a experiência esquecida - a educação de adultos proposta por paschoal lemme no df (1934-1936)

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Ao recontarem a trajetória histórica do ensino de jovens e adultos, os educadores tendem a vincula-las a um tipo específico de educação popular, suprimindo das lembranças experiências tidas como não populares; a experiência de Paschoal Lemme frente à tarefa de organizar um sistema educacional para adultos se aplica neste caso de esquecimento, o qual nosso trabalho buscar rememorar; dentro do contexto conturbado dos anos 1930, a experiência de Paschoal Lemme demarcou a extensão das práticas escolanovistas para o ensino de adultos, mas dotado de um significado mais social, inspirado em idéias marxistas; suas práticas buscaram vincular idéias de inserção social, autonomia e compromisso do Estado dentro de um movimento de esclarecimento social pela educação; o esquecimento de sua prática calcada na repressão do Estado Novo e, posteriormente, pela ascensão de novas práticas pedagógicas de educação popular; sua importância histórica respaldada em um conceito flexível de educação popular.

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MARCELO VIANNA

A EXPERIÊNCIA ESQUECIDA – A EDUCAÇÃO DE ADULTOS

PROPOSTA POR PASCHOAL LEMME NO DISTRITO FEDERAL

(1934-1936)

Monogafia apresentada à banca examinadora do curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Educação de Jovens e Adultos do UNILASALLE – Centro Universitário La Salle, como exigência parcial para a obtenção do título de Especialista e Educação de Jovens e Adultos, sob a orientação da Prof.ª Ms. Cláudia Acosta Alves.

CANOAS, JUNHO DE 2006.

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TERMO DE APROVAÇÃO

MARCELO VIANNA

A EXPERIÊNCIA ESQUECIDA – A EDUCAÇÃO DE ADULTOS

PROPOSTA POR PASCHOAL LEMME NO DISTRITO FEDERAL

(1934-1936)

Monografia aprovada como requisito parcial para a obtenção do grau de

Especialista em Educação de Jovens e Adultos do curso de Pós-Graduação

em Educação de Jovens e Adultos do Centro Universitário La Salle –

UNILASALLE, pela avaliadora:

Prof.ª Ms. Cláudia Acosta Alves

UNILASALLE

Canoas, 30 de junho de 2006.

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Resumo Ao recontarem a trajetória histórica do ensino de jovens e adultos, os educadores tendem a vincula-las a um tipo específico de educação popular, suprimindo das lembranças experiências tidas como não populares; a experiência de Paschoal Lemme frente à tarefa de organizar um sistema educacional para adultos se aplica neste caso de esquecimento, o qual nosso trabalho buscar rememorar; dentro do contexto conturbado dos anos 1930, a experiência de Paschoal Lemme demarcou a extensão das práticas escolanovistas para o ensino de adultos, mas dotado de um significado mais social, inspirado em idéias marxistas; suas práticas buscaram vincular idéias de inserção social, autonomia e compromisso do Estado dentro de um movimento de esclarecimento social pela educação; o esquecimento de sua prática calcada na repressão do Estado Novo e, posteriormente, pela ascensão de novas práticas pedagógicas de educação popular; sua importância histórica respaldada em um conceito flexível de educação popular. Palavras-chaves: educação de adultos – Paschoal Lemme – educação popular Resumen Al recontaren la trayectoria histórica de la enseñanza de jóvenes y adultos, los educandos optan por ligarlas a un tipo específico de idea de educación popular, suprimiendo el recuerdo de algunas experiencias dichas no populares; la experiencia de Paschoal Lemme frente a tarea de organizar un sistema educacional para adultos se encuadra en este olvido, lo cual el trabajo busca rememorar; dentro del contexto conturbado desde los años 1930, la experiencia de Paschoal Lemme demarcó la extensión de las practicas “escolanovistas” para lo enseño de adultos, mas dotadas de un significado más social, inspirado en ideas marxistas; sus practicas buscaron vincular ideas de inserción social, autonomía y compromiso del Estado dentro de un movimiento de esclarecimiento social por la educación; el olvido de esta practica calcada en la represión del “Estado Novo” y, posteriormente, por la ascensión de nuevas practicas pedagógicas de educación popular; su importancia histórica respaldada en un concepto flexible de educación popular. Palabras-claves: educación de adultos – Paschoal Lemme – educación popular

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Sumário

Introdução ........................................................................................................6

1. Trajetórias e contexos

1.1. Trajetória da Educação de Adultos até os 1930 ...................................... 11 1.2. O contexto educacional dos anos 20 até o Estado Novo .........................13 1.3. Contexto das mudanças educacionais no Distrito Federal entre os anos

1920 e 1930 .............................................................................................19 2. A experiência de Lemme entre o esquecimento e a lembrança 2.1. A prática na educação de jovens e adultos de ........................................26 2.2. A queda ...................................................................................................32 2.3. As idéias ...................................................................................................34

2.3.1. A oferta educacional contínua pelo poder ...................................37

2.3.2. A inclusão social, expectativas e autonomia ...............................38

2.4. O esquecimento da experiência de Lemme ..............................................42 Conclusão .......................................................................................................51

Bibliografia .......................................................................................................55

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Introdução

Os pesquisadores, de maneira geral, quando retomam o passado para

compreender um problema presente, o fazem de maneira pragmática:

recuperam uma trajetória de maneira a destacar pontos do passado que se

revelem relevantes à compreensão do objeto em questão. Contudo lidam com

um problema: é impossível recuperar sua totalidade histórica.

Por isso talvez a construção de uma história do campo educacional no

Brasil é tão complexa: porque ela se detém em organizar as experiências

pedagógicas e as mesmas, quando analisadas como fontes, apresentam o

dilema de apresentar lacunas, vazios, silêncios e esquecimentos que impedem

muitas vezes de se apreendê-la em seu contexto original.

O que fazer? Como lidar com os silêncios? Existem opções: pode-se

ignorá-los ou se pode problematizá-los, como um novo problema a ser

compreendido. Fica também imposto que, por mais que haja a necessidade

uma vigilância epistemológica no ato da pesquisa, que a mediação entre

lembranças excessivas e pontos obscuros remetem a possibilidade de

reafirmar-se novos silêncios. A influência do presente leva o autor a optar pelo

que será destacado como lembrança.

Muitos trabalhos que retratam o tema da alfabetização de adultos ou da

educação de adultos optam, antes de estabelecer suas análises, por recuperar

a trajetória deste campo da educação. E optam por uma seleção, que

conforme Leôncio Soares, não é pautada “pelo próprio passado, que traria,

intrinsecamente, algumas histórias supostamente mais dignas de serem

narradas do que outras” (SOARES, 2005:257), mas pelo presente. E as fazem

pela necessidade de reafirmar suas raízes ou para demonstrar sua

complexidade, ou também para se contrapor a um modelo do passado ou

práticas atuais que consideram falhas, fracassadas.

No campo da educação de adultos há experiências sempre

rememoradas. Têm-se seu marco inaugural, tido revolucionário e inspirador

das teorias e práticas ligadas a Educação de Jovens e Adultos no presente: o

período entre 1958 a 1964. Tão importante que estudiosos da EJA, como

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Sérgio Haddad e Maria Di Pierro designam-no com “um período de luzes”

(2000: 122). E não é à toa, conforme observa Carlos Brandão:

“A década 1960, que nos envolveu a todos com a educação popular, foi o tempo de uma verdadeira reinvenção da criatividade e do compromisso da educação no Brasil. A produção do método Paulo Freire dentro do Serviço de Extensão Cultural da Universidade de Pernambuco: as experiências duradouras de uma educação conscientizadora entre lavradores de Minas Gerais para cima e para o este, através do Movimento de Educação de Base: a multiplicação de trabalhos culturais e pedagógicos feita pelos Movimentos de Cultura Popular (MCPs) e pelos Centros Populares de Cultura (CPCs), promovidos pela UNE e outras entidades regionais e locais do estudantado brasileiro: a montagem do Programa Nacional de Alfabetização, pelo Ministério da Educação e Cultura”.(BRANDÃO apud BRANDÃO, 2001: 52).

1

Contudo, talvez elas sejam também rememoradas por terem sido

esfaceladas e contrapostas por um novo modelo educacional proposto a partir

do Golpe de 1964. Seus modelos contrários são os de feições tecnicistas

ligadas ao projeto de desenvolvimento associado ao capital externo, que no

campo da educação de adultos se revelou pífia. As campanhas dos anos 1950,

a Cruzada ABC e o Mobral são experiências negativas, que lembradas como

tais auxiliam a valorizar as experiências anteriores de educação popular, assim

como seu renascimento com a abertura política a partir de meados da década

de 1970. Ficaria designado como embate entre assistencialismo e liberdade,

educação popular e supletiva, etc.

Este choque entre lembranças e esquecimentos provocou-me uma

curiosidade. Quais foram as experiências anteriores da educação de adultos?

O que era vinculado à educação popular e o que era de caráter supletivo,

assistencialista, alienante?

Ao analisar a construção do conceito de educação de adultos, ficou

claro que o mesmo poderia ser representado muitas vezes na dicotomia entre

1 Não deixa de ser interessante o título desta obra, escrita para subsidiar as práticas

educacionais do governo Olívio Dutra no Rio Grande do Sul: “De Angicos a Ausentes: 40 anos de educação popular”. Fica a dúvida: antes não havia educação popular?

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a perspectiva popular, a qual propunha o modelo de libertação do indivíduo

pela educação e a posterior transformação da sociedade, e a supletiva, a qual

pretende integrar - muitas vezes de maneira rápida e incompleta - de modo a

reafirmar (e só pode ser intencionalmente) o modelo social de exclusão.

Para compreender esta dicotomia é necessário superar a mesma. E

para isto, nosso trabalho pretende imergir em um dos esquecimentos que a

história da EJA provoca pelo excesso de suas lembranças: um olhar sobre a

atuação de Paschoal Lemme e a instituição de cursos supletivos a jovens e

adultos no Distrito Federal entre os anos de 1934 a 1936.

Na qualidade de integrante do gabinete de Anísio Teixeira, mais

precisamente na chefia da Superintendência de Ensino Continuidade e

Aperfeiçoamento para Adultos, propôs a estruturação e oferta educacional a

jovens e adultos afastados da vida escolar na capital brasileira. A sua forma de

atuação era uma novidade neste campo, pois Lemme é um dos primeiros

educadores a defenderem a atuação do poder público na escolarização de

adultos, da mesma forma que propunha uma ação de formação do trabalhador

para o trabalho e sua crítica e não uma educação distante das suas práticas.

Vanilda Paiva foi uma das primeiras pesquisadoras em resgatar a

importância de Lemme e sua experiência com a educação de adultos,

destacando o pioneirismo de sua prática. Contudo, o educador continua, ainda

mais aos iniciados no tema da educação de adultos, esquecido (ou

esquecível):

“Esta ficara à penumbra, entre os nomes de Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo e outros educadores com os quais colaborara, direta e intensamente, no importante movimento de renovação e modernização dos sistemas escolares desencadeado pelas reformas de ensino nas décadas de 20 e 30”.(BRANDÃO, 2001: 426).

O próprio Lemme rememora estes educadores, em sua notória

modéstia, como os maiores de sua geração, sempre se referindo a eles na

qualidade de mestres, sobretudo com Anísio, que foi seu superior na

Secretaria de Educação. Justamente estas ligações tenham contribuído para o

parcial esquecimento de sua obra porque entenderam ligar-se a defesa de

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interesses da burguesia, as quais gerações de educadores mais engajados

nas décadas posteriores passariam a criticar.

Parte de sua atuação - que enfocaremos em nosso trabalho - pode ser

auferida em sua monografia intitulada “Educação Supletiva/Educação de

Adultos”: redigida em 1938 como prova para o cargo de técnico de educação

Ministério da Educação, em plena consolidação do Estado Novo, é um das

primeiras obras de caráter profissional (produzido por um educador) a respeito

de educação de jovens e adultos. Republicada na coleção Paschoal Lemme,

editada pelo INEP, no ano de 2004, permite apreciá-la como uma fonte de

compreensão da concepção de educação de adultos da época.

Pretendemos com ela recuperar a atuação de Lemme, relacionando-a

com o contexto das práticas e políticas educacionais de sua época. Ao nosso

ver, é necessário situar esta prática, pois ela é retrato da efervecência político-

cultural da década de 1930, entre choques entre o modelo liberal, conservador

e progressistas que resultariam na opção autoritária do Estado Novo a partir de

1937.

