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artigo teologico

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  • 258 Antonio Carlos Ribeiro

    Estudos de Religio, v. 23, n. 36, 258-274, jan./jun. 2009

    * Telogo luterano, ex-secretrio do Conselho de Igrejas Crists do Estado do Rio de Janeiro

    (CONIC-Rio) e doutorando em Teologia (PUC-Rio). E-mail: [email protected]

    ResumoExperincias de reflexo teolgica mostra Moltmann como o telogo que fez o caminho do

    dilogo religioso e cultural, seu modo de fazer teologia e as mudanas que sofreu para tornar-

    se quem agora. A partir de um discurso clssico, mas comprometido, leu a Bblia como

    inacabada, discutiu os temas teolgicos do momento, dialogou com hermenuticas emergentes

    do Terceiro Mundo e definiu o labor teolgico como sofrimento e prazer em Deus.

    Palavras-chave: J. Moltmann; Teologias; Libertao; Feminista. Pblica.

    Moltmann: from the ideas adventure to Theologia Publica

    AbstractExperiences of theological reflection show Moltmann as the theologian that made the way

    of religious and cultural dialogue, his mode to make theology and the changes that he

    suffered to become who is now. Starting from a speech classic but committed, he read

    the Bible as unfinished, he debated the theological themes of the moment, he dialogued

    with emergent hermeneutics of the Third World and he defined the theological labor as

    suffering and pleasure in God.

    Keywords: J. Moltmann; Theologies; Liberation; Feminist; Public.

    Moltmann: de la aventura de las ideas a la Theologia Publica

    ResumenExperiencias de la reflexin teolgica muestra Moltmann como el telogo que hizo el

    camino del dilogo religioso y cultural, su modo para hacer teologa y los cambios que

    l sufri para volverse quin es ahora. Empezando de un discurso clsico pero compro-

    metido, l ley la Biblia como inacabada, l debati los temas teolgicos del momento,

    Moltmann: da aventura das ideias

    Theologia Publica

    Antonio Carlos Ribeiro*

  • Moltmann: da aventura das ideias Theologia Publica 259

    Estudos de Religio, v. 23, n. 36, 258-274, jan./jun. 2009

    l dialog con la hermenutica emergente del Tercer Mundo y l defini el labor teol-

    gico como sufrimiento y placer en Dios.

    Palabras-clave: J. Moltmann. Teologas. Liberacin. Feminista. Pblica

    No fim, o incio. A esperana crist a fora da ressurreio das falhas e

    derrotas da vida. Ela a fora para o novo comeo, l onde pela culpa a

    vida havia se tornado impossvel. Pois ela o Esprito do Esprito da

    ressurreio do Cristo cado, maltratado e abandonado. Por sua divina

    ressurreio dos mortos, aquele final sem sada de Cristo na cruz do Glgota

    transformou-se em seu verdadeiro incio.

    Jrgen Moltmann (2007:9)

    Os telogos habitam a meia-luz, no se aventuram por um caminho que a

    Escritura ainda no traou. Se eles permanecem nesta modstia, se no

    ocultam sua f, podem participar sem hipocrisia no debate contemporneo...

    A Bblia incomoda por seu inacabamento em sua forma aparentemente

    concluda. Os telogos perguntam-se se so capazes de manter-se, em sua

    argumentao, no nvel deste inacabamento.

    Christian Duquoc (2006:93)

    O livro Experincias de reflexo teolgica; caminhos e formas da teo-logia crist emblemtico da trajetria pessoal, teolgica e acadmica deJrgen Moltmann. Sintetiza inquietaes, pesquisas, formulaes, debates epublicaes de mais 40 anos de labor teolgico-pastoral desde as questesbsicas sobre a Esperana at o papel da teologia no mundo moderno ,sendo sobretudo a expresso de um rico e bem cultivado arcabouo teolgico.Entretanto, essa trajetria no resulta automtica da influncia familiar, nematada a um monlito tnico-cultural-ideolgico, nem originada em vnculoeclesial-doutrinal, mas prpria de um telogo aberto, vivendo a aventura dasideias que fascinaram sua curiosidade intelectual e o fizeram perceber que nohay camino, se hace camino al andar. O objetivo desta comunicao desta-car momentos, especialmente os voltados s teologias do Terceiro Mundo, esua contribuio ao tema Teologia Pblica.

    A escolha do tema esperana, que ele transformou num teologmenocom expresso para sustentar por quatro dcadas e meia, com diversos ma-tizes, o conjunto de sua produo teolgica, tem a marca do inacabamento1.1 Darci Dusilek, professor de Teologia Sistemtica no Seminrio Teolgico Batista do Sul do

    Brasil, recentemente falecido, costumava dizer que teologia se escreve a lpis, pelas mesmasrazes de Moltmann, porque permanece fragmentria e inacabada, porque ela o pensarsobre Deus daqueles que se encontram a caminho e que so, portanto, itinerantes e aindano chegaram em casa. Por essa razo, at mesmo as catedrais e os domos medievais ti-nham de permanecer inconclusos, para poderem apontar para alm de si mesmos.

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    Da conscincia dessa provisoriedade surgem tambm a clareza do papel daIgreja, a condio de portadora da salvao, (j que a condio de CreaturaeVerbi [Lutero] se origina da salvao que porta e que lhe d identidade, razopela qual no decide se a anuncia, quando ou o que enfatiza) e o senso deoportunidade e responsabilidade para com as pessoas que percebem a presen-a de Deus no cotidiano de sua existncia. Moltmann a define como

    um sistema fluvial de influncias recprocas e desafios mtuos e de modo algumum deserto em que cada indivduo est sozinho consigo mesmo e com seuDeus... Theologia viatorum um dilogo crtico constante com as geraes an-teriores a ns e com os contemporneos ao nosso lado, no aguardo daqueles

    que vm depois de ns (2004:11).

