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Revista Tempos Acadêmicos - ISSN 2178-0811 1 A Erudição Islâmica na Bahia do Século XIX: O Islã como fundo ideológico do movimento malê. Ronaldo dos Santos Gomes 1 Resumo: O presente artigo discute o fenômeno da erudição religiosa na comunidade afro-muçulmana dos malês e o papel por ela desempenhado na resistência cultural e nas insurreições por estes encabeçados na Bahia da primeira metade do século XIX., em especial na grande rebelião de 1835. Em particular pretende apontar as relações existentes entre as escolas corânicas e mesquitas clandestinas na Bahia e dos mestres que nela ensinavam com a erudição islâmica militante presente na África Ocidental durante os conflitos político-religiosos dos séculos XVIII e XIX. Palavras-Chave: Malês, Erudição, Afro-Muçulmanos, Bahia. Abstract: The present article discuss the phenomenon of religious erudition on afro-muslim community of malês and his importance in the cultural resistance and in insurgences for they conducted in Bahia from the first decades of 19 th . In particularly aims appoint the relations existed between the quranic schools and clandestine mosques in Bahia and his masters of gave lessons with the islamical militant erudition in Western Africa during the conflicts political and religious in 18 th and 19 th . Keywords: Malês, Erudition, Afro Muslims, Bahia. 1 Licenciado em História pela Universidade de Santo Amaro UNISA. E-mail para contato: [email protected]

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  • Revista Tempos Acadmicos - ISSN 2178-0811

    1

    A Erudio Islmica na Bahia do Sculo XIX: O Isl como fundo ideolgico do movimento

    mal.

    Ronaldo dos Santos Gomes1

    Resumo:

    O presente artigo discute o fenmeno da erudio religiosa na comunidade afro-muulmana dos

    mals e o papel por ela desempenhado na resistncia cultural e nas insurreies por estes

    encabeados na Bahia da primeira metade do sculo XIX., em especial na grande rebelio de

    1835. Em particular pretende apontar as relaes existentes entre as escolas cornicas e

    mesquitas clandestinas na Bahia e dos mestres que nela ensinavam com a erudio islmica

    militante presente na frica Ocidental durante os conflitos poltico-religiosos dos sculos XVIII

    e XIX.

    Palavras-Chave: Mals, Erudio, Afro-Muulmanos, Bahia.

    Abstract:

    The present article discuss the phenomenon of religious erudition on afro-muslim community of

    mals and his importance in the cultural resistance and in insurgences for they conducted in

    Bahia from the first decades of 19th. In particularly aims appoint the relations existed between

    the quranic schools and clandestine mosques in Bahia and his masters of gave lessons with the

    islamical militant erudition in Western Africa during the conflicts political and religious in 18th

    and 19th.

    Keywords: Mals, Erudition, Afro Muslims, Bahia.

    1 Licenciado em Histria pela Universidade de Santo Amaro UNISA. E-mail para contato:

    [email protected]

  • Revista Tempos Acadmicos - ISSN 2178-0811

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    Introduo

    Na madrugada de 24 para 25 de Janeiro de 1835 centenas de africanos, escravos e

    libertos, se insurgiram nas ruas de Salvador. Constituindo-se, em sua grande maioria, de iorubs

    islamizados, os rebeldes mals estavam bem organizados e uniformizados conforme os

    guerreiros islmicos que lutavam nas guerras santas da frica, trazendo versculos do Quran

    pendurados em seus corpos. Este evento, mpar da Histria nacional, ficou conhecido como A

    Revolta dos Mals".

    A insurreio acabou dominada pelas foras oficiais aps algumas horas de combate. Os

    rebeldes sobreviventes foram sujeitos a penas que iam da deportao forada frica at a pena

    de morte, passando por acoites e gals.

    Este artigo pretende analisar a erudio religiosa na comunidade afro-muulmana dos

    Mals e o papel por ela desempenhado na resistncia cultural e na insurgncia por estes

    encabeada na Bahia da primeira metade do sculo XIX, em especial na grande rebelio de

    1835. Prope-se tambm a analisar as relaes entre as escolas e mesquitas clandestinas e dos

    mestres que nelas ensinavam com a erudio islmica presente no Bilad-as-Sudan (frica

    Ocidental, territrio onde hoje se localizam pases como Nigria e Senegal) poca dos jihads

    dos sculos XVIII e XIX e da ascenso do Califado de Sokoto.

    Antecedentes: o Reformismo no Islam Africano dos sculos XVIII e XIX

    O primeiro estudioso a analisar o tema das revoltas afro-muulmanas de modo mais

    aprofundado foi Raimundo Nina Rodrigues, mdico maranhense radicado na Bahia.

    Defendendo a tese de que as revoltas mals representariam uma continuidade das guerras

    religiosas ocorridas em solo africano, Rodrigues enftico ao afirmar que:

    ... mister remontar s transformaes tnicas e poltico-sociais que a esse

    tempo se operavam no interior da frica. Outra coisa no faziam os levantes

    seno reproduzir delas plido esboo, deste lado do hau, sob influxo dos

    sentimentos de que ainda possudas as levas do trfico, em que para aqui se

    transportavam verdadeiros fragmentos de naes negras. E estas bem sabiam

    manter-se fechadas no crculo inviolvel da prpria lngua, de todos

    desconhecidas. Essas revoltas de que estudo pouco aprofundado dos

    historiadores ptrios no tem feito mais do que exploses acidentais do

  • Revista Tempos Acadmicos - ISSN 2178-0811

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    desespero de escravizados contra a opresso cruel e tirnica de senhores

    desumanos, tm assim alta significao da mais acabada sucesso histrica.

    Elas se filiam todas s transformaes polticas operadas pelo islamismo no

    Hau e no Iorub, sob a direo dos fulos ou fuls.2

    As rebelies mals seriam, no entender de Rodrigues, mais do que uma previsvel

    resistncia ao cativeiro. Seriam a recriao, em terras americanas, dos conflitos poltico-

    religiosos da frica Ocidental.

