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6º ENCONTRO DA ABRI
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Belo Horizonte
25 a 28 de Julho de 2017
Área Temática: Segurança Internacional, Estudos Estratégicos e Políticas de Defesa
A última peça do quebra cabeça: o conflito pelo corredor do Atacama e a demanda
boliviana por acesso ao mar
Rodrigo Côrrea Teixeira (PUC-Minas)
Pedro Diniz Rocha (PUC-Minas)
Resumo
Este artigo tem como ponto de partida uma perspectiva questão-direcionada para o estudo
de Paz e Conflito que encontra nas disputas territoriais a principal variável responsável pelo
surgimento e manutenção de relações de rivalidade entre Estados. Seu objetivo central é
demonstrar a influência do contexto normativo internacional no surgimento de relações de
paz em uma díade. Acredita-se que a presença de um contexto normativo internacional que
deslegitima o uso e/ou a ameaça do uso da força, protege a integridade territorial dos
Estados e promove mecanismos eficientes para solução pacífica de controvérsias, favorece
o surgimento de relações de paz em uma díade na medida em que diminui a vontade
(willingness) dos Estados para a guerra ao promover praticas alternativas para a resolução
de conflitos de interesse envolvendo questões de alta saliência. De maneira a realizar o
teste da hipótese de trabalho será analisado o histórico conflito entre Bolívia e Chile pela
região do Atacama e, em especial, pela província de Antofagasta. Espera-se encontrar nas
transformações do contexto normativo internacional desde o surgimento da questão
territorial entre os dois países explicação para o caminhar da díade desde a rivalidade até a
paz negativa.
Palavras-chave: Estudos de Paz e Conflito; Geografia; Território; América do Sul; Bolívia;
Chile
Introdução
Nas últimas décadas uma vasta literatura passou a dar conta da correlação entre a
presença de questões territoriais em uma relação diádica e a emergência de Disputas
Interestatais Militarizadas (em inglês, Militarized Interstate Disputes ou MID). A partir de uma
perspectiva questão-direcionada foi observado que dentre todas as questões nas quais
Estados podem entrar em conflito, as de natureza territorial são aquelas mais propensas a
leva-los à guerra. Como explicação, destacou-se a alta saliência das questões territoriais
tendo como base os diferentes fatores responsáveis pelo valor alocado pelos Estados a
determinados espaços geográficos.
Outro desdobramento recente é a crescente nas pesquisas relacionadas à Paz
Territorial. Isto é, que dão conta da relação entre a solução da questão territorial e o
surgimento de relações de paz em uma díade. Por exemplo, Gibler (2012) analisa o impacto
em âmbito doméstico da presença de questões territoriais em uma díade, assim como a
consequência deste impacto para a natureza dos cursos de ação adotado pelos Estados em
âmbito internacional. Da mesma forma em que Goertz, Diehl e Balas (2016), tendo como
foco o nível do sistema, analisam as mudanças no contexto normativo internacional a partir
da segunda metade do século XX, principalmente no que tange o surgimento de um regime
de proteção à integridade territorial, como causa para a diminuição expressiva do número de
guerras no sistema internacional.
Tendo como base o acima exposto, a pergunta de pesquisa a ser adotada é: de que
maneira o contexto normativo internacional favorece o surgimento de relações de paz em
uma díade? Defende-se que a presença de um contexto normativo internacional que
deslegitima o uso e/ou a ameaça do uso da força, protege a integridade territorial dos
Estados e promove mecanismos eficientes para solução pacífica de controvérsias, favorece
o surgimento de relações de paz em uma díade na medida em que diminui a vontade
(willingness) dos Estados para a Guerra ao promover práticas alternativas para a resolução
de conflitos de interesse envolvendo questões de alta saliência.
O artigo será subdividido em quatro seções. A primeira seção será reservada para o
desenho da metodologia de pesquisa a ser adotada. A segunda seção discutirá as bases de
uma perspectiva questão-orientada para os estudos de paz e conflito, assim como
apresentará a Explicação Territorial das Guerras e o que se entende por Paz Territorial. Em
seguida, a terceira seção será destinada ao estudo de caso e irá conter tanto um
background histórico quanto a análise do conflito nos termos levantados na seção anterior.
A quarta seção, por fim, apresentará considerações finais e uma interpretação dos
resultados da análise.
Metodologia
Operacionalização das Variáveis
A variável independente deste artigo é ‘questões territoriais’. Uma questão territorial
será identificada seguindo os parâmetros de Huth (1998). Para o autor existem cinco
contextos-tipo onde estão presentes questões territoriais em uma díade: i) o país A não
aceita a atual demarcação das fronteiras, enquanto o país B assume a posição de que ela é
juridicamente válida; ii) não existem tratados ou documentos históricos estabelecendo com
exatidão a fronteira e ambos os países assumem posições distintas de onde esta deveria
ser demarcada; iii) o país A ocupa atualmente parte ou a completude do território do país B
e se recusa a abandoná-lo; iv) o país A não reconhece a soberania do país B sobre parte ou
a completude de seu território; e, v) o país A não reconhece a independência do país B (ou
colônia) e pretende anexar (ou manter) parte ou a completude de seu território (HUTH,
1998).
A variável moderadora deste artigo é ‘contexto normativo internacional’. O contexto
normativo internacional deverá ser visto aos moldes do que Bull (1977, p.71) entende como
Instituições Políticas Internacionais. Segundo o autor, instituições políticas internacionais
podem ser definidas como um “conjunto de hábitos e práticas (adotados pelos Estados)
orientados tendo em vista a realização de objetivos em comum”. Cabe destacar que o foco
será dado à presença ou não de normas relativas à proibição do uso e/ou ameaça do uso da
força e à proteção da integridade territorial dos Estados; assim como à presença ou não de
mecanismos eficientes para a solução pacífica de controvérsias (BULL, 1977).