Vale também observar que o trabalho de Lemme embora possa passar

despercebido a quem inicia seus estudos em educação de jovens e adultos, é

válido como síntese das contradições dos conceitos que este campo

educacional comportava (e ainda comporta).

Consoante a esta situação, a educação de adultos proposta por Lemme

está entre a necessidade de se tornar um campo específico de atuação

pedagógico (uma perspectiva qualitativa e popular) ou de ser objeto político

dos entusiastas educacionais, termo que Paiva (1987) designou aos indivíduos

(políticos e diletantes da educação) que intentavam promover ações práticas

no campo político-pedagógico que eliminasse rapidamente a “chaga” do

analfabetismo (uma perspectiva quantitativa e supletiva).

Utilizamos como fontes anexas às memórias do autor, igualmente

publicadas na citada coleção, que trazem novos esclarecimentos. Sua

biografia, publicada pelo INEP e detalhada na obra Dicionários de Educadores

do Brasil, de autoria Zaia Brandão, trazem novas luzes sobre este educador e

sua contribuição para a constituição do campo da educação de adultos no

Brasil.

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1. Trajetórias e contexos

1.1. Trajetória da Educação de Adultos até os 1930

Segundo Paiva, até a Revolução de 1930 não havia uma preocupação

sistemática com a educação baseada numa oferta de ensino público às

classes populares. Assim, não ocorriam políticas centralizadas que

promovessem uma racionalização da oferta da educação, motivada pelos mais

diversos interesses, mas que resultavam num processo de exclusão e

reafirmação de um alto índice de analfabetismo.

Da mesma forma isto se direcionava as ofertas de educação aos

adultos. Embora o marco seja questionável, até a década de 1930, o que se

tinha eram propostas e ações localizadas que, ora organizadas pelos poderes

provinciais ou estaduais, ora pela iniciativa de grupos sociais (como religiosos

ou sindicatos), produziam poucos efeitos no combate do analfabetismo.

Igualmente os objetivos eram específicos e reproduziam interesses dos

promotores: caso se possa entender as práticas de catequização dos

indígenas pelos jesuítas por boa parte do período colonial como uma prática de

educação de adultos, ela tinha um objetivo claro: procurava produzir “almas

cristãs” disciplinadas ao sistema. Cumprido este objetivo, os jesuítas

dedicaram a arrebanhar novos integrantes ou garantir um ensino básico às

crianças da elite colonial, até a sua desarticulação pelas reformas pombalinas.

Em boa parte da história do Império, a educação de adultos resumiu-se

a abertura de cursos noturnos, com iniciativas (recursos e organização) das

províncias, provocadas pelo Ato Adicional de 1834. Estes cursos noturnos,

abertos à população adulta livre (escravos estavam proibidos de freqüentá-los),

podem ser considerados marcos por se tratarem de primeiras formalizações da

educação para adultos, embora quase todas tenham funcionado muito

precariamente.

A concepção de educação para adultos ainda não adquiria às

influências liberais da Europa, até porque o modelo econômico brasileiro

estava centrado na agroexportação, o que não significava um papel importante

da educação para as classes populares. A própria Constituição de 1824

resumiu sua política educacional a gratuidade da instrução primária aos seus

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cidadãos, o que já deixava a população escrava alienada deste possível

direito.

Os anos de 1870, contudo, começariam a modificar este quadro: a

reforma Leôncio de Carvalho, que propunha a obrigatoriedade da educação,

os relatórios de Rui Barbosa (1881 e 1882) e a própria reforma eleitoral, que

acabava por proibir o voto do eleitor analfabeto: o que retratava uma

concepção liberal de educação.

O analfabeto, até então participante da vida política (quando possível,

devido à renda), passa a ser visto como portador de uma chaga, um mal que

traduz em atraso o país. Esta visão seria (e atualmente continua sendo

repetida dentro de uma perspectiva neoliberal) reproduzida em diversos

momentos da história brasileira, traduzindo numa desqualificação do povo

como sujeito social. Urgia, desta maneira, “recuperar o tempo perdido para

alcançar a posição dos países adiantados” (PAIVA, 1987: 78). Sob este

enfoque, os relatórios de Rui Barbosa incentivaram (ainda que mais no plano

das discussões) a necessidade de se rever toda a política educacional do

Império.

Esta inspiração se traduzia das grandes transformações promovidas na

Europa a partir da Revolução Industrial. As burguesias emergentes da

Inglaterra, por exemplo, embora sempre procurasse restringir a participação

política das chamadas “classes perigosas”, a elaboração de um sistema

educacional que incentivasse o disciplinamento ao trabalho e ao nacionalismo

emergente do século XIX que foi decisivo para manter sempre um nível,

mesmo frágil, de domínio sobre elas.

A República Velha continuaria a receber as influências liberais, embora

o modelo político e econômico do país levassem a uma releitura dentro do

sistema coronelista: Os primeiros anos da República caracterizam-se pelo

combate ao analfabetismo – tido como “vergonha nacional”2 e responsável por

toda a série de atrasos que o país vivenciava – mas ao mesmo tempo,

realizado de maneira incipiente a não permitir o ingresso de novos atores que

colocassem o jogo político em questão.

2 Miguel Couto pode ser considerado um símbolo neste sentido, visto associar sempre em seus

discursos a falta de educação dos populares como razão do subdesenvolvimento do país.

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Em termos de educação de adultos, a incipiente atuação estatal passou

a ser acompanhada, também de maneira incipiente - mas simbólica - de uma

escolarização informal. Podemos destacar a atuação dos sindicatos, muito

inspirado em idéias anarquistas e socialistas (posteriormente comunistas),

buscavam a formação de escolas para as ditas “classes laborais” que

alienadas, ainda não estabeleciam um contraponto à exploração que estavam

submetidas.

É neste quadro que vai se delinear até os 20 e 30 do século XX. Aí

começaram as maiores transformações no campo educacional, e por

conseqüência, a educação de jovens e adultos.

1.2. O contexto educacional dos anos 20 até o Estado Novo

O período entre os anos 20 até a instituição do Estado Novo foi marcado

por sucessivas crises políticas e socioeconômicas as quais tiveram grande

influência sobre as formas de atuação das elites em sua luta pelo poder e de

como diferentes grupos sociais buscaram seus espaços em meio a este

conflito.

Se os anos 20 foram marcados por críticas ao pacto oligárquico que

regia o país, com o advento do tenentismo (1922), pela busca das raízes

brasileiras no campo cultural (Semana de Arte Moderna de 1922) e pela crise

da cafeicultura (que culminaria com a Quebra da Bolsa de Nova Iorque de

1929), a partir da revolução de 1930, acirraram-se os grupos sociais que

buscavam dominar os diversos campos de atuação da sociedade brasileira.

Para Carone, o processo é contraditório em seu início: nele atuam

forças conservadoras e radicais, cada uma propondo uma forma de política de

Estado e de garantia de seus direitos, privilégios e espaço de atuação. Entre

1930 a 1934, por exemplo, pode ser auferir o conflito entre setores mais

radicais (o tenentismo) e a oligarquia de modo geral. Este último grupo, por

uma série de manobras e resistências (como a Revolução Constitucionalista),

sairia vitorioso na Constituição de 1934. O segundo momento seria o crescente

fechamento político entre 1935 a 1937, com grande ascensão dos grupos

conservadores, que colapsaria quaisquer iniciativas de cunho popular,

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marcada sob o estigma do “comunismo” e que permitiria o Estado a consolidar

a modernização autoritária (CARONE, 1974).

Esta conturbação atinge o campo intelectual, no que Lúcia Oliveira

entende vivenciar “uma crise individual de valores correlacionada com a crise

do Brasil. Diante de uma negação dos valores existentes até então, acaba se

convertendo para uma posição espiritualista ou para uma mobilização

participante” (OLIVEIRA, 1999: 90). Esta crise, nas palavras de Sérgio Milliet

levou muitos a se tornarem simpáticos ao “comunismo, fascismo ou até o

socialismo cristão” (OLIVEIRA apud MILLIET, 1999: 90).

Entre os intelectuais da educação, não seria diferente: acirraram-se os

conflitos entre católicos e os que defendiam a renovação escolanovista. A

grosso modo, a partir dos anos 20 até o Estado Novo permitiu-se a constituição

definitiva de um novo campo profissional em educação, o qual Anísio Teixeira,

Fernando Azevedo, Lourenço Filho, porta-vozes da Escola Nova e principais

artífices, tendo John Dewey como inspirador.

Tendo origem em São Paulo, mas se espalhando por diversos estados

brasileiros na década de 1920, o Movimento da Escola Nova promoveu ou

inspirou uma série de reformas no campo educacional a partir de uma

concepção liberal de educação inspirada nos moldes norte-americanos e

europeus. Embora deva se fugir de uma concepção tradicional do

escolanovismo, com uma visão puramente ligada aos aspectos qualitativos da

educação (o “otimismo pela educação”) assim como serem vistos como um

grupo coeso (NUNES, 1992: 154), ela defendeu um projeto que estabelecia a

defesa dos valores democráticos da sociedade assim como seu

desenvolvimento pela educação pela formação de cidadãos.

Ela oportunizaria o acesso sem distinções sociais ao sistema

educacional, permitindo uma igualdade de condições entre os indivíduos

(homogeneização). O ponto síntese estava na idéia da instituição escolar:

“O grupo escolar encarnou essa condensação de ideais. Era um prédio especialmente construído para atender a finalidades pedagógicas que previam classes homogêneas de aprendizagem, o ensino seriado, a divisão das disciplinas escolares e das tarefas docentes, uma única direção, o uso

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de métodos didáticos apoiados nas investigações da psicologia e da sociologia da educação, bem como de equipamentos escolares importados, além de professores formados numa Escola Normal que passara a incorporar uma escola primária de aplicação, na qual os futuros professores observavam e auxiliavam os docentes experientes, pondo em prática muito do que haviam aprendido sobre os métodos renovados de educação” (NUNES, 2001: 104).

Um dos pólos aglutinadores dos ideais do escolanovismo foi a

Associação Brasileira de Educação (1926). Neste espaço, os educadores

ligados ao Movimento da Escola Nova foram utilizando como arena de debates

de suas concepções e planos para o campo educacional, sobretudo de

maneira a barganhar com o poder público a implementação de seu modo

educacional.

No campo oposto estava a intelectualidade católica. Ela era “uma

vertente explicitamente anti-revolucionária“ composta de indivíduos que “crêem

que, segundo o povo brasileiro católico (fruto da colonização portuguesa e da

ação dos jesuítas), basta concentrar sua ação na tarefa de recatolizar a elite

contaminada pelo ceticismo e pelo individualismo burguês” (OLIVEIRA, 1999:

67).

Seus primeiros embates iniciaram contra as influências liberais do

século XIX (Rui Barbosa, por exemplo), mas seus mecanismos de defesa

fortaleceriam a partir dos anos 1920. Um exemplo seria a publicação da revista

A Ordem em 1921 e a criação do Centro Dom Vital, a partir de 1922, o qual

buscavam aglutinar as forças simpáticas ao catolicismo e promover a defesa

dos valores cristãos, da moral e bons costumes. Posteriormente, com o apoio

inicial do governo revolucionário às novas perspectivas da educação, os

católicos buscaram fortalecer suas posições neste campo.

Conforme Cunha e Costa (2002), eles utilizaram-se desde a

condenação formal das novidades como “comunistas”, “ateístas” e “aviltantes

da alma” através de suas publicações até pela constituição de novas instâncias

de defesa de seu pensamento. A Liga Eleitoral Católica e às associações de

educadores católicos formaram-se neste período, assim como intelectuais

católicos (Tristão de Athaíde, seu maior expoente) radicalizam seus

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manifestos, conclamando a defesa da supremacia do ensino católico no Brasil

e o resgate do humanismo, dos valores cristãos (leia-se católicos) e do caráter

civilizatório da população.

Embora não se possa entender como uma disputa simplória entre o bem

e o mal, até porque parte das escolas católica incorporava alguns avanços

pedagógicos propostos pelo escolanovismo3, estes grupos discutiam e

interferiam nas práticas educacionais propostas provocando grandes

divergências, sobretudo em duas questões fundamentais: a questão da

laicização do ensino e a “concepção de escola do trabalho” (NUNES, 2001:

109). Para nós, esta questão é a mais importante, porque se remonta a

questão da dualidade do sistema de ensino e terá conseqüências no campo da

educação de adultos.

