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95 8 Subjetividade contemporânea em uma sociedade biotecnológica de mercado Contemporary subjectivity on a market biotech society Ieda Tucherman 1 e Cecilia C. B. Cavalcanti 2 RESUMO Este artigo pretende analisar, através da observação, principalmente, das capas da Revista Veja, o sujeito empreendedor de si ou capital humano na sociedade de mercado determinada pelo processo de precificação da vida, pressupondo, ainda, que vivemos um século que denominamos de biotécnico. Nossa premissa é de que há uma valorização da retórica da autoajuda com o surgimento de campeões de venda de livros neste campo e um aumento considerado das matérias jornalísticas, além da conta- minação desta retórica em outras editorias de mídias informativas. Verificou-se, também, a presença da linguagem de autoajuda em outras editorias e, na década de 2000, identificamos o surgimento da figura do líder-coach, com dois perfis que nomeamos como o aconselhador e o treinador. PALAVRAS-CHAVE sociedade de mercado; autoajuda; biotécnica; coach. ABSTRACT This paper analyzes, mainly through observation of Veja magazine covers, the subject as entrepreneur of himself or as human capital in the market society determined by the pricing process of life, even assuming that we live what we call a biotech century. Our premise is that there is an appreciation of the rhetoric of self-help with the emergence of best-selling books in the field and a considered increase of newspaper articles, as well as contamination of this rhetoric in editorials of other Medias informative. In this case, analyzing the Veja Magazine, through its Digital Archive, we verified the presence of the language of self-help in the others editorials. In the 2000s, we identified the emergence of the figure of the leader-coach, with two profiles that we named as advisor and coach. KEYWORDS market society; self-help; biotech; coach. 1 Doutora em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ) e professora e pesquisadora do Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em Comunicação da Escola de Comunicação da UFRJ. E-mail: [email protected] 2 Doutora em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da UFRJ, bolsista de Pro-doc da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) no Grupo de pesquisas de Imaginário Tecnológico, Escola de Comunicação da UFRJ. E-mail: [email protected] DOI: 105327/Z1519-0617201500010009

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    8Subjetividade contempornea em uma sociedade biotecnolgica de mercado

    Contemporary subjectivity on a market biotech society

    Ieda Tucherman1 e Cecilia C. B. Cavalcanti2

    RESUMO Este artigo pretende analisar, atravs da observao, principalmente, das capas da Revista Veja, o sujeito empreendedor de si ou capital humano na sociedade de mercado determinada pelo processo de precificao da vida, pressupondo, ainda, que vivemos um sculo que denominamos de biotcnico. Nossa premissa de que h uma valorizao da retrica da autoajuda com o surgimento de campees de venda de livros neste campo e um aumento considerado das matrias jornalsticas, alm da conta-minao desta retrica em outras editorias de mdias informativas. Verificou-se, tambm, a presena da linguagem de autoajuda em outras editorias e, na dcada de 2000, identificamos o surgimento da figura do lder-coach, com dois perfis que nomeamos como o aconselhador e o treinador. PALAVRAS-CHAVE sociedade de mercado; autoajuda; biotcnica; coach.

    ABSTRACT This paper analyzes, mainly through observation of Veja magazine covers, the subject as entrepreneur of himself or as human capital in the market society determined by the pricing process of life, even assuming that we live what we call a biotech century. Our premise is that there is an appreciation of the rhetoric of self-help with the emergence of best-selling books in the field and a considered increase of newspaper articles, as well as contamination of this rhetoric in editorials of other Medias informative. In this case, analyzing the Veja Magazine, through its Digital Archive, we verified the presence of the language of self-help in the others editorials. In the 2000s, we identified the emergence of the figure of the leader-coach, with two profiles that we named as advisor and coach.KEYWORDS market society; self-help; biotech; coach.

    1 Doutora em Comunicao e Cultura pela Escola de Comunicao da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ) e professora e pesquisadora do Programa de Pesquisa e Ps-Graduao em Comunicao da Escola de Comunicao da UFRJ. E-mail: [email protected]

    2 Doutora em Comunicao e Cultura pela Escola de Comunicao da UFRJ, bolsista de Pro-doc da Fundao de Amparo Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) no Grupo de pesquisas de Imaginrio Tecnolgico, Escola de Comunicao da UFRJ. E-mail: [email protected]

    DOI: 105327/Z1519-0617201500010009

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    INTRODUO

    O nosso sculo pode ser pensado como biotcnico, uma curiosa conjuno de vida e tcnica, termos que em tempos anteriores funcionavam simbolicamente indicando campos separados do conhecimento e da prpria experincia humana. Isto o colocaria diante do contraste entre dois modelos: o que tem a ver com a poltica como biopoder e governabilidade, e o que nasce da tcnica. Afinal, h uma diferena radical entre ambos. Faz parte constitutiva da poltica a ideia da existncia indiscutvel de limites, seja entre eu e o outro, este ou aquele pas, a prpria natureza e a cul-tura. A noo de contrato social com sua relao de direitos e deveres explicita esta realidade e, mesmo que falemos em globalizao e na perda de fora das fronteiras, a administrao dos possveis continua sendo o princpio da governabilidade.

