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Revista do Ministério Público do RS Porto Alegre n. 73 jan. 2013 – abr. 2013 p. 125-155 6 OS MEIOS ALTERNATIVOS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS: INSTRUMENTOS DE AMPLIAÇÃO DO ACESSO À JUSTIÇA E DE RACIONALIZAÇÃO DO ACESSO AOS TRIBUNAIS Marcelo Malizia Cabral * Sumário: 1. Introdução. 2. Enquadramento terminológico: acesso ao direito, acesso à justiça e acesso aos tribunais. 3. O acesso aos tribunais na Constituição Federal de 1988. 4. A garantia funda- mental de acesso aos tribunais e os meios alternativos de resolução de conflitos. 5. Uma proposta de política pública para a ampliação do acesso à justiça com a utilização dos meios alternativos de resolução de conflitos. 6. Considereações finais. 7. Referências. 1 Introdução A demanda do sistema de justiça brasileiro tem se apresentado significa- tiva e crescente, realidade que não significa, necessariamente, possuam os indi- * Graduado em Direito pela Universidade Federal de Pelotas (1994). Mestre em Direitos Funda- mentais pela Universidade de Lisboa (2013). Mestre em Poder Judiciário pela Fundação Getúlio Vargas – FGV, RJ (2012). Especialista em Poder Judiciário pela Fundação Getúlio Vargas – FGV, RJ (2008). Especialista em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS (2008). Membro do Núcleo de Inovação e Administração Judiciária da Escola Superior da Magistratura do RS. Consultor do Plano de Gestão pela Qualidade da Corregedoria-Geral da Jus- tiça do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Juiz de Direito no RS. Coordenador da Central de Conciliação e Mediação e do Projeto Ronda da Cidadania, na Comarca de Pelotas. Professor do Curso de Direito da Universidade Católica de Pelotas – UCPel. Professor Convidado do Curso de Especialização em Educação em Ética e Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Professor Convidado do Curso de Especialização em Direitos Hu- manos e Cidadania da Universidade Federal do Pampa Unipampa.

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Revista do Ministério Público do RS Porto Alegre n. 73 jan. 2013 – abr. 2013 p. 125-155

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OS MEIOS ALTERNATIVOS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS:INSTRUMENTOS DE AMPLIAÇÃO DO ACESSO À JUSTIÇA

E DE RACIONALIZAÇÃO DO ACESSO AOS TRIBUNAIS

Marcelo Malizia Cabral*

Sumário: 1. Introdução. 2. Enquadramento terminológico: acesso ao direito, acesso à justiça e acesso aos tribunais. 3. O acesso aos tribunais na Constituição Federal de 1988. 4. A garantia funda-mental de acesso aos tribunais e os meios alternativos de resolução de confl itos. 5. Uma proposta de política pública para a ampliação do acesso à justiça com a utilização dos meios alternativos de resolução de confl itos. 6. Considereações fi nais. 7. Referências.

1 Introdução

A demanda do sistema de justiça brasileiro tem se apresentado signifi ca-tiva e crescente, realidade que não signifi ca, necessariamente, possuam os indi-

* Graduado em Direito pela Universidade Federal de Pelotas (1994). Mestre em Direitos Funda-mentais pela Universidade de Lisboa (2013). Mestre em Poder Judiciário pela Fundação Getúlio Vargas – FGV, RJ (2012). Especialista em Poder Judiciário pela Fundação Getúlio Vargas – FGV, RJ (2008). Especialista em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS (2008). Membro do Núcleo de Inovação e Administração Judiciária da Escola Superior da Magistratura do RS. Consultor do Plano de Gestão pela Qualidade da Corregedoria-Geral da Jus-tiça do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Juiz de Direito no RS. Coordenador da Central de Conciliação e Mediação e do Projeto Ronda da Cidadania, na Comarca de Pelotas. Professor do Curso de Direito da Universidade Católica de Pelotas – UCPel. Professor Convidado do Curso de Especialização em Educação em Ética e Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Professor Convidado do Curso de Especialização em Direitos Hu-manos e Cidadania da Universidade Federal do Pampa Unipampa.

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víduos índice satisfatório de facilidade no acesso à justiça, estejam a levar suas pretensões ao sistema de justiça adequadamente ou mesmo que confi em e este-jam satisfeitos com a efi ciência do sistema de resolução de confl itos.

Ao contrário, pesquisa realizada pela Fundação Getulio Vargas demonstrou que 58,3% dos entrevistados acreditam que o acesso à justiça no Brasil é ine-xistente ou difícil, 78,1% que o custo do Poder Judiciário é elevado, 59,1% que o Poder Judiciário não é competente ou tem pouca competência para solucio-nar confl itos, 92,6% que o Judiciário resolve os confl itos de forma lenta ou muito lenta, revelando-se o índice de confi ança no sistema de justiça em 5,9 pontos.1

No mesmo sentido, levantamento realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, com o objetivo de medir os índices de percepção social da população sobre uma série de serviços de utilidade pública, apresentou uma avaliação geral bastante crítica da justiça, de 4,55, diante de questão que solici-tava a atribuição de nota de zero a dez.2

Na tentativa de distinguir os vários aspectos que informam a percepção ge-ral dos entrevistados, a pesquisa solicitou a avaliação de dimensões específi cas que a literatura sugere serem relevantes na formação de juízos sociais sobre a justiça.3

As dimensões que mais importam a este estudo são aquelas relativas ao custo e à facilidade no acesso, com médias de 1,45 e 1,48, respectivamente, em uma escala de zero a quatro, também a indicar uma percepção bastante crítica da população nesse particular.4

Ao lado dessa clara percepção da população de um acesso à justiça trun-cado e de sua repercussão negativa na avaliação da população quanto ao siste-

1 A pesquisa foi realizada nos meses de janeiro, fevereiro e março de 2010 e ouviu 1.598 pessoas em todo o Brasil. Cf. Fundação Getúlio Vargas. Relatório ICJ/Brasil. Disponível em: <http://www.direitogv.com.br/default.aspx?PagId=HTICVQTP&ID=267>. Acesso em: 28 ABR. 2010.

2 Cf. INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Sistema de Indicadores de Percep-ção Social – Justiça, p. 5. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=6141&Itemid=2>. Acesso em: 5 JAN. 2011.

3 “São elas: i) a rapidez na decisão dos casos; ii) a facilidade no acesso; iii) o baixo custo, para que todos os cidadãos possam defender os seus direitos; iv) a capacidade de produzir decisões boas, que ajudem a resolver os casos de forma justa; v) a honestidade dos integrantes da justiça e a capa-cidade desta em punir os que se envolvem em casos de corrupção; e vi) a imparcialidade da justiça, decorrente de sua capacidade de tratar ricos e pobres, pretos e brancos, homens e mulheres, enfi m, todos de maneira igual. Para tanto, solicitou-se aos entrevistados que avaliassem como a justiça está em cada uma dessas dimensões: se muito mal; mal; regular; bem; ou muito bem.” Ibidem, p. 5-6.

4 Ibidem, p. 6. De igual modo, a repercussão da percepção que as pessoas têm sobre o acesso à justiça é bastante importante quando comparada à nota atribuída à justiça. Com efeito, as notas são meno-res para as pessoas que avaliam mal o acesso à justiça e melhores para aquelas que têm percepção contrária, conforme demonstra a Tabela E da pesquisa. “Efeito da avaliação sobre a facilidade no acesso na nota geral facilidade no acesso de zero a dez, que nota você daria para a justiça bra-sileira? Muito mal, 2,81; Mal, 4,03; Regular, 5,13; Bem, 6,35; Muito bem, 6,36”. Ibidem, p. 19.

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ma de justiça, sua seletividade resultou desvendada por pesquisa coordenada pela socióloga Maria Tereza Sadek, demonstrando a relação direta existente en-tre o índice de desenvolvimento humano (IDH) dos brasileiros – que considera a renda, o nível de educação e a expectativa de vida dos indivíduos em cada região do país – e o número de processos iniciados no sistema de justiça.5

Após afi rmar que o número de processos iniciados cresce e diminui na mes-ma proporção do índice de desenvolvimento humano das populações que habi-tam as mais diversas regiões do Brasil, circunstância que denuncia uma pro-funda desigualdade no acesso à justiça, a pesquisadora conclui que “qualquer proposta de reforma do Judiciário deve levar em conta que temos hoje uma Jus-tiça muito receptiva a um certo tipo de demandas, mas pouco atenta aos pleitos da cidadania”.6

Esses dados mostram-se especialmente preocupantes em um país que se apresenta como o oitavo no mundo em desigualdade social7 e também porque a assimetria no acesso e na utilização do sistema de justiça acentua as desigual-dades econômicas e sociais.8,9

Com efeito, de acordo com estudo sobre democratização e cidadania na América Latina, a falta de acesso às instituições formais do sistema judiciá-rio, o apoio popular generalizado a medidas autoritárias de controle social, vio-lência policial, impunidade, corrupção, justiça de favela, esquadrões da morte e justiceiros foram predominantes e abriram caminho para a consolidação não do Estado de direito democrático, mas do “desestado” de direito.10

Segundo José Renato Nalini “perante o Judiciário, não parece verdadeiro que todos sejam efetivamente iguais”, porquanto vastas camadas populacionais vem sendo singelamente excluídas da justiça convencional.11

5 Cf. SADEK, Maria Tereza; ARAÚJO, José Renato de Campos; LIMA, Fernão Dias de. O Judiciá-rio e a prestação da justiça. In: SADEK, Maria Tereza (Org.). Acesso à Justiça. São Paulo: Funda-ção Konrad Adenauer, 2001. p. 20-21.

6 Idem, ibidem, p. 41.7 Cf. Fórum de Entidades Nacionais de Direitos Humanos. Disponível em: <htpp://www.direitos.

org.br/index.ph p?option=com_content&task=view&id=288&Itemid=1>. Acesso em: 20 DEZ. 2010.8 Cf. SADEK, Maria Tereza. O Sistema de Justiça. São Paulo: Sumaré, 1999. p. 11.9 As consequências nefastas da exclusão de coletividades das esferas de legalidade no Brasil foram

exaustivamente examinadas por: FALCÃO, Joaquim. Transgressões coletivizadas e justiça por amostragem. In: CARDOSO, Fernando Henrique; MOREIRA, Marcílio Marques (Org.). Cultura das transgressões no Brasil: lições de história. São Paulo: Saraiva, 2008.

