78313688 jovens pobres o mito da periculosidade

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 1 Profª É rika Piedade Do Livro Embora reconhecendo não ser possível cunhar uma definição única de  juventude, por não se tratar de natureza única, os textos desta coletânea conservam certa homogeneidade temática: a dos males que afligem os jovens pobres brasileiros. As questões do desemprego, preconceito racial, exploração sexual, mortes por causas externas, evasão escolar, envolvimento com uso e venda de drogas, violência policial, gravidez na adolescência, Aids, medidas judiciais severas etc., vão desenrolando diante de nossos olhos heranças e desdobramentos do nosso passado colonial-escravagista que insiste em não ter fim e que parecem nesses tempos globalizados e neoliberais. Dos centros urbanos como São Paulo, Curitiba e For tal eza, das fav elas cariocas ao ser tão nordestino, uma constatação: a produção incessante de necessidades de consumo que afetam jovens sem condição material para satisfazê-las. Verifica-se também a prática de atribuir ao jovem pobre características ne ga tiv as e es tig matizadoras como as de infra to r, delin en te, pe ri go so, ma rg inal, deficiente, pre gui çoso etc., ger ando frustr açõ es, ansiedade, des esp erança e revolta. Recusar esses traços como pertencentes a uma natureza humana diminuída ou inferior significa também reconhecer, nas práticas sociais, a formação de um campo de experiência em que os processos de subjetivação e objetivação têm lugar. Significa, ainda, reconhecer o papel que trabalhadores sociais, legisladores, técnicos, gestores de todos os tipos e pesquisadores desempenham nesse campo de poder-saber, questionando a sua condição de especialista. Como profissionais implicados e imbricados nessas objetivações/subjetivações, companheiros na luta dos jovens por melhores condições de vida, por dignidade e pelo exercício do direito à diferença, cabe a nós, como apontam os autores dessa coletânea e como ensina Michel Foucault, além do exercício crítico de desnaturalização de categorias supostamente neutras e científicas, problematizar as propostas que são oferecidas aos  jovens, recusando aquelas que intentam reconduzi-los para dentro de si mesmos e que rompam com a vida comunitária, tornando frágeis os laços de muita solidariedade. Esther Maria de Magalhães Arantes (Profa. da PUC-Rio e da UERJ). ''

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jovens Pobres o Mito Da Periculosidade

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  • 1Prof rika Piedade

    Do Livro Embora reconhecendo no ser possvel cunhar uma definio nica de juventude, por no se tratar de natureza nica, os textos desta coletnea conservam certa

    homogeneidade temtica: a dos males que afligem os jovens pobres brasileiros. As questes

    do desemprego, preconceito racial, explorao sexual, mortes por causas externas, evaso

    escolar, envolvimento com uso e venda de drogas, violncia policial, gravidez na adolescncia,

    Aids, medidas judiciais severas etc., vo desenrolando diante de nossos olhos heranas e

    desdobramentos do nosso passado colonial-escravagista que insiste em no ter fim e que

    parecem nesses tempos globalizados e neoliberais. Dos centros urbanos como So Paulo,

    Curitiba e Fortaleza, das favelas cariocas ao serto nordestino, uma constatao: a

    produo incessante de necessidades de consumo que afetam jovens sem condio material

    para satisfaz-las. Verifica-se tambm a prtica de atribuir ao jovem pobre caractersticas

    negativas e estigmatizadoras como as de infrator, delinqente, perigoso, marginal,

    deficiente, preguioso etc., gerando frustraes, ansiedade, desesperana e revolta.

    Recusar esses traos como pertencentes a uma natureza humana diminuda ou inferior

    significa tambm reconhecer, nas prticas sociais, a formao de um campo de experincia

    em que os processos de subjetivao e objetivao tm lugar. Significa, ainda, reconhecer o

    papel que trabalhadores sociais, legisladores, tcnicos, gestores de todos os tipos e

    pesquisadores desempenham nesse campo de poder-saber, questionando a sua condio de

    especialista. Como profissionais implicados e imbricados nessas objetivaes/subjetivaes,

    companheiros na luta dos jovens por melhores condies de vida, por dignidade e pelo

    exerccio do direito diferena, cabe a ns, como apontam os autores dessa coletnea e

    como ensina Michel Foucault, alm do exerccio crtico de desnaturalizao de categorias

    supostamente neutras e cientficas, problematizar as propostas que so oferecidas aos

    jovens, recusando aquelas que intentam reconduzi-los para dentro de si mesmos e que

    rompam com a vida comunitria, tornando frgeis os laos de muita solidariedade. Esther

    Maria de Magalhes Arantes (Profa. da PUC-Rio e da UERJ). ''

  • 2Coimbra, Ceclia & Nascimento, Maria Lvia. Jovens

    Pobres: o mito da periculosidade; in Fraga, Paulo &

    Iulianelli, Jorge. Jovens em tempo real. Rio de Janeiro:

    DP&A, 2003.

  • 3JOVENS POBRES: O MITO DA PERICULOSIDADE

    Ceclia M. B.Coimbra* Maria Lvia doNascimento**

    Este captulo visa colocar em anlise diferentes caractersticas que tm sido

    freqentemente atribudos juventude, consideradas como se fizessem parte de sua

    natureza, de modo que acabaram por se tornar inquestionveis. Para tanto,

    apontaremos algumas produes ocorridas durante o sculo XX que tm caracterizado

    o jovem pobre como perigoso e mesmo como inumano. A seguir discutiremos alguns

    efeitos forjados hoje em nosso mundo globalizado pelas prticas que tm associado

    periculosidade, criminalidade e a condio de no-humanidade situao de pobreza.