    Ao contrrio, a tcnica contempornea repousa sobre o princpio inverso de ausncia de limites. hoje o lugar onde se joga a relao entre o real e o possvel. No entanto, as condies foram alteradas: parecemos ter erradicado o impossvel, que aparece em novas con-dies temporais; ou seja, como ainda no possvel, ou, principalmente, como economicamente invivel.

    Como no podia deixar de ser, isto altera radical-mente nossa ideia de futuro e, por consequncia, nossa experincia de presente. Estamos nos refe-rindo a um dos princpios fundadores modernos: o da finitude radical, que atua nos nossos afetos mais vis-cerais, dentre os quais a angstia, cantada em prosa filosfica e msica psicanaltica como fundamental para a constituio da nossa construo subjetiva.

    Como j desenvolvemos em textos anteriores

    (TUCHERMAN; CAVALCANTI, 2013), as conquistas das biocincias afetaram diretamente a tal finitude, pelo menos no que tem a ver imediatamente com a morte; basta pensarmos em UTIs, CTIs, bancos de sangue, de smem, transplantes de rgos, etc.,

    para que esta fique sob suspeita. Ooutro lado da finitude est vinculado desproporo entre o que alcanam os nossos sentidos, to rigorosamente limitados, em relao ao universo infinito. Nossas prteses biotcnicas ou nossos dispositivos de visibilidade resolveram esta questo: no universo da simulao, estes princpios no afetam a pos-sibilidade de produzir conhecimento e, principal-mente, a de alterar a materialidade deste mundo infinito. Ou seja, os limites que definiam a finitude humana foram, em parte, ou totalmente transpos-tos ou, ento, deles conseguimos nos desviar na associao entre crebro e silcio, carne e tcnica.

    No entanto, este desenho precariamente esbo-ado implica em vrias consideraes que busca-remos apontar neste texto. Ao as apresentarmos, podemos mencionar que perigoso concentrar poderes de escolha e/ou deciso em tcnicos e administradores, por especificidade de seu prprio campo profissional; os termos que lhes so familiares falam de recursos, sejam estes tcnicos, humanos, ou materiais. Uma vez dependendo do projeto ou da agenda, so intercambiveis, no havendo obriga-toriamente prevalncia de um gnero sobre outro1.

    O segundo risco associa, como explicita Sloterdijk (2010), que o parentesco entre cincia e capital pe em jogo no apenas o domnio que o capital atra-vs de suas maquinarias e do mundo financeiro exerceu sobre os homens. Est em jogo, tambm, a hegemonia do saber dominante, a racionalidade cognitivo experimental (que forneceu tcnica os instrumentos para escravizao de tudo o que

    1 Verificamos esta configurao nas atuais discusses sobre o futuro da educao; h vrios experts que acham que investir na sua melhoria abastecer de computa-dores e tablets as escolas, considerando muito pouco a necessidade de valorizar e preparar o universo dos professores. Vivam as mquinas!!!

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    existe). Esta afirmao concorda e sustenta a que abriu o nosso texto: o mundo biotcnico regulado por outra relao e, principalmente, por outra sen-sibilidade, da qual no conhecemos totalmente nem os propsitos nem as consequncias.

    Um terceiro fator completa o quadro conceitual: a nova noo de sociedade de mercado que des-creve um momento onde a biopoltica encontra a ver-tente mais mercadolgica da sua existncia, quando assistimos, incrdulos, ao incio de um processo do que poderamos chamar de precificao da vida.

    Capital humano compreensvel que, para o universo biotec-

    nolgico, pensado em termos de sua lgica tcni-co-administrativa, a noo de recursos humanos (simultneos aos recursos tcnicos e materiais) se traduza pela noo de capital humano.

    Este processo que associa poltica, vida, econo-mia e tecnologia teria se iniciado bem longe, vis-lumbrado por Foucault como o momento em que a espcie humana ingressa como aposta no jogo das estratgias polticas, como lemos nas pginas finais da Vontade de Saber, primeiro volume da Histria da Sexualidade:

    O homem durante milnios permaneceu o que era

    para Aristteles: um animal vivo e, alm disso,

    capaz de existncia poltica; o homem moderno

    um animal em cuja poltica, sua vida de ser vivo

    est em questo (FOUCAULT, 1984, p. 134).

    Neste contexto, ele cunhou os termos de biopo-der e biopoltica para designar este tipo de poder que se exerce ao nvel da vida, constitudo por dois eixos: uma antomo-poltica dos corpos, que se ocupa do bom funcionamento do corpo como mquina e de seu adestramento para a produo,

    e uma biopoltica das populaes, encarregada das regulaes das populaes, o que inclui longevi-dade, natalidade, mortalidade, o nvel de sade e as migraes, um conjunto de decises e escolhas que determinam certos futuros para certos grupos.