10 SLAKMON, Catherine; OXHORN, Philip. O poder de atuação dos cidadãos e a micro-governança da justiça no Brasil. In: SLAKMON, Catherine; MACHADO, Maíra Rocha; BOTTINI, Pierpaolo Cruz (Org.). Novas direções na governança da justiça e da segurança. Brasília: Ministério da Jus-tiça, Secretaria da Reforma do Judiciário, 2006. p. 31-58. p. 36-37.

11 Cf. O juiz e o acesso à justiça. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 30-31.

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A crise do sistema de justiça brasileiro também foi descrita com singular perspicácia por Joaquim Falcão, ao afi rmar que enquanto na maioria dos países desenvolvidos a questão do acesso à justiça é focalizada como desafi o de efeti-var o direito das minorias, no Brasil quem não tem acesso ao sistema de justiça é a maioria da população.12

De acordo com Boaventura de Sousa Santos, em conferência sobre o acesso à justiça no Brasil, existe no país uma demanda suprimida por justiça, representada por legiões de indivíduos que não conhecem seus direitos ou os conhecem mas sentem-se impotentes para reivindicá-los, o que chama de so-ciologia das ausências, asseverando que olhar para essa demanda é proceder-se a uma revolução democrática da justiça e conclui: “o acesso irá mudar a justiça a que se tem acesso”.13

Conceição Gomes esclarece que a “crise da justiça” é um problema que atravessa muitas fronteiras e está presente em países cultural, social e econo-micamente muito distintos, identifi cando como ponto comum a longa duração dos processos, reconhecida como um dos problemas mais graves dos atuais sis-temas judiciais, com custos sociais, políticos e econômicos muito elevados.14

No mesmo caminho, em apontamentos sobre o papel dos tribunais na pro-teção dos direitos fundamentais, José Alberto de Melo Alexandrino anota situar-se na zona da capacidade de prestação do sistema judicial talvez a maior difi culdade de efetivação dos direitos, liberdades e garantias – o espinho do jardim dos direitos.15

Identifi ca-se, assim, na atualidade, um inequívoco cenário de crise no acesso ao direito, à justiça e aos tribunais.

Deste modo, a clássica concepção de acesso à justiça – que o resumia à possibilidade de recurso aos tribunais para a dedução de uma pretensão – pre-cisa, agora, adequar-se à nova demanda por justiça e possibilitar o acesso ao direi-to aos indivíduos que se encontram impedidos de utilizar o sistema de justiça em razão de variados fatores.

A esse propósito, Mauro Cappelletti preconiza que o movimento de acesso à justiça deve “analisar e procurar os caminhos para superar as difi culdades ou obstáculos que fazem inacessíveis para tanta gente as liberdades civis e políticas”.16

12 Cf. FALCÃO, Joaquim. Acesso à justiça: diagnóstico e tratamento. In: ASSOCIAÇÃO DOS MA-GISTRADOS BRASILEIROS, AMB (Org.). Justiça: promessa e realidade. O acesso à justiça em países ibero-americanos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. p. 273-274.

13 Cf. Para uma revolução democrática da justiça. São Paulo: Cortez, 2008. p. 32-33.14 Cf. O tempo dos tribunais: um estudo sobre a morosidade da Justiça. Coimbra: Coimbra Editora,

2003. p. 12.15 Cf. O discurso dos direitos. Coimbra, Coimbra Editora, 2011. p. 367.16 Cf. Os métodos alternativos de solução de confl itos no quadro do movimento universal de acesso à

justiça. Revista de Processo, ano 19, n. 74, p. 83, 1994.

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Paula Costa e Silva, por sua vez, proclama que o acesso ao direito “dei-xou de ser um direito de acesso ao Direito através do direito de acesso aos tri-bunais para ser um direito de acesso ao Direito, de preferência sem contacto ou sem passagem pelos tribunais”.17

Noutras palavras, o direito de acesso à justiça não mais pode ser conside-rado como algo idêntico ao direito de acesso aos tribunais, devendo o exercício legítimo deste último ser antecedido por uma série de fi ltros.18

Em uma nova concepção de acesso à justiça o Estado compromete-se a resolver confl itos por meio de diversos sistemas de resolução de confl itos e não exclusivamente pela via dos tribunais.19

O acesso ao direito e à justiça corresponde, então, à garantia da efetividade dos direitos individuais e coletivos, devendo ser entendido como a possibilidade de acesso à entidade que os indivíduos considerarem a mais legítima e a mais adequada para solucionar seu confl ito e proteger os seus direitos.20

Dessa forma, garantir o acesso à justiça é assegurar que os cidadãos co-nheçam os seus direitos, que não se resignem quando estes são lesados e que tenham condições de vencer os custos de oportunidade e as barreiras econômicas para aceder livremente à entidade que consideram mais adequada para a reso-lução do litígio – seja uma terceira parte da comunidade, uma instância formal não judicial ou os tribunais judiciais.21

Exatamente a seletividade e a insatisfação social com o sistema de justi-ça brasileiro, bem como a transposição de uma visão reducionista de acesso à justiça – que o identifi ca com o acesso ao Poder Judiciário – para uma con-cepção de um acesso à justiça construído mediante um conjunto de mecanismos de resolução de confl itos, dentre os quais se encontram os tribunais, constituem o objeto deste artigo.

Com esse objetivo, realiza-se enquadramento terminológico, estabelecen-do-se os pontos comuns, as diferenças verifi cadas e procurando-se defi nir as expressões acesso aos tribunais, acesso ao direito e acesso à justiça, exami-nando-se, em sequência, o tratamento conferido pela ordem jurídica nacional à garantia de acesso à justiça.

17 Cf. A nova face da justiça: os meios extrajudiciais de resolução de controvérsias. Coimbra: Coim-bra Editora, 2009. p. 19.

18 Idem, ibidem, p. 21.19 Idem, ibidem, p. 26.20 Cf. Catarina Frade, A resolução alternativa de litígios e o acesso à justiça: A mediação do so-

breendividamento. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, v. 65, p. 126-127, 2003.21 Cf. PEDROSO, João; RINCÃO, Catarina; DIAS, João Paulo. E a justiça aqui tão perto? As

transformações no acesso ao direito e à justiça. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, v. 65, p. 79, 2003.

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Defi nem-se, após, os meios alternativos de resolução de confl itos e reve-la-se sua capacidade de ampliação do acesso à justiça, apresentando-se, ao fi m, uma proposta de política pública para a ampliação do acesso à justiça com a utilização dos meios alternativos de resolução de confl itos.

Registra-se, por fi m, que a investigação moveu-se com o método técnico--jurídico, valendo-se do exame de textos legais, doutrina e jurisprudência.

2 Enquadramento terminológico: acesso ao direito, acesso à justiça e acesso aos tribunais

As expressões acesso ao direito, acesso à justiça e acesso aos tribunais guardam similitudes que acabam por ocasionar uma confusão entre essas fi gu-ras a ponto de se utilizarem esses termos como sinônimos.

Todavia, um estudo mais acurado dessas realidades demonstra a existên-cia de aspectos comuns e de diferenças signifi cativas entre as expressões em comento, identifi cando-se, em regra, uma linha descendente de amplitude quan-do se examinam as expressões acesso ao direito, acesso à justiça e acesso aos tribunais.

Em linhas gerais, a expressão acesso ao direito – mais ampla que acesso à justiça e acesso aos tribunais22 – está ligada ao direito de informação das pes-soas para que tenham ciência e compreensão de seus direitos e possam, assim, perceber a existência de lesão a eles.23

Dessa forma, com conhecimento adequado sobre o conteúdo e a extensão de um direito24, seu titular pode ter acesso a ele mesmo sem 22 Diferentemente, para Ronnie Preuss Duarte a expressão acesso à justiça abrange o acesso aos tri-

bunais e o acesso ao direito. Cf. Garantia de acesso à justiça: os direitos processuais fundamen-tais. Coimbra: Coimbra Editora, 2007. p. 15.

23 Ao examinar o fenômeno da litigiosidade, Boaventura de Sousa Santos esclarece haver importante diferença entre a procura potencial e a procura efetiva por justiça, dependendo esta da possibili-dade de os indivíduos perceberem a ocorrência de lesão a um direito, o que somente ocorre quando têm acesso à informação. Dessa forma, não se pode afi rmar haja relação direta e absoluta entre litigiosidade e lesão a direitos, pois a percepção da lesão ao direito constitui fator fundamental e determinante à procura pelo sistema de justiça. O pesquisador também assevera ser menor a per-cepção da lesão aos direitos e a possibilidade de se transformar a lesão a um direito em um litígio na medida em que aumenta a vulnerabilidade dos indivíduos: “As pessoas expõem-se a danos e são injustamente lesadas em muito mais situações do que aquelas de que têm consciência” Cf. SANTOS, Boaventura de Sousa et al. Os tribunais nas sociedades contemporâneas: o caso português. Porto: Afrontamento, 1996. p. 44 e segs.

24 Essas informações devem integrar o sistema educacional dos Estados e também podem ser dissemi-nadas por intermédio da criação e do fortalecimento de serviços de informação e de assistência jurídica disponibilizados aos indivíduos para a defesa de seus direitos. Para tanto, o Estado e a so-ciedade civil, em ações autônomas ou com o estabelecimento de parcerias, podem realizar essa atividade educativa, v.g., por meio de ofi cinas de informação jurídica nos bairros, da criação promo-

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a utilização do sistema formal de acesso à justiça – que inclui os meios alternativos ou adequados de resolução de confl itos – e à margem do re-curso ao acesso aos tribunais.

Ao conceituar a garantia de acesso ao direito, Jorge Miranda explicita ser o conhecimento dos direitos25 a primeira forma de sua defesa: “Só quem tem consciência dos seus direitos consegue usufruir os bens a que eles cor-respondem e sabe avaliar as desvantagens e os prejuízos que sofre quando não os pode exercer ou efectivar ou quando eles são violados ou restringidos”.26,27

toras legais populares, de assessorias jurídicas universitárias, da capacitação de líderes comunitá-rios, do desenvolvimento da advocacia popular e de centros de justiça comunitária. Cf. BERIZONCE, Roberto O. Algunos obstáculos al acceso a la justicia. Revista dos Tribunais, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, v. 68, p. 67-85, 1992. p. 62. No mesmo sentido: SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. São Paulo: Cortez, 2008. p. 45 e ss. Urge, a tanto, na lição de Rodolfo de Camargo Mancuso, “a adoção de ações afi rmativas capazes de alterar, inclusive o direito substantivo, por modo a reduzir efetivamente as desigualdades; por outro lado, impende que a população seja devidamente informada sobre os seus direitos, sobretudo aqueles con-cernentes ao chamado mínimo existencial […]” Cf. A resolução dos confl itos e a função judicial no contemporâneo Estado de Direito (nota introdutória). Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 888, p. 26, 2009.