    Essa perspectiva afasta aquela noo de teologia perene e sem contro-vrsias, baseada no mito da objetividade, simptica a corpos administrativoseclesiais, presente nos livros dos seus professores, sempre sem as marcas, asnfases e as ideias-chaves de um telogo, sem paixo pelo Reino, pela justiae pelas pessoas, pelas quais se torna missionria ao ligar igreja e sociedade, epovo de Deus aos povos da terra. Nesta dimenso passa a ser pblica eecumnica, discutindo os sofrimentos e as esperanas, debatendo o teolgiconos diversos temas, recorrendo Bblia, reinterpretando-a fora da prisohermenutica patriarcal, especialmente quando legitima as dominaes contraas mulheres, os negros, os ndios, os pobres e a natureza. Assim, convido-osa rever, nas prximas pginas, temas como a passagem da teologia clssica theologia publica, atravs das hermenuticas marginais.

    Teologia como vocao pessoalPara chegar ao tema central de sua obra, Moltmann indaga O que

    teologia?, narrando momento dramtico da prpria vida, sob o fogo da RealAir Force britnica, que carbonizou 40 mil pessoas na cidade de Hamburgoem 1943. Esse fato o fez clamar pela presena de Deus e tornou-o perseguidopela pergunta: Por que estou vivo, e no morto como os demais? Depois foirecrutado pelo exrcito alemo e caiu prisioneiro dos britnicos em 1945. Nostrs anos seguintes, no campo de prisioneiros, refletiu sobre os terrores so-fridos na guerra e sobre os crimes dos alemes contra a humanidade emAuschwitz. Esses fatos o fizeram concluir: Minhas experincias de morte nofinal da guerra, meus perodos de depresso por causa da culpa do meu povoe os perigos interiores da resignao completa atrs do arame farpado foram,para mim, o primeiro locus theologicus. (MOLTMANN, 2004:18)

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    Foi estudar teologia em Gttingen, em 1948, onde conheceu a esposa,Elisabeth, e o orientador Otto Weber. Depois da formao foi enviado comunidade rural de Bremen-Wasserhorst para a atuao pastoral, onde seperguntou sobre a teologia que surge da interpretao do texto e a experinciade comunho das pessoas em famlia. Em 1958 foi para a Escola SuperiorEclesial de Wuppertal, em meio crise acadmica do pas em reconstruo,aps a demisso de Tillich e Barth e a criao da Liga dos Docentes Nacional-Socialistas. Sobrou pouco do protestantismo cultural liberal, sob a influnciados Deutschen Christen nas Universidades. Foi nesta mesma escola emWuppertal que Pannenberg publicou Revelao como Histria e ele lanousua Teologia da Esperana. O perodo seguinte foi o de aceitar o chamamentoda Faculdade de Teologia Evanglica da Universidade de Bonn, gerando oconflito do juramento como funcionrio do Estado. Teve outros conflitos em1968, mas cresceu tambm com a exigncia de cientificidade da teologia, emmeio s demais faculdades, com o dilogo marxista-cristo, com os debatesentre telogos, juristas e mdicos, alm dos primeiros desafios de adequar ateologia da formao pastoral para outros interessados.

    A discusso do papel do(a) telogo(a) exige voltar criao da facultastheologica no sculo XIII, lembrando os debates, tratados e smulas queconstituram o modo de fazer teologia europeu, deixando sua marca para ateologia do mundo ocidental. Lembra a importncia do Sacrum Imperiumpara a constituio do corpus Christianum atravs da unidade Igreja-Estadoe f-cultura, prolongado na formao de professores e doutores, que traba-lharo na formao de telogos voltados ao trabalho comunitrio, lugar ondeos interesses pastorais se desvinculam da carreira teolgica acadmica, mas aoqual ambos devem retornar, j que as duas formas carecem de relacionamentoentre si e com o povo crente que compe as igrejas. Retoma a nfase daReforma no sacerdcio geral de todos os crentes associando-a teologiacomo tarefa de todo o povo de Deus, destacando que

    A comunho de todos os que crem exige a diferenciao das tarefas, assim comocorresponde diversidade multicolorida dos dons do Esprito (charsmata). Tam-bm no ministrio teolgico comum a todos os crentes h incumbncias e dele-

    gaes especiais. A teologia acadmica uma dessas. Entretanto, a comunidade

    deve poder identificar-se com suas delegaes, seno surgem estranhamentos que

    no desoneram, mas causam vexame. (MOLTMANN, 2004:23)

    O estranhamento ocorre hoje especialmente entre os representantesdeste corpus Christianum helenista, romano e, posteriormente, germnico2,