    ... sob a ignorncia e brutalidade dos senhores brancos reataram-se os laos

    dos imigrados; sob o duro regime do cativeiro reconstruram, como puderam,

    as prticas, os usos e as crenas da ptria longnqua. O comrcio continuado

    com a Costa dfrica ia-os instruindo dos sucessos guerreiros e religiosos

    que por l se desenrolavam e assim se lhes ministravam pabulum e estmulo

    novo para a converso e para a luta. O islamismo organizou-se em seita

    poderosa ; vieram os mestres que pregavam a converso e ensinavam a ler no

    rabe os livros do Alcoro, que tambm de l vinham importados.3

    Religio do livro por excelncia, o Islam indissocivel da palavra escrita. O prprio

    Quran4, seu livro sagrado, considerado um milagre: um livro cuja beleza e eloqncia

    desafiaram os mais talentosos poetas rabes do sculo VII, que foi revelado por intermdio de

    um profeta iletrado, pois, de acordo a tradio islmica, Muhammad era analfabeto. O Livro

    Sagrado e as tradies profticas (ahadith) abundam em exortaes leitura e busca do

    conhecimento. De fato, o primeiro versculo revelado do Quran dizia enfaticamente: Iqra!5

    ou seja L! (96:01).

    Dada a nfase conferida pelo pensamento islmico a instruo, particularmente no que se

    refere as cincias diretamente relacionada ao Islam, como a teologia (kalam) e o direito (fiqh) ,

    o papel reservado aos doutos em tais matrias, quer dizer, dos detentores da erudio islmica,

    no poderia ser outro seno o protagonismo. A eles coube e cabe ainda hoje a liderana de

    fato das comunidades muulmanas.

    2RODRIGUES, Nina. Os Africanos no Brasil. 4. ed. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976, p

    38-39. 3 Ibidem, p 41.

    4 Alcoro ou Coro designariam mais as tradues do livro sagrado do Islam, onde Quran refere-se ao

    texto original que, segundo esta religio, de origem divina e precede a eternidade. tambm um nome

    prprio, que a exemplo de Muhammad, no deveria ser traduzido. 5 NASR, Helmi. Traduo do Sentido do Nobre Alcoro Para a Lngua Portuguesa. 1. ed. Medina:

    Ministrio dos Assuntos Islmicos, dos Waqfs e do Apelo e Orientao Religiosa do Reino da Arbia

    Saudita - King Fahd Quran Complex, 2008, p. 1044

  • Revista Tempos Acadmicos - ISSN 2178-0811

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    O conceito de tajdid (renovao ou reforma), est diretamente relacionado a erudio

    islmica. Segundo um hadith ou dito do Profeta, a cada sculo, Allah enviaria um homem, para

    revivificar o Islam, conforme os moslimes fossem degenerando em sua crena e prtica. Esses

    renovadores (mujadidun) foram, quase sem exceo, sbios das cincias jurdico-teolgicas,

    como Al-Ghazali no sculo XI e Usman dan Fodio no XIX. O tajdid foi o motor inicial dos

    movimentos militantes da frica islmica dos sculos XVIII e XIX e, por extenso, podemos

    cogitar sua influncia entre os mals na Bahia da dcada de 1830, muitos dos quais foram

    escravizados no percurso do jihad de Usman Dan Fodio.

    O shehu Usman dan Fodio

    O crescimento da militncia islmica nos sculos XVIII e XIX foi o ponto de partida de uma

    ruptura radical do relacionamento estabelecido inicialmente entre os clrigos e os intelectuais

    muulmanos, colocados margem da disputa do poder poltico por governantes apenas

    nominalmente muulmanos.

    Nas terras haus, o shehu6 Usman dan Fodio criticava os abusos dos governantes, e seu

    filho e sucessor, Muhammad Bello, evocava a ira de Allah sobre os emires que tiravam seu

    sustento s custas da misria do povo. 7

    O Shehu justificava o jihad devido acomodao dos moslimes com as religies tradicionais

    entre os haus, tais como o culto bori ou as consultas dos chefes tribais, nominalmente

    moslimes, aos feiticeiros tradicionais.

    Nos sculos XVII e XVIII, o Islam expande-se dos centros urbanos para o interior. Eruditos

    mais zelosos de seus princpios retiraram-se dos centros de poder poltico, como a capital

    Katsina, e estabeleceram comunidades religiosas autnomas.

    Os eruditos islmicos alienados do poder preferiam viver na periferia de

    Katsina, em vilas dentro de um raio de quinze quilmetros da capital. Nessas

    localidades, desfrutavam de grande autonomia e suas mesquitas atraam mais

    devotos que as da cidade grande. Foi dessas vilas que saram os partidrios

    do jihad de Usman dan Fodio. Os governantes ignoravam-nos devido ao seu

    6 Corruptela do rabe sheykh . Usman Dan Fodio era respeitosamente chamado de o Shehu

    7 CAIRUS, Jos Antnio Tefilo. Jihad, Cativeiro e Redeno: escravido, resistncia e

    irmandade, Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS, 2002, p. 107

  • Revista Tempos Acadmicos - ISSN 2178-0811

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    pequeno nmero e de sua localizao perifrica distante dos principais

    centros populacionais e do poder poltico. 8

    Pregadores muulmanos itinerantes percorriam as comunidades rurais onde o prprio

    Usman dan Fodio, se dirigia aos camponeses e arbitrava seus agravos.9

    Segundo B.G. Martin10

    , Usman dan Fodio foi o personagem perfeito para promover a

    revoluo islmica na frica Ocidental.

    Usman dan Fodio cresceu num ambiente impregnado de erudio e intelectualidade.

    Instrudo por meio do Quran, da gramtica rabe, da jurisprudncia maliki e das tradies

    profticas por seus tios, ulama islmicos. Posteriormente Usman iria aperfeioar seus

    conhecimentos com mestres tuaregues, entre esses, Jibril bin Umar Al-Aqdasi, que havia

    peregrinado duas vezes a Makka e vivera longo tempo no Egito. E foi com Jibril ele iniciou-se

    em diversas confrarias sufistas, como a Qadiriyya, a Khalawatiyya e a Shadhiliyya (ou

    Shazuliyya).

    As experincias misticas de Usman dan Fodio tiveram profundo impacto em sua trajetria

    poltica.