25 Sobre as relações entre direitos e deveres fundamentais, apresentando a ideia de que não há direitos sem deveres nem deveres em direitos, confi ra-se a lição de José Casalta Nabais (Por uma liberda-de com responsabilidade: estudos sobre direitos e deveres fundamentais. Coimbra: Coimbra Edito-ra, 2007), Segundo o autor: “Não há direitos sem deveres porque não há garantia jurídica ou fáctica dos direitos fundamentais sem o cumprimento dos deveres do homem e do cidadão indispensáveis à existência e funcionamento da comunidade estadual, sem a qual os direitos fundamentais não po-dem ser assegurados nem exercidos. E não há deveres sem direitos, porque é de todo inconcebível um estado de direito democrático assente num regime unilateral de deveres, já que contra ele se levantariam as mais elementares exigências de justiça e de respeito pelos direitos humanos […]”. Idem, ibidem, p. 315.

26 Cf. Manual de Direito Constitucional, Coimbra: Coimbra Editora, 2008, v. 4, p. 317. Noutro escrito, o doutrinador complementa: “Por isso, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão proclamou que “a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem” constituiriam “as únicas causas das desgraças públicas e da corrupção dos governos”. Cf. MIRANDA; Jorge; MEDEIROS, Rui. Constituição portuguesa anotada. Coimbra: Coimbra Editora, 2005. tomo 1.p. 176.

27 Na exposição de motivos do “Projecto de Proposta de Lei sobre Acesso ao Direito”, elaborado em Por-tugal na década de 80 do século passado, pode-se extrair a seguinte passagem, relativamente ao acesso ao direito: “Depois da revisão de 1982 o art. 20º da Constituição passou a conter uma inovação sem precedentes em direito comparado. Proclamou, na sua epígrafe, o “acesso ao Direito”. E, ligando essa epígrafe ao texto, ter-se-á que ela se reporta ao n.º 1: “todos têm direito à infor-mação e à protecção jurídica, nos termos da lei”. A fórmula “acesso ao Direito” tem sua origem perfeitamente reconhecível. Surgiu em Maio de 1977 na Ordem dos Advogados, num texto que sua Revista publicou com o título “O acesso ao Direito e a Ordem dos Advogados”. Não se in-ventou, então, nada de substancial. Mas usou-se uma designação que não costumava ser utilizada. Realmente do que sempre se fala é do “acesso à Justiça”. Cf. Ministério da Justiça de Portugal, Acesso ao Direito (Projecto de Proposta de Lei), Lisboa, Ministério da Justiça, 1987, p. 5.

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A expressão acesso à justiça, ao seu turno, pode ser considerada aquela com mais larga utilização e cujo conteúdo sofreu as mais profundas alterações nas últimas décadas.

Com efeito, a conceituação clássica de acesso à justiça resumia este ao acesso ao Poder Judiciário – ou aos tribunais –, chegando-se mesmo a confun-dir essas realidades28 e deixando-se, por regra, os meios alternativos de resolu-ção de confl itos à margem do conceito de acesso à justiça.29

Discorrendo sobre o acesso à justiça, Kazuo Watanabe registra que no Bra-sil “temos um meio normal, usual, que é a solução pelo Poder Judiciário, pela autoridade do Estado, e os meios alternativos, ainda em fase de organização”.30

A necessidade de superação dos obstáculos ao acesso à justiça e as pro-fundas transformações experimentadas pela demanda por justiça nas últimas décadas são algumas das circunstâncias que impuseram a revisão no conceito de acesso à justiça.31

O novo conceito de acesso à justiça valoriza e fomenta a utilização de meios alternativos de resolução de confl itos, comunitários e/ou estatais, tais co-mo a conciliação, a mediação e a arbitragem.

Nesse contexto é importante desapegar-se da visão de que só é possível a resolução de um confl ito por um caminho exclusivo ou quando houver inter-venção estatal e construir-se a ideia de que um sistema de resolução de confl i-tos é efi ciente quando conta com instituições e procedimentos que procuram prevenir e resolver controvérsias a partir das necessidades e dos interesses das partes.32

Esses mecanismos alternativos de resolução de confl itos – dentre os quais citam-se e focam-se a negociação, a conciliação, a mediação e a arbitragem – colocam-se ao lado da tradicional jurisdição como uma opção que visa vincular o tipo de confl ito ao meio de solução apropriado, apresentando-se também como mecanismos de inclusão social, na medida em que as partes se tornam

28 Cf. MARQUES, Alberto Carneiro. Perspectivas do processo coletivo no movimento de universali-zação do acesso à justiça. Curitiba: Juruá, 2007. p. 17.

29 Cf. BRAGA NETO, Adolfo. Aspectos relevantes sobre mediação de confl itos. Revista de Arbitra-gem e Mediação, ano 4, n. 15, p. 86, 2007.

30 Cf. WATANABE, Kazuo. Modalidade de mediação. In: DELGADO, José et al. Mediação: um projeto inovador. Brasília: Centro de Estudos Judiciários, CJF, 2003. p. 53.

31 A existência de óbices à realização do direito de acesso à justiça (de natureza econômica, social, cultural e legal) e a nova demanda por acesso à justiça como circunstâncias que impulsionaram a revisão do conceito de acesso à justiça são temas explorados por Mauro Cappelletti e Bryant Garth (Acesso à justiça. Traduzido por Ellen Gracie Northfl eet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1988. p. 15-16, 20-21).

32 Cf. SALES, Lilia Maria de Morais; RABELO, Cilana de Morais Soares. Meios consensuais de solução de confl itos – instrumentos de democracia. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 46, n. 182, p. 75-88, 2009. p. 75-76.

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corresponsáveis pela construção de uma resolução mais adequada para suas contendas e, ainda, de pacifi cação social, já que um dos objetivos dos mesmos é que as partes aprendam a administrar seus confl itos por meio do diálogo.33

Sublinhe-se, de igual modo, que essa nova concepção de acesso à justiça implica sua ampliação na medida em que os meios alternativos de resolução de confl itos apresentam-se mais próximos, simples e desburocratizados, permi-tindo, assim, a aproximação do sistema de justiça daqueles que, não contempla-dos pelo sistema tradicional, não chegariam ao sistema de resolução de confl itos.34

Com efeito, quando se trata de solução adequada dos confl itos de interes-ses, o preceito constitucional que assegura o acesso à justiça traz implicita-mente o princípio da adequação; não se assegura apenas o acesso ao Poder Judiciário, mas se assegura o acesso para obter uma solução adequada aos con-fl itos.35,36

Ademais, vale a anotação de que a nova concepção de Estado – liberal – não apenas aceita, mas também reclama o desenvolvimento de um sistema de resolução de confl itos por meio de base autônoma, substituindo-se ao modelo de Estado autoritário que não admitia compartilhar a tarefa de resolver confl itos.37,38

José Joaquim Gomes Canotilho e Vital Moreira, em anotação ao art. 20º da Constituição da República Portuguesa, sob a epígrafe “acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva”, referem que o dispositivo “não pode ser interpre-tado como a consagração de um Estado Judiciário ou Estado de Justiça,

33 Idem, ibidem.34 Cf. PEDROSO, João. A justiça em Portugal entre a(s) crise(s) e a(s) oportunidade(s) – Contributo

para a construção de um novo paradigma de política pública de justiça. Revista Scientia Iuridica, Braga, Editora Universidade do Minho, tomo 55, n. 306, p. 263-302, 2006. p. 286.

35 Cf. WATANABE, Kazuo. Modalidade de mediação. In: DELGADO, José et al. Mediação: um pro-jeto inovador. Brasília: Centro de Estudos Judiciários, CJF, 2003.p. 56.

36 Discorrendo sobre as perplexidades da administração judiciária, Orlando Afonso anota que a exigên-cia de recurso à justiça tornou-se absoluta para o cidadão. “Todos têm o direito de dela se socorrer; tornou-se geral: ninguém é intocável; tornou-se universal: aplica-se a qualquer que seja a relação humana. Por isso passou-se a esperar tudo da Justiça: não só um acesso ilimitado, mas uma Justiça total”. Cf. AFONSO, Orlando. Apontamentos sobre organização judiciária. In: CONSELHO SU-PERIOR DA MAGISTRATURA. Reforma da Organização Judiciária. Instrumentos de Racionali-zação do Trabalho dos Juízes. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p. 23.

37 Cf. COSTA E SILVA, Paula. A nova face da justiça: os meios extrajudiciais de resolução de con-trovérsias. Coimbra: Coimbra Editora, 2009. p. 38-39.

38 Importa ressaltar, outrossim, que a valorização dos meios alternativos de resolução do confl itos não tem o condão de signifi car alguma espécie de “privatização do Poder Judiciário”. Ao contrário, ocasiona a ampliação do acesso à justiça e o aumento da capacidade de promoção da pacifi cação social pelo sistema de justiça. Cf. SILVA, Eduardo Silva da. Meios alternativos de acesso à justiça: fundamentos para uma teoria geral. Revista Processo e Constituição – Cadernos Galeno Lacerda de Estudos de Direito Processual Constitucional, Porto Alegre, Faculdade de Direito da UFRGS, n. 1, p. 163-192, 2004. p. 185.

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entendido como um Estado em que o direito se realiza apenas através do re-curso aos tribunais ou através da solução judicial de litígios”.39

A seguir, complementam: “O direito de acesso aos tribunais ou o direito à via judiciária é uma das dimensões – porventura a mais importante – mas não é a única de um direito de acesso ao direito”.40

Assentadas, assim, as realidades albergadas pelas expressões acesso ao direito e acesso à justiça, resta desvendar-se o signifi cado emprestado pela doutrina ao termo “acesso aos tribunais”.