    Alguns desses efeitos podem ser expressos, por exemplo, pelos extermnios ocorridos

    cotidianamente contra a juventude pobre, pelo significativo aumento de jovens

    cumprindo medidas de recluso, entre outros aspectos que sero aqui assinalados.

    Finalizaremos citando uma pesquisa que realizamos por meio de levantamentos feitos

    em processos vinculados ao antigo Juizado de Menores, hoje Juizado da Infncia e da

    Juventude, na qual percebemos como os diferentes profissionais prticas presentes

    nesse estabelecimento tm muitas vezes fortalecido com suas um determinado modo

    de ser e de existir para aqueles que procuram esse rgo. Majoritariamente, na

    sociedade capitalista, o jovem tem sido enquadrado na categoria de ser em formao,

    em crescimento, em desenvolvimento. Tal perodo da vida, considerado de transio,

    carrega certas marcas que tm sido afirmadas como elementos de sua natureza.

    Algumas prticas, baseadas nos conhecimentos hegemnicos da Medicina e da Biologia

    * Historiadora, psicloga, doutora pela USP, professora da UFF, ligada Ps-Graduao de Psicologia e ao Programa de Interveno Voltado s Engrenagens e Territrios de Excluso Social (Pivetes). Foi fundadora e vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais/R]. * * Psicloga, doutora pela PUC-SP, professora do Departamento de Psicologia da UFF, atuando no

    Mestrado Estudos da Subjetividade e no Laboratrio de Subjetividade e Poltica (LASP).

    entre outros, tm afirmado, por exemplo, que determinadas mudanas hormonais,

  • 4glandulares e fsicas, tpicas dessa fase, so responsveis por certas caractersticas

    psicolgico-existenciais prprias da juventude. Descrevem, assim, as diferentes

    formas de estar no mundo como manifestaes dessas caractersticas, percebidas

    como essncia da sua condio. Dessa maneira, "qualidades" e "defeitos" considerados

    tpicos do jovem, como entusiasmo, vigor, impulsividade, rebeldia, agressividade,

    alegria, introspeco, timidez, passam a ser sinnimos de uma natureza jovial.

    Por que tal forma de caracterizar a juventude tem sido aplicada apenas a alguns

    segmentos sociais? Por que o jovem pobre encontra-se excludo desse quadro? Que

    outras articulaes foram sendo produzidas e fortalecidas, ao longo do sculo XX, para

    a juventude pobre?

    PRODUZINDO DISPOSITIVOS QUE UNEM POBREZA E PERICULOSIDADE

    Foucault (1986) assinalou que, a partir da emergncia do capitalismo industrial e do

    que chamou "sociedade disciplinar", as elites passaram a preocupar-se no somente

    com as infraes cometidas pelo sujeito, mas tambm com aquelas que poderiam vir a

    acontecer. Assim, o controle no recaa somente sobre o que se era, mas tambm sobre

    o que se poderia vir a ser, sobre as virtualidades.

    Em nosso pas, que sofre uma herana de mais de trezentos anos de escravido, o

    controle das virtualidades exercer um papel fundamental na constituio de nossas

    subjetividades sobre a pobreza.

    Para tanto, muito contriburam algumas teorias - como as racistas e eugnicas -,

    que emergiram no sculo XIX, na Europa, condenando as misturas raciais e as

    caracterizando como indesejveis, produtoras de enfermidades, de doenas fsicas e

    morais (imbecilidades, idiotias, deficincias em geral, indolncia, entre outras).

    interessante notarmos que, nesse mesmo perodo, ocorrem, tambm na Europa,

    1 Algumas anlises apresentadas neste item podem ser encontradas em Coimbra (2001).

    movimentos que propugnam e influenciam as propostas de abolio da escravatura

    negra nas Amricas. Ou seja: ao mesmo tempo em que desponta a figura do

  • 5trabalhador livre - segundo os interesses econmicos vinculados ao capitalismo liberal

    da poca -, produz-se uma essncia para esse mesmo trabalhador. Definindo-se formas

    consideradas corretas e verdadeiras de ser e de existir, forjam-se subjetividades

    sobre a pobreza; diz-se o que ela .

    Segundo a lgica do capitalismo liberal, os trabalhadores livres tm liberdade para

    oferecer e vender sua fora de trabalho no mercado, desde que se mantenham no seu

    devido lugar, desde que respeitem as regras impostas por uma sociedade de classes. A

    partir de princpios defendidos por uma elite que ascende ao poder, essa sociedade

    estende para todos, como ditames universais, as suas palavras de ordem: liberdade,

    igualdade e fraternidade.

    Entendemos - assim como apontou Marx - que a formao da riqueza, a acumulao

    do capital, produz, tambm, o seu contrrio: a misria. Pela tica e "tica" do

    capitalismo, a misria passa a ser naturalmente percebida como advinda da ociosidade,

    da indolncia e dos vcios inerentes aos pobres. Esses princpios burgueses, portanto,

    no podem ser estendidos a todos e caracterizados como universais, pois, numa

    sociedade onde a liberdade uma quimera, a desigualdade e a competitividade so as

    regras do bom-viver, e uma existncia livre, igualitria e fraterna no tem lugar.

    Ainda no sculo XIX, na Europa, pari passu s teorias racistas e ao movimento

    eugnico, servindo-lhes de base, temos a obra de Morel, o Tratado das

    degenerescncias, em que aparece o termo "classes perigosas, definido da seguinte

    maneira:

    No seio dessa sociedade to civilizada existem "verdadeiras variedades" (...) que no possuem nem a

    inteligncia do dever, nem o sentimento da moralidade dos atos, e cujo esprito no suscetvel de

    ser esclarecido ou mesmo consolado por qualquer idia de ordem religiosa. Qualquer uma destas

    variedades foi designada sob o justo ttulo de classes perigosas (...) constituindo para a sociedade

    um estado de perigo permanente (ap. LOBO, 1997, p. 55).