O caráter dual da educação brasileira passava pelo problema de como

adequar o ensino às camadas populares ao sistema educacional em

implantação. Neste sentido, sobretudo a partir da Revolução de 1930, o

governo passaria a mediar a implantação das políticas educacionais. Se havia

a imperiosa necessidade dos novos donos do poder em retomar a organização

da sociedade através da educação, de modo a promover a modernização do

país, ela deveria ser controlada. Neste sentido, criação do Ministério da Saúde

e Educação (1930) e do Conselho Federal de Educação (1931), assim como

as reformas de Francisco Campos e Gustavo Capanema deram instrumentos

de como realizar esta mediação e controle social da educação4.

A dualidade educacional revelava uma diferença de projetos para a

sociedade brasileira. Os defensores de uma concepção conservadora (ensino

católico) e defendiam a manutenção da educação preparatória para a elite,

enquanto se implementaria cada vez mais uma escola dirigida aos populares,

na concepção da preparação para o trabalho. Desta maneira, a idéia seria

3 Que se tornariam visíveis nas MEBs ao longos dos anos 50. O próprio Paulo Freire,

influenciado pelas idéias renovadoras da Igreja, iniciava suas experiências educacionais. 4 Exemplo são os decretos n.º 19850 (Conselho Nacional de Educação), 19851 (organização do

ensino superior) e 19852 (criação da UFRJ), em 11.04.1931; decreto 19890 (organização ensino secundário), em 18.04.1931; decreto 20158 (organiza o ensino comercial), em 30.06.1931; decreto 21241 (nova organização do ensino secundário), em 14.04.1932.

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manter o ensino secundário à elite, enquanto as demais classes ficariam

restringidas ao ensino primário profissionalizante.

A idéia da preparação dos populares para o trabalho era comum as

idéias do governo e foram chanceladas posteriormente no Estado Novo. O

próprio Getúlio Vargas, em seus pronunciamentos, compreendia a educação

popular como uma educação preparatória ao trabalho. Não caberia ao povo

discutir, mas labutar em prol de uma nação (CUNHA, 1981: 118-119).

No campo da educação de adultos deste período, o que prevaleceu

ainda fora a instituição Métodos, Ligas e Campanhas contra o analfabetismo5.

Muitos deles foram estabelecidos nos anos iniciais da República e onde

intelectuais – incluindo muitos escolanovistas – delineavam seus discursos na

tarefa de retirar a “mancha”, “curar a doença”, “combater o mal” do

analfabetismo (uma associação típica da época que continua muito em voga).

Havia aí ainda uma concepção negativa do povo brasileiro, entendido como

incapaz, tutelável e ignorante. Por isso, a necessidade de reverter este sentido

através da escolarização para o trabalho (PAIVA, 1987: 120-130).

O que merecia atenção, no entanto, era o perigo da alfabetização virar

defesa de outros ideias políticos. Dentro sempre da perspectiva da dualidade

educacional, era necessário mais do que simplesmente educar, mas aplicar

uma formação moral, de maneira a tornar produtiva/controlável a alfabetização

sem que caísse nas malhas de vícios sociais da época (SOARES, 264). E

estes “vícios” estavam nas idéias tidas “comunistas”, onde experiências

informais de educação poderiam cooptar, como em sindicatos, mas que o

próprio ensino formal (proposto pelo poder público) poderia - sob a máscara

das idéias liberais - perigosamente fomentar.

Parte dos educadores ligados ao escolanovismo, como Anísio Teixeira

buscaram interpor a visão vigente propondo a extensão do ensino secundário

profissional. Ainda que mantivessem muitas vezes a ligação do popular ao

trabalho, a igualdade entre os diplomas era certamente, mesmo no campo

simbólico, uma igualdade de oportunidades (NUNES, 1999: 63).

5 Um exemplo é a Fundação da Cruzada Nacional de Educação em fevereiro de 1932,

considerada como de utilidade pública pelo governo em agosto de 1932 (PAIVA, 1987:121)

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Inicialmente as mudanças legais, contando com o apoio de muitos

renovadores da educação, pareceu demonstrarem o pleno apoio

governamental as propostas democráticas de ensino. O exemplo claro é o

Manifesto da Escola Nova em 1932, resposta às indagações de Francisco

Campos, que em 1931 solicitava aos educadores do Brasil uma nova política

para a sociedade que o movimento revolucionário libertara6. Contudo, os

conservadores católicos conseguiram retomar espaços graças à atuação da

Liga Eleitoral Católica, sendo a Constituição de 1934 o início da sua reação

(demarcada pelo ensino religioso nas escolas). Embora as conquistas técnicas

do escolanovismo permanecessem (nas quais pela primeira vez asseguravam

à educação um capítulo especial na nova Constituição), com o fechamento

político, grupos conservadores foram se incorporando em prol do governo e

passaram a fustigar cada vez mais os renovadores.

Porém, o papel em que o governo atuou como mediador é contraditório,

pois mesmo com o crescente apoio dos conservadores (visto cada vez mais

clara a opção autoritária pelo governo), o governo implementou e consolidou

diversas idéias do escolanovismo. O que ocorreu, no entanto, foi o

esvaziamento de quaisquer conteúdos político que ela pudesse vincular

através da educação (afinal, mesmo educar para a democracia não parecia ser

viável aos olhos governamentais).

Um exemplo foi incorporar conceitos, como o de homogeneizar os

grupos sociais em torno de uma educação comum: na prática serviu para

impor um controle autoritário sob os educandos e reafirmar suas diferenças

dentro da dualidade de educação. O mais contraditório seria com o Estado

Novo, com a incorporação de diversos escolanovistas para o novo aparelho

técnico-burocrático estatal e que em alguns casos, chancelaram seu apoio ao

governo (Lourenço Filho, por exemplo).

Desta forma, experiências educacionais que - aos olhos dos

conservadores e do governo - proporcionaram algum resquício de politização

das massas, mesmo as que se propuseram a fazê-las sob um viés liberal,

6 Francisco Campos e Getúlio Vargas durante o IV Conferência Nacional de Educação

solicitaram que os educadores buscassem o “sentido pedagógico” da Revolução e participassem da reorganização do país. (PAIVA, 1987: 123). A resposta foi o Manifesto (LEMME, 2005: 171)

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foram desmanteladas: Anísio Teixeira no Distrito Federal foi o maior exemplo

deste caso, e por decorrência, Paschoal Lemme e seu curso para adultos.

1.3. Contexto das mudanças educacionais no Distrito Federal entre os anos

1920 e 1930

Foi no Distrito Federal que o campo educacional a partir dos anos 1920

passou por reformas radicais, que proporcionariam em 1936 ser a primeira

unidade da federação possuir um sistema integral de ensino, desde o primário

até a universidade. Uma série de conjunções políticas, sócio-econômicas e

culturais contribuiu para isto. Se no plano político serviria ao projeto nacional

de modernização da nação e manutenção de poder, no simbólico nada mais

justo que as elites locais buscassem modernizar a capital de modo a

transformá-la em modelo à nação e equipará-la aos olhos do mundo.

Porém, os processos de modernização não foram pacíficos. Assim

como o Distrito Federal experimentou reformas mais radicais nos campos da

educação, saúde pública e urbanização entre o início do século XX até 1937,

também contava com uma tradição de resistência popular, onde práticas de

“indolência” e revolta contra o Poder Público e as elites remontavam ao longo

do século XIX (revolta dos bondes). Com a República e suas práticas políticas,

aprofundou-se um sentimento de exclusão dos populares (assistiram

“bestializados” a proclamação da República - CARVALHO, 2001), aumentando

aos olhos da elite a tida “periculosidade” das massas.

Os conflitos reascenderam a partir do século XX à medida que as elites

locais colocaram em prática suas idéias modernizadoras sobre a população da

cidade. Certamente o episódio mais conhecido dos conflitos entre Poder

Público e os populares foi a Revolta da Vacina: a partir dela, que reforçaria na

elite a compreensão nefasta e explosiva da irracionalidade das massas, uma

série de projetos e práticas de reordenação urbana e de higienização foram

progressivamente implementados à revelia da população, com despejos e

destruições de cortiços, barracos e toda sorte de construções tidas irregulares,

de modo a conceder a cidade ares cosmopolitanos e ao mesmo tempo livrar

das mazelas higiênicas que tanto a grassavam.

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20

Ainda assim, não foi possível “limpar” a cidade, ou seja, proporcionar a

modernidade desejada, pois não eram combatidos os elementos que

proporcionavam a pobreza. O que ocorreu, como percebeu Nunes, foi um novo

reordenamento dos grupos sociais na cidade e permitiu o “estabelecimento de

fronteiras não só entre os bairros de modo a demarcar, no recorte espacial, a

sua identidade, mas também dentro de cada bairro, de modo a marcar

posições de classe” (NUNES, 1992: 162).

Ainda assim, os problemas persistiam:

“A pobreza enquistada nos morros, assustava essa elite que se sentia crescentemente ameaçada. Um novo significado emergia na topografia da cidade. As favelas, que iriam se multiplicar no espaço urbano e corporificar problemas explosivos nas décadas seguintes, rotulados sob a expressão de banditismo, foram, na década de trinta, vistas como focos de irracionalidade, de resistência à aspiração de ordenamento e homogeneização da cidade”.(NUNES, 1992: 163).

Vale observar que havia um imaginário social da elite e intelectualidade

carioca que corroborava uma visão negativa sobre os populares: os habitantes

cariocas eram vistos como “personagens do país da malandragem” (NUNES,

1992: 161), como boêmios, parasitas e vagabundos, que tinham no espaço

urbano a manifestação de sua liberdade, seja por aspectos menos ofensivos

(as brincadeiras de rua, o jogo de bicho, as festas populares), seja pelos

problemas (protestos, tiroteios, prisões). Ao passar das reformas, estes

populares - que abarcavam um amplo espectro social, passando desde

cafetões e malandros até feirantes, ambulantes e operários - eram

sedimentados dentro das fronteiras impostas pela elite.

A educação, desta maneira, era vista como uma solução apaziguadora

deste “drama” social. As reformas educacionais, sob este viés, compreendiam

uma visão de homogeneidade das classes populares, buscando interromper

um ciclo de ignorância e violência tido como próprio desses grupos.

Homogeneizar para disciplinar é uma visão própria desta época: para isto as

reformas estabeleceram um reordenamento dos espaços e práticas escolares,

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21

com a instituição desde uniformes e métodos classificatórios para os

estudantes, até a construção de novos espaços escolares (escolas).

Uma das preocupações dos escolanovistas foi justamente à questão da

heterogeneidade dos grupos sociais a serem atendidos pelo sistema escolar.

Suas novas idéias e práticas buscavam homogeneizar instituições e espaços

físicos, procedimentos e técnicas, docentes e discentes. A implementação de

um eficiente sistema de ensino que pudesse “escolarizar” as camadas mais

humildes da sociedade passava pela necessidade de homogeneizar as

camadas populares.

Homogeneizar, neste sentido, compreendia que os populares possuíam

saberes desqualificados, visto a condição de pobreza e ignorância que

vivenciavam. A educação deveria resgatá-los desta situação, todavia o

problema era como lidar com uma população dividida em tantos interesses e

amplamente tida como resistente à coletivização7.

Como no projeto nacional dos anos 30 e que triunfaria no Estado Novo,

o disciplinamento dos indivíduos populares dentro do sistema escolar do

Distrito Federal passou a ser imperioso para a consolidação de uma educação

dual, ou seja, que garantisse à elite local uma educação para o poder

enquanto aos populares, uma educação para o trabalho.

Foi neste quadro que se iniciou uma nova base da modernização

educacional do Distrito Federal. Antônio Carneiro Leão (1922-1926) e

Fernando de Azevedo (1928-1931) protagonizaram, frente ao Departamento

de Educação (integrante da Secretaria de Interior), reformas legais para

modernização do ensino. Ambos procuraram retirar o caráter “emergencial”

das intervenções públicas, buscando combinar comprometimento do Poder

Público (o caráter público da educação), construção de novas escolas e

readequação de antigas, formação e profissionalização dos docentes, e

organização de um sistema de ensino primário regular (NUNES, 2001: 108).

No entanto, a reforma educacional de ambos orientou-se aproximar –

ainda que sempre no viés de cima para baixo (nunca partindo da iniciativa

7 A própria escola, nos moldes liberais, no entanto vivenciaria (e ainda vivencia no

neoliberalismo) esta questão: se incentivaria o pensamento e atuação no coletivo, mas na prática prepara o indivíduo para uma atuação individualista no trabalho capitalista.