    2 Ver MARON (1983, p. 313-37).

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    masculino, oriundo das mesmas universidades seculares europias, que setornaram os membros do magisterium das igrejas, ao depararem com as teo-logias da libertao, feminista, negra, miniung e do pluralismo religioso. Osconfrontos e a aceitao-rejeio dos novos paradigmas se do tambm noespao acadmico, firmado pela apropriao, mtodo, elucidao, e que temna reflexo comunitria dos que crem em Deus e vivem na comunho deCristo, mostrando como as ideias dos grandes telogos so simples e claras.Isso gera a ruptura com preconceitos como o de ser este saber o nico dis-curso sobre Deus, ou doutrina da f autorreferida, ou possvel apenas a cris-tos renascidos, ou uma teoria do absoluto e sem sujeitos3, ou apenas paraa comunidade religiosa com o risco de tornar-se ideologia religiosa oudoutrina esotrica situaes que contradiriam a revelao de Deus: pblica,universal e convite escatolgico criao. At mesmo a teologia dos atestas,conhecida pelas dvidas de Dostoievski, atravs de seus personagens em OsIrmos Karamzovi, um discurso sobre o sagrado, mesmo ao mostrar suadificuldade de expresso em sociedades e igrejas clssicas e amarradas tra-dio. A novidade e diversidade do Reino de Deus que no cabem nasigrejas exigem que a teologia seja pblica.

    Moltmann enuncia a pergunta fundamental da teologia do dilogo inter-religioso: o que exige a secularidade de uma sociedade multirreligiosa dostelogos cristos? (2004:28) Isso os coloca diante de uma demanda pastoralque exige capacidade de dialogar que as cincias da religio podem asses-sorar atravs de sua anlise objetiva, sem levantar a pergunta por Deus, porno ser um discurso religioso movida por conflitos que ameaam a vida epedem soluo pacfica, conjunta e resultante de dilogo aberto em busca daverdade. Lembra Tillich ao observar que para o dilogo inter-religioso so-bre o que concerne incondicionalmente s pessoas e no que elas colocam todaa confiana do seu corao, j o caminho uma parte do alvo, na medida emque ele possibilita convivncia em meio s diferenas intransponveis(MOLTMANN, 2004:19), propondo o percurso do antema para o dilogo,do dilogo para a coexistncia, da coexistncia para a convivncia e da con-

    vivncia para a cooperao. Insiste que o objetivo no metamorfose, aco-lhimento ou prestao conjunta de servios religiosos, mas a diversidadereconciliada, a diferena suportada e produtivamente conformada.

    Como se chega a ser um telogo autntico? Sofrimento e prazer em

    Deus. A teologia, afirma, no pertence ao mbito do saber que dispe so-bre os objetos, mas ao mbito do saber que sustenta a existncia, que nosd coragem para a vida e consolo na morte... Deus a paixo, o tormento

    3 Para estabelecer a diferena das nfases protestantes e catlicas, ver PALCIO (1997, p. 79-81).

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    e o prazer dos telogos, lembrando o jovem Lutero: o telogo se faz vi-vendo, mais ainda, morrendo e sendo condenado, e no raciocinando, lendo

    e especulando (MOLTMANN, 2004:31). E s o por viver a vida vivaz eplena de alegria que desperta um prazer irrefrevel de viver no Deus quenos cerca de todos os lados4.

    A frmula O Deus de Abrao, de Isaque e de Jac, comum s religiesabramicas, para falar da religio da histria, da vocao que atravs dospatriarcas se estende a todos os povos: da histria da desgraa com Ado eEva; das migraes foradas, com Jos do Egito; da dispora, at hoje; e dasalvao, no voltar para casa, na guarda do descanso e na nova criao. Falatambm da religio da Escritura, relacionando os eixos espao-tempo, daguarda do shabbat, da memria como antdoto para a irreversibilidade dotempo e de seu instrumental bsico: a narrativa da histria. A religio dotestemunho dos pais ao serem enviados, a quem ele se revelou na afliocomo Eu sou, para que em cada gerao a pessoa visse a si prpria como seestivesse no Egito. Esse evento inaugural da histria de Israel tem seu equi-valente na morte de Cristo na cruz e a ressurreio, inaugurando a histria dacristandade em meio aos povos, superando os poderes histricos do fara eda morte, passando do futuro histrico para o futuro escatolgico, no qualnos movemos pela esperana. A f, sempre que desenvolve em esperana,no traz quietude, mas inquietude; no pacincia, mas impacincia. Ela noacalma o cor inquietum, mas esse cor inquietum no homem(MOLTMANN, 1971:9). E, assim, a f histrica, baseada na palavra, torna-se a contemplao eterna de Deus.

    Da Teologia Teologia CristMoltmann mostra como surgiu a teologia na antigidade pr-crist, na

    qual os filsofos esticos distinguiam a theologia mythica, dos poetas noteatro, a theologia politica, dos estadistas e sacerdotes oficiais no governo doEstado e no tempo pblico, e a theologia naturalis, dos filsofos na escola.No mundo helenista, o cristianismo assumiu desde os primrdios essa formade expresso de ideias, criando a theologia christiana, no culto a Deus, e adoutrina da salvao foi chamada oeconomia Dei. Seu lugar era o do culto aDeus, especialmente a doxologia do Deus trino. Os eruditos religiosos ju-daicos, islmicos ou budistas preferem falar de filosofia da religio.

    Para Moltmann a teologia tem um significado especial para a f cristpor causa do prprio Cristo. Jesus de Nazar, ao ser confessado como o

    4 Sl 139.5.

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    prprio Cristo, projeta o mundo de esperanas messinicas daquela f hist-rica de Israel. A f crist surgiu neste mundo de esperanas e este permanecevivo nela (1993:17-64). A cristologia csmica enfatiza a qualificao do tempohistrico como messinico, pelo qual o futuro de Deus penetra nessa eraambgua e passageira. Para Paulo, o Cristo csmico nos libertava das forascsmicas feitas de anjos rebeldes e deuses imaginrios. Limpava os espaospara que Cristo tivesse seu senhorio e assim fizesse uma reconciliao totale fosse o princpio da reunificao do Todo. Hoje, assevera Moltmann, oCristo csmico confrontado com uma natureza levada ao caos pelos ho-mens, infectada pelo lixo txico, condenada a uma destruio universal...Onde est Cristo depois de Chernobyl? (BOFF, 2008:130).