Em comentários ao direito fundamental de acesso aos tribunais, Carlos Lopes do Rego explicita haver a Constituição Portuguesa contemplado, em seu art. 20º, expressamente o direito de acesso ao direito e o direito de acesso aos tribunais.41

Explicita-os, a seguir, na esteira do assentado no Acórdão 444/91, do Tribunal Constitucional: “O primeiro é, sem dúvida, mais amplo do que o se-gundo, já que engloba também o direito à informação e consulta jurídicas e ao patrocínio judiciário (cfr. o nº 2 do art. 20º da Lei Fundamental) e apresenta--se, frequentes vezes, como um pressuposto do segundo: o recurso a um tribu-nal com a fi nalidade de obter dele uma decisão jurídica sobre uma questão juridicamente relevante (direito de acesso aos tribunais ou direito à protecção ju-rídica através dos tribunais) pressupõe logicamente um correcto conhecimento dos direitos e deveres por parte dos seus titulares (direito de acesso ao direito)”.42

Para Ronnie Preuss Duarte, o acesso aos tribunais consiste na garantia de proteção da esfera jurídica do indivíduo sempre que se verifi car ameaça ou efetivo desrespeito a uma dada posição jurídica subjetiva de vantagem ou a afl ição de qualquer ofensa a interesses legalmente protegidos, por intermédio do exercício da jurisdição, através do processo equitativo.43

Constituindo a garantia de acesso aos tribunais, exatamente, o objeto des-ta investigação, examinar-se-ão, em sequência, sua previsão no ordenamento jurídico, seu conceito, conteúdo, âmbito de proteção, estrutura, bem assim as afetações que comporta.

39 Cf. Constituição da República Portuguesa Anotada. Coimbra: Coimbra Editora, 2007. v. 1, p. 410.40 Idem, ibidem.41 Cf. REGO, Carlos Lopes do. O direito fundamental de acesso aos tribunais e a reforma do proces-

so civil. Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues, Coimbra: Coimbra Editora, 2001. v. 1, p. 731-766. p. 734.

42 Idem, ibidem.43 Cf. DUARTE, Ronnie Preuss. Garantia de acesso à justiça: os direitos processuais fundamentais.

Coimbra: Coimbra Editora, 2007. p. 15.

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3 O acesso aos tribunais na Constituição Federal de 1988

A garantia fundamental de acesso aos tribunais encontra-se prevista no rol dos direitos e garantias fundamentais da República Federativa do Brasil, especifi camente no inciso XXXV do art. 5º da Constituição Federal de 1988, onde se proclama que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário le-são ou ameaça a direito”.

Além dessa previsão genérica que inaugura a Carta Magna, a doutrina aponta uma série de outras disposições que integram a garantia de acesso aos tribunais, tais como: a) a consagração do princípio da igualdade material como objetivo fundamental da República, tendo como meta a construção de “uma so-ciedade livre, justa e solidária, com a redução das desigualdades sociais” (art. 3º); b) o alargamento da assistência jurídica aos necessitados, que pas-sa a ser integral, compreendendo informação, consultas, assistência judicial e extrajudicial (art. 5º, LXXIV); c) a previsão de criação de Juizados espe-ciais destinados ao julgamento e à execução de causas cíveis de menor comple-xidade e penais de menor potencial ofensivo, com ênfase na informalidade do procedimento e na participação popular através do incentivo à conciliação, e à participação de juízes leigos (art. 98, I); d) a previsão para a criação de uma justiça de paz, remunerada, composta de cidadãos eleitos, com mandato de quatro anos, com competência para o processo de habilitação e a celebração de casamentos, para atividades conciliatórias e outras previstas em lei (art. 98, II); e) o tratamento constitucional da ação civil pública (art. 129, III), como instrumento hábil para a defesa de todo e qualquer direito difuso e coletivo; f) a criação de novos instrumentos destinados à defesa coletiva de direitos, tais como o mandado de segurança coletivo (art. 5º, LXX) e o mandado de injun-ção (art. 5º, LXXI), bem como a outorga de legitimidade para os sindicatos (art. 8º, III) e para as entidades associativas (art. 5º, XXI) defenderem os direi-tos coletivos e individuais homogêneos de seus fi liados; g) a reestruturação e o fortalecimento do Ministério Público, como órgão essencial à função juris-dicional do Estado, conferindo-lhe atribuições para a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses coletivos e sociais (art. 127, §§ 2º e 3º) e h) a elevação da Defensoria Pública à categoria de instituição essencial à função jurisdicional do Estado, com atribuição para a orientação jurídica e a de-fesa dos necessitados, devendo ser organizada em todos os estados, no distrito federal, territórios e, também, no âmbito da própria União (art. 134 e parágrafo único).44

44 Cf. CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Acesso à justiça: juizados especiais cíveis e ação civil pública. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 55-57.

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A garantia de acesso aos tribunais abrange, ainda, a exigência de razoável duração do processo, introduzida na ordem constitucional brasileira por meio da Emenda Constitucional nº 45/2004, que adicionou o inciso LXXVIII ao art. 5º da Carta Magna, estatuindo que “a todos, no âmbito judicial e administrati-vo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.45

A positivação do princípio do devido processo legal também foi introdu-zida pelo atual texto constitucional, cujo inciso LV do art. 5º dispõe que “nin-guém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.”

Após apontar que a garantia de acesso aos tribunais também alberga as garantias fundamentais do processo, Ronnie Preuss Duarte identifi ca no direito brasileiro as garantias a) do juiz independente e imparcial; b) do juiz natural e predeterminado por lei; c) do direito de acesso à justiça; d) do contraditório e da produção de prova; e) da razoável duração do processo; f) da gratuidade no acesso ao Poder Judiciário; g) da motivação da decisão judicial e h) da publicidade do processo.46

4 A garantia fundamental de acesso aos tribunais e os meios alternativos de resolução de confl itos

Meios alternativos de resolução de confl itos – MARC – é a denominação mais utilizada no tratamento dos mecanismos que permitem a obtenção da re-solução de um confl ito à margem da via jurisdicional,47 expressão que decorre

45 Jorge Miranda e Rui Medeiros, comentando a Constituição Portuguesa, advertem não indicar a Lei Maior parâmetros de concretização do conceito de prazo razoável – a exemplo do que ocorre com a Constituição brasileira –, após o que oferecem critérios à sua compreensão: “Em qualquer caso, na sua densifi cação, não se pode ignorar que o direito a uma decisão jurisdicional fi nal (a que a causa seja objecto de decisão) em prazo razoável não pode deixar de ser compatibilizado, por força do art. 20º, n. 4, com as exigências decorrentes de um processo justo e equitativo que permita a averiguação da verdade material e uma decisão ponderada (Acórdão nº 212/00). Além disso, independentemente de considerações de natureza subjectiva ou fundadas no modo como estão organizados os tribunais e distribuídos os juízes, um prazo razoável deve ser proporcionado à complexidade do processo […]” Cf. Constituição Portuguesa anotada. Coimbra: Coimbra Editora, 2005. tomo 1, p. 192.

46 Cf. DUARTE, Ronnie Preuss. Garantia de acesso à justiça: os direitos processuais fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2007. p. 57.

47 Eduardo Silva da Silva, enquadrando os meios alternativos de resolução de confl itos como forma de ampliação e integrantes do acesso à justiça, propõe denominação diferente a essas ferramentas: “meios alternativos de acesso à justiça”. Cf. SILVA, Eduardo Silva da. Meios alternativos de acesso à justiça: fundamentos para uma teoria geral. Revista Processo e Constituição – Cadernos Galeno Lacerda de Estudos de Direito Processual Constitucional, Porto Alegre, Faculdade de Direito da UFRGS, n. 1, p. 163-192, 2004. p. 163.

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da tradução do termo mais recorrente na doutrina internacional para seu trata-mento: ADR – Alternative Dispute Resolution.48

A origem desses mecanismos remonta ao início da civilização, antes mes-mo do surgimento do Estado, quando os confl itos existentes entre as pessoas eram resolvidos instintivamente, ou seja, a parte interessada em satisfazer seu direito buscava sua satisfação através do uso da força, impondo sua vontade ao outro – era a chamada autodefesa ou autotutela, “a busca da justiça pelas pró-prias mãos”.49

Com o surgimento do Estado, desenvolvem-se meios de autocomposição de confl itos, onde os titulares do poder de decidir o confl ito são as próprias partes. São exemplos desses mecanismos a desistência (renúncia a direito), a submissão (reconhecimento jurídico do pedido), a transação, etc .50,51

Esta autonomia pode, também, ser alcançada com a participação de ter-ceiros, o que ocorre nas fi guras da mediação e da conciliação, quando as partes chegam a um acordo com o auxílio de uma terceira pessoa.52

Mais tarde, a titularidade do poder decisório transfere-se das partes (auto-nomia) para um terceiro (heteronomia), tendo como expressão a arbitragem e a jurisdição.53

A arbitragem inaugurou os métodos heterônomos de solução de confl itos, quando as partes designavam uma pessoa alheia a elas, depositária de confi ança e credibilidade – geralmente os sacerdotes e os anciãos –, para decidir a res-peito da controvérsia.54

48 Esta é a expressão norte-americana para denominação desses mecanismos. Na Argentina e nos de-mais países da América Latina costuma-se traduzir a expressão para RAD – Resoluciones Alterna-tivas de Disputas; na França se fala em MARC – Modes Alternatifs de Règlement des Confl its. Cf. CALMON, Petrônio. Fundamentos da mediação e da conciliação. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 85.

49 Cf. MORAIS, José Luis Bolzan de. Mediação e arbitragem: alternativas à jurisdição. Porto Ale-gre: Livraria do Advogado, 1999. p. 117.

50 Ibidem.51 Petrônio Calmon oferece classifi cação à autocomposição: “A autocomposição pode ser unilateral,

quando a atitude altruísta é proveniente de apenas um dos envolvidos; ou bilateral, quando o al-truísmo caracteriza a atitude de ambos. A autocomposição unilateral se manifesta pela renúncia, quando aquele que deduz a pretensão (atacante) dela abre mão, ou pela submissão, quando o ata-cado abre mão de sua resistência. A autocomposição bilateral se manifesta pela transação, acordo caracterizado por concessões recíprocas, ou seja, quando todos os envolvidos em um confl ito abrem mão parcialmente do que entendem ser de seu direito. O atacante abre mão de parte de sua pretensão, enquanto o atacado abre mão de resistir à nova pretensão, já reduzida.” Cf. CALMON, Petrônio. Fundamentos da mediação e da conciliação. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 54.

52 Cf. MORAIS, José Luis Bolzan de. Mediação e arbitragem: alternativas à jurisdição. Porto Ale-gre: Livraria do Advogado, 1999. p. 118-119.