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popular) – às classes mais humildes e oportunizar o ingresso no novo sistema

escolar. Ainda assim, medidas interessantes foram tomadas como o ingresso

da sociologia da educação na Escola Normal - sob o patrocínio de Carneiro

Leão, Gilberto Freire orientou diverso normalista a realizarem pesquisas sobre

a vida social da cidade (NUNES, 2001: 106-7).

A partir da ascensão de Anísio Teixeira no controle da educação do

Distrito Federal em 1933, o viés do olhar e da concepção educacional sobre os

populares foram modificados:

“(...) Anísio Teixeira participou da mentalidade da sua época e endossou o papel disciplinador da escola sobre a cidade, ao lidar com a heterogeneidade das classes populares e de suas crianças dentro delas, mas não o fez, como alguns de seus colaboradores, de forma a identificar a heterogeneidade como carência de atributos intrínsecos do sujeito pobre. Ele deslocou a carência do indivíduo para a omissão dos governos na direção da reconstrução das condições sociais e escolares”.(NUNES, 1992: 178).

Anísio Teixeira buscou estruturar claramente um sistema integral de

ensino, ou seja, que abarcasse desde as formações iniciais (o ensino primário)

alcançando o ensino universitário. Mais de 30 escolas foram fundadas, quase

todas em bairros carentes; promoveu a formação e atuação de docentes

“profissionais”, aos quais eram fiscalizados em suas práticas pela Diretoria de

Educação. Radicalizou as concepções escolares vigentes, por exemplo,

através de:

“(...) uma nova proposta de ensino secundário, procurando valorizar seus diplomas pela equivalência aos cursos secundários acadêmicos e adotando novos procedimentos - por exemplo, gestão escolar por alunos organizados em conselhos para decidir sobre sanções disciplinares, estímulo a colegas retardatários, atividades curriculares e extracurriculares etc.” (NUNES, 2001: 109).

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Desta maneira, dentro de uma perspectiva liberal-democrática, Anísio

Teixeira buscava quebrar a dicotomia educacional em construção no país na

prática, equiparando diplomas de trabalhadores aos dos filhos da elite,

acomodando-os na recém formada Universidade do Distrito Federal (1935). A

importância das reformas de Anísio Teixeira está na sua compreensão que “a

reconstrução do país se daria pela disseminação da mentalidade científica e

pelo estilo democrático de vida” através da educação igualitária a todos

(NUNES, 2001: 111). Para este feito, a intervenção pública na educação de

modo a corrigir as mazelas que levaram a população ao estado que se

encontrava no Distrito Federal.

As realizações educacionais promovidas por Anísio Teixeira foram

subsidiadas pelo contexto especial em que o Distrito Federal vivenciava: o

governo de Pedro Ernesto, interventor nomeado em 1931 por Getúlio Vargas.

Oriundo do grupo tenentista, Pedro Ernesto empreendeu, como a regra

entre os governantes cariocas, uma administração de cunho reformador. No

entanto, a novidade foi sua realização, levando em conta pela primeira vez a

participação e demandas dos populares, meros coadjuvantes até então. Ao

estabelecer diálogo com os setores populares, estender as melhorias do

campo da saúde e educação nas zonas mais pobres da cidade, sem que

houvesse “desapropriações”, Pedro Ernesto constituiu-se em unanimidade

entre os populares8.

Segundo Brandi (2001: 2010), Pedro Ernesto foi precursor do populismo

no Brasil. Inaugurando um novo estilo de atuação política, que realiza

concessões aos populares, apoiava sindicatos e protegia inclusive a atuação

da Aliança Nacional Libertadora (ANL), ao mesmo tempo em que buscava

estender um controle sobre eles, o prefeito buscava se situar cada vez mais

acima do conflito estabelecido a partir das tensões sociais dos anos 30. Da

mesma forma, buscava atrair setores mais radicais da classe média, não

cooptada pelos movimentos comunistas ou integralistas, e camadas

intelectuais.

8 Sinal disto foi sua eleição em 1934 e mais do que isto, seu enterro em 1942, acompanhado de

um grande público até então nunca visto na política brasileira.

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As ligações entre as práticas populistas e as reformas empreendidas

são complexas quanto inegáveis. Complexas porque a atuação de Anísio

Teixeira, por exemplo, não poderia ser compreendida como uma simples

operação de conversão de populares em eleitores e sim, como uma

possibilidade deste intelectual, a partir do populismo, buscar a superação da

miséria (ou “ignorância”) em que a população vivia. Inegáveis, porque, embora

possibilitasse a autonomia de Anísio Teixeira para realizar suas concepções

pedagógicas, a intenção clara de Pedro Ernesto era justamente obter esta

conversão de analfabetos em eleitores.

O certo é que, pelos avanços que possibilitaram, resultando na melhoria

das condições da população, a política populista de Pedro Ernesto atraiu mais

ainda o foco das tensões dos anos 1930, sofrendo ataques dos setores da

direita e dos radicais de esquerda.

Estas tensões explodiram no campo educacional, com uma verdadeira

campanha de difamação contra as reformas de Anísio Teixeira deflagrada

pelos intelectuais católicos e setores conservadores da sociedade. Utilizando-

se dos jornais comerciais da época (como “O Globo”) ou periódicos próprios

(“A Ordem”), Anísio Teixeira sofreu inúmeras resistências na sua prática frente

à educação no Distrito Federal, acusado de práticas comunistas e de promover

a anarquia do sistema de ensino.

Tendo Tristão de Athaíde como seu principal algoz, Anísio Teixeira,

assim como todo o governo Pedro Ernesto, foi atingindo pelos episódios que

se seguiram após a Intentona Comunista (novembro de 1935). A partir daí,

demitido do cargo de Secretário da Educação, viu sua obra desmoronar-se

com a extinção da Universidade do Distrito Federal. Com a repressão e o

Estado Novo, buscou o auto-exílio na Bahia.

Um aspecto importante na obra de Anísio Teixeira no Distrito Federal foi

sua capacidade de atrair educadores de diversos matizes políticos, de maneira

a estabelecer o projeto de um sistema integral de ensino na capital. A própria

UDF foi um destes espaços, onde profissionais formavam novos educadores,

onde o objetivo era a “melhoria da prática docente” (NUNES, 1999: 61). Dentro

dessas possibilidades, foi convocado um educador conhecido desde os

tempos da AEB, sem diploma superior, mas comprometido com os conceitos

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do escolanovismo: Paschoal Lemme. A ele seria incumbida à tarefa de

reorganizar e coordenador a educação para adultos no Distrito Federal.

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A experiência de Lemme entre o esquecimento e a lembrança

2.1. A prática na educação de jovens e adultos de Lemme

A experiência com ensino de adultos colocada em prática por Paschoal

Lemme no Distrito Federal foi oportunizada pelo aperfeiçoamento da estrutura

legal vigente na época. As reformas de Fernando Azevedo (como o decreto

2940, de 1928) haviam iniciado a transição de um ensino supletivo noturno

para um ensino que – pelo menos nominalmente – designava-se popular, com

a formação de turmas desde níveis de alfabetização (de dois anos de duração)

a cursos de formação em geral (como comercial, industrial e de economia

doméstica), abertos a indivíduos de 13 anos de idade em diante.

Contudo, foi com Anísio Teixeira, em 1933, que foram regulamentados e

aprimorados a forma de atuação com adultos (decreto n.º 4299, de

25.07.1933) passando à denominação de ensino elementar e os cursos de

continuação de adultos. Se o primeiro enfocava as questões da alfabetização

dentro das escolas primárias no turno noturno, o outro trataria justamente a

capacidade de formação de um indivíduo produtivo. O artigo terceiro resume

sua definição e operacionalização:

“Os cursos de continuação, aperfeiçoamento ou oportunidade destinados a estender, melhorar ou completar a cultura de qualquer pessoa, compreenderão todas as matérias de ensino comumente ministradas em nível primário e secundário geral ou profissional, bem como quaisquer matérias ou especialidades que venham a ser requeridas por um grupo de 20 alunos, no mínimo, desde que seja possível obter o professor e as instalações permitam”. (LEMME, 2004c:75).

Cabia a condução dos cursos de continuação, aperfeiçoamento ou

oportunidade (Superintendência da Educação Secundária, Geral e Técnica e

do Ensino de Extensão) a Paschoal Lemme. Não houve início em 1933 - sem

recursos, a experiência começaria apenas em 1934. Houve a preocupação de

precisar as determinações propostas em lei para a atuação do sistema de

ensino, dividindo-o em “fins” e “organização e condições”.

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Em resumo, o que se definiu foi seu objeto - adolescentes e adultos

“que não tiveram nenhuma oportunidade escolar no tempo próprio ou a tiveram

incompleta”, os que buscavam variados cursos “práticos de artes e ofícios” ou

que desejavam aperfeiçoar suas profissões (os que desejavam “progredir” nos

empregos). Destacava-se também a oferta de “cursos de oportunidade,

segundo os interesses de grupos de alunos e as oportunidades de empregos e

atividades existentes no momento” (LEMME, 2004c: 75).

Preferencialmente noturnos, os cursos não estabeleciam limites de

idade, tampouco uma duração definida, sem seriação, sem formalidades de

matrícula, ou seja um verdadeiro contraponto a educação formal disponível até

então.

Obviamente que havia fatores complexos para a implementação. O

primeiro era justamente como apreender as necessidades do grupo de

indivíduos que procurariam os cursos, de forma “aproveitar da melhor maneira

possível a pequena verba de que dispúnhamos, nesse ano, para organizar o

ensino de extensão” (LEMME, 2004c: 75).

Para isto, Lemme procurou contato com o Ministério do Trabalho para

obter informações sobre a distribuição de atividades profissionais no Distrito

Federal. Sem sucesso, e sem recursos para estabelecerem uma pesquisa,

recorreram aos dados de matrículas da Escola Profissional Visconde de Cairú,

acumulados desde 1923.

O segundo fator era ainda mais complexo: mesmo definido o que

deveria ser feito, a quem deveria atingir? A preocupação enfocou obviamente a

população das classes mais baixas, pois a elas é que a escola pública deveria

atingir. A base dos dados obtida na Escola Visconde de Cairú ajudou a reduzir

a amplitude do termo, enfocando em:

“pessoas de condições econômicas e culturais reduzidas, operários e comerciários, principalmente, uma vez que o ponto de vista da Administração era de que deveria empregar as verbas de que podia dispor, em benefício dessas classes menos favorecidas” (LEMME, 2004c: 76)

Este problema leva ao terceiro fator, o professor a ministrar às aulas do

curso. Afinal, segundo Lemme:

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“(...) era preciso considerar com muita atenção, o problema do professor, sabido que a freqüência a essa espécie de cursos tem por móvel principal um interesse real de indivíduos adultos em lograr progresso rápido nas suas condições culturais ou técnicas, no sentido de obter geralmente uma melhoria imediata de ordem econômica, e para isso sacrificam, quase sempre, suas já reduzidas horas de repouso ou recreação.” (LEMME, 2004c: 76)

Era imprescindível obter um indivíduo que detivesse, além dos requisitos

normais de docente:

“(...) condições especiais que lhe dêem uma atitude adequada para enfrentar, com sucesso, todas essas variedades de situações dos alunos a seu cargo, desde as que são provenientes das condições apontadas, até as relativas à diversidade de formação e de conhecimento que os mesmos apresentam” (LEMME, 2004c: 76)

Mesmo assim, Lemme ressalva a inexistência ou pelo menos, a

dificuldade de encontrar alguém com estas condições para esta tarefa.

Tampouco alguém habilitado para a função de coordenação, afinal era uma

experiência inédita.

Uma solução proposta por Lemme foi estabelecer uma estrutura simples

e dinâmica de funcionamento, na qual o diretor coordenava as diferentes

atividades dos cursos disponibilizados em uma escola, enquanto os

professores eram responsáveis diretos perante os alunos e administração pela

prática pedagógica. As dúvidas que surgissem deveriam ser levadas a

Superintendência. Esta, além de realizar toda a organização do sistema de

ensino para adultos, buscava orientar professores e diretores em sua prática,

propondo idéias, de maneira a superar a inexperiência da ação pedagógica.

Um quarto aspecto, não destacado no relato de Lemme, mas

certamente ambicioso pela possibilidade de formação de um trabalhador

especializado, era que cursos ofertar. Com o uso do espaço das escolas

secundárias técnicas, em parte este problema estava reduzido, pois certos

cursos técnicos exigiam materiais e equipamentos, como o de eletricidade ou

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corte-e-costura, que os alunos não poderiam arcar. Mas isto restringia a

possibilidade de abrir novos cursos pela falta dos mesmos materiais, sem citar

a questão de docentes especializados para a função.