    Segundo M. Shareef 11

    , no final do sculo XVIII, por volta de 1794, Dan Fodio teve uma viso

    desperta do fundador da tariqa Qadiriyya, o santo Abdul-Qadir Gilani, que o chamou de

    Sayful-Haqq (Espada da Verdade), que deveria vir ser empunhada contra os inimigos de

    Islam. Em outro encontro mstico, uma dcada mais tarde, Abdul-Qadir Gilani instruiu Usman

    dan Fodio a peregrinar a Degel, seu ltimo ato antes de se lanar no jihad que daria origem ao

    Califado de Sokoto.

    Usman dan Fodio inspirou e apoiou muitos outros eruditos islmicos atravs das terras dos

    fulanis, hauas e iorubs, como o Mallam Alimi e seu filho Abdul Alimi, resultando na

    proliferao de estados Islmicos autnomos ou vassalos de Sokoto, como o emirado Iorub de

    Ilorin. Quando, findado seu jihad e estabelecido o Califado de Sokoto, que inclua a maior parte

    do que hoje a Nigria e vastos territrios dos estados vizinhos, o Shehu abdicou do governo e

    da vida pblica, se retirando de volta a seus estudantes e ao ensino sufi e cornico. O califado

    8 CAIRUS, Jos Antnio Tefilo. Jihad, Cativeiro e Redeno: escravido, resistncia e

    irmandade, Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS, 2002, p. 113.

    9 Idem, p. 114

    10 Ibidem, p. 130

    11 SHAREEF, Muhammad. The African Muslim Slave Revolts of Bahia, Brazil. 1. ed. Pittsburg:

    Sankore Institute, 1998, p.17

  • Revista Tempos Acadmicos - ISSN 2178-0811

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    passou ento pra seu filho e sucessor Muhammad Bello, que, como o pai, tambm produziu uma

    vasta obra jurdica, teolgica e histrica.

    Os movimentos de tajdid e as revoltas afro-muulmanas na Bahia

    Contrariando as anlises materialistas, muito difcil negar a estreita relao existente

    entre erudio e mstica islmica e a militncia e reformismo jihadista na frica Ocidental na

    virada do sculo XVIII para o XIX. Estas mesmas relaes podem ser traadas entre o

    florescimento da erudio religiosa e do proselitismo Islmico na Bahia da dcada de 1830 e a

    Revolta dos Mals.

    Os afro-muulmanos, na maioria adultos e saudveis conforme priorizava o trfico

    transatlntico, no poderiam simplesmente ter se criolizado, nem se limitado ao mero cultivo

    nostlgico de algumas sobrevivncias culturais. Muito pelo contrrio, dedicavam intensamente

    suas energias para restabelecer, em um novo e hostil continente, suas crenas, valores, enfim,

    seu modo de vida (Din). E isso se fez sob a direo dos eruditos islmicos escravizados no

    percurso dos jihads.

    Conforme observou Jos Cairus:

    Um aspecto decerto perturbador para alguns poder ser percebido na

    comunidade escrava muulmana de Salvador, quando em 1835 os clrigos

    eruditos assumem a direo dos negcios dessa comunidade. Dentro de um

    padro historicamente coerente, o Islam tornar-se- militante, organizado

    dentro dos padres de solidariedade rebelde.12

    O Islam na Bahia da dcada de 1830, sob a direo dos sbios religiosos, retomaria o fervor

    militante dos tempos dos jihads de Sokoto e Ilorin e se empenharia no proselitismo religioso e

    rebelde, insurgindo-se agora no contra aquele fetichismo ancestral ou aqueles tiranos apenas

    nominalmente muulmanos da frica, mas contra uma sociedade baiana crist e escravista.

    A Comunidade Mal

    12

    CAIRUS, Jos Antnio Tefilo. Jihad, Cativeiro e Redeno: escravido, resistncia e

    irmandade, Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS, 2002, p. 137

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    Nas palavras de Rolf Reichert:

    Os muulmanos usaram e usam, para designar a si prprios, um a nica

    palavra, em qualquer parte do mundo e em todos os tempos: a palavra rabe

    muslim (muslimun no plural, nos casos oblquos muslimin). Todas as

    denominaes, ou sejam as que no derivam da palavra muslim, foram

    inventadas pelos adeptos de outras religies13

    No Brasil os afro-muulmanos eram chamados de mals, no por si prprios,

    obviamente, mas por aqueles que no comungavam de sua f. Nina Rodrigues (1976), que

    conheceu e entrevistou os ltimos ancies mals da Bahia, observou que essa expresso era tida

    como abjeta pelos afro-muulmanos, principalmente os de origem hau.

    A palavra mal vem do iorub imale que tem o significado de muulmano,

    moslim. Esse vocbulo iorub, derivado da palavra rabe muallim, que designa os letrados e

    clrigos islmicos, deu tambm origem palavra hau mallam (na Bahia malam), de mesmo

    significado.

    A etimologia do termo aluf j mais obscura. No parecer de Reichert:

    Trata-se, evidentemente de uma classe anloga aos malemi dos haus, o que

    nos afirmam tambm os africanistas franceses. Monteil d ao aluf o

    significado de marabout, Marty traduz o termo por professor de escola, e

    Ricard por advinho muulmano. Todas estas funes so caractersticas

    tambm do muallim. 14

    De fato, todos essas atribuies (e algumas mais) seriam desempenhadas pelos eruditos

    islmicos em terras baianas.

    A educao era muito estimada na comunidade mal e era grande o prestigio dos que

    possuam maior grau de erudio nos assuntos islmicos. Aos 10 anos os meninos eram

    circuncidados e iniciavam-se nos estudos do Quran. As escolas cornicas eram localizadas nas

    residncias de alufs e malams, locais que tambm serviam de mesquitas para as oraes,

    13

    REICHERT, Rolf. Denominaes para os muulmanos no Sudo Ocidental e no Brasil. Revista Afro-

    sia, Salvador, v.1, n. 10/11, p.109 14

    Idem, p.116

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    pregaes de sexta-feira e tekkes para prticas sufis. As aulas dos mestres eruditos, que

    ensinavam a escrever em caracteres arbicos eram muito concorridas, mesmo com todas as

    condies adversas apresentadas pelo cativeiro. Reis comenta que:

    realmente impressionante que a experincia da leitura e da escritura

    disciplinadas pudessem interessar to vivamente a libertos e sobretudo a

    escravos que, embora cansados do trabalho, sempre arranjavam tempo para

    se dedicar a elas. 15

    .