A variável dependente deste artigo é ‘paz’. Será adotada a perspectiva de Paz
proposta por Goertz, Diehl e Balas (2016). Para os autores a paz deve ser entendida como a
característica de uma relação onde a ameaça e/ou o uso da força é desconsiderada (o)
pelos Estados como mecanismo para resolução de conflitos de interesse. Nesse sentido, o
oposto de paz não seria ‘guerra’, mas relações de rivalidade. Estas são definidas por
Vasquez (1993) como relações onde há o conflito de interesse sobre questões de alta
saliência e onde o uso e/ou a ameaça do uso da força tem presença constante (GOERTZ;
DIEHL; BALAS, 2016).
Estudo de Caso
Desde o ano de 1866 a díade Bolívia-Chile tem presente um conflito de interesse não
resolvido no que tange a uma questão territorial. De forma mais direta, as duas partes
conflitam em torno dos direitos soberanos sobre a região do Atacama e a província de
Antofagasta. O caso é visto como relevante na medida em que é possível se identificar ao
longo da história períodos onde a relação entre os dois países se aproximaram do eixo da
rivalidade, na mesma medida em que é possível se identificar outros nos quais a relação
caminhou em direção ao lado da paz. Porém, ao longo de todo o tempo, repete-se, tem-se
como constante o conflito de interesse sobre a questão territorial. Assim, a hipótese de
trabalho será considerada comprovada se após o estudo de caso for possível identificar
mudanças no contexto normativo internacional como causa para a transformação das
características da relação entre Bolívia e Chile.
Uma perspectiva questão-direcionada para os estudos de Paz e Conflito
A importância dos issues para a Política Internacional
As perspectivas teóricas dentro das Relações Internacionais usualmente não
incorporam o impacto individual de questões específicas da agenda na ação estatal. O foco
tende a recair em elementos exteriores ao processo de negociação, isto é, no estudo de
características das unidades ou da estrutura do sistema que podem impactar o
comportamento dos Estados. Por exemplo, enquanto o realismo clássico tem a natureza
humana como variável central para explicação da guerra, o realismo estrutural tem a
estrutura do sistema como elemento chave para explicação da ação estatal (VASQUEZ;
MANSBACH, 1984; HENSEL, 2001).
Em contraste às perspectivas tradicionais, uma perspectiva questão-direcionada
defende que a ação dos Estados é dirigida primordialmente pelos issues em disputa. Os
Estados não buscam a todo o momento a conquista ou a defesa de um interesse nacional e
não reagem cegamente a constrangimentos estruturais. As decisões são tomadas tendo em
vista os objetivos a serem atingidos especificamente nas questões em jogo sobre a mesa de
negociação. Holsti (1991) argumenta que em uma perspectiva questão-direcionada não se
busca a compreensão de condições antecedentes que possam explicar a ação tomada
pelos Estados. Ao contrário, procuram-se primordialmente os propósitos e objetivos de cada
lado em torno das questões em jogo. Assim, para o autor, a explicação da ação dos Estados
deve ser teleológica: eles não atuam ‘por causa de’, mas ‘em ordem a’ (HENSEL, 2001;
HOLSTI, 1991).
Segundo Hensel (2001), uma questão só pode afetar a ação estatal na medida em
que possui saliência. Isto é, valor intrínseco para os atores envolvidos na contenda. Estados
tendem a agir de maneira diferente de acordo com a saliência do assunto. Quanto mais
saliente a questão, mais os tomadores de decisão estão dispostos a correr riscos e adotar
posturas mais agressivas em meio à negociação. Quando estão em jogo issues bastante
salientes o acordo por vias diplomáticas se torna mais complicado e maior é a vontade
(willingness) dos Estados para a guerra. Por outro lado, quanto menos saliente a questão,
menos os tomadores de decisão estão dispostos a correr riscos e menor a vontade para a
guerra. Dessa maneira, a tendência é a de que a questão seja solucionada por vias
diplomáticas (HENSEL, 2001; STARR, 2005).
Enfim, em uma perspectiva questão-direcionada se entende que de modo a
solucionar o conflito de interesse os Estados podem adotar tanto cursos de ação baseados
na Realpolitik quanto cursos de ação voltados para a cooperação. A escolha por um curso
de ação ou outro tende a estar relacionada não só com a saliência da questão em jogo, mas
também com o conjunto de hábitos e práticas estabelecidos dentro do contexto normativo
internacional no qual a díade está inserida. Assim, em ordem à compreensão da ação
estatal é preciso em primeiro lugar inquerir acerca das questões mais salientes e propensas
de serem resolvidas por meio da guerra. Baseando-se em Vasquez (1993), elas devem ser
entendidas como causa fundamental ou subjacente de relações de rivalidade; e, em
segundo lugar, compreender o contexto normativo internacional, os hábitos e práticas ao
longo do tempo adotados pelos Estados para resolução de seus conflitos de interesse. A
estes, Vasquez (1993) denomina causa próxima ou imediata (HENSEL, 2001; VASQUEZ,
1993).
A Explicação Territorial das Guerras
A explicação territorial das guerras parte da assertiva de que determinados issues
quando em conflito elevam a probabilidade da guerra entre dois Estados e que no sistema
internacional moderno mais guerras foram travadas tendo como origem questões territoriais
do que qualquer outro tipo de questão. Dessa maneira, questões desta natureza podem ser
consideradas como a principal causa subjacente das guerras. Em outras palavras, “ao longo
do tempo questões territoriais foram mais aptas em gerar controvérsias e estas, quando
presentes, deram origem a mais guerras do que outros tipos de issues” (VASQUEZ, 1993;
1995, p.285).