Embora as dificuldades para organizar o funcionamento tenham sido

importantes, Lemme observa que - com uma boa propaganda na imprensa

diária e com apelos às associações de classe (que apoiavam as políticas de

Pedro Ernesto), junto com a gratuidade e a desburocratização dos processos

de matrícula (uma simples declaração verbal do aluno bastava para assistir às

aulas) - as matrículas para os cursos alcançaram sucesso, superando

rapidamente a oferta de vagas.

Cinco escolas técnicas abriram suas portas para a iniciativa de Lemme,

com cursos desde línguas (português, francês, inglês), ciências humanas e

matemática até as técnico-comerciais e industriais, como eletricidade,

estenografia e contabilidade.

O funcionamento dos cursos, segundo Lemme, foi mais do que

satisfatórios. Alguns problemas próprios da educação de adultos (ainda em

muito atuais), como a mobilidade de freqüência, a diversidade de preparos e

condições dos alunos, problemas de práticas docentes, horários, enfim foram

transformados em objetos de análise para um aprimoramento no ano seguinte.

Para analisar estas questões, Lemme solicitou que se coletasse dos

alunos suas impressões através de um questionário. Estas impressões não

são conhecidas na monografia do autor9, todavia é possível deduzir seu

aspecto positivo, pois ultrapassou o número de mil devoluções, sendo que

foram matriculados 1366.

O relatório de Anísio Teixeira, em fins de 1934, comemorava o pleno

sucesso da experiência de Lemme:

“Poucas iniciativas do Departamento de Educação lograram aceitação tão imediata e entusiástica quanto esta. É que a educação, de ordinário tão remota em seus frutos, porque se dedica

9 O autor anexou algumas em sua monografia, mas não foram publicadas.

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exclusivamente aos indivíduos em idade de preparação para a vida econômica, associou-se, nesse caso, aos interesses do adulto e se dispôs a dar-lhe uma assistência direta no seu trabalho.” (LEMME, 2004c: 78)

O sucesso levou a repetição da experiência em 1935, agora dotado de

mais recursos, divulgação e organização. Diretamente ou não, a experiência

contribuiu para que o próprio Departamento de Educação, até então vinculado

à Secretaria de Interior, torna-se Secretaria de Educação, com Anísio Teixeira

seu primeiro titular da pasta.

Um dos problemas constatados em 1934 fora a disparidade entre níveis

de conhecimento dos alunos. Procurou-se estabelecer dois mecanismos para

melhor atendê-los e aumentar o rendimento das aulas, para isso instituindo-se

a divisão dos cursos em “básicos”, de “informação” e “especializados”,

baseado conforme as motivações dos candidatos, e a aplicação de uma prova

(“verificação de conhecimentos”). A respeito da última, conforme o andamento

das aulas, novas provas eram aplicadas de maneira a reorganizar

periodicamente as turmas.

Isto foi à intenção de Lemme a fim de buscar a homogeneização das

classes, conforme seus interesses e capacidades. Além dos expedientes de

classificação, Lemme buscou organizar a expansão da rede de ensino para

abrigar o aumento de matrículas (faltaram vagas em 1934), atender novas

regiões do Distrito Federal que não foram atingidas pela experiência (bairros

operários) e, sobretudo, adaptar o ensino às necessidades de grupos de

indivíduos que não eram previstos no projeto.

Os cursos eram previstos para atender um determinado perfil de

alunado oriundo das classes operárias e trabalhadores comerciários, por

exemplo. Porém, a prática trouxe desde estudantes do ensino secundário, que

viam nos cursos uma forma de corrigir as deficiências do ensino (uma idéia de

reforço), até ambulantes e desempregados, que tinham no curso, no mínimo,

curiosidade de conhecê-lo. Por outro lado, indivíduos da classe operária foram

mínimos se comparados aos oriundos das atividades comerciais:

“Este fato tem uma dupla explicação: em primeiro lugar, a maior procura dessas últimas atividades

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[ligadas ao comércio], consideradas de nível superior e mais favoráveis à obtenção de uma colocação que proporcione rendimento econômico imediato; em segundo lugar, as dificuldades que encontram os elementos das classes operárias e industriais, que residem, geralmente, em subúrbios longínquos, de freqüentarem regularmente os cursos” (LEMME, 2004c: 77)

Alguns fatores desta preocupação, como a questão do imediatismo,

serão observados posteriormente. Todavia, mesmo com todos os limites, o

curso para adultos em 1935 teve um salto de mais de 350% de inscritos (5174

matrículas), sendo que “quase todos os cursos passaram a ser disputadas”

(LEMME, 2004c: 79). O ensino ao longo do ano transcorreu normalmente até

os meses finais, quando houve anúncio público de corte de verbas.

Provavelmente motivado pela crise política que assolava o governo de Pedro

Ernesto, por ataques diários das classes conservadoras e da intelectualidade

católica, significaria a redução das atividades, tanto em extensão quanto em

qualidade. Coube a população beneficiária manifestar sua insatisfação via

imprensa, conforme Lemme, destacando “uma eloqüente demonstração da

utilidade real da obra que vinha sendo destacada” (LEMME, 2004c: 79).

Ainda assim, o governo do Distrito Federal contraditoriamente apoiava a

educação de adultos: segundo Lemme, por decreto, reuniu sob um

departamento (Diretoria de Educação de Adultos e Difusão Cultural) as

diversas superintendências, como a que o autor coordenava (SCCA), a de

ensino elementar para adultos, a divisão de bibliotecas da rede municipal, etc.

Porém, a troca da administração pública no campo educacional levou a

desmobilização do projeto: Anísio Teixeira demitiu-se do cargo de secretário,

após longos embates com a intelectualidade católica, graças aos

acontecimentos políticos de novembro de 1935 conhecidos como Intentona

Comunista. A partir daí, a experiência de Pascoal Lemme com a educação de

adultos tomou outro rumo e eclipsou-se em 1936.

2.2. A queda

A monografia de Paschoal Lemme é hermética a respeito do colapso da

experiência, praticamente relatando o término abrupto das atividades. Sabe-se

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por suas memórias, no entanto, como seu projeto começou a frustrar-se: após

a Intentona Comunista de 1935, iniciou-se uma dura repressão por parte do

governo, que passava a governar sob estado de sítio, criando um clima de

histeria na opinião pública sob os perigo do comunismo no Brasil. Se a

perseguição aos membros da ANL e PCB fora implacável, culminando na

prisão de Luís Carlos Prestes e a deportação de Olga Bernário, simpatizantes

e/ou simples desafetos do governo começaram a sofrer represárias.

O maior alvo político foi Pedro Ernesto e sua administração no Distrito

Federal. Não tanto pelo perigo que representava ao regime (pois embora

tolerasse as ações da ANL, buscou avisar o governo Vargas da iminência da

Intentona), mas pelo perigo populista que representava. Por interferência dos

setores mais autoritários, como Francisco Campos, Pedro Ernesto foi deposto

do governo do Distrito Federal e preso. Execrado pelos adversários, sofreu

longos processos, foi absolvido e em 1942, afastado do jogo político, faleceria.

Antes, acuado pela pressão da imprensa (O Globo), adversários

políticos e a intelectualidade católica, tentando manter-se no cargo, Pedro

Ernesto foi obrigado a destituir da pasta da educação Anísio Teixeira em

01.12.1935. Este por sua vez havia sido alvo de intensa perseguição de Tristão

de Athaíde, que através de artigos publicados na revista católica A Ordem ou

na imprensa, buscava associar os avanços escolanovistas como práticas

socialistas e atéias, sendo Anísio indivíduo perigoso a manter-se em frente da

pasta educacional.

Como resultado, Francisco Campos foi imposto como novo secretário da

Educação e iniciou o desmantelamento da obra de Teixeira, junto com a

colocação em postos chaves indivíduos ligados ao pensamento católico. A

desconstituição da Universidade do Distrito Federal foi símbolo deste período

de fechamento, desmontando o sistema integral de ensino proposto por Anísio

Teixeira.

A mudança de orientação política da administração do Distrito Federal a

princípio não pareceu ter atingido a continuidade dos trabalhos de Lemme. O

próprio colocou seu cargo a disposição, mas foi convidado a manter-se até que

fosse substituído adequadamente.

Roquette Pinto assumiu a recém denominada Diretoria de Educação de

Adultos e Difusão Cultural, convidando Lemme a continuar seu trabalho. Ele

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33

assumiu, contudo, observando que a tarefa estaria mais árdua visto “a

necessidade de remodelar inteiramente a organização e orientação dos cursos

elementares para adultos, no sentido de bem se articularem com os de

continuação e aperfeiçoamento e ganharem o mesmo ritmo de trabalho desses

últimos” (p.80)

Provavelmente o autor também revelava aqui não só o problema técnico

em lidar com etapas de alfabetização de adultos (e não apenas

aprimoramento), mas a capacidade de lidar com as dificuldades políticas e

com a falta de recursos.

No início dos trabalhos, em janeiro de 1936, Lemme estabeleceu um

levantamento das condições dos cursos disponíveis. Da mesma forma, buscou

promover - no momento das matrículas - “um largo inquérito”, um questionário

de interesses os quais os alunos preencheriam de modo a disponibilizar suas

informações para melhor adequação dos cursos. A abertura dos cursos estava

planejada para março.

Contudo, em 14.02.1936, quando despachava em seu gabinete de

trabalho, Lemme foi detido pelo DOPS. O episódio fora relatado pelo próprio

autor:

“No fim daquele dia exaustivo, em que atendera a um grande número de pessoas, notei que restava ainda um rapaz de boa aparência, carregando debaixo do braço uma pasta de couro e que estava sentado num dos cantos da sala, em atitude de espera paciente. Convidei-o a vir até a minha mesa de trabalho, para dizer-me a razão de sua presença. Ele, sentando-se ao meu lado, tirou do bolso uma carteirinha de investigador da Divisão de Ordem Política e Social, e, segundo me pareceu, bastante constrangido, disse-me, mais ou menos o seguinte: – Vim até aqui para lhe transmitir a solicitação do capitão Filinto Müller, Chefe de Polícia, para que o senhor compareça à Polícia Central para prestar alguns esclarecimentos. Como verifiquei que estava muito ocupado, esperei até que terminasse seu trabalho...” (LEMME, 2004a: 205)

Era o fim da experiência da educação de adultos. Sob a acusação de

atividades subversivas simbolizadas pela organização do curso à União

Trabalhista em 1935, Lemme foi preso. Como prova de seu envolvimento com

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34

o movimento comunista, estavam impressos do programa e atividades de

aulas na União Trabalhista:

“Jamais poderia imaginar que tal impresso, de cunho oficial, mimeografado, contendo apenas as referidas informações que pudessem trazer tão graves conseqüências para mim e para os três colegas encarregados dos referidos cursos, que aliás mal chegaram a ser iniciados.” (LEMME, 2004a: 186).

O que pesava aqui era a possível ligação de Lemme com elementos da

ANL. O autor destaca não as haver, mas sem dúvida seu pensamento

circulava entre os membros. Correspondências de membros da ANL

apreendidas pelo DOPS discutiam a validade da experiência de Lemme e

como tal ensino poderia ser utilizado para libertação do povo. Este

emaranhado de acusações, muitas tidas como fantasiosas por Lemme, o

encarcerariam por um ano e quatro meses, junto com outros colegas de

trabalho no Distrito Federal.

2.3. As idéias

Em 1938, a Paschoal Lemme foi oportunizado recontar a história de sua

experiência através de uma monografia do concurso para fiscal de educação

do Ministério da Educação.É o ponto de partida para conhecer sua

experiência. Ela é a primeira obra especificamente sobre este tema e embora

as motivações do autor não tenham se cercado a isto, a opção por este tema

na monografia referiu-se ao entendimento de Lemme em apresentar algo

original, com base em sua experiência no Distrito Federal (LEMME, 2004c: 45).

Cercada de cuidados, Lemme pareceu ter medido bem os limites de sua

obra, pois não fez um relato metódico sobre sua experiência, mas procurou

manter um estilo sintético, discorrendo no todo sobre o caso ao invés de expor

ponto a ponto a organização e aprofundar as concepções teóricas que a

validaram em sua prática.