    Esta viso teolgica do Cristo projeta-se numa grande extenso porquecomea como fundamento da criao de todas as coisas (criao original, dePaulo), torna-se fora propulsora da nova criao (criao contnua, deChardin), e contemplada como libertadora e redentora do processo da cri-ao como um todo (criao do novo cu e da nova terra) (MOLTMANN,1997:95). Assume que a f crist no confiana cega, mas enxerga de olhosabertos, pois tem objeto e interlocutor na histria, no presente e no futurode Cristo (IWAND, 1962:27).

    A mudana da relao entre a razo e a f surge quando Anselmo deCanterbury (sc. XI-XII) formula: f busca compreenso, creio para compre-ender (fides quaerens intellectum, credo ut intelligam) (MOLTMANN,1971:23), desenvolvendo a noo de que a f crist no cega, mas enxergaporque tem objeto e interlocutor na histria e porque a teologia uma refle-xo posterior verdade crida. claro que a f crist, visibilizada pela insti-tuio religiosa, nem sempre correspondeu sua formulao ou foi pastoral-mente contraditada. Jrgen Moltmann tornou essa busca existencial: esperanabusca compreenso, espero para compreender (Spes quaerens intellectum,spero ut intelligam) (MOLTMANN, 1971:23).

    Hoje, em funo da interlocuo direta dos pblicos atravs dos aces-sos eletrnicos e miditicos, a polarizao entre uma viso de f e outraintelectualizada tem se mostrado falsa. Rompidos os preconceitos dualistas,descobre-se que por trs das duas posturas existem pessoas que amam, bus-cam a felicidade, querem compreender a realidade, esforam-se portransform-la e vivem de esperanas. As pessoas de f se mostram cada vezmais sensveis aos avanos cientficos, e cientistas, que estudaram o ciclo davida, como Ilya Prigogine5, no se envergonharam de assumir publicamente

    5 Ver BOFF, 2004, p. 79.

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    sua f. Quem faz isso ouve os gemidos das criaturas, mas encontra a si mes-mo, assume sua destinao humana, vive a f com conscincia histrica e tomado por uma felicidade infinita.

    Sustentabilidade da vida e TeologiaAo aplicar esse raciocnio preocupao teolgica com a

    sustentabilidade da vida, uma das vias de passagem da teologia como saberexclusivo da comunidade de f para o conjunto da sociedade, descobrimosque as razes que justificam a explorao predatria, a devastao sem li-mites e a poluio desmedida, que marcam a relao do ser humano com anatureza, ainda esto firmadas na noo de verdade como adequao dacoisa (adaequatio rei et intellectus), da escolstica medieval, e ainda no pelanoo de experincia e reflexo, que propiciam um indicativo de si mesmoe do falso (index sui et falsi), de Spinoza (MOLTMANN, 2004:71). Quandonos entendemos como parte da natureza, sentimos na prpria carne e com-preendemos o significado da devastao.

    A luta pela defesa do meio ambiente no avana quando as pessoas aentendem pela lgica da adequao da coisa, justificando a devastao dolugar em que vivem e do qual so parte, mas apenas pela lgica do que bompara si e o ambiente e do que falso e danoso para o ecossistema. A primeiralgica exige a mentira e que lhe demos o nome de verdade. A segunda, quepossibilita integrar o conjunto, a razo afetiva (intellectus amoris), propostapor Jon Sobrino (2008:18). Os gritos da terra, entendida como ecossistema,so temas ecolgicos e teolgicos na medida em que dizem respeito exis-tncia humana, do ecossistema e do cosmos e por saber que as coisas todas,os ecossistemas, a Terra e o Universo so sagrados, pois vm habitados peloCristo csmico, criador, sustentador, promotor, libertador, redentor econsumador do Todo (BOFF, 2008:132).

    Quando a verdade pode ser intelectualmente compreendida, gerandoharmonia entre o corao que confia e a razo que conhece, surge uma pro-funda alegria (gaudium) da consonncia, correspondncia e harmonia: quemconcorda com Deus e lhe corresponde no pensar, sentir e agir tomado poruma felicidade infinita, pois ele encontra a si mesmo e assume a suadestinao como ser humano: ser imagem de Deus nesta Terra6. quandoa f tem aqui a sua fome de entendimento e busca saciada, ao ansiar porcontemplar a verdade l, que chega sua visio beatifica, contempla a Deus,

    6 MOLTMANN (2004, p. 51), lembra o comentrio de BARTH, K. Fides quaerensintellectum; Anselms Beweis der Existenz Gottes. 2. ed. Zurich: 1958.

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    torna o crente de corao puro (Agostinho de Hipona), levando-o fruiomtua de Deus e de si em Deus. quando a presena viva de Deus impreg-nar ento de tal modo todas as coisas que veremos, ouviremos, sentiremos,cheiraremos e degustaremos Deus em todas as coisas. A fruio de Deus e afruio da natureza na comunho da criao estaro, ento, imbricadas. Anova criao ser uma extraordinria pericrese de Deus e mundo(MOLTMANN, 2004:52).