    Vrios outros autores tentaram contribuir na busca de bases cientficas para essas

  • 6teorias. J desde o incio do sculo XIX, popularizava-se entre os cientistas a

    antropometria, medio de ossos, crnios e crebros que, por meio de comparaes,

    pretendia comprovar a inferioridade de determinados segmentos sociais. Ficaram

    famosas, inclusive entre os educadores da poca, as teses de Paul Broca (1824-1880) e

    Cesare Lombroso (1835-1909). Este ltimo, com sua Antropologia Criminal, defendeu

    ser possvel distinguir, por intermdio de certas caractersticas anatmicas, os

    criminosos natos e os perigosos sociais. A teoria das disposies inatas para a

    criminalidade, defendida por Lombroso, ainda tem muitos defensores entre ns

    (WALDHELM, 1998). Durante o perodo da ditadura militar em nosso pas, em 1974,

    por exemplo, em duas cidades-satlite de Braslia, Ceilndia e Taguatinga, por "ordens

    superiores", em duas pr-escolas pblicas, crianas - em sua maioria filhos de

    imigrantes nordestinos - foram colocadas em fila para terem seus crnios e faces

    medidos. Posteriormente, os dados foram enviados direo, e professores dos

    referidos estabelecimentos elaboraram laudos que descreviam as caractersticas

    emocionais e intelectuais dessas crianas.

    Afora tais "devaneios cientificistas", temos definies mais grosseiras que,

    cotidianamente, afirmam a existncia de "bandidos de nascena, os que j nasceram

    para o crime e vo pratic-lo de qualquer maneira" (BENEVIDES, 1983, p. 56). Para o

    delegado paulista Srgio Paranhos Fleury - conhecido por sua participao em torturas

    a presos polticos durante a ditadura - "bandido era visto como um fenmeno da

    natureza". Dizia ele:

    Voc cria cachorro? Numa ninhada de cachorro vai ter sempre o cachorrinho que mau-carter,

    que briguento e vai ter outro que se porta bem. O marginal aquele cachorrinho que mau-

    carter, indisciplinado, que no adianta educar (ap. BENEVIDES,1983, p. 57).

    Essas teorias racistas e eugnicas foram realimentadas pela obra de Charles

    Darwin A origem das espcies. Conceitos como prole mals, herana degenerativa,

    inferiorizao da prole, procriao defeituosa, raa pura, embranquecimento,

    aperfeioamento da espcie humana, purificao" so comuns em tratados de

  • 7Medicina, Psiquiatria, Antropologia e Direito do final do sculo XIX e do incio do

    sculo XX que apregoam, seguindo o modelo da eugenia, a esterilizao dos chamados

    degenerados como profilaxia para os males sociais.

    Renato Kehl, mdico ligado ao movimento eugnico no Brasil, no incio

    do sculo XX, defende a esterilizao

    dos parasitas, indigentes, criminosos, doentes que nada fazem, que vegetam nas prises, hospitais,

    asilos; dos que perambulam pelas ruas vivendo da caridade pblica, dos amorais, dos loucos que

    enchem os hospitais; da mole de gente absolutamente intil que vive do jogo, do vcio, da

    libertinagem, do roubo e das trapaas (...) (ap. LOBO, 1997, p.147-148).

    Ou seja, deve ser esterilizada toda a populao pobre brasileira que no esteja

    inserida no mercado de trabalho capitalista, todos aqueles que no so corpos teis e

    dceis para a produo.

    Coroando e seguindo as pegadas de todas essas teorias, encontramos, no Brasil,

    ainda no mesmo perodo, o movimento higienista que, extrapolando o meio mdico,

    penetra em toda a sociedade brasileira, aliando-se a especialistas como pedagogos,

    arquitetos, urbanistas e juristas. Tal movimento, formado por muitos psiquiatras da

    elite brasileira e expoentes da cincia poca, como Franco da Rocha, Nina Ribeiro,

    Silvio Romero e Henrique Roxo, atingiu seu apogeu nos anos 1920, quando foi criada por

    Gustavo Riedel a Liga Brasileira de Higiene Mental. Suas bases esto nas teorias

    racistas, no darwinismo social e na eugenia, pregando tambm o aperfeioamento da

    raa e se colocando abertamente contra negros e mestios, a maior parte da populao

    pobre brasileira.

    Esta elite cientfica estava convencida de sua "misso patritica" na construo de

    uma "nao moderna': Suas propostas pautavam-se por medidas que deveriam promover

    o saneamento moral" do pas. A "degradao moral" era especialmente associada

    pobreza e percebida como uma epidemia que se deveria tentar evitar. Para erigir uma

  • 8nao, os higienistas afirmavam que toda a sociedade deveria participar dessa

    "cruzada saneadora e civilizatria" contra o mal que se alojava no seio da pobreza.

    Esse movimento imiscuiu-se nos mais diferentes setores da sociedade, redefinindo

    os papis que deveriam desempenhar em um regime capitalista a famlia, a criana, a

    mulher, a cidade, as elites e os segmentos pobres.

    A Medicina passou a ordenar o modelo ideal de famlia nuclear burguesa.

    Detentores da cincia, os mdicos tomaram para si a tutela das famlias, indicando e

    orientando como todos deveriam comportar-se, morar, comer, dormir, trabalhar, viver

    e morrer.