Argumenta-se que dois Estados contíguos em algum momento de sua história
tendem a entrar em conflito sobre uma questão territorial; em adição, levando-se em conta a
saliência natural de questões desta natureza, Estados tendem a se posicionar mais firme
neste tipo de contenda. O que a torna de mais difícil resolução se comparada a contendas
com origem em outros tipos de issue. Assim, assumindo que a guerra fora ao longo do
tempo adotada como prática usual para resolução de conflitos de interesse e estando
ausente uma estrutura normativa que incentive os Estados a resolvê-los pacificamente, a
tendência é a adoção de linhas de ação baseadas na Realpolitik quando presente uma
questão territorial (VASQUEZ, 1993).
Segundo Hensel (1996), podem ser destacados três fatores característicos às
questões territoriais que contribuem para aumentar sua saliência se comparada a questões
de outra natureza. São estes: fatores tangíveis, fatores intangíveis e reputação.
Inserem-se dentro da categoria de fatores tangíveis elementos visíveis, materiais e
nos quais sua possessão contribui diretamente para segurança, riqueza e sobrevivência dos
Estados. Por exemplo, a posse de uma determinada extensão territorial pode ter valor para
um Estado na medida em que i) contem recursos naturais escassos e valiosos como
petróleo, minerais, água, etc.; ii) está localizada em um ponto geoestratégico relevante por
dar acesso ao mar, a grandes corredores ribeirinhos ou ser nó de rotas militares e/ou
comerciais; iii) possuir estrutura natural que contribui para a segurança do Estado e solidifica
sua soberania interna e externa. Assim, se estabelece a assertiva de que quanto maior a
importância geoeconômica e geoestratégica de determinado território, maior a saliência da
questão e, consequentemente, maior é a vontade dos Estados para a guerra (GOERTZ;
DIEHL;BALAS, 2016; HENSEL, 1996; WALTER, 2003).
No que tange aos fatores intangíveis, inserem-se elementos simbólicos que integram
certos Estados, nações e/ou grupos étnicos e religiosos a um espaço geográfico, tornando-o
indivisível e inegociável. Isto é, a posse de um território pode ser de extremo valor para um
Estado na medida em que: i) possui importância política, por estar próximo da hinterlândia
de seu centro administrativo e impactar em sua percepção (real ou não) de segurança; ii)
possui importância étnico-nacional, ao ser lar de indivíduos e grupos que se consideram de
uma mesma nação, raça e/ou religião; iii) importância histórica, por estar presente no
imaginário coletivo da população. Assim, se estabelece a assertiva de quanto maior a
importância simbólica-relacional de um território, maior a saliência da questão e,
consequentemente, maior é a vontade dos Estados para a guerra (GOERTZ; DIEHL;BALAS,
2016; HENSEL, 1996; WALTER, 2003).
Enfim, o terceiro fator destacado por Hensel (1996) é a reputação. A decisão dos
Estados de negociar ou não pode estar relacionada à sua expectativa de possíveis
divergências futuras. Estados podem ter receio de negociar e ceder em um momento t0, na
medida em que isto pode ser visto como sinal de fraqueza e incentivar em t1 a demanda e o
desafio de outros atores. Isto é, eles podem estar mais dispostos a entrar em confronto
militar direto em um primeiro momento como forma de deter terceiros a demandar outros
espaços geográficos no futuro. Ao não ceder em um primeiro momento, os Estados podem
afetar a estrutura de custo-benefício dos jogos futuros ao demonstrar que será mais custoso
para os desafiantes levar adiante suas demandas. Assim, se estabelece a assertiva de que
quanto maior a expectativa de desafios futuros à soberania de um Estado, maior a saliência
da questão e, consequentemente, maior é a vontade dos Estados para a guerra (GOERTZ;
DIEHL;BALAS, 2016; HENSEL, 1996; WALTER, 2003).
Caminhando um pouco no raciocínio, é preciso adicionar um argumento na assertiva
inicial de que é possível se esperar que dois estados contíguos em algum momento de sua
história irão entrar em conflito no que tange a questões territoriais. Acredita-se que uma vez
resolvida a divergência de interesse em torno do território, a guerra torna-se pouco provável
na relação diádica entre dois Estados. O acordo, entretanto, deve ser selado com plena
satisfação das partes. Caso um dos lados se sinta insatisfeito com a resolução por não ter
tido condições de sustentar sua posição, a tendência é a de que se prevaleça uma
rivalidade perene e que a parte malcontente apresente nova demanda com o objetivo de
mudar o status quo que não lhe é favorável (VASQUEZ, 1993).
Acrescenta-se ainda que a resolução da questão não necessariamente precisa ser
construída a partir do resultado de uma guerra. Isto é, apesar de ao longo do tempo os
Estados terem adotado a guerra como prática usual para a resolução de conflitos de
interesse, ela não é a única instituição política ou o único modo de solucioná-los. A presença
de um contexto normativo internacional que promova mecanismos pacíficos mais eficientes
para a resolução da questão territorial pode influenciar o curso de ação dos Estados,
impedindo a adoção daqueles baseados na Realpolitik (VASQUEZ, 1993).
A Paz Territorial
Vasquez (1993), apesar de levar em conta o contexto normativo internacional como
causa próxima ou imediata para a guerra, pouco se aprofunda na questão e deixa aberto
para o futuro reflexões acerca das possibilidades da paz. Nos últimos anos, uma extensa
pesquisa sobre este ponto tem sido realizada por autores como Gary Goertz, Paul Diehl e
Alexandru Balas. Esta, acabou dando origem ao livro The Puzzle of Peace: The Evolution of
Peace in the International System (2016). No livro eles dedicam-se a compreensão do
contexto normativo internacional como causa próxima ou imediata responsável pela
diminuição do número de guerras entre os anos 1945-2007.
