËN KIERKERGAARD. Temor e Tremor

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Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1 9

Os filósofos, em geral, desejam o controle das emoções...Estou convencido de que tudo o que passa pela mente dohomem, não importa quão trivial ou idiota, não importaquão terrível, às vezes, tem sempre algum valor. Em outraspalavras: retire as emoções de um ser humano e ele serátransformado em vegetal.

ISAAC BESHEVIG SINGERPrêmio Nobel de Literatura de 1978

Na escola da vida não há férias.(Inscrição no pára-choque de um caminhão, colhida porJorge Amado)

E olhei para todas as obras que fizeram minhas mãos, bemcomo para o trabalho que eu, trabalhando, tinha feito, e eisque tudo era vaidade e aflição do espírito e que proveitoalgum havia debaixo do sol.

Eclesiastes, 2,11

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Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1 11

Hesitações de várias naturezas fizeram com queadiasse por vários anos a publicação destas Memórias. Aprincipal, talvez, tenha sido o sentimento pessimistainveterado, que sempre me dominou, da inutilidade e dadesimportância de tudo o que faço ou escrevo.

Resolvendo por fim publicá-las, devo muitosagradecimentos a parentes e amigos que fizeram críti-cas e sugestões depois de terem tido a paciência de leras primeiras versões do texto e que me estimularampara que afinal me revestisse da necessária coragem emodéstia para divulgá-las.

Minha gratidão vai, porém, em primeiro lugar, paraminha neta Lúcia Helena Lemme Weiss que, com sua in-sistência, não me deixou desistir da publicação, conven-cendo-me de que o livro poderia ter, ao menos, algumautilidade para um melhor conhecimento da época em queviveu o avô e as pessoas com quem conviveu. E auxiliou-me bastante também nas medidas práticas para preparara edição. Meu reconhecimento também à minha outraneta, Cláudia Calmon Lemme que, interessada na leitura,fez minuciosa correção dos erros que encontrou no texto.

Agradeço igualmente a Verena Alberti, profissio-nal competente, que aceitou a espinhosa tarefa de revero texto, fazendo excelentes sugestões para melhorar aredação em vários trechos e preparando os originais deacordo com as normas exigidas para a publicação.

Paschoal LemmeRio de Janeiro, novembro de 1983

1983

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Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1 13

Apresentação da 2ª edição ................................................... 15

Prefácio da 1ª edição .............................................................. 19

Explicação? .................................................................................. 23

Capítulo IO chalé da Rua Figueiredo .................................................... 27

Capítulo IIAs origens .................................................................................... 47

Capítulo IIIDe mim próprio ......................................................................... 61

Capítulo IVO Méier de minhas reminiscências ..................................... 77

Capítulo VO professor Teófilo ................................................................... 89

Capítulo VIBarra Mansa ............................................................................... 107

Capítulo VIIA Escola Normal ........................................................................ 117

Capítulo VIIILeituras e livros ......................................................................... 127

Capítulo IXEspiritismo .................................................................................. 139

SUM

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14 Paschoal Lemme | Memórias de um Educador

Capítulo XA escola politécnica ................................................................. 147

Capítulo XITrabalho ...................................................................................... 155

Capítulo XIIInterregno alemão, comercial e dentário ........................ 169

Capítulo XIIIAmores e casamento ............................................................... 181

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Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1 15

PASCHOAL LEMME: SERVIDOR DA EDUCAÇÃO PÚBLICA

Celebra-se, neste ano de 2004, o centenário doeducador Paschoal Lemme. Nascido na cidade do Rio deJaneiro em 12 de novembro de 1904, no bairro do Méier,viveu numa família de classe média, sendo seu pai, deorigem italiana, dentista de profissão e sua mãe, de ber-ço português, professora, inteiramente dedicada à edu-cação dos filhos (Memórias, v. 1).

A formação de Paschoal, iniciada na família – foialfabetizado por sua mãe – , desenvolveu-se na escolapública. Do primário ao superior, freqüentou sempre es-tabelecimentos da rede escolar do antigo Distrito Federal,passando pela Escola Visconde do Cairu, pela Escola Nor-mal do Rio de Janeiro e pela Escola Politécnica da redefederal, na qual estudou engenharia até a 3ª série, pois jáhavia se definido pelo total engajamento no universo daeducação. Disse a seu pai: "Se não for professor, não sereimais nada!" (Memórias, v. 1).

Ativo colaborador das reformas do ensino nomunicípio do Rio de Janeiro, durante as gestões deFernando de Azevedo (1928-1930) e Anísio Teixeira(1931-1935), Paschoal já havia ingressado na Associa-ção Brasileira de Educação (ABE), familiarizando-se comos principais educadores de então (Memórias, v. 2).

Membro atuante dessa Associação, foi o mais jo-vem signatário do emblemático Manifesto de 1932, dos

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16 Paschoal Lemme | Memórias de um Educador

Pioneiros da Educação Nova, e um de seus articuladores (Memórias, v. 4). Aindaque solidário com as idéias esposadas por esse Manifesto, nascido no âmbito daABE, terá sido no Manifesto dos Inspetores de Ensino do Estado do Rio de Janeiroao Magistério e à Sociedade Fluminense, de 1934 (Memórias, v. 4), que Paschoal,seu principal redator, ao lado de Valério Konder, esboçou uma definição mais pesso-al em termos de política educacional, ao adotar a premissa de que a educação, parase tornar efetivamente democrática, pressupunha a transformação da própria socie-dade, em termos de um real compromisso com a ascensão socioeconômica das classesmenos favorecidas.

Sua percepção objetiva da realidade vivida pelo operariado do Rio de Janeirolevou-o, durante a administração do Anísio Teixeira na Secretaria de Educação doDistrito Federal, a organizar os cursos noturnos supletivos da União Trabalhista, con-siderada de orientação marxista pela polícia fascista do capitão Felinto Müller, nosalbores do Estado Novo. Ao lado de militantes socialistas como Graciliano Ramos eNise da Silveira, pagou o tributo da fidelidade a suas aspirações de justiça social,recebendo o batismo do cárcere durante um ano e quatro meses (Memórias, v. 2).

Dessa experiência com o ensino supletivo, originou-se sua tese sobre"Educação de Adultos", apresentada ao concurso para técnico de educação doMinistério da Educação e Saúde Pública (Memórias, v. 5). Estando entre os pri-meiros classificados, foi convocado para integrar a equipe de Lourenço Filho naorganização do Inep, então Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, de iní-cio como chefe da Seção de Documentação e Intercâmbio e, mais tarde, daSeção de Inquéritos e Pesquisas.

Ao longo do Estado Novo e, após sua queda, no período seguinte, denomi-nado de Democracia Liberal, sob a égide da Constituição de 1946, Paschoal Lemmededicou-se integralmente ao serviço público, sempre atuando no campo educativo-cultural, ora no Museu Nacional, ora no Instituto Nacional de Cinema Educativo.Justamente nessa fase, em que simultaneamente exercia o magistério na EscolaNormal do Rio de Janeiro, foi divulgando suas idéias, por meio de livros comoEducação democrática e progressista, síntese de seu pensamento, mediante arti-gos, ensaios, cartas, relatórios técnicos ou comunicações a congressos nacionais einternacionais de que participou. Em todos esses trabalhos, ressalta-se a absolutacoerência e fidelidade a seu ideário, consubstanciado no leitmotiv de sua reflexão:"Educação democrática somente numa sociedade democrática" (Memórias, v. 5).

Seu apurado gosto pela epistolografia fica evidente em sua farta corres-pondência constante de seu arquivo, por ele doado ao Programa de Estudos eDocumentação, Educação e Sociedade (Proedes), da Faculdade de Educação daUniversidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Nela se destaca o intercâmbio comFernando de Azevedo, dos anos de 1930 a 1960 (Memórias, v. 5), além das cartasaos jornais em que assume sempre a defesa da educação pública em todos os seusaspectos. É nessa perspectiva que se tornou um dos principais articuladores doManifesto de 1959, dirigido ao povo e ao governo, da lavra de Fernando deAzevedo. Debatia-se, então, no Congresso, o Projeto da Lei de Diretrizes e Basesda Educação Nacional, marcado pela antinomia das correntes empenhadas naprimazia ideológica a ser concedida ao ensino público e ao ensino privado.

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Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1 17

Ao reeditar os cinco volumes das Memórias, por ele estruturados, o Inep seassocia às justas homenagens que lhe estão sendo prestadas na celebração de seucentenário, registrando o reconhecimento desse Instituto à relevante contribuiçãodo educador Paschoal Lemme, um de seus primeiros e qualificados servidores.

Para esta segunda edição, foram necessárias algumas alterações no títulodos volumes, com base em consulta a sua família, prevalecendo o título geral Me-mórias de um educador para todo o conjunto, com pequenos ajustes nos subtítulosde cada volume. Acrescentou-se uma biobibliografia ao 5º, compreendendo a cro-nologia do educador, apoiada em seu curriculum vitae, por ele organizado, e suabibliografia, presente na primeira edição.

As idéias, reflexões e testemunhos de Paschoal Lemme reunidos nas suasMemórias, certamente, poderão inspirar as novas gerações a melhor alicerçar suapercepção dos caminhos para a educação brasileira.

Jader de Medeiros BrittoRio de Janeiro, junho de 2004

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18 Paschoal Lemme | Memórias de um Educador

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Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1 19

É com o mais alto espírito de gratidão – envoltanuma aura de admiração que cresce sempre – que buscodar este depoimento.

Paschoal Lemme é hoje da minha geração: em ver-dade, o tempo, na medida em que flui, aproxima – emvida e post mortem – os homens: tinha ele, vejo-o agora,doze anos mais que eu quando comecei meus estudos se-cundários e ele era já vice-diretor da primeira escola téc-nico-secundária então criada no Distrito Federal, o Rio deJaneiro, sob a administração do educador, sempre lem-brado, Anísio Teixeira. Entre mim e Paschoal medeava oque havia entre um quase ou já adolescentezinho – quese me perdoe o autocomiserativo diminutivo afetivo tãovivo! – e um respeitadíssimo (pelo menos, por nós, alunos)juveniadulto, marcado já pelo saber e conhecer e fazer,voltados integralmente para a missão, sacrossanta (e odigo sem hipérbole), de educar: educar é encaminhar es-píritos de um lugar para outro, isto é, de um lugar em quenão há senão natureza, para outro lugar em que a natu-reza é transformada em cultura.

Paschoal Lemme era missão, paixão, devoção:cria fundamente que, em última análise, o homem éum ser da cultura, dessa coisa que só ele, homem, in-ventou, a saber, a capacidade/necessidade/fatalidadede marcar/transformar/modificar a natureza, para cri-ar para si mesmo um universo em que ele, homem, possaser cada vez mais homem mesmo. Punha-se Paschoal –

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20 Paschoal Lemme | Memórias de um Educador

pôs-se sempre – a serviço dessa causa, visão e cosmovisão, de tal modo que nãoera lícito a outrem ser céptico ante sua proposta e ação.

Sua trajetória no serviço público – que importa se municipal, estadual oufederal, já que (para além do voto do poeta maior) sabia tirar ouro das narinas emqualquer nível? –, foi uma batalha pertinaz, constante, inequívoca, corajosa,sacrificada, militante, em favor da escola brasileira. E a sua, então, era uma missãoprofética, ante os obstáculos que se lhe antepunham, a ele e a ela – a missão.

No seu tempo de opção social mais aguda, já se denunciavam os traçosmaniqueístas de uma realidade sem alternativa:

– ou se criavam mulheres e homens da modernidade apta a superar os atrasosseculares em que já então vivíamos, investindo em todas as crianças brasileiras o 8 x8, isto é, oito anos de oito horas de estudo por dia, para fins "primários", após o quese teriam 4 x 8 para fins "secundários" e ou "técnicos", e por fim 4 (5/6) x 6 (7/8) parafins "superiores", com reciclagens e reciclagens e reciclagens subseqüentes;

– ou se cairia numa aviltada massificação, de tal modo que a degradaçãoiria em tal crescendo que, sem falsificação, o quadro geral da educação brasileiraviria a ser sintetizado nesta fórmula hedionda: o ensino superior não é mais que umsuplementar do secundário, que não é mais que um suplementar do primário, quenão existe. E, quanto à massificação, em todos os níveis, ela também é ilusória, poisfalha no atendimento de legiões de necessitados em todos os níveis.

Nem sei como exprimir aqui que os pontos de vista logo acima externadossó me engajam a mim – já que, pela natureza desta editoração, seria convenienteque eu me comedisse. Mas busco não desmerecer do vínculo histórico e moral queme liga ao autobiógrafo Paschoal Lemme.

De engenheiro, que nunca foi profissionalmente (ao formar-se, no Brasil sóse faziam advogados, médicos ou engenheiros, quando se faziam), Paschoal Lemmese deu de corpo e alma à educação, lutando suas lutas e suas causas com lucidez:sabia que, nodalmente, ensinar sem visão sociopolítica é quase tão estéril quãoestéril é administrar a educação como coisa apenas técnica, que a torna mera roti-na burocrática, repetitiva, visto que educar é coisa poética, que só é boa quandocriativa e criadora. Paschoal foi, assim, um lúcido na compreensão de que as espe-culações com a educação, os métodos de ensino, todas as parafernálias físicas epsíquicas das didascálias, das didáticas, das docências e o mais serviam de ilusõestecnológicas para aqueles que, não tendo a coragem ou a vontade de ir ao fundodo problema – de qualquer problema social – , alimentam a ilusão de resolverem ochamado problema educacional. Aparecem, em conseqüência, profissionais da edu-cação que, mesmo dando-se de coração à causa, reduzem seus fins à formulação ecriação de tecnologias, quase sempre importadas de ambientes estruturalmentegeradores de tecnologias adequados à melhora dos níveis sociais aí atingidos: nu-trem, em suma, a quimera de construir com o estudante brasileiro em duas horas oque os outros – em todos os países em que a educação pôde edificar a modernidade– só conseguem com oito horas: migalha aguça a fome.

Assim, cria-se o círculo vicioso: técnicas, práticas, teorias, idéias, ideais, pro-jetos, programas brotados da discussão cotidiana de ambientes sociais de 8 x 8 + 4x 8 + 4 (5/6) x 6 (7/8) são propostos e, às vezes, "praticados" entre nós – mas sempre

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Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1 21

destinados ao fracasso, pois a nossa realidade (dos "teóricos" 8 x 4 = 4 x 2, quandonão 2 x 2) é incompatível com a outra; disso vêm resultando duas conclusões "pos-síveis": uma, biologista, diz que o brasileiro – por mestiço, por inferior, por pregui-çoso, por intrinsecamente de baixo quociente de inteligência – nada pode fazer, ea outra, porque não é alimentado, não é assistido, não podendo, portanto, com umquarto do atendimento humanamente desejável, corresponder aos que têm quatrovezes mais, em quantidade e qualidade. Quaisquer que sejam as análises, as críticas,as denúncias, o fato é que o Brasil não vem preparando seus recursos humanospara a modernidade. Esta pode ser objetivamente aferida de múltiplas formas, amais simples das quais é a profissionalização do homem.

Até fins do século18, só 2% das populações (nacionais, regionais, continen-tais, o que fosse) tinham formação educacional qualificada. Mas no curso do século19 aos dias de hoje, brotaram cerca de 30 mil profissões, 97% das quais exigem osfatídicos 8 x 8 para mais. O Brasil, para com sua imensa massa, continua noscomecinhos do século 19.

Paschoal Lemme nunca foi um iluso a tal respeito. Mas nunca abandonou aluta. Daí a relevância de sua vida e deste seu depoimento. E a forma autobiográficaé a perfeita para os objetivos fundamentais destes escritos: se à educação no Brasilalguém se deu tão integralmente, diuturnamente, numa prática contínua associa-da a uma busca contínua, a um aperfeiçoamento teórico contínuo pela aferiçãocontínua de sua validade prática, esse alguém é Paschoal Lemme, último supérstitedos signatários do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova da Associação Brasi-leira de Educação, que cedo viram os sombrios horizontes em que enveredávamosno respeito.

Nesse sentido, para certos leitores interessados – educadores ou não, soció-logos ou não, políticos ou não, historiadores ou não – no processo educacionalbrasileiro, sobretudo neste século crucial, a forma autobiográfica é a forma porexcelência, porque nos proporciona todos os impulsos generosos que animaramPaschoal e seus companheiros nesta empreitada, repito-o, sacrossanta.

Será fugir da questão nodal invocar discrepâncias ideológicas, quando, naprática, elas pesaram muito pouco no quadro da educação brasileira, cujo malogronão me parece essencialmente ideológico, mas sobretudo carencial.

O que, entretanto, deve ser realçado nesta obra é que paixão, devoção ededicação emergem da pena rememorativa de Paschoal com toda a força da vidavivida, fazendo destas páginas um documento palpitante de nossos malogros eesperanças na formação dos brasileiros do tempo passado e do futuro. A lição,pregressa e tão presente, aponta para o porvir. É preciso que a aproveitemos, agra-decendo, ex imo corde, a Paschoal Lemme.

Rendendo ao educador um tributo de aplauso, a Academia Brasileira deLetras houve por bem credenciar a publicação desta obra, para que suas liçõespossam aproveitar às nossas gerações futuras.

Antônio HouaissDa Academia Brasileira de Letras

Rio de Janeiro, 5 de abril de 1988.

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Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1 23

É impossível reproduzir em palavras os momentos"idos e vividos". Os tempos passados "que não voltam mais"são passíveis apenas de uma evocação imperfeita, poissão irreproduzíveis as circunstâncias que os criaram e atessitura de emoções em que aconteceram. A vida fluicontinuadamente e o ser se transforma com o perpassardo tempo: "mudaria o Natal ou mudei eu?" Muda tudo emudam todos... "ninguém pode se molhar duas vezes namesma água do mesmo rio", já dizia o velho Heráclito, oobscuro (?): não se é mais a mesma pessoa e a água já éoutra – cada momento passado é único.

Assim, memórias, confissões, recordações, evoca-ções pouco mais podem ser do que quadros depuradosdaquilo que restou do que se conseguiu captar nessefluxo incessante que é o complexo processo da vida decada um. "O autor que narra estórias já não é o homemque as viveu. As distorções são inevitáveis quando seprocura reviver a própria vida", diz Henry Miller, commuita propriedade. E, acrescenta Lawrence Dürrel emJustine (Quarteto de Alexandria I):

Os fatos passados, longínquos, deformados pela memória,adquirem um realce particular porque são vistos isolados doseu contexto, destacados dos pormenores que os precederam eseguiram, que destacamos e lançamos fora como subscritos usa-dos. Os próprios atores sofrem uma transformação: afundam-se lenta e profundamente no oceano da memória, como corpospesados, descobrindo em cada escalão uma nova avaliação no

coração humano.

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24 Paschoal Lemme | Memórias de um Educador

A outra limitação da exatidão das biografias é a própria linguagem, instru-mento imperfeito, com o qual não se consegue retratar todos os infinitos aspectosde uma dada situação, todas as circunstâncias de um único momento vivido: "nin-guém pode contar tudo o que aconteceu em determinado momento de sua vida,por mais curto que esse momento tenha sido", é ainda Henry Miller quem adverte.

Essa é, aliás, a deficiência de toda a palavra falada ou escrita e, por issomesmo, sempre me pareceu ser a literatura a forma mais perfeita da arte, na medi-da em que consegue vencer esse terrível entrave para se aproximar daquilo que sedeseja realmente expressar, ou expressar tudo aquilo que se deseja; e aí ela se torna"a arte mais elevada e espiritual", no dizer de James Joyce. Um Homero, um Dante,um Shakespeare, um Cervantes, um Dostoievsk, um Tolstoi ou um Goethe talvez, enão muitos outros, têm aí sua glória, sua universalidade e o mistério de sua perma-nência.

V. N. Puchkin, um autor russo moderno, em seu livro Heurística, a ciência dopensamento, diz a propósito:

Ao ensejo da análise psicológica concreta da consciência, ela tem sido relacionada com apalavra. Considera-se que se toma consciência das concepções ou percepções que encontramreflexo na voz, enquanto que todos os demais fenômenos psíquicos transcorrem além dos limi-tes da consciência. Todavia, essa interpretação não corresponde integralmente aos fatos conhe-cidos pela psicologia e pela neuropatologia. É que existem percepções e mesmo uma complexaatividade mental que não se relaciona com a fala. E até, ao contrário, pode ser imaginada uma

fala, da qual o homem não toma conhecimento.

Num livro que ainda estou lendo, neste 1º de setembro de 1978, quandomais uma vez, passo a limpo estas Memórias, não pude deixar de escrever à mar-gem: "Gostaria de saber escrever assim..." (Remanso, 20/8). Remanso é o sítio emPati do Alferes, que aparecerá mais tarde, espero, nestas Memórias. (O livro é: TiaJúlia e o Escrevinhador, de Mário Vargas Llosa)

O trecho que me encheu de inveja, entre tantos outros, é o seguinte:

Era uma dessas soalhadas manhãs da primavera limenha, em que os gerânios amanhecemmais arrebatados, as rosas mais fragrantes e as buganvilas mais arrogantes, quando um famosogaleno da cidade – o doutor Alberto Quinteros – testa ampla, nariz aquilino,olhar penetrante,retidão e bondade no espírito – abriu os olhos e espreguiçou-se na sua espaçosa casa de SanIsidro. Viu, através das cortinas, o sol dourando o gramado do bem cuidado jardim, que prepa-ravam sementeiras de crótons, a limpeza do céu, a alegria das flores, e sentiu essa sensação

benfazeja que oito horas de sono reparador e a consciência tranqüila asseguram.

É isso. Se a palavra não alcança tudo o que se deseja dizer, a arte literáriamaior é aquela que faz com que a imaginação do leitor complete, amplie, e seemocione perante o que se diz ou o que se lê.

Agora, aqui mesmo, no "Remanso", são quase sete e meia da manhã, e abro ajanela do quarto onde escrevo. Faz frio. A manhã é cinzenta, pois desde ontem otempo mudou. Um passarinho, que não sei identificar, canta; um canto nem alegrenem triste. Acompanhando o tempo chuvoso, o motor de um avião, com seu ruídodesagradável do progresso, subverte o ambiente bucólico; e eu penso que em outros

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tempos, quando essas máquinas não eram tão aperfeiçoadas, via-se o avião passarmais baixo, na rota Rio-Belo Horizonte, quase a essa mesma hora. E essa lembrançaevoca tantas outras daqueles tempos... melhores... piores, não sei. Duas crianças, fi-lhas do caseiro, elevam suas vozes, brincando, e parecem felizes. Um galarote, ensai-ando experiências, lança seu canto ainda inseguro... Tudo parece tão sereno. Mas aamargura está dentro de mim e aperta meu coração. Aqui sozinho. Um filho nosanatório, doente mental, talvez sem solução. E tudo mais... E é preciso tomar o fio dopensamento. É preciso continuar a vida...

• • •

Mas há, evidentemente, outras razões menores (?) que tornam tão poucofidedignas as memórias, as confissões, ainda as mais célebres.

As inibições, a falta de coragem, o pudor, o medo de cometer injustiças ourevelar as intimidades próprias ou de segundas pessoas. É impossível ser imparcialquando pretendemos ser juízes de nós próprios. "Certos defeitos dos diários íntimose das autobiografias", diz Simone de Beauvoir, "está em que, geralmente o que nãoé preciso dizer, não se diz, e perde-se o essencial."

Além disso, ninguém aceita na verdade, voluntariamente, apresentar-se mal,despir-se perante o mundo; a não ser os santos, ou os que se disponham à catarseou à flagelação, já no domínio do patológico.

Não se esgota ainda aí a precariedade das Memórias. Um fator externo, quevem se agravando nos últimos tempos, num mundo que vai chegando ao auge deuma crise, cujo desfecho ainda não se vislumbra, transforma simples declarações deconvicções, de pontos de vista ou de idéias, principalmente em face dos gravesproblemas humanos, nos dias de hoje, em "crimes" contra "a ordem estabelecida". Eesses foram sempre considerados os maiores de todos os pecados... E por causadeles, o próprio filho de Deus foi crucificado...

Que resta pois das memórias, das confissões, das autobiografias? Por quetantos resolvem enfrentar todas essas dificuldades e limitações (e o número au-menta cada vez mais, estando mesmo as memórias em moda como gênero literá-rio)? Por que falar de si mesmo, de sua vida, por que tornar público aquilo que seconsidera íntimo? Desejo de comunicação? Preocupação educativa pela divulgaçãode exemplos? Desejo de se justificar quem sempre se julgou incompreendido? Pre-texto para expressar idéias, o que não seria possível fazer por outra forma?Exibicionismo ou supervalorização de si próprio? Apenas imitação? Falta de imagi-nação para tentar outras formas de criação literária mais elevada?

Romain Rolland escreve em Jean Christophe:

Para ir ao fundo das coisas é necessário afrontar o respeito humano, a polidez, o pudor, asmentiras sociais, sob as quais o coração jaz abafado. Se não se quer espantar ninguém, é precisoresignar-se durante toda a vida a não dar aos medíocres senão verdades medíocres, que eles

possam assimilar: é preciso ficar aquém da vida.

Creio que nessa pré-história da humanidade em que ainda vivemos (e seráque sairemos dela?) apesar de todo o pretenso fantástico "progresso" material, ouaté mesmo por causa dele, o coração dos homens "jaz abafado"...

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Memórias e confissões não serão pois apenas desabafos, ânsia de descer aofundo das coisas, esforço para "não ficar aquém da vida", desejo, afinal de reafir-mar que, apesar de tudo, ainda somos homens?

Mas, é possível também que seja Ernesto Sábato quem esteja com a razãoquando nos adverte de que:

Dada a natureza do homem, uma autobiografia é inevitavelmente mentirosa. E é só commáscaras, no carnaval ou na literatura, que os homens se atrevem a dizer suas (tremendas)verdades últimas. Persona significa máscara, e, como tal, entrou na linguagem do teatro e do

romance (em O Escritor e seus Fantasmas)...

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Há pessoas que conseguem localizar suas maisantigas recordações aproximadamente desde os dois anosde idade. Outras, porém, guardam de memória apenasos acontecimentos ocorridos em anos mais tardios. Nãoconheço pesquisas muito abundantes sobre essa inte-ressante questão.

Entretanto, Freud sugeriu que "a amnésia infan-til encobre, na maioria das pessoas, as lembranças deseus primeiros anos de vida". E essa "amnésia" começaquando a criança entra em seu período de latência dodesenvolvimento, no qual os primeiros impulsos primiti-vos são dominados, por volta dos seis anos de idade.Durante esse período, a criança reprime suas fantasiasincestuosas e assassinas a respeito de seus pais e irmãos,decorrentes da fase edipiana inicial. O que resta das lem-branças dessa idade, Freud denominou de "memórias bi-ombo", em que as recordações sofrem modificações paraproteger a criança do conteúdo penoso de muitas delas.

Pesquisas de alguns outros psicólogos concluí-ram, porém, que a criança ainda não possui estruturamental para o desenvolvimento de uma memória contí-nua. E há os que combinam as duas hipóteses, concluin-do que, realmente, as sugestões de Freud são válidas,mas que o cérebro infantil ainda não tem condições deregistrar todas as lembranças.

Há também os que chegaram à conclusão de quesão muito raras as pessoas que guardam recordações de

O CHALÉDA RUA FIGUEIREDOCA

PÍTU

LO I

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28 Paschoal Lemme | Memórias de um Educador

fatos ocorridos antes dos três anos de idade; e que as lembranças são geralmentefragmentárias e descontínuas até cerca dos sete anos.

Outros pesquisadores conduziram à hipótese de que nos lembramos de pou-ca coisa que ocorreu na infância porque nos tornamos pessoas diferentes: pensa-mos diferentemente sobre as coisas; adquirimos, como adultos, padrões e lingua-gem que não possuíamos quando crianças.

Parece, por fim, que há uma certa tendência para nos colocarmos perantenossas lembranças mais antigas como observadores externos e houve mesmo psi-cólogos que chegaram à conclusão de que uma quantidade significativa dessaslembranças são vistas como se a pessoa estivesse assistindo a uma representaçãonum palco.

Jean-Jacques Rousseau refere-se diretamente a essa questão em suas céle-bres Confissões, com estas palavras: "Ignoro o que fiz até os cinco ou seis anos. Nãosei como aprendi a ler; lembro-me somente de minhas primeiras leituras e do efeitoque me produziram: é o tempo de onde começo a contar, sem interrupção, a cons-ciência de mim mesmo."

Minhas mais antigas reminiscências localizam-se dentro de um quadro per-feitamente definido e jamais consegui vencer o limite que esse quadro estabelece,para encontrar qualquer recordação anterior.

É como se, num espetáculo montado em determinado momento e lugar emminha vida, as luzes se acendessem para iluminar minha memória, e minha consci-ência despertasse para constatar a existência do meu próprio eu e de todo o com-plexo meio circundante, em constante mutação. Foi assim como se minha vidacomeçasse exatamente aí, ao menos para a verificação de minha própria existên-cia: o fluir da vida principiava, para não mais cessar.

É certo que, em relação aos primeiros anos, a recordação desse deslizar nãoé contínua, ou melhor, a continuidade é dada por acontecimentos da rotina diária– amanhecer o dia, acordar, levantar, a obrigatória higiene, o comer, as necessida-des fisiológicas, o estudar, o não fazer nada (a melhor parte); mais tarde, as sensa-ções eróticas (muito fortes e imperativas); as relações com os outros, os da famíliae os estranhos, o anoitecer, o medo do escuro (próprio de todas as crianças), o sono,os sonhos, os pesadelos...

Mas a fixação e a acumulação que eclodem em futuras evocações são dosfatos esparsos, naturalmente os mais significativos, que, como marcos indeléveis,afloram à superfície como pedras no perpétuo movimento do grande rio da vida.Parece que, tal como confirmam as pesquisas, o mecanismo cerebral da memória,não tendo ainda capacidade para fixar tudo, retém apenas os acontecimentos que,por sua significação, deixam um registro mais profundo.

• • •

Deveria andar lá pelos cinco ou seis anos de idade, pois, exatamente aocompletar os sete, um desses acontecimentos maiores ficou registrado: minha en-trada para a escola primária. Esse fato, aparentemente incomum, pois meu aniver-sário natalício ocorria em novembro, quase no fim do ano, portanto, explicava-se

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pelo zelo de meus pais em iniciar minha educação sistemática exatamente quandoisso se tornava possível pelos regulamentos da época, pois, a esse tempo, as escolasprimárias, sem qualquer rigidez, recebiam os alunos em qualquer dia do ano letivo.

O palco desse espetáculo era representado pelo chalé acaçapado da RuaFigueiredo, no subúrbio do Méier, na então capital da República, o Rio de Janeiro,minha terra natal. O estilo era muito comum na época: telhado de duas águas,construção recuada da rua, em terreno alto e em declive acentuado; duas janelas euma porta à frente; as paredes externas pintadas de verde desbotado. Na entrada,uma muralha de pedra, com gradil de ferro, melhoramentos já realizados por meupai, nessa primeira casa própria que, com grande esforço, conseguiu adquirir. Oacesso era feito por uma escadaria, também de pedra, colocada à esquerda, fecha-da em baixo por um portão também de ferro, bastante reforçado, tudo dentro dosmodelos daqueles tempos. Não se poupava o metal, apesar de então o País pratica-mente não possuir siderurgia: quase tudo, para a construção civil, talvez com aexceção de algumas espécies de madeira, era importado, especialmente da Ingla-terra, que nos fornecia todo esse material em troca do nosso café.

Um jardim mal cuidado completava o quadro da parte da frente, ocupandotoda a área entre o gradil e a casa, com os tradicionais canteiros cercados de tijolosmal ligados por cimento. O prédio erguia-se no centro do terreno, com passagenspelos dois lados. Nos fundos, o quintal estendia-se até o misterioso (para o garotode cinco ou seis anos) Morro da Madre de Deus, em declive bastante acentuado etodo plantado de árvores frutíferas, especialmente laranjeiras. Um muro de alvena-ria fechava o retângulo formado pelo terreno com um rústico portão de madeira,permanentemente trancado com uma enorme fechadura enferrujada, quase colo-nial. Dado o declive dessa área, o chalé terminava ao nível do solo na parte poste-rior, onde havia um galpão, para o qual dava a porta da cozinha.

Como disse, não consigo relembrar nada anterior a esse cenário, onde de-correram os anos de minha primeira infância consciente, nem mesmo tenho qual-quer idéia de quando nos instalamos ali, e não fixei qualquer cena de lembrança dacasa onde morávamos anteriormente. Dela só tive conhecimento por indicação demeu irmão mais velho – o Virgílio –, muito mais tarde: ficava na Rua Ana Barbosa,do outro lado da linha da Estrada de Ferro Central do Brasil, que dividia o bairro emdois ambientes distintos. Era um pequeno chalé de beira de rua, que ainda hojeexiste não tendo sido por enquanto tragado pela rápida urbanização e avassaladoramodernização do bairro do Méier, nos últimos anos.

Saindo-se da Rua Arquias Cordeiro, uma das principais do bairro, que ladeiaa Estrada de Ferro pelo lado direito, um pouco adiante da antiga estação de bondesda Light, entrava-se por uma rua que contornava o Morro do Vintém, elevaçãoligada à história local e que, por assim dizer, fechava esse extremo do bairro, sepa-rando-o do seguinte – o do Engenho Novo. Em seguida, à esquerda, encontrava-sea Rua Angélica e, mais adiante, paralela a esta, chegava-se à Rua Figueiredo. Essecaminho, que costeava o referido Morro do Vintém e subia ao lado do muro denossa casa, conduzia ao Morro da Madre de Deus. Todo esse trajeto estava aindasem qualquer calçamento: chão de barro vermelho, que tornava intransitável essasruas na época das chuvas, ou seja, durante os longos meses do nosso verão tropical.

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Do interior da casa guardo nítidas lembranças do assoalho de tábuas largasde pinho de Riga, de uso generalizado nas construções desse tempo; do corredorque, partindo da sala da frente, separava os quartos; do porão alto com os barrotestambém do mesmo pinho, onde estavam pregadas as tábuas do assoalho; das pare-des altas, de pé direito de três metros, pintadas à tinta a óleo desbotada; dos bicosde gás de iluminação; dos móveis antigos; do fogão à lenha; do banheiro de insta-lações rústicas em mistura com alguma louça inglesa, pois o País ainda não fabrica-va nada no gênero.

A figura de minha mãe me parece então sob o signo de uma atividadeininterrupta: baixa, cheia de corpo, forte, tipo característico da ascendência portu-guesa, dirigia e executava todo o trabalho doméstico, desde a limpeza da casa – deque era atestado o assoalho sempre imaculadamente lavado, as tábuas de pinhoarrepiadas pela água, sem ainda o enceramento, cujo uso só se generalizou muitotempo mais tarde – até a pesada lida da cozinha e da lavagem da roupa de toda afamília.

Mais tarde, ainda nessa casa, lembro-me que passou a auxiliá-la uma em-pregada doméstica – a Deolinda – uma parda magra, que muito se afeiçoou a todosnós e cuja origem não conhecia – talvez mandada por meus avós maternos, queresidiam então na cidade de Barra Mansa, no Estado do Rio de Janeiro. A Deolindamais tarde, seria protagonista de um primeiro drama doméstico, de que me recordoperfeitamente e que muito abalou a família. Simplória, deixou-se seduzir – "desen-caminhar", como se dizia naqueles tempos – por um português padeiro, o que fezcom que tivesse que deixar nossa casa, a qual se ligara intimamente, pois não tinhafamília no Rio de Janeiro. Para mim, o fato e as conseqüências eram incompreensí-veis, pois não alcançava o sentido e a significação daquilo que se dizia deixar se"seduzir" ou "desencaminhar", e que a nós, as crianças, aparecia e era classificadocomo "pecado grave", a ponto da criatura não poder mais conviver com a "inocên-cia" dos rebentos da família, cuja pureza passaria a ser ameaçada no contato coma "pecadora".

Mais tarde, como era comum nesses casos, abandonada pelo namorado, dequem se tornara amante, e creio que já tendo nos braços o fruto do "pecado",procurou, de novo aproximar-se da família, mas não voltou a nos servir. Esse foi,sem dúvida, o episódio humano que ficou mais profundamente gravado nas mi-nhas recordações desse período de minha vida: a tempestade que o acontecimentodesencadeou em casa, as discussões, a longa hesitação sobre se devíamos ou nãocontinuar a abrigar a "pecadora" e o mistério insondável para meu curto entendi-mento infantil do que realmente sucedera, todas essas razões, naturalmente, forama causa de sua fixação nos condutos mais profundos da memória.

A figura de meu pai era menos nítida talvez, ou melhor, era menos carre-gada de tintas emocionais, apesar de sentir que era o chefe incontestável daque-la pequena comunidade e o promotor principal da criação do ambiente materialque nos envolvia: tinha perfeita consciência de que dele provinha a principalautoridade que regia aquele universo, ainda relativamente fechado às influênciasexternas, mantido e modificado pelo trabalho que realizava na profissão liberal aque se dedicava. Por essa época, andava muito atarefado na transição que fazia

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de atividades mais modestas para a carreira que deveria adotar em definitivo: ade cirurgião-dentista. Isso lhe custou, compreendi depois, um enorme esforço,pois teve que realizar todos os estudos secundários até conseguir matrícula naantiga Escola de Medicina do Rio de Janeiro, depois Faculdade Nacional de Medi-cina da Universidade do Brasil. Nela se doutorou em Odontologia.

A esse tempo já éramos quatro os filhos: o Virgílio, homenagem ao condotieride Dante na Divina Comédia e o poeta maior da pátria de origem de meu pai (oprimeiro filho morrera prematuramente); a Palma, a primeira menina, cujo nome,pouco comum, lembrava o de minha avó paterna – Palma de Martori Lemme – quenós, os netos brasileiros, não conhecemos. E eu, Paschoal, que recebi o nome demeu avô paterno, que também não conhecemos; e o Antônio, o júnior, como era depraxe para manter a tradição, ou talvez numa outra homenagem, decorrente deuma situação aflitiva, de que vim a ter conhecimento em tempos mais remotos.

Lembro-me bem, ou melhor, ainda hoje evoco o perfume, aliás nada desa-gradável, do indefectível charuto usado por meu pai, que se espalhava pela casatoda e saturava especialmente o banheiro, onde permanecia pela manhã por tem-po acima do normal, pois, segundo me lembro, a constipação intestinal era umachaque de que sofreu praticamente toda a vida, acompanhada de severa enxa-queca, que lhe deteriorava o humor. Também suas ausências eram constantes, aque o obrigavam os estudos e o trabalho fora de casa, pois já havia alguns anosexercia a profissão como prático, na qual fora iniciado por meu avô materno. Etambém não me esqueço de suas manifestações de vaidade pelos "quináus" quedizia infringir aos professores da Escola de Medicina, inclusive aos mais notáveis,como um Frederico Eyer, pela prática que já levava no exercício da profissão, espe-cialmente nas extrações dentárias difíceis, em que se considerava um mestre.

Outra de minhas grandes recordações foi a alegria que a todos nos atingiu,quando meu pai, recebendo afinal o diploma consagrador, pôde instalar o consul-tório em casa, onde passou a receber os clientes, deixando assim o exaustivo traba-lho de os atender em suas residências, como era usual na época para médicos edentistas. Seu temperamento brusco, que vislumbrávamos, atribuíamos sem muitaclareza aos excessos do esforço que fazia para realizar-se e estabilizar-se em estiloeuropeu, na casa e na profissão, ou seja, na família e no trabalho. E ambos, pai emãe, o faziam com grande afinco, cada um na sua esfera própria, pois sendo oriun-dos do sul da Europa e da classe média, eram esses os objetivos fundamentais davida. Aliás, foi o maior legado que nos transmitiram: a consciência desses deveresfundamentais.

• • •

Se essa era a moldura, muitos acontecimentos completaram o quadro doconjunto de vida desses poucos anos que passamos no velho chalé da Rua Figueiredo.

Pelo Natal, festa maior, quase sempre recebíamos de nossos avós maternos,de Barra Mansa, no Estado do Rio de Janeiro, jacás com galinhas, caixotes engrada-dos com leitões ou frutas variadas. Certa vez, chegou-nos mesmo um carneirinhoque supusemos iria ficar conosco para ser incluído em nossas diversões infantis.

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32 Paschoal Lemme | Memórias de um Educador

Ledo engano, pois estava destinado também aos misteres culinários. A morte dobichinho encheu-nos de comoção e indignação, pois o animalzinho chorava deses-peradamente, pendurado numa corda de estender roupa, até que o facão de umespecialista do açougue, chamado para executá-lo, calou-o para sempre. Aindanão sabíamos que o carneiro era prato apreciado pelo paladar europeu, especial-mente italiano...

As incursões e o trato do quintal, verdadeiro pomar, era atividade a que nosentregávamos com prazer depois das horas de estudo e assessorados pelos pais, nasfolgas. Certa vez, perseguindo lacraias que se escondiam num tronco apodrecido deum coqueiro que derrubáramos, desfechei involuntariamente, na cabeça do "Tonico",o irmão mais moço, o ancinho, cujos dentes feriram-no bastante. Desolado, espereimedroso a decisão sobre o castigo que receberia quando meu pai chegasse à tarde:o fato em si me fazia sofrer intensamente e as perspectivas do castigo completa-vam o meu pânico. Nada de mais sério porém aconteceu: os ferimentos não eramgraves e os pais eram talvez ríspidos, mas não injustos ou insensíveis.

As corridas por dentro de casa, no jogo do pega-pega, completamente de-sastrado, levaram-me, certa vez, a ferir seriamente a testa na quina de um dosconsolos de jacarandá, com tampo de mármore, muito usados naqueles tempos,mas as conseqüências também não foram muito graves.

Pouco saíamos em visitas a um pequeno número de famílias com quemmantínhamos relações ou a algum parente, tios, irmãos de minha mãe. Sempreatarefados, não sobrava aos pais muito tempo para esses lazeres externos.

De algumas dessas famílias guardo profundas recordações. Uma delas mo-rava do outro lado da Estrada de Ferro, que era o ponto de referência obrigatórioem todos os subúrbios por ela atravessados: a família Gusmão. O dr. Gusmão, pri-meiro contador e depois formado em direito, fora um dos incentivadores dos estu-dos e do doutoramento de meu pai. Com sua "pêra" bem cuidada, tez pálida, pare-cia, aos meus olhos de menino, um Cristo. A família vivia em razoável nível econô-mico e lembro-me perfeitamente da consternação que a morte prematura do chefecausou, depois de prolongados padecimentos: segundo ouvi dizer, fora provocadapela ruptura de um aneurisma da aorta. Essa coisa, como se dizia então, "de arre-bentar uma veia do coração", deixou-me chocado durante muito tempo. A família,sem nenhum amparo, veio a sofrer depois grandes necessidades com a morte do dr.Gusmão tendo que se mudar para um subúrbio longínquo; e a esposa e os filhosforam obrigados a procurar empregos modestos para se manterem, o que não eracomum nas famílias desse tipo.

Próximo, ou melhor, quase defronte ao nosso chalé, morava uma famíliaalemã – os Stoffel – cujas meninas, muito louras, de aspecto quase celestial, comsuas tranças compridas de espiga de milho, causavam forte impressão ao meu gos-to de menino precoce. Mantinham-se, porém, sempre um pouco distantes ou, pelomenos, me davam essa impressão, talvez não inteiramente verdadeira. Dedicavam-se à música, como bons alemães, tocavam piano e violino e, pelo Natal, mandavam-nos cartões postais de "boas-festas", com motivos europeus, do norte. Certa vez,recebemos um, que ainda conservo, bastante original, com os retratos enfileirados,em tamanho pequeno, de toda a família, desde os pais até a última das crianças.

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Não me recordo bem, mas creio que houve qualquer coisa de desagradável na vidadesses nossos vizinhos, que a desorganizou. Continuamos, porém, durante muitotempo a encontrar a Henriqueta, a mais velha das meninas, e também o irmão maisvelho, que fora companheiro de estudos do Virgílio.

A terceira amizade de que me recordo bem e que se prolongou até os dias dehoje, foi a da família Tavares, que aparecerá mais tarde em nossa vida, em relaçõesmais estreitas. Creio que foi mesmo a amizade mais íntima que mantivemos. MárioTavares, o chefe dessa família, segundo soube depois, foi talvez o principalincentivador da carreira de meu pai. Era um homem magro, excessivamente nervo-so, com manias curiosas. Moravam numa misteriosa casa (ao menos para mim, naépoca), na Rua Joaquim Méier, também do outro lado da Estrada de Ferro, e paraonde, mais tarde, nos mudamos, tornando-nos vizinhos muito próximos. Uma grandemuralha vedava quase que completamente a casa da vista da rua. Visitei-a poucasvezes, meio amedrontado, dados os hábitos dos moradores: sempre me pareceu madaquelas mansões dos romances de mistérios e onde aconteciam coisas mais oumenos fantásticas. Os avós, os velhos Tavares, portugueses, foram dos primeirosmoradores do Méier, e, segundo me informou mais tarde a Lucília – a neta maisvelha –, teria ele, o avô, cedido ao governo os terrenos em que seria construída aantiga Parada do Méier, depois transformada na Estação do Méier da Estrada deFerro Central do Brasil.

Além da Lucília, os outros dois irmãos eram a Luzia e o Roberto, mais oumenos das mesmas idades do primeiro grupo dos Lemmes, e assim foram nossoscompanheiros de todos aqueles anos; as duas meninas tornaram-se minhas colegasquando entramos, no mesmo ano de 1918, para a antiga Escola Normal do DistritoFederal, diplomando-se comigo, professoras primárias. Entre nós, como era natural,surgiram amores de adolescentes, e pouco faltou para que as duas famílias nãoacabassem unidas pelo casamento dos filhos.

Pelo Natal, lembro-me bem, o doutor Mário Tavares e dona Zulmira manda-vam-nos presentes, brinquedos de bastante valor, que recebíamos naturalmente,com grande alegria. Não sei como meus pais retribuíam essas gentilezas natalinas.As meninas, hoje senhoras professoras aposentadas, ainda vivem. Tiveram vicissitu-des (quem não as tem); a Luzia afastou-se bem depressa do magistério, atacada detuberculose, de que se curou. O Roberto entrou depois em desequilíbrio mental. Ostrês ficaram solteiros.

• • •

A rotina dessa vida que se iniciava no conhecimento das coisas e das pesso-as, foi quebrada por um acontecimento de certo relevo e que, naturalmente, viriaperturbar a relativa calmaria até então reinante no chalé da Rua Figueiredo.

Meu pai tinha uma irmã na Itália – a tia Paschoalina – que depois da mortede minha avó paterna, sozinha, sem parentes, saudosa ou talvez necessitada doirmão, passou a pressioná-lo para que fosse buscá-la e trazê-la para o Brasil.

Minha mãe contava-me em anos recentes que, certa vez, tivera um sonhono qual aparecia sua cunhada implorando para que o irmão fosse buscá-la, o que

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34 Paschoal Lemme | Memórias de um Educador

fez, afinal, com que ele se decidisse a viajar para trazê-la para a nossa companhia.A tia Paschoalina, depois da morte da mãe – minha avó – vivia num orfanato.Entretanto, segundo se dizia, o tio e tutor e os primos sentiram muito sua falta,pois já a consideravam como filha.

Não guardo qualquer recordação das circunstâncias em que meu pai fezessa viagem, é claro depois de muitas hesitações. Apenas um cartão-postal escritopara minha mãe e no qual aparece o Vesúvio em plena erupção assinala a estada demeu pai na terra natal, tendo cedido, pois, aos rogos da irmã.

O fato é que a tia Paschoalina aparece para mim no chalé, já casada com o tioErnesto, um português padeiro. O que permaneceu, porém, bem nitidamente em mi-nha memória, foi a figura de minha prima – a Mônica – filha do casal de tios –menina de cabelos louros escorridos, de pernas magras, na camisola de chita barata.

Lembro-me que havia algum mal-estar entre as duas – minha mãe e a tiaitaliana – talvez por ciúmes do irmão e marido, o que depreendi de conversasvagas. O desentendimento, porém, nunca chegou a rompimento de relações. Minhamãe aprendeu com a cunhada a preparar pratos da cozinha italiana, e até mesmoalgumas expressões da língua materna de meu pai. Não sei se em conseqüênciadesses atritos os tios acabaram por deixar nossa casa, onde estiveram hospedadospor algum tempo. Mais tarde, foram para Portugal, não mais regressando ao Brasil.E nunca mais tivemos notícias deles. Ou melhor, vez por outra ouvia falar que unsvagos primos portugueses teriam aparecido no Méier à procura de minha mãe edos primos brasileiros.

Havia também, entre as personagens ligadas a esse período de minha vida, adona Rosa, uma italiana imensa, companheira de viagem de minha tia Paschoalinae que cismou que devia me batizar. Com um sotaque muito carregado, entrava pelacasa adentro, espaventosa, trazendo-me sempre uns biscoitos que me tiravam omedo de seus apertados abraços e beijos. O marido, o padrinho ou compadre Afon-so, dedicava-se ao comércio de tecidos, que vendia à freguesia em suas casas. Ti-nham duas filhas, tão lindas de rosto quanto enormes de corpo – a Carmela e aAnunzziata. Mais tarde, alguma coisa que aconteceu com as filhas, que tinhamsangue quente de italianos, fez com que as visitas dos padrinhos fossem se espa-çando, até que nunca mais tivemos notícias deles. Eram, entretanto, boa gente eque, certo dia, me levaram à pia batismal ali na Matriz de Nossa Senhora de Lourdes,no antigo Boulevard 28 de Setembro, em Vila Isabel, onde moravam. Assim, se nascino Méier, fui batizado na Vila e ganhei seu "feitiço". Não é pois por acaso queconsidero o Feitiço da Vila, de Noel Rosa, a composição de música popular maisbela entre todas.

Fui também o último dos Lemme a receber batismo – o sacramento da San-ta Madre Igreja católica apostólica romana – o que, e certa forma, recordo hojecom satisfação. As mudanças que se operam atualmente na Igreja de Roma sãopara mim uma das maiores revoluções do nosso tempo.

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A época era dos lampiões a gás, e à noitinha os acendedores, com seusbastões, empurravam a portinhola colocada na parte inferior da caixa envidraçada

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que protegia o lampião, fazendo a luz brilhar misteriosamente para os olhos dascrianças e, após o que, a batida metálica característica indicava que a portinholavoltava ao lugar normal. E aos poucos, a fileira de lampiões, de um lado e de outroda rua, brilhava, e um halo envolvia os focos de luz nas noites escuras ou esmaeciaà luz das estrelas ou da lua cheia. De qualquer forma, depois do jantar, nós, osgarotos, aproveitávamos a claridade, reunindo-nos junto aos lampiões, e conversá-vamos, brigávamos e sonhávamos... No verão, os cupins e as libélulas enxameavamatraídos pela luminosidade dos lampiões e queimavam as asas na compulsãoirresistível.

Era também o tempo dos pregões: "sorvete Iaiá"..."é de abacaxi, sinhá!"..."olha a laranja seleta!"... "amendoim torradinho, está quentinho!"... doceiros,amoladores, quitandeiros, funileiros... que sei mais... todos oferecendo seus présti-mos e suas mercadorias de porta em porta, naqueles tempos fáceis, de vida mansae trato cordial. Aqueles bons tempos que não voltam mais, tragados pela tecnologia,pelo "progresso", pela angústia, pela vida que passa e não é vivida...

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Mas, a grande festa que empolgava adultos e crianças era sem dúvida ascomemorações juninas: os fogos, as fogueiras e os balões. O ritual do "papel deseda", em folhas coloridas, na disputa da feitura do maior balão, os de "boca dearco de barril", sim senhor: de vários metros de comprimento, só um arco de barrilde metal podia servir de "boca", pois atingiam mesmo a altura dos prédios comuns.A preparação da "bucha" era uma técnica que se transmitia quase com devoção: ospedaços de saco de aniagem, o sebo, o breu, tendo o querosene como combustívelpara desencadear a chama. Depois, durante alguns momentos, a "boca" ficava co-lada ao chão para que o corpo do balão enchesse de ar quente, desdobrando-se osgomos iluminados, multicoloridos, mais ou menos esticados, acompridados ou bo-judos, conforme a quantidade de papel empregada. Por fim, era o larga!... triunfal,e a subida portentosa... acompanhada de vivas e palmas, de fogos e assobios, ospingos de breu e de sebo, caindo incendiados. Às vezes, porém, era o fracasso: ofogo "lambia" rapidamente o papel colorido... a decepção e a determinação deconfeccionar um ainda maior... O céu ficava literalmente crivado de pontos lumi-nosos, numa féerie deslumbrante; as correrias pelas ruas, os magotes de crianças eadultos, armados de paus e pedras para "tascar" os que desciam e se apagavam.Freqüentemente, estalavam conflitos de conseqüências bastante graves entre os"tascadores" dos balões. Nas manhãs frias e orvalhadas de junho, saía-se à procurados balões apagados, caídos durante a noite, e, vitoriosamente, trazia-se para casaaquele acervo de papel colorido, amarfanhado, molhado pelo orvalho, enegrecidopor dentro, pela fuligem do querosene. E muitas vezes eram consertados, reativadose de novo lançados ao espaço para novas proezas. Disputavam-se os feitios maisextravagantes, o número de lanterninhas e penduricalhos, a altura que atingiam...

As fogueiras armadas nos quintais e até mesmo nas ruas, as batatas docesassadas, as danças, as vestimentas típicas, as cantigas, os fogos de artifício.

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As "barraquinhas de fogos" eram outro complemento indispensável aos fes-tejos juninos. Em caixotes de madeira eram colocadas prateleiras e depois, tudoforrado com papel de cores vistosas. As "barracas" eram então cheias de fogos,obtidos por compra ou troca: "estrelinhas", "bichas", "busca-pés", "bombas", as es-pécies mais baratas e inofensivas. Penduradas nas frentes das residências, duranteo dia eram ponto de "negócios"; à noite, iluminadas por lanternas japonesas, quenós mesmos confeccionávamos, tornavam-se centro de grande atividade, de tro-cas, disparos coloridos e, às vezes, quando se obtinha um artefato mais caro, um"chuveiro de prata", as noites frias e escuras de junho eram repentina e brilhante-mente iluminadas do chão, acompanhando os pontos de luz que os balões, lá doalto, projetavam permanentemente...

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Naqueles tempos, esse calendário de festas, religiosas ou não, era seguidoespontaneamente, e quase tudo era produto de nossa criatividade. A produção deartefatos era calculada pelo consumo provável de cada festividade. Hoje, o proces-so inverteu-se: a propaganda cria a sucessão dos eventos, os dias "das mães", "dospais", "da criança", "dos namorados", que sei mais... Alguns, inteiramente artificiais,são transformados em simples pretextos para as atividades comerciais, forçandoum consumismo desenfreado: a produção comandando os espetáculos, e a produ-ção de bens materiais, a maioria supérfluos, se sobrepondo aos motivos puramentehumanos, de fervor religioso ou de simples lazer.

Com tristeza via-se acabar o mês de junho, sempre de férias, e chegar o diade Sant'Ana, o último que se comemorava, encerrando os festejos... E a volta àsaulas restabelecia a rotina interrompida.

O progresso liquidou tudo isso: o crescimento das cidades extinguiu os quin-tais, as chácaras; e a prevenção dos incêndios, a preservação das matas, aos poucos,foi tornando estranho às crianças de hoje todo o encanto desse divertimento, semdúvida perigoso e mesmo brutal, em muitos casos, mas que marcava indelevelmen-te os dias de nossa infância, de todas as infâncias. E nenhum argumento racional écapaz de varrer da memória o encantamento daqueles tempos... e uma tristeza e anostalgia aperta os corações...

Para as crianças das zonas urbanas, creio eu, essas festas representavam osmomentos de maior expansão da alegria de viver mais espontânea e profunda, numquadro de uma vida mais lenta, mais calma, mais vivida, mais feliz. Mais feliz semdúvida do que nos proporciona hoje o fantástico "progresso" que tão duramenteatinge, em primeiro lugar, os menores, privados de espaço, dos folguedos maissimples, do sadio contato com a natureza. Saudosismo, sim, bendito saudosismo,reconheço. Hoje, ficam elas diante de um retângulo mágico, iluminado, paralisadas,inertes, atordoadas, bebendo a violência e o erotismo fora do tempo, impregnan-do-se da mentira da propaganda que faz do fumo, do álcool e do sexo, errado eprematuro, os maiores valores da vida. Recebendo as influências artísticas que nãosão suas, com desprezo daquilo que é inerente à nossa cultura nacional legítima.

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Brinquedos perigosos, sem dúvida, eram os balões do meu tempo. Mas o queestá sendo dado em troca aos meus filhos e principalmente aos netos?

As festas juninas para nós, as crianças daqueles tempos sobrepujavam emimportância e encantamento as duas outras grandes manifestações do calendárioanual das cidades: o Natal e o Carnaval. A primeira era especialmente religiosa e dafamília em conjunto, e a segunda estava voltada mais para os adultos.

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Havia ainda os brinquedos e divertimentos que apareciam periodicamente,invadiam a cidade por algum tempo, as casas, as ruas, as escolas, não se sabia como,e que eram, em seguida, substituídos por outros, em verdadeiras ondas misteriosas,comandadas não se sabe por quem: de repente eram as bolas de "gude", disputadas"à brinca" ou "à vera", em triângulos, corrido ou em "buracas". Então, era um frene-si de colecionar bolas de todos os tamanhos, operações de compra, de venda, detroca, perdas e ganhos. Um belo dia tudo cessava e aparecia alguém com um"bilboquê": a bola furada presa a um bastão por um barbante, e que se procurava,num gesto hábil, fazer entrar a ponta do bastão no buraco da bola. Havia, até entreadultos, os que se excediam em habilidade de repetir essa operação um sem núme-ro de vezes, sem interrupção e esse era proclamado campeão.