    Poucos anos depois, no curso que ministrou no Collge de France de 1978 a 1979, e que foi poste-riormente publicado com o ttulo de Nascimento da biopoltica (2008), Foucault acrescenta um dado fun-damental para entendermos o nosso hoje, quando anuncia que o homem econmico seria substitudo pelo empreendedor de si mesmo, tornando-se um capital humano constitudo de elementos que seriam inatos e outros fatores adquiridos. A est o que nos interessa: esta percepo de capital humano, assim como as consequncias em torno do que ganhou valor e importncia e o que foi desvalorizado.

    Ao se tornar empresa, o sujeito teria que inves-tir todo o conhecimento adquirido em si mesmo. Porme paradoxalmente, conhecer estaria, por definio, fora do eu. Ou como diz Gorz (2005):

    o conhecido no pode ser reputado conhecido

    seno quando posto como um objeto cuja exis-

    tncia nada me deve (p. 79).

    Ento, se nos detivermos em observar as novas formas de produo, o que se chama com alguma empfia de economia do conhecimento exige o inves-timento em si mesmo, ou aquilo que a sociedade empresarial chama de motivao2. Opressuposto que o capital humano das empresas o resultado da soma dos esforos dos empregados que devem se gerir, tendo a empresa como modelo e objetivo e responder pela rentabilidade do seu trabalho.

    2 Grifo nosso.

  • 98

    Acontece, entretanto, que h um movimento para-lelo e complementar ao do balizamento deste capi-tal humano. Trata-se do investimento na concepo na existncia de um self entendido como uma folha em branco no qual o peso de noes como tradio, identidade ou vnculo no funcionem como peso ou obstruo. O atual self ideal tem duas importantes caractersticas: flexibilidade para as infinitas adapta-es necessrias, e disciplina para manter em alta seu prprio movimento de automotivao. Certamente, isto aproxima a perspectiva do humano ao de um modelo novo de adestramento para o comportamento ade-quado, que se far relacionando, segundo o caso, um conjunto de processos constitudos por uma mes-cla de psicologia motivacional, filosofia pragmtica e autoajuda, um campo que se alimenta dos cruza-mentos destes saberes recm citados, aos quais se acrescentam ideias vindas do campo religioso e da sade e prticas nascidas no esporte, especialmente a figura clssica do coach, treinador.

    Para antecipar, como se fosse necessrio, para ser contemporneo de verdade, na vida como na empresa, na relao com o mundo, com os outros e consigo mesmo, tanto o adestramento e/ou acon-selhamento dado por este treinador de vida como a sua aprovao, necessria para a legitimao da prpria atualidade.

    Dentro desta nova lgica, produzir a si mesmo requer o investimento em novas habilidades, com objetivo, sobretudo, em operar as informaes que so geradas em fluxo contnuo. Ou seja, os indiv-duos considerados mais bem preparados para o mercado de trabalho so aqueles que usam seu crebro como ferramenta, ao invs da sua fora fsica ou habilidade motora (qualidades indispen-sveis para os trabalhadores do mundo fordista), que reconhecem a existncia da sociedade infor-matizada e a utilizam em seu dia-a-dia.

    Em um mundo da interatividade e do compartilha-mento temos, novamente, duas figuras polarizando as relaes: o que sabe o que necessrio para a vida atual e/ou o que precisa ser informado, treinado e, de certa forma, protegido. O antigo esquema republi-cano que distribua educao em torno de uma uto-pia (a saber, um emissor qualificado para todos os cidados) foi atualizado; um treinador/aconselhador preparado para os que efetivamente quiserem ser contemporneos. Podemos falar em compartilhar, uma vez que no se percebe nenhuma relao de segredo. No entanto, e este um dos nossos fortes pressupostos, h uma distribuio clara de papis no intercambiveis e um resultado de fcil obser-vao: a infantilizao daquele que deve ser ades-trado para ser realmente contemporneo.

    Poderemos observar, tambm, que, ao pensar na retrica de autoajuda que impregna as mdias, sur-gem palavras chaves como compartilhamento ou cooperao, que passam a fazer parte do vocabulrio deste empreendedor de si. Mas como acabamos de dizer, compartilhamento tem um sentido preciso, no envolve troca de papis. Assim, vai ser necessrio tambm constituir-se de habilidades especficas que venham a facilitar a conquista do self ideal, pressu-pondo-se criatividade, uma relao cognitiva com a experincia, intuio e prticas, discernimento e, sobretudo, aspectos no sistmicos e das relaes entre indivduos (VELTZ, 2001, p. 67).

    No a soma do trabalho dos indivduos que conta,

    mas a qualidade e a pertinncia das comunica-

    es amarradas em torno do sistema produtivo

    (GORZ, 2005, p. 18).

    O coach vai precisar, ainda, da qualidade de coordenao; pois, afinal, vive-se numa sociedade do saberinformao, levando os trabalhadores

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    ps-fordistas a usarem toda a bagagem cultural adquirida na vida social. Significa dizer que estes novos trabalhadores so compostos pelas habili-dades adquiridas nas atividades fora do ambiente de trabalho, quando exercemos nossa vivacidade e capacidade de improvisao e cooperao.

    Ocentro do corao de valor o trabalho imate-

    rial [...] e repousa sobre as capacidades expres-

    sivas e cooperativas (GORZ, 2005, p. 19).