A perspectiva proposta por Goertz, Diehl e Balas (2016) parte do princípio de que a
paz não deve ser entendida como a ausência da guerra ou em uma oposição binária a esta.
Para os autores, enquanto a guerra é um evento que pode ser medido empiricamente como
tal,a paz traz consigo um elemento relacional. Assim, para se medir a paz deve se levar em
conta as características de cada relação diádica e inseri-la dentro de uma escala, um
continuum, composta (o) de cinco níveis-tipo: rivalidade severa, rivalidade branda, paz
negativa, paz morna e comunidade de segurança (GOERTZ; DIEHL; BALAS, 2016).
Para a classificação da relação dentro da escala deve ser levada em conta a
frequência e a saliência das questões em conflito, assim como a maneira pela qual se
espera que este seja conduzido. De um lado do continuum tem-se as relações diádicas de
rivalidade (rivalidade severa; rivalidade branda). Relações de rivalidade são caracterizadas
por um permanente estado de conflito sobre questões de alta saliência. Nesse tipo de
relação predomina-se a escolha por cursos de ação baseados na Realpolitik e tem-se o uso
ou a ameaça do uso da força como possibilidade real para a resolução de conflitos. De outro
lado do continuum, tem-se as relações diádicas de paz positiva (paz morna e comunidade
de segurança). Relações de paz positiva são caracterizadas pelo predomínio da
cooperação, podendo estar presente o conflito sobre questões de baixa saliência. Nesse
tipo de relação o recurso ao uso ou a ameaça do uso da força é velado e a lógica de ação
se aproxima daquela presente no que Wendt (2014) chama de ‘Cultura Kantiana’. Por fim,
em nível intermediário, têm-se as relações diádicas de paz negativa. Estas se caracterizam
pela ainda presença de conflitos de interesse sobre questões de alta saliência. Porém, o uso
ou a ameaça do uso da força é uma possibilidade somente distante, linhas de ação
baseadas na Realpolitik são relegadas e a tendência é a resolução dos conflitos por vias
diplomáticas. Seja por meio de negociações bilaterais, mediação de terceiros, adjudicação
ou arbitragem (GOERTZ; DIEHL;BALAS, 2016).
O argumento da paz territorial parte da assertiva de que há uma grande correlação
entre a presença de um conflito de interesse sobre uma questão territorial e o surgimento de
uma relação diádica de rivalidade. Ademais, entende-se que após 1945 paulatinamente
criou-se um regime internacional de proteção à integridade territorial dos Estados e
desenvolveram-se mecanismos de resolução de controvérsias que proporcionam um meio
menos custoso para resolução das questões territoriais. O que contribuiu para a promoção
de relações diádicas de paz negativa e positiva e para a diminuição do número das guerras
entre os anos de 1945 e 2007 (GOERTZ; DIEHL; BALAS, 2016).
Segundo Goertz, Diehl e Balas (2016), o aumento das relações de paz foi possível
na medida em que o regime passou a controlar a emergência de novos conflitos territoriais,
ao mesmo tempo que institucionalizou novas práticas e processos para gerenciamento
quando estes surgirem. Por um lado, o controle da emergência da questão territorial se deu
pela proibição da ameaça e/ou uso da força encontra à integridade territorial de outros
Estados, como previsto no artigo 2º, nº 4 da Carta das Nações Unidas e reforçado pelo
artigo 52º da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados; e, por meio da regulação da
entrada de novos Estados no sistema, especificamente no que tange às possibilidades de
secessão e independência, a partir do baixo custo do não-reconhecimento de grupos que
estabeleceram seus governos de forma violenta e belicosa (GOERTZ; DIEHL;BALAS, 2016;
GOUVEIA, 2013).
Por outro lado, no que tange ao processo de gerenciamento da questão territorial, o
principio do uti possidetis foi institucionalizado como critério no processo de delimitação dos
limites. Sua presença é importante na medida em que garante um processo justo, retira
parte da incerteza do processo de negociação e sua observação deslegitima futuras
demandas e ofensivas de uma das partes aos olhos de outros Estados (HENSEL; ALLISON;
KHANANI, 2006).
Em conjunto com a institucionalização do uti possidetis e para além das negociações
bilaterais, ganharam força como mecanismos de resolução de controvérsias a mediação, a
adjudicação e a arbitragem. Apesar de suas diferenças, quando a perspectiva é a da
impossibilidade de se chegar a um acordo mutuamente benéfico por meio da negociação
bilateral, os três métodos provêm aos Estados alternativas eficientes para a resolução de
conflitos (GOERTZ; DIEHL;BALAS, 2016)
A mediação se caracteriza pelo envolvimento pré-consentido e imparcial de um
terceiro ator nas negociações entre dois Estados de forma a facilitar a chegada em um
acordo mutualmente satisfatório. A partir de dados levantados por Greig e Diehl (2012),
podemos observar a partir da década de 1990 um aumento expressivo no número de
tentativas de mediação. Enquanto entre as décadas de 1940 e 1980 foram realizadas 948
tentativas, a década de 1990 apresenta 1684 casos. Além disso, desde 1945 houve um
aumento paulatino de mediações realizadas por atores que não os Estados, como
Organizações Internacionais, ONGs e indivíduos (FISHER, 2010; GOERTZ; DIEHL;BALAS,
2016;GREIG;DIEHL, 2012).
Em contraste à mediação, a adjudicação e a arbitragem são métodos legais de
resolução de controvérsias. Assim, enquanto na mediação o terceiro não tem poder de
decisão, na adjudicação e na arbitragem eles têm a última palavra; enquanto na mediação
as partes não são obrigadas a chegar em um acordo, na adjudicação e na arbitragem ela
concordam de antemão aceitar o resultado do processo; e, enquanto na mediação não
necessariamente as partes levam em conta o Direito Internacional Público (DIP), na
adjudicação e na arbitragem os pareceres são dados levando em conta as diretrizes do DIP.