As "pipas" ou "papagaios" sucediam então, produzindo, quase como os ba-lões, uma febre de confecções, cada uma mais rebuscada, em competições acirra-das: "papel de seda", flecha comprada nas quitandas, goma de polvilho, linha, eestava tudo pronto para empinar o artefato; as disputas iam até as brigas ásperas,com os desafios em que explodia a gíria da época: "dá linha galinha", "dá barbanteelefante". Dispositivos secretos tais como cacos de vidro amarrados aos "rabos" das"pipas", visavam cortar as linhas dos adversários. O futebol, no meu tempo, aindanão existia com a importância de esporte nacional; havia apenas o futebol amador,nos clubes.

Os circos e os mambembes eram a principal atração, especialmente nas pe-quenas localidades do interior. Mas as famílias cariocas ainda podiam sair incorpo-radas em passeios aos locais tradicionais: o Jardim Zoológico, ali em Vila Isabel, oJardim Botânico, a Quinta da Boa Vista, o Campo de Sant'Ana.

A ida às praias, o banho de mar, ainda não fazia parte dos hábitos comuns,ao menos das famílias dos subúrbios: Copacabana era um imenso areal de acessodifícil. O Túnel Novo (Coelho Cintra) só foi aberto em 1906 e a avenida Atlântica,em 1905.

Sobre a Quinta da Boa Vista lembro-me perfeitamente da grande festa quemarcou a inauguração dos melhoramentos, em 1912, onde fui levado por meu pai.Era à noitinha e guardo bem vivo o deslumbramento que me causou a iluminação,feérica para a época, dos novos jardins em frente ao grande edifício do PalácioImperial, onde funciona hoje o Museu Nacional.

Fazia-se por esse tempo a transição dos bondinhos puxados a burro para osde tração elétrica, e uma simples viagem nesses novos veículos já constituía umpasseio e um divertimento emocionante para as crianças e até mesmo para adultos.

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Mas, sem a mesma intensidade, alguns outros acontecimentos ganharampermanência em minhas recordações desse período.

A Exposição Internacional de 1908, comemorativa do centenário da abertu-ra dos portos pelo príncipe D. João, trouxe ao Brasil um balão do tipo "Bleriot".Emocionados, apreciávamos das janelas do chalé as evoluções do incrível aparelho,que nos enchia de pasmo e de indagações, para as quais não recebíamos respostassatisfatórias. Por essa mesma época, aviadores franceses faziam experiências nosterrenos do antigo Derby Club (onde hoje se encontra o estádio do Maracanã) comum avião dessa mesma marca, do nome de famoso piloto francês. Mal podíamossupor então que eram os primeiros passos que o homem ensaiava para a conquistado transporte aéreo, de que os brasileiros eram pioneiros com os inventos e asfaçanhas de Santos Dumont no princípio do século. É difícil para as crianças dehoje avaliar os sentimentos de admiração e também de medo que essas incursõesincipientes de alguns "heróis" do espaço despertavam em nós.

O trem de ferro, em terra, era o meio de transporte que aceitávamos comocoisa normal e segura. O próprio navio para as viagens longas, intercontinentais, jános deixava, de certa forma, temerosos, pelas notícias das tragédias dos naufrágios.Como poderíamos pois admitir que alguém pudesse viajar pelo espaço, a não sercomo exibição de coragem gratuita ou talvez como sintoma de pouco equilíbriomental...

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Em 1910, tinha eu seis anos, outro fenômeno empolgante levava nossa aten-ção e admiração para os céus: o cometa Halley fazia sua aparição, com sua caudaluminosa, lá ao longe, no horizonte, por cima das palmeiras que se avistavam dasjanelas do chalé. Era um espetáculo que ao mesmo tempo nos deslumbrava e faziaapertar os corações, como anunciador de possíveis catástrofes, choques com a Ter-ra, de efeitos, dizia-se, imprevisíveis. E não somente as crianças se enchiam depreocupações, pois os adultos também mal conseguiam disfarçar seus temores. Arepercussão do aparecimento do cometa foi enorme. Atribuíram-se a ele aconteci-mentos nefastos tais como a morte de figuras ilustres como a de Eduardo VII, rei daInglaterra, de Joaquim Nabuco, do jornalista Henrique Chaves, do desenhista Ân-gelo Agostini e até do grande escritor e humorista Mark Twain, norte-americano.

Na política, relacionava-se a eleição do Marechal Hermes da Fonseca com oaparecimento do cometa, e O Malho, de 21 de maio de 1910, a célebre revistahumorística e de crítica social da época, publicava um desenho de Ramon Lobão,no qual Rui Barbosa aparecia como o cometa trazendo a cauda luminosa a darvoltas entre os astros menores da política. A caricatura utilizou fartamente o fenô-meno e muitos escritores registraram o fato em suas memórias.

Até mesmo o carnaval aproveitou o aparecimento do cometa em suas ale-gorias, segundo informação que colho na crônica de Ronaldo Rogério de FreitasMourão, astrônomo do Observatório Nacional, sobre Astronomia e Astronáutica(Jornal do Brasil, 4ª feira, 26/1/1983, caderno B, p. 6). Diz ele:

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Uma análise das músicas populares brasileiras desde o início do século permite-nos eviden-ciar que os nossos compositores sempre acompanharam os grandes eventos astronômicos. As-sim motivado pela notável aparição do cometa Halley em 19 de maio de 1910, o Carnaval doano seguinte, aproveitou a esplêndida aparição do cometa em seus carros alegóricos, fantasiase músicas.

Uma das grandes sociedades, o Clube dos Fenianos, inclui o Halley em seu cortejo. Coube aoartista Fiúza Guimarães encarregado da elaboração dos préstitos da sociedade, conceber a ale-goria do carro intitulado "O Beijo do Halley". Numa delirante composição de ouro e prata, aTerra, no seu rodopiar diário, voltando-se ora para um ora para outro, deixava-se beijar impu-dicamente por esse grandioso vagabundo dos espaços interplanetários.

Outra grande sociedade, o Clube dos Democráticos, também inclui em seu cortejo a alego-ria "A Dança dos Cometas", de autoria do artista catarinense Publio Marroig, um dos grandesrivais de Fiúza, no concurso que o vespertino A Notícia patrocinava para escolha do melhorcenógrafo que confeccionasse os préstitos da terça-feira gorda. Marroig mostrava os cometas"espadanando numa vertigem feérica de luminosas centelhas.

Outras sociedades, como nos conta Jota Efegê, este incansável estudioso doscarnavais cariocas, participaram ainda do desfile. Uma delas, foi o Clube Carnavales-co Rejeitados de S. Cristóvão, cujos foliões exibiram um préstito crítico-alegórico,com traços eróticos, sobre o cometa, ao mesmo tempo em que cantavam:

Lalá me deixa espiar nessa lunetaEu sou do grupo que gosta do cometaCometa do Halley, cometa do ar,Levanta a cauda que eu quero espiar.

Não foram somente as grandes sociedades que usaram o Halley em suasalegorias no centro da cidade. No Méier, um dos pontos capitais do Carnaval dossubúrbios, o cenógrafo Augusto Cordovil elaborou, para os Progressistas Suburba-nos, um carro alegórico no qual se via uma estrela com grande cauda.

Os efeitos do cometa se fizeram sentir ainda no Carnaval de 1912, quando,no "domingo gordo", o famoso Ameno Resedá desfilou pela avenida Central com oenredo "Corde Celestial" onde figuravam o Sol, a Lua, Mercúrio, Vênus, Terra, Mar-te, Júpiter, Saturno, Urano, Netuno e o cometa Halley, todos em trajes caprichosa-mente desenhados pelo caricaturista Amaro Amaral. O astrônomo inglês EdmundHalley estava representado pelo bailarino Juvenal Nogueira, enquanto a porta-estandarte Semíramis personificava a Lua e o imponente mestre-sala Mário Félixconfigurava o Infinito.

Uma vez livres da ameaça da cauda do cometa Halley que, roçando a Terrapoderia incendiá-la, como se dizia na época, os cariocas, com sua irreverência pe-culiar, adaptaram os seguintes versos a uma conhecida música:

Dizem que o mundo vai se acabar,Eu vou morrer.Dizem que os paus-d'água,Vão deixar de beber.Isto é impossível,Eu não posso crer,Por causa que os paus-d'águaNunca deixam de beber...

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40 Paschoal Lemme | Memórias de um Educador

As crianças de hoje, que pouco olham para o céu, ou melhor, que poucoespaço têm por entre os imensos blocos de cimento em que vivem para vislumbraralguma nesga de azul, não podem avaliar a emoção que nos invadia ao apreciar,deslumbrados, o magnífico e estranho fenômeno.

Alguém recentemente sugeriu que se pusessem galinhas, vacas, bois, jumen-tos, carneiros e cabras no Jardim Zoológico, como animais exóticos, pois somente aías crianças de nossas cidades de hoje, poderiam saber concretamente da existênciadesses representantes outrora domésticos do reino animal... (Parece que o JardimZoológico do Rio de Janeiro recentemente tomou essa iniciativa). Talvez em breve omesmo terá que ser feito com os cães e os gatos domésticos... Que dizer então deum cometa real, fora das histórias em quadrinhos... É certo que todas as criançasassistiram à cena empolgante dos primeiros astronautas descendo na Lua: mas seráque acreditaram mesmo naquilo que estavam vendo através do retângulo lumino-so da televisão ou pensaram que se tratava de "ficção científica", de que são ansi-osos espectadores habituais?

A verdade é que as crianças estão recebendo uma tenebrosa massa de im-pressões e informações, jamais imaginada por qualquer ser humano. Acontece, po-rém, que vêm sendo bombardeadas por tudo isso passivamente, quase inertes, hip-notizadas diante do vídeo, o que vem preocupando seriamente quantos são res-ponsáveis por esses problemas e pelas conseqüências que eles possam vir a ter. Pelapalavra escrita, pelo cinema, pelo rádio, e especialmente pela televisão, que entrana intimidade de suas vidas sem licença e sem aviso, cada vez menos elas próprias,as crianças, manipulam diretamente as coisas, os objetos e sentem concretamenteas pessoas. Além disso, são continuamente transportadas, ao invés de se movimen-tarem por si mesmas: sentam-se para fazer intermináveis trabalhos escolares, edepois passam, horas e horas diante do retângulo mágico. Que resultará de tudoisso? Fala-se tanto hoje em "criatividade" e tudo parece organizado para formarcrianças-robôs. Ainda hoje, dia 9 de novembro de 1983, quando, mais uma vez,faço a revisão dessas Memórias, leio, num jornal, esta correspondência de Chicago,Estados Unidos da América do Norte: "Uma criança americana, entre 9 e 12 anos,passa 1 mil horas em sala de aula, durante um ano. E 1 mil 340 horas em frente aum aparelho de televisão. Quando chegar aos 18 anos, esta criança terá passado 22mil horas vendo TV e apenas 11 mil estudando". Ao longo de sua formação, umamericano sofre ainda influência de duas outras "maravilhas" da tecnologia – osjogos eletrônicos e o automóvel – com conseqüências nocivas à sua educação e àsua saúde. E esta é a preocupação de especialistas, que acabam de lançar um alertaaos pais, para interromper este processo deformador. David Pearl, chefe do Depar-tamento de Pesquisas de Comportamento, do Instituto Nacional de Doenças Men-tais, disse que os pais, em grande maioria, subestimam o tempo que seus filhospassam vendo televisão e o tipo de programas a que assistem.

"A televisão é agora um agente socializante, quase comparável, em impor-tância, ao lar, à escola e à comunidade na influência do desenvolvimento e docomportamento das crianças", disse Pearl, numa conferência sobre o impacto doestilo de vida sobre a saúde de crianças e adolescentes (Sharon Rutenberg, UPI).

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Nesses primeiros anos de nossas vidas, praticamente, só usávamos os trans-portes para os passeios a lugares mais distantes. Para a escola, para as compras etudo o mais, ia-se à pé, pois tudo ficava próximo no bairro, verdadeira comunidade.O contato com as pessoas era direto, e se fazia com todas as categorias profissio-nais: com o lixeiro, com o padeiro, com o quitandeiro, com o professor... Até mesmoa "vara de marmelo" estabelecia relações íntimas entre pais e filhos para corrigir osdesvios mais graves.

Nestes novos tempos de agora, meus netos são transportados à escola deautomóvel ou nos ônibus escolares, mesmo que se trate de distâncias de poucasquadras; vivem sentados fazendo intermináveis "deveres escolares", em ambientesestreitos de apartamentos, ajudados por copioso material impresso, tudo pronto,recebendo por aqueles veículos, aquela massa imensa de informações que não têmtempo de selecionar e assimilar. Não é de estranhar, pois, que a palavra mágica"criatividade" venha invadindo todas as áreas da Pedagogia, pondo nas mãos dacriança material artificial, para que ela tente manipular alguma coisa por si pró-pria. Nós fazíamos nossos balões, nossas pipas, nossas máscaras de carnaval, nossasfantasias, nossa cola de farinha de trigo, nossos brinquedos de caixotes, arames ecaixas de fósforos vazias, nossos cadernos que transformávamos em livros, escassosna época. E parecia que ficávamos satisfeitos... Hoje, os meus netos, cheios de brin-quedos de corda, mirabolantes, eletrônicos, misteriosos, de pilhas e luzes artificiais,parecem estar sempre insatisfeitos, infelizes ou, como se costuma dizer, já nascemcansados de viver...

"Outra característica da cultura atual, e nos Estados Unidos especialmente,é que, tal como é planejada, só pode ser experimentada passivamente e essa passi-vidade é profundamente empobrecedora para o indivíduo", afirma com toda a pro-priedade Charles A. Reich, em seu O Renascer da América.

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Para encerrar esse período de minha infância, bastante revelador do ambi-ente cultural em que vivíamos, lembro-me perfeitamente de um acontecimento decaráter nacional – a morte do Barão do Rio Branco, a 11 de fevereiro de 1912;tinha eu, portanto, oito anos incompletos.

Meu pai era leitor assíduo do Correio da Manhã, desde seu aparecimento. Oestilo combativo do jornal de Edmundo Bittencourt, às vezes até desabusados, co-adunava-se bem com o temperamento e com seu ânimo calabrês, formado no am-biente das lutas garibaldinas da unificação política de sua pátria de origem (meupai nascera em setembro de 1874).

Lembro-me assim, com muita nitidez, do noticiário abundante sobre a mor-te do chanceler, informando-nos sobre o significado da perda do grande estadistabrasileiro. Era, se bem me lembro, num domingo quente do verão carioca, e me vejosentado na tradicional cadeira de balanço, na sala de jantar, perfeitamente consci-ente da significação do fato, que decifrava bastante razoavelmente com os conhe-cimentos de leitura que já possuía.

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42 Paschoal Lemme | Memórias de um Educador

É de notar que meu pai, italiano de nascimento, já se achava perfeitamenteintegrado e identificado com sua pátria adotiva; tornado brasileiro pela grandenaturalização decretada em 15 de novembro de 1889 pela República nascente, elenos incumbia, como talvez poucos pais brasileiros, o interesse pelos acontecimen-tos nacionais. Isso naturalmente por sua própria educação européia, de valorizaçãoda coisa pública, dos fatos políticos e sociais, o que não era comum nas famíliasbrasileiras do mesmo nível social.

Essa orientação influiu profundamente na formação, dos irmãos Lemme sen-do, sem dúvida, a razão de nossos pendores para a participação nos acontecimen-tos políticos e sociais de nosso povo, o que nos conduziram posteriormente a op-ções mais ou menos extremadas, de acordo com as situações em que cada um denós se viu envolvido no decorrer da vida. E como não poderia deixar de acontecer,tais opções trouxeram para alguns de nós não pequenos dissabores...

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De outro acontecimento político de grande significação, verificado um poucoantes, não guardo tão vívida recordação – a revolta da Marinha de Guerra, chefia-da por João Cândido, em 1910 – a não ser por algumas referências ao bombardeiodos tiros de canhão dos navios rebelados, que teriam atingido o centro da cidade.Como morávamos nos subúrbios do Méier, longe desse centro, não fomos envolvi-dos diretamente nos acontecimentos e minha pouca idade - 6 anos - encarregou-se do resto. Vejamos.

Era a 23 de novembro de 1910:

Foi cheia de angústia a noite em que um tiro de canhão anunciou que explodira aquelarevolta [...] Os poderosos canhões das naus sublevadas sacudiam a cidade com os estrondosespaçados de seus disparos, que quebravam, como clamores de uma tragédia, o silêncio opres-sivo e pesado dentro do qual tudo parecia transido de terror [...] As granadas sibilavam noespaço em tiros sem alvo nem objetivos certos, explodindo a esmo. [...] Os navios rebeldes exe-cutavam, dentro da baía, transpondo a barra e regressando ao interior da enseada, manobras deprecisão admirável, que faziam crer na presença de algum oficial de elevada patente e de gran-de capacidade técnica a bordo. Era a revelação, naquele movimento, do marinheiro rude que alenda havia de perpetuar como o "Almirante Negro", chefe que assombrava com sua capacidadeimprevista – João Cândido.

São referências que encontro em A República que a revolução destruiu, deSertório de Castro.

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Não poderia concluir esta tentativa de traçar o quadro aproximado dessesprimeiros anos de minha vida consciente, se não procurasse dizer alguma coisa demim próprio, de como eu mesmo me via então, de meu caráter enfim.

Em primeiro lugar, vêm as incursões, bastantes precoces, creio eu, no terre-no de interesse pelo outro sexo. É uma componente fundamental da personalidade,quando a idade própria cria o problema.

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Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1 43

Lembro-me assim perfeitamente de uma primeira paixão avassaladora, cujaprotagonista era a Edite, uma jovem morena, alta e magra, moradora nos arredoresdo chalé, de cuja família não guardo, porém, qualquer recordação. Era bem maisvelha do que eu, mas isso não influía em nada em meus sentimentos. Antes, já minhaprima Mônica me despertara para essa apreciação emocional, pelo outro sexo, deforma bem diferente de qualquer outra coisa que pudesse me causar prazer.

Também de alguns habitantes do misterioso Morro da Madre de Deus, quese reuniam em nosso portão na época dos festejos juninos, na formação dos gruposdo "tasca balão", já ouvira as mais antigas referências, de que me recordo, ao terre-no proibido da relação entre sexos, das quais, naturalmente, pouco entendi. Algunsdesses elementos eram bem mais velhos do que nós, os moradores do chalé, e decondição social inferior e já tinham, segundo depreendo hoje, iniciação bastanteavançada nesses assuntos; ao menos era o que pareciam revelar na linguagem de-sabrida que usavam, chocando a sensibilidade das crianças mais ou menos ingênu-as que éramos, como resultado de nossa educação repressora. Esses vizinhos des-pertavam em nós grande curiosidade porque já percebíamos vagamente o que seocultava por trás daquela linguagem, apesar de não termos ainda base fisiológicapara sentir e compreender exatamente o que significava. Não é preciso dizer que osencontros de cães e gatos no cio, que presenciávamos freqüentemente, deixavam-nos embaraçados, encabulados mesmo, apesar de não entendermos com precisão oque estava ocorrendo: os adultos, naturalmente, procuravam desviar nossa aten-ção desses espetáculos. Não me lembro, porém, de qualquer manipulação a que meentregasse, pela possível excitação que essas visões pudessem produzir: a localiza-ção desse instinto básico da personalidade só se daria um pouco mais tarde.

Pouco mais poderia dizer da consciência de meu próprio ser nos anos emque vivi no chalé da Rua Figueiredo (1906-1913). Voltando-me, com algum esfor-ço, para dentro de mim próprio, vejo que não formava ainda uma individualidadenítida, separada do meio circundante. Os fatos, as pessoas e as coisas, o exterior emsuma, misturavam-se ainda com o eu, com o interior, ou este ainda estava porassim dizer, dissolvido no ambiente, como se fora uma espécie de esponja, de con-tornos pouco precisos, mergulhada num fluido em constante transformação e quefosse absorvendo permanentemente, o que vinha de fora – as impressões exteriores– pois, era ainda pequena a reação de dentro para fora, naturalmente por deficiên-cia do equipamento fisiológico, movimento esse de interação que vai aos poucosdefinindo e formando a personalidade.

Estava, pois, naquela fase de formação do eu, que Louis Lavelle caracterizaassim:

É por isso que o eu nada é fora do seu corpo e fora dessa consciência do universo inteiro,que não seria possível sem o corpo. Não que o corpo a produza por um misterioso epifenômeno;mas para que a consciência seja possível é preciso que nos distingamos do mundo e, por conse-guinte, que tenhamos um corpo limitado.

Essa delimitação do corpo que produz a consciência do eu é um longo pro-cesso, conforme descreve Piaget, e se completa, creio eu, com a maturação sexual,ou melhor, com a plena localização do instinto da reprodução. Aí, o indivíduo se

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sente como uma personalidade definida e distinta das outras e, ao mesmo tempo,procura sua complementação no sexo oposto, no "milagre do amor", da perpetua-ção da espécie:

A natureza, antes de tudo, quer a reprodução dos seres: por toda parte, desde o cume dasmontanhas até o fundo do oceano, a vida tem medo de morrer. Deus, para conservar sua obra,estabeleceu, como lei, que o maior gozo de todos os seres seja o ato da geração. A palmeiraenviando à sua fêmea a poeira fecunda, freme de amor nos ventos calmosos; o veado no cioestripa a corça que lhe resiste; a pomba palpita debaixo das asas do macho, como uma sensitivaamorosa; e o homem ao possuir nos braços a companheira, no seio da natureza todo-poderosa,sente saltar no coração a centelha divina que o criou (Alfred de Musset, em A confissão de um

filho do século).

É lamentável que esse instinto fundamental da vida seja objeto de tantarepressão de tão penosas conseqüências (e eu as senti bem sérias, uma iniciaçãotortuosa, e daí a minha insistência no assunto). É a loucura e o gênio de Nietzscheque nos adverte: "O desprezo da vida sexual, inculcá-la com o conceito de impure-za é um verdadeiro pecado contra o espírito santo da vida".

Nesse particular, a juventude de hoje chega a me causar inveja, quando vaiunificando o sexo e o amor, ambos "sagrados", desprezando nefastos preconceitos,que insiste em separar aquilo que são as faces da mesma moeda, e que moeda: oinstinto básico da vida.

Assim, em retrospecto vejo-me como um menino tímido, encabulado, pro-fundamente emotivo, corando com facilidade, chorando durante uma noite inteiraporque a Edite, sua platônica namorada, não lhe dedicou a devida atenção. Caren-te, talvez, em termos de algum freudismo, de mais carinho materno e de menosautoritarismo do pai ríspido. Mas, que fazer, se chegamos a ser uma dúzia de ir-mãos vivos (8 homens e 4 mulheres) e se o tempo era pouco para o trabalho decuidar, alimentar, vestir, alojar e instruir esse bando, que muitas vezes só podia serdevidamente contido com a ajuda da vara de marmelo, sempre presente no cantoda sala de jantar, e, quando inutilizada pelo uso, nós mesmos, os próprios usuários,éramos mandados a adquirir outra nova na quitanda do "seu" Manuel português...

– Mas, eu sou uma neurótica, John. Descobri que tenho uma infinidade de neuroses.– E daí? Talvez por isso mesmo é que você é uma estrela. Talvez você deixe de ser o que é se

ele lhe curar de todas as neuroses. Eu também tenho as minhas esquisitices, mas é por isso quevou dar 25 dólares por hora para um camarada, só para que ele me diga que meu pai memaltratou e que o que sinto é simplesmente falta de carinho de minha mãe? E se for verdade?Que é que poderei fazer para remediá-lo? Ir a Minnesota e dar um soco no nariz do meu velho?Ele tem oitenta anos. Ou então chamar uma call-girl (prostituta) grisalha e fazer com que meacalente e me sirva uma mamadeira? (Jacqueline Susann, em Valley of the dolls).

• • •

O período do chalé da Rua Figueiredo ia chegando ao fim. Meu pai prosperavana nova profissão. O curso terminou e ele recebeu o tão almejado e sofrido diplomae comprou o anel de grau. A clientela aumentava. Mas os caminhos de acesso aochalé continuavam cada vez mais difíceis, tornando-se praticamente intransitáveis

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durante os aguaceiros do verão. O barro vermelho que descia do Morro do Vintémtransformava as ruas, ainda sem qualquer calçamento, em enormes lamaçais, afu-gentando a clientela.

Parece que foi essa a principal razão que levou meu pai a cogitar na mudan-ça para local mais apropriado e mais acessível. Evidentemente, havia também eco-nomias acumuladas, que permitiam mais altas aspirações.

E assim, certo dia, o velho chalé foi sendo abandonado por um casarãosituado do outro lado da Estrada de Ferro – considerado o mais nobre – o da RuaDias da Cruz, onde nos instalamos por muitos anos, depois de uma reforma queconsumiu algum tempo e muitos recursos. Estava situado à Rua Joaquim Méier,que subia da Rua Dias da Cruz, bem defronte à cancela da Estrada de Ferro, emladeira bastante acentuada. O número era o 18.

Construída na frente do prédio uma sala de espera e ao lado o consultóriodentário, planejado especialmente, afinal pôde meu pai colocar no vidro da janelaa inscrição consagradora de tantos anos de trabalhos, esforços e sacrifícios:

ANTONIO LEMME – CIRURGIÃO DENTISTA

E nos cartões de visita, acrescentou com indisfarçável orgulho:

PELA ESCOLA DE MEDICINA DO RIO DE JANEIRO

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AS ORIGENSCAPÍ

TULO

II

Meus avós paternos eram italianos de Cosenza,capital da província da Calábria. Não os conheci. Meu avô– Paschoal Lemme ou Pasquale – legou-me o nome porinteiro, o que, diga-se de passagem, causou-me embara-ços durante toda a vida: sendo um nome pouco comum,fazia-me objeto de atenção especial, quase sempre irôni-ca, que feria minha sensibilidade de menino tímido, enca-bulado. Lembro-me muito bem do vexame que me atin-gia ao ser gritado meu nome pelo bedel, irascível e depoucas letras, no saguão de entrada do Colégio Pedro II,ali na Rua Larga, durante a chamada para prestar as pro-vas dos exames de "preparatórios": "Paschoal... Lemme..."Os dois emes inusitados do meu nome de família levavamo funcionário a dar a interpretação que lhe ocorria nomomento, e a mais freqüente era atribuir-me o codinomedo chefe da Revolução Russa – Lenine – , muito em desta-que na época, lá pelos idos de 1917-1920, anos duranteos quais eu prestava aqueles exames.

Desse Lemme com dois emes nunca pudemosdescobrir a verdadeira origem, que positivamente nãonos parecia ser italiana nem mesmo latina. Seria judia,que tivesse passado para a Holanda, com a formaLemme, e que, segundo pesquisadores das origens dosLeme de São Paulo, criou o tronco inicial dos bandei-rantes paulistas? Nesse caso, estaríamos ligados aosLemes quatrocentões de São Paulo, os quais descendi-am exatamente de um Antonio Lemms, vindo da

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Holanda, segundo as conhecidas pesquisas de Washington Luís, sobre o povoa-mento de São Paulo.

Um outro pesquisador da genealogia paulistana, Alfredo Ellis Júnior, escre-ve em seus Capítulos da história social de São Paulo:

Como é sabido, por varonia, esses Lemes procediam de Antonio Leme, filho natural doflamengo Martins Leme, tendo entre o povoador Antão Leme e este seu antepassado flamengomediado quatro gerações, de maneira que teria ele apenas 1/16 de sangue holandês e PeroLeme, seu filho, também povoador primeiro, somente 1/32.

Rocha Pombo, em sua História do Brasil, afirma que:

Este Antão Leme, povoador, era filho do grande descobridor e navegador... Antonio Leme,da Ilha da Madeira (1474-1484), companheiro de Vicente Dias, Diogo de Teive e Afonso Sanches,que cruzavam nessa época o oceano ocidental em todas as direções...

E Gaspar Frutuoso em Saudades da terra e Silva Leme em Genealogiapaulistana, acrescentam:

O maior vulto do bandeirismo do último quartel do seiscentismo, nasceu em 1608 e foifilho de Pedro Dias Paes Leme e de Maria Leite. Por seu pai, Fernão era Leme, provavelmente daestirpe flamenga emigrada em Portugal, aliada à gente ibérica, cujas origens se encontravamnos monarcas hispânicos e nos que ocupavam o trono do reino dos Carolíngios. Por sua mãe,Fernão era neto de Paschoal Leite, fidalgo de uma magnífica árvore genealógica.

Alimentar a suposição de que descendemos de uma estirpe de antepassadostão notáveis e até nobres é sempre muito gratificante... Mesmo que, como no nossocaso, se trate, com certeza, de pura ficção...

Ou seria esse Leme de origem judia-austríaca, germânica, portanto? Existena Istria, península ao norte da Itália, um pequeno rio ou canal denominado Leme,que Júlio Verne aproveita nas peripécias de uma de suas obras mais célebres: MatiasSandorf. Quem me chamou a atenção para esse fato foi meu irmão Virgílio, que erae ainda é um admirador irredutível do grande futurólogo francês, que encantounossa juventude. Do relato da fuga espetacular da prisão desse êmulo de MonteCristo, o conde Sandorf, relemos estas passagens:

Realmente, essa superfície d'água, que servia de embocadura à Foiba, não era nem lago,nem lagoa, mas simplesmente estuário. No país, davam-lhe o nome de Canal de Leme e comu-nica com o Adriático por uma fenda estreita entre Orsera e Rovigno, na costa ocidental dapenínsula istriana.

E adiante:

Com efeito, pelas cinco horas da tarde, sentiu-se na estrada o tropel de um pequeno esqua-drão de cavalaria. O conde Sandorf que, de rastros, se acercava da porta do recinto, voltouprecipitadamente para junto do companheiro e arrastou-o para o canto mais escuro do celeiro,onde se conservaram debaixo de um montão de silvas secas, na mais completa imobilidade.Meia dúzia de gendarmes, comandados por um sargento, subiam a estrada, dirigindo-se para o

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oeste. Parariam no canal? O Conde Sandorf interrogou-se a si próprio com viva ansiedade. Se osgendarmes revistassem a casa em ruínas, não deixariam de descobrir os que aí se haviam escon-dido. Foi nesse mesmo sítio que fizeram alto. O sargento e dois gendarmes apearam-se; osoutros ficaram a cavalo. Estes receberam ordem de percorrer toda a região pelos arredores doCanal do Leme.

• • •

Nunca consegui saber exatamente o que fazia ou de que vivia meu avôpaterno: barbeiro? Apurei apenas, vagamente, que se dedicava à música e tocavabandolim (ou violino?) em orquestra que se exibia em festas no palácio do gover-nador da Província. Sempre tive enorme curiosidade em conhecer alguma coisamais a respeito desse meu ascendente que me legou o nome. Meu pai, porém,nunca nos fez qualquer revelação explícita, e minha mãe pouco sabia também,creio eu, desses antecedentes da família Lemme. Não tinha idade nem interesse naépoca para interrogar a tia Paschoalina por ocasião de sua rápida passagem pornossa casa. E o outro tio, irmão de meu pai - o Vicente -, não cheguei a conhecer,pois morreu pouco depois de chegar ao Brasil, em companhia de meu pai.

Minha avó paterna, Palma de Martori Lemme, contava minha mãe, tinha apele muito escura, talvez por influência árabe, e por isso era apelidada de "Tição".Com a morte de meu avô, dedicou-se à fabricação de tecidos, chegando, segundoouvi contar, a dirigir uma pequena fábrica nos arredores de Cosenza. A vinda dosdois rapazes para o Brasil – meu pai e meu tio Vicente – causou-lhe grande desgos-to, segundo revelou meu pai pouco antes de morrer, e que no delírio que precedeuao desenlace, acusava-se como o causador da morte de sua mãe, minha avó.

Não sei se isso acontece com outras pessoas, mas sempre alimentei um sen-timento de certa frustração por não haver obtido o conhecimento direto, ou, aomenos, informações mais precisas e completas sobre a vida dessas criaturas dasquais, afinal, descendia: um indício qualquer do que realmente foram, do que lhessucedeu, do que exatamente viveram e morreram. Essa falta de informações esta-belecia como que um vazio, um hiato, numa das alas de minha vida, uma espécie deperda de simetria necessária para a sustentação de nossas vidas. Esse sentimentoera tanto maior, porque conheci praticamente toda a ascendência do lado mater-no, tendo até mesmo convivido, por algum tempo, com meus avós, pais de minhamãe, e quase que com todos os tios e tias, irmãs e irmãos dela.

Sempre tive orgulho dessa ascendência italiana, mas infelizmente, quandovisitei rapidamente a Itália (1957), esse inigualável país, não pude viajar até a cida-de natal de meus avós para tentar descobrir algum traço de suas vidas que materi-alizasse suas existências e satisfizesse minha curiosidade.

Como tantos outros antes de mim, entretanto, deslumbrei-me com a visãodesse país, cujo ambiente extraordinário só um gênio da literatura poderia sentirem toda a extensão e tentar descrever: um Goethe, por exemplo. Em 1786, o gran-de alemão empreende pela primeira vez essa viagem maravilhosa, tão ardentemen-te desejada, que relata depois minuciosamente (1816-1817) em suas Italienschereise (Viagens italianas), como parte de sua autobiografia:

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Goethe parte cheio de alegria e esperanças, à conquista desse país, que foi sempre, desdesua infância – ele mesmo o confessa – ser o mais belo sonho e também seu mais terrívelpesadelo. Desde que seu pai, sendo ele ainda menino, contara-lhe sua viagem a esse país dolimoeiro e do louro, pulsava em sua alma uma nostalgia, aguçada pelas lindas estampas queseu pai trouxera de lá e que se dependuravam em belas molduras nas paredes de sua casa. Atéuma gôndola de brinquedo, seu pai trouxera de lá e quantas viagens não fazia nela, a umaVeneza ideal, o menino Goethe! A viagem à Itália chegou a obcecar-lhe de tal modo que,segundo ele mesmo confessa, chegou a ser uma tortura e a marcar como um tabu, que amoderna psicologia freudiana explicaria satisfatoriamente todas as idéias e sensações prove-nientes da parte da Itália.

E o próprio Goethe escrevia:

Roma, 1º de novembro (1786)

Enfim cheguei a esta capital do mundo! Se a houvera visto em boa companhia, guiado porum homem verdadeiramente discreto, há quinze anos teria me considerado feliz. Porém, umavez que deveria vê-la sozinho, é bom que essa alegria me tenha deparado tão tarde.

Pelas montanhas tirolesas passei como voando! Verona, Vicenza, Pádua, Veneza, vi-as bem;porém, Ferrara, Cento, Bolonha, vi-as de passagem, e Florença apenas a vi. Minha ânsia dechegar a Roma era tão grande e crescia tanto a cada momento, que não podia estar sossegadoem nenhum lugar, e em Florença, só permaneci três horas. Agora, porém, que me encontro aquie tranqüilo, creio que serenei para toda a minha vida. Pois pode-se dizer, com razão, que come-ça uma nova vida quando vemos com os nossos próprios olhos aquele conjunto que parcial-mente conhecíamos por dentro e por fora. Vejo agora, animados de vida, todos os sonhos deminha juventude...

E adiante:

Em outros lugares deve-se buscar o principal: aqui ele nos acossa e cumula. [...]. Ter-se-iaque escrever com mil estilos, o que é aqui uma pena. E logo, ao cair da tarde, estamos jávencidos e exaustos de tanto ver e admirar.

Como se vê, não me contenho em antecipar essa visão admirável, que sómuitos anos depois me enterneceu, contagiado pela magia dessa terra e dessa gen-te, a meu ver, únicas no mundo. E não me envergonho com isso. Estou em excelentecompanhia.

Já nos tempos atuais, um outro escritor de origem bem diversa – o russo IlyaEhrenbourg – em suas Memórias, com a mesma ternura e admiração, fala-nosassim da pátria das maiores figuras que a humanidade já produziu: um Virgílio, umDante, um Leonardo da Vinci ou um Miguel Ângelo:

Vi a Itália, pela primeira vez, há meio século, é claro que muitas coisas mudaram desdeaquela época. No Norte, cresceram enormes usinas; construíram-se modernas localidadesresidenciais para operários; ademais, o Museu de Turim parece que não tem rival em toda aEuropa, quer pela iluminação, quer pela disposição dos quadros. O nível de vida subiu. As tira-gens de livros cresceram, os operários começaram a ler, até mesmo os camponeses. O mundo seampliou: o antigo provincialismo desapareceu. No que diz respeito ao conhecimento da litera-tura soviética, a Itália ultrapassou os demais países do Ocidente: traduzem muito, não esporadi-camente, diga-se de passagem, mas sabendo escolher. Pelas estradas onde outrora eu caminhei,

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onde encontrava burricos e carros de boi, correm bandos de pequenos Fiat, motocicletas, Mas oespírito do povo, que me compreendeu e conquistou quando era bem jovem, permanece omesmo.

Esta a esplêndida e inigualável terra de meu pai e de meus avós. Por que nãome orgulhar dela?

• • •

Reunindo os fragmentos de histórias que ouvi de minha mãe (por mimprovocadas) e dos meus dois irmãos mais velhos, pude concluir que meu pai veiopara o Brasil, com uns 14 anos, juntamente com um irmão mais moço – Vicente –,ambos em companhia de uns tios, que se dirigiam a São Paulo, onde pretendiam sededicar à indústria hoteleira, atividade de que já se ocupavam na Itália.

A morte desses tios, atacados pela febre amarela que então grassava no Riode Janeiro, deixou os dois rapazes entregues à própria sorte, acabando por se fixa-rem na Capital do País. O mais moço, o tio Vicente, veio a falecer mais tarde, vítimade tuberculose, depois de longos sofrimentos e de procurar por todos os meios acura, sempre dedicadamente assistido e mantido pelo irmão. Não cheguei a conhecê-lo, mas meus dois irmãos mais velhos - o Virgílio e a Palma -lembram-se deleperfeitamente, inclusive porque foi padrinho de batismo dessa minha irmã, sendo amadrinha a tia Zulmira, a irmã mais moça de minha mãe, que esteve para se casarcom tio Vicente.

Sozinhos, no país estranho, pouco pude saber de seus passos, e de seus sofri-mentos nessa inesperada situação. É certo que andaram por Niterói, não sei em quecircunstâncias, mas chegaram a ter a casa em que moravam destelhada pelos bom-bardeios dos canhões do marechal Floriano Peixoto, durante a Revolta da Marinha,em 1893.

Vale a pena recordar, com Felisbelo Freire, em sua História da revolta de 6de outubro de 1893:

Ao amanhecer de 6 de outubro de 1893, despertou a população da capital da República,sob a desagradável notícia de que se achava revoltada parte da esquadra nacional, sob o co-mando do almirante Custódio de Melo... [...] A resistência de Niterói é uma das mais belaspáginas da luta. Almejada pela revolta, de preferência ao Rio de Janeiro, a cidade fluminensetinha, no dia 6, como elementos de defesa, além do heroísmo moral de suas autoridades, civis emilitares, uma guarnição de 74 soldados de polícia! Achava-se, porém, à frente deles o bravocoronel Fonseca Ramos, a que se deve principalmente a defesa da cidade, nos primeiros dias daluta. [...] Figurava no plano da revolução dar um desembarque na cidade, cuja tomada seria umagrande vitória, senão a morte do governo. [...] De posse dela, estavam eles de posse da Armaçãoe da Fortaleza de Santa Cruz, a mais importante das fortalezas legais. [...] Duas tentativas fize-ram para isso, nos dias 7 e 8 (de setembro) sendo essas expedições dirigidas pelo 1º tenenteFelinto Perry, 2° tenente Honório de Barros, auxiliados pelo major Sebastião Bandeira e pelocapitão Miranda de Carvalho. [...] Ambas foram infrutíferas. As forças legais defenderam acidade que sofreu prolongado fogo do Aquidaban, República e Trajano. Começou então a correro primeiro sangue e a se fazer sentir os estragos da cidade, cuja população emigrou toda para ointerior, transformando-se ela numa praça de guerra.

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É provável que os dois rapazes tenham participado dessa debandada e de-pois, não consigo imaginar como, apareceram no Engenho de Dentro, subúrbio doRio de Janeiro, encontrando-se, talvez por mero acaso, com meu avô materno,Adelino Paes, que aí havia se estabelecido.

Consta que meu avô acolheu bondosamente os dois jovens italianos, dando-lhes trabalho, orientando-os na profissão a que se dedicava – tinha uma grandeloja de barbearia – cuidando de meu tio doente e até a língua do país procurouensinar-lhes.

Fico sempre a especular sobre a verdade desse relato, quase do tipo daque-les em que Balzac era mestre, descrevendo relações de família, encontros edesencontros entre gente de classe média comum. E procuro representar a cena doportuguês ríspido – meu avô materno – a receber e proteger com carinho os doisrapazes, naturalmente de má aparência, pois não consigo compreender como semantinham, nem como se fariam facilmente entender, em seu patuá calabrês. E sãoessas coincidências que parecem reforçar a idéia de predestinação: o mais velhodos dois vem a namorar e a casar-se com uma das filhas do português e protetor,que seria depois minha mãe.

O Antônio (Lemme) revelou-se muito ativo e trabalhador, grangeando de-pressa a amizade e a admiração do futuro sogro. Manejava com rapidez e perfeiçãoa tesoura e a navalha, gabando-se de seus verdadeiros torneios de velocidade emcompetição com seus futuros cunhados e meus tios maternos, que trabalhavamtambém na loja de meu futuro avô. Diz-se que o velho Adelino protegeu tambémcom grande bondade o tio doente, tendo mesmo chegado a levá-lo, mais tarde,para a cidade de Barra Mansa, no Estado do Rio de Janeiro, quando para lá setransferiram, numa tentativa de obter melhora para a saúde precária do rapaz,num clima mais favorável. Infelizmente, porém, não conseguiu vencer a doença,vindo a falecer, não sei exatamente em que ano.

Essa circunstância de ser meu pai encaminhado tão facilmente para a pro-fissão da tesoura e da navalha é que me fez acreditar que haveria talvez algumainiciação anterior, por já se dedicar a essa profissão meu avô paterno, na Itália.

É certo que a ligação de meu avô materno com meu futuro pai perdurou ese consolidou e, em breve, era ele iniciado nas artes mais nobres do boticão e emmuitos elementos de medicina, dos quais meu avô Adelino possuía conhecimentosbastante extensos, tendo mesmo grande experiência, com estudos inacabados, re-alizados em Paris.

• • •

Meus avós maternos eram portugueses originários de Vizeu, onde desfruta-vam de situação econômica e social bastante razoável.

Vizeu é a cidade notável por ter sido a pátria de Viriato, que venceu os romanos, e pelosquadros do pintor Grão Vasco, que ostenta a sua Sé. Em Vizeu estamos em plena Beira, uma das

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Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1 53

grandes províncias de Portugal. Aí, o castanheiro, o cedro, o carvalho, o pinheiro bravo, põemna paisagem todos os tons e essa grandeza própria e as árvores que vivem séculos. A Beira é oberço dos homens robustos, a província mais portuguesa de Portugal.

Nessa cidade de Viriato, meus avós possuíam casa própria, assobradada, detrês pavimentos, guarnecida, segundo me dizia minha mãe, com orgulho e tristeza,com móveis e alfaias vindas diretamente de Paris. A viagem para o Brasil significou,assim, uma queda desse padrão de vida, com o qual, parece, minha mãe nunca seconformou inteiramente.

Meu avô – Adelino Paes – estudara medicina em Paris, mas não chegara aconcluir o curso. Terminado, porém, o primeiro ano, recebeu o pomposo título deOficial Cirurgião Barbeiro, pois, a essa época, era profissão conceituada, exigindoconhecimentos de anatomia, de modo que podia aplicar a pacientes "bichas" e"ventosas", para sangrar e os aliviar dos males cardíacos. Meu avô vivia entre médi-cos, e especialmente cirurgiões, que freqüentavam sua casa e com ele conferencia-vam nos casos mais graves. Sem o título do curso completo, prestava, porém, assis-tência aos médicos formados, e depois, já no Brasil, ainda me lembro, mantinhaamizade com doutores de nomeada, entre eles Joaquim Murtinho, médico homeopatae depois ministro da Fazenda de Campos Sales.

Em sua loja de barbeiro, no Engenho de Dentro, subúrbio do Rio de Janeiro,aplicava, como aprendera, as "bichas" e as "ventosas", cuja aparelhagem cheguei aconhecer. Dedicava-se também à arte dentária e era especialmente hábil no mane-jo do boticão, na extração de dentes. Possuía instrumental completo, adquirido emParis, e cujos vistosos estojos passaram por nossas mãos. Manifestava sempre má-goa por não ter concluído o curso de medicina. Era um português de porte alto,elegante, de hábitos aristocráticos, vermelho, olhos azuis, instruído, como se vê,mas de poucas falas. Quando o conheci, usava quase que permanentemente umcharuto, que mastigava em gesto característico, andando de um lado para o outro,de mãos atrás das costas, aparentando sempre mau humor, um tanto superficial.

Minha avó materna – Josefina de Jesus Paes – era alta, morena, nariz aquilino,cabelos pretos e crespos, que atingiam, quando soltos, as costas até bem embaixo.Criara muitos filhos – conheci três tios e três tias – os homens todos trabalhandona mesma profissão do pai. Não gozava porém de muita saúde ou a perdera com asduras lides domésticas. Quando aqui chegou, foi logo atacada pela febre amarela, oque levou a família a fazer uma viagem de volta a Portugal. Depois, fixaram-sedefinitivamente no Brasil.

Minha mãe tinha dois anos de idade quando aqui chegou na primeira via-gem. A vinda para o Brasil se fizera a conselho de um amigo ou compadre já aquiradicado. Creio que era comerciante e entusiasmara os amigos com seu sucessofinanceiro. A mesma sorte, porém, não sorriu para a família Paes.

Aqui chegando, residiram primeiro no centro da cidade, na rua dos Inválidosou do Lavradio, onde se instalavam as famílias de imigrantes de melhores posses. Asmais ricas, como se sabe, procuravam os bairros distintos da época, lá para o Catumbiou Rio Comprido, nas tradicionais chácaras, descritas por José de Alencar ou Ma-chado de Assis em seus romances.

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O Rio de Janeiro era, nesse fim de século, um "porto sujo", onde grassavama varíola, a febre amarela, a peste bubônica e outras moléstias tropicais. Atacavamprincipalmente os estrangeiros que aqui desembarcavam sem qualquer resistênciaou imunidade natural.

É bom recordar esse quadro, na palavra de Gastão Pereira da Silva (emRodrigues Alves e sua época):

Que era, no entanto, o Rio de Janeiro antigo?Uma cidade colonial, surgida ao acaso, em desacordo com os mais elementares princípios

da ética e política social.Solo fertilíssimo demais – diz Miranda Ribeiro – acrimonias particulares, matrizes de erisipelas,

empigens, sarnas, endemias crônicas, e da doença vulgarmente chamada de mal de São Lázaro,na opinião abalizada de Antônio Medeiros, clínico notável nos tempos de antanho.

Situada no extremo da vasta planície úmida e quente, charcosa, pantanosa, e circundadade montanhas, os seus logradouros públicos não obedeceram à direção natural dos ventos rei-nantes, contrariando-os, de modo que o desasseio das praças provenientes dos despejos cujoseflúvios voltavam para a cidade, envoltos com os ventos que os podem fazer pestíferos; asigrejas loucamente recheadas de cadáveres por indiscreta devoção; a vala, o cano, a cadeia, osesterquilínios vagos, enfim, tantos depósitos de imundícies levaram o doutor Antônio Joaquimde Medeiros, respondendo aos quesitos formulados por Acórdão da Câmara desta Cidade, em1798, após explanação sobre a consulta, a afirmar inquirindo:

– Está em problema qual das cidades é a mais doentia, se o Rio de Janeiro ou Angola?Dizia-se que ir ao Rio de Janeiro era suicidar-se, foi o dístico que estrangeiros colocaram

simbolicamente à entrada da baía da Guanabara...

Como se sabe, somente muito mais tarde, com a gigantesca obra de RodriguesAlves, Pereira Passos, Paulo de Frontin e Osvaldo Cruz, entre outros, é que essasituação se modificou e o Rio de Janeiro perdeu a pecha infamante de "porto sujo".

Em 1903, Rodrigues Alves dizia em sua primeira mensagem ao CongressoNacional:

Os defeitos da Capital afetam e perturbam todo o desenvolvimento nacional. A sua restau-ração no conceito do mundo será o início de uma vida nova, o incitamento para o trabalho nasáreas extensíssimas de um país que tem terra para todas as culturas, clima para todos os povose explorações remuneradoras para todos os capitais. O que convém – e o governo vai fazê-lo –é iniciar o serviço e não mais abandoná-lo, embora nos custe avultados sacrifícios.

Já antes, em manifesto à Nação, a 15 de novembro de 1902, afirmava:

Quando se consumarem (refere-se aos melhoramentos projetados para a cidade), poder-se-á dizer que a Capital libertou-se da maior dificuldade para o seu saneamento e o operáriobendirá o trabalho que lhe for proporcionado para fim de tanta utilidade...

• • •

De volta dessa viagem a Portugal, onde minha avó fora tentar a cura da febreamarela, a família deixou o centro da cidade, refugiando-se num subúrbio longínquopara a época – o do Engenho de Dentro – , situado nos contra-fortes da serra dosPretos Forros, onde o clima era mais saudável e distante das pestilências da beira-mar.

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Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1 55

Conheci, porém, meus avós maternos com mais nitidez somente muito maistarde, quando já se haviam radicado na cidade de Barra Mansa, no Estado do Rio deJaneiro, para onde foram em circunstâncias de caráter bastante dramático, querelatarei adiante.

Foi assim pois, nesse refúgio do Engenho de Dentro que se deu o encontrodas duas famílias, ambas vindas do sul da Europa como imigrantes, cujos detalhesnunca pude apurar cabalmente, e que deveriam formar o tronco de que nós, osLemmes da segunda geração, nos originamos.

O novo aprendiz rapagão desempenado, que chegara ao Engenho de Dentrofugindo aos bombardeios dos canhões de Floriano Peixoto, acabou por conquistaras boas graças e a amizade do casmurro Adelino Paes, e a convivência das famíliaslevou a aproximação com a filha – Maria do Nascimento – minha futura mãe.

O namoro travou-se no estilo da época, às escondidas, com encontros furti-vos e bilhetinhos escamoteados, recebendo a clássica oposição da família: o rapazera um "carcamano", sem eira nem beira, sem grandes perspectivas de elevaçãosocial. E a família da moça já sofrera muito com a decadência que a transladaçãopara o Brasil ocasionara. Houve, porém, amor, insistência e até surras, segundominha mãe contava, para fazer esquecer o estranho. Havia ainda a circunstância daavó Josefina ter saúde precária, e a filha, incumbida de todo o trabalho pesado dacasa, iria fazer-lhe muita falta. Freqüentemente, nos contava ela, era posta fora dacama pelo pai, de madrugada, com certa brutalidade, para enfrentar o tanque delavagem de roupa, a cozinha e todo o serviço doméstico. Mas, a tudo resistiram eacabaram por receber o necessário consentimento. E o casamento realizou-se comtodo o aparato da época, até com casaca e cartola para o noivo, indumentária essaque conheci muito tempo depois, pois a incluíamos em nossas brincadeiras de cri-anças, ainda no chalé da Rua Figueiredo.

Os noivos tinham então 23 e 16 anos, respectivamente, e estávamos emjunho de 1897, exatamente no dia 3.

Após a cerimônia, o casal foi, no mesmo dia, contava minha mãe, direta-mente para o Méier, onde se instalou na casa já preparada de antemão, graças àgenerosidade do padrinho João Afonso Ferreira. Estava situada exatamente na es-quina da Rua Dias da Cruz com a antiga Rua Paraguai, hoje Cônego Tobias, e,portanto, bem em frente à plataforma da "parada" do Méier da Estrada de FerroCentral do Brasil, depois transformada em Estação do Méier, no próprio coração dobairro, que apenas nascia.

Como de hábito nesse tempo, para as famílias do nosso nível social, a resi-dência ficava nos fundos da casa, e, na frente, em alinhamento com a rua, localiza-va-se a loja do novo profissional, que assim ganhava autonomia e todas as respon-sabilidades de família e do trabalho.

Não foi porém muito feliz no novo negócio – uma barbearia de luxo – cujosempregados, vindos de São Paulo (imaginem!), trabalhavam de casaca. As despesaseram grandes e os lucros, parece, não apareciam na medida esperada. Já então, aidéia de ir aos poucos mudando de profissão, com o aproveitamento dos conheci-mentos adquiridos com o sogro, deve ter orientado as ambições de meu pai. O fatoé que, desde então, as navalhas e as tesouras foram aos poucos sendo substituídas

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pelos boticões. E a influência dos amigos já referidos fez com que, aos poucos, meupai saísse da condição de "prático" para a conquista do almejado diploma de cirur-gião-dentista.

O casal, porém, jamais deixou o bairro do Méier, a não ser eventualmente epor pouco tempo, e nele permaneceu até o último dia de vida de cada um: ele, em1946, e ela, em 1968.

Ali, naquele subúrbio, prosperaram, completaram e criaram uma numerosafamília – 16 partos com 12 filhos vivos, oito homens e quatro mulheres.

Assistiram ao desenvolvimento do bairro no qual cooperaram, e que conhe-ceram ainda agreste e que, ao morrerem, era considerado a capital dos Subúrbiosda Central do Brasil, uma verdadeira cidade, com mais de 200 mil habitantes.

Meu pai, homem que se revelou de grande energia, dado o esforço que teveque realizar por si próprio, para conseguir a ascensão social, de sua incultura inicialaté uma carreira de nível superior, com as agravantes dos tropeços que lhe causa-vam a origem estrangeira e as dificuldades da língua, tornou-se, naturalmente, umtemperamento autoritário, através do qual encobria uma grande afetividade, quenão conseguia expressar devidamente. Mal dissimulava, porém, sua bondade e seuinteresse pelos filhos e pela família. Atirava-se ao trabalho diário, desde a manhãaté as últimas horas da tarde ou as primeiras da noite. Emotivo, como todo omeridional, sofria de ataques de enxaqueca, que hoje a herdei, vejo a sua origemem distúrbios neurovegetativos. Daí a razão de seu mau humor e às vezes abrusquidão no trato com minha mãe e conosco. Seu exemplo, seu trabalho, suaenergia, seu interesse pela coisa pública e pelos destinos da pátria de adoção, seuespírito progressista e liberal, seu anticlericalismo, no sentido de não admitir qual-quer manifestação de obscurantismo – tudo isso, foi um legado que nos transmitiu,que nos marcou, sem dúvida de maneira positiva.

Não importa que em certo período da vida cedesse a impulsos difíceis dejulgar, mas não de entender, numa crise que não é incomum em homens que fize-ram grandes esforços, com sacrifícios intensos e com enormes renúncias pessoais,para construir uma situação de maior desafogo, os quais, em dada fase da vida,cedem a ilusões de procurar uma recompensa afetiva, que julgam não poder en-contrar na companheira de todas as lutas. E sem avaliar bem as conseqüências,atiram-se a aventuras que acabam sem oferecer qualquer compensação e, ao con-trário, como aconteceu, levaram-no a um fim bastante triste. Enfim, já disse opróprio Cristo, quem, ao menos em pensamento, nunca pecou, que atire a primeirapedra...

De qualquer forma, porém, chegou a ser pessoa muito conceituada e conhe-cida no Méier e em toda aquela zona dos subúrbios da Central do Brasil, onde eraconhecido por dr. Lemme. Foi amigo das figuras mais tradicionais do bairro, e nostempos de moço, ainda sem as amarguras da vida a pesar-lhe na alma, entregava-se aos folguedos carnavalescos, freqüentava bailes e saraus, fantasiava-se, e, aosdomingos, reunia-se com os amigos em rodas de jogos familiares. Mais tarde culti-vou amizades com as figuras dos mais destacados médicos, alguns dos quais lega-ram seus nomes às ruas tradicionais do bairro: um Dias da Cruz ou um AristidesCaire.

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Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1 57

Seu interesse pela educação fez com que procurasse proporcionar aos filhoso máximo de estudos que seus recursos permitiram.

As divergências que nós, os irmãos Lemme quando já íamos adquirindo nos-sa personalidade, tivemos com ele, foram superficiais e normais, dadas a sua ori-gem, educação e estilo de vida que foi levado a adotar. E não era muito mais do queo esforço natural que os filhos devem fazer para escapar à tutela dos pais, especi-almente os autoritários, pelas circunstâncias de vida e que ocasiona o chamado"conflito de gerações" que se torna até indispensável para que se formem persona-lidades independentes.

Mas, passadas as crises, ele respeitava nossa situação e nossas aspirações,cujos fundamentos ele próprio lançara. Creio mesmo que já na parte final de suavida, e em decadência acentuada, dadas as ilusões afetivas que alimentara e perde-ra, orgulhava-se de nós, de nossas carreiras e até mesmo de nossas idéias, um tantoradicais. Lembro-me bem que, indo me visitar quando eu amargava nas prisões dareação (1936-1937), não lamentou propriamente minha situação e parecia mesmoaprovar inteiramente minha atitude de resistência às iniqüidades que os presospolíticos sofriam naquela época sombria de nossa história.

• • •

Minha mãe, enérgica, como sempre a conheci, naquela azáfama ininterrupta,a atender a tudo e a todos, numa família que aumentava a cada ano, dotada deadmirável bom senso, enfrentando galhardamente os humores nem sempre agra-dáveis de meu pai, não recuava mesmo no uso da "vara de marmelo", quando aagitação daquela meia dúzia de capetas passava de limites suportáveis.

