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5910236 – Física II (Química) – FFCLRP – USP – Prof. Antônio Roque – Termo 5 1 A Energia Livre de Gibbs e o Potencial Químico Nesta aula vamos apresentar uma grandeza termodinâmica fundamental para a explicação de processos espontâneos na natureza, como reações químicas e transições de fase. O uso dessa grandeza termodinâmica é restrito ao caso em que o processo ocorre a pressão e temperatura constantes. Em princípio, isso pode parecer restritivo para a aplicabilidade de uma grandeza física, mas, se pensarmos nos fenômenos biológicos, veremos que quase sempre eles ocorrem à pressão constante (a pressão atmosférica) e à temperatura constante (a temperatura do organismo), que variam muito pouco durante as situações “normais” de funcionamento de um organismo vivo. Você pode se perguntar porque é necessário definir uma outra grandeza termodinâmica para estudar processos espontâneos, pois a entropia já desempenha este papel: os processos naturais, isto é, irreversíveis, ocorrem sempre na direção do aumento da entropia do universo: ΔS universo = ΔS sistema + ΔS vizinhança 0. Quando o sistema que passa pelo processo está isolado da sua vizinhança, a variação na entropia do universo é a própria variação

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5910236 – Física II (Química) – FFCLRP – USP – Prof. Antônio Roque – Termo 5

1

A Energia Livre de Gibbs e o Potencial Químico

Nesta aula vamos apresentar uma grandeza termodinâmica

fundamental para a explicação de processos espontâneos na

natureza, como reações químicas e transições de fase. O uso dessa

grandeza termodinâmica é restrito ao caso em que o processo ocorre

a pressão e temperatura constantes. Em princípio, isso pode parecer

restritivo para a aplicabilidade de uma grandeza física, mas, se

pensarmos nos fenômenos biológicos, veremos que quase sempre

eles ocorrem à pressão constante (a pressão atmosférica) e à

temperatura constante (a temperatura do organismo), que variam

muito pouco durante as situações “normais” de funcionamento de

um organismo vivo.

Você pode se perguntar porque é necessário definir uma outra

grandeza termodinâmica para estudar processos espontâneos, pois a

entropia já desempenha este papel: os processos naturais, isto é,

irreversíveis, ocorrem sempre na direção do aumento da entropia do

universo:

ΔSuniverso = ΔSsistema + ΔSvizinhança ≥ 0.

Quando o sistema que passa pelo processo está isolado da sua

vizinhança, a variação na entropia do universo é a própria variação

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na entropia do sistema (ΔSviz = 0). Neste caso, apenas o cálculo da

variação na entropia do sistema é suficiente para se determinar em

que sentido o processo deve ocorrer espontaneamente.

Porém, na maior parte dos casos de interesse, especialmente em

biologia, o sistema não está isolado do resto do universo. Em tais

casos, para se determinar a variação na entropia do universo deve-se

medir duas coisas: a variação na entropia do sistema e a variação na

entropia da sua vizinhança. Em geral, a variação na entropia do

sistema pode ser medida sem muita dificuldade, como no caso em

que ele está isolado, mas é muito difícil, para não dizer impossível,

medir a variação na entropia da vizinhança do sistema (isto

implicaria em ter que medir a variação na entropia do resto do

universo, com exceção do sistema).

Para processos a pressão e temperatura constantes, não é necessário

conhecer a variação na entropia do resto do universo para prever

qual a direção em que o processo ocorrerá espontaneamente. Para

mostrar isto, vamos considerar o sistema e a sua vizinhança em

equilíbrio térmico a uma temperatura T. A pressão P também será

constante durante o processo.

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Durante o processo, o sistema troca uma quantidade de calor qp com

a sua vizinhança. Como a pressão é constante, este calor é igual à

variação na entalpia do sistema:

sistemaHqp Δ= .

Do ponto de vista da vizinhança, a variação na sua entalpia é dada

por,

pqHH −=Δ−=Δ sistemavizinhança .

Portanto, podemos escrever para a vizinhança:

THH

S sistemavizinhançavizinhança T

Δ−=

Δ=Δ .

Sendo assim, podemos escrever a variação na entropia do universo

como,

( )sistemasistemasistema

sistemavizinhançasistemauniverso HSTTT

HSSSS Δ−Δ=

Δ−Δ=Δ+Δ=Δ

1

,

ou

( )sistemasistemauniverso STHT

S Δ−Δ−=Δ1

.

Note que agora conseguimos escrever a variação na entropia do

universo em termos apenas de variações de grandezas relativas ao

sistema.