    Como consequncia direta destas novas rela-es, podemos supor que os parmetros de ava-liao deste empreendedor de si ser sua maior capacidade de conquistar uma melhor existncia social, aliada a uma qualidade de vida individual, o que implica em ambos os casos em sucesso profis-sional, pessoal, social, psquico e financeiro.

    Mdia, comportamento e autoajudaNosso campo de observao foi a Revista Veja, a

    partir de seu Acervo Digital, fundada no mtico ano de 1968, a de maior circulao no Brasil e a terceira do mundo3. Nos concentramos. Especificamente, a partir dos anos 1980, quando j podemos falar em matrias sobre comportamento no sentido mais especfico; as mais frequentes neste momento sero as vinculadas sade e beleza e regulao das finanas, a veia mais pragmtica da autoajuda.

    Ao observar as capas e matrias produzidas, verificamos a presena deste empreendedor de si mesmo em dois momentos e em duas mudanas bastante ilustrativas. Para comear, um aumento de matrias da editoria de comportamento, quase inexistentes no incio e, depois, o aumento da sua presena numrica, assim como o contgio que

    3 www.veja.com.br/AcervoDigital

    exerce nas outras editorias, especialmente depois dos anos 1980, como demonstra a Figura 1.

    O segundo momento aparece na virada dos anos 1990 para o segundo milnio, onde o repertrio e a retrica da autoajuda comeam a contagiar a edi-toria de comportamento mas tambm outras edito-rias como vemos na Figura 2.

    Outro dado material importante que a Revista Veja, na sua relao com o campo de informao sobre o mercado de livros, abre em 1996 uma janela especfica para estes ttulos, seguindo a Newsweek, que havia considerado que, se isto no fosse feito,

    100

    1980*anos

    1990 2000

    80604020

    0

    ComportamentoEditorias contaminadas

    Figura 1: Crescimento da retrica da autoajuda em outras editorias analisadas na Revista Veja

    80

    60

    40

    20

    Nm

    ero

    de c

    apas 70

    50

    30

    100

    1980 1990 2000*anos

    Figura 2: Nmero de capas da Revista Veja contaminadas pela retrica de autoajuda

  • 100

    nunca mais um livro de no-fico teria destaque. Neste movimento, a Revista Veja informa e legitima, transformando esta atrao em uma lei do mercado de imprensa e editorial (Figura 3).

    Nas trs primeiras listas, o livro Inteligncia Emocional, de Daniel Coleman ficou em primeiro lugar. De todo modo, o mesmo livro se mantm na lista dos dez mais at a edio de 1998. Ao dar uma uma rpida passada de olhos, trata-se substancial-mente daquilo que desenvolvemos acima quando nos referimos ao trabalho imaterial e suas necessidades de adaptao para os referidos novos indivduos e

    trabalhadores. O que se busca apresentar neste livro de sucesso que a racionalidade iluminista no d conta do que tornou-se mandatrio neste universo novo: uma existncia social realizada e qualidades de vida individuais ressaltadas apontam para uma necessidade de coordenao da vida psquica e, neste momento, comeamos a ver com nitidez um novo arranjo: a disputa de espao no mundo social e miditico entre os saberes ligados ao mundo do conhecimento psicolgico, tais como psicanlise e terapias e um conjunto pragmtico de regras for-necido pelo universo da autoajuda.

    Figura 3: Lista dos livros mais vendidos na categoria autoajuda e esoterismo na Revista Veja

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    Nesta lista, destaca-se tambm o livro O Segredo, de Ronda Byrne, lanado no final de 2006, que ven-deu mais de quatro milhes de exemplares s nos Estados Unidos e 1 milho e meio no Brasil, tendo figurado dois anos seguidos como o mais vendido na categoria autoajuda, 2007 e 2008. J o comen-tamos em artigo anterior4, lembrando a vida dra-mtica da autora que foi abandonada criana pela me e contraiu um cncer, do qual se curou com a prtica disciplinada deste segredo que comparti-lha no livro: Pense Positivo. Antes do livro, Ronda tinha produzido um DVD onde vemos aplicadas as regras mais comuns da retrica comunicacional: entreviste pessoas de reputao ilibada, lderes reconhecidos no campo das cincias. Assim, fsi-cos, neurocientistas e outros secundam a argu-mentao da autora, dando-lhe credibilidade e prestgio. O curioso pensar nas consequncias: se para nos curarmos, o mais importante a capa-cidade psquica de crena, talvez no seja assim to importante investir em pesquisa cientfica, o que deixaria tais cientistas um pouco deslocados deste foco de liderana. Mas isto propriamente o segredo da autoajuda: a pragmtica imediatista; pensar em consequncias gerais e polticas o campo de outra forma de atuao.

    O livro que est h mais tempo nesta lista OMonge e o Executivo: uma histria sobre a essn-cia da liderana (1998), de James Hunter, h 403 semanas entre os mais vendidos. Num mundo que tem a velocidade e a efemeridade como princpios isto efetivamente espantoso. Um livro sobre lide-rana que merece uma ateno especial.