Foi uma devotada à família, ao marido, aos filhos, chegando mesmo a umquase completo descuido pessoal, e deve ter sido essa uma das causas daquelemergulho do quase velho Lemme na aventura completamente fora dos padrões quepoderiam ser imaginados para o tipo de família que constituíram.

Sem pieguices, equilibrava-se relativamente bem entre um marido autori-tário e às vezes até violento, e uma filharada barulhenta, atendendo às duas partes,sem encobrir possíveis faltas, mas também sem intransigências inúteis. Durantemuitos anos, quase sempre à espera de um próximo filho, acabou por perder asaúde.

Sua amargura foi se acentuando quando sentia a reprovação por parte docompanheiro de tantos sacrifícios, a esse interminável suceder de uma descendên-cia, já não mais desejada. E a realidade brutal do abandono do lar, derrotou-acompletamente. Minha irmã Palma teve que assumir a direção da casa e arcou comtodo o ônus da manutenção e criação dos irmãos restantes – a maioria – que seviram assim desprotegidos de um lar organizado, ambiente em que vivera o grupodos primeiros quatro. A essa missão ela se atirou com a maior energia e firmeza,tendo sacrificado para isso seus mais caros planos de vida pessoal.

Isso tudo, porém, não invalidou no doutor Lemme suas qualidades de pro-fissional íntegro, sempre a procura das melhores técnicas para executar seus traba-lhos. Uma de suas últimas realizações nesse sentido foi a construção de um edifício

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especializado para a instalação dos consultórios dentários e oficina de trabalhos deprótese, para si e para os filhos que iriam acompanhá-lo e suceder-lhe na profissãoque abraçara. E isso representava uma grande novidade para a época e um pro-gresso para a localidade, pois a esse tempo os médicos e os dentistas, especialmentenos subúrbios, ainda mantinham seus consultórios nas próprias residências e aten-diam os clientes em suas casas, num verdadeiro trabalho de ambulantes, caracteri-zado pelo uso das "maletas pretas" típicas, onde conduziam o instrumental neces-sário para suas intervenções e tratamento.

Assim é que, um belo dia, foi surgindo na confluência das Ruas Dias da Cruze Silva Rabelo, uma estranha construção de forma trapezoidal, que se dividia numasala de espera, dois consultórios dentários e uma oficina de prótese dentária, alémde outras dependências.

Com a frente para a Rua Silva Rabelo, n° 11, ficava o prédio principal,onde por mais de 50 anos residiu a família Lemme. Nela, depois de dramáticavolta ao lar e longa e incipiente doença, falecia com 72 anos o dr. Antônio Lemme,em 15 de abril de 1946, e muito tempo depois, a 13 de agosto de 1968, com 86anos, extinguia-se a vida cheia de trabalhos, alegrias e desilusões de dona Mariado Nascimento Lemme.

• • •

A família Lemme foi assim, sem qualquer dúvida, uma das mais antigas a seestabelecer no Méier, de onde nunca se afastou, podendo, sem favor ser considera-da como uma das fundadoras e impulsionadoras do desenvolvimento da capitaldos Subúrbios da Central.

O terreno em que se situavam as construções que serviram por mais de 50anos de residência a essa família, foi desapropriado pelo governo do antigo Estadoda Guanabara e nele construída uma pequena e bela pracinha. Nela ainda podemser apreciadas as árvores frutíferas plantadas com carinho e quase devoção pelafamília Lemme, que, por nossa influência, foram conservadas no plano de arborização.

O novo logradouro deveria receber, como homenagem e por justiça, o nome dochefe de nossa família "Praça Antônio Lemme". Mas, como sempre acontece, as autori-dades estão alheias a essas circunstâncias histórico-sentimentais, e quase que a novapraça recebia um nome sem significação de morador ou político com muito poucasraízes na história local. Na oportunidade, cheguei a enviar aos jornais cariocas umacarta sobre o problema, reivindicando os "direitos" da família Lemme sobre a denomi-nação do recém-criado logradouro. Eis a nota, conforme publicação do jornal O Globode 2 de setembro de 1976, com alguns cortes feitos pela redação desse jornal:

NOME DE PRAÇA NO MÉIER

Em 1920, meu pai, Antônio Lemme, adquiriu o prédio e o terreno localizados na confluên-cia das Ruas Dias da Cruz e Silva Rabelo, na parte mais central e valorizada do subúrbio doMéier, hoje transformado numa verdadeira cidade.

O prédio fora construído por João Afonso Ferreira, amigo de minha família e pai do gene-ral-médico João Afonso de Souza Ferreira, ex-diretor do Serviço de Saúde do Exército e jáfalecido.

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Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1 59

Em 1956, o governo do então Distrito Federal desapropriou a área para a construção deuma praça. Somente agora, em 1976, 20 anos depois, a desapropriação foi executada e osherdeiros receberam apenas cerca de 1/5 do valor atual da propriedade, além de terem ficadodurante esses 20 anos sem poder dispor de seu patrimônio.

Outro problema:A praça está sendo urbanizada (esperamos que ao menos as mangueiras e caramboleiras

plantadas e cuidadas durante muitos anos pelos proprietários sejam preservadas) e não se sabeainda a denominação que o novo logradouro receberá.

Parece-me entretanto que seria justo que consagrasse o nome de Afonso Ferreira, queconstruiu o prédio. Ou o de Antônio Lemme, chefe da família tradicional do Méier, onde seradicou em 1896, ampliou e fez novas construções no local, ali trabalhando, vivendo e morren-do, e cujos descendentes (12 filhos e muitos netos), depois de 56 anos de residência contínua,tiveram que deixar seu lar, forçados pela desapropriação tão injustamente indenizada.

Nossas sugestões não foram, porém, levadas em consideração. O melhor quese conseguiu foi perpetuar o nome, felizmente expressivo, do escritor AgripinoGrieco, que se radicara no Méier havia uns trinta anos, crítico literário de méritosinegáveis, de temperamento impulsivo, mas também de ascendência italiana comoo velho Lemme.

Creio que serei bem compreendido pelos possíveis leitores destas Memórias seabusar de mais uma transcrição para acentuar ainda mais todo o impacto que aindahoje me causa ao invocar aqueles anos vividos no casarão da Rua Silva Rabelo núme-ro 11. São trechos de um trabalho da professora Francisca Schettino Gomberg publi-cado num jornalzinho do bairro, sob o título "As mangueiras da praça". Escreve ela:

Sempre que passo pela praça Agripino Grieco (aquela pracinha do Méier, no início da RuaDias da Cruz) tenho que olhar para as mangueiras que existem lá. Quantas vezes passo, quantasvezes olho: é infalível. E cismo enquanto ando. É que por elas, a cada hora, passam centenas depessoas, num interminável vai-e-vem, gente distraída, gente apressada, e essa gente nem seapercebe da presença das mangueiras na praça. Mas eu não. Tenho sempre, para elas, um olharque é quase reverência, um olhar de respeito: respeito não só pelo que elas são (últimos vestígi-os do verde do nosso bairro) mas também, e principalmente, pela história que elas têm. Umahistória singela que ficou entre os membros de uma das mais antigas famílias do Méier, algunsamigos deles e de uns poucos políticos. Se eu não conhecesse um pouquinho dessa história,talvez passasse pela pracinha com a mesma indiferença com que todo mundo passa. Mas euconheço. Por isso, vejo-as com profunda admiração. Essas velhas mangueiras viram crescer ascrianças da família Lemme, os doze filhos de dona Maria do Nascimento Lemme e do dentista,doutor Antônio Lemme. Em 1920, ela e seu marido foram morar numa casa enorme que ficavana Rua Silva Rabelo n° 11. Lá encontraram algumas árvores no grande quintal; mas outrasforam plantadas, depois, por eles... O tempo foi passando. As crianças cresceram vendo, no dia-a-dia, o carinho que dona Maria dedicava àquelas árvores e às plantas que transbordavam deverde o quintal da casa... Aos oitenta e seis anos, dona Maria faleceu. Nessa época, corria naJustiça o processo de desapropriação da casa. O antigo casarão, em pleno centro do Méier, jánão combinava com mais nada do que havia a sua volta. Durante nove anos, os filhos de donaMaria lutaram duramente para que a casa não fosse demolida, pois sua mãe queria morrer ali.Uma luta gloriosa que, infelizmente, terminou com a morte de dona Maria. Mas ela morreu ali,rodeada pelos filhos e pelo verde que com tanto amor ela ajudara a crescer... Há meses atrás,passei pela praça no momento em que um rapaz trepado numa das mangueiras, sacudia-lhe osgalhos fortes e cheios de mangas, para que estas caíssem. Embaixo, um grupo de moças, estu-dantes de um cursinho do Méier, numa correria alegre, recolhia as frutas que rolavam pelochão. Aí, sim; todos que passavam pela praça paravam para olhar. Fiquei engasgada de emoção.

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Confesso, até que, naquele momento, senti vontade de bater palmas; uma vontade enorme deaplaudir, com entusiasmo as mangueiras da praça – figuras principais de um show maravilhosoque a natureza preparava para a comunidade do Méier... E a senhora viu, dona Maria, de ondequer que esteja, o tamanho daquelas mangas?

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Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1 61

DE MIM PRÓPRIOCAPÍ

TULO

III

O ano de 1904 é considerado por muitos his-toriadores como o verdadeiro marco divisório entreos séculos 19 e 20, se é que os séculos são passíveis deseparações tão nítidas.

É, por exemplo, a opinião de Maurice Beaumont,no volume XVIII da coleção Peuples et Civilisations,quando observa: "Le 19 siècle n'est clos qu'en 1904,que ouvre une nouvelle phase d'historie universelle".

Nesse ano, em abril, ocorre uma reviravolta nabalança de poderes na Europa, com o acordo firmadoentre as duas potências tradicionalmente inimigas – aFrança e a Inglaterra – que formaram então o núcleoda coalizão que deveria enfrentar, dez anos mais tarde,a Alemanha unificada de Bismark. E assim iriam dispu-tar a conquista dos mercados mundiais indispensáveisà nova era que se abria para o grande desenvolvimen-to, que despontava sob a égide da ciência e da técnica.Continua Beaumont:

L'Anglaterre renonce à son "splendide isolement': entrela France et l'Allemagne, ele opte contre Aliemagne.L'antagonisme anglo-allemand est désormais soudé à l'hostilitéfrancoallemande, et, logiquemente, leur convergence doitaboutir à ún conflit. En ce sens, l'accord d'avril 1904 est bien"le cheval de Troie" que porte la guerre

E adiante:

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Malgré les rivalités du siècle finissant l'Entente Cordiale se prépare; quand elie aboutit en1904, on peut dire qu'une ère nouvelle commence...

A era das grandes guerras mundiais e das revoluções, das imensas transfor-mações verificadas na vida econômica, política e social, em todos os quadrantes domundo.

• • •

Também no Brasil esse ano não transcorreu sob o signo da tranqüilidade.

No alvorecer do século 20, a capital da República apresentava um panorama singular: aolado de belezas naturais inigualáveis e de mansões como o Palácio do Catete, construído em1865, havia um amontoado de vielas, becos, cortiços e hospedarias; o lixo amontoava-se nascalçadas; o abastecimento de água era insuficiente; inexistia rede de esgotos; doenças mortaisameaçavam a população. Faltava muito, portanto, para que pudesse igualar-se às capitais euro-péias ou mesmo à vizinha Buenos Aires. A febre amarela era endêmica. Introduzida no Brasilprovavelmente por um cargueiro norte-americano que aportara no Rio de Janeiro, só no ano de1850 provocara a morte de 6.500 pessoas. Atacava de preferência no verão, deixando o invernopara a varíola, que, em 1904, matou 3.566 cariocas. E ainda havia a cólera, a peste bubônica, otifo, a tuberculose. (De Saga, a grande história do Brasil, fascículo 69, p. 150. São Paulo: AbrilCultural S/A Editora, 1981).

Em 1903 (escreve Gastão Pereira da Silva, do livro já citado), o novo presi-dente da República, Rodrigues Alves (1902-1906), afirma de público, em sua pri-meira mensagem ao Congresso Nacional:

Os defeitos da Capital afetam e perturbam todo o desenvolvimento nacional. A sua restau-ração no conceito do mundo será o início de uma vida nova, o incitamento para o trabalho nasáreas extensíssimas de um país que tem terra para todas as culturas, clima para todos os povose explorações remuneradoras para todos os capitais. O que convém – e o governo vai fazê-lo -é iniciar o serviço e não mais abandoná-lo, embora nos custe avultados sacrifícios.

E o presidente cumpre as promessas.

Enquanto Osvaldo Cruz combate os germes patogênicos, Pereira Passos, Paulo de Frontin,Francisco Bicalho, Lauro Müller vestem a cidade. Os casebres ruem à força da dinamite e daspicaretas salvadoras. Surgem no lugar dos pântanos os primeiros jardins. Nas vielas estreitas eimundas, as alamedas arborizadas. Nas ruas, compram-se ratos, por medida de profilaxia. Nasresidências, vacinam-se os que não querem ter varíola. Isola-se o doente de febre amarela.Combate-se as águas estagnadas, destruindo-se as larvas dos culicídeos. Calafetam-se as caixasd'água. Pelotões de guardas fazem o policiamento dos focos infectantes.

Mas, grandes resistências se levantaram contra as medidas, por vezes vio-lentas, adotadas pela equipe saneadora que iria transformar o Rio de Janeiro numacidade moderna, habitável.

O "Bota-Abaixo", como era apelidado Pereira Passos, é taxado de louco fu-rioso, de visionário, de monstro insensível, especialmente pelos comerciantes por-tugueses do centro da cidade, que perdiam suas casas, freqüentemente derrubadasda noite para o dia, por descumprirem a intimação do governo, de abandoná-las.

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Paulo de Frontin traça e abre a avenida Central (depois avenida Rio Branco), sendovítima de ataques violentos. Acusava-se, entre outras coisas, de que a direção emque se situava a nova via principal da cidade, de mar a mar, seria a causa de terrí-veis e permanentes resfriados para os que tivessem a infelicidade de por ela transi-tar... Osvaldo Cruz, principalmente, era "atingido com os maiores anátemas": nomínimo – invasor desalmado dos lares, carrasco insensível dos doentes, inoculadorde venenos no corpo de pessoas desprevenidas...

A gota d'água foi, porém, a "lei da vacina obrigatória", exigida por OsvaldoCruz para completar sua obra de saneamento da cidade e que o Congresso aprovaem 31 de outubro de 1904, depois de longos e ásperos debates contra os que seempenhavam em fazer do Rio de Janeiro uma cidade com alguns requisitos básicospara a habitação do homem.

O povo, ainda descontente com a situação que vinha desde o governodeflacionário de Campos Sales, e, de certa forma, atordoado por aquela indispen-sável balbúrdia causada pelas picaretas purificadoras e pelas medidas de sanea-mento, nem sempre bem explicadas ou bem entendidas, tornou-se presa fácil depolíticos ambiciosos e despeitados e de concepções retrógradas, como as que pro-pagavam as correntes influenciadas pelo pensamento positivista, contra a vacinaobrigatória.

Vale a pena transcrever aqui um boletim atribuído aos adeptos do credo deAugusto Comte e distribuído ao público antes de rebentar a insurreição de 1904.Dizia assim:

Cidadãos! Um governo anti-republicano – mais que isso, um governo antipatriótico (sic),levado pelos conselhos egoísticos de charlatães sem clínica, pretende fazer a Pátria retrogradarpara além do tempo das feitorias, transformando o povo num viveiro de cobaias. Para realizaresse plano diabólico, ele recorreu ao auxílio de advogados sem causas ou, indiretamente, àcusta do Tesouro Nacional, a essas indignas defesas a esses vergonhosos aplausos com que sepretende confundir a opinião nacional! Cidadãos! O atual regulamento de higiene, congnominado"Código de Torturas", é uma agressão à dignidade humana, é um ataque à probidade médica, éuma violação insólita de vossas câmaras conjugais, é um desacato grosseiro aos nobres melin-dres de vossas esposas, finalmente um bote selvagem aos santos aposentos de vossas filhaspúberes.

Repare-se na intriga soez da referência à violação dos aposentos de esposase filhas, pelos "mata-mosquitos" e "caça-ratos" de Osvaldo Cruz, querendo assimcombater as indispensáveis inspeções domiciliares, sem as quais as medidas, torna-das compulsórias, seriam inócuas ou muito pouco eficientes, práticas essas hojerotineiras nos serviços de saúde pública preventiva.

Nesse ambiente de tensão, alimentada por essas acusações aleivosas e enve-nenadas por todos esses interesses contrariados, aliados à mentalidade tacanha daépoca, à ignorância e à má fé, desencadeia-se a chamada "Rebelião de Novembrode 1904", especialmente contra a "lei da vacina obrigatória", à qual José Maria Beloassim se refere em sua História da República:

Reaparecia o velho sonho dos primórdios da República, de uma ditadura militar de essênciapositivista, capaz de salvar a pureza dos princípios republicanos; o senador Lauro Sodré, militar

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e político, que se distinguia por sua atitude contra o golpe de estado de Deodoro da Fonseca, erao chefe da Revolução. Osvaldo Cruz, na sinceridade de suas convicções, não compreendia bem oassalto das desencadeadas paixões políticas. Quis renunciar para evitar dificuldades maiorespara o governo. Fortalecido, todavia, pela confiança e solidariedade de Rodrigues Alves, resisteà áspera investida. Na tarde de 10 de novembro de 1904 começaram as arruaças. Recrudesciamno dia imediato; multiplicavam-se por toda a zona central da cidade os clamores da desordem,os motins e os ataques diretos às forças policiais. Bandos de amotinados tentam marchar contrao palácio da presidência da República. À noite, intensifica-se a revolta: eram destruídos oscombustores de gás da iluminação pública. Aqui, além, erguiam-se barricadas; delas, das janelase das esquinas atiravam contra a polícia, como nas insurreições clássicas de Paris, na época deLuís Felipe e de Carlos X. Atropelava-se o trânsito. Era de pânico o ambiente.

Na madrugada de 15 de novembro já o movimento havia sido dominado (escreve GastãoPereira da Silva). Terminou assim a chamada Revolução de Novembro, vencendo a Repúblicaum dos transes mais difíceis e perigosos que até então tinha atravessado.

Raimundo A. de Athayde dá-nos um depoimento muito interessante sobreesses lamentáveis acontecimentos de novembro de 1904. São as impressões de OlavoBilac:

[...] depois de percorrer todos os recantos da Capital, visitando aqueles restos denunciadores doscrimes cometidos contra o progresso e a civilização, [assim se expressava o poeta] eu pergunta-va a mim mesmo, embrutecido pelo espanto, que mágoa, que ressentimento, que receio ou quedespeito pudera levar esta gente a um ato de tão completa insensatez, obrigando o Brasil aperder em um dia o que ganhara em quinze anos, revoltando-se contra um governo que só querdar luz, avenidas, saúde, árvores, limpeza, dignidade ao povo, dando trabalho aos que queremtrabalhar provendo os lares de pão, preparando a grandeza de uma pátria que só ainda não égrande e bela por ser suja e despovoada.

Confrange-se a alma do poeta ante o espetáculo triste que presenciava. Emmeio às ruínas, da sujeira e vergonha que aquela torrente deixara exclama indignado:

Semana maldita, some-te, mergulha no grande abismo insondável do tempo, onde há es-quecimento para tudo – para as ambições, para a ignorância e até para a maldade consciente(Pereira Passos, o reformador do Rio de Janeiro).

Entretanto, a repressão violenta não se fez esperar. A 16 de novembro, ogoverno decretou estado de sítio lançando suas tropas contra bairros pobres, con-forme em A política geral do Brasil de José Maria dos Santos:

Sem direito a qualquer defesa, sem a mínima apuração regular de responsabilidades, ospopulares suspeitos de participação nos motins daqueles dias começaram a ser recolhidos emgrandes batidas policiais. Não se fazia distinção de sexos nem de idades. Bastava ser desocupadoou maltrapilho e não provar residência habitual, para ser culpado. Conduzidos para bordo deum paquete do Lóide Brasileiro, em cujos porões já se encontravam a ferros e no regime dachibata os prisioneiros (do bairro) da Saúde, todos eles foram sumariamente expedidos para oAcre.

• • •

Nessa "semana maldita", na apóstrofe indignada do poeta, em pleno desen-volvimento da revolta popular, num sábado, dia 12 de novembro de 1904, mais ou

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Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1 65

menos às 18 horas, talvez apressado pelas circunstâncias e emoções do momento,nascia eu, numa pequena casa de uma rua insignificante – a Rua Augusta n° 4 – naparte alta do lado esquerdo da Estação do Méier... O signo (está muito em modasua utilização) era o de "escorpião", contraditório, com males e bens terríveis...

Nunca pude localizar essa casa modesta, creio mesmo que desapareceudestruída por algum plano de urbanização local. Tenho vaga idéia de que ficavana parte alta da Rua Joaquim Méier, onde mais tarde nos instalamos no casarãodo n° 18. Nem sei quais as razões que nos levaram a residir nela. Era eu o terceirodos filhos vivos da família, pois o primeiro morrera ao nascer. Acima de mimestavam o Virgílio (1901) e a Palma (1903). Com o Antônio, o "Tonico", que veioem seguida (1906), completou-se o primeiro grupo dos quatro, que foram com-panheiros de brincadeiras e brigas, educação e estudos, num lar já em ascensãosocial e relativamente bem organizado.

Depois vieram, numa seqüência quase anual, mais 12, dos quais apenas nãovingaram quatro mortos prematuramente, e já num ambiente bastante diferente,conforme ficou relatado.

Dizem que nasci gordo, sadio, e, segundo contava minha mãe, gracejando,desde muito cedo já comia espaguete...

Não acredito em predestinação (ou acredito?), mas o fato de ter nascido sobo signo de uma rebelião popular que se alastrava pelas ruas da minha cidade natal,deve ter acentuado em mim a condição em que viveram os homens de minha gera-ção, num mundo em conflito, em transição, para alguma coisa que não se sabeainda ao certo o que possa ser.

Sem exagero, começava o mundo a viver uma daquelas épocas de con-vulsão social, que a história da humanidade conheceu anteriormente com aqueda de Roma e o advento do Cristianismo; ou com a passagem da IdadeMédia para a era capitalista. E assim, os que não nasceram ou foram educadospara passar "a vida em brancas nuvens", como dizia o poeta, tiveram que fazeropções, às vezes radicais, ao menos nos anos da juventude. E essas opções,naturalmente, não permitiram que levassem uma existência tranqüila, com asegurança a que se tinham acostumado as gerações anteriores, que gozaramdaquele largo período de paz e prosperidade, de expansão vitoriosa do regimeque, nas asas da ciência e da técnica, estendia-se a todo o mundo conhecido deentão. Mas, as ilusões do progresso contínuo e linear frustraram-se, e assimsobrevém o período dos conflitos violentos, das matanças jamais imaginadasentre povos, das guerras mundiais e das revoluções, dos antagonismos radicaisnas concepções de vida, nas filosofias, nas artes e nas ciências, na busca frené-tica de um mundo mais humano, que o próprio homem vinha desumanizando.As doutrinas salvadoras, os ditadores carismáticos, mas também as grandes con-quistas dos povos em suas lutas por melhores condições de vida, tudo isso divi-dia os homens, uns querendo fazer retroceder a marcha da história, outrostentando manter-se em seus egoísmos, no gozo de suas riquezas e privilégios,outros, enfim, procurando, por todos os meios, lícitos ou ilícitos, quase semprecom grandes sacrifícios pessoais, novos caminhos em busca de dias melhores.

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É legítimo, pois, e antes de tudo um ato de coragem, que alguém afirme:

Apesar dos pesares, eu ainda acredito nas utopias sociais de uma sociedade sem classes. Masnão encontro, no mundo de hoje, um país onde eu dissesse: Ah! nesse eu gostaria de viver! Aliás,acho que essa é uma grande tragédia da minha geração. Todos os projetos testados fracassaram.Em qualquer continente, de qualquer bandeira, com qualquer ideologia. Nós não temos aquelesmodelos que tínhamos na nossa juventude, aquelas esperanças. Fracassaram. As bandeiras es-tão esfarrapadas. Então só restam as utopias. Eu continuo fiel a elas. Mas entre essas utopiastem que estar a liberdade incluída. E liberdade significa absorver as diferenças. Se a diferençanão for admitida, então é realmente monopólio do saber, ditadura de um tipo de conhecimen-to. (Do cineasta Cacá Diegues, em entrevista ao Jornal do Brasil, em 3 de setembro de 1978).

A esses "filhos do século" devem ser permitidos (ou, pelo menos, compreen-didos) todos os caminhos ou descaminhos que trilharem e, por certo, não assistirãoao desfecho final desses verdadeiros cataclismas que se abateram sobre a Terra:econômicos, políticos, sociais, espirituais, morais..., se é que haverá desfecho...

Mas, mesmo agarrados às suas utopias, não poderão dizer que não viveramnum dos mais empolgantes momentos da história da humanidade.

• • •

Com a saída do chalé da Rua Figueiredo, voltávamos, definitivamente, àparte considerada nobre do bairro: aquela de que a Rua Dias da Cruz constituía aartéria principal. Mudáramos para o casarão da Rua Joaquim Méier n° 18. Essa ruacomeçava na Dias da Cruz, quase em frente à cancela que dava passagem, porsobre o leito da estrada de ferro, para o lado oposto, na Rua Arquias Cordeiro. Porela passavam os bondinhos puxados e burros, que ainda conheci. A Rua JoaquimMéier subia em ladeira bastante acentuada, que se cobria de lama barrenta nosdias de chuva: o calçamento só veio muito mais tarde. Na esquina com a Rua Diasda Cruz, havia um restaurante ou "Casa de Pasto", como se denominava então, depropriedade de um português, nosso amigo, e onde aos domingos, para o ajantarado,íamos buscar litros de vinho verde gelado, recebido diretamente de Portugal evendido a granel, tirado diretamente das torneiras dos próprios tonéis.

O casarão, construído em terreno que se estendia até a rua paralela seguin-te – a Rua Paraguai (hoje Cônego Tobias) – , ficava ao nível da rua na parte dafrente, mas, com o declive do terreno, formava-se para os fundos um porão habitá-vel. Desde logo, com seu espírito progressista, meu pai fez construir uma sala e umquarto à frente da casa, para servirem à instalação do gabinete dentário e da salade espera, para a clientela que se fazia promissora... Na janela do consultório pinta-da num quadro de vidro fosco, a inscrição consagradora, já referida: ANTONIOLEMME, CIRURGIÃO-DENTISTA.

Com o aumento da família, novas ampliações foram sendo feitas no prédio,inclusive uma grande sala de jantar, nos fundos, com saída para uma larga varandaque se estendia até quase a frente da casa.

Nesse ambiente passei praticamente o final dos anos da infância e todos osda adolescência, e nele se decidiu o meu destino profissional.

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Nós, os rapazes, dormíamos nos quartos ao rés do chão, no porão, que seabriam para um grande salão, onde estudávamos e passávamos as horas de lazer.Nele fizemos funcionar, mais tarde, um jornalzinho, O Cairú, em homenagem aonome da escola em que estudávamos, composta letra a letra por meio de carimbos deborracha. Não foi além do segundo número, mas através dele fizemos as primeirasincursões no domínio das letras. Essa atividade empolgou os três irmãos Lemme du-rante algum tempo e os levou a se exercitarem na redação e na apreciação de leitu-ras, das quais selecionavam trechos que mais os agradava ou impressionava. Lembro-me bem que entre as transcrições incluímos a célebre diatribe de Rui Barbosa sobre ojogo: "diátese cancerosa", etc., etc., etc. Éramos inocentes e moralistas...

Nesse porão, nos quartos mais ou menos lúgubres, senti os maiores medosde minha vida, que procurava esconder dos irmãos e dos adultos, pois, de acordocom a idade, já era exigida alguma afirmação de coragem... Em noite de insônia,um enorme alívio me acalmava quando a luz da madrugada começava a penetraratravés dos vidros das pequenas janelas que davam para um corredor lateral, poronde se podia atingir a rua, mas que estava sempre vedado por um portão de ferro.

Certa noite, estando o prédio em meio de uma de suas remodelações, umladrão penetrou no andar superior, naturalmente atraído pelos valores existentesno consultório dentário de meu pai. Lembro-me, ainda hoje, dos passos furtivos dointruso no assoalho, que me enchiam de terror, pois roubo domiciliar, naquelestempos, era coisa rara... Por causa das obras, estávamos todos dormindo no porão,e meu pai, acordando, muniu-se de um pedaço de pau à guisa de porrete, e saiupelos fundos para surpreender o incômodo visitante, mas este já tinha escapado.

Este porão, de recordações dramáticas, foi mais tarde cedido, como mora-dia, a uma das irmãs de minha mãe – a tia Deolinda – que passava um período dedificuldades, com alguns filhos e o marido, operário-ferreiro com parco saláriotrabalhando na conhecida Fundição Indígena, localizada no centro da cidade, àRua Camerino. O contato mais íntimo com a família dessa minha tia, além do inte-resse tradicional pelas primas, deixou-me recordação muito viva.

Entre outras novidades, travamos relações com um daqueles gramofonesusados na época, no início da reprodução da música por meio de discos, e no qual,com aquela voz fanhosa característica, ouvíamos encantados as canções em voga,anunciadas no início do disco, "fabricados pela casa Edison do Rio de Janeiro..."

Aí também, creio que adquirida em leilão que meu pai costumava freqüen-tar para a compra de móveis e utensílios domésticos, fomos empolgados pelas re-velações de uma máquina de cinema rudimentar, na qual repetíamos inúmerasvezes o mesmo pequeno filme, com o mesmo encantamento.

Mais tarde, foi esse porão alugado a outras pessoas, entre elas às irmãsLaura e Leonor Monteiro, funcionárias da secretaria da antiga Escola Normal doRio de Janeiro.

Ainda ligada a esse período do porão, lembro-me bem, pela impressão pro-funda que nos causou, uma empregada doméstica esquizofrênica (concluo hoje,pelo comportamento que apresentava). Suas manifestações de agressividade du-rante o dia e os gritos durante a noite enchiam-nos de pavor. Com muita dificulda-de conseguimos nos livrar da infeliz criatura, internando-a num sanatório.

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No casarão da Rua Joaquim Méier, sofremos também todas as doenças co-muns da infância: o sarampo, a catapora, a caxumba, a coqueluche... A medicaçãoera na base de homeopatia, que meu pai adotara ao se converter ao espiritismo.Mas, para a coqueluche, conforme era aconselhado, fazíamos passeios pela madru-gada às proximidades do gasômetro, pois a inalação do gás de iluminação, não seicom que fundamento, era recomendada para o alívio dos acessos violentos de tos-se. Íamos também ao Alto da Boa Vista, respirar pela manhã o ar puro e suave, numdos melhores passeios que o Rio de Janeiro nos proporcionava, àquele tempo feitonos bondes elétricos. Infelizmente, administradores "progressistas" ou "agitados",mais tarde privaram a cidade desse encanto turístico.

Poucas relações mantínhamos por essa época. As mais íntimas eram, semdúvida, com a família Tavares, a que já nos referimos.

Mais tarde fizemos boas relações com a família Bellucci, italiana, moradorana Estação do Riachuelo e cujo filho – André – era nosso colega de estudos. Apre-ciador de música, especialmente do "bel-canto" italiano, com ele nos iniciamos noteatro de ópera e de opereta, o que não fora feito por meu pai, apesar de conhecere apreciar esse tipo de música, cujas canções mais célebres costumava trautear nalíngua natal. E uma das irmãs do André Bellucci, a Marianina, loura e cheia decorpo, me atraía particularmente, chegando mesmo a se cogitar que dessa apreci-ação poderia sair casamento... Não saiu. Mas mantivemos sempre boas relações deamizade com a família.

Pouco depois, o cinema entrava triunfante e irresistível em nossas vidas deadolescentes. Primeiro foram os filmes italianos e alguns alemães, com suas estre-las que produziam aquele tremendo impacto em nossos sentidos e corações: asitalianas Francesca Bertini e Pina Menicheli, a alemã Theda Bara... Acompanháva-mos emocionados o desempenho dessas beldades, sonhando nas salas escurecidas enos agitando nas noites indormidas. Os filmes em série eram seguidos com assidui-dade exemplar, e nossa vida, fora dos estudos, era completada com os comentários,as apreciações, as preferências pelos filmes disputados e discutidos com ânimofervoroso. Depois, começou a era do filme norte-americano, com suas grandes ve-detes e galãs inolvidáveis: Mary Pickford, Mae Murray, Vilma Banki, Norma Talmadge,John Gilbert, Rodolfo Valentino, a misteriosa Greta Garbo, o genial Chaplin. Maistarde, Norma Sharer, Joan Crawford e tantos outros. Os westerns, em seguida,encheram toda uma época, impondo-nos hábitos e maneirismo. Mas era o sex-appel, o erotismo, já então explorado em todas as formas na apresentação dessasdivas que produziam em nós, adolescentes, impressões devastadoras...

O cinema, sem dúvida, modelou toda uma época, a que ninguém escapou,invadindo com sua influência os mais longínquos lugarejos do País, levando seusmodismos, o estilo de vida, especialmente norte-americano, e, se provocou incenti-vos para se viver melhor, realizou uma obra tenaz de desnacionalização, de menos-prezo pelas nossas mais caras e apreciáveis tradições.

Impacto maior, creio eu, só a televisão está produzindo agora.Mas, a grande festa nacional, que nos empolgava a todos, crianças, jovens e

adultos, era, sem dúvida, o Carnaval. E seu ambiente era a rua, seu protagonista, o

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povo – o povo mesmo –, numa comunhão e confraternização, numa mistura declasses impossível de acontecer em quaisquer outras ocasiões.

Desde o início do ano começavam "as batalhas de confetes", precursoras eestimuladoras do chamado "tríduo de Momo". Algumas se tornaram célebres, comoas do Boulevard 28 de setembro e a da Rua Dona Zulmira, no Maracanã, para ondeme deslocava sozinho, em companhia dos irmãos, colegas de escola ou vizinhosamigos. Havia uma emulação entre essas batalhas para ver qual atraía maior públi-co e apresentava a melhor decoração e maior animação, "empolgação", como se dizhoje.

Eneida em sua História do carnaval carioca registra: "As batalhas de confetesucedem-se em várias ruas. Em todos os lugares se brinca o carnaval: nos bondes,no mar, nas avenidas e praças."

Naqueles dias quentes do verão carioca e de férias escolares, ao cair datarde, as duas ruas principais do bairro, dos dois lados da Estrada de Ferro, iam-seenchendo de mascarados, de grupos de palhaços, pierrôs e colombinas, diabinhos,pastoras, os "blocos de sujos", a entoar as canções prediletas, empunhando ventarolase serpentinas, reco-recos, e, mais tarde, enchendo o ambiente daquele cheiro ca-racterístico e agradável do éter perfumado dos lança-perfumes. Aos poucos, essasruas tornavam-se praticamente intransitáveis, com os populares de todos os níveissociais em completa confraternização, em idas e vindas incessantes, ou sentadosem cadeiras, nas calçadas, em frente às residências ou às casas comerciais, trocando"trotes", ditos jocosos, disfarces na voz, demonstrações de habilidades dos masca-rados, com as vestimentas mais extravagantes e repetindo o refrão: "sabe comquem está falando?"... Na descrição dessa loucura coletiva estou falando um poucode mim próprio, pois todas essas extravagâncias produziam profunda impressão noadolescente introvertido que eu era, e os disfarces dos mascarados, que não conse-guíamos reconhecer e que revelavam, às vezes, conhecimento de certos aspectosparticulares de nossas vidas, que desejávamos que não fossem conhecidas, causa-vam-me forte impacto emocional.

Depois vieram os "corsos" de automóveis, em filas contínuas, entrelaçadosde serpentinas, que eram atiradas dos carros, de uns para os outros, entretecendo-se em emaranhados coloridos, onde as meninas do bairro apareciam sentadas nascapotas em atitudes mais livres e provocantes, rostos pintados, pernas à mostra,tudo isso servindo de pretexto para aproximações que a vida comum não encoraja-va: namoros, apertões, princípios de romances, que às vezes se prolongavam empaixões juvenis avassaladoras. Era assim uma completa euforia, uma imensa catarsecoletiva que endoidecia toda aquela multidão, que esquecia, durante os três diasfrenéticos, todas as dificuldades e frustrações de um ano inteiro. Pessoas das maispacatas e responsáveis, de hábitos morigerados, eram surpreendidas nas atitudesmais insólitas, num ambiente de tolerâncias recíprocas.

A esse tempo ainda não tinham projeção as escolas de samba, nem os gran-des bailes dos clubes: o carnaval era realmente a grande festa popular, cujos atosprincipais, jocosos ou dramáticos, se desenrolavam exclusivamente nas ruas e naspraças. Os bondes elétricos apinhados, com gente dependurada por todos os ladose até grimpados no alto do teto dos veículos, faziam o desespero dos condutores,

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quase todos portugueses, que insistiam em cumprir suas obrigações na cobrançadas passagens. Mais tarde chegou, o tempo das batalhas de confetes no interiordesses veículos, o transporte popular e tradicional da cidade, tão desastradamentesuprimido da vida do carioca. "Em 1926 – diz Eneida no seu livro citado – aparecemos banhos de mar a fantasia, e, em 1929, tornam-se célebres as batalhas em bon-des: São Januário, São Cristóvão. Durante muitos anos, os passageiros do bonde deFábrica, que saía do ponto às 7 horas e 15 minutos, realizavam durante o Carnaval,renhidas batalhas de serpentinas e confetes."

No terceiro dia, era a descida para o centro da cidade para assistir ao desfiledos carros alegóricos e de crítica das grandes sociedades carnavalescas: Os Tenen-tes do Diabo, Os Fenianos e os Democráticos, que tinham partidários tão fervorosose intransigentes quanto hoje os grandes clubes de futebol, Disputavam o esplendordas concepções, das luzes, de mecânica e da crítica. Os cumprimentos, meneioseróticos e os beijos jogados para a multidão, que se comprimia nas principais ruase avenidas do centro da cidade, pelas mulheres semidespidas, que se encarapitavamno alto daquelas geringonças, puxadas a burros, constituíam um dos maiores atra-tivos desse final da grande festa. As meias palavras surpreendidas nas conversasentre adultos, deixavam os adolescentes curiosos e incendiados pelas referênciasàquelas beldades de seios e coxas à mostra e que, sussurravam, seriam recrutadasnos melhores prostíbulos da cidade...

Nos dias que se seguiam, era um desfilar interminável de comentários, dis-cussões, disputas entre partidários dos vários clubes e sociedades, relatos dos casose aventuras vividas naqueles três dias de loucuras individuais e coletivas.

Esses casos, verdadeiros ou exagerados, causavam tremendo impacto na sen-sibilidade e na curiosidade, especialmente dos adolescentes, em questão fundamentalem que faziam sua iniciação, constituindo o que se denominava a "licenciosidade" docarnaval:

[...] gente nua, principalmente mulheres, beijos, abraços, bêbados, carnavalescos caídos em tan-ta farra, isto está em desenhos, caricaturas, retratos de várias épocas [...] Seria enfadonho fazerum levantamento das licenciosidades do carnaval carioca através de sua vida. Jamais foi possí-vel separar Momo dos bacanais. Excessos sempre existiram. Sempre houve muitos nus e muitosdesregramentos. Momo é um deus essencialmente desvairado, sexual, amante do álcool e dacarne. Como condená-lo?

As palavras são ainda da saudosa Eneida.Tudo isso agitava profundamente o menino emotivo, encabulado que eu

era, em cujo interior o sexo já explodia em manifestações irreprimíveis. Poucasaventuras reais, é certo, teria para contar dessa época, em que mais apreciava eabsorvia com avidez toda essa expansão desenfreada de corpos, de sexo, do quepropriamente participava, e isso, por causa da timidez, o que não deixava de ser ummal. O ambiente de casa era aparentemente austero nesse particular, aparente-mente digo eu, pois num casal de origem européia meridional, como era o de meuspais, o sexo não poderia deixar de ser impositivo e a prova era o estado de gravidezquase que permanente de minha mãe, apesar de as últimas já não serem nada bem-vindas... Em minha educação sexual, essa aparente austeridade dos familiares nãofoi nada favorável: desvios poderiam ter sido evitados se tivesse recebido a essa

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altura da vida uma palavra esclarecedora. A educação sexual é necessária: quandoe por quem deve ser feita é que é o problema, mas que não é insolúvel.

Assim, a imaginação e a fantasia agiam intensamente, na excitação dossentidos, que despertavam imperiosos, à vista de tanta liberdade, de tantas pro-messas, de tantas provocações. Nesse sentido, ficou-me gravada desse período deloucuras coletivas a descrição pormenorizada feita a nós por um colega de meuirmão mais velho, de cenas do defloramento de duas irmãs, já não muito jovens,inteiramente perturbadas por aquela magia demoníaca da grande festa do rei daexpansão da carne. Depois, haveria as contrições, as restrições e os arrependimen-tos na Quarta-Feira de Cinzas, na Quaresma, no resto do ano todo...

Mas, o carnaval tinha outro aspecto que se perdeu completamente: era aoportunidade para a crítica política, livre, do povo, que se expandia em desabafoscontra o governo, as autoridades, as medidas impopulares, expressas nas canções enos discursos feitos do alto dos carros das sociedades carnavalescas.

Quem não se lembra do Pelo telefone, de Donga, aparecido em 1917? E doAbre alas, de Chiquinha Gonzaga, da Urucubaca na careca do Dudu (o MarechalHermes, presidente da República), do Ai! seu mé (do presidente Bernardes), e detantas outras explosões populares sobre ocorrências políticas, sociais ou adminis-trativas, da Cidade ou do País? Ainda não tínhamos chegado à época das repres-sões, da negação total da liberdade, da imposição do "respeito" à autoridade, quasesempre não merecedora dele; ainda se dava ao povo o direito sagrado de discordar,de criticar os que por ele eram escolhidos para governá-lo, pois o poder teorica-mente, emanava dele – o povo – e em seu nome deveria ser exercido.

Sobre a repressão, o grande problema do nosso tempo, bom insistir, já em1909, a Gazeta de Notícias chamava Alfredo Pinto, chefe de Polícia, de "empreitei-ro de lágrimas". Isso aparecia em manchete, enquanto o texto da notícia dizia: "oque se vê com as proibições é um sintoma grave – é mais restrição à liberdadepública." E ainda (de Eneida no livro citado):

Na monarquia havia muito mais liberdade para o Carnaval: polícia e governo não proibiamcríticas nem máscaras que ridicularizavam deputados e senadores e até a própria pessoa doChefe do Estado. Depois da República, se foi restringindo esse direito de fazer graça à custa doshomens públicos, a política foi se requintando de severidade, cada ano criando nova restrição,cada ano aumentando as exigências.

E que dizer dos dias de hoje, quando o direito de crítica foi quase que total-mente anulado pelos nossos pretensiosos e quase sempre incompetentes governantes,que se julgam intocáveis?

• • •

Os grandes acontecimentos dessa época já impressionavam vivamente omenino adolescente. A Campanha Civilista, por exemplo, tendo à frente a figurapopular de Rui Barbosa, o "Coco da Bahia", que conheci mais tarde pessoalmente,em sua campanha eleitoral, discursando do alto de um palanque armado no Largode São Francisco e também no Senado – ali, na Praça da República, onde se acha

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atualmente a Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro ecujas sessões assisti, muitas vezes, no tempo de estudante. A eclosão da PrimeiraGuerra Mundial e mesmo a Revolução Russa, que tão profundas transformaçõesdeveriam trazer para o mundo, não causaram, entretanto, impacto proporcional àsua importância, talvez porque eu já ia penetrando nos tempos de minha "revolu-ção interna", que não deixava muita margem para as grandes preocupações decaráter exterior, apesar da magnitude delas. Não quero dizer com isso que nãotivessem chegado até nós as repercussões e os horrores da primeira carnificinamundial, que marcou, sem dúvida o fim de uma época de euforia e despreocupaçãoe fez o mundo penetrar na era das guerras e revoluções, das grandes transforma-ções econômicas, políticas e sociais, que continuam até hoje, e cujo desfecho finalainda sequer se vislumbra.

Tínhamos, por essa época, acesso a revistas estrangeiras e também à Eu SeiTudo nacional, e assim ficaram bem gravadas em minha memória aquelas visõesapocalípticas da guerra de trincheiras, com todos os seus horrores, que li maistarde, retratada em quadros inesquecíveis, no Nada de novo na frente ocidental, aobra clássica de Erich Maria Remarque.

Eis uma dessas evocações, quando a literatura ultrapassa a realidade:

De repente Kammerich gemeu e começou a estertorar.Dei um salto para o corredor, zonzo, e dei em perguntar alto:– Onde está o médico? Onde está o médico?Assim que se me deparou um homem com um avental branco, tratei de agarrá-lo:– Venha depressa, Franz Kammerich está morrendo.Ele desvencilhou-me e perguntou a um enfermeiro que se aproximava:– De que se trata?O outro respondeu:– Leito 26. Terço superior da coxa amputado.O médico esbraveja:– Como posso saber quem seja se hoje já amputei cinco pernas? Afasta-me do caminho e

diz ao enfermeiro: - Vá ver! e corre para a sala de cirurgia.Sinto frêmitos de raiva, enquanto acompanho o enfermeiro. Este me olha de viés e explica:– Uma operação depois de outra, desde as cinco horas da manhã... Horrível!... Quer saber?

Hoje já morreram dezesseis. Seu amigo é o décimo sétimo. Na certa a conta será arredondadapara vinte...

Sinto-me desfalecer; já agora não posso mais. Enraivecer-me para quê? Que adianta? Ah!Se eu pudesse me atirar no chão e não levantar mais!

Eis-nos diante do leito de Kammerich. Ele está morto e tem o rosto ainda molhado delágrimas e as pálpebras um pouco abertas; seus olhos têm a cor amarelenta de crosta de calos.

Não só Remarque, mas também Hemingway, e tantos outros, deixaram qua-dros trágicos dessa primeira hecatombe, que seria apenas um prelúdio de maisvastas carnificinas.

Falava-se, entretanto, aqui do nosso lado, dos "aliados", sobre as "atrocida-des alemãs": freiras estupradas, mulheres de seios decepados, crianças de braçoscortados e, até mesmo, do canibalismo dos "boches" (os alemães).

Entre nós, observa Pedro Calmon, em sua História social do Brasil,

[...] simpatias pelos aliados entroncavam-se em múltiplos interesses morais e econômicos. Ainvasão da Bélgica, a eminente derrota dos franceses, que evitou Joffre, em La Mame, a aliança

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anglo-italiana, a propaganda aliadófila; recebida com entusiasmo pelos meios intelectuais, comotudo o que nos vem da França, prepararam o terreno para a definição americana. A populaçãoera cada vez mais aliadófila. A destruição de navios brasileiros em águas européias valia comoum reiterado ato de hostilidade. Em 25 de outubro (1917), dirigiu-se o presidente ao CongressoNacional comunicando o torpedeamento do vapor "Macau", e pedindo o reconhecimento do"estado de guerra" que foi assinado no dia seguinte. A guerra européia, que desfigurou o mapapolítico do Universo, não chegou a estas plagas em forma de uma calamidade. Repercutiu comouma convocação dramática de energias produtivas. Revestiu-se do caráter de uma corrida àsfontes de matérias-primas.

Paradoxalmente, todo esse horror que se desencadeava sobre o mundo, foium fator decisivo para o início do nosso desenvolvimento econômico, pois, privadosda produção européia e norte-americana, que nos fornecia quase tudo, tivemos queimprovisar a nossa indústria de bens de consumo e vender por bons preços nossasmatérias-primas abundantes. Começou a era da "substituição das importações"...

Sem poder avaliar, muito bem, é claro, todos esses aspectos do grave confli-to entre as grandes potências mundiais pela redivisão do planeta pela conquista dezonas de influência e de mercados – a grande época do imperialismo – lembro-me,porém, perfeitamente, de toda essa movimentação e em seguida de suas repercus-sões, especialmente da propaganda do governo de Wenceslau Braz, com seus car-tazes de "Parcimônia nos gastos", que eram espalhados por todo o País.

Não poderíamos vislumbrar, porém, que essa guerra de rastejos, de aramefarpado, de canhoneios ritmados, de bombardeios incipientes, onde a rainha dasarmas era a metralhadora, seria apenas o prelúdio dos campos de concentração, doarrasamento das cidades pelos bombardeios concentrados, para desembocar, porfim, no horror indescritível da tremenda "eficiência" destruidora norte-americana,em Hiroxima e Nagasaki e do napalm, da terra metodicamente arrasada e tornadaestéril, no Vietnã, dos dias atuais, da humanidade, enfim, dispondo de todos osmeios necessários para a sua completa destruição...

• • •

Da Revolução Russa, por muitos considerado o maior acontecimento da pri-meira metade do século, os ecos também chegavam até nós, dos "horrores" come-tidos pelos "bolchevistas" contra seus adversários e populações inteiras, sem falarno assassínio de toda a família imperial russa. Lembro-me bem das caricaturas deLenin, em revistas e jornais, e de uma delas, especialmente, em que o líder comunis-ta aparecia com sua cabeça redonda e calva ligada a um corpo de serpente... Sócomeçamos a compreender alguma coisa da significação daqueles "horrores", bemmais tarde, quando nos caiu nas mãos Os dez dias que abalaram o mundo, livro dojornalista norte-americano John Reed, que estava na Rússia e a tudo assistiu, pro-duzindo uma das maiores peças jornalístico-literárias de todos os tempos. Sua alma

mater, a Universidade de Harvard, "excomungou-o" e o livro foi proibido durantemuito tempo na grande democracia... Seu corpo porém jaz sepultado em lugar dehonra, nos muros do Kremlin.

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Eis um momento dramático de seu relato:

Exatamente às oito horas e quarenta minutos, uma tempestade de aplausos anunciou achegada de presidência, com Lenin à frente.

Uma silhueta baixa, cabeça redonda e calva mergulhada entre os ombros. Olhos pequenos,nariz rombudo, boca larga e generosa. A mandíbula pesada. Estava completamente barbeado.Mas a sua barba, dantes tão conhecida e que daquele momento em diante ia ser eterna, jácomeçava a despontar novamente. O casaco estava puído; as calças eram compridas demais.Sua aparência física não indicava que ele poderia ser um ídolo das multidões. Mas foi querido evenerado como poucos chefes, em toda a História. Um estranho chefe popular só pelo poder doespírito. Sem brilho, sem ditos chistosos, intransigente e sempre em destaque, sem a menorparticularidade interessante, mas possuindo, em alto grau, a capacidade de explicar idéias pro-fundas em termos simples e de analisar concretamente as situações. Senhor de prodigiosa au-dácia intelectual. Tal era Lenin.

E adiante:

Afinal, Lenin levantou-se. Apoiando-se no parapeito da tribuna, percorreu a assistênciacom seus olhinhos piscos, aparentemente insensíveis à imensa ovação da Assembléia que oaclamou durante vários minutos. Quando as palmas abrandaram, disse simplesmente:

– "Passemos agora à edificação da ordem socialista!" E iniciou a leitura da Proclamação aos

Povos e aos Governos de Todos os Países Beligerantes, um dos mais importantes documentosda história contemporânea, qualquer que seja a opinião que se tenha sobre acontecimentos queentão se desenrolaram naquele imenso país dos czares e dos mujiques, e sobre o desenvolvi-mento posterior dos fatos.

– "A revolução de 6-7 de novembro" [de 1917] – disse terminando – "inaugurou na Históriaa era da Revolução Social. O movimento operário, em nome da paz e do socialismo, vencerá erealizará sua missão."

Não importa que a história seguisse rumos que nem sempre corresponderamaos anelos e às expectativas de quantos viram naqueles dramáticos eventos novasesperanças para a humanidade.

George Santayana, grande figura de intelectual norte-americano, em cartaa Bertrand Russel, de dezembro de 1917, escrevia: "Quanto à Rússia, confesso queadmiro Lenin (nunca o cabotino Kerensky), pois ele tem um ideal por que estádisposto a lutar e esse ideal é profundamente antigermânico" (sic).

Já o próprio Bertrand Russel, em sua Autobiografia, assim se expressa sobreo "gênio da Revolução":

Lenin, com quem conversei durante horas, me decepcionou um pouco. Não creio que hou-vesse imaginado antes disso que ele era um grande homem, mas no decorrer de nossa conversa,me dei conta sobretudo de suas limitações intelectuais, de sua ortodoxia marxista, um tantoestreita, e de um traço inconfundível de maliciosa crueldade. Falei dessa entrevista, assim comode minhas aventuras na Rússia, em meu livro Practice and theory of bolshevism.

Mas, de sua amiga Dora, que ficara na Rússia, diz ele:

Ao cabo de certo tempo, comecei a receber cartas de Dora, trazidas da Rússia por amigos, e,para grande surpresa minha, ela gostara da Rússia, tanto quanto eu a tinha odiado...

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Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1 75

E depois:

Encontramo-nos em Frenchurch Street num domingo, e no primeiro instante fomos quasecomo dois desconhecidos que se hostilizam. Para ela, minhas objeções aos bolcheviques eramburguesas, senis, sentimentais. A simpatia dela por eles me deixava confuso e horrorizado. Elaconhecera na Rússia homens cuja atitude lhe parecia superior à minha, em todos os sentidos.

Se aqueles terríveis acontecimentos e seu desenrolar posterior deixaram umBertrand Russel "confuso e horrorizado", que dizer de um menino de 12-13 anosque eu era, colocado àquela imensa distância geográfica e, especialmente, culturaldo teatro de todas aquelas tragédias?

• • •

Sessenta anos são passados desses acontecimentos trágicos e dramáticos,quando passo a limpo esses escritos, e nesse largo tempo para uma vida e mínimopara a História houve "grandes esperanças" e tantas outras "ilusões perdidas".

E leio na Homilia de apelo aos homens, lançada em Roma no dia 3 de se-tembro de 1978 por João Paulo I, quando acaba de assumir a cadeira de São Pedro,estas palavras:

Devemos dirigir ainda uma saudação aos chefes de Estado e aos membros das delegaçõesespeciais. Estamos profundamente comovidos por vossa presença, quer de vós que estais à fren-te dos altos destinos de vosso país, quer de vós que representais vossos governos ou organiza-ções internacionais. A todos agradecemos vivamente. Vemos em tal participação, a estima e aconfiança que depositais na Santa Sé e na Igreja, humilde mensageira do Evangelho a todos ospovos da Terra, para ajudar a criar um clima de justiça, de fraternidade, de solidariedade e deesperança, sem o que o mundo não poderá viver.

• • •

A chamada "gripe espanhola" de 1918, que se seguiu ao término do primei-ro grande conflito mundial do século, como acontecimento mais próximo, apesarde não ter nos atingido muito severamente, nem produzido qualquer caso de maiorgravidade na família, causaria, ao rapaz, uma impressão muito profunda: era adesolação nas ruas, as casas comerciais com as portas cerradas, a falta de alimen-tos, mesmo que houvesse recursos para adquiri-los, os casos que atingiram paren-tes, amigos e conhecidos e, sobretudo, as descrições reais ou fantasiosas, como a decadáveres amontoados em carroções e despejados em valas comuns nos cemitérios,onde os coveiros, quando existiam, já não podiam cumprir seus místeres com ummínimo de decência.

Segundo Miguel Couto, 80% da população do Rio de Janeiro foi atingidapela epidemia, tendo morrido umas 15 mil pessoas.

• • •

Enfim, o casarão da Rua Joaquim Méier ia sofrendo grandes transforma-ções. O terreno em que se situava fora dividido ao meio por uma cerca alta, feita defolhas de zinco. Na metade que dava para a Rua Paraguai (atual Cônego Tobias)

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meu pai fizera construir um novo prédio, para onde transferiu o consultório dentárioe a oficina de prótese e nos quais meu irmão mais velho – o Virgílio – já ensaiavasua carreira, seguindo as pegadas do velho Lemme.

Ao lado, um estábulo, pois tais estabelecimentos continuavam a resistir aospropósitos de saneamento do centro urbano, mandava-nos seu odor característicoe os ruídos próprios de suas atividades, desde a madrugada...

Eu continuava a resistir ao cerco realista de meu pai, que muito natural-mente queria conduzir todos os filhos homens para os caminhos da profissão emque tivera tanto sucesso. Eu tentava escapar à doutrinação e à obrigatoriedade deservir como auxiliar no gabinete dentário. Detestava o ambiente desse gabinete,aquelas conversas, sempre as mesmas, aquelas bocas abertas, os choros das crian-ças e os gritos dos adultos na hora das extrações mais dolorosas, feitas com boticõesquase grosseiros e anestesia muito precária. E ficava encabulado com as reprimendasque recebia de meu pai, diante dos clientes, pelo pouco zelo que punha no cumpri-mento de minhas obrigações.

• • •

Se há predestinação, meu caminho já estava traçado, e, dentro em pouco,minha resistência às artes do boticão se coroaria de êxito.

E esse acontecimento decisivo para minha vida futura verificou-se aindanesse ano de 1918, de tantas apreensões, incompreensões e tragédias. Em 12 denovembro desse ano, completava 14 anos de idade. A adolescência amadurecia,com todo o lastro de dúvidas, temores, ansiedades, que não podiam se expressarlivremente, pois a repressão familiar e social se exercia soberana...

O rapaz tornava-se cada vez mais introspectivo, em plena revolução inter-na, mas obrigado a dissimular toda a riqueza e profundidade de seus sentimentosde ternura e amor.