53 Idem, ibidem.54 Idem, ibidem.

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Com a ascensão da fi gura do Estado, transfere-se para este, gradativa-mente, o poder decisório dos confl itos, quando passa então, a decidir por inter-médio de um terceiro também, agora designado pelo próprio Estado, compondo sua função jurisdicional.55

A resolução de litígios,56 de outra parte, compreende duas categorias prin-cipais de processos ou modos de resolução, quais sejam, os processos heterô-nomos ou adjudicatórios e os processos autônomos ou consensuais.57

Entendem-se por mecanismos adjudicatórios aqueles nos quais a resolu-ção do litígio é vinculativa e não deriva do mandato das partes, mas decorre da ordem jurídica: um terceiro neutro e imparcial tem legitimidade para impor uma decisão aos litigantes, situação típica das decisões judiciais e também das decisões arbitrais, embora estas tenham na sua base o consenso quanto à es-colha do processo – convenção arbitral.58

Chamam-se também heterônomos porque assentam-se na atribuição a um terceiro do poder de ditar a solução do confl ito, seja através do monopólio público-estatal, seja através da designação privada.59

Os meios consensuais, ao seu turno, são aqueles em que as partes têm o con-trole do resultado e dos termos do processo: o terceiro neutro não tem poder para proferir uma decisão vinculativa das partes, mas pode auxiliá-las a cons-truir uma solução.60

Refi ra-se, de outro lado, que os meios alternativos de resolução de con-fl itos são procedimentos de natureza consensual – ainda que quanto à eleição do processo – que funcionam como alternativa à litigação nos tribunais e en-volvem a intervenção de um terceiro neutro e imparcial face à contenda.61

Também podem ser defi nidos como “cualquier proceso diseñado para resolver una disputa sin el concurso de los tribunales de justicia” ou como “aquellas instituciones cuya aplicación puede eliminar una controversia jurí-dica, de tal forma que se impida a las partes plantearla en vía judicial o se ponga término a un proceso ya comenzado”.62

55 Idem, ibidem.56 Litígios são os confl itos formalmente assumidos que exigem a intervenção de uma instância para

os pacifi car, assuma ela a forma de conciliação, mediação, arbitragem ou tribunal judicial. Cf. FRADE, Catarina. A resolução alternativa de litígios e o acesso à justiça: a mediação do sobreendi-vidamento. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, v. 65, p. 107-128, 2003. p. 108.

57 Idem, ibidem, p. 109.58 Idem, ibidem.59 Cf. MORAIS, José Luis Bolzan de. Mediação e arbitragem: alternativas à jurisdição. Porto

Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 134.60 Idem, ibidem.61 Idem, ibidem, p. 135.62 Cf. CARRASCO, Marta Blanco. Mediación y sistemas alternativos de resolución de confl ictos.

Madrid: Reus, 2009. p. 12.

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Ao discorrer sobre os mecanismos pacífi cos de resolução de confl itos, Paulo Otero propõe uma distinção entre os meios jurisdicionais e os meios não jurisdicionais.63

Os meios jurisdicionais envolvem a intervenção de tribunais na resolução do litígio e a respectiva decisão tem força de caso julgado, sendo esta modali-dade integrada por tribunais judiciais e tribunais arbitrais.64

Os meios não jurisdicionais não envolvem a intervenção de tribunais e não gozam da estabilidade das sentenças, podendo consistir em negociações diretas, bons ofícios, mediação e conciliação.65

A doutrina questiona a palavra “alternativos” porque pressupõe a exis-tência de outro método de solução de confl itos que seria o meio ordinário.

Petrônio Calmon explica que essa denominação decorre de uma visão científi ca que trata a jurisdição estatal como único meio ordinário de pacifi ca-ção social, decorrente de uma cultura de Estado intervencionista e que expressa imprecisão histórica e técnica: “A uma porque o meio mais antigo de solução de confl itos não é o judicial. A duas porque os meios chamados alternativos não excluem o judicial, pois na verdade todos se complementam”.66

Em sequência, o autor sugere a terminologia “meios adequados de paci-fi cação social”, pois considera um sistema multiportas, em que a jurisdição esta-tal se apresenta apenas como uma possibilidade, “um meio seguro, mas não o único e nem tampouco o mais efetivo”.67

Essas formas alternativas de resolução de confl itos voltaram a apresentar protagonismo nas últimas décadas do século passado, exatamente no momento em que se principiou a superação da concepção de acesso à justiça exclusiva-mente como acesso aos tribunais.68

Aponta-se como fator determinante para a crescente utilização desses meios alternativos a inefi ciência dos tribunais, que não se estruturaram adequa-damente para atender a novel demanda por distribuição de justiça, apresen-tando-se a utilização desses recursos, na atualidade, como tendência mundial.69

63 Cf. OTERO, Paulo. Lições de introdução do estudo do direito. Lisboa: Pedro Ferreira Artes Gráfi -cas, 1998. v. 1, tomo 1, p. 104-106.

64 Idem, ibidem.65 Idem, ibidem.66 Cf. CALMON, Petrônio. Fundamentos da mediação e da conciliação. Rio de Janeiro: Forense,

2007. p. 87.67 Idem, ibidem.68 Cf. COSTA E SILVA, Paula. A nova face da justiça: os meios extrajudiciais de resolução de con-

trovérsias. Coimbra: Coimbra Editora, 2009. p. 20-21.69 Idem, ibidem, p. 21-22.

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Também nominado de “fuga à jurisdição”, esse movimento de expansão dos meios consensuais de resolução de confl itos ainda está relacionado à difi -culdade de acesso à justiça ordinária pelos mais carentes e à valorização de um papel mais ativo das próprias partes na tomada de decisões que dizem respeito à sua vida privada.70

Considerado o berço dos movimentos alternativos de resolução de confl itos, foi nos Estados Unidos da América que esses métodos de resolução de contro-vérsias tornaram-se mais pujantes, exatamente em razão dos fatores apontados.

Com efeito, circunstâncias como a complexidade, o tecnicismo, além dos custos elevados do tradicional processo judicial norte-americano, inspiraram diversas tentativas orientadas a encontrar um modo mais econômico e rápido de solução dos litígios.71

Exatamente nesse sentido o Conselho da Europa aprovou, em 2008, a Diretiva nº 52, onde recomenda a utilização da mediação para a solução de confl itos em matéria civil e comercial.72

Antes, o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas já havia acon-selhado o desenvolvimento de sistemas alternativos de resolução de confl itos em sua Resolução 1999/26, recomendando que os Estados considerem, no con-texto de seus sistemas de justiça, o desenvolvimento de procedimentos alterna-tivos ao processo judicial tradicional e a formulação de políticas de mediação e de justiça restaurativa.73

Em conferência sobre as novas tendências do processo civil na França, Loïc Cadiet ressaltou, igualmente, a atual propensão de desjudicialização da resolução de litígios com a utilização de métodos amigáveis de solução de con-trovérsias.74

Paula Costa e Silva adverte, todavia, com propriedade, que a utilização dos meios alternativos de resolução de confl itos deve ser realizada em decor-rência de critérios de adequação, ou seja, a eleição desses mecanismos faz-se impositiva em razão de suas qualidades intrínsecas – seja porque possibilitam

70 Cf. FACCHINI NETO, Eugênio. A outra justiça – ensaio de direito comparado sobre os meios al-ternativos de resolução de confl itos. Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, ano 36, n. 115, p. 85-117, 2009. p. 86.

71 Idem, ibidem, p. 93.72 Cf. COSTA E SILVA, Paula. A nova face da justiça: os meios extrajudiciais de resolução de

controvérsias. Coimbra: Coimbra Editora, 2009. p. 23.73 Cf. BRASIL Ministério Da Justiça. Acesso à justiça por sistemas alternativos de administração de

confl itos. Mapeamento nacional de programas públicos e não governamentais. Brasília, DF: 2005. p. 9.

74 Cf. CADIET, Loïc. Les nouvelles tendances de la procédure civile en France. In: Novos rumos da justiça cível. Coimbra: Coimbra Editora, 2009. p. 29-51. p. 29 e ss.

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ao indivíduo a resolução atempada de seus problemas, seja em razão de sua informalidade – e não como meio de alívio às pendências dos tribunais.75

Mauro Cappelletti, após apontar o protagonismo dos meios alternativos de resolução de litígios – integrantes da “terceira onda” do movimento de aces-so à justiça –, elenca algumas razões para o crescimento da utilização desses recursos.76

Primeiro, porque há situações em que a justiça conciliatória – ou coexis-tencial – é capaz de produzir resultados que, longe de serem de “segunda classe” são melhores, até qualitativamente, do que os resultados do processo conten-cioso: a melhor ilustração é ministrada pelos casos em que o confl ito não passa de um episódio em relação complexa e permanente; aí a justiça conciliatória ou – conforme se lhe poderia chamar – a “justiça reparadora” – tem a possibili-dade de preservar a relação, tratando o episódio litigioso antes como perturba-ção temporária do que como ruptura defi nitiva daquela.77

Depois, porque os meios alternativos de resolução de confl itos costumam ser mais acessíveis, mais rápidos e informais, menos dispendiosos e os pró-prios julgadores podem ter melhor conhecimento do ambiente em que o episó-dio surgiu e mostrar-se mais capazes e mais desejosos de compreender o drama das partes.78

Os meios alternativos ainda se caracterizam por propiciar inclusão social, pois as pessoas envolvidas no confl ito são percebidas como as mais importan-tes no processo e contribuem para o processo de democratização, possibilitan-do ao cidadão o exercício de sua autonomia na resolução de confl itos.79

A valorização da autonomia e da cidadania também são apontadas como fatores que diferenciam e qualifi cam os meios alternativos de resolução de confl itos, destacando Luís Alberto Warat que “a tarefa de dar voz à cidadania, principalmente com relação a seus próprios confl itos, é algo que se pode come-çar a ascender, implementando programas de justiça cidadã, de juizados de cidadania, onde os indivíduos possam sair do silêncio, recuperar a voz”.80

75 Cf. COSTA E SILVA, Paula. A nova face da justiça: os meios extrajudiciais de resolução de con-trovérsias. Coimbra: Coimbra Editora, 2009. p. 35-36.

76 Cf. CAPPELLETTI, Mauro. Os métodos alternativos de solução de confl itos no quadro do movi-mento universal de acesso à justiça. Revista de Processo, ano 19, n. 74, p. 82-97, p. 90, 1994.

77 Idem, ibidem.78 Idem, ibidem.79 Cf. SALES, Lilia Maria de Morais; RABELO, Cilana de Morais Soares. Meios consensuais de

solução de confl itos – instrumentos de democracia. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 46, n. 182, p. 75-88, 2009. p. 82-83.