    O livro narra a histria de John Daily, um execu-tivo bem sucedido, tcnico voluntrio de um time de

    4 No texto Mdia, autoajuda e biopoder publicado na revista FAMECOS de agosto de 2012.

    beisebol, casado e pai de dois filhos. Posteriormente, este executivo bem sucedido tornou-se um monge beneditino e foi esta mudana que interessou ao autor. Por ter vivido um momento de crise no traba-lho, com a esposa e com os filhos, John comea a ver que nem tudo estava como planejara. Diantedisso, resolve se aconselhar com o pastor de sua igreja, que o indica a participar de um retiro num pequeno e relativamente desconhecido mosteiro cristo cha-mado Joo da Cruz, localizado perto do lago Michigan.

    Durante as aulas ministradas, o grande debate estabeleceu-se na anlise da diferena entre poder e autoridade e o conceito de liderana. Modelos de liderana foram apresentados e o monge Len, o mes-tre, afirmava que a autoridade demanda o respeito e a pacincia como algumas de suas principais carac-tersticas. Importa para um lder o que ele faz e no o que ele sente, ou seja, ele pode odiar uma pessoa, no entanto, pode agir com amor. Sobre o ambiente, foi ressaltada a importncia do bom cultivo para uma boa colheita, j que s podemos colher os frutos que plan-tamos, e, no mbito profissional, o ambiente de trabalho tem que ser saudvel para estimular os funcionrios.

    Se buscarmos a semelhana entre os lderes que conhecemos, o que apresentado que, embora existam mltiplas definies para a liderana, pos-svel encontrar dois elementos comuns em todas elas: por um lado um fenmeno de grupo e, por outro, envolve um conjunto de influncias interpes-soais, exercidas num determinado contexto atravs de um processo de comunicao humana com vista conquista de determinados objetivos especficos. Portanto, as funes de liderar implicam em influen-ciar pessoas gerando a motivao necessria para por em prtica o propsito definido pela estratgia.

    Importa ressaltar que, mesmo num mosteiro, o que se busca balizar o comportamento, as influn-cias do meio e nossas escolhas nos negcios e na

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    vida. Assim, Hunter sugere que o lder de hoje muito diferente do de antigamente, pois ele deve ser muito mais um sbio do que um tcnico e acompa-nhar todas as mudanas. Alm disso, antes o bom Lder era aquele que sabia conduzir, e hoje ele deve saber compartilhar e investir nas pessoas para que elas deem o melhor de si mesmas.

    Outro exemplo ligado discusso sobre a lide-rana contempornea e sua relao com esta Era do coletivo ou do trabalho em equipe, encontramos na atuao do tcnico de vlei masculino, Bernardo Rocha de Rezende, conhecido como Bernardinho. Seu sucesso veio em 2006, quando o Brasil torna-se bicampeo mundial de vlei masculino, levando os brasileiros a descobrirem que o pas no se resu-mia a somente em um esporte: o futebol.

    No relato da Revista Veja, edio de 13 de dezem-bro de 20065, a vitria e a supremacia da equipe brasileira se devem fundamentalmente ao fato dos jogadores, atravs de seu treinador, terem se adap-tado melhor s novas regras do esporte. Dentroda estratgia desenvolvida pelo tcnico, estava a esco-lha de um lder dentro de quadra, aquele que, mais seguro, fica responsvel pelas bolas difceis.

    Bernardinho, no caminho do sucesso no esporte, lana neste mesmo ano, o livro Transformando Suor em Ouro (2006), tambm citado posteriormente como um dos ttulos de autoajuda mais vendidos, segundo a lista da Veja; assim como passa a ser requisi-tado como palestrante motivacional em empresas. Rapidamente, o livro ressalta que estar preparado para qualquer coisa a base do sucesso. Para isso, o tcnico ressalta que a disciplina no somente impor e seguir regras rgidas. , sobretudo, obter o envolvimento de todos numa mesma dinmica de trabalho. Para que isto ocorra, o papel do lder

    5 http://veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx

    fundamental na busca de tirar o mximo de cada um, pensando somente no melhor para a equipe.

    Neste caso, identifica-se o lder-coach, aquele que trabalha com as caractersticas individuais de cada um para a melhor perfomance coletiva. Aomesmo tempo duro em suas convices, o lder-coach assume a der-rota para si e divide a vitria entre todos. Ressalta-se que o vlei foi o primeiro esporte brasileiro a se orga-nizar como empresa, dividido em unidades de neg-cios e metas bem definidas. Patrocinado por gran-des empresas, sendo a maior o Banco do Brasil, a Confederao Nacional gasta anualmente uma mdia de 30 milhes de reais com o esporte.

    Retrica da autoajudaAps a anlise das Matrias de autoajuda e daque-

    las contaminadas por seus temas e tratamentos, iden-tificamos trs eixos retricos principais, que compa-recem normamelmente em separado, e, em certas ocasies, produzindo algumas combinaes especiais.

    Primeiro, o estilo imperativo, do tipo faa, coma, exer-cite-se (Figura 4). Esta matria cumpre um duplo papel: ao mesmo tempo que aponta para o que agrega valor, indica as ferramentas que podem auxiliar neste expres-sar-se com elegncia e clareza, para obter o sucesso.