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Vamos definir a energia livre de Gibbs do sistema, G, como

TSPVUTSHG −+=−= . (1)

Ela tem esse nome porque foi definida pela primeira vez pelo físico

norte-americano Josiah Willard Gibbs (1839-1903).

Note que G é uma função de estado do sistema, pois ela depende

apenas de variáveis de estado (P, V, T) e de outras funções de estado

(a entalpia e a entropia).

A variação de G é dada por

TSSTHG Δ−Δ−Δ=Δ .

Quando a temperatura T é constante, ΔT = 0, de maneira que

STHG Δ−Δ=Δ .

Observe que este é o mesmo termo que aparece na expressão obtida

anteriormente para a variação na entropia do universo em termos de

grandezas relativas apenas ao sistema.

Portanto, podemos escrever a variação da entropia do universo

durante um processo a temperatura e pressão constantes em termos

da variação da energia livre de Gibbs do sistema,

01≥Δ−=Δ sistemauniverso G

TS .

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Esta desigualdade pode ser reescrita como (lembre-se que a

temperatura T sempre é positiva),

0≤Δ sistemaG . (2)

Isto implica que, para T e P constantes, a desigualdade acima é

equivalente à segunda lei da termodinâmica:

Em qualquer processo que ocorre espontaneamente a pressão e

temperatura constantes, a energia livre de Gibbs do sistema nunca

aumenta.

Em outras palavras, a energia livre de Gibbs tende para um mínimo

a pressão e temperatura constantes. Esse mínimo é o estado de

equilíbrio do sistema.

Vamos ilustrar a aplicabilidade do conceito de energia livre de

Gibbs com um exemplo de transição de fase. Vamos considerar o

caso da transição água-gelo,

H2O(l) → H2O(s),

a três temperaturas diferentes: T = −10°C = 263,15 K, T = 0°C =

273,15 K e T = +10°C = 283,15 K.

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Vamos supor que os três casos ocorrem à pressão atmosférica (1

atm). Os valores de ΔH, ΔS, TΔS e ΔG para essa transição são dados

na tabela abaixo (retirada do livro do Haynie):

Temperatura

(oC)

ΔH

(J/mol)

ΔS

(J/mol.K)

−TΔS

(J/mol)

ΔG

(J/mol)

−10 −5619 −21 5406 −213

0 −6008 −22 6008 0

+10 −6397 −23 6623 +226

As variações de entalpia são todas negativas, indicando que a

transição de água líquida em gelo é exotérmica (libera calor).

As variações de entropia também são todas negativas, indicando que

a água na forma de gelo tem menor entropia do que a água na forma

líquida (isto está coerente com a definição microscópica de entropia,

segundo a qual o estado sólido é mais ordenado do que o estado

líquido).

Como as variações de entropia são todas negativas, não se pode

dizer em qual das três temperaturas a transição ocorre

espontaneamente (apenas quando o sistema estiver isolado, isto é,

não trocar calor com o resto do universo, é que a variação na

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entropia pode ser usada para prever que o sistema vai para o estado

de água líquida).

Porém, a variação de G nos permite dizer que, abaixo de 0°C, a água

congela espontaneamente (ΔG < 0); acima de 0°C o estado de gelo é

instável e a transformação ocorre espontaneamente na direção

oposta, isto é, de gelo para água líquida; e para T = 0°C o processo é

reversível, indicando que água e gelo coexistem em equilíbrio.

Podemos sumarizar isto da seguinte forma:

• ΔGsistema < 0: processo ocorre espontaneamente na direção

da seta;

• ΔGsistema = 0: processo reversível, não há uma direção

preferencial e as fases estão em equilíbrio;

• ΔGsistema > 0: processo não ocorre espontaneamente na

direção da seta, mas sim na direção contrária.

Para entender a origem do nome “energia livre”, consideremos um

sistema que passa por uma transformação reversível a pressão e

temperatura constantes. Nessa transformação, o sistema troca uma

quantidade de calor qrev = TΔS e realiza um trabalho wrev = PΔV +

w’rev.

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Os termos PΔV e w’rev indicam, respectivamente, o trabalho de

expansão volumétrica e outros tipos de trabalho realizados durante o

processo reversível (por exemplo, o trabalho elétrico para fazer

circular uma corrente elétrica por um circuito ou o trabalho químico

responsável pela síntese de novas moléculas durante uma reação

química).