80 Cf. WARAT, Luís Alberto. O ofício do mediador. Florianópolis: Habitus, 2001. v. 1, p. 217-218.

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José Renato Nalini adiciona a esses argumentos a superioridade ética dos meios alternativos de resolução de confl itos em relação ao método judicial, destacando que quando as partes dialogam e estabelecem os pontos de diver-gência, apreendem melhor o que ocorre em suas controvérsias: “Aprendem a negociar, a transigir, a assumir sua parcela cidadã de maturidade que o imedia-to endereçamento dos confl itos a juízo não deixa desabrochar. Uma sociedade que precisa do Estado-Juiz para resolver até questiúnculas se infantiliza, torna-se imatura, desaprende os métodos naturais que devem nortear o relacionamento entre os conviventes. Esse é um subproduto cruel da judicialização de todos os confl itos”.81

A seguir, o doutrinador defende ser a solução negociada mais ética porque autônoma, fruto da negociação entre os próprios envolvidos, enquanto a solu-ção judicial é sempre heterônoma, além do que mais rápida, descomplicada e menos dispendiosa.82

De se referir, ainda, que a doutrina aponta como vantagens dos meios alternativos de resolução de confl itos a celeridade, a informalidade, o menor custo, a consideração dos interesses e dos sentimentos das partes e a procura de uma solução em que todos os lados ganham.83

Com efeito, enquanto os meios alternativos de resolução de confl itos (mediação, conciliação, arbitragem, avaliação neutra de terceiro e suas combi-nações) revelam atributos atraentes – informalidade, celeridade, confi denciali-dade, perfi l prospectivo, tendencial adesão à decisão alcançada –, já o comando judicial, mormente o condenatório, ressente-se de defi ciências que o vão des-prestigiando aos olhos da população: perfi l retrospectivo, reportado a aconteci-mentos pretéritos, não raro irreversíveis; lentidão,84 em virtude mesmo do excesso da demanda e do formalismo procedimental; imprevisibilidade, assim quanto à duração do processo como quanto ao seu desfecho fi nal; onerosidade, que desequilibra o custo-benefício.85

81 Cf. NALINI, José Renato. Duração razoável do processo e a dignidade da pessoa humana. In: MIRANDA, Jorge; SILVA, Marco Antonio Marques da (Coord.). Tratado luso-brasileiro da dignidade humana. São Paulo: Quartir Latin, 2008. p. 191-202. p. 195.

82 Idem, ibidem.83 Cf. FRADE, Catarina. A resolução alternativa de litígios e o acesso à justiça: a mediação do so-

breendividamento. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, v. 65, p. 107-128, 2003. p. 111.84 Como observa Conceição Gomes, a lentidão da justiça é um problema com causas múltiplas e

complexas, profundamente induzido pelo crescimento contínuo da procura de tutela jurisdicional, que não deixa prever soluções fáceis e, seguramente, exige medidas diversas e concentradas. Cf. GOMES, Conceição. O tempo dos tribunais: um estudo sobre a morosidade da justiça. Coimbra: Coimbra Editora, 2003. p. 16.

85 Cf. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A resolução dos confl itos e a função judicial no contem-porâneo Estado de Direito (nota introdutória). Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 888, p. 9-36, 2009. p. 33.

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Argumenta-se, igualmente, que a adoção desses mecanismos de resolução de confl itos apresenta-se como condição ao funcionamento adequado do Po-der Judiciário, anotando-se que “o modo mais primitivo de resolver controvér-sias não foi o judicial, este é que se tornou alternativo aos primeiros métodos”, que apresentam resultados mais rápidos, porque o terceiro neutro pode ajudar a formar um consenso antes que o processo judicial se inicie ou avance.86

Eugênio Facchini Neto agrupa os argumentos favoráveis aos métodos alter-nativos em qualitativos e quantitativos. O argumento de natureza quantitativa é o mais invocado; os meios alternativos deveriam ser incentivados porque são uma maneira mais efi ciente de solução das disputas, de menor custo e muito mais rápidos; o segundo argumento, “qualitativo”, parte de uma abordagem se-gundo a qual os meios alternativos possibilitam uma maior participação das partes no desenvolvimento do processo e permite a elas um maior controle so-bre o resultado do processo – afi nal, são elas que defi nem esse resultado. Além disso, sustenta-se que os meios alternativos oferecem uma maior possibilidade de reconciliação entre as partes, garantindo uma melhor comunicação entre elas, aumentando assim a probabilidade de manutenção ou recuperação das re-lações interpessoais.87

Ainda relacionando as vantagens da utilização dos meios alternativos, Petrônio Calmon indica a redução da infl ação processual; a redução da demora e dos custos dos processos; a promoção de sua efetiva qualidade; proporcionar à sociedade alternativas para a solução dos confl itos além da via judicial; pro-porcionar a justiça restauradora e a efetiva pacifi cação social; proporcionar alternativas de solução adequadas a cada tipo de confl ito, racionalizando a dis-tribuição de justiça; incrementar a participação da comunidade na solução dos confl itos; facilitar o acesso à justiça; proporcionar meios de solução para a liti-giosidade contida; proporcionar a mais adequada informação do cidadão sobre os próprios direitos e sua orientação jurídica.88

Referindo-se aos meios alternativos autocompositivos, a doutrina indica como campos em que a “justiça conciliatória” pode constituir a melhor escolha, os confl itos de vizinhança, de família e ainda os confl itos em que as pessoas vi-vem em “instituições totais”, como escolas, escritórios, hospitais, bairros urba-nos, aldeias, locais onde as pessoas são obrigadas a conviver diariamente.89

86 Cf. MORAIS, José Luis Bolzan de. Mediação e arbitragem: alternativas à jurisdição. Porto Ale-gre: Livraria do Advogado, 1999. p. 108.

87 Cf. FACCHINI NETO, Eugênio. A outra justiça – ensaio de direito comparado sobre os meios al-ternativos de resolução de confl itos. Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, ano 36, n. 115, p. 85-117, 2009. p. 107.

88 Cf. CALMON, Petrônio. Fundamentos da mediação e da conciliação. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 152-153.

89 Cf. Mauro Cappelletti, Os métodos alternativos de solução de confl itos no quadro do movimento universal de acesso à justiça, in Revista de Processo, ano 19, n.º 74, 1994, p. 91.

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Importa anotar-se, por fi m, que os mecanismos alternativos de resolução de confl itos não estão imunes à crítica.

Ao contrário, seus opositores relacionam uma série de preocupações que sua adoção ocasiona e recomendam alguns cuidados que sua utilização exige.

A tônica das observações recai sobre a possibilidade de conduzirem a resultados injustos em razão do desequilíbrio que pode haver entre as partes, o que pode se verifi car em confl itos envolvendo pessoas com situações econô-micas diversas, acabando por infl uenciar a parte com menor poder a acordar em razão da falta de recursos.90

Também o menor preparo técnico dos condutores desses mecanismos em comparação ao juiz e a redução das garantias processuais são indicadas como circunstâncias que podem colocar os meios alternativos no papel de uma “justiça de segunda classe”.91

A utilização dos meios alternativos também poderia retirar da justiça comum “casos pequenos”, provocando sua elitização ao impedir o acesso ao juiz ordinário às classes mais débeis; frear o ativismo judicial, por retirar da apreciação do Poder Judiciário matérias de interesse coletivo, como as relações de consumo, evitando o poder de alteração da realidade social existente em uma decisão judicial.92

Os argumentos que se poderiam contrapor seriam no sentido de que a desigualdade econômica também pode representar prejuízos ao hipossufi ciente no processo tradicional perante os tribunais, dada a difi culdade de constituir pro-curador especializado, produzir determinadas provas, obter certos documentos, entre outras.

Quanto ao preparo técnico, seria preconceituoso afi rmar-se que um magis-trado estaria melhor preparado para dirimir um confl ito do que um conciliador ou mediador; ao contrário, estes profi ssionais podem estar mesmo melhor habi-litados que o juiz para a resolução de determinadas controvérsias, onde essas técnicas devam ser empregadas com cientifi cidade.

Por fi m, os meios alternativos não devem estar focados, necessariamente, em casos de menor expressão econômica e a abertura para a procura por um sistema autocompositivo, pode gerar um movimento de reação a determinadas práticas comparável à decisão dos tribunais, os quais, destaque-se, não deixa-rão de exercer seu papel de ativismo nos casos em que aqueles métodos não se mostrarem adequados ou sufi cientes.90 Cf. MORAIS, José Luis Bolzan de. Mediação e arbitragem: alternativas à jurisdição. Porto Ale-

gre: Livraria do Advogado, 1999. p. 109.91 Cf. FACCHINI NETO, Eugênio. A outra justiça – ensaio de direito comparado sobre os meios al-

ternativos de resolução de confl itos. Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, ano 36, n. 115, p. 85-117, 2009. p. 108.

92 Idem, ibidem, p. 108-109.

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5 Uma proposta de política pública para a ampliação do acesso à justiça com a utilização dos meios alternativosde resolução de confl itos

A construção de uma proposta de política pública de resolução de con-fl itos principia pelo abandono da ideia de que um sistema somente é efi ciente quando para cada confl ito há uma intervenção jurisdicional e passa pela neces-sidade de se construir um sistema que conte com mecanismos de prevenção e de resolução de confl itos a partir das necessidades e dos interesses das pessoas.93

Nesse novo modelo, a provocação dos tribunais, que se dá em nível ini-cial, passaria a ter um caráter subsidiário.

Nas palavras de José Luis Bolzan de Morais, “o sistema judicial só seria acionado depois de tentados outros métodos de resolução, a não ser que a ques-tão envolvida versasse sobre direitos não disponíveis pelas partes envolvidas, ou que não seja aconselhado o tratamento judicial meramente subsidiário, ou seja, quando a provocação da jurisdição seja absolutamente necessária”.94,95

Nesse novo modelo de sistema de resolução de confl itos, os meios alter-nativos – dentre os quais, a conciliação, a mediação, a arbitragem – colocam-se ao lado do processo judicial como uma opção que objetiva reduzir o custo e a demora dos procedimentos,96 estimular a participação da comunidade na reso-lução dos confl itos e facilitar o acesso à solução do confl ito, descongestionan-do, ainda, os tribunais.97,98

93 Cf. MORAIS, José Luis Bolzan de. Mediação e arbitragem: alternativas à jurisdição. Porto Ale-gre: Livraria do Advogado, 1999. p. 107.