    Os nefitos recebiam instruo dos mals, tanto escravos quanto libertos, que sabiam ler

    e escrever. Aqueles trabalhando no ganho se reuniam nas ruas, esquinas ou no porto, para

    oferecer seus servios e, na espera por fregueses, se ocupavam de religio e rebelio.

    A comunidade era dirigida pelos mestres (malams, alufs) instrudos nas cincias

    islmicas e as residncias que serviam de escolas/mesquitas eram o centro ao redor do qual a

    sociedade mal gravitava.

    Muhammad Shareef16

    demonstra em seu trabalho que o Islam permitiu, na Africa Ocidental,

    a unio de grupos tnicos variados e por vezes antagonistas sob uma bandeira nica. O autor

    advoga que o mesmo fenmeno teve lugar na Bahia do sculo XIX. De fato, a despeito da

    maioria dos afro-muulmanos ser de origem nag ou iorub, os mestres possuam uma origem

    tnica mais variada e um grupo de seguidores que, por vezes, no correspondia aos padres de

    afiliao baseadas em linhas tnicas. A legitimidade advinda da erudio transpunha as

    legitimidades tnicas. Apesar de alguns grupos tnicos como os haus terem a fama de mais

    instrudos no Islam, era o nvel de erudio e o carisma mstico de cada mestre, independente de

    sua origem tnica, que determinaria seu status e o tamanho de seu rebanho.

    ... da mesma forma que os hausss, os nags contavam com velhos

    muulmanos em suas fileiras e o prestgio, a influncia e ascendncia que

    tinham no podem ser subestimados17

    .

    15

    REIS, Joo Jos. Rebelio Escrava no Brasil: a histria do levante dos mals em 1835. 2. ed. So

    Paulo: Cia das Letras, 2003, p.225 16

    SHAREEF, Muhammad. The African Muslim Slave Revolts of Bahia, Brazil. 1. ed. Pittsburg:

    Sankore Institute, 1998, p 16-21 17

    REIS, Joo Jos. Rebelio Escrava no Brasil: a histria do levante dos mals em 1835. 2. ed. So

    Paulo: Cia das Letras, 2003, p. 180

  • Revista Tempos Acadmicos - ISSN 2178-0811

    9

    Como indicam os estudos de Reis 18

    e Cairus19

    por volta de um tero dos rebelados em

    1835 era composto de libertos e alguns, na avaliao de Nina Rodrigues seriam ricos. O aluf

    Dandar era comerciante de fumo. Cabe aqui salientar, que muitos dos libertos africanos, mals

    ou no, eram eles prprios donos de escravos. Esse dado importante para desmistificar a

    Revolta dos Mals como uma revolta escrava com objetivos abolicionistas. Nina Rodrigues20

    mencionou o projeto mal de, aps tomar a terra e exterminar os brancos, escravizar a

    crioulos e mulatos. Os mals eram, principalmente, escravos de ganho. No se encaixando

    naquilo que o imaginrio contemporneo tem por escravido: as cadeias nos ps, a senzala, as

    plantaes de cana-de-acar e caf. Os escravos de ganho eram categoria de cativos que vivia

    livre trabalhando durante o dia prestando servios variados como carpinteiro, alfaiate ou

    carregador, retornado a casa do senhor apenas para entregar o ganho do dia e dormir. E havia

    mesmo aqueles que viviam em residncias alugadas, totalmente separados dos senhores aos

    quais entregavam uma quantia semanal especificada. Normalmente havia um excedente que era

    endereado a um caixa com fins de promover a prpria alforria e a de seus correligionrios.

    Tambm ajudava a manter os mestres mals e, claro, financiar a rebelio.

    O Islam negro na Bahia

    Na dcada de 1830, estava em curso na Bahia um intenso movimento de proselitismo

    islmico (dawa). Para Joo Jos Reis o ambiente urbano teria facilitado sobremaneira o

    crescimento do Islam na Bahia, onde a relativa independncia dos escravos de Salvador e a

    presena de numerosos libertos somados a interao entre os dois grupos contriburam para

    construir uma dinmica rede de convvio, proselitismo, recrutamento e mobilizao.

    Havia, claro, nveis variados de compromisso e profundidade entre os que adentravam a

    comunidade mal.

    A penetrao muulmana na comunidade escrava se realizava em nveis

    distintos de profundidade religiosa e de compromisso, porm. Como em toda

    religio, havia um centro mais doutrinrio e uma periferia menos douta e

    relaxada. Num nvel mais superficial encontramos a adoo de smbolos

    18

    REIS, Joo Jos. Rebelio Escrava no Brasil: a histria do levante dos mals em 1835. 2. ed. So

    Paulo: Cia das Letras, 2003, p. 409 19

    CAIRUS, Jos Antnio Tefilo. Jihad, Cativeiro e Redeno: escravido, resistncia e

    irmandade, Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS, 2002, p.160 20

    RODRIGUES, Nina. Os Africanos no Brasil. 4. ed. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976

  • Revista Tempos Acadmicos - ISSN 2178-0811

    10

    exteriores da cultura muulmana. O mais notvel e difundido desses smbolos

    eram os amuletos mals. 21

    A despeito da oposio de grupos fundamentalistas modernos, a confeco e uso de

    amuletos cornicos, chamados tawiz, conhecida no Islam desde os primeiros sculos da

    Hgira. O prprio malam Alimi confeccionava tawiz para os guerreiros de Ilorin. Essa prtica

    no estava limitada ao continente africano, sendo popular da Turquia Indonsia. Segundo Reis

    (2003) esses amuletos podiam ter funes extremamente especializadas, da proteo contra

    intrigas dos inimigos, de demnios e at contra flechas e balas. Constituam tambm, na Bahia,

    um excelente instrumento de propaganda islmica, j que eram muito requisitados pelos no-

    muulmanos que, ao atestarem sua eficcia, podiam muito bem desejar um maior compromisso

    com a f mal. Os amuletos constituem a principal fonte textual deixada pelos mals e foram

    objeto de anlise de Nina Rodrigues no incio do sculo XX, que os mandou traduzir por um

    padre maronita rabe e de Rolf Reichert22

    que publicou uma seleo deles com traduo e

    comentrios.