Aplicando a definição de energia livre de Gibbs a esta situação:

.revrev STVPwqSTVPUG Δ−Δ+−=Δ−Δ+Δ=Δ

Substituindo os valores qrev = TΔS e wrev = PΔV + w’rev e

simplificando:

.'revwG −=Δ

Vimos na aula 14 que o máximo trabalho que um sistema pode

realizar é aquele feito quando o processo é reversível. Portanto,

podemos escrever w’rev = w’

max.

A equação acima nos diz então que:

.'maxwG −=Δ

O sinal negativo indica que o valor de G diminui durante o processo

(algo que já sabemos). Mas o módulo da variação de G é igual ao

máximo trabalho diferente do de expansão (PΔV) que o sistema

pode realizar a temperatura e pressão constantes:

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.'maxwG =Δ

Daí vem o nome energia livre, pois ela representa a máxima energia

de que um sistema pode dispor para realizar um tipo de trabalho que

não seja do tipo expansão volumétrica, como um trabalho químico

ou elétrico, por exemplo.

Existe uma outra função de estado também denominada de “energia

livre” em termodinâmica, que é a energia livre de Helmholtz. Ela é

definida como:

.TSUA −=

Pode-se mostrar que a sua variação durante um processo é igual ao

máximo trabalho (incluindo o de expansão PΔV) que um sistema

pode realizar.

Pode-se também mostrar que, a temperatura e volume constante, um

processo ocorre espontaneamente se,

.0≤ΔA

Como, em geral, os processos químicos e biológicos ocorrem a

pressão constante, a energia livre de Gibbs é muito mais usada

nesses campos do que a energia livre de Helmholtz.

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Falamos acima de trabalho químico. Devido à importância desse

tipo de trabalho em reações bioquímicas, vamos agora nos

aprofundar um pouco no seu estudo.

O trabalho de expansão feito por um sistema é dado por:

.VPw Δ=

Há outros tipos de trabalho (mecânico, eletromagnético ou químico)

que podem ser feitos por ou sobre um sistema. Nesses casos,

quantidades equivalentes a P (variável intensiva) e V (variável

extensiva) são usadas para se escrever uma expressão para w.

Um caso importante de trabalho feito por ou sobre um sistema

ocorre quando se adicionam partículas a ele ou se retiram partículas

dele. Quando o número de moles ni de uma dada espécie química i é

aumentado em Δni, esperamos intuitivamente que a energia interna

do sistema aumente. Da mesma forma, quando o número de moles

de uma dada espécie química diminui, a energia interna do sistema

deve diminuir.

O número de moles é uma variável extensiva, como o volume.

Portanto, por similaridade com a expressão para o trabalho de

expansão, define-se a seguinte expressão para o trabalho associado a

uma variação no número de moles da espécie i:

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,iin nwi

Δ= µ (3)

onde a variável µi é denominada potencial químico da componente i.

Ainda em analogia com a expressão w = PΔV, podemos dizer que µi

deve ser uma variável intensiva.

No caso geral em que o sistema é composto por várias espécies

químicas (por exemplo, r), o trabalho associado às variações nos

números de moles de cada uma delas é escrito como:

∑=

Δ=r

iiiQ nw

1

.µ (4)

Este trabalho é chamado de trabalho químico.

Considerando apenas o trabalho de expansão volumétrica e o

trabalho químico, podemos escrever a variação da energia interna de

um sistema como:

∑=

Δ+Δ−=Δr

iii nVPqU

1.µ

A convenção de sinais para esta expressão no que diz respeito a q e

PΔV é a mesma que já vem sendo usada. No caso do trabalho

químico, o sinal positivo foi usado para indicar que uma adição de

partículas de uma dada dada espécie química i ao sistema implica

em um aumento da sua energia interna.

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Para um processo reversível,

.revrev STqTqS Δ=⇒=Δ

Substituindo qrev na expressão acima para ΔU:

∑=

Δ+Δ−Δ=Δr

iii nVPSTU

1.µ

Pela definição de energia livre de Gibbs:

⇒−+= TSPVUG

.TSSTPVVPUG Δ−Δ−Δ+Δ+Δ=Δ⇒

Substituindo a expressão para ΔU obtida acima nesta expressão:

.1

TSSTPVVPnVPSTGr

iii Δ−Δ−Δ+Δ+Δ+Δ−Δ=Δ ∑

=

µ

Simplificando:

.1∑=

Δ+Δ−Δ=Δr

iii nTSPVG µ

Para processos a temperatura e pressão consantes (ΔP=ΔT=0),

.1∑=

Δ=Δr

iii nG µ

Se impusermos que apenas moléculas da espécie química i podem

ser variadas:

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.ii nG Δ=Δ µ

Este resultado já era esperado, pois o máximo trabalho diferente do

de expansão feito sobre o sistema quando se altera a quantidade ni de

moléculas da espécie química i a pressão e temperatura constantes é

o trabalho feito de forma reversível (lembre-se que usamos a

igualdade ΔS = qrev/T no início de nossos cálculos), w’rev = µiΔni.