    O higienismo, aliado aos ideais eugnicos e teoria da degenerescncia de Morel,

    concebia que os vcios e as virtudes eram, em grande parte, originrios dos

    ascendentes. Afirmava-se que as pessoas advindas de "boas famlias" teriam

    naturalmente pendores para a virtude. Ao contrrio, as que traziam "m herana" -

    leia-se "os pobres -, seriam portadoras de degenerescncias. Dessa forma,

    justificava-se uma srie de medidas contra a pobreza, percebida e tratada como

    possuidora de uma "moral duvidosa que se transmitia hereditariamente. Rizzini (1997)

    discute o critrio de distino entre as categorias "pobres dignos" e "pobres viciosos,

    segundo uma escala de moralidade, e afirma que para cada uma seria utilizadas

    estratgias diferentes.

    Aos "pobres dignos", que trabalhavam, mantinham a "famlia unida" e "observavam

    os costumes religiosos", era necessrio que lhes fossem fortalecidos os valores morais,

    pois pertenciam a uma classe "mais vulnervel aos vcios e s doenas". Seus filhos

    deveriam ser afastados dos ambientes perniciosos, como as ruas.

    Os pobres considerados "viciosos", por sua vez, por no pertencerem ao mundo do

    trabalho - uma das mais nobres virtudes enaltecidas pelo capitalismo - e viverem no

    cio, eram portadores de delinqncia, libertinos, maus pais e vadios. Representavam

    um "perigo social" que deveria ser erradicado; da a necessidade de medidas

    coercitivas tambm para essa parcela da populao, considerada de criminosos em

    potencial. Assim, embora a parcela dos "ociosos" fosse a mais visada por seu "potencial

    destruidor e contaminador", a periculosidade tambm estava presente entre os

  • 9"pobres dignos", pois por sua natureza - a pobreza - tambm corriam os riscos das

    doenas.

    A partir desse mapeamento dos pobres, surgia uma grande preocupao com a

    infncia e a juventude que, num futuro prximo, poderiam compor as "classes

    perigosas": crianas e jovens "em perigo', que deveriam ter suas virtualidades sob

    controle permanente.

    Todas essas teorias estabelecem/fortalecem a relao entre

    vadiagem/ociosidade/indolncia e pobreza, bem como entre pobreza e

    periculosidade/violncia/criminalidade. Mesmo autores mais crticos, ao longo dos anos,

    tm cado na armadilha de mecanicamente vincular pobreza e violncia, a partir de

    estudos baseados nas condies estruturais da diviso da sociedade em classes sociais

    e no antagonismo e na violncia resultantes dessa diviso.

    No por acaso que, da aliana entre mdicos e juristas da poca, surge, em 1927,

    a primeira lei brasileira especfica para a infncia e adolescncia, o primeiro Cdigo de

    Menores. Data da a utilizao do termo "menor", aplicado no para designar menores

    de idade de quaisquer classes sociais, mas apenas para diferenciar um determinado

    segmento: o pobre. Essa marca, presente nas subjetividades do brasileiro, impe-se

    at hoje, mesmo quando, em 1990, o Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA)

    retira o conceito de "menor" de seu texto legal. Infncia e juventude, crianas e

    adolescentes so as designaes utilizadas em substituio categoria "menor.

    Essa produo de infncias e juventudes desiguais tem se expressado, ao longo de

    todo o sculo XX, atravs da reiterada prtica de internao das crianas e jovens

    pobres, em especial aps o advento do Juizado de Menores, em 1923, criado para

    solucionar o problema da "infncia e juventude desassistidas. Tal poltica de

    internao se fortaleceu, sobretudo, nos dois perodos ditatoriais brasileiros, com a

    criao de rgos como o Servio de Assistncia ao Menor (SAM), implantado em 1941

    durante o Estado Novo, e a Fundao Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem), que

    surgiu em 1964 durante o perodo da ditadura militar. poca da vigncia dos Cdigos

    de Menores, esses estabelecimentos eram denominados "depsitos e se diziam

    destinados ao "regime educativo", com a finalidade de "preveno ou preservao". Em

  • 10realidade, eram locais onde crianas e jovens pobres sofriam toda sorte de maus-

    tratos. Se trouxermos essa anlise para o presente, mesmo aps o ECA, podemos dizer

    que a prtica da violncia nos internatos no uma caracterstica do passado.

    Hoje, em pleno sculo XXI, tal situao de excluso pouco mudou e o que vemos

    nesses estabelecimentos um quadro de superlotao, de falta de equipamentos de

    educao, de torturas e de violaes cotidianas. Tais circunstncias, j muitas vezes

    denunciadas por entidades de direitos humanos, aparecem quase que diariamente nas

    manchetes dos jornais. Em uma dessas reportagens, lemos:

    As duas principais regras que os adolescentes da Unidade de Acolhimento Inicial da Febem, a "porta

    de entrada da instituio, tm de obedecer so: no falar e no se mexer. Eles passam o dia

    sentados. Em razo da superlotao recorde desta semana, surgiu uma nova regra: os garotos tm

    que "dormir de lado" para que trs usem o mesmo colcho (Folha deS.Paulo, 1 set. 2001, C8).

    Voltando ao sculo XX e vigncia dos Cdigos de Menores, percebemos nessa

    poca uma visvel preocupao com a disciplina das crianas pobres, com a necessidade

    de colocar em ordem os "desviados" ou aqueles que poderiam vir a s-lo. Para eles, o

    espao jurdico prev a reeducao, a internao e a preparao para o trabalho. No

    conjunto dessas medidas, chamadas de proteo, o Estado vai construindo um modelo

    do que diz ser assistncia pobreza. Assim,

    sob gide do juiz, os menores no eram "julgados", mas "tutelados"; no eram "condenados", mas sim

    "protegidos" e no eram "presos", mas "internados': Visando assegurar sua assistncia e proteo, o

    juiz os encaminhava aos estabelecimentos ( ... ) onde deveriam ficar internados pelo tempo por ele

    determinado. A internao nestes estabelecimentos, mais que a educao e recuperao dos

    menores, privava-os da liberdade, afastando-os do convvio das ruas, encaradas como espao

    pernicioso. (...) Outra preocupao que se fazia presente naquela poca, e que se verifica at os dias

    de hoje, era a tendncia de se oferecerem ofcios profissionalizantes em oficinas, que preparam

    para o trabalho, mas em funes socialmente desvalorizadas e de baixa remunerao (...) (BULCO,

    2001, p. 60)

    Em nosso pas, desde o incio do sculo XX, diferentes dispositivos sociais vm

  • 11produzindo subjetividades onde o "emprego fixo" e uma "famlia organizada" tornam-se

    padres de reconhecimento, aceitao, legitimao social e direito vida. Ao fugir a

    esses territrios modelares, entra-se para a enorme legio dos "perigosos, daqueles

    que so olhados com desconfiana e, no mnimo, evitados e afastados, quando no

    enclausurados e exterminados.