Ernest Becker em seu livro A negação da morte esclarece:

Há o tipo de homem que tem grande desprezo pelo imediatismo, tenta cultivar sua vidainterior, baseia seu orgulho em algo mais profundo e íntimo, cria uma distância entre si e ohomem comum. Kierkegaard chama a esse tipo o introvertido. Ele está um pouco mais preocu-pado com o que significa ser uma pessoa, com individualidade e originalidade. Gosta da solidãoe recolhe-se periodicamente para refletir, talvez para acalentar idéias sobre seu eu secreto, doque poderia ser. Este, depois de tudo dito e feito, é o único problema real da vida, a únicapreocupação valiosa do homem: qual é o verdadeiro talento de cada um, seu dom secreto, suaautêntica vocação?

Qual seria realmente a minha?

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Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1 77

O MÉIER DE MINHASREMINISCÊNCIAS

CAPÍ

TULO

IV

A casa, a escola e o Méier, onde aquelas se si-tuavam, constituíram o universo de minha infância,adolescência e juventude.

O bairro do Méier formou-se e expandiu-se apartir da antiga "Parada" dos trens da Estrada de FerroCentral do Brasil, esta inaugurada, em seu primeiro tre-cho, em 1858.

Ali nasci e vivi até o fim da juventude, somenteo deixando aos 22 anos (1926) para iniciar nova vida,já com profissão definida e, no ano seguinte, com ocasamento.

As casas onde morei no Méier foram apenas trêse a escola onde verdadeiramente fiz minha formaçãobásica, uma somente. O Méier foi, porém, constante emminha vida durante todo esse período, pois os curtosafastamentos dele – um para a Ilha de Paquetá, fériasem casa dos avós maternos na cidade de Barra Mansa,no Estado do Rio de Janeiro, e, mais tarde, a estada demais ou menos um ano nessa mesma cidade – não signi-ficaram interrupção importante na continuidade de re-sidência nesse subúrbio da cidade do Rio de Janeiro.

Bem pequeno era esse Méier de minhas mais lon-gínquas e gratas recordações, que revejo com ternura. Epouco variou a área mais central, aquela diretamenteligada à minha vida, naqueles anos de minha formação.Apenas, nos dias de hoje, toda essa parte central eadjacências deixou de ser residencial para se tornar zona

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intensamente comercial, de trânsito confuso em certos momentos, verdadeiro "mer-cado oriental".

Como área mais característica, destacavam-se os trechos das duas ruas prin-cipais, que ainda conservam os mesmos nomes, dados em homenagem a médicosque se fizeram notáveis por sua atuação no bairro e arredores.

Do lado esquerdo da Estrada de Ferro de quem vem do centro da cidade,estendia-se a Rua Dias da Cruz – nome de ilustre médico homeopata, largamenteconhecido em toda a cidade e que foi amigo de meu avô e de meu pai. Do outrolado, a Rua Arquias Cordeiro, também adotou nome de médico. Tudo convergia,porém, para a Estação do Méier, onde naturalmente se verificava o maior movi-mento de saída e chegada dos habitantes da região, pois os trens de ferro constitu-íram, por muito tempo, o único meio de transporte para fora do bairro. Nas horaspróximas à chegada ou à saída dos comboios, a plataforma enchia-se de passagei-ros, que, nos bons tempos, de população reduzida, acomodavam-se sem precipita-ção nos bancos confortáveis de palhinha, forrados de capas de linho, com as iniciaisbordadas em vermelho: E.F.C.B. E até a chegada à Estação Central tinha-se temposuficiente para conversar e os namorados de trocar juras de amor.

Uma passagem de nível sobre o leito da Estrada de Ferro ligava as duas ruasprincipais, quase em frente à Rua Joaquim Méier, no ponto em que, mais tarde,seria construído em viaduto, com escadarias de ferro, que é o mesmo ainda hoje aliexistente: muito pouco estético, deu outro aspecto a esse trecho do bairro, aten-dendo a uma antiga reivindicação dos moradores. É que essa antiga passagem denível por sobre os trilhos, fechada no momento em que os trens se anunciavam pormeio de apitos prolongados e de toques repetidos de sineta, acionadas por velhosfuncionários da Estrada, alguns mutilados em acidentes de tráfego, era verdadeira-mente fatídica. Quase que semanalmente registravam-se ali mortes violentas depassantes desatentos, atingidos pelas locomotivas – as "marias-fumaças" e, depois,as máquinas alemãs, mais modernas, a óleo. Elas apareciam repentinamente nacurva que existia do Engenho Novo para o Méier, quando vinham da cidade, oupassavam, em grande velocidade, quando se tratava de trens "expressos", proveni-entes do interior. Em meio a essas notícias freqüentes de atropelamentos, quasesempre fatais, de pessoas mutiladas pelos "limpa-trilhos" das máquinas, oudespedaçadas pelas rodas dos carros, ficou-me gravada como uma das minhas maisantigas recordações dessa época o espetáculo macabro de um pobre homem, colhi-do por um desses trens expressos, estirado entre os trilhos, sobre os dormentes, comos miolos à mostra, pois a caixa craniana tinha sido 1iteralmente aberta, "destam-pada", pela violência do choque. E ali ficou durante muitas horas, cercado pelacuriosidade popular, com as clássicas quatro velas acesas, colocadas por mãoscaridosas. Durante muito tempo, aquela visão perseguiu o menino sensível, impres-sionando-o fortemente.

A travessia de veículos nesse trecho, porém, só ficou resolvida muito maistarde, com a construção da passagem sob a via férrea, próxima à Estação do Enge-nho Novo, em frente à Rua Gregório das Neves. Posteriormente, foi construído umoutro viaduto sobre a Estrada de Ferro, próximo à estação seguinte ao Méier, a deTodos os Santos. Com o grande aumento da população do bairro, recentemente

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uma nova passagem elevada foi lançada em frente ao Jardim do Méier e, ultima-mente, um grande viaduto para veículos e pedestres passou a ligar os dois lados dobairro, partindo também do Jardim do Méier e devendo, quando estiver concluído,descer diretamente na Rua Dias da Cruz. O primeiro viaduto, entretanto, construídoainda nos meus dias de morador do bairro, constituiu-se num verdadeiro trambo-lho deselegante, que estreitou ainda mais a Rua Dias da Cruz, no seu trecho maiscentral, dificultando enormemente o trânsito, tanto mais que o plano de alarga-mento dessa rua até hoje não se concretizou, em vista, parece, da resistência doscomerciantes locais, que não quiseram sacrificar nada de seus interesses em bene-fício da coisa pública. Somente agora, com a abertura da Avenida Marechal Rondone o estabelecimento de "mão única" nas duas vias, é que o trânsito melhorou umpouco. Assim mesmo, nas horas de maior movimento, extensas filas de veículos seformam, quase desde o Engenho Novo.

O outro extremo do Méier, em direção à Estação do Engenho Novo, é fechado,por assim dizer, pelo Morro do Vintém, denominação que recebeu, segundo parece,em virtude de uma "corrida em busca de ouro", que se teria verificado no século 18,registrada por Francisco Inácio Ferreira em seu Dicionário geográfico de minas doBrasil (edição do século 18), e que teria apressado a colonização do local. Nesseponto, a companhia de bondes – a Light and Power, que já então existia com seus"bondes" elétricos, um dos enormes melhoramentos introduzidos na cidade na pri-meira década do século, antes apenas servida pelos bondinhos a tração animal e pelostílburis coloniais, cujos últimos exemplares ainda conheci – fizera construir um via-duto sobre a Estrada de Ferro, em curva, pelo qual os carros elétricos atingiam, dooutro lado, a confluência das três principais vias, que ainda conservam os nomestradicionais: as Ruas 24 de Maio, Dias da Cruz e Lins de Vasconcelos. Esta última,começa aí e penetra, em ângulo agudo e em declive acentuado, até atingir a Boca doMato, ligando-se assim, já próximo ao Engenho de Dentro, novamente com a partefinal da Rua Dias da Cruz. Posteriormente, o trecho desse ponto até a Estação doMéier recebeu o nome de 24 de Maio, prolongando-se assim essa grande artéria, quecomeça na Estação de São Francisco Xavier, onde se liga com a rua do mesmo nometradicional, que segue até o bairro da Tijuca. Do outro lado, o viaduto da Light desciana Rua Arquias Cordeiro, perto das oficinas que essa companhia mantinha entãopara reparos e manutenção de seus veículos. A travessia desse estafermo, de ferro emadeira, pintado a piche, e que trepidava fortemente durante a passagem dos "bon-des", constituía uma aventura para as crianças – quase como um trampolim dosparques de diversões – infundindo-lhes medo, fazendo-as agarrar os balaústres dosveículos a espiarem medrosamente para baixo, especialmente quando coincidia coma passagem de algum trem. E também não deixava de causar certo receio aos adultos,em virtude dos boatos que se espalhavam periodicamente sobre suas precárias condi-ções de segurança. Entretanto, não guardo lembrança de ter se registrado ali qual-quer acidente, nem nas subidas vagarosas nem nas descidas velozes dos "elétricos". Ademolição, mais tarde, desse viaduto, quando se fez a ligação direta das duas vias quemargeavam a Estrada de Ferro, mudou completamente a fisionomia característicadesse extremo do bairro, pois era, por assim dizer, o marco divisório com o seguinte –o do Engenho Novo.

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Recordo-me muito bem da abertura, no morro, da ligação da Rua 24 de Maiocom a nua Dias da Cruz, permitindo a passagem de uma das linhas mais extensas debondes da Light – a da Piedade – que, partindo do Largo de São Francisco, no centroda Cidade, atingia esse subúrbio da Central. Essa linha foi por mim utilizada diaria-mente, durante vários anos, quando fazia o curso da antiga Escola Normal, situadano Largo do Estácio e que foi transformada posteriormente em escola primária, quandoa escola de formação de professores do antigo Distrito Federal transferiu-se para omajestoso prédio construído especialmente para abrigá-la, na administração PradoJúnior-Fernando de Azevedo (1927-1930). Recentemente, aquele prédio teve que serdemolido para permitir a construção da estação local do metrô: a do Estácio de Sá.

Nos outros dois extremos do bairro, do lado da Rua Arquias Cordeiro, margeandoa Estrada de Ferro, chegava-se à estação seguinte, a de Todos os Santos – de menorimportância – e, em seguida, atingia-se a do Engenho de Dentro, um dos mais antigosnúcleos de população dos subúrbios da Central e que ganhou maior importância com aconstrução das grandes oficinas da Estrada de Ferro Central do Brasil.

Paschoal Lemme, ainda aluno deescola primária , sua turma e suaprofessora da Escola Visconde deCairu, Rio de Janeiro (1913).

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Do lado da Rua Dias da Cruz ainda não tinha sido aberta a passagem para oEngenho de Dentro, o que se deu mais tarde, com a extensão das linhas de bondesaté aquela estação e depois até a de Piedade. Foi um grande melhoramento, cujainauguração festiva conservo bem clara em minhas lembranças. Ficava assim con-cluída a ligação direta entre o centro da cidade e esse último subúrbio.

Por esse extremo da Rua Dias da Cruz, atingia-se também a Boca do Mato – aprincípio com os bondinhos puxados a burros – a estação climática, muito conceitu-ada em toda a região, que ainda conheci bastante agreste e que se estendia até asencostas da Serra dos Pretos Forros, coberta de cerrada vegetação, com muitas que-das d'água encachoeiradas, de aspecto tipicamente rural. Ali, os primeiros escravoslibertos dos antigos engenhos dos jesuítas se abrigavam, construindo seus barracos,precursores das atuais favelas. Posteriormente, far-se-ia a ligação com a tradicionalRua Lins de Vasconcelos por uma via que recebeu o nome do outro médico notável –o doutor Pedro de Carvalho.

Os médicos, a esse tempo, tinham uma preferência natural na gratidão dapopulação, com a consagração de seus nomes em ruas e praças dos bairros, sobre-pujando mesmo em muitos casos as tradicionais denominações de caráter religiosoou a de políticos, muito usadas anteriormente. Esses médicos, alguns dos quais setornaram também políticos, além de atender às aflições do corpo, eram em geralpessoas humanitárias, que amparavam os clientes mais pobres dando consultasgratuitas nas farmácias locais e fornecendo remédios. A concorrência era pequenae a vida mais calma permitia essas magnanimidades, que tinham também, é claro,muitas vezes objetivos políticos.

A Rua Lins de Vasconcelos, que corria junto ao sopé da parte elevada dessazona da Cidade, ligava, quase que em arco os dois extremos da Rua Dias da Cruz eestabelecia, por esse lado, os limites do Méier daquela época.

A ligação do Méier com as estações seguintes, em direção ao interior, pelolado esquerdo da via férrea e junto a esta, em continuação à Rua Dias da Cruz, sófoi feita mais tarde, com a abertura da Avenida Amaro Cavalcanti. Formou-se en-tão em frente à Estação do Méier uma pequena praça, bem no centro do bairro, eque deveria ter sido ampliada, desafogando esse local, o que foi entretanto impe-dido pela resistência dos interesses de comerciantes e proprietários, mancomunadoscom políticos locais de pouca visão.

As principais ruas transversais às duas vias mais importantes que ladeavamos trilhos da Estrada de Ferro Central do Brasil receberam, quase todas, os nomesdos descendentes das famílias tradicionais - cuja principal e que, na escassa histó-ria do bairro, se dizia fundadora do mesmo, eram as que se originavam do ascen-dente camarista do Imperador, Duque Estrada Méier.

Segundo consta, a Estrada de Ferro Central do Brasil, inaugurada em 1858,tendo necessidade de fazer passar seus trilhos por aquela zona, obteve a doação dosproprietários – José Soares Batista e sua mulher e dois dos filhos do camarista Méier.A doação continha uma cláusula que obrigava a manter o nome de "Méier" paraaquela região, sob pena de anulação. (Nessa época, Méier escrevia-se ainda com oindispensável Y e, freqüentemente, se levantava a dúvida sobre se a verdadeira pro-núncia do nome alemão deveria ser "máier" ou "méier": esta última prevaleceu).

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Conforme se depreende dos poucos dados históricos de que se dispõe, a áreacentral do que viria a ser o "Méier" do meu tempo, originara-se de uma "Fazenda"– denominada de São Francisco –, sesmaria doada pelo Imperador Pedro I a um seugentil homem, esse mesmo camarista Augusto Duque Estrada Meyer. De ascendên-cia alemã, constava, porém, ter nascido por ocasião de uma viagem da família aPortugal. Seus descendentes foram em grande número e muitas das ruas principaisda localidade perpetuaram seus nomes: o do próprio camarista Meyer, JoaquimMéier, conforme se viu, estritamente ligado à minha vida de menino e adolescente,Carolina Méier, Frederico Méier e outras. Eu próprio cheguei a conhecer descen-dentes dessa família fundadora, tendo tido como colega de escola um deles, rapazalto, louro e vermelhão, características da ascendência alemã.

Em 1889, o proprietário da Padaria Engenho Novo, um certo senhor Coutinho,anunciava a venda de lotes de terrenos para a construção de casas, na Estação doMéier. O anúncio vinha publicado na Gazeta de Notícias, de 18 de abril de 1889,com os seguintes dizeres: "Vendem-se terrenos prontos para edificar na Estação doMéier; trata-se na Praça do Engenho Novo, 16, Padaria."

O primeiro comprador teria sido o senhor Manuel Paiva, operário aposenta-do do Arsenal de Guerra, que adquiriu o lote que, antes da abertura da AvenidaMarechal Rondon, era o n° 84 da Rua Hermengarda. Manuel Paiva, português, foiamigo de meu pai, freqüentava nossa casa e se dedicava ao espiritismo. Mantinhaem sua residência um "centro espírita", no qual assisti a várias "sessões", levado pormeu pai e, segundo me contava minha mãe, foi um dos elementos que induzirammeu pai a abraçar essa crença. Foi também na casa do velho Paiva que, segundo meinformaram mais tarde, meu pai conheceu a criatura – que se dizia médium – e quedeveria levar o velho Lemme aos descaminhos, que o fizeram abandonar a famíliapor algum tempo.

Em 1897, exatamente no ano do casamento de meus pais, o Méier era elevadoa 2° distrito da freguesia do Engenho Novo, ganhando assim maior autonomia.

Essa denominação tradicional de Engenho Novo, que se manteve até hoje,provém das atividades dos jesuítas que, no século18, possuíam grande extensão deterras, que começavam no atual bairro do Estácio de Sá e atingiam as partes altasda Zona Norte do Rio de Janeiro. Possuíam um engenho – o Engenho Velho – naárea da Tijuca. Expandindo depois suas atividades, fizeram construir um outro – oEngenho Novo e, provavelmente – o Engenho de Dentro. Com a expulsão dos jesu-ítas do Brasil, por ato do Marquês de Pombal de 1760, essas terras passaram aoutros donos. Em 1783, criou-se a freguesia de Nossa Senhora da Conceição doEngenho Novo, a que pertencia a futura região que seria doada ao camarista Méiere que seria minha terra natal: o Méier.

• • •

As outras ruas que, por assim dizer, formavam a geografia do bairro do meutempo, receberam os nomes da família Barbosa (Ana, Manoela etc.) e da famíliaBatista, Hermengarda e poucos outros, todos do lado da Rua Dias da Cruz. Do outrolado ficavam as Ruas Figueiredo, Angélica, Lucídio Lago, onde foi construído o

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quartel da Polícia Militar, e Aristides Caire nome de outro médico que se fez notá-vel em todo o subúrbio, militando depois na política e que também foi amigo denossa família. Já em época mais recente, foi construído o Jardim do Méier, noângulo formado pelas Ruas Arquias Cordeiro e Aristides Caire, melhoramento esserecebido com grande júbilo pela população local. Aos fundos, pouco depois, eraedificada uma estação do Corpo de Bombeiros, inaugurada em 1914, e, com frentepara a Rua Arquias Cordeiro, um posto da Assistência Pública, transformado maisrecentemente no que é hoje o Hospital Salgado Filho.

O Méier tinha também seus arrabaldes subsidiários: o de Inhaúma, obrigató-rio no conhecimento de todos os moradores da região, pois para ali eram conduzidos,através de ruas enlameadas, por parentes e amigos, os mortos para repousarem emsua última morada: o cemitério de Inhaúma, único durante muito tempo em todaaquela região. Uma linha de bondes ligava-o pela Rua José Bonifácio, que começavaem frente a Estação de Todos os Santos, ao centro do Méier.

O templo católico tradicional do Méier, a cuja construção assisti, de tijolossem reboco, dedicado ao culto do Coração de Maria, ficava na antiga Rua Cardoso– hoje Coração de Maria. Em frente a essa rua, encontrava-se uma passagem denível sobre o leito da Central – a cancela do Perna de Pau. Segundo relata a crônicalocal, em 31 de outubro de 1909 foi conduzida a primeira pedra colocada para aconstrução desse templo, somente iniciada efetivamente em janeiro do ano se-guinte. A primeira parte da igreja foi inaugurada em agosto de 1912, e toda a partecentral ficou pronta, no mesmo mês, em 1914. Com sua torre vermelha e caracte-rística, avistada dos pontos mais elevados do bairro, identificando o centro doMéier, a Basílica do Coração de Maria teve sua origem numa pequena capelaconstruída no fronteiro Morro das Dores, na Estação de Todos os Santos, para adevoção de Nossa Senhora das Dores.

Na esquina da antiga Rua Cardoso estava localizada uma das escolas primá-rias tradicionais do bairro e que recebeu mais tarde o nome do Padre AntônioVieira, tendo sido construído mais tarde um novo prédio para abrigá-la.

Um outro núcleo subsidiário do Méier era o Cachambi, ligado também poruma linha de bondes, e pelo qual se atingia a Estrada Real de Santa Cruz, hojeavenida Suburbana, e também os subúrbios da Linha Auxiliar e da Estrada de FerroLeopoldina, que tiveram grande desenvolvimento em anos posteriores. Toda essazona, em suas partes mais altas, era considerada também de bom clima e para aliiam as famílias passar fins de semana, e mesmo residir, fugindo à canícula tropicale à insalubridade das partes mais baixas da velha cidade colonial.

E assim se completavam, pelo lado direito da Estrada de Ferro, as áreas queconstituíam o Méier, que foi o ambiente físico e às vezes mágico em que vivi na-queles anos de minha infância e adolescência.

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A descrição minuciosa, certamente maçante para o leitor comum, tem po-rém uma significação bem viva e concreta para mim: é uma evocação de lugaresque conheci palmo a palmo, que percorri em passeios exploratórios, com os irmãos

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ou colegas, alargando-se pouco a pouco, até atingir os limites mais afastados, comalguns trechos cercados de mistérios, que uma vegetação ainda luxuriosa tornavairrevelados. E esse alargamento de horizontes, acompanhava, naturalmente, o cres-cimento físico e de entendimento do menino: assim, havia uma como conjugaçãofísica e espiritual indissolúvel entre a pessoa e o ambiente, naquilo que se denomi-na a vivência de cada momento e de cada um.

Evidentemente, que aqui novamente a palavra falha para uma descriçãoexata na qual essa vivência se revela em todo seu colorido emocional de uma ver-dadeira geografia sentimental. Também não posso dizer que nesse período tenhahavido, nesse estágio de minha vida, ocorrências que pudessem ser consideradascomo dramáticas.

Os tempos deslizavam mais ou menos calmos, com o progresso da família,em recursos, como em tamanho, com os anos se sucedendo, marcados para o meni-no do Méier pelo avanço paulatino nos estudos, pela repercussão mais ou menosintensa de alguns acontecimentos na família, na escola, na vida social do bairro, e,como também, é claro, no País e no mundo.

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Não diria aqui, como André Malraux, que detestei minha infância, mas tam-bém não seria sincero se afirmasse que a evoco com excessivo sentimento de sau-dade. É que, como se sabe hoje, na vida de uma criança e, especialmente, de umadolescente, nem tudo transcorre entre flores, alegrias e sorrisos, como se quisfazer crer, e a escola nem sempre terá sido "risonha e franca"...

E não é porém somente ao mundo "exterior" que se deve atribuir as culpasdo desassossego e mesmo dos sofrimentos do menino e do adolescente: as causasmergulhavam no "interior", no desenvolvimento, com uma ajuda menor talvez doque a necessária, dada sua constituição extremamente sensível, para evitar desne-cessários recalcamentos de energias vitais, que poderiam depois explodir em dire-ções menos desejadas. Essa não é uma queixa, mas apenas uma constatação tardiae sem remédio, que tantos outros poderiam fazer... Eram contingências dos hábitose práticas da educação da época e também da essência repressiva da própria civili-zação: "pois a essência da sociedade é a repressão do indivíduo e a essência doindivíduo é a repressão de si mesmo", como quer Norman O. Brown. Ou esclarecen-do melhor: "o homem é o animal que reprime a si mesmo e que cria cultura ousociedade a fim de reprimir-se" (em O sentido psicanalítico da história).

E se assim é não há culpas a atribuir, nem queixas a fazer, a não ser einutilmente, aliás, contra a "civilização", a grande e inelutável repressora.

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Nesse quadro geográfico-histórico-sentimental-emocional constituído pelobairro, as tintas fortes eram dadas por aqueles grandes acontecimentos em geraldramáticos, senão trágicos – as guerras, as revoluções, as epidemias. Mas haviatambém o escorrer do dia a dia, da hora, e, principalmente, as noites com suasinsônias, seus sonhos, suas esperanças e seus pesadelos.

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E esse passar lento ou rápido de cada dia é que constitui a verdadeira tessiturada vida, aquela em que o ser, a princípio indiferenciado do ambiente, vai aos pou-cos ganhando contornos mais ou menos nítidos, no contato com as realidades, comas fricções continuadas com as coisas e as outras pessoas, com a natureza exteriore as compulsões internas, carregando ainda em si o peso das influências ancestrais.

E assim, apareciam as miudezas desse dia-a-dia, algumas causando impac-tos desproporcionados à sua aparente desimportância.

Como norma de educação da família, éramos incumbidos de fazer as com-pras da casa: na quitanda do "seu" Manuel, no armazém ou no armarinho dosirmãos Azevedo, portugueses, amigos da família desde a mocidade de meu pai, ouainda na Padaria das Famílias, de outro português, também amigo de nossa casa.

E aí, nessa pequena sociedade externa, ouvíamos e aprendíamos muitascoisas. O "seu" Manuel, da quitanda, por exemplo, era um desses portuguesesdesbocados, que não mediam palavras mesmo perante senhoras ou diante decrianças: contava histórias e anedotas fesceninas ou escabrosas com o propósitodeliberado de encabular os fregueses. De uma dessas histórias guardo perfeitalembrança:

A mulher brigava freqüentemente com o marido e resolveram, por isso, colocar uma tábuano meio da cama do casal para evitar qualquer contato. Passado pouco tempo, certa noite, amulher começou a dar espirros fortes e repetidos. E o marido, acordando, mais que depressaexclamou: "Maria estás muito mal, é melhor tirar a tábua..."

Éramos mandados também ao açougue, e lá tive a primeira aula práticasobre inflação: depois da guerra de 1914-1918 os preços começaram a subir e oquilo da carne passou a custar a incrível quantia de 800 réis, fato muito comentadoem todas as famílias.

Mas havia outras influências: mantínhamos relações com uma família ale-mã proprietária de uma barbearia. A dona da casa, cabeleireira, muito loura, meatraía fortemente, apesar da diferença de idade. E um dos filhos, o mais moço, creioque de nome Alexandre, com a maior sem-cerimônia, masturbava-se à nossa vista,com toda a galhardia, e mostrava como sua ejaculação atingia a maior altura naparede...

Os cinemas eram o Mascote, o mais antigo, situado à Rua Arquias Cordeiro;mais tarde, foi inaugurado o Cine Méier, na Avenida Amaro Cavalcanti recém-aberta. Nesse, fremíamos com a nudez erótica de Mae Murray e outras divas, cujocorpo provocava os devaneios mais intensos em noites de insônia.

Em 1922, houve a grande Exposição Comemorativa do Centenário da Inde-pendência do Brasil. Muitas vezes visitamos os pavilhões erguidos na área que fica-va entre as atuais Avenidas Presidente Wilson e Beira-Mar, admirando a produçãoindustrial e artística de grande número de países representados e também do Bra-sil. O pavilhão da França era um dos mais belos em minhas recordações e foi depoiscedido à Academia Brasileira de Letras para a instalação de sua sede. O pavilhãodos Estados Brasileiros funcionava naquele edifício envidraçado, erguido em frenteà Santa Casa de Misericórdia, que depois abrigou repartições do Ministério da Agri-cultura e foi recentemente demolido, sendo a área transformada numa praça.

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Mas houve também em 5 de julho de 1922, o primeiro levante dos "tenen-tes", debelado por Epitácio Pessoa. E em 1924, o segundo, em São Paulo, de queresultou a legendária Coluna Prestes, que a todos nós, jovens da época, empolgou eencheu de esperanças para a consecução dos sonhos de um Brasil maior e melhor,cujos destinos já então nos preocupavam.

A esse tempo, porém, praticamente adultos, o Méier já não poderia exer-cer sobre nós, os irmãos Lemme, aquelas mesmas influências de seus encantos emistérios, que eram talvez muito mais os próprios encantos e mistérios de nossainfância perdida.

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O PROFESSOR TEÓFILOCAPÍ

TULO

V

Foi minha mãe quem me iniciou nos segredosda leitura e da escrita: sua vocação para o ensino eraevidente e chegou mesmo a fazer estudos preliminarespara seguir a carreira do magistério, com LeolindaDaltro, educadora de renome e líder do movimento fe-minista no Brasil. Motivos de ordem particular, ligadosa certo atrito com a irmã mais velha – a tia Cecília –segundo me deixou entrever em suas conversas comi-go, quando procurava obter maiores informações so-bre sua vida – fizeram com que se desfizessem seussonhos de se tornar professora primária. E sempre semostrou descontente com esse fato. Suas aptidões po-rém se revelaram na educação e no ensino, ao menosem relação ao primeiro grupo dos quatro, dos dezesseisfilhos que teve. Depois, o trabalho excessivo de criarfamília tão numerosa, não permitiu mais que sedesincumbisse dessa tarefa.

A velha cartilha de Thomaz Galhardo, impressaem modesto papel de jornal, em preto e branco, tãodivulgada na época, era o instrumento maisfreqüentemente utilizado. E o método consistia namemorização das lições que se sucediam, página a pá-gina, numa graduação que se considerava então comoa mais lógica e natural para a aprendizagem. Começa-va-se pelo alfabeto, primeiro as vogais que se "decora-vam" pela repetição inúmeras vezes, até que se conse-guia desenhar razoavelmente aqueles sinais, que para

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uma criança de seis ou sete anos eram verdadeiros hieróglifos. Depois vinham asconsoantes; passava-se em seguida aos ditongos e depois às combinações dasconsoantes com vogais, a começar pelas que apareciam primeiro na linguagemfalada das crianças:

ba, be, bi, bo, buva, ve, vi, vo, vu

Quando tudo isso estava bem fixado na leitura e na escrita, vinham as palavrasisoladas mais comuns e mais fáceis para o vocabulário da idade, seguindo-se pequenasfrases em que se combinavam, mesmo sem muito nexo, os elementos já aprendidos:

Vovó viu a aveA ave vive e voaEu vi a viúvaViva a vovóVovô vê o ovoA ave voava

Por fim, apareciam pequenas historietas e poesias, que eram lidas e decoradasaos gaguejos, pela pouca segurança ainda nos domínios dos elementos fundamentaisda linguagem. Uma das últimas lições da cartilha era uma pequena poesia, emquadrinhas, que ainda hoje, passados quase setenta anos, me é grato recordar. Ei-la:

O amanhecer

Clareia aos poucos.O Sol desponta.O galo canta.Tudo se apronta.

Tudo se apronta.Que já é dia.Começa a lida.Ninguém vadia.

Põem-se os cavalosJá nas carroças:Os bois nos carrosSeguem pras roças.

Pombos e abelhasVoam contentes,Brilham as plantasResplandescentes.

Todos se movem:Homens, mulheres,Correndo, alegresAos seus misteres.

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Menino salta,Fora da cama.Tudo ao trabalhoConvida e chama!

Em outras dessas poesias simplórias uma erigia um tremendo cacófato: "Opassarinho no galho, pipila, trina e gorjeia..."

A atenção para a leitura e o estudo nessa enfadonha memorização erafreqüentemente ativada pelo "método pedagógico", muito eficiente, dos piparotesnas orelhas ou dos "suaves" golpes de vara na cabeça.

A terminação da cartilha era saudada com grandes elogios e satisfação, e apassagem para o livro de leitura "intermediária", em geral de melhor apresentaçãográfica, contendo mesmo estampas coloridas, em papel acetinado, representavaum grande passo à frente, ansiosamente aguardado. Mas isso só acontecia, geral-mente, após o ingresso na escola.

Ao completar os sete anos, como já referi antes, e já com essa iniciação,graças aos esforços de minha mãe, fui matriculado na escola pública então dirigidapela professora Olímpia de Castilhos, situada no alto do Morro do Vintém. Ficavabem próxima de nossa casa da Rua Figueiredo, e a atingíamos subindo uma dasladeiras, bastante íngreme, de acesso ao morro. Em dias de chuva, a água desciacom violência, abrindo sulcos profundos no saibro vermelho e a subida tornava-seainda mais penosa.

Àquela época, as escolas públicas primárias, existentes em número reduzido,eram freqüentadas pelos filhos das famílias de classe média, pois as crianças denível econômico mais baixo cresciam quase todas analfabetas. Essas poucas escolasse faziam conhecidas pelos nomes de suas diretoras ou diretores, pois a esse tempo,ainda havia grande número de homens que se dedicavam ao magistério primário.

Esses estabelecimentos de ensino estavam quase que todos instalados emprédios comuns de residência, mal adaptados, e, na maioria deles, em dependênciasinternas, moravam os diretores e mesmo professores.

A escola de "Dona Olímpia", denominada mais tarde "Professor Visitação",ocupava enorme casarão, em meio de frondosas mangueiras, a cuja sombra acolhe-dora passávamos os recreios. Freqüentei durante pouco tempo essa escola; guardo,porém, bem viva em minha memória a figura imponente da dona Olímpia, mulataescura, cheia de corpo, que impunha facilmente a autoridade e a disciplina, aomesmo tempo com energia e bondade.

Foi aí que passei da cartilha para as Leituras Preparatórias, da série Puigarri-Barreto, professores de São Paulo que iniciavam, com João Köpke, a renovação doslivros escolares. A eles juntou-se mais tarde Erasmo Braga, também de São Paulo.Eram volumes bem ilustrados, graduados e impressos em papel de boa qualidade,novidade em relação ao que existia anteriormente. As historietas mais interessan-tes eram originais ou adaptadas de livros nacionais ou estrangeiros. Depois de mui-to repetidas, essas pequenas histórias e poesias ficavam guardadas na memória pormuito tempo. Lembro-me ainda hoje das frases que iniciavam a primeira dessas"lições" do novo livro de leitura:

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Augusto, com um barbante laçou uma lagartixa, e, sem largar a ponta do barbante...punha-se à janela da frente de sua casa e fazia descer o cordel diante do nariz do transeuntedesprevenido, que levava um grande susto ao sentir o bichinho balançando-se à sua frente, sematinar de onde e como viera...

A ilustração tornava a cena inesquecível... Essas e outras historietas, cadavez mais bem apresentadas, na medida em que se avançava nas páginas do livro,algumas de cunho mais ou menos sentimental, outras de caráter moralizante, di-vertiam e comoviam o menino de oito-nove anos, e o estimulavam a prosseguir naaprendizagem o mais rapidamente possível até o fim do volume, e passar para oseguinte da série, que já recebia a denominação de primeiro livro de leitura.

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Mudando-nos para o outro lado da Estrada de Ferro, freqüentei por algumtempo uma escola mista situada na parte mais alta da Rua Joaquim Méier, nomesmo prédio em que se instalaria mais tarde a escola dirigida pela professoraIsabel Pereira Mendes, outra admirável educadora, que formou muitas gerações demoças do bairro.

Nessa escola trabalhava uma professora, dona Leopoldina, cheia de corpo emuito descansada, e que pouca atenção dava aos alunos, mas que tinha uma filha– a Zuleika – morena, de covinhas nas faces, olhos muito negros, rasgados, com umsinalzinho acima do lábio, e que foi minha segunda e grande paixão platônica...

Mas foi numa terceira escola, que freqüentei em seguida, que deveria per-manecer por vários anos, até concluir o curso primário e complementar. Nela sofria admirável influência de um desses verdadeiros educadores intuitivos, que tam-bém existiam na época, apesar da precariedade dos cursos de formação de profes-sores e a grande quantidade de mestres leigos, sem qualquer curso: a pedagogia, adidática, a metodologia, as técnicas de ensino, ainda ensaiavam seus primeiros pas-sos, mas a vocação, a intuição e a dedicação supriam essa falha.

A escola era para meninos e rapazes e estava instalada num prédio residencial,assobradado, que ficava um pouco adiante daquele em que residíamos, na RuaJoaquim Méier n° 18. Dirigia-a, na época em que me matriculei, o professor Lima eSilva, e era denominada a 2ª escola masculina do 9º distrito escolar, de acordo coma nomenclatura adotada, pouco antes, para as escolas do antigo Distrito Federal.

Os sete anos de extensão dos cursos primários da época eram divididos emtrês etapas: elementar (três anos), médio (dois anos) e complementar (dois anos). Ascondições de vida das famílias de classe média permitiam manter os filhos nas escolasprimárias até uma idade relativamente avançada e assim é que podiam ser encontra-dos nelas rapazes de 16, 17 e até 18 anos e mais de idade, nos últimos anos do curso.

Essa promiscuidade desses rapazes com meninos impúberes resultava emalguns inconvenientes, não apenas disciplinares, mas especialmente numa inicia-ção um tanto precoce em assuntos de natureza sexual, às vezes de maneira maisou menos escabrosa. Lembro-me muito bem das exibições impudicas que um dosalunos mais velhos, um homem feito, fazia de seus órgãos sexuais, com grandeespanto, para nós, os meninos.

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Um atrito do professor Lima e Silva, homem de estatura elevada, vermelhãoe pouco afável, com alguns desses alunos de mais idade, por questões disciplinares,parece ter sido a causa de seu afastamento da direção da escola. Segundo ouviafalar, teria mesmo havido tentativa de agressão desses alunos contra o diretor, emverdadeira rebelião.

Substituiu-o, dentro de pouco tempo, o professor Teófilo Moreira da Costa,mestiço claro, de estatura mediana, bigode hirsuto caído sobre a boca, homem demaneiras simples e fala mansa, quando não se irritava com alguma ocorrênciaescolar desagradável ou alguma outra preocupação.

Não sei de onde vinha transferido e qual sua experiência anterior em dire-ção de estabelecimentos de ensino. O fato é que, aos poucos, a escola começou asentir sua influência: a disciplina se restabelecia e a classe dos mais velhos recebiauma atenção especial do novo diretor, que também era professor desses rapazes.

Sua vocação e seu interesse eram principalmente dirigidos para o ensino dalíngua pátria, onde seus conhecimentos se mostravam bastante amplos, pelo quepude mais tarde perceber, indo até mesmo a um domínio bastante extenso do latim.

Sua dedicação não tinha limites, dando mesmo a impressão que nunca seafastava da escola, que parecia constituir toda sua vida.

Aí, sob sua direção, é que comecei a me firmar nos conhecimentos básicos,com vários de seus auxiliares, professores e professoras, que o professor Teófiloescolhia sempre com o maior cuidado, experimentando-os e dando-lhes toda aassistência. O que melhor recordo dessa época é justamente o que se refere à apren-dizagem da língua materna, ao estilo da época, mas que lançava boa base para odesenvolvimento futuro, dado que um bom domínio da língua nacional é de fun-damental importância. Os verbos eram cuidadosamente memorizados em todas assuas flexões, regulares e irregulares; as cópias, as leituras junto à mesa, estudadasem casa e "tomadas" pelo professor, ou perante a turma, num treino de desemba-raço e boa dicção; as redações todas corrigidas e anotadas eram discutidas emaula; as poesias, rigorosamente memorizadas e recitadas em aula, em verdadeirostorneios literários. Guardo bem viva na memória a lembrança desses recitativos,que incluíam poemas bem longos, tais como O melro, de Guerra Junqueira; O pás-saro cativo, de Olavo Bilac; O navio negreiro, de Castro Alves; O I Juca Pirama, deGonçalves Dias, e tantos outros e também sonetos célebres, que até hoje, registradosna memória, somos capazes de repetir quase sem erro.

O ensino da aritmética era também muito bem cuidado, com seus cálculos eproblemas, que deveriam ter a melhor apresentação e limpeza em cadernos apro-priados, e a extensão do programa ia até a aprendizagem de questões de juros ecâmbio. A geografia, com seus mapas ilustrativos e coloridos. A história do Brasil,com suas maiores datas sempre comemoradas em festas cívicas. As ciências natu-rais, depois tão descuidadas. Os trabalhos manuais para os meninos e os de agulha,para as meninas.

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Mas o professor Teófilo tinha planos de maior alcance para a sua escola, quesó mais tarde fui percebendo. O fato é que, dentro em pouco, falava-se na mudança

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do estabelecimento para outro prédio, mais amplo, que melhor atendesse aos objeti-vos ainda não completamente revelados por ele. Realmente, após as férias creio quedos anos 1914-1915, a escola foi transferida para um outro prédio, bem maior e maisadequado, situado à Rua Ana Barbosa, onde no pavimento superior funcionava asempre misteriosa, para nós, meninos, Loja Maçônica Visconde de Cairu, nome que aprópria escola adotou mais tarde. Ainda hoje ali funciona essa Loja, com seus símbo-los cabalísticos esculpidos na fachada: apenas o jardim foi ocupado por estabeleci-mentos comerciais, com a enorme expansão que se verificou no centro do bairro doMéier nos anos posteriores.

Que planos eram esses em cuja execução o professor Teófilo empenharia todaa sua vida e pelos quais sacrificou a saúde e, por fim, sem exagero, a própria vida?

Corinto da Fonseca, outro grande educador brasileiro, que, nem sempre muitobem compreendido em vida, ainda não teve o merecido reconhecimento, contava-me muito mais tarde, quando já exercia cargos elevados na antiga Diretoria deInstrução Pública do Distrito Federal, que as idéias que o professor Teófilo queriapôr em execução em sua escola tiveram origem num curso ministrado por ele,Corinto da Fonseca, sobre a introdução dos trabalhos manuais nas escolas primá-rias e complementares do Distrito Federal. Essas idéias eram inspiradas em métodosrussos, alemães e suecos e especialmente no chamado sloyd sueco, sistematizadospelo professor Otto Salomon, criador e diretor do célebre instituto de ensino detrabalhos manuais, conhecido pelo nome de Seminário de Näas, na Suécia. Consta-va principalmente de trabalhos em madeira, feitos a faca, constituindo um ades-tramento geral, não profissional: trabalhos manuais como uma metodologia defixação de conhecimentos, de precisão, e não como uma matéria a mais nos currí-culos escolares, conforme explicava o professor Corinto da Fonseca.

Em seu livro denominado A escola ativa e os trabalhos manuais, Corinto daFonseca refere-se a esse curso, que o professor Teófilo teria assistido:

"A faca de sloyd foi aqui no Rio introduzida por mim, em 1914 quandorealizei uma série de sete conferências, em curso sistemático de teoria e prática dostrabalhos manuais na Escola Riachuelo" (situada na Estação do Riachuelo, subúrbioda Central do Brasil. Mais tarde essa escola recebeu a denominação de Escola Bolí-via). E, continua o professor Corinto:

Revelei-a e o seu uso aos meus ouvintes, conseguindo de tal modo interessar o ilustrepedagogo doutor Fábio Luz, então inspetor escolar do 9° Distrito e presidente da Liga de Profes-sores desse distrito, que ele logo solicitou a minha intermediação junto à casa HammacherSchlemmer de Nova Iorque, para a aquisição de algumas coleções de ferramentas para o sloyd

a faca. Dessa interferência guardo a mais grata recordação numa quarta via da carta que foitirada em meu nome.

E aí está a origem das transformações pelas quais iria passar a escola, que soba direção do professor Teófilo, teria uma influência tão decisiva em minha formação.

O doutor Fábio Luz, nosso inspetor-escolar, é figura que também associo àsminhas recordações dessa época. Médico, mas também cultor das letras, fazendo críticaliterária, expondo mais tarde idéias socialistas avançadas, filiando-se à corrente doanarquismo teórico, que teve como um dos corifeus no Brasil o professor José Oiticica.

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De Fábio Luz possuo o volume, hoje raro, de crítica literária intitulado Estudosde literatura (1926), onde suas convicções anarquistas vêm expressas claramente.Veja-se, por exemplo, este trecho do primeiro ensaio do livro A fome na Rússia:

Assim pensando, e assim obrigados a agir, os bolchevistas, quando de posse do poder, ven-do-se bloqueados por todos os países da Europa, foram forçados a reorganizar o exército e adefender seus ideais com todas as armas. A Rússia, ou antes, a mocidade russa, já dizimada pelaguerra anterior ao armistício de Brest-Litovski, tem de permanecer em armas, formando exérci-tos para a defesa das instituições novas e para combatê-las, nas várias tentativas reacionárias,nos exércitos vermelhos, nas tropas de Denikine, Kolstchalk, Wrangel etc. A força moça, osbravos vigorosos que arroteavam os campos, faltaram com a guerra; vem a fome, chegou apeste. As três irmãs andam sempre juntas. A elas se associa sempre o Estado outra calamidade.

Mas, desde o início do século, meu antigo inspetor escolar já se dedicava aatividades socialistas junto à classe operária. Em 6 de agosto de 1904, o jornalzinhoO amigo do povo publicava o discurso com que o doutor Fábio Luz saudava ainauguração de uma "Universidade Popular", fundada, no Rio de Janeiro, a 24 dejulho desse mesmo ano. Dizia ele, então:

Concidadãos, minhas senhoras,

Está aberta a sessão com que se instala definitivamente a Universidade Popular. Que somade esforços e de energia, que soma de atividades e de boa vontade, que soma de tenacidade eperseverança representa esta solenidade, esta primeira estação abençoada, este primeiro marcofincado, esta primeira paragem vencida na longa jornada do bem e da instrução popular, todosvós conheceis, todos vós compreendeis.

E adiante:

Vê bem o povo que os poderes públicos não se preocupam com a questão máxima de suaascensão para a verdade e para a luz.

E por fim:

Que todos aqueles que nos negrores das oficinas fuliginosas, nos presídios das fábricas, nagalé eterna do trabalho exaustivo, no doloroso labor diário em bem do explorador; que todosaqueles que aspiram pela emancipação moral e pela libertação econômica, venham aqui buscarum pouco de luz para desbravar o caminho na conquista da cidade futura, feliz e igualitária.

Por essa época, o cargo de inspetor escolar era considerado de bastanterelevo, sendo entregue a homens de cultura notória, especialmente dedicados àsletras: Olavo Bilac, Virgílio Várzea, Afrânio Peixoto, José Veríssimo e Alberto deOliveira foram inspetores escolares no antigo Distrito Federal.

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Mas, voltemos às atividades do professor Teófilo. Aos poucos fomos perce-bendo que ele pretendia ir muito além dos simples trabalhos manuais, do sloyd. Em

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breve, graças aos seus esforços junto à administração central da Instrução Pública,eram instaladas oficinas, especialmente para trabalhos em madeira, carpintaria emarcenaria e também de tornearia, envernizamento e empalhação. Profissionaisdesses ofícios vieram se juntar aos professores de letras, na tarefa de formar aque-les rapazes, de uma maneira inteiramente nova. O ensino de desenho também foiintroduzido, com professores especializados.

Nessa primeira fase da "escola nova" do professor Teófilo, a 30 de novembrode 1914, tendo eu 10 anos, recebia o primeiro "diploma" de minha vida escolar, deconclusão da 3ª classe do curso elementar, documento de muita importância paranossa vaidade de menino e cujos dizeres transcrevo como documento de uma época:

A Inspetoria escolar do 9° Distrito, atendendo ao merecimento e aptidão que em exames depromoção de classe, realizados na 2ª escola masculina deste distrito, no dia 18 de novembro de1914, revelou o aluno Paschoal Lemme – nascido em 12 de novembro de 1904, filho de AntônioLemme e morador à Rua Joaquim Méier, 18, aprovado com distinção grau dez, confere-lhe, emnome do Governo Municipal o presente certificado de habilitação da 3ª classe do curso elemen-tar como prêmio de sua aplicação.

Capital Federal, 30 de novembro de 1914.

Assinavam o documento, recebido com grande alegria, o professor TeófiloMoreira da Costa, o inspetor escolar doutor Fábio Luz, e em caligrafia ainda muitohesitante, quase em garranchos, o aluno diplomado.

Foi meu mestre nesse curso, em que terminei a alfabetização, o professorSalústio de Castilho, mestiço claro, cheio de corpo, de voz grossa, e que usava ométodo comum na época de fazer toda a turma recitar a lição em voz alta, numaespécie de cantochão. Era um disciplinador intransigente, bastante temido pelosgarotos, que se alinhavam, em número de quase quarenta, naquelas carteiras anti-gas de dois lugares cada uma. Sua didática, muito peculiar, produzia entretantobons resultados práticos.

Em junho de 1915 era eu aprovado na primeira classe do curso médio,com nota plenamente 8 e, em novembro desse mesmo ano, concluía o cursomédio com nota plenamente 6. Atribuo essa baixa da eficiência escolar à eclosãoda adolescência, que fazia sua obra: a inquietação interior prejudicava a concen-tração nos estudos, o que quase sempre passava despercebido dos adultos, nafamília e na escola. A natureza agia livremente sem qualquer orientação, a nãoser apenas a iniciação, ao acaso, feita com colegas mais experientes, alguns, comovimos, já praticamente adultos, e que já tinham até mesmo contatos carnais como outro sexo, freqüentando mesmo prostitutas. De um, lembro-me bem, ouvía-mos, cheios de curiosidade, é claro, suas aventuras nesse terreno, o que chegouao conhecimento do diretor e por fim da família, o que fez, segundo me parece,com que fosse forçado a abandonar a escola. Com outros colegas, com quem nosligávamos por laços afetivos mais profundos, trocávamos confidências: a preocu-pação maior eram sempre aquelas sensações estranhas a que a idade nos condu-zia e as "soluções" e as explicações que cada um de nós ia procurando dar, colhi-das de maneiras diferentes nos diversos ambientes em que vivíamos. Em certas

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épocas, uma verdadeira onda de erotismo nos avassalava e nos tornava desaten-tos, belicosos, brigões, como galarotes na muda.

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Como que aparentemente alheio ou indiferente a todo esse movimento sub-terrâneo que atingia os meninos adolescentes, que constituíam a maioria dos alu-nos do estabelecimento, o professor Teófilo prosseguia, com a obstinação caracte-rística dos temperamentos iluminados pela fé, sua obra de educador. Essa indife-rença deveria ser, porém, muito mais aparente do que real, pois a essência de suasrealizações e inovações visava a dar justamente, consciente ou inconscientemente,a esses jovens-meninos preciosas válvulas de escape para sua transbordante ener-gia vital, em trabalhos de todas as modalidades, práticas e intelectuais, do cérebroe das mãos. Constituíam-se assim um aproveitamento e desenvolvimento de todosos aspectos da personalidade de cada um, dando-lhes oportunidades de expressãovariada, estimulando-lhes a criatividade, conceito que só agora vai penetrando nadidática moderna, como aquisição valiosa da prática e da teoria pedagógica. Assim,se o ambiente cultural da época não ensejava na família ou na escola comum umabordamento mais direto das causas e dos remédios para aquela inquietação dosadolescentes, uma terapêutica adequada era em grande parte ministrada por aquelesmétodos de "educação integral", digamos assim, canalizando todo aquele élan vitalpara propósitos construtivos e de significado individual e social: assim, ao invés darepressão, possibilidades variadas de expressão.

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Num horário bastante extenso que ia das 8 ou 9 horas da manhã às 4 ou 5horas da tarde, trabalhávamos, no primeiro período, nas oficinas. Nelas, os mestresCarlos e Manuel, a princípio, e mais tarde outros profissionais, nos iniciavam nosexercícios em madeira, dos mais simples até o acabamento de peças mais comple-xas, a lixa e verniz. Mais tarde, vieram os trabalhos de tornearia e de metal. No fimdo período letivo, havia exposições dos trabalhos realizados durante o ano. Dentroem pouco, a escola já recebia mesmo encomendas de fora, inclusive de casas co-merciais que revendiam os produtos por nós elaborados. Lembro-me perfeitamenteque ajudei a preparar muitos quadros-negros e outros utensílios escolares para aCasa Vilas-Boas, então o maior estabelecimento do Rio de Janeiro, especializado nocomércio de material escolar.

Depois do almoço, assistíamos às aulas de letras. Nestas, pelas própriastendências do professor Teófilo, dedicávamos grande parte do tempo à aprendi-zagem da língua nacional, coisa que era fundamental para o futuro de cada umde nós. As freqüentes composições, redações, cartas, transposições de poesiaspara a prosa, recitações, os fatos da gramática, a análise gramatical e lógica, aleitura, a interpretação e comentário de bons autores, tudo isso ia dando-nos umdomínio gradativo da linguagem escrita e falada, aquisição básica que deve serfeita na escola primária.

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Infelizmente, essas práticas não tiveram prosseguimento em tempos poste-riores por uma série de razões, entre as quais se destacam a diminuição do númerode anos do curso primário, do número de dias do ano letivo, do número de horasdiárias de estudo, pela divisão da escola em turnos para atender ao crescimento dapopulação, não acompanhado devidamente pelo aumento do número de estabele-cimentos. E os últimos anos da antiga escola primária, transladados para os chama-dos cursos secundários, não puderam manter um regime adequado de estudos eisso somado à queda do nível de preparo dos professores, resultou nas gritantesdeficiências, hoje reconhecidas por todos, especialmente no tocante ao ensino dalíngua materna.

Sempre à procura dos melhores elementos para auxiliá-lo na tarefa de desen-volver seus planos – pois evidentemente o professor Teófilo não poderia incumbir-sesozinho de todos os encargos do ensino e da administração da escola, que se iatornando cada vez mais complexa –, tivemos por essa época como professora umajovem, dona Edwiges Machado, auxiliar eficiente e dedicada, apreciadora e seguidorafiel dos métodos do professor Teófilo. Depois de muitos anos, era a primeira mulherque tínhamos como professora, e sua juventude, afabilidade e competência agiam demaneira intensa sobre a sensibilidade de nossa adolescência. Sua seriedade, porém, econsciência dos deveres, foi-nos de grande proveito. Casou-se com um colega – oprofessor Gumercindo – que trabalhava nas primeiras classes, e seu namoro, na esco-la, apesar da respeitabilidade com que se desenvolveu, não deixou de produzir em nóssentimentos dos mais desencontrados.

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Dentro em pouco, já o professor Teófilo cogitava de dar mais amplas insta-lações ao estabelecimento ao qual já impusera a marca de sua personalidade e oscontornos de sua iniciativa pioneira.

Em 1916, a escola transferiu-se para um prédio mais amplo, situado à RuaDias da Cruz, na esquina com a Rua Lopes da Cruz, onde funcionou mais tarde oColégio Metropolitano, estabelecimento particular de ensino e em cujo terreno foiconstruído por fim o shopping center do Méier.

O professor Teófilo fez construir anexos ao prédio residencial preexistentegalpões especiais para as oficinas e outras instalações. As aulas funcionavam noprédio principal, um antigo sobrado de dois pavimentos, com uma grande varandaao lado.

Já aí estava eu como veterano, aluno das últimas classes. Sentia gozar dasimpatia e da confiança do professor Teófilo, que muitas vezes me incumbia deassumir a direção de classes dos menores, nas faltas dos respectivos professores. Eapesar da minha timidez, pouca idade e experiência, ele sempre me elogiava achandoque me desempenhava da tarefa até mesmo melhor que os professores efetivos.

Mas, além do curso regular que se desenvolvia nessas atividades multiformes,era tal a dedicação do professor Teófilo ao seu trabalho que, aos que consideravaseus melhores discípulos, sem qualquer remuneração e numa enorme sobrecargade esforço, depois das horas normais do expediente escolar, dispunha-se ainda a

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preparar para prestar os "exames preparatórios", que eram realizados no ColégioPedro II, de acordo com a legislação da época, e condição para prestar os "examesvestibulares" para a matrícula nas escolas superiores.

Faziam-se primeiro os exames das matérias consideradas básicas que eramtrês: o português, a aritmética prática e teórica, e a geografia geral e do Brasil(Corografia).

Foi assim que nos lançamos ao estudo dos Lusíadas, de Camões, interpreta-dos e analisados lógica e gramaticalmente, pois era o texto obrigatório nos examesde português. Destrinçar aquela ordem inversa característica do grande poema,compreender todos aqueles episódios da história de Portugal e símbolos da mitolo-gia, não era tarefa fácil, mas que fazíamos como um verdadeiro jogo, orientadospelo entusiasmo do nosso mestre. E desde aí ficaram gravadas em minha memóriaas passagens mais belas, entre as quais se destacava o episódio de Inês de Castro,"aquela que depois de morta foi rainha": "Estavas linda Inês posta em sossego/Deteus anos colhendo o doce fruto"...

E o professor Teófilo nos advertia que deveríamos pronunciar "ledo" e "cego"para não prejudicar a rima som sossêgo...

Na aritmética, pela primeira vez, abordávamos os chamados "teoremas", alógica matemática, com as demonstrações entusiásticas do nosso dedicado mestre,que concluía como o vitorioso q.e.d. (quod erat demonstrandum), "como quería-mos demonstrar"...

Na geografia, não nos limitava à memorização de nomes, mas nos obrigava aacompanhar as aulas nos Atlas e a reproduzir depois, países e estados, em mapas edesenhos minuciosos, em grandes cadernos especiais, coloridos com todo o cuidado.

Finalmente, chegava o dia em que deveríamos enfrentar as bancas exami-nadoras do Colégio Pedro II, constituídas de grandes nomes do magistério, porémdesconhecidos para nós.

Pela manhã, de acordo com a convocação prévia pelos jornais, sozinhos ecom as cólicas e desarranjos característicos das grandes emoções, comparecíamos àsede do tradicional estabelecimento, à Rua Marechal Floriano. Fazíamos então asprovas escritas. Os aprovados nelas, cujos nomes eram afixados em listas ou procla-mados no saguão de entrada do colégio, faziam as provas orais na parte da tarde,perante assistência numerosa de candidatos, familiares e curiosos, o que aturdia osmeninos de 11-12 anos, idade da maioria dos candidatos. Os mais ilustres nomesem cada disciplina nos submetiam a interrogatórios, alguns rigorosos, outros re-vestidos de maior bondade e compreensão: um Carlos de Laet, um João Ribeiro, umJosé Oiticica, um Antenor Nascentes, um Mendes de Aguiar, um Gastão Ruch, umLafayete Pereira, e tantos outros.

Fui aprovado, logo na primeira vez nos dois exames considerados maisdifíceis: português e aritmética. E reprovado em geografia, considerado o maisfácil: não me agradava muito a memorização... O ponto sorteado para provaescrita foi a Inglaterra, e o presidente da banca examinadora era o notável geógrafoJoaquim Coelho Lisboa, já idoso, de uma palidez impressionante, a bebericar leitegelado e a se abanar permanentemente com um leque, pois os exames eramrealizados de dezembro a fevereiro, em pleno verão... Não havia remédio, porém,

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teria que repetir em segunda época, o exame de geografia, corografia ecosmografia, que era o título completo da matéria.