A expressão acima é usada para definir o potencial químico.

O potencial químico da i-ésima componente química de uma

solução contendo r componentes é definido como (mantendo-se a

pressão, a temperatura e as quantidades das outras espécies químicas

presentes constantes):

.i

i nG

ΔΔ

Em termos infinitesimais:

.,, ijnTPi

i dndG

⎟⎟⎠

⎞⎜⎜⎝

⎛=µ (5)

No estudo de um sistema qualquer (líquidos, gases, etc), é preciso

obter uma expressão para G em termos de parâmetros

termodinâmicos (P, T, V, ni) para, usando a definição acima,

encontrar uma expressão para o potencial químico. Antes de darmos

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um exemplo disso, vejamos outra propriedade importante do

potencial químico.

Consideremos a seguinte situação (veja a figura a seguir), que serve

como modelo para muitos processos em que ocorre transporte de

matéria através de membranas semi-permeáveis.

Seja um sistema fechado composto por dois sistemas simples

conectados por uma parede rígida e diatérmica, permeável apenas a

uma das espécies químicas (por exemplo, ni) que constituem o

sistema.

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Para este caso, os números de moles das outras espécies químicas

são fixos e constantes, assim como os volumes dos dois subsistemas,

mas as energias internas e os números de moles da espécie i dentro

dos volumes 1 e 2 podem variar, sujeitos às restrições:

. constante )1()2()2()1( UUUU Δ−=Δ⇒=+

. constante )1()2()2()1(iiii nnnn Δ−=Δ⇒=+

Para determinar a direção do fluxo de matéria, vamos fazer o

seguinte raciocínio. Vamos supor que os dois sistemas simples estão

à mesma temperatura T, mas que exista uma pequena diferença entre

os seus potenciais químicos da espécie i (por exemplo, sem perda de

generalidade, µ(1)i > µ(2)

i).

Quando o sistema é deixado livre para evoluir nas condições

estabelecidas acima, começa a haver um fluxo da componente i

através da membrana semipermeável até que o equilíbrio seja

atingido. A variação total (isto é, dos sistemas 1 e 2) da entropia

entre o instante inicial e o estado fnal de equilíbrio é positiva,

( ) ( ) .021total >Δ+Δ=Δ SSS

Como fazer para determinar as variações nas entropias dos dois

sistemas? Volte para a página 10 e tome a seguinte equação:

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∑=

Δ+Δ−Δ=Δr

iii nVPSTU

1.µ

Isolando ΔS:

∑=

Δ−Δ

=Δr

iii nTT

VPTUS

1.1

µ

No caso em questão, os volumes V(1) e V(2) e os números de moles de

todas as espécies químicas com exceção da i-ésima não variam.

Portanto, as variações nas entropias dos sistemas 1 e 2 são,

respectivamente:

( ) )1()1()1(

1 1ii n

TTUS Δ−Δ

=Δ µ

e

( ) )1()2()1(

)2()2()2(

2 11iiii n

TTUn

TTUS Δ+

Δ−=Δ−

Δ=Δ µµ ,

onde se usou as duas condições de conservação da página 13 na

segunda equação. Substituindo estas duas expressões na

desigualdade para ΔStotal:

⇒>Δ+Δ− 011 )1()2()1()1(iiii n

Tn

Tµµ

( ) 0)1()1()2( >Δ−⇒ iii nµµ .

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Se µ(1)i > µ(2)

i, a desigualdade acima só é satisfeita se Δn(1)i < 0. Ou

seja, a quantidade de partículas da espécie i é reduzida no

compartimento onde o potencial químico desta espécie é menor.

Portanto, a matéria tende a fluir de regiões de maior potencial

químico para regiões de menor potencial químico.

O potencial químico pode ser visto como uma espécie de “potencial”

para o fluxo de matéria. Uma diferença no potencial químico entre

os dois sistemas fornece uma “força generalizada” para o fluxo de

matéria.