94 Idem, ibidem.95 Defendendo, igualmente, a subsidiariedade da jurisdição, mediante a adoção de medidas ativas de

prevenção de litígios e também pela diversifi cação e desconcentração da oferta de serviços alterna-tivos no sistema de justiça, António Costa (A administração da justiça. Revista de Administração e Políticas Públicas, Lisboa, v. 1, n. 2, p. 51-52, 2000.

96 Examinando a crise da Justiça em Portugal, António Cluny preconiza que “a Justiça de uma socie-dade democrática, se não pode demitir-se dos seus princípios estruturantes nem abdicar da sua prioritária tarefa, que consiste, fundamentalmente, na salvaguarda dos direitos, liberdades e garan-tias dos cidadãos, não pode, por outro lado, prescindir de um grau de efi cácia conveniente e politi-camente aceitável, que assegure a sua própria legitimidade social. Cf. CLUNY, António. A justiça e sua crise. Para além dos mitos político-mediáticos. Revista do Ministério Público, Lisboa, Sindi-cato dos Magistrados do Ministério Público, ano 20, n. 80, p. 19-36. 1999. p. 35.

97 Cf. MORAIS, José Luis Bolzan de. Mediação e arbitragem: alternativas à jurisdição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 108.

98 Maria Paula Meneses, Aguiar Miguel Cardoso, André Kaputo Menezes e Júlio Lopes, em comen-tários ao sistema de justiça de Angola, após advertirem ser o acesso à justiça condição fundamental para o pleno exercício da cidadania, revelam a extrema importância dos meios extrajudiciais de reso-lução de confl itos naquela sociedade. Cf. MENESES; Maria Paula; LOPES, Júlio (Org.). Luanda e justiça: pluralismo jurídico numa sociedade em transformação. v. 3. O direito fora do direito: as instâncias extra-judiciais de resolução de confl itos em Luanda. Coimbra: Almedina, 2012. p. 319.

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Para Petrônio Calmon, considerando a crise da justiça e a efi ciência pró-pria das soluções autocompositivas, embora seus mecanismos mais efi cientes sejam eminentemente uma atividade privada,99 é imprescindível que o Estado adote medidas de incentivo à sua realização, promovendo uma política pública de incentivo à utilização em larga escala dos mecanismos para a obtenção da autocomposição.100

Conclui, a seguir, ser preciso uma nova sinalização, um novo cenário, uma transformação radical no modo de ver e praticar a solução dos confl itos: “Aquilo que era tradicional (atividade judicial estatal) passa a ser apenas um dos meios possíveis. Aquilo que era alternativo passa a ser mais um meio adequado”.101

O autor ainda defende que a oferta de diversos mecanismos para a reso-lução de confl itos revela amadurecimento do Estado, que passa a prestar um ser-viço público mais efetivo, proporcionar o acesso à justiça tempestiva, efetiva e de qualidade adequada; e, ao mesmo tempo, proporcionando a possibilidade de escolha por um dos mecanismos extrajudiciais de solução dos confl itos, não somente para permitir a defl ação processual, mas, sobretudo, como instru-mento de aumento da área da tutela oferecida aos direitos dos cidadãos.102

Um novo modelo de sistema de justiça deve resultar, de um lado, de uma correta perspectivação dos movimentos ligados à resolução alternativa de litígios e aos mecanismos da justiça informal ou alternativa e por outro decorre da consagração de novas formas de procedimentos dentro dos modelos tradi-cionais, muito em especial quando não há, ou é baixa a intensidade do litígio, incentivando uma multiplicidade de instâncias de justiça, traduzida na coexis-tência de diversos modelos de pacifi cação social, mas reservando imperiosa-mente aos tribunais a litigância nuclear.103

99 Guilherme da Fonseca, relacionando mecanismos para aliviar a demanda dos tribunais, menciona os mecanismos alternativos de resolução de confl itos “que, a montante de uma administração da justiça com carácter estadual, constituam fórmulas não estaduais de resolução de confl itos (mas, é claro, sem perder de vista o reconhecimento de uma reserva de jurisdição e até de reserva de juris-dição exclusiva quanto a certas matérias)”. Cf. FONSECA, Guilherme da. Administração da justiça, tribunais, sistemas alternativos. Revista do Ministério Público, Lisboa, Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, ano 20, n. 80, p. 67-74, 1999. p. 71.

100 Cf. CALMON, Petrônio. Fundamentos da mediação e da conciliação. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 7 e 345.

101 Idem, ibidem.102 Idem, ibidem, p. 95.103 Cf. MATOS, José Igreja. Um modelo de juiz para o processo civil actual. Coimbra: Coimbra Edi-

tora, 2010. p. 155.

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Nesse mesmo caminho, comentando os resultados positivos das experiên-cias conciliatórias realizadas pelo Poder Judiciário em razão do programa “Con-ciliar é Legal”, coordenado pelo Conselho Nacional de Justiça, sua então presidente, Ministra Ellen Gracie Northfl eet, afi rmou: “Uma Justiça mais aces-sível, efetiva, simples e informal é o que deseja a população brasileira. A adoção da conciliação tem se revelado fórmula hábil para atender a esse anseio, como revelam os exemplos acima. É indispensável divulgar a existência de uma ma-neira nova de resolver as querelas. Sentar para conversar, antes ou depois de proposta uma ação judicial, pode fazer toda a diferença”.104

Eugênio Facchini Neto, após examinar os argumentos favoráveis e contrá-rios aos meios alternativos de resolução de confl itos, preconiza ser a questão complexa e não exigir soluções extremadas de adesão integral ou de franca repulsa, sugerindo ser mais conveniente identifi car os setores nos quais é indis-pensável a intervenção de uma magistratura profi ssional, pública, organizada de forma independente, que opere mediante procedimentos formalizados.105

Segundo o doutrinador, esta forma de exercício de jurisdição, que neces-sariamente tem um custo orçamentário mais imponente, deveria ser encarregada de resolver somente os confl itos que não podem ou não devem ser solucionados mediante controles administrativos prévios (com atuação de agências regula-tórias autônomas e que efetivamente se comportem como agentes da sociedade, e não como defensoras de grupos de interesses), ou mediante procedimentos de mediação e de resolução alternativa de confl itos, por árbitros/mediadores não estatais. Esses outros agiriam como uma espécie de justiça complementar, al-ternativa, talvez “menor”, mas não necessariamente contraposta à justiça togada.106

A seguir, complementa, asseverando que os meios alternativos não pre-tendem substituir os tribunais, mas sim colocar-se como opção ao seu lado, podendo haver um deslocamento momentâneo de determinadas causas para a re-solução por meios alternativos, diminuindo o fl uxo das demandas judiciárias.107,108

104 Cf. NORTHFLEET, Ellen Gracie. Conversar faz a diferença. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/portal/images/programas/movimento-pela-conciliacao/conversar_faz_ diferenca.pdf>. Acesso em: 16 jan. 2011.

105 Cf. FACCHINI NETO, Eugênio. A outra justiça – ensaio de direito comparado sobre os meios al-ternativos de resolução de confl itos. Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, ano 36, n. 115, p. 85-117, 2009. p. 114.

106 Idem, ibidem.107 Idem, ibidem.108 Sobre a consideração da justiça como serviço público e, igualmente, como bem fi nito, propondo o ra-

cionamento desse bem, utilizando-se-o onde é mais essencial e propondo a criação de mecanismos alternativos aos tribunais, que sejam mais baratos e expeditos. CABRAL, José António Henriques dos Santos. Tribunais e gestão: a ambivalência do sistema de justiça. Revista de Administração e Políticas Públicas, Lisboa, v. 1, n. 2, p. 62-67, 2000. p. 62-67.

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Apregoa-se, igualmente, que a efi ciência de um sistema de resolução de confl itos depende da existência de numerosas instituições e procedimentos que permitam prevenir e solucionar a maior parte das controvérsias com o menor custo possível, partindo das necessidades e interesses das partes.109

A exemplo do que ocorre em Costa Rica, os meios alternativos de resolu-ção de confl itos poderiam ser desenvolvidos pelo Estado e/ou por particulares, individualmente ou reunidos em entidades especializadas, operando a título gratuito ou oneroso, sendo que todas as atividades privadas poderiam ser contro-ladas pelo Ministério da Justiça110 e as públicas não judiciais por ele geridas.

Examinando os modelos de reformas propostos aos sistemas de justiça no mundo, Conceição Gomes aponta a tendência de propagação de um grupo de reformas que prevê a elaboração de alternativas ao modelo centrado no tribu-nais judiciais, desenvolvendo-se um amplo processo de desjudicialização de determinadas condutas e determinados confl itos que, em regra, são transferidos para outras instituições da administração pública ou para instituições extraju-diciais de resolução de confl itos a criar ou já existentes na comunidade que substituam ou complementem, em áreas determinadas, a administração tradi-cional da justiça, tornando-a, em geral, mais rápida, barata e acessível.111

A pertinência e até mesmo a necessidade do direcionamento de alguns confl itos a mecanismos alternativos de resolução de confl itos também consti-tuiu uma das conclusões de Colóquio Internacional sobre os custos da justiça, rea-lizado em Coimbra, em setembro de 2002, integrando duas de suas conclusões:

30. É imperiosa a consagração de um limite pecuniário mínimo (v.g. 500 Euros) aquém do qual a pretensão não poderia ser directamente apresentada perante os tribunais judiciais, devendo antes ser submetida ao crivo prévio da mediação, da conciliação, dos julgados de paz ou da arbitragem, de acordo com a disponibilidade dos meios extrajudiciais ao alcance das partes e a respectiva vontade. 31. Urge institucionalizar o voluntariado na mediação e conciliação, como antecâmara, que não é desejável transpor, do acesso à jurisdição contenciosa pura e dura.112

A colaboração dos meios alternativos de resolução de confl itos para o alí-vio da sobrecarga do sistema judicial resulta, igualmente, apontada por Jaime Octávio Cardona Ferreira, para quem os sistemas extrajudiciais são um com-plemento também indispensável na medida em que resolvem, com celeridade, todas aquelas questões juridicamente menos relevantes, que estragam a quali-109 Cf. CALMON, Petrônio. Fundamentos da mediação e da conciliação. Rio de Janeiro: Forense,

2007. p. 155.110 Idem, ibidem, p. 184.111 Cf. SANTOS, Boaventura de Sousa; VAN DÚNEN, José Octávio Serra (Org.). Luanda e justiça:

pluralismo jurídico numa sociedade em transformação. v. 1: Sociedade e Estado em construção: desafi os do direito e da democracia em Angola. Coimbra: Almedina, 2012. p. 200.