    O segundo o que conhecemos como prestgio do testemunho. Nascido nas escolas de pesquisas histricas que confrontavam a noo de uma histria totalmente centrada na economia, um processo sem sujeito e aparentemente sem espectador, a histria em migalhas reconduz o foco para o olhar individual, no necessariamente do agente, mas daquele que observou, testemunhou e pde narrar. Ao considerar que isto acompanhado pelo surgimento e afirmao do principio do narcisismo, identificado a partir dos anos 1980, duas consequncias do mundo editorial vo espelhar esta realidade: a moda das biografias e o prestgio do testemunho nas matrias informativas,

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    Do mesmo modo, a biografia de Jack Welch, Jack Definitivo, contando suas tticas de gesto em frente General Electric, originalmente uma autobiografia, assim como A cabea de Steven Jobs, transformou-os em gurus e aos textos num parente muito prximo da autoajuda. Num segundo momento, tais textos trans-formam-se em manuais, seja para os departamen-tos de recursos humanos das empresas, seja para os indivduos no seu processo singular.

    O terceiro estilo uma mistura dos dois anteriores: do comando mantm o imperativo, do testemunho mantm a figura exemplo, transformando-a em um lder-guru, que vamos nomear de coach, treinador, que aquele que pode e deve inspirar as melhores atitudes e decises.

    Podemos citar como exemplo, ligado discusso sobre a liderana contempornea e sua relao com esta Era do coletivo ou do trabalho em equipe, a trans-formao do tcnico de vlei masculino, Bernardinho, em lder motivacional. Este passou a realizar inmeras palestras em empresas aps o Brasil tornar-se bicam-peo mundial de vlei masculino e da publicao do seu livro Transformando Suor em Ouro, onde enumera os dez caminhos que levam ao sucesso. Estelivro foi citado posteriormente como um dos ttulos de autoa-juda mais vendidos, segundo a lista da Veja, j que ressalta que estar preparado para qualquer coisa a base do sucesso. Para isso, o tcnico aponta que a disciplina no somente impor e seguir regras rgidas. , sobretudo, obter o envolvimento de todos numa mesma dinmica de trabalho. Para que isto ocorra, o papel do lder fundamental na busca de tirar o mximo de cada um, pensando somente no melhor para a equipe.

    O interesse a ainda maior porque a Veja, na edio 2.176 de 4 de agosto de 2010 (Figura 6), pro-duz uma matria na rubrica esporte com o ttulo As lies de um vencedor. Atualmente, algumas

    Fonte: www.veja.com.br/AcervoDigital

    Figura 5: Capas da Veja, da direita para a esquerda: Edio de 13 de setembro de 2000 e de 8 de novembro de 2000

    Fonte: www.veja.com.br/AcervoDigital

    Figura 4: Capa da Veja Edio 2.177, de 11 de agosto de 2010

    cientficas e culturais. No caso da autoajuda, j cita-mos acima o livro O Segredo, mas podemos encon-trar inmeras matrias com o mesmo perfil, como por exemplo, Olimpadas: O laboratrio do corpo As lies dos atletas sobre sade cardaca, peso, nutrio, lon-gevidade e bem estar, de 13 de setembro de 2000 e Elas venceram, de 8 de novembro de 2000 (Figura 5).

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    editoras pensam em explorar este filo; convidam pessoas que tiveram sucesso, em quaisquer reas de atuao, como Alexandre Accioli, por exemplo, contratam um ghost-writer e o livro sai assinado ora como autobiografia ora como biografia autorizada.

    Porm e para melhor ilustrar, destacamos matria AAutoajuda funciona, de 13 de novembro de 2002, quando a prpria Veja se coloca como sendo capaz de exercer a funo de coach. Alm de avaliar o crescimento exponencial da literatura da autoajuda

    e mencionar os autores nacionais e internacionais de maior sucesso, a matria no apenas assegura que o resultado vale a pena como sintetiza diversas contri-buies vindas da literatura da autoajuda para realizar seu prprio declogo, alis, apresentado sob a forma das tbuas da lei do Antigo Testamento (Figura 7).

    Sociedade de mercadoH, ainda, outro dado, tambm de suma impor-

    tncia, que atua tanto no universo biotcnico quanto na ideia, cada vez mais materializada, de capital humano. No vivemos hoje em uma economia de mercado; esta j estava de p desde o mercanti-lismo. Nosso lcus uma sociedade de mercado que precifica praticamente tudo, mesmo o que poderia parecer inconcebvel. Por partes, podemos explicar que: s porque a tcnica de transplantes evoluiu que se tornou possvel anunciar em jornal ou nas redes sociais e vender um rim; s quando os pro-cessos de fertilizao in vitro avanaram que as barrigas de aluguel puderam funcionar (uma bar-riga de aluguel indiana custa 6.250 dlares segundo Sandel e uma prtica legal). So, portanto, valores

    Fonte: www.veja.com.br/AcervoDigital

    Figura 7: Veja A Autoajuda funciona. Edio 1.777, de 13 de novembro de 2002 e Declogo retirado da matria.