Além disso, a principal diferença entre os métodos de adjudicação e a arbitragem é que
enquanto o primeiro é usualmente regido por uma corte internacional, o segundo pode ser
realizado por outros atores. Enfim, com base nos dados de Gent (2013, p.68), podemos
identificar os dois métodos como os mais eficientes quando em jogo uma questão territorial.
Entre 1816 e 2001, em 63,2% dos casos a Adjudicação e a Arbitragem foram as
responsáveis pelo fim da divergência de interesse em issues desta natureza (GENT, 2013).
Podemos concluir, dessa maneira, que apesar da tendência para o surgimento de
conflitos territoriais em algum momento da história da relação diádica de Estados contínuos;
e da tendência de adoção de linhas de ação baseadas na Realpolitik quando uma questão
territorial se faz presente, dada sua intrínseca alta saliência, o contexto normativo
internacional pode contribuir para o controle da emergência e para sua gerência quando de
sua erupção. Em consequência, para a aproximação das díades ao lado da paz negativa e
positiva da escala proposta por Goertz, Diehl e Balas (2016).
O Corredor do Atacama como questão na díade Chile-Bolívia
Background Histórico
O hoje centenário conflito entre Bolívia e Chile tem como origem a pulverização da
américa espanhola no século XIX e a tentativa, nos anos 1860, da antiga metrópole de
recuperar a região do Atacama. Após expulsão definitiva dos espanhóis em 1866, Bolívia e
Chile assinaram o primeiro tratado dando conta de seus limites. Tendo-se já consciência das
grandes reservas de guano e salitre presentes na região foi acertada exploração conjunta
dos minerais extraídos entre os paralelos 23 e 25, apesar dos limites terem sido traçados no
paralelo 24. O que significa que inicialmente a vila de Antofagasta esteve sob soberania
boliviana, embora tenha sido autorizada a penetração de capital chileno para a exploração
mineira da região (FILIPPI; CHARÃO, 2015; MORIZON, 2005).
No ano de 1871, a nova situação governista boliviana declarou nulo o tratado de
1865 e assinou novo acordo em 1874. A linha de fronteira foi mantida no paralelo 24, porém
acordou-se que em 25 anos os direitos chilenos de livre exploração terminariam em seus
lindes. Durante este tempo as atividades chilenas em território boliviano ainda estariam
protegidas de impostos. O governo da Bolívia não contava, entretanto, com a crise
econômica e a consequente pressão social do fim da década de 1870. Assim, dado novo
contexto, chancela imposto de 10 centavos por quinto de salitre explorado em seu território
(FILIPPI; CHARÃO, 2015; MORIZON, 2005).
Quando a chilena Compañia de salitre y ferrocariles de Antofagasta, valendo-se do
acordo de 1874, recusou-se a efetuar pagamento do novo imposto, o governo boliviano
confiscou toda estrutura operativa da empresa. Alegando abuso contra nacionais chilenos, o
exército do Chile invadiu Antofagasta e declarou guerra a Bolívia nos primeiros meses de
1879. Conhecida como Guerra do Pacífico, esta terminaria somente em 1884 com a
assinatura do Tratado de Valparaíso, acordo de caráter provisório que dava ao Chile a
soberania sobre as províncias de Antofagasta e Tarapacá. Ou seja, sobre todo o litoral
boliviano (FILIPPI; CHARÃO, 2015; MORIZON, 2005).
As duas décadas que se seguiram á assinatura do Tratado de Valparaíso foram
marcadas por intensas negociações bilaterais com o objetivo de se chegar a um tratado de
paz definitivo. Este foi possível somente na virada do século com a chegada do partido
liberal ao poder na Bolívia. No ano de 1904 assinou-se o Tratado de Paz e Amizade onde a
o país cedeu de modo absoluto e perpétuo os territórios incorporados pelo Chile ao fim da
Guerra do Pacífico (Art. II) em troca da construção de uma linha férrea a ligar o porto de
Arica a La Paz (Art. III), da construção em um prazo de 30 anos de rede ferroviária dentro da
Bolívia (Art. III), do pagamento de 300 mil libras esterlinas (Art. IV) e do livre trânsito
comercial e uso dos portos de Arica e Antofagasta (Art. VI). O que significou a
institucionalização do status quo pró-Chile estabelecido ao fim da Guerra do Pacífico em
1884 (FILIPPI; CHARÃO, 2015; MORIZON, 2005).
Duas décadas depois, a demanda boliviana por acesso ao mar aparece pela primeira
vez em âmbito internacional. Em 1920, o liberal Gutiérrez Guerra é derrubado do poder
boliviano por um golpe de caráter republicano orquestrado por Bautista Saavedra e o novo
governo abre processo em meio à recém-criada Liga das Nações pedindo revisão do acordo
ratificado em 1904. No ano seguinte, a comissão responsável responde negativamente ao
inquérito da Bolívia, alegando ser este infundado e estar fora do escopo do órgão. Para os
membros da comissão, tendo o Tratado de Paz e Amizade sido ratificado por ambos e
estando ele dentro dos ditames do direito internacional qualquer modificação em seu
conteúdo competia exclusivamente a livre vontade dos Estados signatários (FILIPPI;
CHARÃO, 2015; MORIZON, 2005)
Na segunda metade da década de 1920, Frank Kellog, em tentativa de mediação do
conflito, propõe a cessão das províncias de Tacna e Arica, ainda em litígio entre Chile e
Peru, à Bolívia em troca de compensações de ordem econômica. Apesar de resposta inicial
positiva para a abertura de negociações por parte do Chile, o governo peruano negou de
imediato a proposta. Além disso, de modo a esvair as expectativas bolivianas, Peru e Chile
chegam a acordo de limites definitivo no ano de 1929. Conhecido como Tratado de Lima o
acordo além de estabelecer definitivamente a província de Tacna como peruana e a
província de Arica como chilena, proibiu por meio de protocolo suplementar cessão futura de
parte ou da totalidade dos territórios acordados a uma terceira potência sem acordo prévio
entre os dois Estados (FILIPPI; CHARÃO, 2015).