    Se no capitalismo liberal os jovens pobres foram recolhidos em espaos fechados

    para serem disciplinados e normatizados na expectativa de que fossem transformados

    em cidados honestos, trabalhadores exemplares e bons pais de famlia, hoje no

    neoliberalismo eles no so mais necessrios ao mercado, tornaram-se suprfluos, suas

    vidas de nada valem - da justificar-se o extermnio.

    Importa assinalar que, com o neoliberalismo, vem se implantando um modelo de

    sociedade chamado por alguns de "sociedade de acumulao flexvel de capital"

    (HARVEY, 1993), ou "sociedade do espetculo" (DEBORD, 1997) e mesmo de

    "sociedade de controle (DELEUZE, 1992), que vem se mesclando com o que

    Foucault(1986) denominou "sociedade disciplinar". De modo geral, essa "nova era"

    caracteriza-se, em especial, na Europa, aps a Segunda Guerra Mundial, pelas

    diferentes formas de controle ao ar livre que vm substituindo as antigas disciplinas

    que operavam em sistemas fechados como famlia, escola, fbrica, hospital e priso.

    Agora, na chamada ps-modernidade, o marketing, os meios de comunicao de massa

    passaram a ser os principais instrumentos de controle social, especialmente atravs

    da produo de modos de ser, viver e existir. Esse controle "de curto prazo e de

    rotao rpida, mas tambm contnuo e ilimitado, ao passo que a disciplina era de

    longa durao, infinita e descontnua" (DELEUZE, 1992, p. 220).

    Sobretudo nos pases perifricos, como o Brasil, essas duas formas de

    funcionamento social coexistem. Para a pobreza parece haver um caminho j delineado;

    no por acaso que se verifica o alto ndice de jovens pobres exterminados, "pretos e

    pardos, situando-se entre 18 e 29 anos, semi-alfabetizados e moradores de periferia"

    (SOARES, 1996, p. 232). Para os que conseguem sobreviver, esto previstos

    diferentes tipos de enclausuramento. Muitos jovens pobres maiores de 18 anos esto

    confinados nas prises. H tambm inmeros casos de "privao de liberdade", aplicada

  • 12aos que contam entre 12 e 18 anos de idade. J para as crianas pobres, menores de 12

    anos, restam os abrigos.

    Em nosso pas, a partir de meados dos anos 1980, com a gradativa implantao de

    medidas neoliberais - onde a nova ordem mundial comea a aparecer com seus

    corolrios de globalizao do mercado, Estado mnimo, flexibilizao do trabalho,

    desestatizao da economia, competitividade, livre comrcio e privatizao, assistimos

    a uma veemente produo de insegurana, medo, pnico articulados ao crescimento do

    desemprego, da excluso, da pobreza e da misria. - Nesse quadro terrvel, os jovens

    pobres, quando escapam do extermnio, so os "excludos por excelncia", pois sequer

    conseguem chegar ao mercado de trabalho formal. Sua atuao em redes ilegais como

    o circuito do narcotrfico, do crime organizado, dos seqestros, entre outros, vem

    sendo tecida como nica forma de sobrevivncia, e se prolifera, cada vez mais, como

    prtica de trabalho, medida que aumenta a apartao social.

    Para esses "jovens destinados de antemo a esse problema, fundidos com ele, o desastre sem

    sada e sem limites (...) Marginais pela sua condio, geograficamente definidos antes mesmo de

    nascer, reprovados de imediato, eles so os "excludos" por excelncia (...) Por acaso eles no moram

    naqueles lugares concebidos para se transformar em guetos? Guetos de trabalhadores, antigamente.

    Dos sem-trabalho, dos sem-projeto, hoje (...) Que podem eles esperar do futuro? Como ser a sua

    velhice, se chegarem at l? (...) Bloqueados numa segregao (...) eles tm a indecncia de no se

    integrar (FORRESTER, 1997, p. 57-58).

    A excluso e a alienao dos jovens pobres, pelo envolvimento com a ilegalidade,

    tm produzido fortes marcas em suas existncias: os que conseguem sobreviver aos

    extermnios, certamente no escapam do recolhimento em internatos e prises.

    Atualmente, a maioria da populao carcerria dos presdios brasileiros jovem. De

    acordo com dados do Ministrio da Justia, estima-se

    que os presos de 18 a 25 anos so cerca de 60% do total de presidirios (...) Somados aos

    adolescentes internados em instituies de correo (como a Febem) ou submetidos a outras

    punies previstas no Estatuto da Criana e do Adolescente, o contingente de jovens infratores no

    pas chega a 143 mil pessoas (O Globo, 2 set. 2001, p. 3).