Isto não foi à toa. Primeiro, preso a aspectos formais, sua monografia

era um dos novos requisitos em que Lemme participava para obtenção do

cargo de fiscal de educação no Ministério da Educação. O próprio ponto do

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programa da prova - ensino público - que acabaria subsidiando a escrita da

experiência havia sido sorteado. Objetiva, sua redação demonstrar

conhecimentos na área de educação, porém de maneira mais “estéril”, sem

que houvesse opiniões ou críticas. A própria banca compreendeu o sentido do

trabalho, dando-lhe o segundo lugar.

Outro aspecto, mais importante: a monografia foi produzida em plena

vigência do Estado Novo. Até aí, Lemme já havia experimentado algumas

frustrações, como o afastamento e sindicância por suas atividades de fiscal de

educação no RJ e o encerramento do curso de educação de adultos, sempre

sob ataques de setores conservadores, recebendo a pecha de ativista

comunista.

Defender explicitamente seu ponto de vista tido como “radical”, em um

período de fechamento político, era um ato de suicídio profissional, ainda mais

para alguém que havia sido preso dois anos atrás sob acusação de

envolvimento com a ANL. Lemme recomeçava a reconstruir sua vida (o qual

passava por grandes dificuldades materiais) e a esperança de trabalho na área

educacional, com sua formação escolanovista, estava na esfera pública.

Pode-se questionar se isto foi uma cooptação ou uma estratégia de

sobrevivência (opção mais plausível). Todavia, pesou aqui o fato de que

Lemme também havia detido uma experiência frustrada através do Instituto

Brasileiro de Educação, um empreendimento educacional de moldes modernos

que havia proposto em 1931, mas que foi a falência em 1933 e o deixou em

difícil situação por anos10

.

As motivações e idéias de Lemme podem ser deduzidas nos elementos

que constroem sua monografia. O educador teve o cuidado de estabelecer

uma trajetória histórica da educação de adultos (como uma tradição a ser

seguida por todos que recuperam a memória do EJA). A importância é sua

capacidade de situar as transformações contemporâneas do ensino para

10

O Estado Novo caracterizou-se não só por ser um regime de exceção, mas que também conseguiu atrair intelectuais de diversas matizes ideológicas para seu projeto de modernização autoritária. Muitos escolanovistas, perseguidos ou não ao longo dos anos 1930, foram gradualmente incorporando-se a estrutura burocrática educacional como modo de continuar suas práticas, cooptados ou não. Desta forma, parte das contribuições dos escolanovistas foram incorporadas: Lourenço Filho foi um exemplo, com sua atuação frente ao INEP, aceitando de bom grado as exigências do Estado Novo.

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adultos no mundo, ou melhor, quase todo enfocado em países de tradição

liberal, como Inglaterra, França e Estados Unidos11

.

Para Lemme, as origens da educação de adultos remontavam a

Revolução Industrial, como forma de qualificação para o trabalho industrial,

mas tinham adquirido outro sentido a partir da Primeira Guerra Mundial: educar

adultos seria um “dos meios capazes de corrigir ou atenuar os efeitos

desastrosos produzidos por esse acontecimento sobre a humanidade”

(LEMME, 2004c: 57). Isto tornou a educação de adultos a partir da década de

20 um campo fértil de experiências educacionais, com numerosas publicações

listadas pelo autor.

Estas transformações, segundo Lemme, trouxeram novos conceitos

para a educação de adultos que se situam entre a educação supletiva e a

“liberatória” de maneira a combinar aprendizado de conhecimentos, sua

ligação ao mundo do trabalho e a inclusão/superação de sua condição social

(LEMME, 2004c: 45). Embora o autor não explicite conceitos de conotação

mais sociais, é possível depreender as idéias que fomentaram e que puseram

em prática na experiência.

2.3.1. A oferta educacional contínua pelo poder público

A idéia de ensino continuado é mais bem vislumbrada através da crítica

de outras ofertas educacionais proporcionadas pelo Estado aos adultos: as

campanhas de caráter emergencial. A partir de sua experiência, Lemme

proporcionou inúmeras críticas às cruzadas imposta na educação de adultos,

observando que isto tinha sido uma tendência até os anos 20 em muitos

países e que no Brasil ainda era a regra.

De maneira geral, Lemme compreendia que eram esforços

descomunais que detinham altos custos, amplo desperdício de materiais e

recursos humanos, com preocupações secundárias (idéia de reverter os

índices de analfabetismo de maneira imediata), que em pouco contribuíam em

reverter os altos índices de exclusão e êxodo rurais (LEMME, 2004b: 159). O

11

Em suas memórias, certamente fica implícito que Lemme estava a par das campanhas de alfabetização da União Soviética. Posteriormente, Lemme produziu um trabalho sobre esta questão.

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que deveria ser feito era algo que proporcionasse vínculos com os alunos, uma

oferta regular como ensino vespertino/noturno disponível em nível municipal ou

estadual, sem que tivesse o caráter provisório, mas de maneira contínua,

estendida a todos que quisessem participar.

Lemme estabeleceu a necessidade de oferta destes cursos pelo poder

público. O entendimento do papel do ensino público estava vinculado a longa

discussão entre escolanovistas e educadores católicos, ou seja, quem deveria

mediar as possibilidades de ascensão social e controle das classes sociais

dentro do campo educacional. Lemme certamente não via na iniciativa privada,

com seus cursos preparatórios para ingresso nas universidades, possibilidades

de inclusão social de setores mais humildes.

Uma de suas experiências, que pode ser entendida dentro do quadro de

educação para adultos como a superação da omissão do poder público, foi sua

atividade como Inspetor de Educação no Rio de Janeiro entre os anos de 1931

a 1935. Nesta atividade, que manteve até seu afastamento sob a acusação de

ineficiência (devido às práticas reformistas que colocava em prática), a

contínua visitação em escolas ao interior deste estado, permitiu tomar contato

com as dificuldades inerentes a prática pedagógica em geral que levavam a

ineficiência e acréscimo da evasão escolar.

Lidando com a pobreza das populações dominadas por oligarquias

locais, com sistemas de ensino ineficientes formado por escolas improvisadas,

professoras diletantes e falta de materiais didáticos, Lemme pleiteou uma

profunda reorganização, buscando enfocar em formação dos docentes através

de cursos de extensão e continuação. Professores carentes de instrumentos

de ensino, antes relegados à própria sorte, seriam sempre fomentados a

continuar estudando, melhorando sua prática pedagógica e combatendo os

índices de analfabetismo e evasão escolar.

Este fomento se dava pela própria atuação de Lemme, junto com

Valério Konder (médico sanitarista e ligado ao PCB) e outros educadores,

sanitaristas e intelectuais do governo Celso Kelly, em aulas de formação em

ginásios e salões, contando com grande respaldo popular. Se os resultados

foram válidos e detinham visibilidade, pela movimentação que causavam nas

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cidades em que visitavam, também atraíam adversários e inimizades, como

membros das elites locais, integralistas e intelectuais católicos.

2.3.2. A inclusão social, expectativas e autonomia

A intervenção pública na oferta escolar para adultos proporcionando

uma continuidade era chave para a tarefa maior da experiência de Lemme: a

inclusão social e o esclarecimento social pela educação. Nos deteremos

inicialmente no primeiro aspecto - o certo é que a continuidade do projeto,

mesmo sob críticas e falta de recursos, vingou por atender uma idéia de

inclusão social a qual atendia os interesses dos alunos e ao mesmo,

instrumentalizava-os para a superação das condições sociais em que viviam.

As primeiras vivências de Paschoal Lemme corroboraram para seu

projeto: o contato, ainda no ensino primário, com Teófilo Moreira de Castro,

professor que o incentivou a optar pelo magistério. Em suas memórias, Lemme

compreendeu Teófilo, entre outros companheiros educadores, um antecessor

dos ideais escolanovistas. Mais do que atuar na Escola Visconde de Cairú,

onde Lemme estudou e voltou como professor, Teófilo intenciou por muito:

“fazer construir um edifício especial para a instalação da escola, pois até aquela data todos os prédios em que funcionara eram alugados e adaptados. Visava também a transformação do estabelecimento numa escola profissional de caráter especial, que, recebendo alunos desde o nível primário, até mesmo analfabetos, os levaria até a adolescência, treinando-os em atividades diversificadas que pudessem ser úteis para a escolha de uma profissão futura, sem descurar contudo do ensino de letras, que permitiria aos que tivessem aptidões prosseguir em estudos de nível mais alto e mesmo formarem-se em cursos superiores. Enfim, seria uma escola básica, ao mesmo tempo de educação geral e profissional, de nível médio”.(LEMME, 2004a: 101).

De certo modo, a atuação de Lemme adaptou este desejo de Teófilo no

campo dos jovens e adultos, ou seja, de uma necessidade de construir

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39

formações, não simplesmente transmitir, a fim de permitir uma melhor vida

social.

Porém como fazer esta inclusão? Ao atender um público carente no

Distrito Federal, a experiência de Lemme poderia estar ligada ao imediatismo

de resultados, ou seja, que os alunos sintam-se amparados nos cursos para

rapidamente conseguirem converter suas carências em soluções do

quotidiano. Pode parecer simplório, mas era um projeto de ensino voltado para

atendimento de suas necessidades, indivíduos de classes mais humildes

encontravam novos caminhos de ascensão social (ainda que questionável o

quanto).

Uma das questões que Lemme se deparou em sua experiência foi o

problema da heterogeneidade dos grupos sociais. Como anteriormente

observamos, era uma preocupação construir uma homogeneidade entre os

grupos sociais que participariam dos projetos a fim de escolarizar as camadas

populares.

A diferença de Lemme para os demais foi radicalizar esta visão sob a

heterogeneidade. Longe de proporcionar um disciplinamento pelo ensino

formal, até então a regra no ensino brasileiro, os cursos para adultos

procuraram fomentar outras formas de intervenção dos alunos na sociedade.

Eles foram propostos conforme as necessidades dos alunos, atenderam

demandas populares. A experiência de Lemme, conforme citado, propôs uma

série de atividades que atendiam esta expectativa ou pelo menos, pretendiam

isto.

Inicialmente, Lemme deteve problemas em administrar a

heterogeneidade dos grupos populares. Um exemplo foi ao permitir que a

matrícula fosse “livre”, sem que houvesse inicialmente alguns mecanismos de

avaliação, resultando um decréscimo de qualidade, no qual o próprio Lemme

buscou corrigir posteriormente.

Contudo, o problema maior foi justamente a quem seria dirigidos os

cursos. Conforme visto, as classes laborais, sobretudo aos grupos de operários

do Distrito Federal. Isto resultou numa tentativa de homogeneizar os grupos

populares, sob a influência marxista (que Lemme incursionava), dentro de uma

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concepção mais dogmática (própria do Partido Comunista Brasileiro, principal

divulgador na época dos ideias marxistas), do operariado ser a vanguarda das

classes trabalhadoras (e frutos da exploração capitalista). Entretanto, conforme

Nunes e Carone, declinava-se a tradição operária no Rio de Janeiro, visto a

vanguarda industrial do Brasil cada vez mais se centrar em São Paulo; da

mesma forma, a localização dos cursos se deu distante dos bairros operários,

o que não os fomentou a deslocarem-se para freqüentá-los. Nos pareceu ser

um pouco ingênua a idéia de Lemme em dirigir os cursos a eles.

Porém, Lemme teve sua visão modificada pela própria demanda

popular. O educador entendeu que não era possível uma educação sem levar

em conta as expectativas e saberes dos alunos: consoante a isto, estas

camadas sociais buscavam na escola à possibilidade de ascensão social.

Bourdieu compreendeu a significação da escola para os populares - a

demanda por escolarização que parte dos mesmos faz parte de uma estratégia

em buscar a diplomação e a possibilidade de melhoria social. Não é por menos

que respaldado neste princípio, que a tradição brasileira a mantém no título e

no respeito pelo “doutor”, a procura pelos cursos de Lemme foi acima do

esperado.

A experiência também enriqueceu porque se propôs superar esta visão.

Primeiro, porque dentro pela equivalência dos diplomas secundários proposto

por Anísio Teixeira, escapou dos aspectos formais de uma inclusão (típicos

das campanhas emergenciais de alfabetização) trazendo uma chance real de

inclusão/ascensão social por parte dos estudantes. Isto se dava pela

preparação de uma profissão, ou pelo menos, seu aperfeiçoamento, mas

também por um ensino de qualidade, pois preparava cursos de formação geral,

semelhantes aos que eram para a elite.