    As cinco oraes dirias (as-Salah) so principal manifestao externa do Islam. Os

    mals, zelosos moslimes que eram, no se furtavam a sua prtica.

    s quatro horas da manh, depois de estar vestido (camisa fechada, calas,

    gorro com borla cada, tudo de algodo bem alvo), munido de seu teceb, um

    rosrio de cinqenta centmetros de comprimento, composto de noventa e

    nove contas grossas de madeira, e terminado por uma bola, o fiel abria o dia

    que comeava por oraes pronunciadas sobre uma pele de carneiro. Era o

    que se chamava de fazer sala. (...) Cada prece era precedida de uma

    abluo em que o negro deixava sua vestimenta comum e vestia uma longa

    camisa branca de mangas compridas, chamadas abad. 23

    A vestimenta era outro distintivo islmico na Bahia, juntamente com os amuletos. A

    idia islmica de pureza ritual (tahara), sem a qual no se pode orar ou mesmo tocar o Quran,

    marcava o uso das vestes brancas envergadas pelos mals. Chamadas abad, do iorub agbda,

    21

    REIS, Joo Jos. Rebelio Escrava no Brasil: a histria do levante dos mals em 1835. 2. ed. So

    Paulo: Cia das Letras, 2003, p.180 22

    REICHERT, Rolf .Os documentos rabes do Arquivo do Estado da Bahia. Revista Afro-sia,

    Salvador, v.1, n. 2/3, 1966. 4-5 e 6-7.

    23

    BASTIDE, Roger. As religies africanas no Brasil. So Paulo: Pioneira/UNESP, 1971, p 212

  • Revista Tempos Acadmicos - ISSN 2178-0811

    11

    tratavam-se de uma espcie de camisolo comprido, habitualmente feito de pano-da-costa.

    Diferentemente de seu uso cotidiano na frica, na Bahia, devido perseguio das autoridades,

    os abads foram restritos a uma funo mais ritual. E seria com eles uniformizados que os

    insurgentes de 1835 sairiam s ruas de Salvador para guerrear. Os barretes e turbantes

    constituam outra parte da indumentria mal. Como observou Reis:

    Outro ponto interessante saber o que os mals usavam sobre a cabea. Esses

    objetos foram descritos ora como barretes, ora como carapuas. Tinham

    alguma funo ritual, porque aos no-iniciados no se permitia que os

    usassem. 24

    O fato do uso de barretes e outras variedades de indumentrias para cabea estar

    condicionado a uma iniciao bastante significativa, principalmente se levarmos em

    considerao outro smbolo islmico na Bahia, o uso do anel de mal. Pode ser o indicativo

    de que, como sugeriu Cairus25

    , os mals estivessem organizados em confrarias sufis. Reis

    aponta para o depoimento do nag liberto Joo de que os anis eram o distintivo de que usam

    os daquela sociedade (mal) para se conhecerem26. Parece possvel que essa sociedade da

    qual fala o nag se referisse a uma confraria ou irmandade especfica, de natureza sufista.

    Bastide cita a descrio de Manoel Querino de um rito mal, afirmando ser a orao de

    sexta-feira (salatul-jumua), Entretanto essa descrio no possui qualquer similaridade com o

    rito islmico semanal, e mais provvel que se trate de uma cerimnia sufi realizada pelos afro-

    muulmanos na Bahia:

    Pela manh, era servida uma mesa, em que sobressaa a toalha muito alva, de

    algodo, ocupando a cabeceira do chefe Lemano, como, lugar de honra. Aps

    ligeira refeio, cada um, munido de seu rosrio, ouvia do chefe as palavras:

    L-i-l-i-l-lau, mamad ara-lu-lai. Sa-la-lai-a-lei-i-salama (Deus nico e

    verdadeiro, o seu profeta quem nos guia). Acheado Ana l-i-l, i-la-lau (vs

    sois o nico Deus verdadeiro). Achedo-ana-manmad ara-su-luai (e Teu

    profeta o nosso mestre). Ai--la-li-sal (eis as minhas preces). Ai--la-li-

    fal (eis o meu corao). Cadecama-i-sal (no monte Sinai). Durante a

    celebrao do ato religioso, as mulheres, de espao a espao, repetiam a

    frase: Bi-similai. Em dado momento o chefe levantava-se, dava as costas ao

    24

    REIS, Joo Jos. Rebelio Escrava no Brasil: a histria do levante dos mals em 1835. 2. ed. So

    Paulo: Cia das Letras, 2003, p. 211 25

    CAIRUS, Jos Antnio Tefilo. Jihad, Cativeiro e Redeno: escravido, resistncia e

    irmandade, Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS, 2002, p.79 26

    REIS, Joo Jos. Rebelio Escrava no Brasil: a histria do levante dos mals em 1835. 2. ed. So

    Paulo: Cia das Letras, 2003, p.212

  • Revista Tempos Acadmicos - ISSN 2178-0811

    12

    auditrio, soerguia as mos, descansava-as sobre o peito, ajoelhava-se,

    baixava, em sinal de reverncia, e proferia as mesmas palavras do incio: L-

    i-l-i-l-lau, mamad ara-lu-lai. Sa-la-lai-a-lei-i-salama. Isto feito, o

    chefe apertava as mos de seus imediatos, e estes, das demais pessoas

    presentes, e estava terminada a missa. Em plena cerimnia, a dona da casa se

    dirigia s pessoas presentes, cruzando os braos, e, na atitude de quem dobra

    os joelhos, proferia a seguinte saudao: Barica da suba mtumb, que quer

    dizer: Meus respeitos. 27

    Obviamente, devido a condio escrava em que se encontrava a maioria dos mals seria

    impossvel cumprir com o Hajj (peregrinao) Makka. Embora, segundo Reis (2003), o velho

    Mohammed Abdullah, que na dcada de 1850 tentou converter o cnsul francs, Francis de

    Castelnau por meio do debate teolgico, declarasse t-la cumprido antes de seu cativeiro.