    Para introduzir o tema do intellectus amoris, j mencionado, argumentaque desenvolveu uma razo terica da f e uma razo histrica da esperana,dispondo-se busca da razo prtica de ambas, amalgamadas na expressoamor7. Sustenta-se no argumento de Jon Sobrino, pelo qual essa fora se mostrano mundo pela ao do Esprito Santo, que promove justia aos que dela foramprivados, reergue os culpados, consola os enlutados e renova a terra. Sem sub-meter-se lgica aristotlica, pela qual uma coisa gosta de ligar-se a algo iguala ela, pelo que se confirmam mutuamente, o amor de Deus no se dirige aosiguais, mas aos diferentes, que na Amrica Latina so os excludos, aflitos,sobrecarregados, humilhados, esquecidos e moribundos. Ele cura os doentes,acolhe a vida estranha, respeita o tornado desprezvel, embeleza o disforme eatinge a perfeio no amor ao inimigo. O impacto desse amor criativo no pdeser excludo da poltica e da economia. Nem tampouco da vida eclesial.

    Para tratar da teologia pblica, mostra que ela desdobra-se da teologia,assim como esta tem seu gnus fysikn na theologia naturalis, e suporta ocritrio do index sui et falsi, de Spinoza, porque a verdade universal se impepela sua concretude. Na transio, os antigos direitos naturais quecorrespondiam teologia natural passaram a ser direitos humanos,correspondendo teologia pblica. A teologia natural pressuposto da teo-logia crist, apesar de ter esta, seguindo as cinco provas cosmolgicas daexistncia de Deus, se disposto a compreender a revelao sobrenatural, ar-razoado transformado em dogma do Conclio Vaticano I, acompanhado dacondenao de qualquer negao. Por isso Moltmann entende que a teologianatural vai at a pergunta humana sobre Deus e chega pergunta correspon-dente de Deus sobre os seres humanos. Para a resposta a estas questes e pergunta sobre o cosmos, a sustentao e coeso do universo, diante do quea teologia natural no consegue responder a partir da natureza, obrigandotelogos a partirem para uma teologia crist da natureza.

    A revelao natural no o lugar de onde procedemos, mas a luz paraa qual nos dirigimos. A lumen naturae o reflexo da lumen gloriae. (...) Amudana de atitude que se exige hoje da teologia consiste em consignar a re-

    7 Fazendo referncia ao clssico ELLACURA; SOBRINO, 1995.

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    Estudos de Religio, v. 23, n. 36, 258-274, jan./jun. 2009

    velao ao nosso on, e a teologia natural ao on vindouro. O tema da verda-deira religio o alvo escatolgico da teologia (IWAND, 1962:290-291). Esseargumento do luterano Hans-Joachim Iwand contestado com base noiluminismo alemo, que foi defendido como pthos por Lessing e Kant. A fi-losofia da religio do perodo do iluminismo entendeu que o sobrenatural e pr-racional faz parte do particular e histrico de cada religio e serve como veculopara a formao de uma religio natural, humana e da razo. A teologia dessareligio tambm chamada natural e tem como tarefa decifrar os elementosdessa religio futura, partindo das religies histricas. Lessing cria nessa verdadeda razo, que no era de fato, mas que foi revelada para vir a s-lo, e assiminterpreta o credo ut intelligam, de Anselmo. As pegadas de Deus na nature-za e na existncia humana refletem a nova criao vindoura, supondo que nemtoda alma crist, mas que toda alma deve ser imagem de Deus.

    A teologia natural, que Lutero chamou de theologia gloriae no Debate deHeidelberg (1518) e contraps theologia crucis, a mesma que Schleiermachere Barth querem que se comprometa como uma funo da igreja e esteja voltadaexclusivamente ao crculo de crentes. Nesse caso ela independe de faculdadesteolgicas em universidades pblicas, mas apenas de seminrios para formaode sacerdotes. Moltmann se ope a essa viso, afirmando que

    se a teologia crist compreender-se como funo do Reino de Deus, pelo qualCristo veio e a prpria igreja, afinal de contas est a, ento ela deve desdobrar-

    se na esfera pblica como theologia publica. Para estar presente nos diversos

    mbitos da vida e para entabular um dilogo com cosmovises e religies, ela

    necessita da moldura de uma teologia natural e poltica (...) dada para a teologia

    escolstica no corpus Christianum (...) dada para o protestantismo esclarecido

    no mundo cristo de uma era crist. Ambos os mundos no constituam

    propriamente um trio para a igreja, mas uma representao antecipada do

    Reino de Deus, parbolas na histria humana para o reino dos cus (2004:75).

    O delineamento do perfil da teologia pblica esbarra com o que lhe autorizado pela perspectiva de sociedade no mundo da atualidade, prevista pelaEscola de Frankfurt. Nessa configurao, o papel da religio limita-se esferado privado. Segundo Jrgen Habermas, a expectativa do estado liberal quehaja uma adaptao cognitiva da conscincia religiosa ao recorte individualistadas leis da sociedade secular, fundamentadas de maneira universalista. Istosignifica que a religio deve renunciar a uma configurao abrangente da vidana direo de uma pacificao do pluralismo de vises de mundo8.

    8 HABERMAS, J. Teoria da adaptao. Folha de S. Paulo, So Paulo, 5 jan. 2003. Cad.Mais!,p. 13, apud SCHAPER, in: SINNER: 2008.