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As comemorações das datas cívicas do calendário escolar eram realizadascom grandes solenidades, por meio de alocuções pronunciadas pelo diretor e pelosprofessores, cânticos escolares, declamações de poesias, exibições de educação físi-ca. Havia também as exposições de trabalhos escolares, em competição com os deoutros estabelecimentos do mesmo distrito escolar. As grandes festas externas comoa da Primavera, realizada na Quinta da Boa Vista e que reunia grande número deescolas; o treinamento para grupo de escoteiros, que surgiam em meio às manifes-tações patrióticas por ocasião da entrada do Brasil na Primeira Grande GuerraMundial; as festas do encerramento do ano letivo..., tudo isso ficou gravado emminhas recordações de menino, juntamente com os folguedos caseiros, os traba-lhos escolares e as lições a serem estudadas em casa, os "deveres escolares", como sedenominam hoje, e que eram preparados com grande capricho.

Além disso, o professor Teófilo nos estimulava a acompanhar os aconteci-mentos políticos do país e ele próprio era designado membro das mesas apuradorasdas eleições presidenciais. Lembro-me muito bem de uma delas, em que com suavoz pausada e firme lia as cédulas, uma a uma: "Artur da Silva Bernardes – 1 voto!"

A figura do professor Teófilo sobressaía em tudo isso, sempre com aquelaaparência muito modesta, com seu casaco surrado de alpaca preta, calçasamarfanhadas, enérgico e disciplinador, mal dissimulando, porém, a bondade e acompreensão que revelava para com aquele bando de garotos, alguns verdadeira-mente endiabrados, castigando-os com palavras duras, quando necessário, semcontudo nunca humilhá-los.

Duas vezes, se bem me lembro, vi-o realmente fora de si.A primeira, como reação a um caso de homossexualismo entre os alunos,

que chegara, não sei como, ao seu conhecimento. Não entendi muito bem a razãode toda aquela indignação, tanto mais quanto conhecia bem o rapaz acusado, quesegundo se dizia, se entregava a "práticas condenáveis" com colegas experimenta-dos, num matagal ermo, próximo à sua casa.

O segundo episódio, recordo-me bem, ligava-se à circunstância de um alu-no da classe dos mais velhos ter infringido a proibição terminante de colher frutasverdes, creio que carambolas, das árvores existentes no grande terreno da escola.Sem ter muita certeza da autoria da falta, o diretor responsabilizou um dos rapazesconsiderados mais endiabrados, useiro e vezeiro em arquitetar traquinadas e con-fusões, punindo-o com a colocação no pescoço de um colar confeccionado por elepróprio com os frutos verdes da referida árvore e obrigando-o a se exibir durantetodo o dia perante os colegas. Era, porém, o professor Teófilo o mais indignado como castigo que fora obrigado a ministrar, até que acabou explodindo e exprobandoa covardia de todos nós que não defendíamos o colega, cuja culpa não fora perfei-tamente apurada...

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A fama da Escola Visconde de Cairu já se alastrava por todos os subúrbios emuitos pais vinham implorar ao professor Teófilo que aceitasse os filhos, muitosexpulsos de outras escolas, por mau comportamento e desleixo nos estudos, paraque eles tentassem a recuperação. E o desafio era aceito, e quase sempre conseguiaobter algum resultado com aquela terapêutica de ensino, trabalho, energia e com-preensão.

Confesso que mais tarde, quando cheguei a ser professor de história daeducação, ao recordar-me da Escola Cairu e de seu fundador, essa obra aparecia-me com muita semelhança com a de Pestalozzi, no seu célebre Instituto de Yverdon,na Suíça, ou com a de Makarenko, nos primeiros anos da Revolução Russa, recupe-rando menores abandonados, alguns ladrões e até assassinos, o que o educadorsoviético relata na empolgante obra literária que é o Poema pedagógico.

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Mas o sonho do professor Teófilo prosseguia. Estava em seus planos fazerconstruir um edifício especial para a instalação da escola, pois até aquela datatodos os prédios em que funcionara eram alugados e adaptados. Visava também atransformação do estabelecimento numa escola profissional de caráter especial,que, recebendo alunos desde o nível primário, até mesmo analfabetos, os levariaaté a adolescência, treinando-os em atividades diversificadas que pudessem serúteis para a escolha de uma profissão futura, sem descurar contudo do ensino deletras, que permitiria aos que tivessem aptidões prosseguir em estudos de nívelmais alto e mesmo formarem-se em cursos superiores. Enfim, seria uma escolabásica, ao mesmo tempo de educação geral e profissional, de nível médio.

Por aí se vê como são antigas certas idéias e planos, que surgem depoiscomo novidades, em épocas posteriores, trombeteadas pela propaganda como so-luções definitivas para os problemas do ensino e recebendo até denominações pom-posas e pedantes como as de cursos profissionalizantes e com o caráter determinalidade...

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Enfim, depois de muitas lutas e enorme desgaste físico junto às autoridadesde Instrução Pública e do Legislativo Municipal, o professor Teófilo conseguiu queas novas e definitivas instalações de sua escola fossem construídas em terrenos daantiga Escola Professor Visitação, no alto do Morro do Vintém, vindo assim, porcoincidência, para bem junto do local em que minha vida escolar começara.

Não assisti a essa nova mudança, feita quando a construção dos novos pré-dios foi concluída: eu terminara o curso da escola ainda nas instalações da Rua Diasda Cruz e ingressara, em 1919, na antiga Escola Normal do Distrito Federal. Para osexames de admissão a essa escola fui também preparado pelo meu professor, jun-tamente com um pequeno grupo de moças: creio que ele descobrira em mim, não

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sei como, algumas qualidades e condições para seguir a carreira que abraçara edesempenhava com tanta dedicação.

Vim, porém, a conhecer essas novas instalações, já como professor, primeiropara substituir uma professora licenciada (1923), e depois já em caráter efetivo docurso complementar oficializado depois pela Reforma Fernando de Azevedo (1927-1930), com o nome de "curso complementar anexo", cujo plano de ensino constava,conforme vimos anteriormente, de cinco anos de extensão para a escola primária equatro para as escolas de grau médio, com esse curso intermediário que podia seranexado as essas últimas escolas. Esses cursos foram muito ampliados, com a exe-cução de trabalhos em madeira, metal, motores a explosão, eletrotécnica e desenhoartístico e industrial, além da parte de letras, que incluía a língua nacional, o fran-cês e o inglês e de matemática, ciências físicas e naturais, história e geografia,tecnologia de vários ofícios. Eu lecionava complementos de matemática, no cursointermediário, pois a esse tempo já iniciara o curso da antiga Escola Politécnica doRio de Janeiro.

A escola, para custear despesas, passou também a receber encomendas decaráter comercial, providências que levantava controvérsias entre educadores. Se-gundo constava, o professor Teófilo empenhava até mesmo seus recursos pessoais eda família para constituir o que poderia chamar de "capital de giro" para essesempreendimentos. E isso, parece, lhe causava grandes preocupações e dias de pro-fundos aborrecimentos. Seu abatimento físico, nos últimos tempos em que priveicom ele nos trabalhos da escola, era visível e progressivo. Revejo-o ainda, nitida-mente, incansável, galgando a custo a ladeira do lado mais íngreme do Morro doVintém, o da Rua Arquias Cordeiro, ainda sem calçamento, sempre com aquelamesma simplicidade no traje, o mesmo casaco de alpaca preta puída, calçasamarfanhadas, vergado ao peso de todas aquelas preocupações, que a tal o condu-ziram seus sonhos e talvez desilusões...

Certo dia, em dezembro de 1927, dava eu uma aula no andar superior doprédio principal, quando ouvi alguém atacado de forte acesso de tosse... Poucodepois um velho servente da escola vinha me chamar: o professor Teófilo esvaía-seem sangue, com tremenda hemoptise, num dos sanitários da escola. Aproximei-medele surpreso e preocupado e ele ainda quis resistir aos socorros que ofereci, dizen-do-me em voz embargada, cortada de acessos de tosse e de sangue: "Isso não énada, passa logo!"

Seu estado, porém, era muito grave. Insisti e convenci-o afinal em se deixarconduzir até sua casa, próxima dali, no bairro do Cachambi. Não mais se levantoudo leito, não tendo podido voltar à sua querida escola, à qual dera, literalmente, avida.

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Sua filha mais velha – Maria de Lourdes Costa, hoje viúva do doutor Thibau–, que desde algum tempo trabalhava na secretaria da escola, ajudando o pai nostrabalhos da administração, e a quem pedi, mais tarde, dados biográficos do pro-fessor Teófilo para redigir algumas palavras que deveria proferir na homenagem de

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inauguração de uma escola primária que recebera seu nome, mandou-me as se-guintes informações, que transcrevo aqui:

Trabalhador apaixonado, sempre teve como objetivos difundir cultura e amparar o estu-dante pobre, sem outra compensação além do prazer de um ideal realizado. E todas as manhãs,às 7 horas, estava ele à porta da Escola Profissional Visconde de Cairu, assistindo à entrada dosalunos que, em média de 550, anualmente, lotavam as salas de aula e oficinas.

Esses alunos foram a sua máxima preocupação. Se faltava um professor de cultura geral, láestava o diretor, incansável, substituindo o auxiliar, para que os 'pequenos' não fossem prejudi-cados.

Situada em subúrbio populoso, era a Escola Cairu procurada por crianças paupérrimas e aassistência material a essas crianças foi feita de maneira quase milagrosa: 90% dos alunosmatriculados recebiam, com toda a regularidade, calçado, uniforme, passagens, material esco-lar e o prato de sopa. Como as dotações orçamentárias municipais não fossem pouco além dasverbas de 'pronto pagamento', organizou-se a 'Seção Industrial', onde os alunos, hábeis dese-nhistas, conhecedores perfeitos de estilos, executavam, sob o controle de mestres, encomendastanto para particulares como para a própria Prefeitura e, em 1926, quando o diretor venciapouco mais de 600 mil réis mensais, havia alunos que recebiam 300; e com a renda dessa 'SeçãoIndustrial', unicamente, foram construídos novos pavilhões e adquiridos aparelhamentos. Parao prato de sopa foi plantada uma horta, cujos legumes e verduras que ainda sobravam eramvendidos para aumentar a renda da escola.

Cumpria às Escolas Profissionais, afirmava ele, a preparação de técnicos para a indústrianacional, técnicos cujos direitos seriam assegurados pelo Governo. E até crianças aleijadas fo-ram por ele encaminhadas para um ofício adequado, que lhes garantisse o futuro.

Horas de repouso, férias, horas para as próprias refeições, interesses particulares, saúde,tudo foi sacrificado, nada disso existia para ele, quando se tratava da causa do ensino, e à noite,em sua residência, ou à tarde, na própria escola, estavam os alunos que terminariam o curso nofim do ano, recebendo, graciosamente do diretor amigo, aulas particulares para os próximosexames oficiais e preparatórios no Colégio Pedro II.

A 2 de dezembro de 1927 adoeceu. A 3 de janeiro de 1928 morria e, ao morrer, entre osmaiores sofrimentos, ainda teve forças para perguntar:

E a Cairu? E os pequenos?

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O professor Teófilo Moreira da Costa, de origem modesta, nasceu no antigoDistrito Federal, no bairro de São Cristóvão, a 27 de janeiro de 1879, filho de JoséMoreira da Costa, negociante português e de dona Luísa Moreira da Costa. Fale-cendo numa quarta-feira, dia 3 de janeiro de 1928, contava pois, apenas 49 anos.

Foram em grande número os jovens que educou e formou e que, posterior-mente, seguiram as mais variadas profissões, desde as mais humildes até as maiselevadas. Entre tantos nomes que poderia recordar ocorre-me citar os dos irmãosNilo e Waldemar Figueiredo Costa, de tradicional família do Méier, e que chegaramambos a almirantes de nossa Marinha de Guerra e terminaram suas carreiras comoministros do Superior Tribunal Militar.

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É muito difícil descrever em palavras (sempre o mesmo problema) a influênciaque sobre a minha formação exerceu essa figura de mestre, nunca demasiadamente

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lembrada. Revendo-o, verifico que nunca chegamos a ter verdadeira intimidade, poissua figura apresentava sempre a aparência de uma grande austeridade, encobrindo,por certo, uma "interioridade" rica e complexa que não conseguia expressar comfacilidade. Entendíamo-nos, porém, com uma espécie de linguagem sem palavras,que é, sem dúvida, muitas vezes, a única possível e a mais expressiva. Por isso mesmo,não faço a menor idéia do que o levou a fazer-me objeto de suas atenções. Talvez pornão ter um filho homem? O fato é que sua ação sobrepujou os esforços de meu paipara fazer com que eu o seguisse em suas atividades profissionais. Na luta silenciosae sem palavras que suas influências travaram na minha formação saiu vitorioso oprofessor Teófilo. De que instrumentos dispunha para detectar assim, com mais segu-rança minhas preferências, aptidões, ou quem sabe "vocação", jamais poderei saber.

Mas, certo dia, ao ter que responder à interpelação irritada de meu pai,quando se fazia hora de decidir meu destino:

– "Mas afinal, o que é que você quer ser?"A resposta veio de pronto:– "Se não for professor, não serei mais nada!"

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Segundo dados que encontrei posteriormente em publicação da Repartiçãode Estatística do antigo Distrito Federal, a Escola Profissional Visconde de Cairuresultou da transformação da antiga 2ª escola masculina do 9º Distrito Escolar, peloDecreto n° 1.988, de 15 de setembro de 1918. Iniciada a prática de sloyd em ma-deira (sistema Laarson) durante as férias de 1916-1917, foi instalada uma pequenaoficina de trabalhos. Aquele mesmo decreto mandou dividir o ensino em um cursoprimário de letras e um curso profissional, com oficinas de trabalhos em madeira(carpintaria, marcenaria, entalhador, tornearia) e em metal (ferreiro, serralheiro,ajustador e torneiro mecânico). Depois do referido decreto, foram montadas asoficinas de carpintaria, tornearia em madeira e ferraria. Em 1920 foi instalada aoficina de mecânica. Além do curso de letras, abrangendo a matéria contida nosprogramas das escolas primárias (de sete anos) e de um curso especial complemen-tar de funções algébricas e de conhecimentos de fenômenos de ordem geométrica,foram por último estabelecidas cinco oficinas da seção de madeira (carpintaria,marcenaria, tornearia, escultura e polimento), uma de massa plástica (modelagemem pastelina e vasamento em gesso), duas da seção metal (ferraria e ajustamentomecânico) e uma de desenho com iniciação em conhecimentos morfológicos, dese-nho geométrico, de ornato, figurado, projeção, perspectiva e sombras.

A matrícula nos respectivos anos letivos foram as seguintes: 1919 – 399 alu-nos; 1920 – 424 alunos; 1921 – 485 alunos; 1922 – 518 alunos; 1923 – 504 alunos;1924 – 488 alunos; 1925 – 376 alunos; 1926 – 326 alunos.

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Alguns anos depois (1935), já então exercendo eu o cargo de superintendentede todo o ensino técnico – secundário da antiga Prefeitura do Distrito Federal, na

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administração Anísio Teixeira, tive a grata oportunidade de receber uma homenagemdos alunos e professores da Escola Profissional de Cairu, prestada ao seu antigo cole-ga. E em resposta às saudações de que fui alvo, aproveitei o ensejo para relatar aorigem da escola e um pouco da vida, paixão e morte de seu abnegado criador. Ojornalzinho que os alunos da escola então publicavam, A voz da Cairu, registrouassim essa homenagem, que tanto me comoveu:

Realizou-se no dia 10 de outubro (1935) em nossa escola uma festinha em homenagem aoprofessor Paschoal Lemme, superintendente de Ensino Técnico-Secundário.

O professor Paschoal Lemme iniciou seus estudos em nossa escola, onde foi aluno e, maistarde, por brilhantíssimo concurso, professor.

É, pois, motivo de intenso júbilo para nós, vermos o nosso ex-colega e mestre, galgar umtão alto posto do ensino municipal...

É claro que minha emoção foi imensa e aqueles rapazes e colegas, queassim me homenageavam em salas tão ligadas à minha própria vida, mal podiamadivinhar que toda aquela emoção com que lhes agradeci, provinha da evocaçãodaquela figura tão simples, humana e dedicada, do mestre que fecundara comsua vida, seu trabalho e seu amor aos "pequenos" aquela obra, que se expandiraaté aquele ponto, podendo servir de modelo, ainda hoje, a instituições capazes deatender às necessidades de educação e ensino da juventude de um país com ascaracterísticas do nosso.

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BARRA MANSACAPÍ

TULO

VI

Sempre achei um tanto estranha aquela resi-dência de meus avós maternos e da quase totalidadedos tios na cidade de Barra Mansa, no Estado do Rio deJaneiro, às margens do rio Paraíba. Havia um desacor-do ou uma falha nas informações que possuía de suachegada e estabelecimento no Rio de Janeiro.

Por que Barra Mansa?Somente pouco antes de falecer, em 1968, foi

que minha mãe, numa das conversas que tínhamos quan-do ia visitá-la, e com a intenção que já alimentava deescrever estas memórias, revelou-me, sem muitos por-menores, a razão desse fato.

A família de minha mãe, já foi dito antes, nãotivera muito sucesso em sua transladação definitiva parao Brasil. Em breve, apresentava sintomas de decadênciaeconômica, obrigando-a a se transferir do centro da ci-dade, não apenas por causa da febre amarela, para umsubúrbio longínquo e ainda agreste, tal como era entãoo Engenho de Dentro.

Minha mãe, aliás, não escondia sua decepção quea vinda para o Brasil representava para a família, e lem-brava sempre com saudade sua querida Vizeu e, comorgulho, o nível de vida que desfrutava lá.

Mas a ida para Barra Mansa deveu-se a ocorrên-cia anormal e de certa forma dramática.

Um patrício, compadre ou parente de meu avô(não pude apurar exatamente quem era) metera-se em

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demandas judiciárias em torno de propriedades imóveis. Faltando-lhe recursos paraprosseguir nas ações, induziu meu avô a emprestar-lhe dinheiro o que, com o fra-casso das demandas, comprometeu de maneira grave as finanças do velho Adelino.Com a perspectiva da perda total de seu patrimônio, meu avô desesperou-se, ecerto dia abandonou a casa e a família, no Engenho de Dentro, e desapareceu,segundo parece, com a intenção até de suicidar-se...

E não sei como foi parar naquela cidade bem distante do Rio de Janeiro.As coisas, depois, devem ter se arranjado, pois meu avô acabou se estabele-

cendo ali, onde refez a vida e para onde levou toda a família que ainda vivia sobsua dependência.

Naquela cidade conheci todos os tios maternos que para lá foram, eramtrês, e uma tia, a mais moça. Duas outras permaneceram no Rio de Janeiro, onde jáas conheci casadas e com filhos, meus primos e primas. Dessas duas, uma chegoumesmo a morar conosco – a tia Deolinda – como já referi – ocupando durantealgum tempo as dependências térreas do casarão da Rua Joaquim Méier.

O marido da mais velha – a tia Cecília – era ou tornou-se um homem doente,inutilizado para o trabalho (não sei o que fazia) e por isso a família passava dificulda-des. Viviam distantes, lá para os lados da Boca do Mato nas encostas da serra dosPretos Forros, em propriedade adquirida por meu avô e onde meu tio – Antônio –passou a dedicar-se a atividades agrícolas. Essa minha tia, segundo me parecia, nãoalimentava sentimentos muito cordiais para com minha mãe, creio que por causa dosucesso e progresso econômico de nossa família, em confronto com a situação dequase miséria a que foi reduzida.

Lembro-me de visitas que lhes fazia, lá na casinha modesta, onde preparavamenvelopes para aumentarem um pouco os ganhos escassos. Mas, uma das primas – aSílvia –, a mais velha, morena de olhos verdes, me impressionava muito e prolongavaas visitas para ficar mais tempo a seu lado. . . Perdi-a, depois, completamente de vista,sabendo apenas que teriam se mudado para São Paulo, em caráter definitivo.

A tia mais moça, a tia Zulmira, depois casada com um primo que viera dePortugal – o Diamantino –, radicou-se no Rio de Janeiro.

• • •

Eu já estivera durante um período curto de férias escolares em casa de meusavós, em Barra Mansa.

Lembrava-me perfeitamente da "loja" ou salão de barbeiro, ampla, situadana esquina da rua principal, creio que Francisco Leite, com a transversal que partin-do da estação da Estrada de Ferro, se prolongava até a parte alta da cidade. Aatmosfera característica da loja, impregnada dos odores das perfumarias utiliza-das, por muito tempo permaneceu em minha memória visual e olfativa. Os vidrosdas "loções" alinhados nas pequenas prateleiras de vidro, em que sobressaíam osperfumes franceses em moda – Roger et Gallet, o instrumental arrumado em or-dem, os grandes espelhos, as cadeiras enfileiradas de um e de outro lado do salão,a pia de mármore ao fundo...

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Meu avô, alto, claro, quase vermelhão, trincando sempre seu inseparávelcharuto, falava em resmungos, como que sempre expressando um mau humor,talvez fictício, ou talvez real, na medida em que amargava as recordações da terranatal naquela cidadezinha do interior brasileiro, numa possível total decepção coma realidade do "eldorado" com quem lhe acenara o amigo que o induzira a deixarsua pátria. No fundo era, porém, uma alma boa, como provava seu devotamento àfamília, aos filhos, e o que fizera por meu pai, de quem, parece, muito se orgulhavapelos progressos que fizera na cultura e no padrão de vida. Com ele, no salão deBarra Mansa, trabalhavam dois dos meus tios, o Albano e o Veríssimo, e também osobrinho recém-chegado de Portugal e depois genro – o Diamantino. O mais velho– o Adelino, o "Linó", como era apelidado –, já encontrei com uma loja própria,situada num dos extremos da cidade. O Veríssimo veio depois para o Rio de Janeiro,onde viveu algum tempo, falecendo depois atacado de tuberculose pulmonar. Erauma pessoa muito sensível, sempre voltado para coisas ternas, servindo-nos de boacompanhia e namoricando a sobrinha, minha irmã Palma.

A casa de moradia de meus avós ficava em continuação à loja, na rua trans-versal que partia da estação da Estrada de Ferro, à beira na rua, com porta e janela,como era hábito na época. Minha avó, sempre afável, servia-nos ao café uns boli-nhos de fubá de milho e biscoitos de polvilho, que ela mesma preparava, e cujalembrança e paladar me acompanharam por muito tempo.

Nessa primeira estada em Barra Mansa, fez-me companhia a minha primaEster, filha mais velha da tia Deolinda, e cuja convivência era muito agradável paramim, principalmente em encontros furtivos, lá pelos fundos da casa, local que reve-jo, cheio de móveis velhos, gaiolas e ratoeiras, e por onde passavam roedores emgrande número, mas nossa adolescência não prestava muito atenção a essas coisas.

Pouco mais me lembro dessa primeira viagem, a não ser a ida a um circo,que aparecera na cidade e que, como se sabe, constituía, com as festas religiosas, omaior espetáculo dessas povoações do interior, para as crianças e adultos, com seuspalhaços, suas acrobacias e alguns animais exóticos.

• • •

Minha mãe não passava bem de saúde na Rua Joaquim Méier. Partos conti-nuados, dos quais dois, segundo me lembro, resultaram em insucessos e outros namorte do recém-nascido; e creio que também uma flebite que a atacou durantemuitos anos fê-la ficar por longo tempo presa ao leito.

Estávamos no ano de 1916, em plena guerra mundial, portanto, quando secomeçou a falar na necessidade da mudança de clima e na insistência de meus avóspara que fôssemos passar algum tempo em Barra Mansa. O fato é que, apesar detodas as dificuldades de uma viagem dessas para uma família numerosa e da im-possibilidade de meu pai permanecer fora do Rio de Janeiro por longo período, poisnão poderia abandonar a clínica que crescia cada vez mais e era a nossa únicafonte de renda, a viagem foi afinal resolvida.

Parti na frente, em companhia de meu tio Albano, que viera ao Rio de Janeiropara nos ajudar na mudança, e empreendemos a viagem. Lembro-me perfeitamente

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da subida da Serra do Mar, onde Paulo de Frontin, então diretor da EFCB., em meiodas maiores dificuldades, promovia enormes obras de alargamento para a duplicaçãodas linhas até a Barra do Piraí, para facilitar o acesso ao interior do País, e o transpor-te de mercadorias para o porto do Rio de Janeiro, pois as ligações marítimas estavamseriamente ameaçadas pelos ataques dos alemães aos nossos navios.

Passávamos assim, em meio a fumaça, carvão e fuligem, por entre compli-cados andaimes e escoramentos, dentro dos túneis, que nos assustavam bastante,mas que até então não tinham causado qualquer acidente de monta.

O frio intenso, o ar leve da serra nos trechos livres e aquele sentimento delibertação da rotina diária que levava no Rio de Janeiro, ao menos por algum tem-po, dava-me uma sensação de euforia, dificilmente exprimível em palavras.

Tratava-se agora de conseguir uma casa para instalação de toda a famíliapara uma permanência prolongada, e ela foi encontrada num extremo da rua princi-pal da cidade, fazendo esquina juntamente com o início da estrada de rodagem queconduzia ao interior do município, atravessando grandes fazendas de gado e café.

Por ela passavam freqüentemente os carros de bois, que se anunciavam peloestridente chiado típico, resultante do atrito das rodas com o eixo, e que, nos diasde chuva, se atolavam nos lamaçais que se formavam logo à saída da cidade, exa-tamente ao lado de nossa casa. Também por ali eram conduzidas pelos vaqueiros etangidas aos gritos característicos, manadas de gado. Muitas vezes, entre curiosos eencabulados, apreciávamos os touros, com seus enormes órgãos sexuais em riste,tentar cobrir as fêmeas, sem qualquer contemplação pela nossa suposta inocênciade crianças, criadas em ambiente urbano e austero...

Dormi, ou melhor, pernoitei, pois o sono não veio até a madrugada, nessanova residência em companhia do tio Diamantino, que já trabalhava com meu avô.Esse tio era um tipo curioso, muito religioso, com sotaque português acentuado,que se trajava de luto na Semana Santa e reclamava até dos apitos dos trens quenão respeitavam assim a morte do Senhor no dia de sua Paixão... Uma boa alma,porém, que se fez nosso amigo e nos entretinha contando casos de sua terra natal.

Em pouco tempo, estávamos todos instalados nessa casa, meu pai viajandotoda semana para o Rio, para trabalhar, sofrendo de um grave abscesso dentário,que durante muitos meses inchou-lhe o rosto, confirmando o velho ditado que "emcasa de ferreiro, espeto de pau".

A perspectiva de uma permanência longa deveria nos levar a não interromperos estudos e assim é que fomos matriculados no Grupo Escolar local, denominado"Fagundes Varela", situado num casarão na esquina da praça principal da cidade,onde também se erguia a igreja matriz. Dirigia-o o professor Felinto Elísio. Éramosentão três irmãos – a Palma, eu e o "Tonico", pois o Virgílio já concluíra o cursoprimário e estudava os "preparatórios" para ingressar no curso de odontologia daFaculdade de Medicina, pois seu caminho já estava traçado, seguindo as pegadas demeu pai.

Estudantes do Rio de Janeiro que éramos, tínhamos orgulho dessa condi-ção e olhávamos com certa sobranceria aquele colégio do interior. Entretanto,era muito bem organizado e nada ficava a dever às escolas da capital. Recordo-me bem que, para nos classificar e nos colocar nas classes em que deveríamos

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estudar durante esses meses, o próprio diretor nos submeteu a uma prova, queconstou de um trabalho escrito livre, versando sobre a Independência do Brasil.

Pouco me lembro do ambiente escolar propriamente dito, e do que apren-demos de novo em suas aulas. Sobressai, entretanto, em minha memória, a figurade uma de nossas professoras – a dona Cora – ainda bem jovem e que viria a serminha subordinada muitos anos mais tarde – tais as voltas que o mundo dá emnossas vidas –, quando pelos anos de 1933-1936 exerci o cargo de inspetor deensino do Estado do Rio de Janeiro e participei de cursos de aperfeiçoamento paraprofessores do Estado, aos quais, alguns deles segundo suponho, minha antigaprofessorinha talvez tenha assistido.

Além disso, ficou bem marcada em minhas recordações a grande festa doencerramento do ano letivo, com representações no palco do cinema-teatro local,mas da qual não participei diretamente, pois não consegui me desempenhar donúmero que me coubera, para ser declamado em palco aberto: minha timidez eencabulação não permitiram.

Mas foi aí em Barra Mansa que perdi minha inocência: dois rapazolas, cole-gas no Grupo Escolar aos quais muito me liguei, tiveram um papel decisivo emminha iniciação nos segredos do sexo e da reprodução, que antes apenas vinhatentando descobrir.

Eram filhos de uma família que possuía uma propriedade rural de certaimportância nos arredores da cidade, mas ainda dentro do perímetro urbano. Man-tinham entre outras, uma criação de porcos. Pois bem, um dos dois endiabradosrapazes, cinicamente, explicou-me certa vez, com todos os detalhes, como se en-tregava a relações sexuais com as leitoas, e em seguida mostrou conhecer todo omecanismo da reprodução animal e humana, que me transmitiu sem qualquercircunlóquio.

Para mim, menino de 11-12 anos, criado na cidade, em ambiente quasepuritano, com muito pouco contato com a natureza, com os animais, essas reve-lações teriam evidentemente que chocar profundamente, produzindo-me umasensação de desconforto, em que misturava o ato da reprodução entre os sereshumanos com aquela sordidez de um chiqueiro, onde o garoto, meu instrutor,perseguia, como um pequeno fauno, as porcas, aliviando-se das inquietações epremências sexuais da adolescência, que explodiam.

De repente, toda a luz se fazia para mim em torno de minhas próprias sen-sações, do fenômeno da ereção, das poluções noturnas, da masturbação. Mas aforma pela qual essas revelações foram feitas produziam provavelmente traumas,que, de certa forma, dificultaram ou complicaram minha mais perfeita adaptação edesempenho dessa função básica da vida.

Não sou dos que aceitam sem discussão um freudismo "vulgar", mas não sepode deixar de concordar que o grande sábio de Viena, na verdade, trouxe para apsicologia uma nomenclatura fortemente expressiva para uma série de fenômenosda vida humana, que sempre se procurou encobrir, com prejuízo para um desenvolvi-mento normal dos seres, especialmente a partir da adolescência. Como tantos outrosjovens tive que "recalcar" os conhecimentos que acabava de obter por essa maneira,digamos assim, tão "impudica", pois era impossível discuti-los abertamente por faltade interlocutores capazes, que me tirassem dúvidas e perplexidades.

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O problema, porém, que maiores dificuldades trazia era, sem dúvida, o deter que admitir que nossos pais também se entregavam a essas práticas "sórdidas",e não éramos nós, nada mais, nada menos, que produtos delas. Não podíamos aindacompreender, é claro, que, como afirma Maurice Gleodias em Encounter:

[...] quase todos os seres nasciam de um ato de luxúria pouco romântico, que a espécie aindacontinuava a propagar-se através da luxúria, e que quase todos os seres humanos viviam tãopreocupados com o sexo quanto com a comida e o sono; no entanto, embora o sexo fossefundamental para a vida de cada indivíduo, sua prática se tornava complicada e sua imagemdistorcida pela hipocrisia convencional.

Não podia saber, a esse tempo, que todo o edifício da psicologia, ao menosfreudiana, se baseia na teoria da "repressão", que

[...] o desejo de felicidade do homem está em conflito com o mundo todo. A realidade impõeaos seres humanos a necessidade de renunciar prazeres. O princípio do prazer está em confli-to com o princípio da realidade e esse conflito é a causa da repressão. (Norman O. Brown, emVida contra a morte).

Paschoal Lemme, na conclusão docurso primário, como primeiroaluno da turma, aos 11 anos.Escola Visconde de Cairu, Rio deJaneiro, dezembro de 1915.

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E ainda: "A sociedade impõe a repressão e esta causa a neurose da humanidade".

• • •

De Barra Mansa, porém, ficaram recordações que ainda hoje me causam umcerto sentimento de nostalgia. O ambiente rural sempre exerceu sobre mim umaatração muito forte, dando-me uma sensação de libertação, por isso não sendo deestranhar que, por várias vezes na vida, quando as situações se faziam mais difíceis,fosse assaltado pelo desejo de abandonar tudo e fugir para a roça...

As manhãs de sol, o ar leve e perfumado, os passeios a cavalo, aquele cheirocaracterístico do gado, as estradas empoeiradas, as árvores floridas, o gorjeio dospássaros, os canaviais, as laranjeiras em flor, os cafezais, as porteiras, a faina dasfazendas que visitava, causavam-me uma impressão de euforia interna, sensual,indizível ao menino criado na cidade, num subúrbio, é bem verdade, ainda commuitos aspectos quase rurais, mas que já não tinha os encantos daquela vida dointerior...

Somente em Júlio Ribeiro, em A carne, seu discutido romance naturalista,dedicado a Zola, "o príncipe do naturalismo", encontrei mais tarde essa tentativade sintonizar o "sensualismo" da natureza com os sentimentos humanos, numquadro em que se deveria excitar e expandir as manifestações eróticas, ainda maldefinidas, da heroína do livro. Não resisto ao impulso de transcrever aqui um dostrechos mais expressivos, e para mim, mais belos do livro, nessa tentativa demesclar a natureza com os sentimentos humanos:

[...] ia adiantada a primavera.A flora tropical rejuvenescera na muda de todos os anos: os gomos, os brotos, a fronte nova

rebentara pujante, aqui de um verde-claro deslavado, veludoso, muito tenro; ali, lustrosa, vidrenta,cor de ferrugem; além, rubra. Depois, tudo isso se expandira, se robustecera, se consolidara, emuma verdura forte, sadia, vivaz.

A natureza mudara de toilette, e entrara no período dos amores.Irrompida a florescência com todo o seu luxo de formas, com toda a sua prodigalidade de

matizes, com todo o seu esbanjamento de perfumes...A lascívia da flora se vinha juntar o furor erótico da fauna.Por toda a parte ouviam-se gorjeios e assobios, uivos e bramidos de amor. Era o trilar do

inambu, o piar do macuco, o berrar do serelepe, o rebramar do veado, o miar plangente, quasehumano dos felinos...

O ar como que era cortado de relâmpagos sensuais, sentiam-se passar bufadas de tépidavolúpia...

• • •

A estação da Estrada de Ferro Oeste de Minas (depois Rede Mineira de Via-ção) ficava ao lado da que servia aos trens da Central do Brasil e era o ponto finaldo ramal que vinha do Estado de Minas Gerais. Diariamente, nela era descarregadagrande quantidade de latões de leite, abundante na época. O cheiro muito ativo doleite, que freqüentemente se derramava no piso da estação, ainda hoje parece atin-gir meu olfato.

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Atravessando-se o leito da Estrada de Ferro Central do Brasil e da Oeste deMinas chegava-se ao jardim da cidade, com imensas árvores seculares, com cujostroncos nodosos as preguiças nos espantavam, aqueles esquisitos animais que subi-am lentamente galho acima ou ficavam paradas horas seguidas, sem qualquermovimento. Caminhando-se um pouco mais, chegava-se às margens do Rio Paraíba.Por uma ponte de ferro, atravessava-se para a outra margem, ainda muito agreste,com poucas habitações humanas.

O Rio Paraíba deslizava majestoso, com sua magia, seus mistérios, suas len-das, suas cheias que traziam as águas até as ruas da cidade e aos fundos dos quin-tais. Com ele misturava-se a história do suicídio da irmã de uma de nossas tias,mulher de meu tio Albano. Contava-se que toda a família dela seria atraída, maiscedo ou mais tarde, para essa morte trágica no rio. Por estranho que pareça, essaminha tia, depois de muitos anos atacada de doença mental e de uma estada emSão Paulo, onde se dizia que ficara completamente recuperada, um dia, voltando aBarra Mansa, teve o mesmo destino da irmã: as águas do Paraíba, atraíram-na,tragando-a para sempre...

Como era de se esperar, em meio a toda essa euforia e de expansão deconhecimentos, mais uma grande paixão deveria encher os meus dias de estadaem Barra Mansa. A heroína agora era uma colega de escola, filha de uma famíliaimportante da cidade, que aliás, sofreu mais tarde, grande revés financeiro. Dis-tante, inacessível, creio que não prestava a melhor atenção àqueles amores doadolescente encabulado do Rio de Janeiro, de cara espinhenta, curtindo em silên-cio, as penas daquela paixão não correspondida...

A permanência em Barra Mansa estava a terminar. Minha mãe melhorara. E,um belo dia, voltou-se àquela rotina da Rua Joaquim Méier, onde ela continuava anos brindar cada ano com um novo irmão. Para a chegada dos últimos, já eu mes-mo era convocado para ir buscar a parteira. Não podia desconfiar que meu pai jávivia, de certa forma, escabriado com aquela proliferação assim tão continuada denovos herdeiros e isso poderia vir a ter conseqüências...

Retomei os estudos. Em breve minha vida, ou melhor, minha carreira pro-fissional iria definir-se. Meu pai perderia a parada na insistência de fazer-meempunhar os boticões. Venceria a influência do professor Teófilo.

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A ESCOLA NORMALCAPÍ

TULO

VII

Meu pai, muito naturalmente, procurava enca-minhar os filhos para a profissão em que vinha obtendosucesso e na qual poderia orientá-los e oferecer-lhescampo para a prática imediata e, mais tarde, fazê-lossucessores naturais de sua clientela, já bastante extensae rendosa.

Assim é que, sem muita consideração por nossaspreferências, conforme já referi, nos obrigava a servir deauxiliares em seu consultório, devendo ali permanecertodas as horas não destinadas aos estudos. Pela manhã,quando iniciava o trabalho diário, já deveria encontrartudo limpo e arrumado no gabinete dentário. O ambien-te em casa era também de molde a nos induzir a adotaresse caminho: as conversas durante as refeições, em quenos reuníamos em torno da grande mesa na sala de jan-tar, giravam quase sempre em torno de casos da artedentária, de extrações difíceis, em que meu pai se consi-derava um mestre; em demonstrações de coragem ou demedo dos clientes, que eram comuns em face das técnicase métodos ainda não muito avançados da especialidade;os trabalhos de prótese, de técnica complicada, artesanal;a compra do material dentário, etc. Meu irmão mais ve-lho – o Virgílio – já adotara, em definitivo, o caminho daodontologia e dos trabalhos de prótese dentária: comple-tava os preparatórios exigidos para a matrícula no cursosuperior e já ensaiava os primeiros passos no atendimen-to aos pacientes.

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Eu, porém, resistia a todo esse cerco, apesar de não me ter ainda definidopor outra qualquer alternativa. Não tolerava aquela permanência forçada no con-sultório, aquele cheiro ativo de creosoto, usado no tratamento de canais, e escapulia,sempre que podia, para fugir à imposição paterna.

Entretanto, ia completando também os estudos básicos necessários para amatrícula no curso superior de odontologia, da Escola de Medicina, à falta deoutra orientação mais definida. O decreto do governo, que passou a ser conheci-do como o da "gripe espanhola", e que considerava aprovados nos chamadosexames de "preparatórios" os que simplesmente se inscreviam no Colégio Pedro IIe nos estabelecimentos credenciados pelo governo, me deu a oportunidade, para,sem qualquer esforço, preencher aquela exigência, pois permitiu a obtenção doscertificados dos exames que me faltavam e que eram: geografia, história, ciênci-as físicas e naturais e francês.

Mas, mesmo assim, nada resolvi, continuando a resistir.Terminado o curso primário e complementar, com esses certificados e sem

solução, meus pais pensaram em arranjar-me um emprego, talvez em escritório, epara isso foram mobilizados os amigos. Depois, cheguei mesmo a prestar concursopara o Banco do Brasil.

A idéia, porém, não me agradava, causando-me mesmo um certo sentimen-to de frustração, pois o "Tonico", o irmão mais moço, já se encaminhava tambémpara fazer o curso superior, seguindo as pegadas de meu pai, e eu ficaria, em infe-rioridade, apenas com um "emprego".

Afinal, certo dia, meu pai, à vista do meu desapontamento e da minhairresolução, mal podendo sopitar sua irritação, fez-me aquela interrogação decisi-va, obtendo resposta dramática e resoluta que o deixou um tanto desarvorado pelafirmeza e o inusitado da situação, pois não estava acostumado a esses "gritos deindependência" partidos especialmente dos filhos:

– Se não for professor, não serei mais nada!...A influência do mestre Teófilo triunfava sobre o cerco e as pressões de casa...

• • •

Meu pai, evidentemente desconcertado, pois não tinha qualquer idéia decomo se fazia de um filho um professor, resolveu afinal procurar o professor Teófilopara com ele se aconselhar.

Lembro-me muito bem do encontro dos dois homens, único que tiveramdurante os longos anos em que freqüentamos a Escola Cairu: foi na sala da frente,no rés do chão do prédio da escola na Rua Dias da Cruz, e onde eu tinha sidoincluído numa turma que o professor Teófilo preparava exatamente para o examede admissão à Escola Normal...

Não recebia por essas aulas particulares extraordinárias qualquer remunera-ção, ao menos de minha parte, e nunca soube de qualquer combinação que meu paiteria tido com ele a respeito. Era uma espécie de prêmio que retirava de seu descansoe de sua dedicação e que conferia aos alunos, que, segundo seu critério, melhorcorrespondiam ao interesse com que se entregava ao ensino. E assim, continuei a mepreparar para o ingresso na Escola Normal.

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• • •

Naqueles anos de 1918-1919, a "gripe espanhola", que serviu de pretextopara a lei dos "exames por decreto", iria também facilitar a admissão ao curso daantiga Escola Normal do Distrito Federal. Realizados os exames em princípios de1919, nos quais fui classificado com média baixa, foi permitida, em seguida, amatrícula dos que não atingiram o mínimo de "pontos" exigidos; mas a liberalidadeda administração não ficou por aí, pois acabou por autorizar o ingresso na escolade todos os candidatos que tivessem apenas se inscrito nos exames e mesmo os queforam reprovados, desde que o requeressem e provassem haverem concluído o cur-so primário.

Era então prefeito do antigo Distrito Federal Paulo de Frontin, engenheironotável, com grandes serviços já prestados ao País, mas também político que corte-java o eleitorado pelos métodos usuais na época. Além disso, havia um certo ambi-ente geral de consternação, provocado pelo impacto que causara o terrível surtoda doença, que assolara praticamente o mundo inteiro, dizia-se como uma dasconseqüências da tenebrosa carnificina de que a humanidade mal acabava de sair –a Primeira Grande Guerra Mundial.

Em conseqüência dessas medidas, o velho casarão do Largo do Estácio, ondefuncionava então a Escola Normal, encheu-se de repente com cerca de três milha-res de novos alunos, a maioria, naturalmente, constituída de elementos do sexofeminino, que sempre predominaram no magistério primário: a matrícula que forade 889 alunos, em 1918, subiu para 2.950, em 1919.

Um certo número de rapazes, porém, ingressou nesse ano e eu me achavaincluído nesse pequeno grupo, com pouco mais de 14 anos, ao se iniciar o anoletivo de 1919. Era então diretor e professor Inácio de Azevedo Amaral, depoiscatedrático de cálculo da antiga Escola Politécnica, onde foi meu professor, e porfim reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

O curso era de nível secundário, com a extensão de cinco anos (reduzida,em 1920, para quatro anos) e o currículo semelhante ao de um ginásio da época,incluindo algumas matérias de caráter profissional no último ano: pedagogia,psicologia, higiene escolar.

Escola tradicional e única no Rio de Janeiro, fora fundada por BenjaminConstant em 1875 e equiparava-se em importância aos outros dois colégios denível médio: o Colégio Pedro II e o Colégio Militar. A maioria de seus professorespertencia também aos corpos docentes daqueles dois colégios e também da EscolaPolitécnica ou da Escola de Medicina. Figuravam, entre eles, os nomes mais repre-sentativos do magistério da época, secundário e superior.

O afluxo inusitado de alunos fez com que a administração fosse obrigada arecrutar um grande número de novos professores – os chamados docentes – por meiode provas internas ou até mesmo sem qualquer exigência, além do simplesapadrinhamento político. O ensino teria assim que sofrer o efeito dessas circunstâncias,sendo por isso muito desigual para a mesma matéria, nas várias e numerosas turmas emque teve que ser dividido o corpo de alunos em cada ano do curso: a qualidade doensino dependia naturalmente da competência, da dedicação e do preparo de cadaprofessor.

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Perdido naquele burburinho, e, por que não dizer, muitas vezes enfrentandogrande desorganização, freqüentei sem grande brilho as aulas e as provas parciaise finais, sem entretanto repetir nenhum ano. De outro lado, porém, completava aslacunas do preparo nas matérias para as quais havia obtido certificados dos examesde preparatórios pelo "decreto da gripe", sem as ter realmente estudado, tais comoas ciências físicas e naturais e o francês, dando-me uma base com que pude arcarcom as responsabilidades de quase toda a minha carreira profissional posterior.

Foi, além disso, um período de vida intensa, em que a escola tornou-se cen-tro de minhas preocupações, dando-me bastante independência, pois em casa erapouco comum se indagar sobre o que eu andava fazendo. Eu me tornara umaespécie de "ovelha negra" pois repudiara o destino traçado pelos boticões...

Assim, as minhas mais intensas recordações dessa época deveriam se referirprimordialmente à vida escolar, que era por assim dizer, toda a minha vida: dosestudos, como dos amores, da vida intelectual, sentimental, emocional.

Tive a sorte de contar, entre os professores, com algumas figuras das maisnotáveis do magistério e da inteligência brasileira da época. Em português e litera-tura, Alfredo Gomes, cujo nome se fizera célebre com seu colégio; Júlio Nogueira,eminente professor e especialmente Álvaro Ferdinando de Souza Silveira. Minhaapreciação por este último, grande mestre da língua, era enorme e, talvez por isso,tivesse sido aclamado pelos colegas da turma como orador para saudá-lo quandonos despedimos da escola. Guardo ainda as laudas com que, no estilo de adolescen-tes que ainda éramos, me desincumbi da tarefa. Souza Silveira tinha a particulari-dade de ser formado em engenharia e, como observa Adriano Kury comentandosua obra, a esse fato se deve "certamente grande parte do rigor científico semprepresente na obra do professor Souza Silveira e que dele fez o maior representantedos neogramáticos entre nós". Faleceu no dia 5 de setembro de 1967, deixando-nosvárias obras importantes e entre elas, as Lições de português. Lembro-me que medispensava uma atenção especial em aula, pela minha relativa facilidade emdestrinchar a terrível ordem indireta de Os Lusíadas, em que me iniciara o profes-sor Teófilo. Em matemática, fomos alunos do austero Francisco Cabrita, tambémprofessor na Escola Politécnica. Carlos Werneck, Roquete Pinto, Pedro Galvão, AdemarCosta, em ciências físicas e naturais. Carlos Porto Carneiro e Rocha Pombo, emhistória geral e do Brasil; Honório de Souza Silvestre, em geografia. E outros que, senão foram meus professores diretamente influenciavam o ambiente, e, de seuscursos, tínhamos notícias por troca de informações com os colegas: Osório DuqueEstrada, Nestor Victor, Afrânio Peixoto, J. P. Fontenele, Hemetério dos Santos.

Alguns incidentes dessa época quebraram a regularidade das aulas e produ-ziram impactos variados que, por assim dizer, enriqueceram a secura da rotina dasaulas. Assim foi a revolta, principalmente dos rapazes, contra a nomeação de EsterPedreira de Melo para diretora da escola, a primeira mulher a ascender a essaposição, apesar de ser professora de renome e também uma das primeiras a ocuparo cargo de inspetora escolar.

Acontecimento notável foi também a visita de Júlio Dantas, o grandepoeta português, que tão bem conhecíamos através de seus sonetos e, especial-mente, do poema A ceia dos cardeais, que muitos de nós sabíamos de cor.

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Lembro-me, entretanto, da decepção que nos causou com seu carregado sota-que lusitano, ao iniciar sua saudação de agradecimento às homenagens querecebeu na escola.

Mas, além da freqüência às aulas, havia os círculos que formávamos com oscolegas com quem mais nos identificávamos; os livros didáticos de que nos servía-mos, dos melhores disponíveis na época, e por onde estudávamos as matérias, porextenso, sem "sebentas" ou apostilas: a álgebra de Serrasqueiro, a história geral deRaposo Botelho; as discussões e as competições de conhecimentos, assim direta elivremente hauridos dos livros eram outros tantos motivos de estímulo e progressonos estudos.

Fundávamos jornaizinhos escolares em que apareciam nossas primeiras pro-duções literárias, em prosa e verso. Trocávamos impressões de leituras de todos osgêneros, desde os versos melosos de um Casimiro de Abreu ou dos sonetos de OlavoBilac e da prosa derramada de um Coelho Neto, até as elucubrações sociais, políti-cas ou filosóficas de um Gomes Ribeiro, de um Albino Forjaz Sampaio ou de umSchopenhauer, muito em voga na época.

O grupo dos rapazes, onde predominava a média de idade crítica que era ada plena adolescência, incluía, entretanto, alguns elementos mais velhos que játrabalhavam, vários até já com encargos de família e experiência própria nos pro-blemas da vida adulta.

Era o período da complementação da iniciação sexual, da "descoberta damulher" e, naturalmente, esse problema constituía uma das preocupações marcantesentre nós. Acrescia que aquele contato com mais de dois milhares de jovens deoutro sexo, de todas as procedências e tipos de educação, com a familiaridade e aproximidade física que se estabelecia diariamente, nas salas de aula, nos própriosbancos escolares, nos recreios, exacerbava ainda mais as manifestações dessa natu-reza; criava um ambiente da atividade ruidosa e descuidada de namoros, amores,paixões intensas, intrigas amorosas, brigas, ciumadas e reconciliações, trocas dejuras através de versos e encontros reais. Enfim, Cupido e Eros comandavam vitori-osos, às vezes brincalhões, outras vezes dramáticos, as vidas exuberantes de todaaquela juventude em plena expansão.

São do cardeal polonês Karol Wojtyla, bispo de Cracóvia, eleito papa emoutubro de 1978, com o nome de João Paulo II, essas palavras de seu livro Amor eresponsabilidade, publicado em polonês, em 1962:

No contato direto da mulher e do homem, uma experiência sensorial sempre ocorre nasduas pessoas. Cada uma delas é corpo, e, como tal, provoca uma reação dos sentimentos, fazen-do nascer uma impressão acompanhada, freqüentemente, de uma emoção. A razão é que, pornatureza, a mulher representa para o homem e o homem para a mulher, um valor que se associafacilmente à impressão sensorial cuja fonte é a pessoa do sexo oposto. Essa facilidade com aqual emoções nascem ao contato das pessoas do sexo oposto, está ligada à tendência sexualprópria do ser humano como sua energia natural.

Alguns rapazes já estavam completamente iniciados nas práticas do chama-do "amor carnal", do sexo; outros, ensaiavam suas experiências, procurando infor-mações com que pudessem vencer as dúvidas ainda existentes, que assaltavam os

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mais tímidos ou reprimidos pelos preconceitos e restrições da educação familiar.Eu me incluía entre estes últimos, pois me repugnava esse contato mercenário,que me parecia macular um sentimento que a imaginação juvenil e poética idea-lizava; "amor", atração pelo outro sexo, deveria corresponder a alguma coisa de"sublime", de "puro", que não se coadunava com a descrição que os já iniciadosfaziam de seus encontros com as mulheres da "zona", como dizíamos então, ondesatisfaziam as premências de suas glândulas exacerbadas, pelas descargas doshormônios. Éramos levados em passagens furtivas por aquelas ruas, onde apreci-ávamos eletrizados a nudez daquelas mulheres, as chamadas "francesas", mas narealidade "polacas", com seus enormes seios e coxas à mostra, a nos fazer sinaisamistosos e que nos atendiam, quase maternalmente, com a compreensão que àsvezes tinham do verdadeiro privilégio com que faziam a iniciação daqueles biso-nhos rapazes nos segredos do sexo, exercendo com invulgar dignidade a chama-da "mais antiga das profissões do mundo".

Após a primeira grande guerra, prostitutas européias notadamente francesas e alemãs,premidas pela vida difícil, emigraram em massa e centenas vieram parar no Brasil e, nas cidadesmaiores, começaram a exercer a profissão em regime de esforço concentrado. [...] Com essasestrangeiras, vulgarmente chamadas "polacas", iniciou então o homem brasileiro uma espéciede aprendizado de certas técnicas na arte do amor. [...] Depois do segundo conflito, na décadade 40-50, o fenômeno se repetiu: nova onda de prostitutas, pelo mesmo motivo, anterior, aquiaportou.

Minha repugnância, entretanto, continuava invencível e se acrescentava aela o medo terrível das doenças venéreas, em torno das quais se fazia grande alardeentre os jovens, pelo tratamento penoso e incerto, e cercado de verdadeiro ambi-ente de segredo e de vergonha, quando por má sorte chegava a ser contraída.

A "repressão" produzia seus efeitos, pois como observa Norman O. Brown:

Por dois mil anos ou mais, o homem tem se submetido a um esforço sistemático paratransformar-se num animal ascético. A disciplina doméstica, a condenação religiosa do prazerdo corpo e da exaltação filosófica da vida da razão, tem feito dele um homem dócil, na aparên-cia, mas secretamente não persuadido em seu inconsciente.

E os derivativos, a "sublimação" era procurada em todas aquelas atividadesde caráter intelectual, na imaginação de paixões platônicas idealizadas, em derra-mamentos em prosa e verso, nas dedicatórias às "deusas da minha turma", que nosfaziam sofrer com terríveis mágoas de amor não correspondido... Era essa a tônicade nossas produções literárias e eu concorri com muitas delas para nossas tertúliase colaboração em períodos de vida efêmera que fundávamos.

Tínhamos, porém, entre nós, poetas e artistas verdadeiros: Moacir deAlmeida, desaparecido prematuramente, autor dos Gritos bárbaros, livro póstu-mo de versos, era um deles. Foi meu colega e amigo, e saíamos em tertúlias inter-mináveis, a pé, muitas vezes do largo do Estácio até o largo da Lapa, próximo doqual a família de Américo Pereira, outro colega e amigo, poeta e músico de valor,tinha uma loja de comércio de móveis. Deste último é um artigo que publicamosem O Normalista, jornal que apareceu em 1921, fundado por nós para defender

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os interesses daqueles que como nós "nos destinamos ao sacerdócio de ensino daCapital de nossa Pátria" (sic), conforme se lia no editorial do primeiro número.

Fazia Américo Pereira a defesa dos artistas, tão maltratados em nossa terra,enaltecia Moacir de Almeida que, "com apenas 18 anos", dizia ele, "é um poeta degrande talento e que vasa suas produções em forma pura, capaz de resistir à críticamais severa. É um apóstolo fervoroso do humanismo socialista (sic), como foi oimortal cantor da cachoeira de Paulo Afonso – Castro Alves".

E transcreve um soneto do grande poeta, como fecho de seu trabalho, gê-nero literário muito em voga na época, especialmente por influência de Olavo Bilac:

Amargura

Ah! Não ser compreendido é a tortura do Artista!Ofegante, rompendo os joelhos pelas fragas,Vê debalde servir nas nuvens de ametista,A miragem do ideal, entre as estrelas magas.

Arqueja; o vendaval de angústias o contrista,Vem-lhe dos olhos sangrar em tristezas presagas,Ergue a vista: o céu tão longe! Baixa a vista:– Tão longe os corações a rolar como vagas!

Ele que tem o azul preso no crânio aflito,Abre em astros de sangue a noite dos abrolhos,Ergue constelações de rima no infinito...

Soluça na aflição do deserto profundo,– tendo os astros no olhar e a noite sobre os olhos,tendo os mundos nas mãos sem nada ter no Mundo!

Vejo, ainda hoje, Moacir de Almeida, muito magro, aspecto doentio, sempreexuberante em sua gesticulação, chamando-me fraternalmente de "filho ded'Annunzio", que ele admirava, por causa de minha ascendência italiana. Quasenão comia, sempre exaltado, febril: a tuberculose levou-a à morte prematura noestilo de Álvares de Azevedo ou Noel Rosa... Nasceu a 22 de abril de 1902 e foisepultado a 1º de maio de 1925, com 23 anos apenas.

Agripino Grieco, sempre tão rigoroso e mordaz em suas críticas, dá-nos,porém, de Moacir de Almeida, estas impressões, que coincidem bem com as queguardo dele:

Recitando, Moacir de Almeida tinha a voz meio cava, dolente, velada, como vindo de umacripta distante, mas a beleza das coisas que celebrava conseguia embelezá-lo, e ele, que eramagro como um asceta, comprido, deselegante, sem saúde, sem graça pessoal, sem eloqüênciana conversação, transfigurava-se e prendia quem quer que o ouvisse, na trama de ouro das suasrimas. Sua face lanhada, torturada, de zigomas salientes, como que se iluminava à radiaçãoverbal do seu sonho.

Américo Pereira, era outro artista muito sensível, que se dedicava especial-mente à música, cuja casa freqüentei várias vezes e onde aprendi coisas de sua arte.

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José Franco de Freitas Machado, também bom poeta e crítico rigoroso dos colegasque mandavam suas produções para o nosso jornal. Severino da Mota Maia, quedepois se formou em medicina, orador de nossa turma, meu padrinho de casamen-to, desaparecido tão prematuramente. Péricles Martins, Sílvio Cunha, Deusdedit deSouza, os irmãos Chometon, Mário Rodrigues, Tito Pádua, os mais chegados a mimentre os colegas de então.