    O jejum do Ramadan, porm, era observado com todo o rigor e dedicao, a despeito de

    todas as dificuldades impostas pelo cativeiro. Foi dentre ltimos dias desse ms, considerados

    os mais sagrados (Laitalul-Qadr), que os mestres mals escolheram para a data da insurreio.

    No nos empenhamos aqui num estudo mais detalhado dos ritos e prticas mals, pois

    fugiria do objetivo do presente trabalho. Esforamo-nos em demonstrar que, na dcada de 1830,

    o Islam e a cultura muulmana na Bahia estavam em franca expanso, sob a direo de

    lideranas e ideologias poltico-religiosas estreitamente ligadas aos puritanos movimentos

    reformistas da frica Ocidental. Os mals recriariam, em terras brasileiras, instituies do Islam

    africano, como as escolas cornicas e as irmandades msticas. Tratava-se de uma comunidade

    composta majoritariamente de homens adultos, educados na frica em escolas cornicas sob a

    tutela de eruditos islmicos reformistas, muitos dos quais, eles prprios mestres cornicos.

    Na Bahia, sob a direo dos detentores da erudio islmica, malams e alufs, os mals

    tentariam repetir os feitos do shehu Usman dan Fodio em Sokoto e do mallam Alimi e Abdu

    Salami em Ilorin. Em 1835 os mals lanariam seu jihad.

    Erudio islmica e Insurgncia na Bahia do Sculo XIX

    Os eruditos mals construram um ampla rede contatos que se espalhavam por toda Salvador e

    possua ramificaes pelo Recncavo baiano. Escolas e mesquitas clandestinas foram o tero

    27

    BASTIDE, Roger. As religies africanas no Brasil. So Paulo: Pioneira/UNESP, 1971, p. 212-213

  • Revista Tempos Acadmicos - ISSN 2178-0811

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    onde a insurreio era gestada e os principais veculos de propaganda e recrutamento religioso e

    rebelde.

    Como mencionado as casas de africanos livres serviam como centros de culto, estudo e rebelio.

    As casas de africanos libertos abrigavam encontros de mals para rezar,

    refeies rituais, celebraes do calendrio islmico e naturalmente

    conspiraes 28

    Alm de residncias particulares, tambm serviam como mesquitas e madrassas

    estabelecimentos comerciais pertencentes a mals livres mais prsperos e mesmo as residncias

    e quintais de alguns senhores.

    Em 1835 os principais ncleos mals seriam:

    I) A casa do aluf Manoel Calafate.

    II) A venda do Mestre Dandar, localizada no Mercado de Santa Brbara. Segundo

    confisso do prprio malam, ele reunia ali os jovens para ensinar-lhes a palavra de Deus e

    testemunhas garantiram que ele liderava oraes ao menos duas vezes ao dia no local.

    III) A casa do nag liberto Belchior, onde os mals se reuniam sob a direo do aluf

    Sanin. Onde Reis aponta:

    Informaes sobre o grupo dirigido por Sanin ilustram que os mals se

    encontravam em diversos nveis de formao. Alguns eram provavelmente

    recm-conversos. Os barretes guardados na casa de Belchior, por exemplo,

    no podiam ser usados pelos iniciantes nesses encontros.29

    IV) A mesquita construda por James e Diogo, escravos pertencentes ao ingls Abraham

    Crabtree. Na direo desta estavam os alufs Mama, Buremo e Sule, cujos nomes cristos eram

    Dassal, Gustard e Nicob.

    28

    REIS, Joo Jos. Rebelio Escrava no Brasil: a histria do levante dos mals em 1835. 2. ed. So

    Paulo: Cia das Letras, 2003, p. 216 29

    Idem, p. 217

  • Revista Tempos Acadmicos - ISSN 2178-0811

    14

    Essa mesquita mal teve papel importante no movimento de dawa mal, sendo que

    Cairus30

    e Reis apontam sua destruio como uma das motivaes para a revolta, portanto vale a

    pena nos determos um pouco mais no assunto.

    Contando com a autorizao do liberal mister Crabtree, os escravos mals Diogo e

    James construram uma espcie de palhoa no quintal de seu senhor, no distrito de Vitria, que

    tinha a funo exclusiva de mesquita e escola cornica e, at prova contrria, foi a primeira

    construo desse gnero a ser erguida na histria do Brasil.

    Este se tornaria talvez o centro muulmano mais atuante da Bahia em 1835,

    ou pelo menos aquele que reunia mais gente e para onde convergiam

    principalmente escravos dos comerciantes estrangeiros moradores do

    bairro.31

    O distrito da Vitria era cercado por uma densa mata, o que possibilitava aos escravos

    se reunirem com muito mais liberdade que no centro de Salvador. Os mals ali se congregavam

    sob a autoridade dos mestres acima citados, todos os trs escravos de Diogo Stuart, que residia

    na Barra, parte da freguesia da Vitria. O aluf Sule ocupava uma posio hierarquicamente

    superior na mesquita da Vitria, tendo ascendncia sobre Mama e Buremo.

    A mesquita da Vitria foi o local de celebrao do Lailatul Miraj, a viagem noturna do

    profeta Muhammad aos cus, de onde teria recebido diretamente de Deus a ordem para as cinco

    oraes. Ocorrida num sbado, 29 de novembro de 1834, correspondente ao 26 de Rajab do

    calendrio muulmano, a comemorao reuniu grande nmero de fiis. O evento porm foi

    interrompido pela chegada do inspetor Andr Marques, conhecido inimigo dos africanos, que

    forou os mals a se dispersarem sob a alegao de que estavam quebrando a paz na

    vizinhana. O inspetor informaria o fato ao juiz da freguesia da Vitria que, por sua vez,

    dirigiria suas queixar ao ingls Abraham Crabtree. Para evitar problemas com as autoridades o

    ingls ordenou aos dois escravos mals, responsveis pela construo da mesquita, que eles

    prprios a demolissem. Uma humilhao que no deixaria de ter suas conseqncias.