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    Estudos de Religio, v. 23, n. 36, 258-274, jan./jun. 2009

    Ao olhar para a Amrica Latina, percebe-se que a perspectiva da moder-nidade no encontra eco. Por mais que se restrinja o papel e a abrangncia dareligio, constata-se uma exploso do fenmeno religioso9. O fato recente que nunca o discurso teolgico foi to necessrio. O clima cultural do nossotempo exala religio. A religio invade campos de futebol, arte (moda, msica,literatura), supermercados, botecos, escolas, laboratrios, pesquisas, meios decomunicao, a poltica, a economia etc. A religio hoje passeia onipresenteentre ns. Uma leitura de nossa sociedade impossvel sem uma leitura teol-gica. Uma crtica social hoje , inevitavelmente e necessariamente, uma crticada religio, constata Schaper (SCHAPER, in: SINNER, 2008)10.

    Reflexos de Teologia LibertadoraA explicao possvel est ligada s teologias marginais surgidas na

    Amrica Latina, na sia e na periferia dos centros de saber e poder teolgicoe filosfico na Europa e nos Estados Unidos, como a Teologia Negra, aTeologia da Libertao, a Teologia do miniung e a Teologia Feminista. Essasteologias insurgentes tm em comum uma viso diferente da que rege omundo, uma construo de saber bblico-teolgico-pastoral (perifrico, mo-reno, moderno/ps-moderno e em dilogo com a Cultura), concomitante coma desconstruo do saber majoritrio (europeu, branco, pr-moderno/moder-no e ancorado na Tradio). Para tanto, voltamos ao debate travado porMoltmann com essas teologias a partir da Teologia da Esperana e daTeologia Poltica, que partilhou com Johann Baptist Metz fundamentaispara entendermos como esses elementos lhe possibilitaram uma teologiaabrangente e de grande aceitao nos vrios continentes.

    1. Teologia Negra - Teve maior impacto sobre ele a partir de sua estadana Duke University (Carolina do Norte, EUA) h exatos 40 anos, com asegregao separando os bairros de brancos e os pockets, as cruzes da KuKlux Klan e o Movimento pelos Direitos Civis, e a Conferncia sobre Teo-logia da Esperana, interrompida com a notcia do assassinato de MartinLuther King Jr., dada por Harvey Cox. Lembra efeitos como a ocupao dauniversidade por centenas de estudantes negros, sua autoconfiana e consci-ncia despertada dos brancos, os contatos com Jim Cone, Major Jones, DeotisJ. Roberts e Marcus Garvey e suas obras do fim dos anos 60 e incio dos 70.Retoma aspectos da histria das lutas do povo negro desde a denncia do

    9 Ver ALVES, 1975.10 Ver a entrevista Teologia Pblica: para alm da Igreja e da academia, com Rudolf von

    Sinner . Acessoem: 2 set. 2008.

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    genocdio por Bartolom de Las Casas11 a Carlos V no mesmo ano em queeclodia o movimento reformador na Alemanha (1517) at o degradantetrfico de escravos do continente africano, que estava to consolidado entreas elites brasileiras que, mesmo sob presso inglesa e depois da chegada dosimigrantes alemes num projeto que inclua o branqueamento da raa e asubstituio de mo de obra, essa vergonhosa explorao ainda subsistiu por64 anos, contribuindo para fazer cair a monarquia no ano seguinte (1889) enos tornando o ltimo pas a abrir mo dela.

    Esses quatro sculos de escravizao de negros infectaram a alma dosbrancos com a doena do racismo12, o enegrecimento (angeschwrzt) atravsdo falatrio, a gerao da negrofobia, que os v como pessoas de segundaclasse, que no tm direitos civis, e desenvolve dois mecanismos: o psquico,de autojustificao; e o ideolgico, de subjugao das pessoas, destruindo ahumanidade dos dois lados. Ao igualar o ser humano com o ser branco,destri sua prpria humanidade; e ao converter constantemente seu medo emagresso, destri a comunho com os outros. Ao no ver mais nos outrospessoas como ele mesmo e ter a necessidade de humilh-las, aprofunda umdio mortal contra si mesmo (MOLTMANN, 2004:167-168).

    A partir da tomada de conscincia, a Teologia Negra se assenta nummovimento, duas lideranas e uma proposta teolgica original. O movimentofoi o Black Nationalism, de Marcus Garvey, que viveu na Jamaica, foi lder domovimento Back to Africa, fundou a Universal Negro Improvement, criou ojornal Negro World e desenvolveu a escatologia rastafari a partir de Ras TafariMakonen, que se tornou o rei Hial Selassi, da Etipia. Na esteira dessainfluncia surgiram duas lideranas nos EUA: Malcolm X e Martin LutherKing Jr. O primeiro era neto de escrava violentada, sofreu influncia islmica,militou no Black Power Movement e no Black Muslim, postulou a separaodo povo negro e foi expresso dos negros pobres do norte. O segundo erafilho de pastor batista, cresceu em Atlanta, estudou no Crozer Seminary e naBoston University, sofreu a influncia de Gandhi, da filosofia de Brightman,da teologia de Niebuhr, Tillich e Wieman. Sentia-se um americano e comdireito a participar desse sonho,

    11 Essa situao o levou a ser acusado de luterano por sua defesa dos indgenas contra aencomienda que no deveria ser tomada como algo mais que um epteto para herege (oqual, alis, Las Casas deve ter recusado com sua reconhecida veemncia). (WESTHELLE1991, p. 183-92). Ver tambm FRIEDE, 1974 e ENZENSBERGER, 1974.