  • 13

    Trabalhadores do social: fortalecendo e rompendo modelos

    Desde 1995, um grupo de professores e alunos da graduao de Psicologia e

    tcnicos do Servio de Psicologia Aplicada da Universidade Federal Fluminense vem

    desenvolvendo um trabalho de pesquisa e extenso denominado, provocativamente,

    Pivetes (Programa de Interveno Voltado s Engrenagens e Territrios de Excluso

    Social).2 Nesse programa, atravs de pesquisas no arquivo de processos do antigo

    Juizado de Menores, atual Juizado da Infncia e da Juventude, tem sido submetida a

    uma anlise a atuao de alguns profissionais que, ao longo do sculo XX,

    acompanharam crianas, jovens e famlias que buscaram atendimento junto a esse

    estabelecimento.

    Trabalhamos com trs pesquisas, a partir de trs momentos da histria da

    legislao brasileira para a infncia e adolescncia. Em todas elas o foco de anlise tem

    sido o de discutir algumas prticas/discursos de especialistas da rea que tm, de um

    modo geral, fortalecido os modelos dominantes de criana, jovem e famlia, produzindo

    muitas vezes a excluso daqueles que neles no se enquadram.

    Os perodos de estudo foram pesquisados concomitantemente. O primeiro (1936 a

    1945) buscou pensar os efeitos do Cdigo de Menores de 1927 num contexto de

    hegemonia do movimento higienista no Brasil e a atuao de um de seus principais

    agentes: o comissrio de vigilncia. O segundo (1974 a 1983) percorreu o perodo da

    ditadura militar no Brasil, a promulgao da Lei de 1979 sobre o "menor" e a prtica

    do assistente social junto ao Juizado. O terceiro (1985 a 1994) discutiu os novos

    movimentos sociais no Brasil, a promulgao do Estatuto da Criana e do Adolescente

    (ECA) em 1990, e a atuao do psiclogo nas prticas do Juizado.

    2 Sobre o assunto, consultar Nascimento (2002).

  • 14A primeira apontou que o comissrio de vigilncia exercia, no perodo estudado

    (1936-1945), atuao relevante junto ao Juizado. Marcado pelas teorias higienistas,

    racistas e eugnicas, e por prticas moralizadoras, influa diretamente nos destinos

    das famlias pobres ao diagnosticar os determinantes da ocorrncia da doena, da

    misria, do abandono e da criminalidade que atingiam o chamado "menor".

    Esse diagnstico definia com quem a criana deveria ficar, se o ptrio poder

    deveria ser retirado, se a criana deveria ficar internada e sob a guarda do Estado. O

    comissrio de vigilncia citado nos processos como um profissional incumbido de

    encargos similares aos que o assistente social ou mesmo o psiclogo passaram a

    exercer no Juizado posteriormente. Cabia-lhe a tarefa de produzir laudos e pareceres

    e realizar visitas domiciliares para fundamentar as decises do juiz. Havia uma

    preocupao em relao aos aspectos mdicos e psicolgicos, bem como com a questo

    moral, atravs dos hbitos, da conduta, dos vcios e dos defeitos do "menor" em

    questo, sendo priorizada a investigao dos seus antecedentes morais e dos de suas

    famlias.

    A anlise do perodo seguinte (1974-1983) mostrou o assistente social atuando no

    s conforme o modelo higienista, que combinava a caridade, a filantropia e o

    cientificismo, mas tambm segundo prticas em que outras fisionomias" se faziam

    presentes. O modelo que propugnava a salvao do pas pela salvao da criana, j

    anteriormente utilizado pelo comissrio de vigilncia, assumia outro rosto" nos anos

    1960 e 1970, com a vigncia da Doutrina de Segurana Nacional e com o fortalecimento

    do tecnicismo. Insere-se a, perfeitamente, o surgimento do Servio Social no Brasil,

    na dcada de 1940, marcado pelo assistencialismo catlico, pelo cientificismo, mas

    tambm pela misso de erigir uma nao moderna. Esse modelo de salvao da criana

    , tambm, completamente incorporado pela ditadura militar que se instaura no Brasil

    nos anos 1960 e 1970.

    1 Sobre o assunto e a importncia da Escola Superior de Guerra (ESG) na elaborao dessa doutrina, consultar Coimbra (2000) e Bazilio (1985).

    A Doutrina de Segurana Nacional exerceu grande influncia e penetrou nos mais

  • 15variados espaos, destacando o combate ao "inimigo interno", que poderia colocar em

    perigo a segurana do regime. Esses "inimigos" no eram somente os que se opunham

    politicamente ao governo de fora instalado, no Brasil, com o golpe militar de 1964:

    eram tambm todos aqueles que no se ajustavam aos modelos, padres e normas

    vigentes - em especial, os pobres.

    Aliadas segurana do regime, ao aspecto filantrpico cientificista - predominante

    na prtica hegemnica do assistente social, temos algumas outras caractersticas,

    muito fortalecidas nos anos 1960 e 1970, que impingiam uma outra "fisionomia" s

    aes desenvolvidas por esse profissional no Juizado de Menores: o intimismo, o

    familiarismo - e o psicologismo. De um modo geral, essas caractersticas, discutidas

    por Coimbra (1995) ao analisar as prticas psi durante o perodo da ditadura militar,

    atravessavam o cotidiano do assistente social, um dos tcnicos mais atuantes do

    Juizado naquela poca.

    No que diz respeito pesquisa realizada no perodo de 1985 a 1994, foi constatado

    que, embora a atuao direta do psiclogo no se fizesse to presente nos processos

    estudados, o discurso p si encontra-se disseminado - como nos anos 1970 e 1980 - nas

    falas dos demais tcnicos que atuavam no Juizado, sobretudo nas palavras dos

    assistentes sociais. Entendemos por discurso p s i uma certa prtica, ainda hoje

    hegemnica, que reduz a subjetividade a uma dimenso psicolgica interiorizada,

    isolando-a de um contexto mais amplo.