    Segundo Reis32

    cada aluf, a maneira africana, recrutava e reunia em torno de si sua

    prpria turma de pupilos, os quais possivelmente proviam parte da subsistncia de seus mestres.

    30

    CAIRUS, Jos Antnio Tefilo. Jihad, Cativeiro e Redeno: escravido, resistncia e

    irmandade, Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS, 2002, p. 191-192 31

    REIS, Joo Jos. Rebelio Escrava no Brasil: a histria do levante dos mals em 1835. 2. ed. So

    Paulo: Cia das Letras, 2003, p. 217-218 32

    REIS, Joo Jos. Rebelio Escrava no Brasil: a histria do levante dos mals em 1835. 2. ed.

    So Paulo: Cia das Letras, 2003, p. 216-218

  • Revista Tempos Acadmicos - ISSN 2178-0811

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    Isso dava a estes um tempo maior para o estudo, a meditao, a escrita, a pregao e para

    conspirar. Existem indcios tambm que, ao menos em certas ocasies, como a celebrao do

    Lailatul Miraj, se reunissem mals pertencentes a diversos grupos. Por fim bem possvel que

    nem todos os agrupamentos e lideranas mals e tenham sido identificados pelas autoridades da

    poca e pelos pesquisadores que vieram depois.

    As faces da erudio islmica na Bahia

    Em seu trabalho Jos Cairus escreve que:

    Por razes bvias no possvel fazer uma anlise hagiogrfica dos

    principais lderes muulmanos envolvidos na rebelio de 1835. Nesse lado do

    Atlntico eles eram escravos, e, portanto, as informaes sobre origens,

    cultura e religio apenas interessavam na medida certa de control-los e puni-

    los. Infelizmente, suas trajetrias individuais so desconhecidas, mas dentro

    dos limites das fontes iremos propor uma nova abordagem da liderana.

    Nos processos, inicialmente, inmeros africanos foram apontados como

    cabeas, apesar de nem todos efetivamente terem tido qualquer papel de

    liderana. Nina Rodrigues foi o pioneiro na identificao dos lderes de

    acordo com os processos. Reis posteriormente estabeleceu uma hierarquia de

    sete mestres e outros tantos estudantes no muito diferente de.33

    De fato, Reis identificou os indivduos que seriam as sete principais lideranas mals

    em 1835: Ahuna, Pacfico Licutan, Lus Sanin, Manoel Calafate, Dandar, Sule e Dassal.

    Comeamos por Ahuna. Escravo ioruba, provavelmente natural de Oy, pois carregava

    em casa um dos lados do rosto quatro cocatrizes, marcas que seriam similares ao pel, comuns a

    subgrupos da regio.

    Ahuna era um nome comum entre moslimes hauas e iorubs, e seria uma corruptela

    hau-ful do profeta cornico Harun (o Aaro bblico). Seu nome cristo seria Pedro de Luna.

    O mestre mal era escravo de um homem que morava nas imediaes do Pelourinho,

    onde seu senhor comerciava bebidas alcolicas, to abominadas pelos sequazes do Islam. Seu

    proprietrio o mandava freqentemente ao Recncavo, mais precisamente a Santo Amaro, onde

    33

    CAIRUS, Jos Antnio Tefilo. Jihad, Cativeiro e Redeno: escravido, resistncia e

    irmandade, Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS, 2002, p. 182

  • Revista Tempos Acadmicos - ISSN 2178-0811

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    este possua um engenho. Alguns meses antes da rebelio foi mandado para l algemado, sob

    acusao de algum delito domstico e a notcia chegou aos mals que formaram um cortejo para

    acompanh-lo at porto, onde seria colocado num barco para o Recncavo.

    As testemunhas de acusao se referiam a Ahuna como o Maioral e, de fato, foi o

    nico dos lderes mals a ser assim chamado. Para Reis Ahuna foi o homem-chave do levante

    de 1835. Citando o depoimento do nag Belchior:

    Ele ouviu falar em fazer guerra aos Brancos e somente no Sbado (...) pela

    manh, quando indo comprar cal, que o seu ofcio de Pedreiro, lhe disseram

    alguns negros que Ahuna j tinha chegado de Santo Amaro. Esse j

    denota que s faltava ele, Ahuna, para a rebelio ter incio.34

    No processo nome de Ahuna aparece no rol dos culpados, enquadrado como cabea da

    revolta, porm, foi condenado a revelia. Seu destino final desconhecido.

    Pacfico Licutan era, como Ahuna, de etnia iorub, porm pertencente a um subgrupo

    diferente. Seu rosto era escarificado com marcas perpendiculares e outras transversais, parecidas

    ao gombo, que na poca era popular entre os moslimes iorubs. Tratava-se de um homem idoso

    descrito como magro, com barba rala e cabea e orelhas pequenas. Trabalhava no cais do

    Dourado como enrolador de fumo. No interrogatrio alegou sofrer mau cativeiro nas mos de

    seu senhor, o mdico Antonio Pinto de Marques Varella, que resistia a todas as ofertas dos

    discpulos do velho aluf de forr-lo. Estes teriam levantado grande soma de dinheiro, da qual o

    mdico estava realmente necessitado. Varella estava endividado e teve seu escravo Licutan

    confiscado, sendo esse o motivo deste se encontrar na priso municipal data do levante. A

    priso servia para guard-lo at que fosse posto a leilo para pagar os credores de Varella.

    Licutan reunia e instrua seus discpulos, tanto no quarto da casa onde residia com seu

    senhor quanto num quarto com outros africanos e alugado para essa finalidade.

    Era um aluf estimadssimo, um homem de grande influncia e poder na

    comunidade africana da Bahia, pregador e recrutador de adeptos para a

    sociedade mal 35.

    34

    REIS, Joo Jos. Rebelio Escrava no Brasil: a histria do levante dos mals em 1835. 2. ed. So

    Paulo: Cia das Letras, 2003, p. 284 35

    REIS, Joo Jos. Rebelio Escrava no Brasil: a histria do levante dos mals em 1835. 2. ed. So

    Paulo: Cia das Letras, 2003, p. 288

  • Revista Tempos Acadmicos - ISSN 2178-0811

    17

    Nina Rodrigues36

    acreditava ser ele o imam ou lder religioso mximo dos mals em

    1835.