Segundo, não só em atender as expectativas, os cursos permitiam

fomentar autonomias, fugindo da idéia incapacidade das massas em se

organizar. A autonomia foi demonstrada pela capacidade dos alunos em se

articularem em atividades extracurriculares, por exemplo, quando Lemme

lembrou da formação de clubes e associações, “onde faziam realizar palestras

e conferências de cultura geral, sessões de cinema educativo e tentando

também o teatro de amadores” (LEMME, 2004c: 79).

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A promoção de novos espaços de sociabilização, com trocas de

experiências, contribuíram para organizações, como a Federação Vermelha

dos Estudantes Vermelhos, alcançassem os alunos destes cursos. Ela

simbolizava a interação dos grupos sociais dentro do espaço escolar, incluindo

a ajuda as camadas mais pobres que freqüentavam os cursos, com a doação

de vestuários, por exemplo.

Esta capacidade de articulação do público se revelou, por exemplo, na

tentativa de organização de cursos para adultos na União Trabalhista, uma

associação operária baseada no bairro Gamboa. Estes contataram o prefeito

Pedro Ernesto a respeito da possibilidade de abertura de cursos, que por sua

vez, em meados de 1935, determinou a ida de Lemme e seus colegas (Valério

Konder, Hermes Lima) ao sindicato e passar a organização dos cursos.

Lemme passou a debater com os operários o que deveria os cursos

prestar de ensino a eles, ou seja, que tipo de ensino era necessário e possível

ofertar. Com ampla liberdade, os demandantes de ensino solicitaram além da

formação normal (curso de alfabetização, ensino elementar e ensino

profissional), a organização de cursos de cultura geral.

A idéia era promover cursos de forma a tratar dos interesses do

operariado. Assim, os demandantes solicitaram aulas que tratassem história do

Brasil e do trabalho, direitos trabalhistas, cultura brasileira em geral, as quais

foram organizadas em um programa de atividades. Fruto disto foi uma aula

ministrada por Lemme sobre a história do trabalho, embora a experiência em

seu todo não houvesse se concretizado.

2.4. O esquecimento da experiência de Lemme

Por que seu trabalho foi desmantelado após a Intentona Comunista? E

por que, apesar de apresentar o primeiro trabalho sobre educação de adultos

no Brasil, a experiência de Lemme caiu numa espécie de esquecimento, ainda

mais eclipsada em comparação a revolução que Paulo Freire promoveu em

fins dos anos 50?

As duas questões são muito pertinentes para história e memória da

educação de adultos no Brasil. Conforme Paiva, a novidade da experiência de

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Paschoal Lemme com adultos foi uma educação de cunho político para as

classes populares do Distrito Federal. É a autora, transformando-o em um dos

primeiros “realistas da educação”12

, que vislumbrou sua importância. Pela

primeira vez era previsto na educação para adultos a capacidade de indivíduos

pleitearem diante o poder público o atendimento de seus interesses.

Basta perceber que, tanto os cursos para adultos estruturados pelo

Estado ou pela iniciativa privada, quanto os cursos ministrados pelos

sindicatos, quase todos enfocavam recuperar o indivíduo da “ignorância”,

desconstituindo seu conhecimento prévio como válido, a fim de levá-lo à

civilização (ou até a cidadania) ou a revolução e a destruição do Estado

burguês (pelo enfoque anarquista/socialista). As próprias campanhas de

alfabetização frustravam-se quando não conseguiam reverter os índices de

analfabetismo e jogavam as culpas na indolência do povo brasileiro.

O desmonte e o posterior esquecimento não podem ser considerados

uma pura damnatio memoriae, mas ações de perspectivas educacionais que se

sobressaíram sobre a que Lemme propusera no período. No caso do

desmonte e sua prisão em 1936, residiu basicamente na resistência imposta

pelos setores conservadores da sociedade, que no campo educacional ficou

claro pela intelectualidade católica, e pela idéia de educação dual que o Estado

implementou com Francisco Campos e Gustavo Capanema.

Lemme colocava-se numa perspectiva mais radical do escolanovismo, a

qual compreendia a educação não só para o trabalho, mas como objeto de

reflexão da sociedade. Obviamente que era um sério contraponto a idéia do

governo em formar trabalhadores dentro de uma modernização autoritária.

Lemme lidava de forma “perigosa” com seus alunos, pois com a prática

da autonomia dos alunos respaldava uma outra compreensão da educação.

Lemme não compartilhava a idéia de que a educação por si só permitiria a

resolução das mazelas sociais, próprias das campanhas de alfabetização, mas

mais do que passar pelo compromisso público da educação para adultos, o

educador compreendia que a educação deveria ser política, dentro de:

12

Indivíduos que relacionam aspectos qualitativos e quantitativos no trato do problema escolar, fundamentando uma intervenção mais calcada na realidade social.

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“um grande movimento de esclarecimento de nosso povo, inclusive dos analfabetos, para que demonstrem seu inconformismo com a situação em que ainda vegetam milhões de brasileiros no sentido de se unir para libertar o país dessa situação insustentável de miséria, de atraso, de subdesenvolvimento, enfim, causa única de todos os nossos males” (LEMME, 2004b: 75).

Muito da influência e da “periculosidade” de Paschoal Lemme estava no

fato de suas ligações com o movimento comunista13

. Embora não se

vinculasse ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), seu círculo de amizade e de

trabalho detinha alguns membros do partido, que o iniciaram na literatura

marxista14

. Dentro do contexto populista do governo Pedro Ernesto, o PCB e

ANL atuavam abertamente na sociedade carioca, e alguns estavam inseridos

na burocracia local, ao mesmo tempo em que eram duramente reprimidos em

greves, por exemplo.

Paschoal Lemme pode promover suas experiências com o aval de

Anísio Teixeira (que detinha a mesma autonomia por parte de Pedro Ernesto),

mesmo que suas idéias extrapolassem os ideais liberais defendidos por seu

superior. Lemme, ao construir uma historização dos movimentos de educação

de adultos em sua monografia, já havia observado as transformações liberais,

que buscavam acomodar as demandas populares dentro do sistema

capitalista. O educador, no entanto, buscava a superação destes ideais dentro

da educação política. E foi no marxismo sua saída:

“Lá pelos idos de 1933 e 1934, eu já vinha fazendo clara opção pelas teses fundamentais da filosofia denominada marxista, especialmente nos aspectos queconsiderava como um verdadeiro humanismo: a liquidação da exploração do homem pelo homem e a previsão para a humanidade de um regime

13

Aliás, isto era notória a todos os indivíduos atuantes na área educacional que constituíssem perigo a uma tradição católica-privatista de ensino. Lemme, em homenagem na ocasião do falecimento de Anísio Teixeira, lembrou bem estas acusações. 14

Por sua vez, a ANL pareceu corroborar para o sucesso da experiência de Lemme. De comum acordo a respeito do combate do imperialismo e a busca do esclarecimento social da população, a prática de Lemme circulou em correspondências trocadas entre estes membros. Ainda não temos dados para validar esta hipótese, mas não deixa de ser interessante perceber que tanto os populistas e a ANL buscaram utilizar a experiência de Lemme para seus intentos. Sobre a atuação e formação da ANL, ver CARONE, Edgar. A República Nova (1930-1937). São Paulo: Difel, 1974. p.256-282.

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44

político, econômico e social que proporcionasse a todos maiores oportunidades de usufruírem todos os bens materiais e culturais criados pelos próprios homens. Comecei a compreender, porém, que isso somente se realizaria no final de um longo processo de lutas encarniçadas, conforme já vinha ocorrendo através dos séculos, desde a dissolução das sociedades primitivas, sem classes, e a instauração da sociedade de classes antagônica, pela denominação de umas sobre outras. Concordava assim com as teses marxistas de que o capitalismo, tal como outros regimes de classes, estava condenado a desaparecer em virtude de suas próprias contradições internas, e que o homem, afinal, conseguiria estabelecer um regime político, econômico e social, de verdadeira justiça social, no qual cada um contribuiria com seu esforço para o bem comum e receberia em retribuição, da sociedade, assim organizada em bases realmente democráticas, todos os elementos necessários para se desenvolver com a dignidade desejada de verdadeiros seres humanos”. (LEMME, 2004a: 110).

Nos anos 30, os escolanovistas e seus métodos foram – diretamente ou

não – cada vez mais participando do jogo político. Somava-se a isto a contínua

produção de conhecimentos e de trocas de novas experiências educacionais

no mundo, com uma crescente influência da sociologia e da psicologia,

ciências que apoiavam a reconstrução do saber pedagógico. A formação de

Lemme está na apreensão destas diferentes correntes de pensamento (a já

citada ideologia liberal), as quais pode conhecer o marxismo (GADOTTI, 1999:

148).

No entanto, é necessária uma ressalva: Lemme não se considerava um

pedagogo marxista. Embora o próprio tenha se dedicado a estudar as obras

marxistas que circulavam na época e chegou a participar de grupos de estudos

para compreender O Capital15

, refutava o caráter revolucionário da educação

(embora estas impressões tenham sido colhidas posteriormente a sua

experiência de prisão). Sempre reafirmou as qualidades da Escola Nova, que

embora fosse ligado a uma tradição liberal, foi determinante para o salto de

qualidade que a educação vivenciaria. Zaia Brandão compreendeu Lemme

15

Vale observar que Anísio Teixeira, taxado de comunista, afirmou nunca ter lido O Capital.

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como um indivíduo que buscava na Escola Nova elementos que uniam os seus

diferentes contribuintes, ao invés da dissensão (Brandão, p.).

O esquecimento ou o pouco destaque da experiência de Lemme frente

a outras de educação de adultos, por sua vez, é mais complexo. Inicialmente

pode ser entendido como fruto da repressão e da opção do Estado, que voltou

a incentivar o caráter emergencial das campanhas de alfabetização de adultos

ao longo das décadas de 1940 e 1950. Ainda assim, entendemos ser

insuficiente para compreender o problema.

Talvez a questão seja como a experiência de Lemme é enquadrada

dentro da história da educação de adultos. Dentro de um contexto de

engajamento político de parte das experiências atuais, ela passa pela questão

em ser ou não uma educação de cunho popular.

Com certeza, educação popular é um conceito que motivou (e ainda

motiva) discussões sobre sua precisão e muitas vezes, como se encontra,

dentro de um modelo dicotômico (maniqueísta) entre controle versus

libertação, educação formal versus informal, transformadora versus supletiva,

fica empobrecida e distorce sua validade conceitual para apreciar a experiência

em questão.

Compreendemos que Paschoal Lemme se tornou um dos autores que

se mantiveram obscuros ao longo da história pedagógica brasileira até os anos

1980 pela sua associação à Escola Nova. Pode-se depreender um motivo:

justamente estar ligado a uma corrente educacional vista como uma solução

burguesa-liberal em acomodar as demandas das classes populares.

Assim, educação popular significou a extensão da educação formal às

camadas populares pelo Estado, movimento compreendido dentro das

transformações capitalistas a partir da Revolução Industrial. Esta extensão,

obra da burguesia liberal, propôs planos de igualdade de condições aos seus

cidadãos, dentro de um sistema articulado de educação comum a todos, a qual

pode estar acompanhado da possibilidade de ascensão social pela educação.

Entretanto, sua prática afirmou um novo modelo de exclusão, de uma

educação de caráter “de antecipação à emergência da consciência” da

coletividade, própria das campanhas de alfabetização (BEISIGEL, 1984: 67).

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Esta educação pode ser compreendida numa perspectiva de “orientação de

integração”, que busca propor uma educação oficial sob controle das elites de

modo a reafirmar o modelo econômico/político vigente (GADOTTI, 2003: 36).

Um novo enfoque do conceito surgiu a partir da queda do Estado Novo:

a de que educação popular não deve estar vinculada ao Estado, pois este

justamente atende os interesses da burguesia e não dos populares. Este

conceito vai tomando força a partir dos anos 50, com o crescente colapso das

Campanhas de Alfabetização e cada vez mais se estabelecendo propriamente

no campo da educação informal, ou seja, em oposição ao Estado ou

instituições. Liberta das interferências das elites, ela pode finalmente cumprir a

tarefa de educar o povo para a transformação social. Cabia aos intelectuais do

povo, na visão de Vieira Pinto (educador da época), alcançar os populares.