Entre as companheiras dos bancos escolares guardo especial recordação deduas: Regina Frugoni, de origem uruguaia, que perdi completamente de vista, eRosa Meireles, irmã dos Meireles, Silo e Ilvo e Francisco, que tiveram destacadaatuação nos movimentos revolucionários em torno da figura de Luís Carlos Prestes.Rosa, encontrei muito mais tarde ligada ao major Carlos Costa Leite, também revo-lucionário da corrente de Prestes. Recordo-a, moreninha, de feições e fala acentu-adamente nortistas, sempre radical em suas manifestações, mas que muito me atraíacom suas maneiras, modestas, desataviadas.

Dos colegas, poucos ficaram exclusivamente no magistério primário: a pro-fissão já vinha tendendo para ser quase que exclusivamente do sexo feminino. Aomesmo tempo que fazíamos o curso normal, íamos completando os "exames depreparatórios" no Colégio Pedro II, e assim assegurávamos um possível prossegui-mento de estudos em cursos superiores. Alguns desses colegas seguiram a carreiramilitar, optando pela Escola de Realengo. Outros, a medicina. Eu tentei a engenha-ria, fazendo os exames vestibulares para a Escola Politécnica, em 1925.

Em 1920, a Escola Normal teve o curso reduzido para quatro anos e nossaturma, que iniciara o curso em 1919, passou a ser, oficialmente, a de 1922. Essacompressão do curso, porém, abrigou-nos ainda a continuar os estudos até o meiodo ano de 1923.

Findava assim mais uma etapa de minha vida, com o diploma que me habi-litava a exercer a profissão de professor primário da Prefeitura do antigo DistritoFederal. Tinha então apenas 18 anos.

Teríamos agora de aguardar a almejada nomeação para os quadros do ma-gistério oficial da capital da República.

Saíamos desse curso da Escola Normal com o amadurecimento trazido pelaidade, mas também produzido por um convívio rico, complexo, em que se mistura-vam estudos, conhecimentos, descobertas, contatos com mestres ilustres, competi-ções e amizades, amores ingênuos, sofridos, entremostrando plenitudes de prazeresfísicos e espirituais, que apenas entrevíamos.

Sentíamos que ganháramos alguma coisa importante na complementaçãode nossa personalidade, talvez aquela qualificação em uma profissão definida,modesta, é verdade, mas que representava, sem dúvida, uma nova fase de nossavida.

• • •

Na última metade do curso da Escola Normal, tinha havido grandes modifica-ções em minha casa. Deixáramos o casarão da Rua Joaquim Méier e, depois de umacurta passagem por um prédio da Rua Méier (hoje Pache de Faria), nos instalamos

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definitivamente à Rua Silva Rabelo, n° 11, em casa construída pelo padrinho de casa-mento de meus pais – João Afonso Ferreira – e adquirida por eles.

Dali só saí quando deixei definitivamente a família para o casamento, em1927. Desprendia-me, assim, de minhas raízes, e do Méier, para fundar um outronúcleo que deveria perpetuar a descendência dos Lemme. A lei natural se faziarespeitar e a vida prosseguia em sua marcha costumeira...

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LEITURAS E LIVROSCAPÍ

TULO

VIII

Escolas, cursos, aulas, professores, são sem dúvidaos meios especializados e, por isso, os mais eficientes parao desenvolvimento cultural dos indivíduos na civilizaçãoatual: através deles os conhecimentos são transmitidosde maneira intencional e sistemática, segundo programasdefinidos, por métodos que procuram atender, não so-mente às características das várias idades, como tambémàs notórias diferenças entre as várias pessoas e aos inte-resses de cada um na vida social.

É certo que, nos dias de hoje, os novos meios decomunicação, especialmente o rádio e a televisão, sãotambém instrumentos eficientes de aprendizagem, nãosomente de caráter geral, mas até mesmo sistemática egraduada, através de cursos programados, largamenteutilizados em todo o mundo, com a aplicação daquelesmeios de transmissão de massa. Chega-se até mesmo afalar no fim da era das escolas tradicionais, dos profes-sores, tal como os que existem ainda hoje... Computado-res, robôs fariam esse trabalho muito melhor e com maiseficiência e produtividade...

Menos sistemáticos ou mesmo totalmenteassistemáticos e de escolha mais livre, as leituras, os li-vros, o material impresso enfim, são, porém, os instru-mentos de cultura que os indivíduos continuam a utilizar,mais ou menos extensamente, conforme os estímulos querecebem no ambiente em que vivem, os meios de que dis-ponham para adquiri-los ou, às vezes, simplesmente, por

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influência de um elemento da família, do interesse de um professor ou até do exem-plo ou da predileção demonstrada por um colega ou um amigo. Há também certadose de gosto e predisposição pessoal, difícil de definir, mas que age facilitando aação daqueles outros fatores.

No meu tempo, porém, o livro ainda constituía o veículo cultural por exce-lência, que distinguia as pessoas, colocando-as na categoria especial de "intelectu-ais" e de homens de saber, os homens que tinham o trato com a palavra impressa,os escritores, os leitores inveterados. Os elementos da outra categoria, a dos "ho-mens práticos", tinham sempre a tendência a menosprezar e mesmo lastimar osoutros, aqueles que, de modo geral, pelo temperamento ou por outra qualquercircunstância, se faziam cultores, não somente da literatura mas de qualquer espé-cie das outras artes. Os artistas de modo geral, eram considerados como seres maisou menos desajustados, malandros em potencial, que fugiam do "trabalho legíti-mo", única fonte de qualificação capaz de conferir verdadeira dignidade às pesso-as. Lembre-se, por exemplo, o preconceito contra o teatro, especialmente em rela-ção aos elementos do sexo feminino que a ele resolvessem se dedicar, pois eraconsiderado atividade para gente pouco séria, senão até mesmo licenciosa.

É certo que, nos dias de hoje, esses conceitos vão se modificando bastante e,se viver da produção artística ainda é uma condição reservada a poucos, especial-mente entre nós, com exceção talvez da arte que se torna indústria – como acinematográfica – , já se vai notando a tendência para considerar a arte em geralcom o reino dos eleitos, daqueles que não se submetem ao esmagamento a que acivilização da mecanização tecnocrática vai conduzindo a humanidade.

Assim, para os corifeus da chamada "contracultura", expressão que reúnetudo o que se opõe a esse apoucamento da natureza humana pelo predomínio damáquina, da tecnocracia, a libertação está justamente na rejeição da "consciênciaobjetiva" e na valorização de tudo aquilo que a "civilização" reprimiu e que consti-tui justamente os aspectos nobres da alma humana, degradada pelo pecado origi-nal com a conseqüente "expulsão do paraíso" e a terrível sentença divinacondenatória: "Ganharás o pão com o suor do teu rosto". A redenção seria a voltada humanidade ao prazer, às artes, ao "paraíso perdido" da criatividade, ao mundonão reprimido do prazer descomprometido:

Em grande parte, infelizmente, o progresso técnico, na medida em que procura mecanizara cultura constitui uma guerra aberta ao prazer. É um esforço espantosamente perverso parademonstrar que nada, absolutamente nada, é particularmente especial, singular ou maravilho-so, pois pode ser rebaixado à condição de rotina mecanizada. Cada vez mais o espírito de não é

mais o que paira sobre a pesquisa científica avançada – o esforço de degradar, desiludir, nivelar.Será que o criativo e o lúdico embaraçam a mente científica a tal ponto que ela precisa tentara toda força degradá-los? (Theod. Roszak, em A contracultura).

E em outra passagem:

Para o tecnocrata, mais é sempre melhor. Onde quer que haja mais input e mais produção– não interessa a natureza do que entra ou do que sai: bombas, estudantes, informação, estra-das, pessoal, publicações, produtos, serviços – temos um sinal de progresso. À incompatibilidadebrutal de um ethos tão fanaticamente quantitativo com as necessidades vitais qualitativas do

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indivíduo, eis o tema dos romances de Goodman. Constituem estas histórias em que pessoastêm de 'marcar constantemente os limites' para se defenderem da tecnocracia despersonalizadae para defenderem também sua humanidade sitiada.

E as leituras e os livros, a literatura enfim, quando em nossas mãos travandoconosco um diálogo mudo, protegendo nossa "interioridade", tão perigosamenteameaçada pelo monstro asfixiante do "exterior", cada vez mais mecanizado e diri-gido, para nos reprimir, convencer e degradar, é e será sempre um dos instrumen-tos, senão a arma mais eficiente de defesa, daquilo que constitui a essência daverdadeira natureza humana. Conforme sugere Huizinga (em Homo ludens, 1950),

[...] o avanço da civilização tem reprimido o elemento lúdico na cultura; a implicação é que,desde que a atividade lúdica é a modalidade de comportamento distintivo do homem, o avançoda "civilização" [as aspas são minhas] desumanizou a cultura.

[...]A arte nos seduz na luta contra a repressão. [...] Devido à repressão decorrente da vida

civilizada, perdemos muitos prazeres primitivos que a censura desaprova. [...] Assim, a arte lutacontra a razão repressiva e o princípio da realidade no empenho de reconquistar as liberdadesperdidas. [...] Se o papel da arte é desfazer repressões, e se a civilização é fundamentalmenterepressiva, nesse sentido, a arte é subversiva.

E os censores e seus mandantes têm, parece, consciência muito clara dessefato...

Para Freud, por exemplo, a função da arte é constituir um grupo subversivo,o oposto do grupo autoritário...

[...] mas, a psicanálise deve, como Freud, invejar a capacidade dos poetas (dos artistas da lingua-gem em geral, digo eu) como esforço denodado para resguardar, do turbilhão de suas própriasemoções, as verdades mais profundas, para as quais nós outros temos de forçar o caminho,incessantemente, apalpando em meio a torturantes incertezas.

Todas essas citações, que colho em Vida contra a morte, de Norman O. Brown,visam à tentativa de mostrar ou demonstrar a significação que teve para mim, e deveter tido, em geral, para tantos outros, o fato de se penetrar nesse mundo encantadodas estórias e das leituras, dos livros e da literatura. Não como instrumento de culturasistematizada, graduada, sob medida, obrigatória, didática, enfim. De passagem, re-gistremos como é pobre, em geral, o chamado "livro didático puro", justamente por-que se institui em mais um instrumento de "repressão" do que há de espontâneo emcada um de nós, e com o qual se pretende instalar no leitor ou no estudante a cultura"depurada", dirigida... Refiro-me ao livro como meio de expressão livre, de libertaçãoexatamente dos "deveres" escolares, numa fuga da "realidade" para o mundo encan-tado do sonho, da imaginação, da fantasia.

Observem como as crianças, depois de provarem esses frutos da árvore daverdadeira "ciência da vida", dos divertimentos sem compromissos, das leiturassem objetivos definidos e produtivos, têm que ser quase arrancadas à força deseus devaneios pouco "práticos" naturalmente, para as obrigações escravizadorasde verdadeiros condenados dos "deveres escolares", sempre áridos, secos e que,

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muitas vezes, os esmagam "debaixo das rodas", como aconteceu ao herói do céle-bre romance de Hermann Hesse, pelo desprezo dos adultos pela mais íntimainterioridade dos menores, na ânsia de moldá-los, de prepará-los para uma vida"prática", de "dignidade social".

E ninguém chegou a suspeitar sequer de que a ambição cega e desregrada do pai e obárbaro massacre espiritual de alguns professores, tinham levado aquele ser frágil, desde a maistenra mocidade, ao estado atual de apatia e desinteresse. Por que tivera ele que estudar diaria-mente, até altas horas da noite, nos seus mais sensíveis e perigosos anos da adolescência? Porque lhe haviam tirado os seus coelhos, proibido de pescar e excursionar pelos campos nos diasde sol? Por que lhe haviam inculcado aquele ideal vazio e estéril de menino-sábio, até a cabeçavergar ao peso dessa extenuante e sórdida ambição? Por que não lhe haviam deixado gozar bemmerecidas férias, depois do exame oficial? (Hermann Hesse, em Debaixo das rodas).

• • •

Sem descender de uma família de intelectuais, o ambiente em que me crieinão era entretanto desestimulante. Meu pai, como vimos, desde que passei a perce-ber com mais nitidez sua presença em minha vida, estava exatamente empenhadono trato com livros, pois se preparava para ingressar num curso superior, que con-cluiu depois. Minha mãe lastimava sempre não ter tido a oportunidade de se tornarprofessora e sempre me apoiou em minha resistência aos desígnios paternos. Duasde minhas irmãs, posteriormente, seguiram a carreira do magistério, e afinal todosapreciavam muito o trato com os livros. Além disso, sofri a influência prolongada edecisiva de um professor excepcional, que tinha exatamente como uma de suasprincipais características um gosto muito acentuado pelo cultivo da língua e pelaapreciação literária.

Mas, além dessas influências, minha timidez e tendência para o isolamento,levavam-me a buscar nas leituras, no livro, e depois na literatura em geral, de certaforma, o diálogo com interlocutores silenciosos, a expansão de uma sensibilidade aflor da pele, respostas a uma série de questões que ficavam fora do âmbito daaprendizagem sistemática ou formal comum, no imenso campo dos sentimentosdas emoções e dos sentidos. Aí, grandes áreas constituíam e ainda constituem ma-téria proibida, provocadora de grandes inibições, e onde os adultos se encastelam,a maior parte das vezes por ignorância sobre a maneira de abordar esses proble-mas, mas também por insegurança, ou contidos simplesmente pelos padrões moraisou religiosos do meio a que pertencem e em que foram educados.

Por fim, na própria atividade profissional que adotei – a de professor – oinstrumento principal de trabalho é necessariamente o livro, o material impresso,de caráter técnico ou geral.

Tornei-me, por todas essas razões, um grande leitor, um grande devoradordessa espécie de alimento intelectual, de pura ficção, como recreação, ou decaráter técnico-profissional. E por fim, como o maior veículo da procura de res-postas para as indagações e das dúvidas sobre os grandes problemas que semprepreocuparam os homens, e que acentuam com o "entardecer da vida": filosóficos,econômicos, políticos, sociais, da vida e da morte.

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• • •

A iniciação, o acesso à leitura, em geral, se fazia no nível da escola primária,através dos próprios livros de leitura de classe, que, no meu tempo, incluíam entreos autores, grandes nomes da literatura nacional e estrangeira.

Desse período, guardo as mais vivas recordações daquele livro extraordiná-rio que é O coração, de Edmundo de Amícis, obra-prima de sensibilidade e queencantou muitas gerações de meninos, aqui e em todo mundo. Traduzido por JoãoRibeiro e "cuidadosamente corrigida segundo a 854ª edição (!) italiana", impressoem papel barato, de jornal, e editado pela Livraria Francisco Alves, de apresentação,portanto, mais do que modesta. Neles, defrontávamos com aquelas cenas tão sin-gelas da vida escolar, retratando exatamente as situações que nos eram familiares,com professores, alguns dedicados até os extremos de sacrifícios e bondade, outrosamargos, carregando seus problemas íntimos, como homens ou mulheres que eram;os colegas, alguns excepcionais, capazes de grandes ações, estudiosos, aplicados,outros grosseiros, covardes, impertinentes e até brutais e ainda outros apenas gai-atos, brincalhões, sempre prontos para uma traquinada: um Garrone, um Derossi,um Carlos Novis ou o desalmado Fronti. Havia também os contos mensais, que nosemocionavam até as lágrimas: O patriotazinho de Pádua, O limpador de chaminés,O pequeno vigia lombardo, O pequeno escrevente florentino, Dos Apeninos aosAndes, Sangue romanholo, e tantos outros. E também havia aquelas cartas, assina-das por Teu pai ou Tua mãe, dirigidas ao protagonista e narrador do livro, Henrique,da classe média, cartas que nos tocavam fundo com seus conselhos, suas reprimendas,suas advertências, mas sempre repassadas de amor e de carinho pelo filho queridoque se preparava para a vida na escola.

Não será demais, nestas Memórias, transcrever aqui uma dessas cartas, ondese revela o caráter desse livro, único no mundo, hoje completamente esquecido efora do alcance dos nossos escolares, cujo alimento espiritual, desgraçadamente,parece ter se resumido nas historietas em quadrinhos, alheias à nossa cultura, etendo quase sempre por motivos a violência, o crime, o desamor.

A carta é esta:

Os amigos operários

abril, quinta-feira, 20.

Nunca mais, e por que Henrique? Isso depende de ti. Acabada a 4ª classe, irás para o ginásio:eles serão operários, mas ficarás na mesma cidade e talvez por muitos anos. E por que então osnão verás mais? Quando estiveres na universidade ou no liceu poderás procurá-los nas suaslojas e nas suas oficinas, e sentirás grande prazer tornando a ver os teus companheiros deinfância, já homens, a trabalhar. Sempre quisera ver se não irias procurar Coretti e Precossionde quer que estivessem! Hás de ir lá e hás de passar muitas horas em sua companhia, estu-dando a vida e o mundo, aprendendo com eles muitas coisas que outros não te saberiam ensi-nar, a respeito das suas artes, de sua sociedade e do teu país. E nota que, se não conservaresessas amizades, será difícil que adquiras outras semelhantes no futuro: amizades, quero dizer,fora da classe a que pertences; viverás assim numa só classe, e o homem que freqüenta uma sóclasse social, desde já, para conservar aqueles bons amigos para quando estiverdes separados, e

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se convença desde já a preferi-los, por isso mesmo que são filhos de operários. Os homens dasclasses superiores são os oficiais e são os operários, os soldados do trabalho; mas assim nasociedade como no exército, o soldado não é menos nobre do que o oficial, porque a nobrezaestá no trabalho e não no dinheiro; no valor e não nos galões; mas se há uma superioridade nomérito, pertence esta ao soldado e ao operário, porque tiram menos proveito da própria obra.Ama, pois, e respeita entre todos os teus companheiros, os filhos dos soldados do trabalho;honra neles as fadigas, os sacrifícios de seus pais, despreza as diferenças de fortuna e de classe,pelas quais os homens vis regulam os sentimentos e a cortesia e pensa que o sangue abençoadoque resgatou nossa pátria saiu quase todo das veias dos operários das oficinas e dos trabalhado-res dos campos. Ama Garrone, ama Precossi, ama Corretti, ama o teu "Padreirinho", pois nopeito desses pequenos operários palpitam corações de príncipes; jura a ti mesmo que nenhumamudança de fortuna poderá jamais arrancar estas santas amizades infantis de tua alma. Juraque se daqui a quarenta anos, passando por uma estação de estrada de ferro, reconhecerás,metido na blusa de maquinista, o teu velho Garrone, com a cara empoeirada... Ah! não precisodo teu juramento: estou certo que saltarias na máquina e te lançarias nos braços do teu amigo,ainda que fosses senador.

Teu Pai

Dessa época são também os Contos infantis, de Olavo Bilac e Manoel Bonfim;Os contos pátrios, de Olavo Bilac e Coelho Neto; os contos de Júlia Lopes de Almeida.Ao lado desses, figuravam as Leituras de Ilka e Alba, de Fábio Luz, a que já mereferi, o Céu, terra e mar, coletânea de poesias compilada por Alberto de Oliveira,na qual aprendíamos o que havia de melhor na produção dos grandes nomes dapoesia. Mais adiante, dava um verdadeiro salto para Os Lusíadas, texto obrigatórionos exames de português do Colégio Pedro II. Era dessa época também a Antologianacional, de Fausto Barreto e Carlos de Laet, através da qual travávamos conheci-mento com os trechos mais notáveis da literatura portuguesa e brasileira, e dosautores, desde os mais antigos até os que se consagraram já em nossos dias, algunsvivendo ainda e que conhecíamos pessoalmente: Olavo Bilac, Coelho Neto, Albertode Oliveira. Mas, Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu e Castro Alves eram tambémnossos ídolos e todos conheciam de cor e recitavam em aula ou em festas escolares:O pássaro cativo, O caçador de esmeraldas, O navio negreiro, O livro e a América,I Juca-Pirama, sem excluir O melro, de Guerra Junqueiro.

Foi por esse tempo também que descobrimos e penetramos naquele mundomaravilhoso e imenso de Júlio Verne, em que devorávamos emocionados aquelesvolumezinhos encadernados em percalina vermelha, mal impressos, com poucasgravuras e letras miúdas, editados pela Livraria Francisco Alves: Cinco semanas emum balão, Da terra à lua, A volta do mundo em oitenta dias, Um herói de quinzeanos, Vinte mil léguas submarinas, A ilha misteriosa, Matias Sandorf e tantosoutros. Cada novo título que descobrimos num "sebo" (as livrarias que negociavamcom obras de segunda mão e das quais éramos assíduos freqüentadores) ou conse-guíamos por empréstimos com algum colega, era uma verdadeira festa. Não sei porque o grande francês não possui monumentos em cada canto do mundo, onde suashistórias maravilhosas empolgaram a imaginação de gerações inteiras de adoles-centes, na literatura de ficção mais audaciosa e jamais produzida nem mesmo como advento das revistas em quadrinhos, e que a ciência e o progresso técnico deve-riam transformar, em muitos aspectos, em grandiosa realidade.

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As aventuras de Rafles e de Arsène Lupin, publicadas em capítulos pelasrevistas da época (Seleta, Fon-Fon, Revista da Semana) também faziam parte doreino encantado de nossa adolescência, com largo consumo, e no qual sobressaíamtambém os romances de capa e espada de Michel Zévaco ou Alexandre Dumas, taiscomo o célebre Conde de Monte Cristo ou Os Três mosqueteiros, entre outros.

De quando em vez um opúsculo obsceno, que não sabíamos bem de ondeprovinha, penetrava clandestinamente em nossas salas de aula, relatando em termosterrivelmente crus o que se passava naquelas áreas oficialmente proibidas do encon-tro dos sexos. Lembro de alguns que produziam verdadeiros impactos sobre a nossainocência ou ignorância, aumentando enormemente a excitação em que vivíamos,em virtude dos efeitos de maturação biológica que se processava. E se, na verdade,tratava-se de "literatura pornográfica" da mais baixa espécie, o fato é que, nessesfolhetos, muitos até com ilustrações bastante esclarecedoras, encontrávamos muitasrespostas a questões para nós dramáticas, mas que não eram dadas por outras fontes.E assim, de maneiras as mais impróprias, segundo os padrões da época, de certaforma essa "literatura" passava a fazer parte de nossa formação...

Mas, também o lado romântico de nossa adolescência, em pleno desabro-char, procurava ávido o alimento literário nos romances de amor: Amor de perdi-ção, de Camilo Castelo Branco; A escrava Isaura, de Bernardo Guimarães; Inocên-cia, de Taunay; a Rosa do Adro; os romances de Júlio Diniz. são lembranças desseperíodo. José de Alencar aparecia também, com seus dois aspectos, o da aventura eo dos perfis de mulheres misteriosas: O Guarani, Iracema, As minas de prata, Otronco do ipê, O sertanejo, O gaúcho, mas também Senhora, Diva, Lucíola. Lêmo-los todos. E também Eurico, o presbítero, de Alexandre Herculano, A moreninha, deMacedo; O Ateneu, de Raul Pompéia. Todos esses eram como passagem obrigatória,assim como os românticos de Machado de Assis: Helena, Iaiá Garcia, D. Casmurro.Na fase do "moralismo" que freqüentemente ataca os adolescentes, percorríamosos clássicos norte-americanos: os Mardens e os Smiles.

Mais tarde, o anticlericalismo de meu pai levar-nos-ia a Guerra Junqueiro ea Eça de Queiroz, este último em grande voga naqueles tempos, com sua prosacitada como modelo, com seu lirismo, sua crítica social, seus enredos dramáticos.

Os poetas já tinham nossa apreciação, desde os tempos de escola primária.Depois, na Escola Normal, era a época da exaltação do soneto, da rima, que viria aser demolida mais tarde pelos golpes do "futurismo", que fez entre nós sua irrupçãoruidosa com a Semana da Arte Moderna, em 1922. Coelho Neto, que conhecemosdepois pessoalmente, como diretor da Escola Dramática, ao tempo da ReformaFernando de Azevedo, também dava motivos para intermináveis controvérsias lite-rárias, na interpretação de sua prosa rebuscada. Ficávamos felizes quando verifica-vam que sabíamos perfeitamente que o avantesma, do grande e gongórico escritorera apenas o fantasma das pessoas comuns...

Tivemos também um período de incursões na literatura espírita, quandomeu pai se filiou a essa doutrina e andamos a penetrar nas obras de Allan Kardec.Entre elas, destacava-se O Evangelho segundo o espiritismo, que era a Bíblia dosespíritas. Mas também Léon Denis, Roustain, Flamarion e William Crookes, os doisúltimos cientistas, que tentaram basear na ciência as afirmações do espiritismo

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sobre a existência de vida depois da morte e em outros planetas... Daí, passamosaos grandes materialistas do século 19: alemães, franceses e ingleses, cujo maisdestacado foi Charles Darwin, com sua revolução no conhecimento da evoluçãodas espécies, que abalaria as crenças mais arraigadas da humanidade, na criação,por Deus, de um ser especial, feito à sua imagem e semelhança. Descendemos de

macacos! Era o desafio que o grande naturalista lançava à face do orgulho dohomem, que passava a ser apenas o último elo da cadeia ininterrupta dos seres, quevinham desde os mais elementares até os mais complexos, com suas realizaçõesprodigiosas que os equiparariam aos deuses.

Percorríamos as obras daqueles grandes nomes das ciências físicas e natu-rais, que representaram os cumes da ciência do século 19, naquelas traduções por-tuguesas, encadernadas em pano couro de várias cores, que obtínhamos a preçosacessíveis nos "sebos", especialmente no velho Martins, que tinha sua loja escura,empoeirada, desarrumada, mas cheia de encantos para nós, ali, na Rua SenadorEuzébio, próximo ao Palácio da Prefeitura, e que depois foi absorvida pela AvenidaPresidente Vargas.

Perlustramos poucos clássicos, pois o latim e ainda menos o grego já nãoeram mais componentes obrigatórias na formação da juventude de minha época.Eles chegavam até nós somente associados aos exames de preparatórios e semqualquer atrativo, pois os professores não nos explicavam o alcance daquelasobras imorredouras da literatura clássica, mas apenas nos faziam traduzir os tre-chos mais freqüentemente utilizados nas provas e assim sem ligação com o con-texto completo, sofríamos no esforço de memorização das declinações, da ordemindireta, da regência, das preposições, dos verbos. Lembro-me, a propósito, dasmemórias de Winston Churchill, que também nunca pôde conciliar sua juventudeaventureira com aquela tortura do mensa, mensae, que ele descreve tão bem.Considerou-se, por isso, um fracassado, de acordo com os padrões da educaçãoda época, em Oxford e Cambridge. e isso o levou a se dedicar ao cultivo da línguainglesa moderna, em que chegou a ser um mestre da palavra falada e escrita.Consolei-me, assim, de minhas reprovações no latim na banca examinadora pre-sidida pelo professor Antenor Nascentes, que mais tarde tanto vim a admirarpelos arejados conceitos no ensino da língua nacional, inclusive com sua defesada gíria, que considerava como a língua viva, em plena formação. Sobre os clás-sicos ainda, vim a aprender com meu colega, amigo e especialista Ernesto Faria,que, somente se desperta o interesse dos jovens pelas grandes obras da humani-dade quando se explica primeiro todo o alcance das mesmas, em suas fantasiasmitológicas, e referências históricas: somente depois disso é possível fazer mer-gulhar nas tricas gramaticais das declinações, regências e verbos.

A descoberta de uma tradução completa da Eneida de Virgílio, feita por umprofessor mineiro, foi para mim a revelação de toda a beleza desse poema clássico,desde as vicissitudes trágicas de Enéias, o fundador de Roma, até a ternura e deses-pero do infeliz amor de Dido pelo herói.

Pude assim compreender depois os conceitos expendidos por Voltaire emcarta à senhora Deffaud, escrita em 1754:

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A senhora sabe latim? Não. Por isso é que me pergunta se prefiro Pope a Virgílio. Ah!Madame, todas as nossas línguas modernas são secas, pobres e sem harmonia, em comparaçãocom as que falavam os gregos e os romanos, nossos primeiros mestres. Não passamos de violi-nistas de aldeia. Como quer a senhora, aliás, que eu compare de um poema épico, os amores deDido, do incêndio de Tróia à descida de Enéias aos infernos. Considero o Ensaio sobre o Homem,de Pope, como o primeiro dos poemas didáticos, os poemas filosóficos; mas não ponhamos nadaao lado de Virgílio. A senhora conhece por meio de tradução; mas os poetas não se traduzem.Pode-se traduzir música? Tenho pena da senhora por não poder, com todo o seu gosto e suasensibilidade esclarecida, ler Virgílio.

Não é por acaso que a Eneida foi considerado como modelo do poema épicoe todos os poetas posteriores, se não o copiaram, tomaram-no como inspiração e oseguiram. Dante em sua Divina comédia toma Virgílio como guia de suas aventu-ras: "Tu duca, tu maestro, tu signore." E o "divino mestre" é o modelo dos grandesépicos da Renascença: de Tasso, na Jerusalém liberata; de Ariosto, no Orlando Fu-rioso; de Milton, no Paraíso perdido; de Voltaire, na Henriada. E Camões, nosLusíadas, como se sabe, começa seu poema quase que com as mesmas palavras dopoema máximo da latinidade:

Arma virumque cano...

As armas e os barõesassinalados... canto...

Por tudo isso, sempre tive uma grande inveja daqueles que podiam ler nooriginal esses monumentos da cultura clássica.

Sem muita ordem cronológica, quero referir-me à literatura francesa, que, aprincípio obrigatória como parte dos textos a serem percorridos no ensino secun-dário, era ,depois descoberta na integralidade de suas obras imortais, tão ligadas ànossa formação: um Balzac, um Victor Hugo, um Sthendal, Zola, Anatole France,entre os maiores.

O ensino de inglês, com suas seletas, entre as quais me lembro, havia umadenominada Estrada suave, levava ao interesse pelos maiores autores dessa língua,como um Walter Scott ou Charles Dickens e, mais tarde, Shakespeare.

Mas, no meu caso, houve um desvio nesse caminho comum percorrido pelosestudantes, pois enveredamos pelos estudos do alemão, pelas razões que veremosadiante. E assim é que, certo dia, vi-me a traduzir, entre obras germânicas, o AlsoSprach Zarathustra, de Nietzsche, com suas belas máximas e parábolas de saborbíblico.

Não faltaram também, nessa fase, os russos, com os gigantes Tolstoi,Dostoievski e Gorki. E os grandes norte-americanos: Mark Twain, Poe, Walt Whitman,Hawthorne, Dreiser, Melville, Jack London, Hemingway, Steinbeck, Faulkner.

O gosto pela leitura, a valorização do livro como fonte de aquisição deconhecimentos, mas principalmente de prazer estético, já a essa altura estava for-temente estabelecida e nunca mais deveria abandoná-la.

O curso da Escola Politécnica, naturalmente, levar-me-ia às obras de mate-mática e ciências físicas, em nível superior, o que foi de grande utilidade para o

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meu desenvolvimento futuro, mesmo de caráter profissional. Houve certo momen-to mesmo em que pensei em me dedicar ao ensino da estatística e da metodologiada matemática, em nível secundário, no curso de formação de professores. Nãoobedecia, com isso, a uma tendência mais forte de meu espírito, pois, conforme fuiverificando aos poucos, nessa auto-análise que vamos empreendendo nem sempremuito conscientemente durante a vida, minhas inclinações eram muito mais para ointuitivo e artístico, do que para trilhar o caminho dos chamados conhecimentospositivos, das chamadas ciências "exatas".

Mais tarde, com a especialização profissional, fui obrigado a penetrar na-quela selva selvaggia da psicologia, da pedagogia, da didática, da metodologia, deque constituí biblioteca bastante extensa, adquirindo tudo o que aparecia nas lín-guas que podia ler. Depois, com o curso feito na América do Norte, viriam juntar-sea essa bibliografia novos volumes, contendo as direções da pedagogia daquele país,que então já penetrava com bastante força entre nós. E por fim, com a viagem àUnião Soviética, pude completar esse capítulo com tudo o que da produção dessepaís pude obter em línguas acessíveis.

Fui levado depois a travar conhecimento com a literatura marxista. Percor-ri-a quase toda, a clássica, a prático-revolucionária e, por fim, as novas correntesque pretendem interpretar aspectos até agora não explicados da crise do mundocontemporâneo, com a crítica às teses marxistas, ao menos àquelas derivadas deum marxismo considerado vulgar.

Minhas preferências acabaram por se definir no campo da história e dafilosofia, principalmente depois que tive que rever todos os meus conhecimentos,onde havia muitas falhas resultantes da ausência em minha formação de um cursosuperior sistemático nessas áreas. Voltando ao ensino, nas cadeiras de história efilosofia da educação, aquelas lacunas se tornaram patentes e tive que fazer umgrande esforço para saná-las.

• • •

Aliviado, porém, de todas as obrigações profissionais com a aposentadoria,ficou-me esse gosto pela leitura, pela literatura, e cada novo livro que manuseio,quase que com prazer erótico, é uma festa e um refúgio para as agruras da vida.

E nesse "entardecer da vida", penso como Blake que devemos admitir

[...] que existem homens que vêem o mundo não com a visão trivial ou como a investigaçãocientífica o vêem, mas transformado, indiscutivelmente fulgurante; é que vendo o mundo as-sim, vêem-no como ele realmente é. Ao invés de nos apressarmos a degradar os relatos extasiadosde nossas videntes, de interpretá-los ao nível mais ínfimo e convencional, devemos estar dis-postos a considerar a escandalosa possibilidade de que, onde quer que a imaginação visionáriafulge, a magia, aquela velha inimiga da ciência, renova-se transmudando a realidade cotidianaem algo maior, talvez mais assustador, decerto mais audaz, do que a racionalidade atrofiada daconsciência objetiva poderá jamais admitir.

E, para mim, esses magos, esses videntes, esses inspirados pela verdadeira vida,exorcizados pelos cultores fanáticos da "consciência objetiva" ou pela inconsciência

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medíocre dos tecnocratas frios, são os artistas, são especialmente os criadores dessesmonumentos literários, imperecíveis, que atravessaram séculos, conservando sempreo mesmo frescor, a mesma beleza da "arte divina", como dizia Homero, para quem opróprio Zeus impunha aos seus heróis um triste destino para que em "cantos excelsos"pudessem ser celebrados pelos vates. E é Vênus quem fala:

Triste destino Zeus nos deu para que nos celebrem nas gerações porvindouras, os cantosexcelsos dos vates. (Ilíada, 357-358).

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ESPIRITISMOCAPÍ

TULO

IX

Só muito recentemente é que vim a saber, porminha mãe, e aliás com surpresa, que, quando conhece-ra meu pai, era ele católico praticante; foi ele quem fezquestão da realização do casamento religioso, com todaa pompa característica da cerimônia na época.

Minha mãe, ao contrário do que sempre supus, ape-sar de católica, como toda a família, não era praticanteestrita e não me lembro mesmo de tê-la visto freqüentar aIgreja em qualquer ocasião.

Contou-me ela, quando eu procurava conhecercertas particularidades de nossa vida de família para ten-tar redigir estas Memórias, que, durante a viagem demeu pai à Itália para buscar a irmã, a tia Paschoalina,um compadre – o Januário Cordeiro, espírita e amigo dafamília – , batizou, "um pouco por brincadeira", comome dizia ela, o Virgilio, meu irmão mais velho. Na mes-ma ocasião, o Vicente, irmão mais moço de meu pai,com a tia Deolinda, irmã de minha mãe, batizaram aPalma, minha irmã.

O fato é que, nas recordações mais antigas queguardo de meu pai, já o vejo como praticante do espiri-tismo, que considerava, porém, como uma "ciência" enão propriamente como uma religião ou uma seita: asobrevivência da alma humana, para ele, era um fatoperfeitamente demonstrável, tal como a vida em outrosplanetas e a evolução dos espíritos e seu aperfeiçoa-mento em múltiplas encarnações...

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Mas, a história da conversão de meu pai ao espiritismo foi mais ou menos aseguinte, segundo ainda relato de minha mãe, confirmado mais tarde por meusdois irmãos mais velhos.

O "compadre" Januário Cordeiro era um jornalista de boa cultura, que sededicava ao teatro e tinha uma farmácia na Estação de Piedade, onde morava. Eratambém "médium" e fornecia a nossa família receitas médicas recebidas "do além"...

Freqüentava o Centro Espírita Antônio de Pádua, que funcionava numsobrado da Rua General Câmara, próximo à Estação Central da Estrada de FerroCentral do Brasil, rua essa que, como se sabe, desapareceu posteriormente com aabertura da Avenida Presidente Vargas.

Minha mãe estava às vésperas do parto do quarto filho e passava muito mal.O compadre Januário, então, exortou meu pai a pedir com fé a Santo Antônio dePádua que viesse em socorro da parturiente. E, realmente, logo em seguida, porcoincidência, a criança nasceu sem maiores problemas...

Esse meu irmão deveria por isso chamar-se Antônio de Pádua, mas, afinal,acabou sendo apenas Antônio, apelidado depois de "Tonico" e que mais tarde deve-ria tornar-se o doutor Lemme Júnior, quando se graduou em odontologia na Facul-dade de Medicina.

O "compadre" Januário teve um fim triste: segundo me parece, mulherengoinveterado, sempre atrás de algum "rabo-de-saia", o que era facilitado por suasatividades ligadas ao teatro, acabou se entregando à embriaguez, morrendo depoisde um derrame cerebral, quase na miséria.

Meu pai passou a freqüentar o Centro Espírita Antônio de Pádua. Mais tardecreio que se filiou à Federação Espírita Brasileira, mas, entrando em divergênciacom Frederico Figner, líder espírita brasileiro na época, acabou deixando a Federa-ção e fundando a União Espírita Suburbana, que chegou a ter sede própria noMéier, cuja construção foi promovida por um grupo espírita liderado por meu pai.

Era partidário da corrente chefiada por Allan Kardec, kardecista portanto, e seopunha tenazmente a uma outra corrente – a de Roustain. A diferença entre as duascorrentes, segundo pude entender pelas intermináveis discussões que presenciei mui-tas vezes entre os respectivos partidários, seria: a primeira considerava Jesus o "divinomestre", como diziam, possuidor de um corpo físico da mesma natureza da dos outroshomens, tendo pois sido reais seus sofrimentos, e assim, os "milagres" que realizavaprovinham de sua condição como espírito superior que era, enviado a terra por Deuspara salvar a humanidade. Já os roustenianos afirmavam que o corpo de Jesus era"fluídico", constituído de matéria especial, a mesma que formava a dos "espíritos",porém "materializado", pois só assim se explicavam os referidos "milagres", que deoutra forma não seriam admissíveis.

Em torno desses e de outros problemas, segundo me lembro, travavam-seásperas e complicadas discussões cujo alcance, é claro, não podia compreendercompletamente.

Meu pai chegou a reunir uma biblioteca bastante extensa sobre o espiritis-mo, a começar pelas obras de Allan Kardec, considerado o "grande mestre", queeram estudadas minuciosamente.

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O Evangelho segundo o espiritismo era a "bíblia", comentada nos mínimosdetalhes e servindo de texto para as pregações e os exemplos edificantes que esti-mulavam os ouvintes a seguirem a doutrina.

Mas, além de Allan Kardec, outros autores faziam parte dessa bibliotecaespecialmente León Denis, Camille Flamarion e William Crookes. Os dois últimos, senão eram propriamente autores espíritas no sentido comum, mereciam considera-ção, o primeiro pela defesa da tese da existência de vida em outros planetas, e oúltimo, por suas célebres experiências, na Inglaterra, sobre a "materialização dosespíritos", questão considerada indiscutível para os seguidores do espiritismo masque com a contribuição de Crookes, diziam eles, ganhava base "científica".

Como conseqüência dessa orientação, em minha casa, o tratamento médico,durante muito tempo, ou melhor, em todos esses anos de minha infância e adoles-cência, era feito pela homeopatia, sobre a qual meu pai e minha mãe chegaram aganhar muita experiência, receitando e indicando uma grande variedade de remé-dios para tratamento das enfermidades mais comuns. As "receitas" principais, po-rém, eram obtidas por meio de "médiuns" amigos da família, que, apenas com aindicação do nome e da idade do paciente prescreviam a medicação adequada acada caso.

Recordo-me bem de ter ido muitas vezes buscar essas "receitas" com umdesses "médiuns", um professor da Escola Normal, Isaltino Barbosa, negro, gordo,alma bondosa, que recebia o menino que eu era com grande amabilidade, tomavade uma "tira" de papel almaço, escrevia no alto o nome do doente, concentrava-sedurante alguns minutos com uma das mãos apoiada na testa e, com a outra, rabis-cava rapidamente a folha com os nomes dos remédios e as prescrições e, até mes-mo, o diagnóstico, quando solicitado.

Os medicamentos eram geralmente adquiridos na Farmácia Almeida Cardo-so, situada à Rua Marechal Floriano, próxima do largo de Santa Rita. Dali trazíamosaqueles vidrinhos contendo os remédios prescritos: acônito, beladona, colocintes etantos outros, na dinamização adequada, conforme as teorias do inventor dessamodalidade de farmacopéia, o médico alemão Samuel Christian FriedrichHahnemann, que a introduziu em 1876, e que se baseava na máxima similia, similibuscurantur, já sugerida por Hipócrates e Paracelso.

Meu pai chegou a ter certa proeminência nos meios espíritas e presidiasessões de estudos e de práticas, mas sempre procurando dar a essas atividades ocaráter de conhecimento positivo, apesar de envolverem também aspectos dos cul-tos religiosos, especialmente as orações, a caridade, a moralidade estrita e outrasvirtudes cristãs.

A essas sessões, ainda bem criança, eu e o Virgílio éramos levados por meupai, e assim tive oportunidade de apreciar muitas vezes seus dotes de orador epregador e suas qualidades didáticas nas explicações e interpretações dos textos,especialmente do referido Evangelho de Allan Kardec.

Assistíamos também às "manifestações espíritas", onde presenciávamos mui-tas vezes pessoas que falavam de assuntos num nível que estava muito acima de suacultura em estado normal. Explicava-se, então que esses "médiuns" estavam receben-do "espíritos superiores", que, através de suas falas, nos instruíam e aconselhavam.

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Havia também os "médiuns" psicográficos, que escreviam extensas mensagens, asquais seriam inteiramente incapazes de compor em seu estado normal. Observamostambém muitas vezes fatos realmente estranhos, como de uma senhora bastantevolumosa e pesada rodopiar em cima de uma mesa em movimentos quase que graci-osos e leves, sem qualquer relação com a aparência real que apresentava em estadonormal...

Havia também os casos de "obsessão" em que "espíritos inferiores", por qual-quer circunstância, perseguiam uma criatura, causando-lhe transtornos psíquicos,que somente eram aliviados ou sanados com a "incorporação" desses espíritos em"médiuns", sua "manifestação", como se dizia, para serem doutrinados ou exorta-dos a se afastarem dos pacientes, que se recuperavam então de suas visões, anoma-lias ou comportamentos estranhos. Recordo que durante algum tempo tivemos emnossa casa uma jovem senhora positivamente esquizofrênica, que fora entregueaos cuidados de meu pai para sua recuperação, aliás sem qualquer resultado. Tinhaos comportamentos mais imprevistos, próprios dessa terrível doença mental, quemais tarde tive a dolorosa infelicidade de conhecer muito bem, pois vi um dos meusfilhos mergulhar aos poucos nela, até hoje sem qualquer meio realmente eficaz detratamento.

Havia também os "passes", largamente utilizados, isto é, a aposição das mãosao longo do corpo do paciente para aliviá-lo das crises de agitação, de angústia oude outras manifestações doentias. Eu mesmo presenciei muitas vezes sua aplicação.Os "médiuns" forneciam também nas sessões "água fluídica", em garrafas, a que seatribuía virtudes curativas, tal como a água "benta" dos católicos.

Guardo bem de memória algumas figuras desse período, amigos espíritas demeu pai, que freqüentavam nossa casa.

Um deles, muito assíduo, era o velho Manuel Paiva, português, operárioaposentado do Arsenal de Guerra, que se dizia ser um dos primeiros moradores doMéier, conforme já referimos anteriormente, pois contava ter sido o primeiro com-prador de um lote de terreno nessa localidade, situado à antiga Rua Hermengarda.Mantinha em sua casa um "centro espírita", freqüentado por meu pai, e no qualpresenciei aquelas cenas que descrevi, de manifestações de espíritos.

O outro era o jornalista Alberto Pereira da Silva, creio que do Correio daManhã, homem culto, afável, e que quase sempre nos visitava aos domingos. Con-tava-nos então, em prosa agradável, intermináveis casos de espiritismo. Era dadotambém a atividades de "vidente": assim, dizia que minha mãe, na última encarnação,teria sido "mandchu" (originária da Mandchúria), pois até seu tipo físico e suafisionomia lembravam sua origem oriental. Quanto a mim, via-me sempre comoum homem de grande estatura, de que ele não podia precisar bem a origem, masque deveria ser ou da Patagônia ou do México. Não sei se por influências dessasconversas, ou por outra razão qualquer, o fato é que um dos países que mais meatraíram, sem qualquer razão especial, foi o México, que, aliás, infelizmente, nuncapude visitar, mas cuja história empolgante sempre me interessou.

Essas tertúlias e discussões eram travadas num tom muito sério e elevado,pois, como disse, o espiritismo era considerado por meu pai e seus correligionári-os como um conhecimento de caráter científico, e não como religião, seita ousimplesmente como fé.

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Certa vez, meu pai foi chamado para observar estranhos fenômenos queestariam acontecendo em casa da família de Sílvio Romero, já falecido. Para láfomos num domingo, sendo a primeira vez que tinha a oportunidade de visitarCopacabana, que a esse tempo, era pouco mais que um grande areal. Dizia-se queum busto de bronze do grande escritor, colocado na sala de visitas, em determina-das ocasiões "chorava"; havia também deslocamentos de objetos e ruídos estra-nhos, sem causa aparente. Não me lembro, porém, de ter ficado impressionado ouconvencido com o relato dessas ocorrências feito por pessoas da família que nosreceberam. Nunca tive também a oportunidade de confirmar a ocorrência dessesfatos, pois sempre me ficou a dúvida de se tratar realmente da casa do grandeautor da História da Literatura Brasileira. E muito mais tarde, colega de NelsonRomero, professor, e amigo de Osvaldo Romero, alto funcionário da Secretaria deFinanças no antigo Distrito Federal, filhos de Sílvio Romero, nunca me ocorreuindagar de qualquer deles sobre a veracidade dessas histórias.

De tudo isso, pela idade, éramos principalmente eu e meu irmão maisvelho, Virgilio, meros assistentes ou espectadores. Minha mãe não tomava par-te nessas reuniões espíritas e a participação dela limitava-se quase que exclusi-vamente ao consumo dos medicamentos de origem espírita: nem nunca che-guei a saber exatamente seu grau de crença em todas aquelas práticas. É certoque sofremos a influência desse ambiente de casa, mas num sentido que não seiexatamente definir. Ficou-nos um traço evidente de anticlericalismo, não in-transigente, e uma certa singularidade em relação às famílias comuns, que eramgeralmente católicas praticantes.

Como única manifestação direta nessas atividades espíritas, recordo-me deum longo requisitório que redigi contra a direção da União Espírita Suburbana deonde meu pai tinha se afastado, não sei exatamente por que espécie de divergênci-as. A União, certa vez, fizera distribuir uns folhetos com propaganda do espiritismo,folhetos esses que eram distribuídos de casa em casa. Um deles foi parar em nossasmãos e, discordando de seus termos, escrevemos o tal documento que está datadode 5 de abril de 1923. Tinha eu, portanto, 19 anos.

Começava com uma epígrafe tirada dos versos de Guerra Junqueiro, de crí-tica à comercialização das coisas da Igreja católica apostólica romana, e que era aseguinte:

Deus Filho, Bazar da Fé. Venda forçada.Pela barca de Pedro a Judas consignada,Chega um rico sortido em modas da estação,Ver para crer! Surpresas! Atenção, ocasiãoÚnica! Aproveitai, Comprai! Pechincha certa!Ao bazar do Calvário! Ao Nazareno! Alerta Cristãos.É o desfazer da feira. Último dia!

E continuava:

É assim que Guerra Junqueiro inicia uma das mais mordazes sátiras à hipocrisia católicaromana, e só nela, eterna ironia, encontramos a fórmula precisamente ajustável ao modo peloqual a União Espírita Suburbana pretende fazer a propaganda do Espiritismo!

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E a coisa vai por aí, nesse estilo acrimonioso e, às vezes até insolente, muitopróprio da idade, desenvolvendo-se por 12 laudas datilografadas... A maior razãoda irritação era o que vinha contido na primeira declaração do folheto: "O Espiri-tismo declarando ser religião"... Ao que replicávamos indignados: "Em que época,lugar ou ocasião, fez o Espiritismo tal declaração?" E dávamos a definição tal comovem consignada pelo "mestre" Allan Kardec: Espiritismo é uma ciência que tratada natureza, origem e destino dos espíritos, bem como de suas relações com omundo corporal (sic).

E terminávamos assim:

Aqui ficamos.Não continuaremos a nossa apreciação, não só por já nos termos estendido mais do que o

conveniente numa simples carta, como também por ser inútil, pois as "razões" restantes afinampelo mesmo tom das primeiras.

Terminaremos, portanto, mas antes pedimos permissão para dar-vos um conselho e, podemestar certos, um conselho de verdadeiros amigos.

Porque, ao invés de empregardes vossa atividade e os elementos materiais que possuís emsessões e reuniões e outras inutilidades da maneira porque são feitos, onde nem ao menos podehaver cooperação livre dos que desejam trabalhar, pois até as palavras que aí se pronunciamdevem ter a condição absoluta de serem calibradas pelo vosso modo de pensar e portanto ondenão há a mínima liberdade, condição indispensável para a obtenção de algum resultado; porquedizemos nós, em lugar de todas essas coisas: legião do bem, manifestações de espíritos, doutri-nações, sessões religiosas, preces a "Nosso Senhor Jesus Cristo" etc. etc., onde a assistência, sema menor ingerência, ouve passivamente, de cabeça baixa, e até constrangida, tudo o que quiserdesdizer, como ouviam o padre ou o pastor, sendo portanto um trabalho absolutamente inútil; porque, repetimos, não transformais tudo isso num centro de verdadeiro trabalho, tornando-vosdefensores das mais belas causas – a de espancar as trevas da ignorância (sic)? Desiludi-vosmeus amigos, o espiritismo do modo pelo qual está sendo praticado e propagado, longe de ser oconsolador prometido, será um veículo da conservação do erro e da ignorância. Transformai aUnião Espírita Suburbana num centro onde a ignorância mais desprotegida possa haurir a ver-dadeira ciência: a física, a química, a história natural, a matemática racional, a astronomia,prelúdios esses ministrados de acordo com os princípios da ciência universal – O Espiritismo.

Veja-se, por essa manifestação, ainda quase juvenil, o caráter que quería-mos dar ao Espiritismo, de verdadeira "Ciência Universal"... Imaginem!.

Mas é também uma demonstração de que reagíamos ao que consideráva-mos como um rebaixamento do Espiritismo ao nível de uma religião qualquer, comtodas as suas superstições.

Meu pai recebeu meio desconfiado essa nossa manifestação, assim tão desa-brida: creio que a esse tempo ele já estava entrando em choque com seus antigoscompanheiros de crença, e talvez, quem sabe, já sentia certo abalo em suas convic-ções, mas ainda sem muita certeza sobre o caminho que deveria seguir daí por diante.

Em todo o caso, ficou evidente que nossa formação, nossos estudos, a influ-ência do ambiente em que vivíamos, onde meu pai fizera sua ascensão até umcurso superior e nós seguíamos suas pegadas, impedia-nos de descambar para prá-ticas supersticiosas características do chamado "baixo espiritismo".

Mais tarde, rompemos completamente com meu pai em relação ao seuespiritismo, criticando-o por ter acabado por se ocupar mais de questões refe-rentes ao "outro mundo" e colocando as coisas terrenas em segundo plano,inclusive os problemas da casa e da família.

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De certa forma não era muito justa essa nossa apreciação. Esse rompimento,porém, significava talvez uma reação ao seu autoritarismo, e assim, procurando esca-par à sua influência, nos afirmar como pessoas independentes. É essa, aliás, a evolu-ção natural das pessoas comuns, em sua passagem normal da adolescência para aidade adulta e que se manifesta freqüentemente como um choque de gerações.

O espiritismo, porém, deveria mais tarde, conduzi-lo a uma situação bastan-te penosa para quem dedicara todo o seu esforço na constituição de uma famíliaque conseguira levar até uma condição bastante lisonjeira, tendo em vista suasorigens e um ponto de partida bem modesto.

Conforme já deixamos entender anteriormente, no Centro Espírita que fun-cionava na casa do português Manuel Paiva, meu pai conheceu uma criatura, "mé-dium", à qual acabou se ligando, o que o fez se desviar de suas responsabilidades dechefe de família e até mesmo abandonar a casa por um longo período, transferin-do-se para São Paulo, em companhia dessa mulher e de duas de suas filhas.

Já estando eu fora de casa, esses descaminhos pouco me afetaram, mascausaram grande abalo em casa, prejudicando em muito a educação dos res-tantes elementos da família, que eram a maioria. Minha mãe também sofreuintensamente, pois, além de ferida profundamente em seu amor próprio demulher, constituiu tudo isso uma tremenda desilusão para todos os sonhos, quenaturalmente alimentava, de ter uma família unida e feliz, em que os cabelosbrancos coroariam uma vida de trabalho e esforços penosos, cercada dos netosque perpetuariam as promessas do futuro.

Meu pai, já bem doente, sentindo talvez o fim próximo, pensou em voltarpara a casa e certo dia me procurou para servir como uma espécie de mediador.Tentei desempenhar, da melhor forma possível esse penoso papel, obtendo de mi-nha mãe o consentimento para que viesse passar seus últimos dias em casa. E so-freu terrivelmente antes de deixar definitivamente este mundo. . .

Essa passagem pelo espiritismo deixou em todos nós, além desse desfechodoloroso, uma certa inadaptação ao padrão comum das famílias de nossa classe.Eu, pelo menos, sempre senti essa singularidade em minha vida em contato comoutras pessoas e nunca pude definir exatamente o caráter dessa diferença. Ou jáéramos diferentes e a incursão pelo espiritismo foi apenas uma conseqüência?

Mas como ensina Kierkegaard,

[...] a fé é a mais elevada paixão de qualquer homem... Contudo ainda para aquele que nãochega até a fé, a vida implica em suficientes encargos, e se se a aborda com sincero amor, aexistência não será em vão, ainda que não possa ser comparada à existência daqueles quealcançaram e compreenderam o mais elevado (Sören Kierkegaard, em Temor e tremor).

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A ESCOLA POLITÉCNICACAPÍ

TULO

X

Muitos dos rapazes que cursavam a Escola Nor-mal faziam planos para prosseguir nos estudos em nívelsuperior.

A profissão de professor primário, já naquelaépoca, vinha sendo considerada entre nós como umaatividade de caráter essencialmente feminino, e isso,naturalmente, produzia nos elementos do sexo mas-culino um certo sentimento de inferioridade, que pro-curavam empenhando-se na conquista de diplomasde cursos universitários em outras profissões.

Eu, além de participar desse sentimento, tinhaainda o estímulo do confronto com os irmãos mais pró-ximos em idade, que já estavam no caminho de se for-marem em profissões de nível superior.

Alguns dos meus colegas encaminharam-se paraa medicina, outros para a Escola Militar do Realengo,para onde tentaram me levar sem resultado: nunca to-lerei a vida militar, com seu enquadramento hierárquicoe disciplinar, sinais exteriores, tais como fardas e outrascaracterísticas, que não se coadunam com o meu tem-peramento. Não consegui mesmo fazer um serviço mili-tar regular, obtendo mais tarde um "certificado de 3ªcategoria", de acordo com os regulamentos da época.

Pensei durante algum tempo em fazer o curso deagronomia, pois não sei bem porque sempre senti certaatração pelas atividades rurais, sentimento esse que meacompanhou durante toda a vida.

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Afinal, excluindo a medicina e o direito, carreiras pelas quais não sentiaqualquer inclinação, acabei optando pelo terceiro dos cursos mais procurados pelajuventude da época, pois eram esses os que tinham maior prestígio social e queapresentavam melhores perspectivas de assegurar uma situação econômica maisbrilhante: a engenharia.

É certo que não se tratava propriamente de uma vocação muito nítida, poisesta, se havia, seria para o magistério, para o ensino. Não obstante, não me desa-gradava a atividade da construção, especialmente no ramo da engenharia civil. Écerto que revelava certo gosto pela construção civil, pois meu pai sempre se entre-gara a grandes obras de reformas das casas que adquiria, e eu desempenhei emmuitas ocasiões a função de uma espécie de encarregado ou representante nosserviços que deveriam ser executados e para os quais ele não dispunha de tempopara acompanhar o cumprimento dos contratos.

Assim é que, ainda durante o curso da Escola Normal, como vimos, pus-me acompletar os "preparatórios" para a prestação do exame vestibular para a matrícu-la na antiga Escola Politécnica, o tradicional e prestigioso estabelecimento do Lar-go de São Francisco, o único, àquele tempo, que ministrava o ensino de engenhariano Rio de Janeiro.

Possuía, como já disse, os certificados dos seis preparatórios exigidos paraos cursos de odontologia e farmácia. Era necessário completá-los com mais seis, asaber: mais uma língua estrangeira (inglês ou alemão); as matemáticas (álgebra,geometria e trigonometria); a história geral e do Brasil e o "famigerado" latim.