    Fonte: www.veja.com.br/AcervoDigital

    Figura 6: Veja Edio 2.176, de 4 de agosto de 2010.

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    de mercado que passaram a desempenhar um papel radical na nossa vida social.

    Se restasse alguma dvida ou restrio, podemos citar a edio de O Globo de 25 de outubro de 2012, com a matria Barrigas de Aluguel: o corpo como capital as pulverizaria. Seu autor, Rodrigo da Cunha Pereira, um advogado especializado em direito de famlia e sucesses, o que, convenhamos, combina bastante com o princpio da sociedade de mercado e do corpo como capital. Como diramos num lugar pouco formal, o rapaz do ramo. Suas declaraes:

    [...] A questo sobre a qual se deve refletir :

    por que no se pode remunerar uma mulher

    pelo aluguel de seu tero? Sabe-se que, no

    Brasil, acontece na clandestinidade o que j

    lei em vrios pases, a exemplo dos Estados

    Unidos, Israel, Austrlia, Blgica, Dinamarca, Gr

    Bretanha, Grcia, Holanda, Israel, ndia, Rssia e

    Ucrnia. Ocorpo um capital fsico, simblico e

    econmico. Os valores atribudos a ele so liga-

    dos a questes morais, religiosas, filosficas e

    econmicas. Se a gravidez ocorresse no corpo

    dos homens certamente o aluguel da barriga j

    seria um mercado regulamentado. Para se avan-

    ar preciso deixar hipocrisias de lado e apren-

    der com a Histria para no se repetir injustias.

    preciso distinguir o tormentoso e difcil cami-

    nho entre tica e moral (PEREIRA, 2012).

    Os valores de mercado no se referem apenas ao despender dinheiro; tambm h novas possibi-lidades de ganh-lo, como alugar espao na testa ou em parte do corpo para publicidade: A Air New Zeland contratou 30 pessoas (homens e mulhe-res) para rasparem a cabea e usarem tatuagens com o slogan Precisando mudar? V para a Nova Zelndia, por 777 dlares; oferecer-se para cobaia em

    laboratrios farmacuticos para novas medicaes; h variaes mas reza a lenda que o preo mdio de 7.500 dlares. Fazer fila para lobistas (no caso do Congresso americano custa entre 15 e 20dlares a hora), contribuir para o banco de esperma; depende da avaliao do doador (fsicos valem mais do que contadores, etc.). Para no deixar no vazio, os lobis-tas contratam empresas que contratam pessoas sem teto para fazer as filas. Agora, alm dos head hun-ters capazes de avaliar atravs do background nosso valor no mercado profissional, existem centros que avaliam vulos e smen, conferindo um valor vari-vel ao devir para o qual contribuiremos.

    Primeiro complicador: se vivemos numa socie-dade de mercado, ela est passando ao mesmo tempo por uma crise econmica, onde esto em cheque instituies icnicas como as agncias de risco, as seguradoras e os grandes bancos do sis-tema financeiro internacional. Assim como esto se mostrando incompetentes as polticas econmicas de vrios governos. Isto afeta o crdito enquanto dado da economia, mas tem um efeito muito mais impor-tante: afeta a crena, o acreditar como prtica social. De alguma maneira, a associao entre ganncia e incompetncia desvelou-se aos nossos olhos.

    Ora, vale lembrar que o que Samuel Smiles, autor do primeiro livro de autoajuda Self-Help, enunciava era exatamente este ponto: o progresso da huma-nidade, o seu aperfeioamento se dar por inicia-tivas pessoais, individuais. A sua afirmao como liberal era que as instituies no eram confiveis para nos guiar nos melhores caminhos. Era preciso um empreendimento pessoal que envolvia assumir responsabilidade diante do mundo, persistncia diante dos processos de autoaperfeioamento e con-fiana de que o futuro viria da soma destes esforos. Significava tambm falar numa descoletivizao dos riscos, de uma maneira bem sutil: o no confivel o

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    prprio coletivo representativo. No limite, de uma descrena radical que nos fala Smiles.

    Para embaralhar ainda mais, tambm vemos no horizonte a crise climtica, cantada h dcadas em prosa e verso, que deveria nos ensinar que o limite da tcnica no est no aonde ela pode ir e, sim, nas consequncias dos caminhos feitos. Estes hoje amea-am a sobrevida do planeta e da espcie humana. Vamos convir que este agenciamento tcnica-eco-nomia, sem a mediao dos contratos sociais, est mostrando sua face podre. E que o que vemos apa-recer como marca da poluio exatamente aquilo que, ainda, no tem preo: basicamente o ar.

    Resumindo e teorizandoO campo da comunicao e a nossa prpria pes-

    quisa tm se detido bastante em associar a biopoltica com a sociedade do conhecimento, compreendendo que estaria no horizonte um novo modelo de relao entre poltica e tcnica. Neste modelo, j verificamos que a presena do Estado se faz mais visvel na admi-nistrao das informaes do que na sua modernizada, embora antiga, funo de proteo social. como se, tendo sido alertados para as causas comportamen-tais de algumas doenas frequentes, cada um de ns fosse individualmente responsvel pela sua sade e qualidade de vida, assim como pelo seu ajuste social.