    12 Cita FANON: 1985; MARTIN: 1993.

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    a histria o transformou num telogo eminentemente poltico. As suas melhores

    pregaes foram discursos pblicos (...) a sociedade norte-americana, e no s

    ela, tornou-se a sua comunidade (...) sua origem est naquela comunidade negra

    que j havia sido o centro da populao negra (...) onde no havia separao

    entre igreja e sociedade, religio e poltica (MOLTMANN, 2004:179).

    A teologia negra de James Cone surgiu da interpretao teolgica do BlackPower Movement, definindo-se como teologia dos oprimidos no contextocultural branco, a partir do contexto cultural africano, que postulou devemostornar-nos negros juntamente com Deus e ensinou cristos brancos a orar:Senhor, quando foi que te vimos negro?

    2. Teologia da Libertao Esta uma produo que ps a teologia emmovimento, criou a base para uma significativa conscincia do cartercontextual geral da teologia e em primeiro plano a teologia proveniente da

    margem e movimentos similares, contribuiu para a descolonizao teolgica,

    congregou as teologias negra e feminista, pluralizou o conceito de libertao egarantiu um estatuto ontolgico, situado histrica, pessoal e bibliograficamente.Partiu da opo preferencial pelos pobres, assumida pelas assemblias do epis-copado latino-americano em Medelln e Puebla, e, segundo Comblin, tornou-se o melhor da histria da Igreja na Amrica Latina nos ltimos 30 anos. (...)No uma teologia genitiva (Genetivtheologie) nem um movimento teolgico,mas um movimento da Teologia, a grande tese de Juan Lus Segundo13.

    Moltmann narra sua aproximao desde os primrdios, a troca de influ-ncias desta teologia latino-americana com a Teologia da Esperana e a Te-ologia Poltica, que desenvolveu com Johann Baptist Metz. Isso lhe possibi-litou perceber que ela se apresentava em moldes totalmente europeus. Noprimeiro livro de Gutirrez, havia quase somente citaes de filsofos e te-logos europeus, e praticamente nenhum das tradies latino-americanas. Noera diferente com Juan Segundo, Hugo Assmann e Jos Mguez Bonino(MOLTMANN, 2004:185). Surgiu uma amizade maravilhosa com a novacaminhada em marcha, mas logo lamenta que isso

    se revelou como equvoco, sendo entendido pelos latino-americanos antes comouma tentativa de cooptao, contra a qual eles deveriam precaver-se, se quises-sem chegar a si mesmos. Ns buscamos imediatamente a integrao numa novacomunho, mas eles sentiam antes a necessidade da separao. E assim fomos

    13 Como sintetizou Rudolf von Sinner em Reden vom dreieinigen Gott e em Confiana econvivncia, cf. RIBEIRO, 2008a.

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    confrontados com uma barreira aps a outra. Eles chamavam a sua teologia de

    teologia da libertao (theology of liberation), a nossa, porm, de liberal

    theology [teologia liberal] e teologia progressista do Primeiro Mundo; eles es-

    creviam que a sua teologia provinha da prxis, a nossa da escrivaninha. No

    achei isso justo. (MOLTMANN, 2004:185)

    A tenso parece ter gerado desgastes. Hugo Assmann sentiu-se atingi-do, Rubem Alves ficou amargurado. Somente Mguez Bonino e GustavoGutirrez alegraram-se com o aporte discusso, pois sentiram-se levados asrio (MOLTMANN, 2004:186), fatos que suscitaram outras intervenes14,parcialmente explicadas numa longa e amistosa discusso com GustavoGutirrez, Leonardo Boff e Jon Sobrino, e acabei entendendo que a minhaoferta de comunho entre a Teologia poltica e a Teologia da libertao vieranuma situao em que eles tinham necessitado da separao para poderemchegar a si mesmos (MOLTMANN, 2004:186-187). Gutirrez mostrou-setocado pelo fato de ter sido encontrado um exemplar de El Dios crucificadono sangue do padre jesuta Ramn Moreno, morto em El Salvador, e, porltimo, um reencontro de companheiros que laboram na mesma empreitadae tm objetivos comuns.

    Ao mesmo tempo, Moltmann mostrou tanta identidade com a reflexoteolgica do continente que mergulhou na histria, superou os preconceitosintelectuais, culturais e teolgicos do Primeiro Mundo, viajou por todo ocontinente, falando em congressos, simpsios e semanas de estudos emseminrios, escolas teolgicas e cursos ecumnicos, acompanhou as lutas dospovos e dos telogos contra regimes autoritrios, mesmo movendo-se naperspectiva do progresso e da libertao, pelo que citou Brecht para pedirindulgncia. Identificou-se com a reflexo bblica, mostrou-se aberto a mto-dos e abordagens locais, entendeu o instrumental da TL e defendeu colegasda outra margem15.

    3. Teologia do Miniung - Prope uma reflexo sobre a igreja e o povode Cristo a partir da tese Jesus e o chlos no Evangelho de Marcos, do

    14 Segundo Vtor Westhelle, o desencontro se deu porque a teologia poltica europeia era feitaem sociedades afluentes no confronto com o socialismo real e a teologia latino-americana,emergiu de um continente (...) sob regimes militares (p. 138). A primeira, afirmando umadefinio negativa de liberdade, e, a segunda, uma noo atributiva de justia, sintetizadana tenso entre Moltmann e Bonino, cf. RIBEIRO, 2008b.

    15 No caso, telogos catlicos do conselho editorial da revista Concilium, notificados e pu-nidos pelo Vaticano. Esta expresso foi cunhada pelo protestante Karl Barth para referir-se ao catlico Hans Urs von Balthasar, tambm suo.