Em algumas dessas matérias podia me preparar para os exames vestibula-res apenas com o estudo pessoal das partes dos programas oficiais que apresen-tavam diferenças em relação aos do curso normal. A língua estrangeira modernae o latim, porém, requeriam, assim como as matemáticas em nível mais elevado, oauxílio de professores particulares. De como escolhi o alemão ao invés do inglêsserá relatado adiante. O latim deu-me muito trabalho pois, como já disse, o ensi-no era péssimo e não tivera contato anterior mais profundo com a matéria ouestímulo para perceber e apreciar todas as belezas da língua que, durante sécu-los, foi o veículo de toda a cultura ocidental. Baseava-se o ensino na fastidiosamemorização das declinações, no hora, horae, como já referimos anteriormente,nos verbos e na penetração penosa no cipoal dos autores exigidos nos examespara tradução e análise gramatical, sem qualquer explicação sobre o significadodaqueles trechos e suas relações com o restante dos textos, das obras e dos valo-res da cultura e da civilização greco-romana. Só muito mais tarde, e apenas emtraduções, pude apreciar as belezas daquelas obras clássicas que chegaram aténós: um Homero, um Virgílio, um Cícero, um Platão ou um Aristóteles.

Não é de estranhar, pois, que na primeira tentativa não conseguisse a apro-vação desejada nas provas e tivesse que repetir, em segunda época, o exame.

Depois desse esforço era preciso ainda preparar o exame vestibular naparte mais difícil, ao menos para mim, em vista do pouco preparo prévio e dosprogramas bastante extensos, especialmente na parte referente à matemática: aálgebra superior, a geometria analítica e a trigonometria, matérias que estudavapela primeira vez.

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Em março de 1925 consegui, afinal, com bastante dificuldade, penetrar comoaluno do primeiro ano no curso de engenharia civil, nas salas históricas do casarãodo Largo de São Francisco. Esse fato enchia-me de orgulho, pois o conseguira,graças exclusivamente ao meu esforço, e como uma deliberação pessoal.

Criava assim a perspectiva de me elevar acima do magistério primário, aindaque não tivesse qualquer projeto muito claro de exercer a profissão de engenheiro.

O objetivo no momento, era mais ampliar o âmbito dos meus conhecimen-tos, movido por aqueles sentimentos de ascensão a uma carreira de nível superior.

É certo que, em outros países, principalmente da Europa, o magistérioprimário é exercido por grande número de homens, e há até uma certa correntede pensamento pedagógico que preconiza como benefício um contato dos meni-nos, e até mesmo das meninas, com professores primários do sexo masculino, maso preconceito entre nós e os baixos salários fizeram com que o ensino primáriofosse se tornando cada vez mais uma profissão procurada essencialmente pelosexo feminino.

Meu preparo básico para enfrentar o curso da Escola Politécnica, consi-derado o mais difícil dos três de igual prestígio social, não era grande, e por issoencontrei muitas dificuldades para percorrer aqueles programas de matériasinteiramente novas para mim, especialmente o cálculo diferencial e integral, ageometria analítica e a geometria descritiva.

Além disso, minha nomeação, em 1924, para o cargo de professor adjuntodos quadros do ensino municipal e a designação para trabalhar em escolas longín-quas da zona rural do antigo Distrito Federal, tornavam muito difícil a freqüênciaregular às aulas.

Por isso, somente em 1926, e com bastante dificuldade, pude prestar osprimeiros exames, relativos ao primeiro ano do curso.

Freqüentando pouco as aulas, minhas relações com os colegas eram su-perficiais: quase todos mais jovens do que eu e sem qualquer responsabilidade detrabalho, levavam aquela vida despreocupada, folgazona, pois a maioria provi-nha de famílias cuja situação econômica permitia sustentá-los até a conclusãodo curso.

Minhas ligações eram mais estreitas com um pequeno grupo de elementosmais velhos, que faziam o curso quase que nas mesmas condições que eu, isto é, játrabalhavam ou mesmo já tinham responsabilidades de família, ou ainda, necessi-tavam do diploma de engenharia para ascenderem em suas carreiras profissionais,já iniciadas.

Ainda hoje, porém, revejo com emoção aquelas salas do velho prédio, elembro-me muito bem do esforço que fazia para acompanhar as aulas, semprepreocupado com os problemas do trabalho e, logo em seguida, com a responsabili-dade de família, que vieram com o casamento, em 1927.

Não participava, mas admirava o estouvamento daquela juventude que alise preparava, alguns com grande brilho, para posições futuras, nas quais muitos sedistinguiram.

Mais tarde, minha situação funcional mudou radicalmente com a designa-ção para a administração superior da Instrução Pública do antigo Distrito Federal,

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para onde fui chamado em circunstâncias muito especiais e passei a integrar aequipe de auxiliares de Fernando de Azevedo na grande reforma de ensino queentão se processava na capital da República. Essa nova situação fez com que, aospoucos, fosse me convencendo que não poderia prosseguir no curso da Escola Po-litécnica, acabando por abandoná-lo.

Concorreu também para isso o fato de que, a posição que fui assumindocomo colaborador de Fernando de Azevedo, me aproximou de muitos educadoresque eram também professores do tradicional estabelecimento, tais como DulcidioPereira, Azevedo Amaral, Mário de Brito, Everardo Backheuser, Barbosa de Oliveira,que passaram a me considerar como um colega. E essa condição ficou ainda maisevidente quando ingressei na Associação Brasileira de Educação, em 1926, queliderava então todo o movimento pela renovação do ensino no Brasil e onde essese outros professores tornaram-se meus companheiros de luta, pois todos eles par-ticipavam das atividades dessa agremiação. Tudo isso criou para mim uma situaçãode constrangimento, que foi me impedindo de me apresentar perante bancas exa-minadoras daquela escola, onde iria encontrar esses mesmos mestres, agora meuscolegas. Talvez isso pudesse ser considerado uma manifestação de escrúpulo exa-gerado, mas na realidade eu não dispunha mais de tempo para me preparar devida-mente para os exames que deveria prestar perante alguns daqueles professores eamigos, e não poderia aceitar da parte deles qualquer atitude de tolerância paracom o meu evidente despreparo.

Finalmente, a própria participação na equipe de colaboradores da Reformade Ensino, liderada por Fernando de Azevedo, fez com que passasse a ter por metaaprofundar os estudos dos problemas de educação e ensino, em contato com todosaqueles educadores, e por fim a encontrar nesses estudos a direção que deveriaadotar afinal, em definitivo, como carreira profissional e opção de vida.

É certo que o curso da Escola Politécnica, se o pudesse ter concluído, nãoteria sido um impedimento para a minha carreira de educador, ao contrário,representaria uma contribuição valiosa com a ampliação de cultura que ele meproporcionaria. Aliás, mesmo os três anos incompletos que pude cursar já metrouxeram bons subsídios para futura abordagem de certos aspectos da educa-ção, tais como os referentes ao emprego dos métodos estatísticos nas chamadasmedidas educacionais.

Além disso, a Escola Politécnica, naquela época, era uma verdadeira acade-mia de ciências físicas e matemáticas e a única existente entre nós que se dedicavaa esses estudos em nível superior, e seu corpo docente contava com as figuras maisrepresentativas desses setores de conhecimento. Sua projeção e influência no am-biente cultural do País ia muito além de sua condição formal de simples estabele-cimento de ensino de engenharia. Ali se encontravam mestres como Amoroso Cos-ta, Henrique Morize, Sodré da Gama, Caetano de Oliveira, Henrique Costa, HenriqueNovaes, Azevedo Amaral, Everardo Backheuser, Barbosa de Oliveira, Júlio Lohman,Mário de Brito, Ferdinando Labouriau e tantos outros.

Nos laboratórios de física de Henrique Morize, então catedrático, fizeram-se as primeiras experiências sobre a radiofonia no Brasil, desenvolvidas depois porRoquette Pinto. A Associação Brasileira de Educação, que desempenhou papel de

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tanto relevo na discussão de todos os problemas da educação no Brasil, nasceutambém nas salas da antiga Escola Politécnica, em 1924, fundada por elementosdos mais representativos do corpo docente ou por figuras a ele ligadas, tais comoHeitor Lira da Silva, Francisco Venâncio Filho, Mário de Brito, Edgar Süssekind deMendonça, Barbosa de Oliveira, entre outros. Os primeiros cursos de aperfeiçoa-mento organizados para o magistério do Distrito Federal, na administração de An-tônio Carneiro Leão, para a introdução de novos métodos de ensino, oriundos domovimento de renovação da educação, conhecido como o da "escola nova" ou"escola ativa", tiveram igualmente agasalho nas velhas salas do histórico edifíciodo Largo de São Francisco, cursos esses ministrados por professores da Escola, taiscomo Dulcídio Pereira, que substituíra Henrique Morize na cátedra de física, Delga-do de Carvalho, Süssekind de Mendonça, entre outros.

Muitos de seus professores integraram movimentos políticos do País, decaráter democrático e progressista, naquele período que teve como marco históri-co o primeiro 5 de julho de 1922, destacando-se entre eles Mário de Brito eFerdinando Labouriau, que foram atingidos pela repressão do governo ArturBernardes, sendo presos e processados como elementos perturbadores da "ordempública"...

Toda essa efervescência de caráter cultural e político verificou-se justamen-te entre 1922 e 1930, período em que freqüentei as aulas dessa escola e me iniciavanuma nova vida profissional, sofrendo, pois, a influência desse ambiente de lutaspatrióticas e despertando em mim interesse por essas questões que diziam respeitoao futuro do povo brasileiro e ao progresso do País.

Tenho bem viva ainda, dentro desse quadro de liderança que esses professo-res da Escola Politécnica exerciam no acanhado ambiente cultural e político doPaís, a enorme consternação que causou o grave acidente de aviação em que per-deu a vida exatamente um punhado dos mais expressivos desses homens. Iam elesreceber em avião, fora da barra do Rio de Janeiro, Santos Dumont que voltava aoBrasil depois de longos anos de ausência, em que a merecida glória lhe aureolou onome, quando encontraram a morte no desastre aéreo cinco dos mais destacadosprofessores da Escola Politécnica.

Foram dias de luto e tristeza pungente, em que se transformou a apoteoseque deveria assinalar a chegada ao Brasil daquele que constituía um símbolo paratodos nós, não somente pelos feitos que realizou no princípio do século, colocandoa aviação em bases exeqüíveis, como também pelo espírito que o animava, no sen-tido de que seu extraordinário invento fosse utilizado unicamente em benefício doprogresso da humanidade, e nunca para a guerra.

Nesse desastre morreram os professores da Escola Politécnica Tobias Moscoso,Ferdinando Labouriau e Manoel Amoroso Costa, o aluno do quinto ano e assistentedo professor Tobias Moscoso, Frederico de Oliveira Coutinho, o médico sanitaristaAmauri de Medeiros e o doutor Paulo de Castro Maia.

Num dos bolsos de Amauri de Medeiros foi encontrado o texto da seguintemensagem dirigida a Santos Dumont:

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A bordo do hidroavião Santos Dumont, 3 de dezembro de 1928:Do alto do hidroavião que tem o vosso nome glorioso, e nos adiantando à recepção que vos

preparou o povo da capital do Brasil, vimos apresentar os votos de boas-vindas ao grande bra-sileiro, conquistador dos ares, que honrou o nome da pátria no estrangeiro.

Santos Dumont, ao saber da tragédia, disse simplesmente: "Sempre reco-mendei que não voassem ao meu encontro. A impaciência condena sempre a gran-des desastres." E concluiu: "Quantas vidas sacrificadas por minha humilde pessoa..."

Um episódio conhecido de poucos e ligado a esse triste acontecimento rela-ciona-se com o professor Mário de Brito, que, fazendo parte da comissão que iriahomenagear Santos Dumont no avião especialmente fretado para esse fim, perdeu,por atraso involuntário, a hora do embarque e se salvou da catástrofe.

A maior homenagem aos ilustres professores, assim tão tragicamente desa-parecidos, num momento que deveria ter sido de alegria e de glória, foi prestadapela Associação Brasileira de Educação, que, em sessão especial, inaugurou seusretratos em sua sede e os manteve para sempre.

Paschoal Lemme, já como profes-sor, com um grupo de colegas daEscola Amaro Cavalcante, Rio deJaneiro. Além de professor foi vice-diretor dessa escola em 1930.

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Assim, a velha Escola Politécnica, com toda a sua tradição, suas realizações,seus grandes mestres, seus hábitos e até mesmo seus defeitos e preconceitos foiparte destacada de minha vida e é sempre com saudade que recordo a época e osdias que por ali andei, os grandes acontecimentos a ela ligados, que presenciei, asfiguras dos mestres e amigos com quem tive maior contato e de quem ouvi aslições, que, se todas não se revestiam de didática impecável, abriram-me horizontese foram de grande proveito para os tempos vindouros de minha vida, como homeme como profissional.

E a frustração de não ter podido terminar o curso me acompanhou portoda a vida.

Em todo o caso, quando necessitei, mais tarde, comprovar minha passagempelo tradicional estabelecimento, obtive a seguinte certidão:

Certifico que o requerente prestou vestibular nesta Escola, em março de mil novecentos evinte e cinco, tendo obtido aprovação nas seguintes matérias que constituíam o citado exame:aritmética, álgebra, geometria plana e geometria no espaço, trigonometria retilínea e desenhogeométrico. Apresentou doze (12) certidões do Colégio Pedro II em as quais constam ter sido omesmo senhor aprovado nas seguintes matérias: português, aritmética, história do Brasil, histó-ria universal, álgebra, geometria, alemão, latim, física, química, história natural, geografia,corografia e cosmografia e francês, tendo sido matriculado no primeiro ano do curso de enge-nharia civil, pelo regulamento de 1915. Em março de 1925, obteve aprovação nas seguintescadeiras do citado curso: geometria descritiva, física experimental e meteorologia em 12 e 14de 1928 e desenho de ornatos, em dezembro de 1927.

É certo que cursei com a regularidade possível as aulas de matemática supe-rior (geometria analítica e cálculo diferencial e integral), que eram dadas pelo novocatedrático Inácio de Azevedo Amaral, que fizera na época concurso para a cadeirae que tivera grande repercussão. Dada a extensão dos programas, não me sentipreparado para enfrentar o exame, mas o estudo dessas matérias me foi de grandeutilidade posteriormente. O mesmo aconteceu com a cadeira de mecânica racional,lecionada pelo velho professor Sodré da Gama, homem de hábitos excêntricos, poischegava à aula, mal cumprimentava a turma de alunos à sua espera e, de costas,enchia o quadro negro de todos aqueles complicados cálculos da matéria; dado otoque de terminação da aula, fazia outro leve sinal com a cabeça e abandonava asala sem qualquer relacionamento mais íntimo com os alunos. A matéria, porém,tinha que ser toda memorizada pelas "apostilas", organizadas pelos próprios alu-nos, e era rigorosamente exigida nos exames, como condição inicial para a aprova-ção. Também não cheguei a prestar esse exame.

Com essas duas matérias e mais a topografia, lecionada pelo professorCantanhede, e a química, primeiro com o professor Júlio Lohman e depois comMário de Brito, teria completado os três anos do curso básico da escola e poderiareceber o título de engenheiro geógrafo ou agrimensor, de acordo com o regula-mento da época. Seria mais uma alternativa de atividade profissional, mas que,infelizmente, ficou perdida na área dos planos de vida não realizados.

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TRABALHOCAPÍ

TULO

XI

Terminado o curso da Escola Normal em meadosde abril de 1923, não interrompi os estudos, pois estavame preparando, como já disse, para prestar os examesparcelados – "os preparatórios" – no Colégio Pedro II,que me faltavam para obter os certificados necessáriospara prestação do exame vestibular para a matrícula naEscola Politécnica do Rio de Janeiro.

Entretanto, comecei desde logo a pensar em en-saiar minhas atividades de professor, dando aulas a alu-nos particulares.

Vivia inteiramente às expensas da família, e jácom 19 anos, tornava-se cada vez mais constrangedorpara mim essa situação de ter que pedir dinheiro a meupai para minhas despesas pessoais. É certo que tinhaem casa todo o necessário para minha manutenção, eda parte da família havia total compreensão para omeu problema, pois era apenas uma questão de maisalgum tempo a completa regularização de minha situ-ação, uma vez que já havia conquistado pelo meu es-forço uma profissão, modesta sem dúvida, mas quedemonstrava meus propósitos de levar uma vida res-ponsável e independente.

Além desse problema, sentia-me em casa umtanto deslocado, isolado mesmo, por não participardas preocupações e até das conversas que interessa-vam especialmente aos meus dois outros irmãos e quegiravam sempre, como não poderia deixar de ser, em

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torno de assuntos da clínica odontológica e outros incidentes, comentados commeu pai. Tinha assim uma impressão vaga de que era uma espécie de "ovelhanegra", que tresmalhara do redil da arte dentária, para abraçar uma atividadeque não se apoiava em qualquer tradição da família. Além disso, professor era,na prática, um funcionário público, e essa condição não gozava de muito bomconceito em minha casa.

Para meus pais, profissões realmente dignas eram aquelas que se conquista-vam e se exerciam por esforço próprio, livremente, e sem os favores dos governos...

Era um preconceito que provinha talvez da circunstância dos cargos do"serviço público" serem naqueles tempos obtidos, quase todos, por apadrinhamentopolítico, isto é, pelo chamado "pistolão". E isso não era digno de um Lemme...

Já instalados no prédio residencial da Rua Silva Rabelo, a construção dedois quartos independentes nos fundos do terreno, permitiu-me pôr em execu-ção, com maior facilidade, o plano de começar a trabalhar dando aulas comoexplicador a alunos particulares. O ensaio deu algum resultado, pois em breve jápreparava até sargentos para se matricularem no antigo curso de formação deoficiais intendentes do Exército. Lembro-me que, entre meus alunos dessa época,destacou-se um sargento de nome José Aguirre, que mais tarde continuou osestudos, vindo a ser por fim, meu colega no quadro de professores secundários daantiga Prefeitura do Distrito Federal. Dedicou-se com afinco ao ensino da línguanacional, no Instituto de Educação do Rio de Janeiro, para onde prestou concur-so, efetivando-se como professor. Faleceu prematuramente, em meio de umacarreira que se tornara promissora.

Ainda em 1923, recebia eu do professor Teófilo um convite para substituir,por dois meses, uma professora que se licenciara, e assim que voltei à Escola Vis-conde de Cairu, a esse tempo já instalada em seu prédio definitivo no Morro doVintém. Ali lecionei complementos de matemática elementar a uma classe do séti-mo ano, o último do curso da escola.

Assim, entre essas aulas particulares, a substituição na Escola Cairu, e osestudos para os exames da Escola Politécnica, ia decorrendo o tempo, e, natural-mente, com ele o meu amadurecimento para a vida.

Concluí os últimos exames "preparatórios" em dezembro de 1924 e assim,em 1925, como já ficou referido, pude prestar o exame vestibular para a matrículano tradicional estabelecimento de engenharia do Largo de São Francisco.

Em casa, os irmãos iam aumentando quase um por ano e eu auxiliava nosestudos primários aos que começavam a cursar esse grau de ensino.

É certo, porém, que não era um fluir despreocupado do tempo.O Brasil atravessava, justamente nessa época, uma fase tormentosa em sua

vida política, econômica e social.Depois da euforia dos festejos do Centenário da Independência, em setem-

bro de 1922, com a grande exposição internacional e a visita de personagens ilus-tres tais como a do rei Alberto da Bélgica e a do presidente de Portugal, AntônioJosé de Almeida, vieram os acontecimentos dramáticos da sucessão de EpitácioPessoa. O ambiente tornou-se tremendamente carregado, começando aí o ciclo dasrevoluções que só terminaria em 1930. O episódio das "cartas falsas" de crítica a

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generais do Exército, atribuídas ao candidato à presidência da República ArturBernardes; a criação da Reação Republicana por Nilo Peçanha e finalmente o le-vante militar do chamado primeiro 5 de julho de 1922, que terminaria com o dra-ma dos "18 do Forte", não podia deixar indiferente o jovem que se habituara a dara devida importância a todos esses acontecimentos, até pelo temperamento, "poisque nada do que era humano lhe era indiferente". E assim, todas essas dramáticaspassagens da história política do País despertavam em mim grande interesse, e porque não dizer, a mais viva preocupação.

Faziam parte da minha vida de então a leitura diária dos jornais, hábitoque já se firmara, e a assistência às tempestuosas sessões do Congresso Nacional,especialmente do Senado Federal, instalado no casarão da Rua Moncorvo Filho,na esquina da Praça da República, onde funcionou depois a Escola de Direito daUniversidade do Rio de Janeiro, e onde conheci as figuras dos políticos mais des-tacados da época e ouvi seus veementes discursos de ataques à situação ou dedefesa do governo.

Entre os episódios que repercutiram grandemente, já no governo de ArturBernardes, que se iniciara a 15 de novembro de 1922, figurou a "depuração", peloCongresso, de Irineu Machado – político do Distrito Federal muito popular e comgrandes dotes de orador – em benefício de um outro – Mendes Tavares que recebe-ra votação muito menor. A "depuração" consistia exatamente nisso: O Congressopoderia aprovar a eleição de um candidato que, no entanto, não obtivera o maiornúmero de votos, anulando votações ou usando outros artifícios. Como era deesperar, esse fato provocou grande reação do público, em face da popularidade deIrineu Machado, e este defendeu por todos os meios seu mandato, falando durantedias seguidos da tribuna do Senado, dispondo-se mesmo, como dizia, a ali pernoi-tar se necessário, levando consigo, para esse fim, maleta com pijama e outros per-tences para passar quantas noites fossem necessárias, enquanto o regimento lhepermitisse fazer uso da palavra. Mas, afinal, a votação de seus pares deu mesmo avitória ao candidato menos votado, impedindo a volta de Irineu Machado ao Sena-do, onde era um crítico ferrenho do governo.

As truculências do governo de Artur Bernardes continuavam assim, inclusi-ve através das violências praticadas pelo célebre Marechal Fontoura, chefe de Polí-cia, dentre as quais teve enorme repercussão o "suicídio" do engenheiro ConradoNiemeyer, oriundo de família importante, preso não me lembro bem por que, e que,segundo a versão da polícia, se atirara de uma das janelas do pátio interno doedifício da Polícia Central. "Fora suicidado" pela polícia, conforme afirmavam osjornais da oposição.

O governo transcorria em estado de sítio permanente para "conter a desordem",segundo se dizia, e o presidente era praticamente prisioneiro no Palácio do Catete.

A 1º de março de 1923, falecia em Petrópolis Rui Barbosa, a "Águia de Haia",a grande figura do movimento civilista, e com sua morte, por assim dizer, encerra-va-se todo um período da história do Brasil. O prestígio de que gozava era imenso,apesar de, já bem doente, ter comparecido ao Senado no Rio de Janeiro para votara favor do "estado de sítio" pedido pelo governo de Artur Bernardes. Mas sua popu-laridade se consolidara desde os últimos anos do Império, com a campanha pela

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Federação, as lutas contra as oligarquias, a redação da Constituição Republicana, apassagem pelo Ministério da Fazenda da Primeira República, apesar do Encilhamento,a defesa intransigente das liberdades públicas, como paladino do habeas-corpus,com sua deportação por Floriano Peixoto, enfim, com sua enorme obra de cultura,em sua longa vida, consagrada depois na Casa de Rui Barbosa, verdadeiro museu deuma vida dedicada ao País, na qual se destacava sua atuação na Conferência deHaia, onde defendeu o princípio da soberania das nações mais fracas contra asgrandes potências.

Lembro-me bem de seus funerais, em desfile imponente pela Avenida RioBranco, ao qual assisti das escadarias da Biblioteca Nacional e a que não faltou ochoro convulso de muitos populares, espectadores, que rememoravam os lancesdramáticos da vida de Rui.

Em 1924, verifica-se o novo levante militar, o chamado segundo 5 de julho,que começou em São Paulo, chefiado pelo general reformado Isidoro Dias Lopes, eque teria seu desenvolvimento posterior na Coluna Prestes, nos anos seguintes,com a célebre marcha através de todo o Brasil, e que só cessaria em princípios de1927, com a internação na Bolívia dos remanescentes desse movimento que em-polgava o país.

Além de Luís Carlos Prestes, destacaram-se nesse episódio outras figuras,tais como os tenentes Juarez Távora, João Alberto, Siqueira Campos, Miguel Costae muitos outros, que depois de enormes vicissitudes e sacrifícios no exílio, a maiorparte voltaria ao Brasil para se unir aos políticos e com eles deflagrar a Revoluçãode 1930, constituindo a ala "tenentista" da mesma. Deles se afastou Luís CarlosPrestes, que daí em diante seguiu outros caminhos, tendo aderido ao marxismo.Siqueira Campos, considerado uma das figuras mais destacadas do "tenentismo",morreu em desastre de avião, exatamente quando, com João Alberto, procuravavoltar ao Brasil para se encontrar com os elementos que preparavam a Revoluçãode 1930.

Todos esses dramáticos acontecimentos, como já disse, não poderiam deixarde causar profunda emoção ao jovem que se habituara desde muito cedo a acom-panhar os lances mais importantes da vida pública do país.

• • •

Mas, voltando à minha vida pessoal e profissional. Em 1924, no governo deArtur Bernardes, portanto, era prefeito da cidade Alaor Prata, político mineiro, querealizou uma administração cheia de restrições, não somente pela grave situaçãopolítica do país, como pela falta de recursos. As deficiências de seu governo torna-vam-se ainda mais evidentes em comparação com a administração anterior, doengenheiro Carlos Sampaio, no governo Epitácio Pessoa, que, entre outras grandesobras, realizou o desmonte do tradicional Morro do Castelo, mudando completa-mente a fisionomia do centro da cidade.

Depois de uma série de trâmites mais ou menos complicados, que se arrasta-ram por vários meses, eram assinados os atos de nomeação para os novos cargos deprofessores adjuntos de terceira classe, de acordo com a classificação obtida pelos

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diplomados nas últimas cinco turmas da antiga Escola Normal. Os elementos dosexo masculino, em número muito reduzido, tinham obtido nesse entretempo umalegislação especial, que lhes garantia um certo número de vagas para essas nome-ações, e o meu nome figurou entre esses novos professores, apesar da minha notafinal do curso não ser das maiores em relação às obtidas pelas colegas do sexofeminino. Era, porém, uma discriminação da lei municipal obtida por influênciapolítica dos professores do sexo masculino. A 23 de abril de 1924 afinal, esses atoseram assinados e com eles minha carreira profissional se iniciava.

As formalidades burocráticas para o ato de posse eram realizadas no velhocasarão histórico que servia de sede ao governo municipal e também da antigaDiretoria Geral de Instrução Pública, situado na Praça da República entre as RuasGeneral Câmara e São Pedro, e que foi posteriormente demolido, na administraçãoHenrique Dodsworth, para dar passagem à atual avenida Presidente Vargas. Foi alique recebi o almejado título de nomeação. Esses dias de abril de 1924 foram, semdúvida, como se pode imaginar, de intensa alegria: a obtenção desse documentomarcava uma etapa decisiva de minha vida, que se iniciava modesta, é bem verda-de, mas que representava uma conquista, devida exclusivamente ao meu esforço eà minha determinação: enfim, era professor!

Depois da posse no cargo, seguiu-se o ato da designação para o exercícioem uma pequena escola mista, situada na estrada do Magarça, entre a Estação deCampo Grande e a praia de Guaratiba, em plena zona rural do antigo DistritoFederal, onde deveríamos fazer estágio por dois anos, de acordo com a lei queentão regia a matéria.

Era diretor de Instrução Pública nesse período – Antônio Carneiro Leão,intelectual pernambucano, que com outros viera para o Rio de Janeiro, trazidopor uma espécie de Mecenas – o Conde Pereira Carneiro, diretor do Jornal doBrasil e que se dedicava a outros negócios, inclusive à direção da Companhia deComércio e Navegação. Antonio Carneiro Leão, que já tinha sido diretor de Ins-trução Pública, em Pernambuco, publicara alguns trabalhos sobre educação ecultura, entre eles o livro Os deveres das novas gerações brasileiras, que vieraenriquecer a escassa bibliografia existente sobre esses problemas. Assumindo ocargo de tanta responsabilidade, teve que enfrentar sérios problemas, pois, se-gundo constava, sua nomeação não fora do agrado do prefeito Alaor Prata, queo hostilizou durante toda a sua administração, negando-lhe recursos com quepudesse fazer uma obra de destaque à frente da repartição que lhe fora entre-gue. Entretanto, é de justiça assinalar que Carneiro Leão procurou fazer tudo oque estava ao seu alcance para melhorar os serviços de educação da Capital daRepública, podendo mesmo dizer-se que foi um pioneiro, que facilitougrandemente a obra notável posteriormente realizada por Fernando de Azevedo,já no governo Washington Luís, e que passou à História da educação nacionalcomo a "Reforma Fernando de Azevedo".

Apresentei-me naquela escolinha rural, com a designação assinada exata-mente por Antônio Carneiro Leão, de quem mais tarde tornei-me amigo e compa-nheiro de lutas. Minhas atividades começaram exatamente no dia 6 de maio de1924 e na primeira escola mista do 1º Distrito Escolar, localizada à Estrada da Pedran° 53, na localidade denominada Magarça.

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Minha vida entrou assim numa nova fase, mudando completamente.Diariamente, pela manhã, mais ou menos às seis horas, tendo pois de levan-

tar-me cerca das cinco horas, tomava um trem da Central do Brasil até a Estação deCampo Grande, prosseguindo a viagem, a partir daí, num "bondinho" elétrico mui-to precário, que freqüentemente saltava dos trilhos obrigando os passageiros arecolocá-lo no devido lugar. Em marcha ronceira, ia deixando os passageiros, amaioria professores, que desembarcavam próximo às suas respectivas escolas, até aúltima, situada já na praia de Guaratiba. Havia outros trens que poderiam nos levarà Estação de Campo Grande, mas que só podiam ser tomados na Estação CentralPedro II ou na Estação de Cascadura, e era preciso fazer ainda o percurso do Méieraté uma dessas estações. A volta dava-se à tarde, pois os horários dos "bondinhos"eram muito espaçados, e assim, para um período de trabalho que não ultrapassavaumas quatro horas, consumia-se praticamente o dia inteiro. Ganhava-se então menosde 200 mil réis, dinheiro da época, dos quais eram deduzidos o desconto obrigató-rio para o Montepio Municipal, que deveria assegurar a aposentadoria após 25anos de trabalho. E com o restante, pouco mais de 180 mil réis, pagos sempre comgrande atraso – o que obrigava 'a obtenção de uma espécie de "vales" que diminuíaainda mais o total – custeava-se todas as despesas de passagens, refeições e outrasextraordinárias, inclusive material escolar para as crianças, que eram paupérrimasnaquela zona, como em todas as outras escolas semelhantes do Distrito Federal.Além disso, havia que comprar livros e roupa, e assim eu estava longe de ter obtidoindependência econômica com o trabalho que acabava de iniciar. E a continuaçãodas aulas particulares tornava-se impossível dado o horário de trabalho diário,praticamente, das cinco horas da manhã às cinco horas da tarde.

A escolinha para onde fora designado contava apenas comigo, como adjun-to, além da diretora, que morava na zona sul da cidade e que fazia também umpercurso ainda mais longo para cumprir com suas obrigações profissionais diárias.

Era pessoa de certo nível social, e apesar de não estar muito satisfeita com adesignação que recebeu de dirigir escolinha tão pobre e distante desempenhavacom relativo interesse os seus deveres.

Dividimos desde logo o trabalho da melhor forma, incumbindo-se ela doensino de todas as meninas e ficando eu encarregado dos meninos. O ambiente eradesprovido de qualquer conforto, inclusive com falta de água potável de qualidaderazoável e de aparelho sanitário decente, o que deixava, diretora e adjunto bastan-te constrangidos.

O meio era muito pobre, e as crianças iam quase todas descalças, levandopouca alimentação e bebendo água de um poço de qualidade muito duvidosa.Entretanto, procurava desincumbir-me da melhor forma das minhas tarefas, maispor intuição e usando a pequena experiência que já adquirira, do que inspirado emquaisquer princípios de pedagogia e prática de ensino, quase inteiramenteinexistentes no curso "profissional" que fizera, e mesmo de difícil aplicação nascondições concretas com que me defrontava.

Cabe aqui um reparo exatamente sobre esse estágio em zonas desprovidasde todos os recursos: em geral as autoridades de educação insistem em submeter osprofessores recém-formados a essa permanência inicial nessas escolas onde ficam

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entregues a si mesmos, sem ter quem os oriente nesses primeiros passos numaprofissão que não é das mais simples, especialmente nesses meios em que as crian-ças não dispõem de qualquer auxílio do lar – desprovidos de quaisquer recursoseconômicos ou culturais. Os estágios, ao contrário, deveriam começar nas grandesescolas e mais próximas dos grandes centros, onde colegas mais experimentados,sem falar nos próprios diretores, orientadores e técnicos, prestariam a assistêncianecessária aos novos professores, que apenas iniciam a carreira e que, mesmo comos cursos de pedagogia, psicologia e didática, não estão em condições de enfrentaros problemas da prática diária, que quase nunca se enquadram exatamente nasteorias apreendidas.

É claro que a própria prática progrediu bastante nos últimos anos nasEscolas Normais, mas é preciso não esquecer que: na prática, a teoria é muitodiferente...

É certo que Antônio Carneiro Leão fez um enorme esforço para melhorar ascondições do magistério primário, único a cargo da Diretoria Geral de InstruçãoPública da época, pois o ensino secundário e superior estavam sob a jurisdição dogoverno federal. Chamou para seus assessores os melhores elementos do magisté-rio, entre os quais recordo com saudade as professoras Floripes Anglada Lucas, jáfalecida, Eulina Nazareth, Loreto Machado e algumas outras, primeiras mulheresnomeadas para esse cargo tão cobiçado de inspetoras escolares, antes só entreguesa grandes figuras. Contou também com o auxílio dos professores Álvaro Rodrigues,Paulo Maranhão, Venerando da Graça e outros, e com isso pôde introduzir muitosmelhoramentos no ensino primário. Organizou curso de aperfeiçoamento para omagistério, os primeiros que se realizaram no Rio de Janeiro com essa finalidade.Versavam especialmente sobre o conteúdo e os novos métodos de ensino das maté-rias do curso primário. Não freqüentei nenhum deles, mas os acompanhei sofrendoa influência indireta dos elementos a eles ligados: Delgado de Carvalho, EdgarSüssekind de Mendonça, Everardo Backeuser, Deodato de Morais, Álvaro Rodriguese outros.

O inspetor escolar designado para o distrito no qual estava incluída a escolapara qual fui designado era Deodato de Morais, vindo de São Paulo, e que, apesarde um trato pessoal bastante desagradável, que chegava até à grosseria, esforçava-se por introduzir novos métodos no ensino, especialmente na linguagem, básicopara a formação das crianças, e que já eram usados em São Paulo.

Foi nesse período que se começou a experimentar o chamado método desentenciação, baseado, segundo se dizia, nas novas aquisições da psicologia dacriança. De acordo com ele, fazia-se a aprendizagem da leitura e da escrita, simul-taneamente, da frase completa com sentido, para se chegar depois à palavra isola-da e, por fim, à letra, isto é, ao contrário dos antigos métodos da soletração epalavração, adotados pelas cartilhas tradicionais, como a de Tomás Galhardo, pelosquais aprenderam muitas gerações, inclusive eu próprio, conforme referi anterior-mente. Por essas cartilhas, começava-se pelo alfabeto, cujas letras eram "decora-das" e escritas, passando-se às palavras e, por fim, às pequenas frases.

Atualmente, segundo estou informado, volta-se à combinação dos doismétodos, não se usando nenhum deles de maneira exclusiva.

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O inspetor Deodato, vindo do interior de São Paulo, procurava introduzirtambém nas escolas da zona rural do Distrito Federal – área em que estava locali-zado o distrito sob sua jurisdição – práticas agrícolas que não somente davam umaocupação aos meninos, desenvolvendo-lhes o gosto pelas atividades rurais, comotambém, como resultado de seu trabalho – especialmente na horticultura – pre-tendiam obter os elementos para a confecção de alimentação com que completas-sem as condições precárias de nutrição que lhes eram proporcionadas em suasfamílias.

Fui incumbido de dirigir essas atividades e assim é que dentro em poucocomeçamos a trabalhar no terreno que se estendia à frente do pequeno prédio emque estava instalada a escola.

Nele procuramos organizar uma pequena horta que deveria produzir le-gumes para uma "sopa escolar", a ser fornecida aos alunos como complementoalimentar.

Não eram desagradáveis essas atividades, mas meus conhecimentos agríco-las eram praticamente nulos. Procurei por isso enfronhar-me no assunto, estudan-do publicações especializadas, especialmente as distribuídas pela repartição de agri-cultura do Estado e também do Ministério da Agricultura, e procurando instruçõesjunto às autoridades desses setores da administração pública.

O entusiasmo dos meninos, porém, não era muito animador, isso porque asfamílias de que provinham tinham um conceito muito próprio sobre as atividadesescolares e talvez estivessem com a razão: enviavam seus filhos à escola justamentepara aprenderem "coisas" – tais como a leitura, a escrita, o cálculo – que os pudes-sem justamente tirar das condições em que viviam, e que lhes proporcionavamcomo única perspectiva o trato precário da terra, o que já faziam em casa. E esseesgravatar do terreno em condições tão precárias, dirigido por quem não dispunhade habilitação especial para tanto, não lhes parecia que era a função verdadeira daescola...

As crianças eram, porém, dóceis e aceitavam relativamente bem aquelaspráticas, em que se demonstravam quase sempre mais capazes do que o próprioprofessor... Também os resultados dessa atividade não se mostravam muito bri-lhantes. O terreno prestava-se pouco ao cultivo, e a burocracia tornava difícil aobtenção em tempo útil de ferramentas, adubos e demais elementos necessáriospara demonstrações convenientes. O mais que se pôde fazer de mais útil foi melho-rar as condições do poço, para tornar mais higiênica a obtenção de água potável.

E assim chegamos ao fim do ano letivo de 1924...Esforçava-me por desempenhar minhas funções com a maior honestidade,

procurando estudar sempre os problemas, completando assim o curso muito defici-ente que fizera, especialmente na parte profissional. Como já ficou dito, o curso daEscola Normal fora reduzido de cinco para quatro anos, com sacrifício justamentedas matérias de caráter profissional, que tivemos de estudar com professores parti-culares para prestar exames em junho de 1923.

E, apesar de verificar que aquelas atividades agrícolas em que se empenhavao inspetor Deodato muito pouco interessavam aos alunos, dediquei-me a elas como máximo de entusiasmo, procurando sempre melhores e maiores esclarecimentos

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com os entendidos no assunto e sempre recorrendo aos livros especializados queme pudessem trazer mais completos esclarecimentos dos respectivos problemas.

Entretanto, o sentimento de inferioridade persistia em mim perante aquelaatividade de ensinar o be-a-bá a crianças. De certa forma, a iniciação agrícola deque fora incumbido suavizava um pouco esse sentimento, pois que se tratava deuma atividade nitidamente de caráter masculino, além de representar um passo àfrente naquela rotina da escolinha rural.

Continuavam nesse entretempo meus estudos para me matricular na EscolaPolitécnica, e isso se combinava com o meu trabalho e me dava uma perspectiva deum dia abandonar aquelas atividades do magistério primário.

Alguma coisa inteiramente nova iria, porém, surgir num outro aspecto deminha vida, justamente naquele ano e ligado também a minha passagem pelaescolinha de Magarça.

Viagens diárias nos trens e no trajeto obrigatório eram feitas por grandenúmero de professores e colegas da Escola Normal, designadas para escolas dessasmesmas zonas rurais, e assim mexericos amorosos entre muitos desses jovens pro-fessores, e até entre os mais velhos, ocorriam, sejam com oficiais do Exército queviajavam também em quantidade expressiva nesses mesmos trens no desempenhode suas funções na Vila Militar e no Realengo, seja entre os próprios colegas.

Em breve, eu que vivia mais ou menos em disponibilidade sentimental, iriatambém ser atingido pelas inquietações que definem esse estado, que se resumenuma palavra, que tem a virtude de não exigir maiores esclarecimentos – "o amor".

Mas isso teve tanta importância em minha vida que virá relatado em capí-tulo especial, como merece.

O ano de 1925 trouxe, além dessas, outras modificações em minhas ativida-des profissionais. O inspetor Deodato insistia em manter e ampliar em seu distritoas atividades agrícolas. E assim é que me vejo, em breve, designado por ele parasuperintender todo esse trabalho no distrito, cuja sede foi instalada na escola quefuncionava no casarão localizado nos jardins do Matadouro de Santa Cruz, escolaessa que funcionava sob a direção de um meu colega e amigo – o professor Álvarode Sousa Gomes, que se formara em turma anterior à minha e assim já ascendera aesse cargo de direção.

Atirei-me às novas funções com a seriedade com que sempre cumpria mi-nhas obrigações e até mesmo, por que não dizer, com algum entusiasmo, pois esta-va certo que agora, com uma área mais ampla e condições melhores, poderia talvezlevá-las a cabo com maior sucesso.

Tratava-se agora de preparar uma área de terreno bem maior, e para issoseria necessário cortar alguns grandes pés de eucaliptos seculares existentes noterreno do referido jardim, arar a terra, matar formigas, ali muito abundantes,adubar, semear, num trabalho de agricultura de muito maior vulto.

Continuei a estudar o assunto e também a criação de abelhas, e a procurarpara isso as repartições federais e municipais. De um desses contatos ainda guardoa cópia de um ofício dirigido ao diretor do Abastecimento e Fomento Agrícola doDistrito Federal, dr. A. P. de Sousa Botafogo, que me atendeu na medida do possí-vel, pondo à minha disposição o engenheiro agrônomo A. Correia da Silva, quemuito me auxiliou nesses trabalhos.

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O ofício, que esclarece bem os termos em que o problema foi colocado,estava vazado nos seguintes termos:

Distrito Federal, 4 de junho de 1925.

Exmo. Sr. Dr. A. P. de Sousa Botafogo.Diretor do Abastecimento e Fomento Agrícola do Distrito Federal.

A Inspetoria Escolar do 19º Distrito tendo, de acordo com o sr. Diretor da Instrução PúblicaMunicipal, resolvido organizar definitivamente, este ano, o ensino agrícola nas escolas ruraissob sua jurisdição e, como complemento disto, fornecer aos alunos a SOPA ESCOLAR, medidascujo valor não se precisará enaltecer, vem solicitar a V. Excia. auxílios que facilitem o iníciodesse trabalho, visto como ainda não possuímos material e mão-de-obra próprios, dadas ascondições financeiras atuais da Prefeitura Municipal e mesmo por se tratar de um serviço aindaem organização.

Os auxílios que ora solicito a V. Excia. serão utilizados, por agora, somente nos terrenos doantigo parque do Matadouro, atualmente cedidos a Diretoria Geral de Inspetoria Pública e ondefunciona a Escola Estados Unidos, pertencente ao 19º Distrito Escolar, que por suas condiçõesfoi escolhida para centro de distribuição desse serviço.

Eis o que de mais urgentemente solicita a V. Excia. esta Inspetoria:1. Autorizar e mandar proceder ao corte de algumas árvores que impedem de modo abso-

luto o trabalho das máquinas para o preparo do terreno, visto como se trata de transformarparte do antigo jardim em terreno apropriado à horticultura, principalmente;

2. Aragem e conseqüente dragagem dessa mesma área de terreno;3. Pôr, durante algum tempo, à disposição da Escola, os antigos jardineiros do Parque, para

auxiliarem na feitura inicial dos canteiros de horticultura e jardinagem, no que serão ajudadospelos alunos, que os conservarão depois;

4. Autorizar as oficinas do Matadouro a prestar auxílio no preparo de alguma ferramentaque se estrague no uso pelos alunos e na construção de alguns pequenos objetos que serãoutilizados no Museu e na Biblioteca Agrícolas, em organização na referida escola.

Sem mais, agradecendo antecipadamente todo o apoio prestado por V. Excia. a essa causaque julgamos da maior oportunidade e valor entre nós – O Ensino da Agricultura nas escolas daZona Rural. Subscrevo-me grato e atenciosamente, (a) Paschoal Lemme, comissionado paraauxiliar o ensino da agricultura nas escolas do 19º Distrito Escolar.

Nesse trabalho tive também a cooperação do jornalista Norberto dos San-tos, diretor do jornalzinho Triângulo, que tinha sede em Santa Cruz, e que em seunoticiário dava sempre relevo a essas atividades agrícolas escolares.

Infelizmente, porém, o desejo de realizar é freqüentemente maior do que aprópria realidade permite, pois nosso trabalho não era de molde a interessar muitoaos agricultores da região, pois era uma atividade bastante precária, e nem mesmopreenchia aquele objetivo de obter os ingredientes suficientes para o preparo deuma simples "sopa escolar" que atendesse de maneira regular o mínimo de criançasque necessitavam de um reforço de alimentação.

Entretanto, o inspetor Deodato insistia nos seus propósitos, em grande par-te como exibicionismo, de novato nas lides de educação na Capital do País, e tam-bém iludido com suas atividades no Estado de São Paulo, onde realmente existiam,regiões agrícolas, definidas e tradicionais e onde tais atividades poderiam ser lar-gamente organizadas nas escolas e difundidas pelas populações locais. A agricultu-ra no Distrito Federal, naquela zona já se reduzia a simples hortas, quase todas

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mantidas por portugueses, e as crianças, como já disse, procuravam as escolas jus-tamente para obterem instrução e letras e fugir às suas atividades cotidianas. Aprópria Escola Visconde de Mauá, em Marechal Hermes, que ministrava ensino agrí-cola em nível secundário, não conseguia grandes realizações nessa especialidade eaos poucos foi se transformando numa escola profissional de ofícios, semelhante àsoutras já existentes em outros bairros da cidade.

O caráter artificial da iniciativa ficava assim cada vez mais evidente, mas oinspetor Deodato, ao que parece, tendo empenhado sua palavra junto à adminis-tração superior, não queria se render à evidência dos fatos.

Seu temperamento impulsivo e seu trato pessoal às vezes bastante desagra-dável, em breve levou o professor Álvaro de Sousa Gomes a deixar a direção daescola, que era a sede desses serviços.

Eu, simples adjunto, fui designado para substituí-lo provisoriamente, até anomeação de um diretor efetivo, o que não deixava de constituir uma distinçãopara mim, mal iniciado na carreira, pois ainda não completara nem três anos deserviço.

Durou pouco tempo também minha permanência à frente dessas atividades.Os trabalhos não progrediam conforme se tinha previsto, não só em razão daquelesmotivos apontados, como da falta de material e estímulo para sua continuidadeem condições favoráveis.

Afinal, uma precipitação do professor Deodato para inaugurar serviços queeu julgava que não estavam em condições de serem exibidos como uma realizaçãovitoriosa e consolidada, fizeram com que eu também entrasse em choque com ele epedisse minha retirada do distrito sob sua jurisdição.

O ato final dessa minha resolução deu-se em virtude de uma notícia por elemandada publicar sobre uma festa de inauguração desses serviços agrícolas que euconsiderava ainda incipientes, ou talvez mesmo, com pessimismo, irrealizáveis nostermos em que o inspetor Deodato desejava.

Transcrevo em seguida uma dessas notícias, publicada no jornal A Noite, naépoca o vespertino mais popular do Rio de Janeiro:

De algum tempo a esta parte, o ensino primário de agricultura vem tomando grande incre-mento nas escolas do Distrito Federal.

Deve-se ao professor Deodato de Morais a introdução dessa patriótica diretriz em nossomeio escolar.

Os serviços realizados nas escolas de Santa Cruz têm interessado a população local e nãosão poucos os lavradores que acompanhavam com vivo interesse o que ali se está realizando.

Tendo conhecimento do bom êxito desses serviços, a firma Wilson King & Comp., agente daFord Motor Company, nesta Capital, em um gesto magnânimo e de alto alcance patriótico,ofereceu fazer gratuitamente com os tratores Ford os trabalhos necessários em uma grandeárea de terreno que circunda a escola primária do Matadouro.

O inspetor do distrito, professor Deodato de Morais, que não tem poupado esforços nosentido de interessar os pequenos escolares no amor à terra, aceitou com prazer o oferecimentoda firma, marcando o dia 5 de setembro para a realização de tais serviços.

Aproveitando essa oportunidade, realizar-se-á então nesse dia a festa do arado, reunindo-se em Matadouro para mais de mil crianças, a fim de assistirem à rotação da terra e receberemas primeiras noções práticas de agricultura.

É de se louvar o gesto dos Srs. Wilson King & Comp. em estimular assim as patrióticasiniciativas do inspetor do 19º Distrito.

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Era uma questão de ponto de vista, como se vê: o professor Deodato queriadesde logo uma consagração; nós professores e executores dos planos, queríamos,com simplicidade testar primeiro a viabilidade do projeto no local escolhido, paradepois festejar sua realização.

Minha transferência desse distrito deu-se em fins do ano letivo de 1925 efoi assim muito curta como se vê minha passagem por essas atividades de caráteragrícola.

Depois de uma breve permanência numa escola na Estação de Bangu –onde fui encontrar na direção meu velho professor das primeiras classes deensino primário, Salustio Castilho, que por assim dizer tinha completado minhaalfabetização e que revi, evidentemente, com grande satisfação – quase deixeidefinitivamente a função pública de professor primário, levado por aconteci-mentos que se passavam em casa e que giravam novamente em torno de pro-blemas da arte dentária...

Passado, porém, esse interregno que posso denominar de "comercial edentário", voltei ao magistério, já agora para atender a um convite do professorTeófilo Moreira da Costa, o meu antigo mestre, que aliás sempre demonstrara dese-jo de me levar em definitivo para com ele trabalhar em sua Escola Visconde deCairu, já definitivamente instalada em sua nova sede no Morro do Vintém, e reali-zando em grande parte o sonho que alimentara em toda a sua vida.

• • •

Com o relato desse episódio do ensino agrícola nas escolas do 19º DistritoEscolar não pretendo, de forma alguma, diminuir as boas intenções do professorDeodato de Morais e sua operosidade, pois punha em sua atividade convicções queadquirira em sua passagem pelo ensino em São Paulo, que a esse tempo já era dosmais adiantados do País no tocante à agricultura.

Quis com isso muito mais fixar aspectos de meu próprio comportamento,pois, mesmo me arriscando a sofrer represálias numa carreira que mal começava,não hesitei em discordar do chefe, por não ter podido me convencer com a propa-ganda que se procurava fazer de atividades que eu considerava ainda muito primi-tivas para merecerem tanta propaganda, serem consideradas como a chave da so-lução dos problemas do ensino naquela zona e quem sabe mesmo do País.

É certo também que, já o professor Álvaro Gomes, com mais experiência doque eu, não pudera permanecer à frente da escola que fôra justamente escolhidapara liderar esse movimento de instauração de novos "métodos de ensino".

Chego mesmo a imaginar, agora passados tantos anos, que o professor De-odato de Morais pudesse ter razão quanto aos objetivos que o animavam. Mas meuinconformismo ou mesmo impaciência levaram-me àquele gesto de não podercompactuar com a maneira com que se pretendia apresentar uma iniciativa, quemesmo acertada, deveria ser realizada como projeto normal e desenvolvida semqualquer espécie de propaganda pessoal.

Sempre julguei não ser justo fazer experiências com elementos humanos, eespecialmente com crianças, antes que as iniciativas estivessem suficientemente

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sedimentadas, e que estas fossem realizadas com a honestidade de propósitos quea educação e o ensino exigem.

Esse desprendimento de possíveis vantagens, que não alego aqui com a in-tenção de valorização pessoal mas apenas como um dado de minha personalidade,repetiu-se muitas vezes em minha carreira e situações de vida, até mesmo comgrandes prejuízos materiais, mas nunca me causaram arrependimento.

O professor Deodato, com quem aliás continuei a manter as melhores rela-ções, prosseguiu em seu trabalho, convencido, parece, de seu acerto, e assim é que,em 14 de maio de 1926, aparecia no jornal A Noite um extenso noticiário, queainda hoje conservo, e do qual constam os seguintes dados:

Com o ensino agrícola e a luta que ele determinava, desenvolver-se-iam no jovem brasilei-ro as capacidades de trabalho e de iniciativa. Traçado o plano da nova orientação propedêutica,a Diretoria do Ensino aliciou os serviços do professor Deodato de Morais, catedrático de peda-gogia da Escola Normal de São Paulo, a fim de que assumisse a direção do primeiro núcleoexperimental. O ilustre professor, nascido e criado em Piracicaba, padrão de ensino agrícola noPaís, devotado à agricultura, e um esforçado trabalhador, iniciou desde logo sua demonstração.Elegeu o 19° Distrito Escolar, que abrange uma zona essencialmente agrícola: Santa Cruz, Sepetibae Guaratiba. Dentro dessa zona, localizou em Matadouro, onde há uma escola tradicional fun-cionando há trinta e dois anos no mesmo prédio – ainda construído no Reinado e por determi-nação de D. Pedro II. O ensino desenvolveu-se rapidamente (sic) sob a orientação técnica doprofessor Deodato de Morais, conseguindo pleno êxito (sic).

Essa escola, atualmente sob a direção da catedrática Maria Isabel Duarte Moreira, quecontava em 1924 com cento e poucos alunos, funciona hoje com 430 matriculados. Dez profes-sores adjuntos encarregam-se de turmas diversas. A escola possui, além do curso regular, osseguintes cursos:

Ensino de sloyd – a cargo da adjunta de terceira classe, Ermelinda Ferreira, discípula doprof. Teófilo.

Ensino de trabalhos de agulha, malharia e roupas brancas – a cargo da adjunta de terceiraclasse Virtúlia Penfold, com prática na Escola Rivadávia Correia.

Ensino de agricultura e horticultura, prática e teoria, a cargo do adjunto de terceira classeJaime Batista e do Sr. Isaltino Melo.

Ensino de apicultura, a cargo do adjunto Jaime Batista com prática no Colmeal Modelo deDeodoro.

Cinema Pedagógico e Megascopia – a cargo dos professores Yolanda Oberlander e HenriqueCancio.

E sempre enaltecendo a obra do professor Deodato de Morais, assim termi-na o artigo-reportagem:

Mas o seu maior resultado (desse sistema de ensino) é de ordem moral e consiste na integraçãoda criança brasileira no solo brasileiro e nos sentimentos brasileiros, maravilhosa comunhão quegeneralizada no País por uma falange de pregadores do estofo do professor Deodato de Morais,que sejam ao mesmo tempo como ele o é, homem de ação capaz de ilustrar com o exemplosobre a terra, a boa doutrina, surtiria naquele largo e generoso entendimento entre o brasileiroe sua pátria, ambos férteis em virtudes e acabaria realizando o sonho imenso de ascensão espi-ritual e econômica do Brasil.

Evidentemente, as hipérboles, os exageros do artigo, de inspiração, é claro,do próprio professor Deodato, numa obra que mal começava, não diminui em nada

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o valor de suas intenções e seu esforço em realizar alguma coisa, que, do seu pontode vista, considerava útil e adequado, no setor que a administração do ensino pú-blico do Distrito Federal entregara aos seus cuidados.

Aquela pressa, porém, em organizar festividades de inauguraçõesconsagradoras não agradavam ao meu temperamento, que acertada ou errada-mente julgava que aquelas realizações deveriam caminhar num ritmo, talvez maislento, mas em condições mais sólidas, e com o caráter de maior permanência eespecialmente sem necessidade de qualquer propaganda.

Talvez a intenção do professor Deodato de Morais fosse, com essa propa-ganda, chamar a atenção da autoridade superior para um problema que julgava degrande importância.

É um método de cuja legitimidade não estava muito seguro na época, depoder discutir com vantagens.

Ou talvez, como disse, minha impaciência, traço de caráter que sempre meacompanhou por toda vida, não me deixasse compreender, em toda a extensão, osmotivos que animavam o inspetor Deodato.

Não soube nunca mais do destino daquelas redentoras "atividades agríco-las" nas escolas primárias daquela zona, denominada rural, da antiga capital daRepública. Parece-me, porém, que não chegaram a ser de todo muito brilhantes.

E o próprio professor Deodato de Morais, creio, não permaneceu por muitomais tempo à frente daquele distrito escolar.

Muito mais tarde, em 1934, quando exercia eu o cargo de secretário deAnísio Teixeira, diretor de Instrução Pública, recebi do professor Deodato de Mo-rais, um interessante livrinho de sua autoria, intitulado Alimentação, da Coleção"Vida Higiênica", da Companhia Melhoramentos de São Paulo, com a seguinte de-dicatória: "Ao caríssimo amigo e colega Paschoal Lemme, com um grande abraço, oDeodato, maio, 1934."

Minha carreira, pois, se não começava propriamente com uma decepção, aomenos já encontrava motivos para uma certa mudança de rumos e orientação, oque se deu, efetivamente, pouco depois.

O importante, porém, nesse início de trabalho, foi desde logo, ter sido postoà prova minha capacidade de expressar um pensamento independente, o que paramim teve uma enorme significação, dado meu temperamento caracterizado nãosomente pela timidez, como também pela dificuldade que sempre tive em assumiratitudes que pudessem chocar ou melindrar de qualquer forma as pessoas comquem devesse entrar em contato, quer por relações de hierarquia, quer por quais-quer outras circunstâncias: o trato agressivo, como a necessidade de discordar,foram para mim deveres sempre muito desagradáveis de cumprir.

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INTERREGNO ALEMÃO,COMERCIAL E DENTÁRIO

CAPÍ

TULO

XII

Não sei exatamente como nasceu em nós – osirmãos Lemme – essa predileção e interesse pelas coi-sas alemãs. Talvez fosse o efeito da propaganda dosprodutos industriais alemães que começavam a apare-cer por aqui, em concorrência com os de origem fran-cesa, inglesa ou norte-americana, especialmente no se-tor da arte dentária, que interessava particularmente ameu pai e aos dois irmãos, que passaram a dar umaatenção especial a eles.