Em 1946, pela primeira vez será levantada a possibilidade de abertura de um
corredor no Atacama. German Riesco, ministro de relações exteriores do Chile à época,
propõe cessão de mancha de 10 km de litoral ao longo da fronteira com o Peru em troca da
possibilidade de se utilizar em conjunto as águas do rio Desaguadero para produção de
energia elétrica e do lago Titicaca para irrigação de plantações na província de Arica. O
Peru, entretanto, baseando-se no protocolo complementário do Tratado de Lima intervém na
negociação e nega a possibilidade de um acordo, alegando a inadmissibilidade do uso
conjunto pelos três países das águas do Desaguader e Titicaca, na medida em que são
marco da fronteira entre Peru e Bolívia (MORIZON, 2005).
Durante os primeiros anos do governo Pinochet no Chile, uma vez mais a
possibilidade de abertura de um Corredor no Atacama foi levada para a mesa de
negociações. As relações diplomáticas, rompidas desde 1862, foram reestabelecidas,
iniciaram os contatos entre representantes dos dois governos e em 1975 chega-se ao
acordo de Charaña. Neste, previa-se a cessão de um corredor de cerca de 50 km² na região
de Arica que daria cerca de 8 km de costa à Bolívia. Em troca, o governo boliviano deveria
abrir mão da mesma extensão territorial em algum ponto de seu território. Uma vez mais,
porém, o Peru contrapõe-se ao acordado por Bolívia e Chile e propõe a criação de uma
zona tri-nacional no território a ser cedido pelo Chile. Tendo o governo Pinochet não
aceitado a alternativa peruana, as negociações se encerram e em 1978 as relações
diplomáticas entre Bolívia e Chile foram rompidas, status que permanece até os dias de hoje
(FILIPPI; CHARÃO, 2015; MORIZON, 2005).
Apesar de permanentes menções em âmbito da Organização dos Estados
Americanos (OEA), a questão permaneceu sobre panos quentes até o ano de 2004, quando
da marca de 100 anos da assinatura do Tratado de Paz e Amizade. Carlos Mesa, presidente
boliviano à época, declarou em discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas a
atualidade da reivindicação boliviana por acesso ao mar. Da mesma maneira, no mês
seguinte, Siles del Valle, ex-ministro de relações exteriores da Bolívia, declara a
necessidade de reabertura das negociações com o Chile. Entretanto, apesar de ânimos
reanimados, durante os governos Carlos Mesa e Ricardo Lagos nenhuma grande
aproximação se desenvolveu (FILIPPI; CHARÃO, 2015; MORIZON, 2005).
Durante o primeiro mandato de Michele Bachelet no Chile, de maneira tangente o
tema foi levantado na chamada ‘Agenda dos 13 pontos’. Documento publicado de maneira
conjunta com o governo boliviano e que indicava em seu ponto seis somente a necessidade
de se manter relações bilaterais construtivas sobre o tema. Após a eleição de Sebástian
Piñera ao governo chileno em 2010 o país adota posição ainda mais irredutível, se
recusando uma vez mais a abrir negociações bilaterais ao alegar falta de base legal para a
demanda boliviana, visto que a questão havia sido resolvida em 1904 (DIRECCIÓN
ESTRATÉGICA DE REIVINDICACIÓN MARÍTIMA, 2014; FILIPPI; CHARÃO, 2015).
Evo Morales, então, busca um novo curso de ação para além da negociação
bilateral. Em âmbito nacional institucionaliza, em 2011, a demanda boliviana por meio da
criação do Conselho Nacional de Reivindicação Marítima, órgão responsável por formular as
diretrizes da posição boliviana sobre o tema, e da Direção Estratégica de Reivindicação
Marítima (DIREMAR), responsável por transformar em ação concreta o decidido em âmbito
do conselho. Ademais, em âmbito internacional, apresenta petição diante da Corte
Internacional de Justiça (CIJ) no ano de 2014. Por meio dela o governo da Bolívia espera o
julgamento da obrigação chilena de negociar uma saída ao mar dentro de um prazo
razoável e de maneira efetiva (DIRECCIÓN ESTRATÉGICA DE REIVINDICACIÓN
MARÍTIMA, 2014).
Análise do Conflito
A questão de Antofagasta entre Bolívia e Chile insere-se dentro da concepção de
Huth (1998) acerca das características de questões territoriais. Na díade, enquanto a Bolívia
não aceita os limites institucionalizados pelo tratado de 1904, o governo chileno assume
seus ditames como dentro da normalidade do direito internacional e, portanto, legais. Isto é,
por um lado, ao longo do tempo a Bolívia apresentou sistematicamente demandas por
reconstituição territorial, simbolizadas pela defesa de seus direitos por um acesso soberano
ao mar e pela potencial ilegalidade do tratado de 1904. Por outro lado, a posição chilena é a
de que não há nada em suspenso entre os dois países, visto que em 1904 solucionou-se a
questão. Ademais, que não há a possibilidade de discutir a questão da abertura de um
acesso soberano ao mar para a Bolívia sem antes consultar o Peru e por fim, que se
adotado o principio do uti possidetis isto só reforçaria os direitos chilenos sobre a região
(FILIPPI; CHARÃO, 2015; MORIZON, 2005).