Paiva observa:

“Se as massas eram as condutoras do „processo nacional‟‟, portadoras da verdade do país, elas careciam entretanto, de condições para „proferir o seu ideário‟. Para isto era necessário que o intelectual assumisse o ponto de vista da massa, que se ligasse existencialmente a ela, que pensasse „dentro dela‟. (...) A massa „não erra‟; sabe ao intelectual colher os seus „balbucios ideológicos‟ através do convívio e comunicação com o „povo simples‟ e principalmente da empatia com o seu „sentir‟” (PAIVA, 1984: 243).

Beisigel faz a crítica a esta visão:

“Sob o ponto de vista que defendiam, a educação popular realmente popular, a educação popular propriamente dita ou a educação válida, autêntica, se restringia àquela educação praticada pelos únicos intérpretes credenciados dos interesses populares: isto é, sem falsa modéstia, por eles mesmos [intelectuais tidos representantes populares]” (BEISIGEL, 1984: 72).

A única educação popular, desta forma, é a que está vinculada aos

populares, mas curiosamente versada por intelectuais que assumem a defesa

destes interesses. É a visão de esclarecer as massas, entendendo-as como

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inertes, vão extrair delas a possibilidade de transformação. Sob um discurso da

validade está no saber popular, forma-se uma espécie de autoritarismo, a qual

Paiva qualificou como “populismo pedagógico”, que centrada no “empírico

vivenciado a fundamento da verdade’ (PAIVA, 1984: 259), apenas reafirma

novas práticas de exclusão, pois não contribuem para a construção do

conhecimento e impede o acesso/troca de saberes necessários para melhoria

de suas condições”.

Os dois conceitos de educação popular passaram a ser fustigados a

partir da crise em que o Regime Militar passou a vivenciar e as classes

populares, ONGs, intelectualidade, Igreja entre outros agentes da sociedade

civil puderam recuperar suas possibilidades de ação. Isto levou a já citada

crítica do modelo dicotômico ou maniqueísta de educação, com diversos

educadores passam a repensar a questão da educação popular, como Paiva,

Beisigel e Carlos Brandão. Este último, por exemplo, observa que a questão

não é quem pode proporcionar a educação dita popular, mas como mediá-la

de maneira a possibilitar a autonomia do indivíduo ou controle do mesmo

(BRANDÃO, 1984: 172-173).

Deste modo, ao diluir o conceito de educação popular para adultos, é

possível compreendê-la como múltipla e dinâmica atualmente, pois comporta

diversas visões e características muitas contraditórias dentro de sua prática.

É uma compreensão justa para a experiência de Lemme. Sua

experiência frente à população carente do Distrito Federal pode ser apreendida

como uma intersecção entre um movimento de intervenção estatal tanto

quanto um movimento de autonomia popular. Desta forma, a educação para

adultos proposta por Lemme pode ser considerada como uma educação crítica

de cunho popular, mesmo que tenha sido fruto de uma experiência patrocinada

pelo Estado e tenha adquirido um caráter formal, visto sua continuidade.

Há aspectos comparativos interessantes sobre a experiência de Lemme

e as experiências da “época das luzes” da educação de jovens e adultos

(1958-1964), que podem ilustrar melhor a primeira. O aspecto que

enfocaremos está presa às condições de ocorrência ou contexto: estas

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práticas de educação de adultos se situaram entre as possibilidades de feito

dentro de governos populistas.

Melhor explicando, foram práticas educacionais estabelecidas dentro da

tensão do populismo, esta que atua em canalizar as demandas populares em

prol do governante, que ora as contempla, ora as reprime, com intento de

manter-se no poder, numa forma de consagrada pela ciência política de

paternalismo. Poder mantido muitas vezes sob pressão das elites, que

temerosas pela ascensão popular, buscam apoiar governos mais

conservadores que mantenham claramente o status quo. No caso brasileiro,

possibilitou-se a melhora de aspectos quantitativos e qualitativos em diversos

campos da sociedade no que se refere às classes populares: a educação

popular proposta dentro do modelo nacional-desenvolvimentista (GADOTTI,

2003: 37).

Embora a extensão educacional não intencionasse a discussão da

legitimidade social do modelo capitalista, foi permitindo a possibilidade de se

autonomizarem diante da elite e do poder público. O campo educacional de

adultos demarcou bem esta situação com a progressiva falência das

campanhas de alfabetização das décadas de 1940 e 1950 e a ascensão, sob

os auspícios de governos populistas municipais e estaduais, de propostas

educacionais de vanguarda. Neste sentido, a experiência de Lemme, no

governo Pedro Ernesto, só pôde ter ocorrido graças dos subsídios públicos (e

falta de controle) e começou a propor uma educação de “libertação”, onde se

questionava os moldes da sociedade vigente (GADOTTI, 2003: 37).

Em contraponto aos que não aceitam a vinculação do poder público às

práticas de educação popular, vale observar que o método de Paulo Freire

pôde construir uma alternativa educacional que permitia a crítica da sociedade

e sua possibilidade de transformação, mas que foi cooptado ou apropriado

pelo governo de João Goulart em fins 196316

(CUNHA; GÓES: 2002: 20).

Entre o dilema de servir ao populismo e suas práticas paternalistas ou a

possibilidade de aproveitar de dentro do sistema a oportunidade de contrapor,

16

Pela instituição do ambicioso Plano Nacional de Alfabetização. Conforme Cunha e Góes, foi um verdadeiro achado pois permitiria a formação rápida de eleitores para manter Jango no poder.

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optou os defensores da educação popular de adultos por se integrar a

primeira. Compreendemos que não que seja uma traição aos ideais populares,

mas de pragmatismo: uma tentativa de auxiliar a formação de cidadãos críticos

em um salto quantitativo que não seria possível sem alguma subvenção e

organização estatal.

No entanto, as experiências educacionais com adultos nos anos 1950 e

até 1964 contam com importantes diferenças sobre a experimentada por

Lemme: foram múltiplas, importaram movimentos que contaram com apoio

formal, mas também as de cunho informal. Foram diferentes agentes que

propuseram uma educação para adultos, como o MEB e os Centros Populares

de Cultura, que ora se aproximaram, ora se afastaram do poder público, mas

que colaboraram para consolidar novas propostas da educação de adultos.

Já experiência de Lemme, no entanto, encontrou-se isolada no seu

contexto. Sua iniciativa pioneira não obtinha interlocução com outras

experiências, por não havê-las. Mesmo assim, ela foi respaldada pelos

populares do Distrito Federal e só não obteve mais sucesso visto a conjuntura

política da época. Injustamente perseguida pelas idéias que vinculava, Lemme

viu suas práticas com adultos serem relegadas a um segundo plano - tanto

pelos governos autoritários ou não, quanto pelas novas práticas pedagógicas

que Freire e outros educadores engajados proporiam.

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Conclusão

A experiência de educação de adultos de Paschoal Lemme frente às

classes populares do Distrito Federal é a primeira experiência relevante de

cunho popular as quais se combinam os cuidados com aspectos qualitativos do

ensino, sem descuidar da sua relação com a realidade social dos estudantes.

Mais do que isto, como acentua Paiva, ela é a primeira iniciativa ligada poder

público e cremos que pode ser pensada como dentro do sistema formal de

ensino proposto por Anísio Teixeira.

As idéias de Lemme propostas em sua experiência revelaram um

indivíduo de profunda percepção e incorporação das novidades da época. Ao

constituir seu campo de pensamento, compôs suas idéias escolanovistas

através da necessidade da oferta e manutenção do ensino pelo poder público,

e da crítica inspirada em suas experiências de vida e da leitura marxista, como

a possibilidade de compreensão e transformação social pela educação

(conhecido como o caráter político).

A experiência de Lemme traz interpretações interessantes para o campo

da educação de adultos, a partir destes conceitos estabelecidos. A principal

certamente é a educação política, que fomenta um “movimento de

esclarecimento” da sociedade pela educação. Isto se refletiu na concepção de

uma educação continuada, no papel da educação pública e a estruturação de

um ensino que se vincule e atenda as expectativas dos alunos.

A respeito do esquecimento, ela vincula-se inicialmente ao

desmantelamento em 1936. Obviamente que a monografia de Lemme não

expõe este caso, mas sua posição contrária à educação dual de Capanema

levou a prisão. Certamente colaborou para isto sua reflexão e relação com os

comunistas, somada a histeria coletiva propagada pela intelectualidade católica

contra qualquer proposta inovadora de educação das massas.

É sabida a própria desilusão de Lemme a respeito do caráter

revolucionário da educação: esta visão fora abalada pela frustração de suas

atividades na década de 1930, pela temporada na prisão e pelas críticas que

se seguiram ao longo dos anos ao trabalho dos escolanovistas. Paschoal

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Lemme acompanhou boa parte dos escolanovistas ao conviver com o Estado

Novo. Entre a cooptação ou sobrevivência, Lemme optou pela última ao

prestar concurso e posteriormente, aprovado, ingressar na burocracia estatal

estadonovista. Ele se aposentadoria como funcionário de carreira do Ministério

da Educação e nunca mais se envolveu com educação de adultos, embora

tenha mantido sempre uma postura crítica a respeito das propostas

emergenciais e provisórias de combate ao analfabetismo.

O esquecimento da experiência de Lemme acreditamos ter continuado

após o Estado Novo. Um pouco desta forma de pensar está na própria forma

como a história da educação enfocou as origens da modernização do campo

de ensino no Brasil. Com a ascensão da Escola Nova, oposta às formas

tradicionais de então, significou a modernização de ensino que continuaria a

serviço das classes dominantes. Tais propostas, de cunho liberal, inspiradas

em Dewey (um norte-americano), foram mal vistas pelos defensores do

tradicional, porém posteriormente foram acusadas (ou implicitamente

entendidas) por novos grupos de educadores a partir dos anos 40 e 50 como

alienante, como uma educação proposta por uma burguesia que entendia a

educação popular como mera formação de trabalhadores qualificados, por

exemplo.

Trabalhos atuais de EJA, quando realizam uma historização deste

campo, via de regra não o consideram. Um dos motivos disto está no conceito

de educação popular que é enfocada - quando se diz ligada à perspectiva

popular, informal e sem interferência do poder público - não rememora a

experiência de Lemme, justamente por ela contrapor esta idéia.

Por fim, este trabalho fica marcado pelos limites: começando pelas

fontes bibliográficas, ficou de fora - por dificuldade de acesso - a contribuição

da tese de doutorado de Zaia Brandão a respeito do educador e sua

contribuição na divulgação da Escola Nova17

.

Sobre as fontes propriamente ditas, a pesquisa se limitou ao relato de

Lemme através de sua monografia: cabe aqui observar que o mesmo fora

17

A intelligentsia educacional; um percurso com Paschoal Lemme por entre as histórias e memórias da Escola Nova do Brasil. Rio de Janeiro: PUCRJ, 1992. Tese de doutorado.

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redigido durante o Estado Novo, logo após a saída de Lemme da prisão. Em

dificuldades financeiras e um pouco cético pela repressão que se abatera, o

autor buscava recuperar sua trajetória no campo profissional, e provavelmente

ilações mais “revolucionárias” poderiam levá-lo a novos problemas com o

aparato de repressão de Filinto Muller.

O caráter oficial do concurso impediu a manutenção de questionários de

impressão dos alunos a respeito da experiência (em 1934), que foram em

parte anexados a monografia, em parte mantidos com o autor, mas que se

encontram perdidos desde então. Seria precioso encontrá-los a fim de

compreender o que significou à experiência aos alunos daquela época.

Assim, há a necessidade de se recuperar as fontes primárias deste

tema, onde um ponto de partida pode ser o próprio arquivo pessoal de

Paschoal Lemme, disponível na Faculdade de Educação da UFRJ. Da mesma

forma, no CPDOC há o arquivo pessoal de Pedro Ernesto, uma fonte

interessante para apreender-se os projetos propostos na área de educação

naquela época.

Também é imperiosa a consulta de jornais, materiais didáticos e até a

documentação oficial a fim de se obter outras visões sobre a experiência de

Lemme. Seria interessante encontrar cópia do famigerado inquérito que o

incriminou e o levou a julgamento assim como os autos do processo melhor

poderiam destacar, por exemplo, o que era tão temido (na compreensão de

seus oponentes) em educar adultos e auxiliá-los a construir suas cidadanias.

Enfim, esperamos ter apresentado conseguido apresentar a experiência

de educação de adultos de Paschoal Lemme frente às classes populares do

Distrito Federal. Levando-se em conta seus limites e a e o caráter um pocuo

repetitivo de sua redação, esperamos ter contribuído para resgatar as idéias e

práticas de Lemme no campo da educação de adultos.

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