O potencial químico fornece uma espécie de “força generalizada”

não apenas para o fluxo de matéria de um ponto a outro, mas

também para mudanças de fase e reações químicas. Portanto, o

potencial químico desempenha um papel muito importante na

modelagem e descrição de processos químicos e biológicos.

Vamos agora dar um exemplo do uso da energia livre de Gibbs e do

potencial químico para o estudo de um processo de importância em

biofísica. Algumas técnicas matemáticas a serem usadas nesta parte

da aula talvez sejam desconhecidas por vocês; caso isto aconteça,

deixem de lado a tentativa de entender as passagens matemáticas e

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prestem atenção ao texto para tentar entender o seu conteúdo.

Depois que vocês entenderem bem o conteúdo físico do exemplo,

podem voltar a ler para tentar refazer as passagens matemáticas. No

fundo, é assim que a maioria dos físicos e biofísicos fazem ao ler um

texto com muitas deduções matemáticas.

Seja um sistema fluido formado por n1 moles de um único

componente 1 (água, por exemplo) para o qual o potencial químico é

µ10 (o superíndice 0 indica que o componente 1 está sozinho). Então,

vamos supor que seja adicionado a 1 um segundo componente 2 (o

soluto) em uma quantidade muito pequena formada por n2 moles

onde

12 nn << .

A condição acima caracteriza a solução como diluída. Pode-se

mostrar (isto não será feito aqui) que a energia livre de Gibbs para

uma solução diluída como esta pode ser escrita como:

,lnln),(),(),,,(21

22

21

112

01121 nn

nRTnnn

nRTnTPnTPnnnPTG+

++

++≅ ψµ

onde ψ é uma função qualquer de P e T.

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Como estamos na aproximação de solução diluída, podemos

expandir o logaritmo do terceiro termo na expressão acima até

primeira ordem em n2/n1:

1

2

1

221

1

1

1lnlnnn

nnnn

n−≈

+=

+ .

Podemos também desprezar n2 em relação a n1 no logaritmo do

quarto termo da expressão:

.lnln1

2

21

2

nn

nnn

≈+

Desta forma, a expressão anterior pode ser escrita como:

.ln),(),(),,,(1

2222

01121 n

nRTnRTnTPnTPnnnPTG +−+≅ ψµ

Usando agora a equação (5),

ijnTPii dn

dG

⎟⎟⎠

⎞⎜⎜⎝

⎛=

,,

µ ,

para calcular os potenciais químicos do solvente e do soluto

obtemos:

,),(),,( 20121 RTxTPxTP −= µµ (6)

e

,ln),(),,( 222 xRTTPxTP +=ψµ (7)

onde se usou a definição da fração molar do soluto:

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20

.1

2

21

22 n

nnn

nx ≈+

=

Vamos fazer uma análise do que estes resultados significam.

A equação para µ1 nos dá o potencial químico do solvente (água).

Vemos que ele é igual ao potencial químico que o solvente teria se

fosse puro (µ10) menos o termo x2RT. Isto quer dizer que o potencial

químico do solvente quando há soluto misturado nele é menor do

que quando o solvente está sozinho. E quanto maior a quantidade de

soluto diluído no solvente, menor o potencial químico do solvente.

Como já vimos que o movimento de matéria se dá no sentido de

uma região de maior potencial químico para uma de menor potencial

químico, isto explica termodinamicamente o fenômeno da osmose,

que corresponde à passagem de solvente (água) de um

compartimento em que há menos soluto dissolvido nele para um

recipiente em que há mais soluto diluído nele (veja a figura abaixo).

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A equação para µ1 implica também que a redução no potencial

químico do solvente depende apenas da fração molar do soluto

(multiplicada por duas constantes, R e T). Isto é usado em físico-

química e biofísica experimental para a determinação do número de

partículas (e também da natureza) do soluto em solução (a partir de

medidas do desvio do potencial químico do solvente em relação ao

caso puro).

Vamos considerar uma situação experimental como a do osmômetro

de Pfeffer1 em que um balão com uma membrana permeável a água

e com um tubo vertical é cheio com uma solução contendo água e

1 Wilhelm Pfeffer (1845-1920) foi um botânico alemão que desenvolveu o seu osmômetro em 1877.

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um soluto (açúcar, por exemplo) e é imerso em um recipiente

contendo água pura (veja a figura abaixo).

A membrana permite apenas a passagem de água, impedindo a

passagem das moléculas de soluto. Após a imersão, água do

recipiente entra no balão aumentando a pressão hidráulica no seu

interior e fazendo com que solução suba pela coluna vertical.