Dentre os fatores responsáveis pela alta saliência da questão, estão presentes os
três tipos destacados por Hensel (1996): tangíveis, intangíveis e reputacionais. No que
tange aos fatores tangíveis, se pode dividi-los em fatores geoeconômicos e fatores
geoestratégicos. A região em disputa é caracterizada por seus abundantes recursos
minerais. Nos primeiros anos do conflito destaca-se a presença massiva de jazidas de
salitre e guano. Até o fim da primeira guerra mundial, ambos os elementos eram utilizados
como matéria prima para a produção de fertilizantes e pólvora, na medida em que com o
devido tratamento transformavam-se em nitrato de sódio. Em meados de 1910, com a
descoberta da Síntese de Haber Bosch, responsável pela fabricação de amoníaco a partir
da manipulação do nitrogênio e do hidrogênio, a exploração de salitre e guano entra em
crise. Porém, a indústria do cobre já começava a dar os primeiros passos com a descoberta
de grandes jazidas do mineral, como a mina de Chuquimata, que, até hoje, é o principal
produto de exportação chileno (DIRECCIÓN ESTRATÉGICA DE REIVINDICACIÓN
MARÍTIMA, 2014; FILIPPI; CHARÃO, 2015; MORIZON, 2005).
Apesar de hoje o governo chileno garantir a Bolívia o livre trânsito e o livre uso dos
portos de Arica e Antofagasta, o acesso soberano ao mar representaria um trunfo para o
governo boliviano. Em termos geoestratégicos, significaria o fim de uma relativa
dependência em relação ao Chile. Mesmo tendo o livre trânsito a território chileno e o livre
acesso aos portos assegurado por tratados, interesses nacionais bolivianos podem vir no
futuro a ser postos em cheque, como ocorrido na década de 1930, em meio a guerra do
Chaco, e na década de 1950, após a nacionalização do setor mineiro por Victor Paz
Estensoro. Além disso, representaria uma maior perspectiva de inserção internacional e de
formação de alianças, dado contexto de negociação do Tratado Transpacífico (MORIZON,
2005).
Uma vez mais, em termos geoeconômicos, um acesso soberano ao mar significaria
para a Bolívia acesso a novos mercados pela diminuição dos custos de transporte e
portuários, responsáveis pela perda em competitividade por parte de produtos bolivianos.
Custos estes que, segundo Morizon (2005), se viram aumentados em 300% após a
privatização por parte do Chile dos portos de Antofagasta e de Arica. Ademais, facilitaria a
exportação de Gás Natural para fora da América do Sul, a partir da construção de usinas
portuárias responsáveis por sua congelação. Hoje, a dependência aos gasodutos restringe
as exportações bolivianas a seus países vizinhos (MORIZON, 2005).
Em relação aos fatores intangíveis, tem-se que a guerra deixou uma ferida ainda
aberta na sociedade boliviana, sendo vista como um evento que mutilou o país, o
enclausurou no meio do continente sul-americano e traçou seu destino como país
subdesenvolvido. O acesso ao mar é visto como precondição para o desenvolvimento
boliviano e como direito histórico de sua população. Em termos de Thual (1999), o desejo ou
impulso territorial, a demanda por acesso ao mar, é o cavaleiro ou o braço armado da
nacionalidade boliviana, tendo se institucionalizado com a criação do Dia do Mar, da
marinha boliviana e por sua inscrição na constituição nacional como objetivo nacional último.
A reivindicação boliviana pode ser considerada como uma espécie de anestesia social,
sendo o enclausuramento apontado como causa principal de problemas internos e o acesso
soberano ao mar como solução para os infortúnios bolivianos (MORIZON, 2005; THUAL,
1996)
Enfim, o elemento reputação responde pela saliência da questão pelo lado chileno e
é um elemento explicativo para a negativa do país em relação à abertura de novas
negociações com a Bolívia. O aceite às negociações, uma eventual permuta territorial e a
assinatura de um novo tratado com a Bolívia, substituindo o de 1904, podem dar inicio a
novas divergências com o Peru. A região de Arica ao norte do Chile foi ocupada durante a
Guerra do Pacífico e só teve sua autenticação como território chileno em 1929 após anos de
negociação. Há que se destacar, as conjunturas de 1926, 1946 e 1975 onde o fator Peru foi
um dos grandes responsáveis pela não solução da questão chileno-boliviana. É nesse
sentido que Roca (2004, p.14) afirma que o Chile colocou o cadeado na saída boliviana ao
mar, enquanto o Peru guardou a chave (FILIPPI; CHARÃO, 2015).
O conflito territorial na díade Chile-Bolívia pode ser analisado a partir de sua divisão
em três fases distintas. A primeira, onde a relação se caracteriza por ser de rivalidade
severa com o predomínio da guerra, vai da expulsão definitiva da Espanha em 1865 até a
assinatura do Tratado de Paz e Amizade em 1904. A segunda, onde a relação se
caracteriza por ser de paz negativa e pelo predomínio de negociações bilaterais, vai de 1904
e termina no ano de 2010. Por fim, a partir do ano de 2010, a relação se mantém dentro do
espectro da paz negativa, apesar do predomínio da arbitragem internacional como modo de
solução das controvérsias.
Até meados do século XX o contexto normativo internacional via o uso da força pelos
Estados como modo legal de se solucionar seus conflitos de interesse. A conquista territorial
pelo uso da força era vista como prerrogativa dos Estados e os tratados de paz usualmente
as institucionalizavam. Chile e Bolívia nas últimas décadas do século XIX, impulsionados
pela questão territorial e pelo contexto normativo internacional, adotaram em sua relação
cursos de ação baseados na Realpolitik que levaram em 1979 a eclosão da Guerra do
Pacífico. Nesta o Chile ocupa a região de Antofagasta, Arica e Tacna e enclausura a Bolívia
na hinterlândia da América do Sul. Por fim, a conquista chilena é institucionalizada a partir
da assinatura do Tratado de Paz e Amizade em 1904.