    Observamos que o psiclogo tem sido sempre chamado a atuar nos casos

    considerados mais difceis, em especial classificados como atos infracionais. Dessa

    maneira, a demanda endereada ao psiclogo solicita que ele exera a funo de um

    perito do individual, assumindo uma postura pretensamente neutra, desvendando

    "mistrios", "desejos" e "verdades" do sujeito.

    No espao jurdico, a prtica psicolgica - enquanto tcnica de exame,

    procedimento que resgata cientificamente o inqurito na produo de uma verdade -,

    pela atuao do psiclogo ou do discurso psi, acaba por conferir uma "essncia" s

    formas alternativas de convivncia familiar, pois desloca o foco de questes sociais

    para aspectos puramente individuais e psicolgico-existenciais.

  • 16At 1990, todos esses tcnicos tinham suas atuaes orientadas de acordo com o

    Cdigo de Menores de 1927 e em sua posterior reformulao, ocorrida em 1979.

    Pautadas no princpio da "situao irregular", essas duas legislaes seguiam uma

    lgica que colocava no terreno da imoralidade, da anormalidade e mesmo da patologia

    os modos de vida das famlias pobres, justificando assim a necessidade de o Estado

    tomar para si a tarefa de proteger crianas e jovens cujas famlias fossem

    classificadas de "irregulares". Os textos das duas leis defendiam a proposta de que

    existiam formas melhores e ideais consoante as quais deveriam os pobres educar,

    cuidar e proteger seus filhos. Ao longo de todo o sculo XX, justificavam-se assim as

    propostas de retirada do ptrio poder devido condio de pobreza, incentivavam-se

    as adoes de crianas pobres, internavam-se os abandonados, e se propagavam

    outras prticas de excluso. interessante notar que o princpio da "situao

    irregular" se constitui numa das principais bases desses cdigos, por influncia direta

    do higienismo, aliado s teorias racistas, eugnicas, da degenerescncia e da evoluo

    das espcies, que marcaram os momentos de promulgao dessas leis.

    O Estatuto da Criana e do Adolescente, nascido no Brasil no bojo dos novos

    movimentos sociais, afirma a criana e o jovem de qualquer segmento social como

    sujeito de direitos, preconizando a lgica da "proteo integral", retirando o princpio

    da "situao irregular", desfazendo a separao entre "menor" e criana, e recusando a

    prtica da internao como primeiro e principal recurso das medidas chamadas de

    assistncia infncia e adolescncia.

    Em seu artigo 3 afirma o Estatuto:

    A criana e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes

    pessoa humana (...) assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as

    oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento fsico,

    mental, moral, espiritual e social, em condies de liberdade e de dignidade.

    inegvel a importncia trazida pelo ECA no que se refere ao reordenamento

  • 17jurdico vinculado rea da infncia e da juventude e proteo dos direitos e

    garantias para esse segmento da populao. fundamental sua defesa no sentido de

    torn-lo uma realidade, pois mais de dez anos aps sua promulgao ainda so

    mantidas prticas menoristas e atos de violncia, de desrespeito e de abusos que

    fazem parte do cotidiano dos estabelecimentos responsveis pelas "medidas

    socioeducativas"4 preconizadas na nova legislao.

    O compromisso de considerar o jovem na condio de sujeito de direitos decorre

    de uma proposta de igualar juventudes at ento tidas como desiguais e mesmo

    possuidoras de essncias diferentes. Entretanto, tal lgica formulada a partir dos

    princpios cientficos que vm historicamente caracterizando o jovem dentro de um

    modelo dominante, que o qualifica como um ser em formao, em crescimento, em

    desenvolvimento.

    Nas palavras do prprio Estatuto, no artigo 6:

    Na interpretao desta Lei levar-se-o em conta os fins sociais a que ela se

    dirige (...) e a condio peculiar da criana e do adolescente como pessoas em

    desenvolvimento.

    Dessa forma, apesar do avano que o ECA acarreta para a poltica de proteo de

    crianas e jovens brasileiros, a lgica de igualar juventudes to desiguais em termos

    socioeconmicos, culturais e histricos integra-se aos princpios e modelos defendidos

    pelo liberalismo. Ou seja: uma tentativa de equiparar a valores burgueses modos de

    vida que continuam desiguais e que tendem a se tornar, no neoliberalismo, cada vez

    mais distantes entre si.

    Segundo o ECA, as medidas socioeducativas podem ser de diferentes tipos, a saber: advertncia, obrigao de reparar o dano, prestao de servios comunidade, liberdade assistida, regime de semiliberdade e privao de liberdade. As duas ltimas devem ser cumpridas em estabelecimento

  • 18prprio para adolescentes, em que se proponha oferecer educao escolar, profissionalizao e

    atividade pedaggica.

    Algumas concluses - a multiplicidade de um campo aberto

    Talvez outros caminhos possam ser trilhados se nos detivermos um pouco sobre a

    importncia e a funo que as prticas sociais tm em nosso mundo, como j foi

    assinalado por Foucault (1986). Opondo-se linha de pensamento, ainda hoje

    dominante no Ocidente, que entende objetos, saberes e sujeitos como dotados de uma

    essncia, uma natureza que lhes seria prpria, Foucault prope o inverso: so as

    prticas sociais que forjam os diferentes objetos; saberes e sujeitos que esto no

    mundo. Com isto, podemos avaliar como nossas prticas cotidianas, por menores e

    pouco visveis que se apresentem, constituem poderosos instrumentos de reproduo

    e/ou criao, produzindo os mais surpreendentes efeitos.