112 Cf. DIAS, João Álvaro (Coord.). Os custos da justiça – actas do Colóquio Internacional – Coim-bra, 25 a 27 de setembro de 2002. Coimbra: Almedina, 2003. p. 562.

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dade de vida dos cidadãos e constituem uma forma necessária de alívio da so-brecarga do foro judicial.113

A relevância do sistema de resolução alternativa de confl itos para o bom funcionamento do sistema de justiça dos Estados também resultou acentuada em debate sobre a morosidade da justiça, realizado em maio de 2009, em Lis-boa, ocasião em que se advertiu para a necessidade de o sistema judicial ser redesenhado para assim lograr uma adequação estrutural, observando instâncias normativas múltiplas, contemplando e aperfeiçoando os vários mecanismos de resolução de confl itos disponíveis.114

De outra parte, a informação dos cidadãos sobre o funcionamento dos meios alternativos de resolução de confl itos afi gura-se imprescindível à sua propagação e à criação da possibilidade de escolha.

Com efeito, os cidadãos e os empresários, todos, devem conhecer bem os meios de solução de confl itos, com as peculiaridades específi cas de cada um, para que possam optar conscientemente, de acordo com seu real interesse, pois sem conhecimento não há se falar em liberdade de escolha.115

A valorização dos mecanismos alternativos de resolução de confl itos exigiria a construção de uma política pública nacional de acesso à justiça e resolução de confl itos, com a realização de informação à população sobre esses temas e também com a oferta e o incentivo à resolução de confl itos por meios alternativos, colocando-se os tribunais em posição de retaguarda.

Algumas medidas que poderiam integrar essa política, contribuindo para a inserção da prática da autocomposição na cultura nacional, podem ser extraí-das do pensamento de Petrônio Calmon.

Segundo o doutrinador, fazem parte desta tarefa: estudos sobre o fenômeno da cultura de confl itos (pesquisas sociológicas), bem como o funcionamento e êxito das atuais alternativas; planejamento de um sistema de mecanismos para a obtenção da autocomposição, fi xando seus limites e seus responsáveis; coope-ração entre os segmentos da sociedade que devem participar do sistema; elabo-ração de propostas legislativas; formação constante dos operadores da autocom-posição; realização de debates e simpósios, com vistas à difusão da cultura da autocomposição; cooperação com o sistema de ensino brasileiro, para a difusão dos temas relacionados; e avaliação permanente do sistema de solução dos con-fl itos.116

113 Cf. CARDONA FERREIRA, J. O. Justiça de paz. Julgados de paz. Coimbra: Coimbra Editora, 2005. p. 32 e 103.

114 Cf. RIBEIRO, Manuel de Almeida (Org.). Um debate sobre a morosidade da justiça. Coimbra: Almedina, 2009. p. 70.

115 Cf. CALMON, Petrônio. Fundamentos da mediação e da conciliação. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 164.

116 Idem, ibidem, p. 321-322.

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Incumbir-se-ia, deste modo, o Ministério da Justiça da realização dessa política pública para a esfera não judicial, valorizando a informação da popula-ção sobre seus direitos e deveres, bem como sobre a utilização dos meios auto-compositivos de resolução de confl itos.

Igualmente, a oferta desses serviços públicos integrada a outros serviços já ofertados à comunidade, com a capilarização necessária, haveria de ser reali-zada pelo Poder Executivo e também poderia sê-lo por instituições privadas.

Essa cultura não adjudicatória de solução de confl itos também haveria de ser desenvolvida e fomentada no âmbito do Poder Judiciário, incumbindo ao Conselho Nacional de Justiça a realização dessas ações, pois integrantes da política pública de administração da justiça117 afeta a esse organismo.

Enfi m, uma nova concepção de acesso à justiça – com a valorização e a inclusão dos meios alternativos de resolução de confl itos – não depende apenas de reformas no Poder Judiciário, mas de um pacto social a esse fi m.

Por meio dessa política pública de pacifi cação social, poder-se-ia ofertar esses serviços de mediação e conciliação a custos bem inferiores aos neces-sários à litigação perante os tribunais ou mesmo suprimir as despesas para as pessoas que participassem do processo de mediação ou conciliação prévia ou incidental.

Com isto, diante da possibilidade de resolução de um confl ito e da satis-fação de uma pretensão em um tempo reduzido e com um custo sensivelmente inferior ao processo judicial ou mesmo sem custo, as pessoas poderiam ser estimuladas a acorrer a esses mecanismos autocompositivos.

Não apenas a iniciativa privada – a custos reduzidos –, mas também o Esta-do, por meio de seus Poderes Executivo e Judiciário, poderiam ofertar serviços de mediação e conciliação à população, gratuitamente.

Uma política pública de pacifi cação social e de resolução de confl itos por meios autocompositivos poderia incluir serviços de resolução de confl itos nos bairros, bem próximo do local em que estão os interessados.

Esses serviços, se dependentes do pagamento de despesas, poderiam ser gratuitos aos que demonstrassem a situação de carenciados e onerosos aos que não estivessem nesse lugar – mas com custo bem inferior ao que seria cobrado para a apresentação da reclamação na via judicial – atraindo um número con-siderável de confl itos à intervenção desses serviços, que poderiam ser presta-dos na mesma estrutura já existente à prestação de outros serviços públicos nas comunidades, como aqueles da área social, educacional, cultural, esportiva, de saúde, etc.

117 FALCÃO, Joaquim; LENNERTZ, Marcelo; RANGEL, Tânia Abrão. O controle da administração judicial. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, FGV Editora, n. 250, p. 103-121, 2009. p. 112.

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Não se descarta, ainda, a possibilidade de se estabelecer a obrigatorieda-de da utilização dos meios autocompositivos nalgumas espécies de confl itos como requisito ao recurso aos tribunais.

A utilização da arbitragem, de outra parte, poderia ser estimulada se oferecida a custos reduzidos – ou mesmo até mesmo com isenção de despesas – em comparação ao gasto necessário à utilização da jurisdição para aqueles casos em que a autocomposição fosse inexitosa.

Poder-se-iam, a tanto, criar câmaras de arbitragem públicas e privadas pa-ra a oferta desses serviços para a resolução de confl itos incidentes sobre direi-tos disponíveis, modo a fi ltrar o acesso à jurisdição, elegendo-se determinadas demandas para sua incidência, seja por critérios de matéria, de valor ou mesmo para o acolhimento das demandas de massa e para aquelas que não revelem alto grau de litigiosidade.

Essa atividade de arbitragem, ainda que a custos reduzidos ou mesmo suprimidos, poderá se revelar menos onerosa que a jurisdição, mesmo quando paga pelo usuário.

Essas medidas de informação, a disseminação e o induzimento ou mesmo a obrigatoriedade da utilização de serviços de autocomposição de confl itos e de arbitragem, poderiam ter o condão de fomentar a utilização desses serviços de pacifi cação social, ampliando o acesso à justiça, porque mais informais, próxi-mos física e culturalmente das comunidades, mais rápidos e menos burocráti-cos, deixando-se a utilização da jurisdição em posição de retaguarda.

Considerações fi nais

1 – Há uma confusão conceitual, na atualidade, envolvendo o acesso aos tribunais, o acesso à justiça e o acesso ao direito.

No caso brasileiro, tanto a doutrina como a prática social confundem o que se pode entender por acesso aos tribunais, acesso à justiça e acesso ao di-reito, resumindo essas categorias a uma única: acesso ao Poder Judiciário.

2 – Para a maioria da sociedade brasileira, o acesso à justiça é inexistente ou difícil, o Poder Judiciário não é competente ou tem pouca competência para solucionar confl itos, além de ter custo elevado e ser lento, o que se afi gura sufi ciente ao diagnóstico de uma crise no acesso à justiça no Brasil.

3 – As expressões acesso ao direito, acesso à justiça e acesso aos tribu-nais guardam uma linha descendente de amplitude.

A garantia de acesso ao direito está relacionada ao direito de informação sobre o conteúdo e a extensão de direitos e deveres, possibilitando seu exercí-cio mesmo sem a utilização do sistema formal de acesso à justiça.

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A garantia de acesso à justiça compreende o acesso a meios alternativos de resolução de confl itos, comunitários e/ou estatais, tais como a conciliação, a mediação e a arbitragem, dentre outros, em caráter complementar ao recurso à jurisdição estatal.

A garantia de acesso aos tribunais, por fi m, traduz-se na possibilidade de acesso a uma instituição capaz de oferecer a solução jurídica a um confl ito, a que se deve chegar em prazo razoável e por meio de um procedimento justo, adequado e equitativo.

4 – A existência de óbices de natureza econômica, social e cultural e a pe-quena capacidade do Poder Público e da sociedade em minimizá-los perpetua as naturezas seletiva e elitista do acesso à justiça no Brasil.

5 – Somente uma revolução na conceituação e no tratamento do acesso à justiça possibilitarão a superação dos obstáculos ao seu alcance, transforman-do-se em realidade a promessa de justiça para todos.

6 – A construção de um novo conceito de acesso à justiça principia por privilegiar a dimensão prestacional deste direito fundamental, reclamando a construção e a execução de uma política pública nacional de acesso à justiça que priorize e valorize os meios alternativos de resolução de confl itos.

7 – A criação de um sistema descentralizado, acessível, informal e desbu-rocratizado de resolução de confl itos, com recurso a meios alternativos e com-plementares à jurisdição, focado na conciliação, na mediação e na arbitragem, seja por meio de serviços ofertados exclusivamente pelo Estado, seja com recurso a ações de iniciativa da sociedade civil, deve orientar uma nova concep-ção de acesso à justiça que inclua, ainda, a oferta de informação à população sobre o conteúdo e a extensão de seus direitos e deveres.

8 – A cultura da utilização do Poder Judiciário como instrumento de retaguarda para a resolução de confl itos também há de ser desenvolvida, o que reclama a desjudicialização de procedimentos, o desestímulo aos litigantes ha-bituais no acesso direto à jurisdição e a adoção de um sistema de resolução de confl itos que privilegie a utilização da conciliação, da mediação e da arbitra-gem, com a indução ou mesmo a imposição de sua utilização em alguns casos, medidas que não afrontam o direito de acesso aos tribunais, concebidos, então, como ultima ratio do sistema de oferta de justiça e de pacifi cação social.

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