A partir do período entre guerras e, em especial, no pós-segunda guerra mundial, o
contexto normativo internacional começa a se modificar. A conquista por meio do uso da
força passa a ser controlada por meio do surgimento de um regime internacional de
integridade territorial. Os tratados de paz não mais confirmam ganhos territoriais realizados
por meios coercitivos e o principal critério para modificações de soberania passa a ser o
reconhecimento por parte dos outros Estados. Como bem destaca Roca (2004) no título de
seu artigo, o Tratado de 1904 garante a paz, mas não a amizade entre Bolívia e Chile. Isto
é, ele eleva a relação para o nível da paz negativa, entretanto, por institucionalizar um status
quo desfavorável à Bolívia, ele não colocará um fim ao conflito territorial. A partir da década
de 1910 até o fim da década de 2000 o governo boliviano constantemente buscará se
aproximar do Chile de modo a viabilizar um acesso soberano ao mar por meio de
negociações bilaterais. A força ou a ameaça de seu uso, apesar de não ter desaparecido
completamente do espectro, não esteve presente na relação.
No começo da década de 2010, após constantes negativas por parte do governo
chileno de reabrir as negociações bilaterais a Bolívia decide recorrer à Corte Internacional.
Atitude justificada pelo presidente Evo Morales em seu discurso comemorativo ao dia do
mar em 23 de Março de 2011. Durante sua fala o presidente enfatiza o contexto normativo
internacional e a evolução dos mecanismos de resolução pacífica de controvérsias como
essenciais para a escolha do curso de ação boliviano. Após a falha no alcance de uma
solução por meio das negociações bilaterais Evo Morales encontra em Haia uma alternativa
ao uso da força. O que demonstra o impacto do contexto normativo internacional na ação
estatal e é indício de que, apesar de ainda presente a questão territorial, por agora a relação
diádica entre Bolívia e Chile tende a se manter estável dentro do campo da Paz Negativa
(DIRECCIÓN ESTRATÉGICA DE REIVINDICACIÓN MARÍTIMA, 2014, p.71-72).
Considerações Finais
O objetivo deste artigo foi o de demonstrar o impacto do contexto normativo
internacional no modo pelo qual os Estados adotam para solucionar seus conflitos de
interesse, em particular em torno de questões territoriais. Para tanto, apresentou-se uma
perspectiva questão-direcionada para os estudos de Paz e Conflito que tem nas questões
territoriais a causa subjacente para o surgimento de relações de rivalidade. Na última seção,
tendo sido analisado o histórico conflito entre Bolívia e Chile pela região do Atacama e, em
especial, pela província de Antofagasta, concluiu-se que a hipótese de trabalho foi
confirmada. As mudanças no contexto normativo internacional ao longo dos anos foram
responsáveis pela mudança na maneira pela qual os lados trataram a questão territorial e,
assim, para o caminhar da díade desde o eixo da rivalidade até o eixo da paz negativa.
Desde descobertas as minas de salitre e guano na região de Antofagasta na
segunda metade do século XIX, Bolívia e Chile passaram a dirigir suas atenções para o
local. Tendo presente um contexto normativo internacional onde a guerra era vista como
prerrogativa dos Estados e um meio legal para a conquista de seus objetivos, esta eclode
em 1879 tendo como resultado a incorporação da região ao Chile e o enclausuramento da
Bolívia na hinterlândia da América do Sul. O novo status quo favorável ao Chile
institucionalizou-se em 1904 com o Tratado de Paz e Amizade e desde então sucessivos
governos bolivianos buscam maneiras de revertê-lo. Durante quase um século, o curso de
ação adotado primordialmente foram às negociações bilaterais. Na impossibilidade de se
chegar a uma conclusão, em 2010 Evo Morales aciona o CIJ de forma a levar o caso a
Arbitragem Internacional.
Apesar de presença constante da questão territorial, dado contexto normativo
internacional que ofereceu a Bolívia vias pacíficas para se lidar com a controvérsia, temos
uma situação, pós 1904, onde se prevaleceu a paz negativa em detrimento da rivalidade.
Mesmo que a presença da questão territorial ainda impeça o aprofundamento da paz na
relação diádica. Acredita-se que a evolução para o eixo da paz positiva e uma definitiva
estabilização da região só será possível com uma resolução mutualmente satisfatória do
conflito. Encaixar-se-ia, assim, uma das últimas peças do quebra-cabeça sul-americano, e
estaria aberta uma nova conjuntura marcada pela possibilidade de ainda maior integração
entre os países da região.
Bibliografia BULL, Hedley. The Anarchical Society. New York: Columbia University Press, 1977 DIRECCIÓN ESTRATÉGICA DE REIVINDICACIÓN MARÍTIMA. El Libro del Mar. La Paz: Diremar, 2014 FILIPPI, Eduardo; CHARÃO, Carla. Chile e Bolívia e o conflito para alcançar o mar: guerra do pacífico e mudanças nas relações entre os dois países. Conjuntura Austral, v.6, n.27-28, 2015 FISHER, Ronald. Methods of Third-Party Intervention. In: FISCHER, Martina; GIESSMANN, Hans; SCHMELZLE, Beatrix. Transforming Ethnopolitical Conflict: The Berghof Handbook. Berlin: Barbara Budrich, 2010 GENT, Stephen. The politics of International Arbitration and Adjudication.Penn State Journal of Law and International Affairs, v.2, n.1, pp. 66-77, 2013 GIBLER, Douglas. The Territorial Peace: Borders, State development, and International Conflict. Cambridge: Cambridge University Press, 2012
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