    No espanta a sensao que um freudiano cls-sico chamaria de angstia de desamparo, visvel sobre as formas de angstia, ansiedade e depres-so, tenham tanto espao no campo social como no miditico. O melhor remdio parece ser um bom aconselhamento, uma conduo pragmtica capaz de fazer-nos acreditar que todos nascemos com-pletamente equipados para gerenciar nossa vida, como se ela fosse uma empresa exitosa.

    Entretanto, a ideia de capital humano foi mais longe do que seus tericos anunciaram: agregar

    valor, evitar perda, um repertrio econmico que associou-se a esta empresa-vida no trazia ainda a noo de preo ou, mais contundentemente, a ideia de que o mercado o locus desta vida que geren-ciamos. Quando pensvamos em transplantes, por exemplo, a questo tica que se colocava era a de associar vida e morte, ou seja, precisar da morte de algum para poder sobreviver. O cinema deu heri-cos exemplos destes conflitos, um deles o filme 21 gramas, de Alejandro Iarritu (2003); outro mais delicado, mas igualmente ligado ao tema, o Feitio do Corao, de Bonnie Hunt (2000), onde a prota-gonista recebe o corao da esposa falecida em acidente, do sujeito do qual ela viria se apaixonar.

    Agora a questo dos transplantes tem a ver com filas, prioridades e preos. Como no racicnio econ-mico, o mais raro mais caro ou, a lei de de oferta e procura atua aumentando ou diminuindo o valor de cada coisa; temos uma nova e inesperada bolsa de rgos que torna possvel, como citamos acima, algum oferecer um rim no Facebook.

    Fizemos tambm referncia a nova figura do coach, cuja origem imediata evidentemente vinculada ao mundo dos esportes. No entanto, se subirmos em ombros de gigante, veremos uma genealogia bas-tante mais sutil: nesta figura se recoloca, num plano modificado, a relao entre autoridade e poder que Foucault desenvolveu no texto Omnes et Singulatim: em direo a crtica da razo poltica. Aquesto que ele enfrentava era a de associar o poder centrali-zador, aquele que configurou a formao do Estado Moderno, de sua administrao e burocracia, com o problema do poder individualizante. O que o autor observou que mal-grado associarmos s socieda-des modernas ao centralismo de seus Estados, ele encontra no mesmo ambiente tcnicas de poder vol-tadas para os individuos edestinadas a dirigir-lhes de maneira contnua e permanente. Nas suas palavras,

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    se o Estado a forma poltica de um poder centrali-zado e centralizador, chamemos de pastoral o poder individualizador (1994, p. 136).

    Portanto, nosso coach contemporneo tem um av pastoral e, aqui como l, estamos falando de liderana e retrica de adeso. Nesta pesquisa encontramos dois perfis de coachs, que nomeamos como o aconselhador e o treinador. No primeiro caso, remetendo a origem foucaultiana, este acon-selhador mais prximo ao poder pastoral e talvez explique porque nesse universo biotcnico tanto a autoajuda quanto certos movimentos religiosos ganham flego num mundo social e no miditico.

    O segundo coach o treinador: oriundo da com-petio esportiva, seu lugar mais frequente hoje no campo pragmtico dos departamentos de recursos humanos; mas como a vida uma empresa, ele sobra para nos treinar a sermos contemporneos dos valo-res que valem a pena. O mais radical tem a ver com a ciso aconselhada entre comportamento e sentimento. At porque, em uma sociedade de mercado, o que pode ser precificado o comportamento. Sentimentos tais como alegria, amor, encantamento, tristeza e nostalgia, assim como o ar so inprecificveis. Neste sentido, sentimentos so atemporias e complexos enquanto os comportamentos podem ser controlveis.

    CONSIDERAES FINAISA histria nos mostra que, em perodos de crise,

    a autoajuda floresce: um dos mais flagorosos suces-sos desta foi o livro Pense e Enriquea (Think and Grow Rich), de Napoleon Hill, publicado em 1937, no rescaldo da depresso americana de 1929 e at hoje reeditado, tendo vendido perto de 50 milhes de exemplares (Figura 8). Nos nossos tempos pode-mos apostar no crescimento da autoajuda que sabe se promover, aproveitando bancas de jornais,

    supermercados e at vendedoras de cosmticos, como Avon Chama, para buscar o seu pblico leitor.

    AGRADECIMENTOSEste artigo teve a colaborao de Clara Abreu

    e Eduarda Kuhnert Graduandas da Escola de Comunicao da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ) e Bolsistas de Iniciao cientfica no Grupo de pesquisas de Imaginrio Tecnolgico (ECO-UFRJ)

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    Figura 8: Capa da Revista Napoleon Hill da edio de 1937 e Capa da Edio Atualizada de Dezembro de 2010

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    Subjetividade contempornea em uma sociedade biotecnolgica de mercadoIeda Tucherman e Cecilia C. B. Cavalcanti

    Data de envio: 01 de agosto de 2014.Data de aceite: 06 de fevereiro de 2015.