    Licutan era, na verdade, um nome tnico iorub, mais corretamente seria Lakitan ou

    talvez Olakiitan. Recebeu no Brasil o nome cristo de Pacfico, o que no deixa de ser uma

    irnia. Nos interrogatrios que se seguiram ao levante, ele revelaria que seu nome muulmano

    era Bilal, sem dvida em homenagem ao companheiro negro do Profeta e primeiro muezim do

    Islam.

    Audacioso, forte e influente, o ancio mal no pde esconder a amargura que adveio da

    derrota. No testemunho de um de seus discpulos, aps receber a notcia, o mestre Bilal Licutan:

    deitou a cabea e no levantou mais, muito apaixonado, e chorando quanto

    entravam outros negros de manh presos, dos quais um deu-lhe um livro, ou

    papel dobrado com letras dessas que tm aparecido, e o mesmo negro se ps

    a ler e a chorar.37

    Lus, chamado Sanin entre os afro-muulmanos, ou talvez, mais corretamente Sani, era

    escravo e trabalhava enrolando fumo no cais, como seu colega Licutan. A relao entre os dois

    era, certamente, estreita: irmos na f, parceiros de trabalho, com uma formao intelectual

    provavelmente similar e igualmente sujeitos a escravido. Quando Licutan foi levado para a

    cadeia municipal, Sanin ia visit-lo e levar-lhe comida.

    Como Licutan era tambm um ancio e a despeito dos vrios anos de cativeiro, Sanin

    mal falava o portugus, embora fosse fluente tanto no hau quanto no iorub, ainda que fosse,

    ele prprio, um nupe (chamados tapa na Bahia).

    O aluf tinha por centro de ao a casa dos libertos Belchior e Gaspar, onde era

    conhecido como mestre de ensinar as rezas de mal.38

    Pragmtico, organizou uma espcie de poupana, com a qual cada um contribuiria com

    algo em torno de 320 ris, sendo esse dinheiro divido em trs partes: um apara comprar tecido e

    costurar os abads, outra para pagar dirias devidas aos senhores pelos escravos e uma terceira

    para comprar cartas de alforria. Reis considera que o valor reservado a pagar diria aos senhores

    36

    RODRIGUES, Nina. Os Africanos no Brasil. 4. ed. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976, p.

    55 37

    Idem, p. 55-56 38

    RODRIGUES, Nina. Os Africanos no Brasil. 4. ed. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976, p.

    53-54

  • Revista Tempos Acadmicos - ISSN 2178-0811

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    se destinasse a: a)pagar as dirias dos mestres, b) cobrir a diria de sexta-feira, dia reservado as

    oraes e no ao trabalho e c) cobrir a diria de escravos dedicados a tarefas ligadas

    conspirao. Parece possvel que Sanin fosse o responsvel pelas finanas mals.

    Manoel Calafate era chamado por seus pupilos carinhosamente de Pai Manoel. Era

    nag e liberto, exercendo a profisso de oficial de calafate, de onde vem seu apelido. Foi de sua

    casa que partiu o ato inicial do levante. Segundo Reis:

    Manoel foi inegavelmente um personagem importante no esquema

    insurrecional. Relembro sua viagem a Santo Amaro, s vsperas do levante,

    aparentemente para mobilizar gente l.(...) Recordo tambm o juramento que

    seus discpulos faziam de morrer na luta com o mestre, e no de doena na

    cama 39

    .

    Esse juramento, segundo depoimento de seus discpulos, era feito diante de um grande

    leno ou bandeira branca. um dado significativo, j que o Shehu Usman dan Fodio tambm

    exigia que aqueles submetidos a sua outoridade dessem a baya ou voto de fidelidade sob a

    bandeira branca de Sokoto.

    Manoel Calafate foi, talvez o nico dos idosos alufs a tomar parte na batalha, na qual

    foi, certamente, martirizado.

    Outro mestre muulmano dos mais atuantes em 1835 foi Dandar, batizado Elesbo do

    Carmo no cativeiro. Foi o nico malam hau indiciado. Reis especula que seu nome seria,

    numa transcrio mais correta, Dan Daura, ou seja filho de Daura, significando natural de

    Daura,40 um pequeno reino hau que se submeteu pacificamente a autoridade de Usman dan

    Fodio a princpios do jihad. Liberto e proprietrio de um comrcio de fumo no mercado de

    Santa Brbara, Dandar era o mais prspero dentre os mestres mals. Em seu comrcio reunia

    seus discpulos para estudo, oraes e prticas piedosas. No interrogatrio, foi o nico a

    confessar ter sido mestre em sua terra, indicando sua profisso de erudito cornico na

    Haualndia.

    39

    REIS, Joo Jos. Rebelio Escrava no Brasil: a histria do levante dos mals em 1835. 2. ed. So

    Paulo: Cia das Letras, 2003, p. 294 40

    REIS, Joo Jos. Rebelio Escrava no Brasil: a histria do levante dos mals em 1835. 2. ed. So

    Paulo: Cia das Letras, 2003, p. 295

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    Como aconteceu com Ahuna, no se sabe que fim levou Dandar, embora seu nome

    conste no rol dos culpados. Sua esposa, Emerenciana, tambm envolvida no levante, consta

    como condenada a quatrocentos aoites41

    .

    Encontramos bem menos informaes referentes a Sule e Dassal, e o principal j foi

    exposto quando tratamos da mesquita da Vitria.

    Era nosso objetivo neste trabalho fornecer, atravs da anlise das lideranas mals, seus

    perfis e estratgias, recursos que demonstrassem a estreita relao existente entre a presena de

    uma elite de eruditos islmicos na Bahia e a Revolta dos Mals com os movimentos militantes

    encabeados pela erudio islmica na frica Ocidental e os jihads travados naquela margem

    do Atlntico.

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    . Os documentos rabes do Arquivo do Estado da Bahia. Revista Afro-

    sia, Salvador, v.1, n. 6/7, 1968.

    41

    Idem, p.296

  • Revista Tempos Acadmicos - ISSN 2178-0811

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