    As formaes profissionais em geral - no somente a psi - nos tm ensinado a

    caminhar sempre guiados por modelos que vo indicando o que devemos fazer e como

    devemos fazer. Entretanto, o para-qu, o objetivo do que fazemos, nunca

    mencionado. Ao contrrio, essas formaes nos fazem acreditar na neutralidade e

    objetividade de nossas atuaes. No percebemos como nossas prticas tm

    forjado/fortalecido, a todo momento, os modelos de bom cidado, bom pai, bom

    marido, bom filho, bom aluno etc., aceitos como universais e verdadeiros, calcados em

    formulaes cientficas.

    Por isso, entendemos ser importante a noo de anlise de nossas implicaes,

    ferramenta terico-metodolgica empregada pela anlise institucional francesa, que,

    em contraponto posio neutro-positivista, apresenta a figura do intelectual

    implicado, aquele que, alm de analisar seus pertencimentos e suas referncias

    institucionais, coloca tambm em debate o lugar de saber-poder que ocupa na diviso

    social do trabalho no mundo capitalista, analisando seu territrio no apenas no mbito

  • 19da interveno que est realizando, mas levando em conta as relaes sociais em geral,

    o seu cotidiano, a sua vida, em suma: o lugar que ocupa na histria. Como afirma Lourau

    (1977, p. 88):

    Estar implicado (realizar ou aceitar a anlise de minhas implicaes) , ao fim de

    tudo, admitir que eu sou objetivado por aquilo que pretendo objetivar: fenmenos,

    acontecimentos, grupos, idias etc. Com o saber cientfico anulo o saber das

    mulheres, das crianas, dos loucos - o saber social, cada vez mais reprimido como

    culpado e inferior.

    Segundo esse autor, trata-se de encontrar formas de analisar nossas implicaes

    para que, em cada situao, possamos nos situar nas relaes de classe, nas redes de

    poder, em vez de nos fixarmos, nos cristalizarmos em posies que chamamos

    cientficas.

    Se consideramos os objetos, sujeitos e saberes como produes histricas,

    datadas e advindas das prticas sociais; se aceitamos que os especialismos tcnico-

    cientficos que fortalecem a diviso social do trabalho no mundo capitalista cumprem,

    entre outras funes, a de produzir verdades reputadas absolutas e universais e a

    desqualificao de muitos outros saberes que se encontram no mundo; se entendemos

    ser relevante em nossas prticas cotidianas a anlise de nossas implicaes,

    assinalando o que nos atravessa, nos constitui e nos produz, e o que constitumos e

    produzimos com mesmas prticas, poderemos pensar, inventar e criar outras formas

    de atuar, de ser profissional.

    Especialmente nesses tempos neoliberais - onde a globalizao e todos os seus

    corolrios, mais do que uma verso ao modo de produo capitalista atual, impem uma

    forma eficaz de definir modelos de ser, de estar e de existir num mundo dito flexvel

    e ps-moderno, fundado sobre graves desigualdades sociais -, o trabalho daqueles que

    atuam na rea da criana e da juventude pobres reveste-se de enorme importncia.

    necessrio entender que os discursos/aes do capital - muitas vezes microscpicos,

  • 20invisveis e apresentados como desinteressados e naturais - provocam poderosos

    efeitos: excluem, estigmatizam e tentam destruir a pobreza, notadamente sua

    juventude.

    Tem-se que estar atento e perceber que, apesar das polticas oficiais e oficiosas,

    irrompem ainda, nos segmentos subalternos, e em especial por ao de seus jovens,

    formas de resistncias e lutas. Eles teimam em continuar existindo, apesar de tudo;

    suas resistncias de flagram-se cotidianamente, sendo muitas vezes percebidas como

    fragmentadas, fora dos padres reconhecidamente organizados, e at mesmo como

    condutas anti-sociais, delituosas e, por isso, "perigosas".

    Por outro lado, muitos jovens atravs de diferente; aes vm afirmando outras

    formas de funcionamento e de organizao, que fogem s preestabelecidas. Essa

    juventude pobre e marginalizada cria e inventa outros mecanismos de sobrevivncia e

    luta, resistindo s excluses e destruies que vivenciam diariamente em seu cotidiano,

    e conseguindo, muitas vezes, escapar ao destino traado pela lgica do capital e

    entendida como inexorvel e imutvel.

    Santos (1996, p. 261-262) afirma que nos "territrios dos pobres", nas "zonas

    urbanas opacas", esto

    os espaos do aproximativo e da criatividade, opostos s zonas luminosas, espaos

    da exatido. Os espaos inorgnicos que so abertos, e os espaos regulares so

    fechados, racionalizados e racionalizadores. Por serem "diferentes", os pobres

    abrem um debate novo, indito, s vezes silencioso, s vezes ruidoso (...) assim

    que eles reavaliam a tecnoesfera e a psicoesfera, encontrando novos usos e

    finalidades para objetos e tcnicas e tambm novas articulaes prticas e novas

    normas, na vida social e afetiva (...) Essa busca de caminhos , tambm, viso

    iluminada do futuro e no apenas priso em um presente subalternizado pela lgica

    instrumental ou aprisionado num cotidiano vivido como preconceito.

    Sem pretender racionalmente fazer revolues, mudar o presente e preparar o

  • 21futuro, muitos desses movimentos de resistncia, sem dvida, produzem revolues

    moleculares, forjam mudanas micropolticas em seus atores e nos cenrios onde

    atuam, e apontam para novos caminhos, criaes, invenes. verdade que foram e

    continuam a ser ignorados pela histria oficial, pelos "ilustres" contistas e intelectuais,

    pelos meios de comunicao. Apesar desse competente apagamento oficial, vm

    ocorrendo vrias e diferentes experincias empreendidas por jovens em seus

    cotidianos, que configuram prticas de resistncia, expressas atravs da msica, de

    outras artes, de microorganizaes coletivas, de redes de solidariedade. O importante

    perceb-las, fortalec-las, e nos aliarmos a elas.

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