A Alemanha, aos poucos, recuperada da guerraque perdera, voltava a procurar seu lugar no mundo entreas grandes potências, apesar das condições drásticas quelhe foram impostas pelo Tratado de Versalhes. Essas cir-cunstâncias, dentro em pouco, seriam um dos pretextosou causa da formação do ambiente que levaria o mundoa uma maior e mais terrível catástrofe: a Segunda Gran-de Guerra Mundial.

Não creio, ou pelo menos não me recordo, que hou-vesse, de nossa parte, qualquer simpatia pelo militarismogermânico, mas talvez existisse algum entusiasmo pelosfeitos alemães durante a guerra de 1914-1918. Não erararo ouvir-se referências ao fato de um país sozinho – oImpério Alemão – ter enfrentado praticamente todo o mun-do e ter resistido tanto tempo. Quem sabe seria o senti-mento de pena que sempre surge em relação ao perdedorde uma luta terrível entre gigantes, que fora a PrimeiraGrande Guerra Mundial? Ou a "injustiça", em que muito se

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falava também, das condições drásticas que foram impostas a um povo cuja operosidade,criatividade e cultura eram por todos reconhecidas, como se houvesse a intenção deesmagá-las definitivamente, em benefício de concorrentes mais felizes?

A palavra "imperialismo" já começava a se tornar de uso corrente, para de-finir interesses de dominação econômica e política, que pouco tinha a ver com apretensa "vocação" do povo alemão para dominar o mundo: tratava-se, sim, dadisputa de mercado e de fontes de matérias primas, e nesse jogo o "vale-tudo"atingia gregos e troianos.

A transformação de inocentes e ingênuos de todos os lados em "carne paracanhão", através de uma propaganda que pretendia assumir o caráter de "puropatriotismo" era outro assunto que se discutia muito, e, nesse sentido, a atitude e anotável obra de um Romain Rolland, Au dessus de la melée, entre outras, produziaseus efeitos esclarecedores. Enfim, sentia-se em tudo o ar pestilento da hipocrisianas manifestações dos políticos profissionais, que serviam a interesses que estavammuito distantes de serem os que mais convinham à busca de uma verdadeira pazentre os homens, ideal sempre alimentado, onde quer que estivessem e quaisquerque fossem os povos a que pertencessem os "homens de boa vontade"...

O fato é que, quando tivemos que escolher entre a língua inglesa e a alemã,para prestar o exame preparatório da segunda língua estrangeira (a primeira era ofrancês, obrigatória, para nós, na época), optamos pelo alemão, apesar de ser oinglês, ainda sem a ênfase atual, a preferida pela maioria dos estudantes.

Tratamos assim de procurar um professor que pudesse nos preparar para oreferido exame, e creio que foi o jovem Stoffel, nosso vizinho da Rua Figueiredo,que reencontráramos depois de alguns anos de afastamento, quem indicou a pes-soa que nos introduziu na complexidade do idioma do país que acabava de perdera guerra, mas que era também a pátria de um Goethe, de um Schiller, de umBeethoven, de um Heine, de um Thomas Mann ou de um Einstein.

Essa pessoa, que deveria ter uma influência muito positiva em nossas vidas,não era porém um alemão, mas um suíço de origem alemã, o que, nas condiçõesvigentes na época, foi uma grande vantagem para nós.

Era ainda jovem, alto, magro, educado, de maneiras suaves, e trabalhava nocomércio em serviços de contabilidade, em escritórios de grandes estabelecimentosimportadores alemães. Viera sozinho para o Brasil, por motivos que nunca nos re-velou exatamente, e sua família continuava vivendo no Cantão alemão do pequenopaís neutro e progressista do centro da Europa.

Em breve, ao cair da noite, pois era a única hora de que dispunha o nossoprofessor improvisado, estávamos mergulhados na decifração dos caracteres góti-cos do Erstes Buch (1º livro) do método Berlitz, na iniciação ao difícil idioma orga-nizado por Lutero, na base do latim. A vontade de aprender era bastante grande eo professor se esforçava para nos introduzir, da melhor forma possível, naquelecipoal de declinações, conjugações, regências de preposições, e nas frases em que overbo se partia, para aparecer um dos segmentos como chave de todo o pensamen-to, no fim do período...

Mas o que mais progredia era a nossa amizade com o jovem professor. Tem-peramento sentimental, separado da família, vivendo sozinho no Rio de Janeiro, foi

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aos poucos se afeiçoando aos seus três alunos e acabou por freqüentar nossa casa,onde muitas vezes fazia refeições e ficava durante muito tempo em convívio conosco.

Andejo, alpinista, acabou por nos arrastar para suas excursões domingueiras,e foi assim, em sua companhia e por ele estimulado, que viemos a conhecer muitospontos pitorescos da cidade em que nascêramos e em que sempre vivêramos, mui-tos dos quais, porém, eram inteiramente desconhecidos para nós: Alto da Boa Vista,Pico da Tijuca, Corcovado, Pão de Açúcar, e também as cidades vizinhas do Estadodo Rio de Janeiro, como Petrópolis, Teresópolis, Friburgo, Miguel Pereira, Pati doAlferes, alargando muito nossa geografia, que a esse tempo quase que se limitavaao Méier e arredores e ao centro da cidade.

Além disso, essas excursões iam aos pouco criando em nós o hábito saudá-vel, que só muito mais tarde começou a se introduzir entre as pessoas de nossacategoria: o descanso semanal, o week-end, a higiene mental pelo desligamentocompleto das atividades da semana, do estudo ou do trabalho. Essa prática tornou-se mais tarde corriqueira, especialmente depois do advento da era do automóvel,que foi sem dúvida a grande revolução no transporte que mais profunda influênciateve na mudança de hábitos do homem, em todo o mundo, pela facilidade dedeslocamento individual que proporcionou.

Para mim particularmente, que estabeleci, como veremos em seguida, rela-ções de ordem um pouco diferente com o nosso amigo suíço, esse hábito foi degrande proveito. Assim foi que não mais o abandonei, levando-me mesmo, maistarde, a adquirir fora do Rio de Janeiro, um local onde passaria dias muito agradá-veis e mesmo felizes como uma válvula de escape para as atribulações que a vidame trouxe, em circunstâncias que jamais poderia imaginar que pudessem ocorrernaqueles anos de relativa despreocupação. E assim se o alemão que aprendíamosnão era muito, a amizade com o Eduardo Haerdy – o nosso companheiro suíço-alemão – nos proporcionava outros benefícios bastante apreciáveis.

Esse local, que tantos anos depois escolheria para aquele fim, foi exatamen-te um dos que vim a conhecer através de uma das excursões domingueiras que onosso improvisado professor nos sugeriu e que fizemos várias vezes: Pati do Alferes.

Confesso que nunca poderia imaginar que fora das serras de Petrópolis,Teresópolis e Friburgo, que eram os passeios clássicos, com suas estradas de ferrogalgando a montanha em cremalheira e suas paisagens típicas, tão decantadas, aténa literatura, pudesse haver coisa tão bela como os panoramas que se podiamapreciar na subida do trenzinho da antiga Linha Auxiliar da Estrada de Ferro Cen-tral do Brasil.

Esse ramal de estrada de ferro partia da antiga Estação de Belém (hojeJaperi), importante entroncamento ferroviário entre o Rio de Janeiro, São Paulo eMinas Gerais, em demanda de Governador Portela, a quase 700 metros de altitude,onde as linhas se bifurcavam, indo um ramal até Vassouras e outro a Porto Novo doCunha, à beira do rio Paraíba, na divisa com Minas Gerais. Aí, depois de se atraves-sar uma ponte, a linha férrea penetrava na chamada Zona da Mata desse Estado.

Nossa excursão preferida era na direção de Miguel Pereira, a antiga "Estiva",que o grande médico brasileiro que lhe deu o nome recomendava como um dosmelhores climas do Brasil, só comparável exatamente a certas regiões da Suíça.

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Entre Miguel Pereira e Pati do Alferes, localidades pertencentes ao município deVassouras, ficava a Parada de Monte Alegre (hoje Pedras Ruivas), onde havia, insta-lado em casa colonial de grande beleza, um hotelzinho sem muita categoria, mascuja rusticidade e simplicidade nos atraía e no qual várias vezes pernoitamos.

Nossa pousada nesses agradáveis passeios por essas regiões, só muito maistarde viemos a saber, resultara da competição de dois barões em agradar à SuaMajestade Imperial, o Senhor D. Pedro II...

Esse prédio colonial tinha uma história curiosa que vim a conhecer pelaleitura da interessante obra de Inácio Raposo intitulada História de Vassouras. Àpágina 152, lê-se o seguinte:

[...] um fato não menos digno de nota para a história de Vassouras, foi a passagem inesperadade S. M. Imperial, nesse ano (1862), pela freguesia de Pati do Alferes. Tendo tomado o Impera-dor a estrada que une essa freguesia ao Município e especialmente à cidade de Petrópolis, a fimde regressar à Corte pela estrada de ferro D. Pedro II, apareceu a cavalo, seguido de não peque-na comitiva, na praça do povoado, com grande surpresa da população, que nem por isso deixoude manifestar ao chefe da nação sua enorme alegria por vê-lo naquele próspero arraial e poronde passava pela primeira vez. Saindo ao seu encontro, o Barão de Pati do Alferes solicitou dosoberano a graça de lhe conceder a honra de jantar em sua fazenda, convite este que foi aceitopor D. Pedro, que, após a lauta refeição, prometeu voltar ao povoado a fim de retribuir aos seusgentis habitantes as grandes demonstrações de estima que acabara de receber. Infelizmente,porém, não pôde sua Majestade cumprir essa promessa, o que profundamente entristeceu obarão de Capivari que mandara construir para recebê-lo o rico palacete de Monte Alegre, entreas povoações de Pati do Alferes e Miguel Pereira, localidade que naquele tempo ainda nãoexistia.

Mas, para mim, o nosso amigo suíço tinha um atrativo a mais: emotivo,sentimental, de certa maneira um tímido também como eu, via-se arrastadofreqüentemente a crises amorosas, de que nos fazia confidentes, e isso me fortale-cia o ânimo por verificar que essa espécie de problema, que por essa época me faziatambém sofrer bastante, não era característica particular minha, mas atingia tam-bém uma pessoa de origem tão diferente e de educação tão diversa da nossa. E issofez-me compreender, desde muito cedo, aquilo que pude verificar mais tarde, quandoos caminhos da vida me fizeram andar por muitos lugares completamente diferen-tes, por esse mundo afora: o homem, retirado o verniz que lhe empresta a educa-ção, os costumes nacionais, os hábitos, aparentemente tão diversos, torna-se umanimal muito semelhante, qualquer que seja o quadrante da terra de onde proceda.

Esse efeito, muito subjetivo, do contato que mantive com o nosso jovemprofessor de alemão, mas que teve grande importância para mim, só agora se apre-senta à minha memória com toda a clareza, ao apreciar à distância aqueles tempos.Mal saído da adolescência e começando minha vida responsável, esses problemasganhavam uma dimensão que hoje poderia parecer ridícula, mas que freqüentementedeixam marcas profundas em espíritos sensíveis, de que muitas vezes jamais serecuperam. Nem sempre a "repressão" que a vida impõe se processa com a necessá-ria eficiência.

É que "a essência da repressão consiste na recusa do ser humano em admitiras realidades de sua natureza humana"; mas "as únicas coisas válidas na vida psíquica

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são, antes de tudo, as emoções. Todas as forças psíquicas só são significativas graçasà sua capacidade de suscitar emoções"... (Norman O. Brown em A vida contra a mor-te). E, no entanto, sempre é necessário justificar a emotividade como um defeito, umafraqueza, que é preciso superar, para que a vida se torne "normal", de acordo com ospadrões geralmente aceitos, mesmo que isso custe a supressão das "únicas coisasválidas" pelas quais vale realmente a pena viver.

Mas o estreitamento das relações com a nossa família fez com que o nossoamigo suíço, aos poucos, fosse caindo também no âmbito do interesse pelas coisasda odontologia e, em breve, começou a brotar a idéia dele se dedicar ao comérciode artigos dentários, onde começavam a surgir, como dissemos, algumas novasespecialidades, graças à inventividade da indústria alemã.

Além disso, ele se mostrava um tanto cansado do trabalho de escritório e dacondição de empregado e pensava em se estabelecer por conta própria.

A idéia progrediu e em breve começou a se discutir a possibilidade da orga-nização de uma sociedade comercial, da qual meu pai participaria como sóciocomanditário, devendo integrá-la um outro elemento que já se dedicava a esseramo de negócio e que era conhecido de ambos.

Meu pai, parece, já estava pensando também em ir deixando a profissão,que exercia por cerca de trinta anos consecutivos. Ou talvez, já se desenhava paraele a situação que depois se efetivou, e para a qual necessitava de maior liberdadede ação, que o trabalho pessoal diário num gabinete dentário não permitia...

O fato é que, dentro em pouco, surgia realmente a nova firma, tendo seinstalado primeiro numa pequena loja da Rua Sete de Setembro, e depois se muda-do para a Praça Tiradentes.

A crise que se criara com o meu rompimento com o inspetor Deodato deMorais e a perspectiva de voltar como simples professor-adjunto para uma escolinharural, fez com que se intensificasse em mim a idéia de abandonar a carreira domagistério e, portanto, o serviço público.

Não foi difícil, pois, o trabalho de persuasão do amigo e professor de ale-mão e também dos elementos da família para que eu viesse a participar dessasatividades comerciais da nova firma de artigos dentários, onde representaria meupai.

Acabei por me convencer, parcialmente, das razões que me eram apresenta-das e assim é que decidi me licenciar do cargo de professor-adjunto da Prefeiturado Distrito Federal, e ingressar, como experiência, no negócio e me dedicar a essasatividades comerciais na loja da Praça Tiradentes.

O outro sócio era um espanhol de idéias progressistas – o Manuel Garcia –artista, culto, figura muito interessante e que complementava seu orçamentodoméstico integrando a orquestra do Teatro Municipal, onde tocava viola.

Nessas novas atividades de caráter completamente inesperado para mim,permaneci apenas pouco mais de um ano. Aprendi muita coisa útil e interessante,próprias de uma atividade comercial de nível alto e especializado, como era a im-portação e a venda de artigos dentários. A contabilidade, a correspondência co-mercial, o trato nem sempre muito agradável com a freguesia e, finalmente, asresponsabilidades que tive de assumir na direção da firma durante a viagem do

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nosso amigo suíço e agora sócio à Europa, para visitar a família e resolver proble-mas de caráter comercial, proporcionaram-me uma experiência bastante apreciá-vel para a minha formação, alargando de certa forma meus horizontes, e trazendo-me um desembaraço que melhorou bastante meu temperamento por natureza tí-mido, como já acentuei tantas vezes.

Mas, a sociedade não perdurou muito. Meu pai, acostumado por tantosanos a uma profissão liberal, não se adaptou à vida comercial, mesmo sem parti-cipar diretamente em suas atividades, pela sua condição de sócio comanditário.Talvez também aquelas outras razões de caráter muito íntimo, que já o atraíampara São Paulo, fizeram com que se desinteressasse do negócio. Este também nãoprogredia com a rapidez que fora prevista, inclusive por falta de capital, e, embreve, a discordância entre os sócios fez com que meu pai se retirasse da firma,que entretanto continuou com os outros dois elementos.

De minha parte também, apesar de não ser propriamente negativa aexperiência que fizera, o fato é que não me adaptava àquela vida do toma-lá-dá-cá: mercadorias contra dinheiro, de certa forma a impingir artigos que nemsempre correspondiam à propaganda, enfim todos aqueles "truques" caracte-rísticos da atividade comercial, que sempre considerei como uma forma inferi-or de aplicação do esforço humano, isto é, fazer-se apenas de intermediárioentre o que outros produziram e que terceiros precisam ou desejam consumir.Havia ainda a necessidade diária de "fazer o caixa", naquela rotina do "deve" edo "haver", onde o fim do mês era aguardado sempre com grande ansiedade eapreensão, diante de uma perspectiva de desequilíbrio entre receita e despesa,num pequeno negócio, sem grandes margens para financiamentos e sem haverrecursos a que recorrer para cobrir os déficits.

Positivamente, não tinha mesmo qualquer vocação para essa espécie deatividade, que muito mais tarde vim encontrar tão bem retratada por Traven emseu O barco da morte, neste diálogo:

– É verdade, Pippip. Uma pessoa acaba por se fatigar do comércio honrado. Há nele qual-quer coisa que soa falso, entende? Como se estivéssemos todo o tempo espreitando as algibeirasdo próximo. Ser comerciante, Pippip, viver do dinheiro dos outros é quase... é assim como umhomem, que vive à custa de mulheres...

Esse tipo de atividade é ainda melhor e mais impiedosamente descrita porErasmo no seu imortal Elogio da Loucura:

Os negociantes, sobretudo, são os mais sórdidos e estúpidos atores da vida humana: não hácoisa mais vil do que a sua profissão, e, como coroamento da obra exercem-na da maneira maisporca. São, em geral, perjuros, mentirosos, ladrões, trapaceiros, impostores. No entanto, devidoà sua riqueza, são tidos em grande consideração e chegam a encontrar frades aduladores, par-ticularmente entre os mendicantes, que lhes fazem humildemente a corte e publicamente lhesdão o nome de veneráveis, a fim de lhes abiscoitar uma parte dos mal adquiridos tesouros.

É claro que Erasmo se refere às atividades comerciais quando mal se saía daIdade Média... Mas será muito diferente nos dias de hoje?...

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Mais tarde, iria fracassar novamente na tentativa de me dedicar ao "comér-cio" de minha pretensa especialidade, à frente de um colégio particular.

Positivamente, meu temperamento foi sempre mais voltado para as coisas,digamos assim, das artes, onde não se considera muito a relação entre os possíveisganhos e a atividade que se exerce... E em educação, no ensino, como relacionaresse trabalho invisível, impossível de ser medido em termos de ganhos e lucros queé a formação de um ser humano ou a transmissão de conhecimentos, ainda que nonível mais modesto? "A arte tem de afirmar-se contra a hostilidade do princípio darealidade e da razão, que é escravizada ao princípio da realidade". E "o artista é ohomem que recusa inserção através da educação na ordem existente, permanecefiel ao ser de sua própria infância e torna-se assim um ser humano de todas asépocas", diz ainda Norman O. Brown, em seu A vida contra a morte.

Sem querer de qualquer forma me arvorar numa dessas figuras predestina-das que vez por outra surgem na multidão, que nela não tem lugar e emerge então"segundo leis muito mais amplas", nunca pude, como disse, medir meus sonhos,minha atividade, minhas mais modestas realizações pela caixa de uma máquinaregistradora, e assim meu descompasso com qualquer atividade de caráter pura-mente comercial, mais cedo ou mais tarde, teria que se manifestar.

Nesse entretempo (1926) também o professor Teófio não desistia de suacatequese, e voltava a me chamar para lecionar na minha "alma mater", a EscolaVisconde de Cairu, agora já em nova situação. Meus estudos na Escola Politécnicavoltaram a se intensificar. A sociedade, como disse, desfez-se. Voltei ao magistério.Terminava assim o interregno comercial, alemão e dentário.

Conforme acentuei, guardo dele, porém, boas recordações, e teve semdúvida influência benéfica em minha formação, até mesmo por ter verificado,concretamente, que esse jamais seria o meu verdadeiro caminho...

• • •

Ligado a esse episódio, está também a viagem à Alemanha dos meus doisirmãos, já dentistas – o Virgílio o mais velho, e "Tonico", o dr. Lemme Júnior – nomeprofissional que passou a adotar, depois de formado, e que era um ano e poucomais moço do que eu.

Com minha irmã Palma, constituíamos o primeiro grupo dos quatro, quefomos companheiros de infância e recebemos educação semelhante, com a famíliaainda perfeitamente organizada, situação essa que se modificou depois, como vi-mos, pelos descaminhos a que foi levado o velho Lemme.

Essa viagem à Alemanha fazia parte do espírito aventureiro que nos carac-terizava na época, pois os elementos concretos para uma tal empresa eram muitoprecários. Os dois irmãos apenas começavam suas carreiras na profissão que esco-lheram. Fizeram tudo para que eu os acompanhasse, mas não foi possível atendê-los. A viagem seria realizada em função das atividades em que os dois já se tinhamfixado, e que de certa forma tinha também caráter comercial, por influência enecessidades da firma do nosso amigo suíço, que serviria de introdutor em reco-mendações a pessoas de suas relações e a fornecedores, radicados na Alemanha. E

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eu já estava completamente desligado dessas atividades. Além disso, teria necessi-dade de prolongar uma licença no serviço público, coisa muito incerta de obter.

Depois, já a esse tempo, novos interesses, e esses de caráter sentimental,tinham surgido em mim. Esse foi mais um forte motivo para não poder acompa-nhar os dois irmãos naquela aventura.

Só recentemente soube que os dois tinham também a intenção de levar comeles a Palma, minha irmã mais velha, mas isso ainda se tomava mais difícil, em vistadas funções que ela aos poucos ia assumindo na direção da família e da casa da RuaSilva Rabelo por causa das ausências prolongadas de meu pai.

Assim, a viagem reduziu-se aos dois, e, num belo dia dos fins do mês demarço de 1927, embarcavam eles no navio alemão Monte Sarmiento, iniciando,com muita coragem e muito poucos recursos reais, uma verdadeira aventura, frutoda inconsciência e dos sonhos da idade, e que não durou mais do que alguns meses.

Essa viagem caracterizava bem o temperamento sobretudo do meu irmãomais jovem, que por toda sua vida manteve esse mesmo espírito de desprendi-mento, bastante aventureiro, mas de uma pureza d'alma e de uma energia que oteriam podido levar a melhores e mais felizes caminhos. A vida, porém, tem suaspredestinações próprias, digamos assim, e é muito difícil fugir às suas inexoráveisinjunções... O "Tonico", porém, merecia um destino mais de acordo com sua inte-ligência e bondade, ou quem sabe, quem pode dizer, queimou-a "by the bothends", como não poderia deixar de fazê-lo. Sua morte tão prematura (17/3/1972),depois de tantos sofrimentos, abalou-me profundamente, e ainda hoje não con-sigo acreditar que o quarto elemento do nosso querido grupo deixou-se levarassim, abandonando-nos, nesse "entardecer da vida", quando mais precisávamosuns dos outros, ao menos para evocar em conversas sem maiores responsabilida-des aquilo que fomos, aquilo que sonhamos e o que realmente conseguimos ouainda desejávamos vir a ser.

Releio com emoção, agora que vou tentando evocar essas passagens denossa vida, alguns trechos dos artigos que o querido irmão se comprometeu aenviar para o Diário de Medicina, jornal publicado por um grupo de amigos seus, eonde já demonstrava sua intenção de prosseguir nos estudos para se diplomar nes-sa carreira mais alta, para que tinha inegável vocação, mas que, infelizmente, nãopode realizar.

Eis alguns trechos do primeiro artigo que escreveu, sob o título "Carta daAlemanha" (Serviço Especial do Diário de Medicina, sexta-feira, 1º/4/1927):

A primeira destas "Cartas da Alemanha" não é da Alemanha. Vamos resumir nelas as im-pressões de viagem a bordo do "Monte Sarmiento", viagem começada com um belo sol, en-quanto o carioca tomava cinzas...

Depois de uma breve descrição do navio e suas acomodações, dizia ele:

Bom salão de leitura, com uma pequena biblioteca. Além disso uma livraria com obrasalemãs. Corremos os olhos a procura de alguma coisa de interessante e encontramos os Brasilien

heute und morgen, de Fritz Kohler. Compramos o livro por 9,50 marcos, muito caro para quemleva o depreciadíssimo mil réis. Vejamos: capa amarela, com lombada vermelha, cores nacionais,

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ainda bem. Um beija-flor é a sugestiva decoração externa. Internamente, beija-flores e maca-cos. Muitas ilustrações: palmeiras do Jardim Botânico, fazendas de São Paulo, bananeiras, co-bras, algodoeiros, etc.

No índice, um título chama a atenção: Der Brasilianer, à página 24. Veio-me logo o desejode guardar o livro para em Berlim presentear alguns dos nossos futuros amigos alemães. Seráum bom reclame do Brasil, pensamos. Lemos esse capítulo e resolvemos desde logo interditar olivro – para longe a idéia de dá-lo a alemães! Pois se o autor teve a sem-cerimônia de escreveras minúcias das nossas repartições!

E passo a traduzir o capítulo... que terminava assim: "quem quiser trabalhar, pode fazê-lo;quem não quiser, deixe. A última foi preferida".

E adiante:

Já se passaram três dias desde que perdemos de vista o Corcovado e é preciso procuraralguma coisa que interesse aos leitores do Diário de Medicina.

Procuro então o médico de bordo e, me apresentando como correspondente desse jornal,pergunto-lhe se há algum dentista a bordo.

–Não, foi a resposta.– E nos casos de urgência?– Nós mesmos fazemos os curativos necessários e as extrações.– E têm aparelhamento bastante para esses casos de urgência?– Para a clínica médica, sim, temos mesmo uma sala de operações muito bem montada.

Quanto à clínica dentária urna pequena farmácia e o instrumental essencial...

E continua depois, acabando por descobrir as instalações dentárias no salãode barbeiro, que não eram porém dentárias, mas uma máquina elétrica de cortarcabelos, que os alemães começavam a introduzir na velha profissão dos fígaros...(Este artigo é datado de 7 de março de 1927).

Num segundo artigo, publicado no Diário de Medicina, de 21 e 22 de abrilde 1927, continua a relatar "casos" de bordo, inclusive estas observações sobrealemães que voltavam da América Latina para sua pátria:

Essas caras pálidas nos deram o que pensar. Não compreendíamos porque tanto alemão(que são a maior parte dos passageiros), de ordinário caracteristicamente rosados e cheios desaúde, se pusessem a bordo, naquele estado.

Depois, investigando, pudemos esclarecer a coisa – tratava-se de doentes que regressavamà pátria em busca de cura. Vindo do Brasil e do Prata impaludados, dispépticos, com a peleinfestada de vários parasitas, voltam da América, admirados das belezas naturais e do bomcalor, mas vencidos pelas doenças. Sentem que viveriam bem na América do Sul, sentem aí oestímulo de um sol que dá vida e um céu puro que alegra e que não existe no norte da Europa.Mas, apesar disso, às vezes, não podem viver muito tempo nem desenvolver muita atividade,principalmente intelectual, no nosso clima...

E depois de mais algumas descrições da viagem e de uma intervençãoodontológica, que teve a oportunidade de fazer, o que lhe grangeou notoriedade emuitos clientes a bordo, termina com uma e breve referência à sua passagem porLisboa.

Estivemos algumas horas em Lisboa. Passeamos pela cidade seguindo logo para Belém, emvisita aos Jerônimos; não íamos portanto e tratar de odontologia, porque não havia ocasiãonem tempo para isso.

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Mas não se furta a observar os "anúncios" de dentistas e termina com a"verve" de um "cá e lá mais charlatães há"...

Sua integridade e irremediável boa-fé irritava-se com aquelas demonstra-ções que julgava indignas da profissão...

Não me parece que tenha remetido outras "Cartas da Alemanha" para oDiário de Medicina. Pelo menos não consegui obter qualquer outra além dessasduas, que como o autor afirma, não eram propriamente da Alemanha.

Mas, guardo entre meus documentos uma carta, escrita diretamente paramim, datada de 26 de março a 20 de abril, em que a realidade da aventura come-çava a se desenhar e em que ele diz, entre outras coisas de menor importância:

Estamos em Berlim, término de nossa enorme viagem. Chegamos aqui no dia 24 e depois decorrer um dia inteiro à procura de casa, afinal arranjamos um quarto no terceiro andar, em casade uma viúva. A casa por fora parece um palacete, tem uma entrada de mármore esplêndida. Onosso quarto é bom, mas tem o defeito de estar perto da casinha, de onde vem um eternocheiro de repolho, que a princípio nos deixou aterrorizados. Agora já estamos acostumados.

[...]Come-se na Alemanha, come-se sempre, come-se tudo e em todo o lugar. Nas ruas, as

vitrines de comestíveis são verdadeiros suplícios tantálicos para quem tem fome e não temdinheiro...

[...]A vida em Berlim é relativamente cara e agravada para nós pelo pouco valor do mil réis...[...]A grande dificuldade é o alemão – se dentro de três meses o falarmos corretamente, pode-

remos vencer, senão, parece-me que teremos que bater em retirada. .

Refere-se ainda, com maiores minúcias, sobre a passagem por Lisboa, e empost-scriptum, que define bem seu temperamento e as preocupações que a idadenos impunha, e mesmo porque "nem só de odontologia vivia o homem".

"Lindas pequenas em Hamburgo e Berlim!"Poucas notícias recebi, daí em diante. O Virgílio, mais moderado e realista,

falava-me "de que aos poucos vamos tomando pé neste buraco". As dificuldades detrabalho na profissão entretanto eram grandes, pois a legislação era muito rigoro-sa quanto a atividades de estrangeiros... É preciso não esquecer que a Alemanhaprocurava se recuperar da derrota de 1918 e o espírito "chauvinista" deveria natu-ralmente imperar por toda a parte.

E assim, a aventura não pôde durar muito tempo.Confesso, porém, que sempre tive muita inveja dos dois, que abandonaram

tudo para tentar alguma coisa, que se não deu grandes resultados "concretos","mensuráveis", satisfez ao menos, a esse espírito de libertação da rotina, que sem-pre senti também em toda a minha vida.

O dr. Lemme Junior, voltando ao Brasil, retomou suas atividades profissio-nais nas quais teve enorme êxito, chegando a ser considerado como um mestre emodontologia. Não chegou a se diplomar m medicina, desejo que alimentou pormuito tempo. Depois... sim, depois, mergulhou em outra aventura, mais grave e deconseqüências destruidoras: a política. Não qualquer "política", mas a ação políticaque pretende transformar o mundo, este mundo que até agora "os filósofos apenas

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haviam se dedicado a interpretar"... Sua inteligência e operosidade elevou-o até osmais altos postos do partido da esquerda radical. Sua honestidade e boa-fé destru-íam-lhe a família, a profissão e, por fim, a própria vida.

• • •

O estudo da língua alemã, que fora a causa inicial de todos os acontecimen-tos narrados neste capítulo, não ficou totalmente abandonado.

O exame do Colégio Pedro II foi prestado por mim em condições que julgointeressante narrar.

A banca examinadora era constituída por duas figuras eminentes do magis-tério e da cultura do País: Carlos de Laet e João Ribeiro. Completava-a o professorBenjamin Fraenkel, de origem alemã.

Os candidatos eram, em sua maioria, teuto-brasileiros, que, de modo geral,falavam corretamente o alemão.

Para a prova escrita fora sorteado um trecho bastante complicado de Kant.Até hoje não consigo entender como se incluía num exame desse tipo um autor jáde si tão difícil e obscuro, mesmo para especialistas. Evidentemente, traduzi-omal, com muita dificuldade, e sem entender quase nada do que o grande filósofopretendia dizer. Enfim, consegui nota suficiente para ser chamado a prestar oexame a oral.

Neste, os examinadores indagavam sempre do candidato se queria ser ar-güido em alemão ou em português.

Quando chegou a minha vez, aguardada com muita ansiedade, o professorFraenkel, por qualquer circunstância, esqueceu-se de me perguntar em que línguaqueria ser argüido: resultado, tive que agüentar (é o termo) todo o exame emalemão, mas a compensação veio no final: nota oito ("plenamente", como se dizia)na escala de 0 a 10.

Enfim, estava vencida a última etapa, considerada a mais difícil para a ob-tenção dos últimos dos 12 certificados que eram exigidos para a prestação doexame vestibular à Escola Politécnica.

Também nesse exame a escolha do alemão me proporcionou um incidentecurioso.

Reunidos todos os candidatos para a prestação da prova de língua estran-geira no grande salão das aulas de desenho do último andar do velho casarão doLargo de São Francisco, foram dados os trechos para a tradução, sem dicionário, defrancês e inglês. Esqueceram-se, porém, os examinadores de dar o trecho em ale-mão para os candidatos que tivessem optado por essa língua em lugar do inglês.Dirigi-me à banca examinadora para lembrar o fato.

O professor Jorge Kitzinger, presente no salão, como representante da ban-ca, resolveu então perguntar se havia outros candidatos que tivessem escolhido oalemão. Sensação geral: fui eu o único a me por de pé. Fiquei assim, sem o querer,como uma estranha figura que "sabia alemão", tal como aquele personagem deLima Barreto que sabia javanês... Entretanto, conforme verifiquei depois, havia can-didatos, descendentes de alemães, que dominavam a língua alemã, perfeitamente.

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O trecho dado para a tradução não foi difícil e assim atravessei razoavel-mente a prova...

Voltei várias vezes ao estudo sistemático do alemão, mas nunca conseguidominá-lo razoavelmente no mesmo nível do francês e do inglês. Este último fuiobrigado a estudar mais tarde, quando me fixei em definitivo nos estudos de edu-cação. Em 1939, a viagem que empreendi à América do Norte exigiu também queprocurasse falar alguma coisa da língua, que se tornou depois de preferência indis-cutível das novas gerações, graças especialmente à influência do cinema e da cul-tura norte-americanas, que invadiram o mundo inteiro, principalmente depois daSegunda Grande Guerra, em que os Estados Unidos da América do Norte se torna-ram, sem dúvida, a mais poderosa potência da Terra.

Mas, em Viena, anos depois, em minha primeira viagem à Europa, pude sen-tir a utilidade do pequeno vocabulário alemão que ainda conservava na memória,como resultado dessas incursões no difícil idioma de Goethe.

Foi também através do estudo do alemão que passei a prestar maior aten-ção às grandes figuras da cultura desse país, não somente na literatura, comotambém na filosofia e na história, o que, evidentemente teria que me proporcio-nar um maior equilíbrio na aquisição de conhecimentos nesses ramos em que,mais tarde, se fixaram as minhas preferências.

Por isso não poderia concordar com Nietzsche, apesar de seu. gênio, em suasdiatribes contra seu próprio povo:

São eles [os alemães] s responsáveis por todos os grandes delitos cometidos contra a cultu-ra nestes quatro últimos séculos. [...] Os alemães privaram a Europa dos frutos e dos significadosdo último grande período da Renascença, num momento em que uma hierarquia superior devalores, em que valores nobres afirmavam a vida... [...] Finalmente, quando em meio da ponteentre dois séculos de decadência surgiu uma "force majeur" de gênio e de vontade, bastanteforte para fazer da Europa uma unidade política econômica, os alemães, com as suas "guerrasde independência", impediram a Europa de sentir o verdadeiro significado e a maravilhosa rea-lidade da existência de Napoleão. É por isso que eles têm na consciência a culpa de tudo o queocorreu depois, do que atualmente acontece: a doença, a irracionalidade mais oposta à cultura

– o nacionalismo, esta neurose nationale de que sofre a Europa, este prolongamento ao infini-to da divisão da Europa em pequenos Estados de politicazinha de campanário, privaram a Euro-pa até do próprio significado da sua razão, conduziram-na a um beco sem saída. [...] Quandopretendo imaginar um homem que repugne a todos os meus instintos surge-me logo à menteum alemão!

E por fim, em sua catilinária contra Wagner, por ter se tornado um "bomalemão", um "filisteu", afirma: "Por onde quer que passe, a Alemanha destrói aCultura..."

Não creio que se possa julgar um povo, em bloco, por essa forma, e sómesmo a um espírito com a grandeza de um Nietzsche se poderia permitir essasapreciações, evidentemente injustas, sobre seu próprio país, seu povo, tal como ashipérboles sobre sua própria pessoa e sua obra como o faz no incrível Ecce Homo.Ou já seria a manifestação da loucura que o inutilizou aos 44 anos...

Uma das causas dessa virulência foi, sem dúvida, o ressentimento que revelaquando observa: "Procuro [nos alemães] inutilmente uma prova de tato, de delica-deza comigo. De judeu já as tive, de alemães ainda não..."

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AMORES E CASAMENTOCAPÍ

TULO

XIII

A vida assim narrada em capítulos pode dar a im-pressão de que a personalidade pára de sentir e de mani-festar todos os seus outros aspectos para só se expressaratravés daquele que se está descrevendo no momento.Nada mais falso. A pessoa é uma só não podendo, porém,ser descrita em sua totalidade, em cada momento fugaz:ou se fala de uma coisa ou de outra, pois é impossível,como já dissemos antes, citando Henry Miller, descreverem palavras a totalidade de um momento vivido, pormenor que ele seja.

Assim, aquilo que é a essência da personalidade,continua agindo, continua se manifestando, por maisque outras necessidades, especialmente as de carátersocial, forcem-na a tomar caminhos de acordo com o"princípio da realidade"...

Ainda acompanhando Freud através de magnífi-co estudo de Norman O. Brown (A vida contra a morte),lembraremos que

[...] para Freud, o trabalho e a necessidade econômica são aessência do princípio da realidade. Mas a essência do homemreside não no princípio da realidade mas nos desejos inconsci-entes reprimidos. Seja qual for a severidade com que as ne-cessidades se exerçam sobre ele, não é ele, em sua essência,Homo economicus ou Homo laborans: por mais amarga queseja a luta pelo pão, o homem não vive apenas pelo pão.

Freud sugere que, além do trabalho, existe o amor... E, sealém do trabalho, no fim da História, existe o amor, este deve

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ter existido sempre desde o início da História e deve ter sido a força oculta que fornece aenergia dedicada ao trabalho e constituidora da História. Desse ponto de vista, Eros reprimido éa energia da História e o trabalho deve ser considerado como Eros sublimado. Dessa maneira,um problema não enfrentado por Marx, pode ser encarado graças a Freud.

O fato é que nenhuma "repressão" consegue estancar o "princípio da vida",comandado por Eros, em suas manifestações tirânicas, e o jovem em meio às preo-cupações que a sociedade lhe impõe, procura o Amor... Mesmo que se o queirareduzir às necessidades que a fisiologia lhe dita, tendo em vista aquele objetivogeral da natureza, no afã da perpetuação da espécie... O aguilhão do sexo, do amor,inseparáveis, não cessou de agir, em nenhum momento como a única verdadeira"constante", enquanto por necessidade, por simples método, outros aspectos davida vão sendo vividos, ou melhor, narrados.

Já o dissemos, desde especialmente a Escola Normal – e estava na idadeprópria das paixões avassaladoras – a descoberta da mulher, fez seu caminho eproduziu seus efeitos. O temperamento tímido impedia grandes sucessos nessa buscade um amor unificado, em que pudessem se exprimir como um todo as manifesta-ções que irrompiam nesse desabrochar da idade.

Ao sair da Escola Normal tinha uma "namorada" fixa, uma colega, que aocair da noite, depois do jantar, ia encontrar, em rua do outro lado da Estrada deFerro, no Méier.

Provinha ela de uma família do Estado do Rio de Janeiro, por coincidênciado município cuja sede era a cidade de Barra Mansa (que eu conhecera bem), eviera morar com parentes no Rio de Janeiro, para fazer o curso da Escola Normal.

Na rua bastante escura, naquelas primeiras horas da noite, no portão deuma grande chácara onde residia com parentes, trocávamos juras de amor e nosentregávamos às carícias que são a expressão física inseparáveis do sentimentoidealizado, que ainda esbarra em tantos preconceitos.

Mas, com o passar dos dias, tudo isso foi esfriando, e certa vez tudo acabou,e nem me lembro bem como nem por quê.

Hoje, não me repugna acreditar numa certa predestinação, em certos cami-nhos que temos que seguir, em certas circunstâncias que teremos que enfrentar navida, de uma forma ou de outra, com determinadas pessoas e não com outras...

E as Parcas ainda estavam tecendo, nesse particular, os rumos que deveriamdefinir o meu "destino"...

• • •

Além do trabalho, havia o amor... Repetindo: lá pelas cinco e meia da ma-nhã, tinha que começar a me movimentar para, em viagem complicada, chegar aolocal de trabalho – aquela escolinha lá na estrada do Magarça, entre a Estação deCampo Grande e a bela praia da Pedra de Guaratiba.

Os horários evidentemente coincidiam e essas viagens eram obrigatóriaspara grande número de professores. Alguns já se conheciam, outros iam iniciandoamizades pelos reiterados encontros diários, interesses comuns da profissão, ououtros que se iam formando e estreitando com o passar dos dias.

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Nos trens, especialmente até a Vila Militar e o Realengo, viajavam muitosmilitares que, em horários semelhantes, iam cumprir seus deveres profissionais.Namoros, intrigas amorosas e até casamentos surgiam entre muitos deles e as jo-vens professoras.

Foi também nessas viagens profissionais que a "predestinação" iria me levara conhecer aquela que deveria partilhar comigo de toda uma vida, que depois depercorrida, em seus melhores e piores momentos, nos leva a indagar: como poderiaser de outra maneira?

• • •

Apesar de termos cursado a Escola Normal no mesmo período e termos sidonomeados no mesmo ato administrativo (e não se há de crer em "destino"!), sóviemos a nos conhecer naquelas viagens quase iguais, pois saíamos quase dos mes-mos locais (Méier e Todos os Santos, respectivamente) e demandávamos escolasmuito próximas. Esse contato diário teria que levar à aproximação, ao conhecimen-to (e aí está o mistério que à falta de melhor explicação chamamos de "destino"), aum entendimento que aos poucos se tornava singular, diferente do que era manti-do com todas as outras pessoas em situação perfeitamente semelhante, mas quenão levaria ao mesmo desfecho.

E direi ainda mais, que nascemos e fomos criados praticamente na mesmaárea desse Rio de Janeiro tão grande, e só passados tantos anos, nossos caminhosdeveriam se cruzar de maneira tão decisiva.

Em maio de 1924, começávamos o trabalho e, portanto também aquelasviagens que nos uniram em veículos, locais e interesses. E em dezembro dessemesmo ano nossa intimidade já se revelava na dedicatória que eu escrevia numvolume do Messidor, de Guilherme de Almeida, que era como uma espécie debíblia romântica de todos os namorados, àquele tempo:

A Carolina

Lembrança do último dia de Guaratiba.

15-XII-1924

Com a chegada das férias escolares, os encontros obrigatórios estavam na-turalmente suspensos. Outros passos, então, teriam que ser dados para uma aproxi-mação. E eles foram dados, e todos os seguintes...

• • •

Carolina ("Donga" ou "Donguinha" na intimidade) provinha, tal como eu, defamília numerosa, de classe média. Perdeu a mãe muito cedo (10 para 11 anos,segundo creio). A irmã mais velha, Alba, assumiu então a direção da casa. O pai,oficial do exército da arma de engenharia chegou a general post-mortem, tendocomandado, como coronel, unidades na Vila Militar.

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Nesse período, Carolina, com parentes e amigos freqüentava as festas pro-movidas pelos oficiais da Vila Militar e, segundo ela mesma me contava, houvevários namoros com subordinados de seu pai. Sempre me causou estranheza quenão tivesse se casado com um deles, o que seria fato comum. E iria encontrar maistarde um civil, tão desprovido de atrativos, inclusive sem qualquer apreço pelacarreira militar, cujos representantes eram, em certa época, um dos caminhos pre-feridos pelas jovens casadouras à procura de marido.

O pai, com quem parece ter tido grande ligação afetiva, faleceu durante agripe "espanhola", em 1918. Teve fé de ofício brilhante e era bastante bem dotadointelectualmente. Não o conheci.

Veio depois o curso da Escola Normal, onde fez estudos brilhantes. Foi nesseperíodo que se tomou católica fervorosa, talvez em conseqüência da morte do pai,e também pelo fato de quase ter morrido também, na mesma ocasião, atacada pelamesma doença. Uma verdadeira crise religiosa quase a levou à vida monástica.

Com a pensão militar deixada pelo pai e depois acrescida ao salário de pro-fessora, Carolina tinha uma vida econômica bem modesta, porém praticamenteindependente. Vivia com a irmã mais velha, já então casada, e que criava ainda amais moça – a Elisa. Quando a conheci, moravam no Catete, à Rua Silveira Martins,numa vila ao lado do Palácio do Catete ("Vila Palácio", de propriedade do condeModesto Leal). Mas, com a necessidade das viagens diárias para o trabalho, passavamuitos dias em casa de um dos irmãos, o Breno, na Estação de Todos os Santos, etambém com uns tios que moravam próximos: a tia era Duarte Nunes, irmã de suamãe, e o tio, César Miranda Reis, a quem se ligava por carinho muito especial.

Entre esses três pontos, decorreu nosso namoro naqueles anos de 1925,1926 e 1927, até o desfecho final.

Carolina era alta, morena, tipo "fausse-maigre", traços finos, modesta notrajar, de ânimo muito igual, qualidade que manteve por toda a vida, apesar demuitos momentos difíceis que teve que enfrentar.

Já a tendo conhecido órfã de pai e mãe, e com relativa independência eco-nômica, não tínhamos contas a prestar a ninguém, e assim nossas relações se reves-tiram, desde logo, de certa peculiaridade.

Enquanto, durante os anos em que ocorriam, em minha vida, todas aquelasmodificações já narradas (escola Politécnica, quase abandono da carreira do ma-gistério, "interregno alemão e dentário", a viagem frustrada à Alemanha e, por fim,a volta ao ensino, já agora na Escola Visconde de Cairu), pouca coisa se modificouem relação a ela, pois, sempre muito conservadora, continuava sua carreira peloscaminhos normais, tendo apenas completado o tempo regulamentar e saído deGuaratiba para uma escola mais próxima, para onde viera transferida sua antigadiretora (na Estação de Bento Ribeiro, na Estrada de Ferro Central do Brasil).

Nas férias de 1926-1927, resolvemos viajar juntos para uma região que elaconhecera quando o avô a levava em sua companhia para passar férias escolares: acidade de São João Del-Rei. Inteiramente entregues um ao outro, vivemos diasdeliciosos numa localidade próxima àquela cidade: Águas Santas, conhecida pelosbanhos de águas sulfurosas, tomados em instalações muito primitivas. Nossa inti-midade já era então completa e pouco então faltava para o passo final.

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Não é de estranhar que esse nosso modo de proceder, digamos assim, nossasrelações muito peculiares, dadas as circunstâncias em que nos conhecemos, desper-tassem alguma estranheza e até mesmo comentários maliciosos. Se bem que nãoguardei qualquer lembrança muito nítida dessas reações, encontrei entre meus pa-péis uma como que resposta a essas possíveis insinuações – em versos de CarlosMagalhães, que Carolina me deu, datada de 11/4/1926, e que diziam assim:

Que importa?!..

Que importa que de nós falem os inconvenientes,os perversos, os maus e despeitados vis,Se em nossos corações perdura a fé dos crentesE a plena convicção de nosso amor feliz?Que importa esse sorrir de lábios maldizentes,E esse profundo olhar de parvos e imbecis,Se passarmos a vida enlevados, contentes,E entre beijos de afeto e carícia gentis?Que importa que esse mundo hipócrita pretendaA crítica fazer ridícula ou severaUma vez que a moral desse Amor não compreenda?Assim que importa a mim, a ti, que importa poisOuvir blasfêmias mil... se, em nada, em nada alteraA profunda paixão, que existe entre nós dois?"

• • •

O casamento deveria ser marcado, a princípio, para 19 de março de 1927,dia de São José, santo da devoção especial da noiva. Teve, porém, que ser adiado,creio que por causa da demora nas formalidades usuais.

Comunicando em casa, a meu pai, nossa resolução, ela ocasionou da partedele a reação muito comum: a da alegação da falta de recursos materiais suficien-tes para nossa manutenção. Tentei convencê-lo de que não se tratava apenas disso.E nos desentendemos. Saí de casa, e fui morar num quarto à Rua Frei Caneca.

Finalmente, tudo resolvido, a 28 de julho de 1927, na Igrejinha de SantoAntônio dos Pobres, à Rua dos Inválidos, realizava-se a cerimônia religiosa, na mai-or simplicidade.

Nossa certidão de casamento dizia que naquela data, perante o juiz dr. EdgardLimoeiro, foi realizado o casamento de Paschoal Lemme e Carolina de Barros eVasconcelos, ele nascido nesta cidade a 12 de novembro de 1904, filho de AntônioLemme e Maria do Nascimento Lemme, e residente à Rua Silva Rabelo, 11; e ela,também natural do Rio de Janeiro, onde nascera a 19 de maio de 1902, filha deInocência de Barros e Vasconcelos e Adelaide Duarte Nunes de Barros e Vasconce-los, residente à Rua Silveira Martins, 72, casa 8. Foram testemunhas do ato AntônioLemme e César Miranda Reis.

Meu pai, sem guardar qualquer ressentimento, compareceu ao ato religioso.Na tarde desse mesmo dia embarcamos para a cidade de Vassouras, onde

passaríamos alguns dias de "lua-de-mel", em casa de Félix Machado, titular docartório local, o "papai" Félix, como era conhecido, sogro de Everardo, um dos

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irmãos de Carolina, oficial do Exército. Eu já conhecia a cidade desde os tempos dasexcursões com o nosso professor suíço-alemão. Mas ela se ligava agora em defini-tivo ao meu roteiro sentimental e assim não foi por acaso que, muito mais tarde, aopensar em escolher um local para termos um refúgio para as férias escolares dafutura família, minha preferência se voltasse para a cidadezinha que outrora céle-bre com um dos maiores centros produtores de café, com seus barões e casarõescoloniais, curtia agora sua singela pacatez na decadência. A tranqüilidade erarepousante em Vassouras. A essa época chegava-se à cidade somente pelo trenzi-nho da Linha Auxiliar, ou por Barão de Vassouras, da Estrada de Ferro Central doBrasil. Um produto caracterizava a cidade: o célebre requeijão de Vassouras. A "Casadas Eras", a residência de Eufrásia Teixeira Leite, uma das baronesas do café e gran-de amor de Joaquim Nabuco, era uma de suas atrações turísticas.

Circunstâncias fortuitas levaram-me a não realizar a idéia do refúgio paraas férias ali: ficou próximo, porém, em Pati do Alferes, no 2° Distrito do mesmomunicípio de Vassouras, cuja sede ainda hoje relembro sempre com um sentimentode nostalgia e ternura.

Sobre nossa noite de núpcias e dias seguintes, é sempre elucidativo dizeralguma coisa, na área, é claro, das confissões.

Sirvo-me aqui também das palavras do artigo de Délcio Monteiro de Lima,autor da pesquisa intitulada Comportamento sexual do brasileiro, já citada. Diz eleem certa passagem:

A mulher brasileira, na verdade, pouco ou quase nada sabe a respeito de sexo. 79% dasespecialistas ouvidas no inquérito consideram-na com efeito, pouco esclarecida, enquanto 21%a vêem regularmente esclarecida, não se computando nenhuma resposta, "muito esclarecida".Isto em 783 questionários. O quadro, no entanto, não muda muito em relação ao homem. Emoutras palavras, estamos virtualmente na estaca zero em matéria de educação sexual, poucoalém dos ensinamentos que nos vieram da chamada escola da vida, ou para usar uma lingua-gem muito própria dos pais, sabemos o que foi aprendido "na rua". E apesar do papel represen-tado pela literatura pornográfica, especialmente a ilustrada, nesse trabalho 'educativo', a quasetotalidade dos rapazes aprende sexo com as prostitutas ou com a empregada de casa ou dovizinho. As moças aprendem com os rapazes.

Nós não fugíamos a essas regras gerais, e, por isso, a decantada primeiranoite e as seguintes, na realidade, não tiveram grande significação; só mesmo como passar do tempo veio o ajustamento mais ou menos normal, e as coisas sob esseaspecto seguiram o curso comum.

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Ao voltarmos ao Rio de Janeiro, fomos morar numa pensão modesta à RuaFrancisco Muratori, na subida para Santa Teresa.

E aí passamos os meses mais tranqüilos e mais felizes de nossa vida: agostoa dezembro de 1927.

Saíamos para o trabalho pela manhã e à tarde nos reuníamos para o jantar.Passeios nos dias de folga. Concertos, algum teatro, recitais de declamações. Por

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essa época, a declamação estava muito em voga e Bertha Singermann era uma desuas expressões máximas: fomos ouvi-la mais de uma vez.

À noite, em nosso quartinho modesto, nos transbordamentos, na fusão doscorpos, entregávamo-nos completamente ao jogo do amor "che move il sole el'autre stele".

Nunca mais, que eu me lembre, depois desses dias, pudemos fruir tão com-pletamente, sem o acicate das preocupações, um tão completo abandono, que aspalavras, mais uma vez, não conseguem descrever, mas que todos os amantes jásentiram, e que as expressões da fala, ao contrário, só perturbam aquilo que porsua natureza é inarrável, indizível.

E assim chegaram as férias escolares de 1927-1928. Estendiam-se então dedezembro a março; depois foram-se encurtando, e roubada ao trabalho árduo doprofessor essa pequena compensação.

Resolvemos passá-las em Paquetá, a "Ilha dos Amores", que eu já conheciabem. Foram dias inesquecíveis, naquele prolongamento de "lua-de-mel". Na voltaporém, já não estávamos sós. Segundo uma crença popular, a água do mar fizerasua ação. O primeiro filho se anunciava. Nasceu em setembro de 1928. E então umnovo capítulo se abriu: o da família, com todas as suas preocupações e responsabi-lidades e também por que não dizer, com algumas alegrias...

Nos anos seguintes, quase um por ano, vieram os outros filhos, até o sexto.Tudo aconteceu então e todas as experiências que a vida pode dar: da morte

na família até a doença irrecuperável de um dos filhos; dos cursos, ano a anopalmilhados, até as formaturas; os casamentos, as noras, os netos... O sucesso nacarreira, as viagens, a política, os processos, a prisão, e as grandes decepções... Asaposentadorias, a descrença, os amigos mais chegados, os companheiros de jorna-da e algumas ligações mais íntimas, tudo desaparecendo, um a um, pelo afasta-mento ou pela morte inevitável.

Por fim, a época das "memórias e confissões".

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Tudo tão complicado e penoso, pois, infelizmente, nossa civilização perdeu-se, como dizia o estranho personagem ao jovem Máximo Gorki (em As minhasuniversidades):

Inventamos o progresso para nossa própria consolação. A vida não tem nem razão nemsentido. Sem escravatura, não há progresso; sem a subordinação da maioria à minoria, a huma-nidade parava no caminho. Com a mania de tornarmos a vida mais fácil, complicamo-la; equando pretendemos aliviar a carga do nosso trabalho, aumentamo-la. As fábricas e as máqui-nas existem para fabricar mais e mais máquinas. É um absurdo... Há cada vez mais operáriosquando só o camponês, o produtor do trigo, é necessário. O pão, eis o que todo o nosso trabalhodeve pedir à natureza. Quanto menor necessidade tiver o homem, mais feliz se sentirá; quantomaiores desejos tiver, menor será a sua liberdade.

E adiante:

Vê se compreendes: cada um de nós precisa de muito pouco: de um bocado de pão e umamulher...

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Creio que se não fosse a eficácia da "repressão", forçando a vitória do "prin-cípio da realidade" sobre o "princípio do prazer", o homem, em geral, não se con-formaria em ser considerado como mero instrumento de desígnios de entidadesexteriores à sua individualidade.

Alfred de Musset em A confissão de um filho do século descreve muito essacondição em trecho já transcrito antes.

E, como consolo, conclui: "e o homem, ao possuir nos braços a companheira,no seio da natureza, todo poderosa, sente saltar no coração a centelha divina que ocriou".

O erotismo puro foi erigido em pecado e a família santificada: o prazer deveter conseqüências e trazer obrigações sociais ou será criminoso e provoca remorsos.

O senso comum aceita a fórmula de que a mulher só se realiza plenamentena maternidade e o homem no trabalho: fora disso estamos no âmbito do anormal,do indevido.

Nunca pude, por isso, entender como, na legenda bíblica, Deus, ao expulsaro casal primitivo do Paraíso, onde vivia no gozo das delícias do Éden, condenou amulher à maternidade, com as "dores do parto" e ao domínio do marido, e o ho-mem ao trabalho "com o suor do seu rosto", como castigo.

Assim, no princípio do mundo o prazer era o divino, o estado natural; amaternidade e o trabalho foram os castigos impostos por Deus, ao homem e àmulher, pela traição ao "princípio do prazer"...

Não será pois uma legítima busca, do "paraíso perdido" essa ânsia que em-polga a mocidade de hoje no caminho do Amor, em toda a sua plenitude, com orepúdio dos valores que a "civilização" repressiva criou e que lhes quer impor umacarga insuportável?

A luta de Eros contra a "civilização" que em seus exageros atuais tantoassusta os moralistas, não será a única saída para a humanidade retomar seus ver-dadeiros caminhos, o caminho do Amor?

Ainda aqui estou com Norman O. Brown, em A vida contra a morte: "aquestão com que se defronta a humanidade é a abolição da repressão – na lingua-gem cristã tradicional – a ressurreição do corpo".

Mas, felizmente, para homens e mulheres, essa linguagem tradicional daIgreja Católica vem mudando muito nos últimos tempos. Em 1962, um certo carde-al Karol Wojtyla, que se tornou o Papa João Paulo II, escrevia, num livro intituladoAmor e responsabilidade, estas palavras, num capítulo dedicado ao estudo da sen-sualidade:

Mas tudo isso não prova que a excitabilidade sensual considerada como inata e natural sejamoralmente má. Uma sensualidade exuberante é apenas uma matéria rica mas difícil de mane-jar, da vida das pessoas, e que deve abrir-se tanto mais largamente a tudo que determina seuamor. Sublimada, ela pode tornar-se (desde que não seja doentia) o elemento essencial de umamor tanto mais completo, quanto mais profundo (dixit).