Após algum tempo, chega-se a um equilíbrio em que a solução no

interior do tubo vertical para de subir quando atinge uma certa altura

heq (medida a partir da superfície da água no recipiente, como na

figura acima).

Vamos assumir que a pressão hidráulica no recipiente contendo água

pura é mantida constante e igual a P0, enquanto que a pressão

hidráulica no balão pode ser alterada devido à altura da solução no

tubo. Como há uma diferença de potencial químico da água entre o

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recipiente em que ela está em estado puro e o interior do balão, água

irá fluir através da membrana semipermeável para dentro do balão

até que se atinja o equilíbrio.

No equilíbrio, os potenciais químicos da água dos dois lados devem

ser iguais:

),,,()0,,( 2101 xTPTP µµ =

onde P é a pressão hidráulica exercida pela coluna de solução no

tubo.

Usando a equação (6) para µ1:

RTxTPTP 2010

01 ),(),( −= µµ .

Expandindo µ10(P,T) em torno de P0,

( )..),(),(),( 00

01

001

01 PP

PTPTPTP −

∂+=

µµµ

Vamos agora pegar a equação para ΔG da página 11, só que escrita

em termos de variações infinitesimais:

.1∑=

+−=r

iiidnSdTVdPdG µ

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Como G é uma variável de estado, dG tem que ser uma diferencial

exata. Diferenciais exatas devem satisfazer às chamadas condições

de Cauchy2. Uma delas é a seguinte:

in

i

Pi PnV

⎟⎠

⎞⎜⎝

⎛∂∂

=⎟⎟⎠

⎞⎜⎜⎝

∂∂ µ

.

Fazendo i = 1 nessa equação e escrevendo o volume da solução

como V = n1v, onde v é o volume ocupado por um mol de solvente,

temos que:

.1 vP

in

=⎟⎠

⎞⎜⎝

⎛∂∂µ

Substituído isto na equação para µ10(P,T) expandida em torno de P0:

( ).),(),( 0001

01 PPvTPTP −+= µµ

Comparando esta equação com a equação para µ10(P,T) não

expandida, temos que:

( ) ,20 RTxPPv =−

ou,

( ) .20 RT

VnPP =−

Definindo a concentração do soluto como:

2Augustin Louis Cauchy (1789-1857) foi um matemático francês.

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,2sol Vnc =

Podemos escrever finalmente:

( ) .sol0 RTcPP =− (8)

A pressão osmótica é definida como sendo igual à pressão

hidrostática que a solução no interior da coluna vertical do

osmômetro de Pfeffer exerce sobre a solução. Isto é, a pressão

osmótica de uma solução é a pressão hidráulica que precisa ser

aplicada à solução para evitar que haja fluxo osmótico de solvente

através de uma membrana semi-permável.

Baseado em medidas experimentais feitas com o seu osmômetro,

Pfeffer mostrou que a pressão osmótica é proporcional à

concentração de soluto e cresce continuamente à medida que a

temperatura da solução aumenta.

Em 1886, o físico-químico holandês Jacobus Henricus van’t Hoff

(1852-1911) definiu matematicamente a pressão osmótica como

sendo proporcional ao produto da concentração de soluto pela

temperatura absoluta. A constante de proporcionalidade é a

constante universal dos gases R:

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RTCΣ=π ,

onde π indica a pressão osmótica (para diferenciar da pressão

hidráulica) e CΣ é a soma das concentrações de todas as espécies de

soluto:

.1∑=

Σ =r

iicC

No caso em que só há uma espécie de soluto:

.solcC =Σ

Como na condição de equilíbrio em um osmômetro de Pfeffer a

diferença de pressão hidrostática entre a coluna que contém o soluto

e o recipiente que contém o solvente tem que ser igual à pressão

osmótica, van’t Hoff usou sua definição para deduzir a chamada lei

de van’t Hoff para soluções diluídas,

( ) .0 RTCPP Σ=−

Note que esta é exatamente a equação (8) deduzida acima. Portanto,

a lei de van’t Hoff para soluções diluídas pode ser deduzida a partir

das leis da termodinâmica.

Porém, como acontece com todas as deduções baseadas na

termodinâmica, apenas as relações macroscópicas corretas foram

obtidas. Os mecanismos microscópicos responsáveis pela pressão

5910236 – Física II (Química) – FFCLRP – USP – Prof. Antônio Roque – Termo 5

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osmótica não são revelados pela análise termodinâmica e é

necessária a aplicação de uma teoria cinética para modelar o

fenômeno de osmose a partir de interações moleculares.