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    coreano Ahn, Byung-Mu, a quem Moltmann encontra. Ele tem que falarsobre Esperana na luta do povo, se sente membro de um povo derrotado efoi prisioneiro de guerra. Viveu e acompanhou a luta da resistncia contra aditadura do general Park, Chung-Hee, apoiou a resistncia, publicou o livroMiniung, teologia do povo de Deus na Coria do Sul, e manteve contatoscom Park, Jong-Wha.

    A descoberta da teologia miniung, traduo de chlos e que significatodo o lado inferior da sociedade dominante, que o povo nunca desempe-nhou um secundrio papel de figurante para Cristo, mesmo sendo a multido,os muitos, os despatriados, os expulsos, os pobres, os estudantes perseguidosque no delatam os colegas, que se identifica com o Servo Sofredor de Isaase com Jesus e sua misso.

    O que mais aproxima a teologia da cruz dos telogos do miniung so as noesde Bonhoeffer a respeito do sofrimento de Deus, registradas por ele na cela da

    priso da Gestapo: A Bblia remete o ser humano impotncia e ao sofrimento

    de Deus: somente o Deus sofredor pode ajudar. (...) O ser humano conclamado

    a compartilhar o sofrimento de Deus por causa do mundo sem Deus. (...) Cris-

    tos ficam ao lado de Deus na sua paixo (MOLTMANN, 2004:220).

    4. Teologia Feminista - a reflexo que lhe chegou atravs da esposa esob influncia da qual sofreu transformaes e experimentou libertaes,propugnando a separao da teologia masculina predominante na tradioeclesial, identidade para chegar ao conhecimento de si mesma e integraona igualdade de direitos para alcanar libertao. Descreve o processo deadaptao nova dinmica de diviso de responsabilidades e do aprendizadodiante das alienaes associadas a isso, sentindo-se transformado em expe-rimento e primeiro exemplo do pensamento tipicamente masculino e daobjetividade professoral desprovida de sujeito (MOLTMANN, 2004:228).Disse j ter aprendido com os telogos negros que era um telogo branco eque essa existncia cunha as percepes, assim como descobriu ser um te-logo do Primeiro Mundo, com os telogos do Terceiro Mundo.

    A etapa seguinte foi tomar a defesa da esposa diante de reaes de bis-pos e professores da faculdade de Teologia de Tbingen, que o fez descobrir-se distanciado da minha casta masculina. Alm de exageros de iniciativasnovas, a entendeu como um convite aos homens para desenvolverem umateologia da libertao masculina, visando superar as alienaes das tradiespatriarcais de ambos os lados, concluindo que os jogos de poder devem cessare o senhor tem de desaparecer no homem. Ao mesmo tempo em que surgi-ram movimentos de emancipao nos EUA e na Frana, ao passo que nos

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    pases anglo-saxnicos se formaram movimentos sociopolticos de emancipa-o das mulheres, nos crculos eclesiais conservadores da Alemanha chegou-se meramente ao movimento de mulheres sem emancipao, a reformas naeducao e casas de diaconisas e ordem auxiliadora de senhoras nas comu-nidades crists (MOLTMANN-WENDEL, 1976).

    Isso o fez observar que essa diviso na sociedade alem influenciou as ten-tativas teolgicas de uma nova regulao, ocorridas no mbito do matrimnio eda famlia, mas no nos mbitos jurdico e socioeconmico, destacando que te-logos, bispos e snodos que as usaram para responder emancipao das mu-lheres na sociedade no perceberam a revoluo cultural que os atingiu nem asconsequncias desses fatos. Mesmo tendo a Teologia Feminista indicado que setratava apenas da libertao da mulher de sua subordinao e do homem de seupapel de senhor. Ao ler isso percebemos como reaes de mulheres e gruposfeministas parecem caricaturais, at conhecermos a estrutura sociocultural dassociedades em que se expressam. A dvida sobre se e em que medida a TeologiaFeminista pertence ao quadro das teologias da libertao dos negros e dos pobresdo Terceiro Mundo, mesmo tendo surgido nas camadas mdias brancas dassociedades norte-americana e europeia, encontra resposta na clareza da propostateolgica. Todavia h diferenas, no s religiosas, mas tambm culturais, que le-varam as mulheres negras a chamarem sua teologia de Womanist Theology e aslatino-americanas de Teologa Mujerista.

    Assume as acusaes contra o patriarcado e suas consequncias para asociedade, bem como na Bblia, surpreendendo com informaes como aresposta dada por Karl Barth em 1934 a Henriette Vissert Hooft:

    Que a Bblia como um todo no pressupe o matriarcado, mas o patriarcadocomo ordem terreno-temporal das relaes entre homem e mulher e que essefato deveria ser aceito como disposto por Deus, assim como o fato de que opovo eleito, ao qual tambm Cristo pertencia, definitivamente no foi o doscartagineses ou espartanos, mas do povo de Israel16,

    lembrando Bonhoeffer ao observar que por sorte Barth no estendeu essepositivismo da revelao ao instituto da escravido. E, por ltimo, a noo docolo da me como trono do homem regente nos smbolos religiosos e outrasimagens do patriarcado, observando que vnculos no rompidos com a mee humilhaes causadas mulher andam juntos, indicando a ambos o fim docuidado maternal e da dominao para os homens se tornarem livres e vi-verem plenamente (MOLTMANN-WENDEL; MOLTMANN, 1991).

    16 MOLTMANN, 2004: 236.

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