o modelo de hodgkin-huxley - sisne.org · a resistência dos eletrodos é tão baixa que pode-se...

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5915756 – Introdução à Neurociência Computacional – Antonio Roque – Aula 5 1 O Modelo de Hodgkin-Huxley Os mecanismos iônicos responsáveis pela geração de um potencial de ação foram elucidados pelos trabalhos de Hodgkin e Huxley com o axônio gigante de lula na primeira metade do Século XX. A lula é um invertebrado marinho que utiliza propulsão a jato para se movimentar. Por contrações do seu músculo do manto, ela controla um órgão chamado de sifão (não mostrado no desenho acima) por onde entra ou sai água do mar em jatos, fazendo com que ela se movimente. O músculo do manto é controlado pelos neurônios do gânglio estelar, que enviam longos axônios para inervá-lo. O axônio mais comprido é também o mais grosso, e por isso é chamado de axônio gigante. O axônio gigante da lula é uma fibra não-mielinizada com um diâmetro em torno de meio milímetro e vários centímetros de comprimento. Ela é uma das maiores células de animais conhecidas. Para comparação, as células dos vertebrados possuem diâmetros de alguns poucos micrometros. Por causa disso, o axônio gigante da lula constitui um sistema ideal para a realização de experimentos eletrofisiológicos. Para a realização de seus experimentos, Hodgkin e Huxley utilizaram duas técnicas experimentais, conhecidas como grampeamento espacial e grampeamento de voltagem (veja a figura a seguir).

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Page 1: O Modelo de Hodgkin-Huxley - sisne.org · A resistência dos eletrodos é tão baixa que pode-se considerar que todos os pontos ... possivelmente devido ao eletrodo. 3. Os canais

5915756 – Introdução à Neurociência Computacional – Antonio Roque – Aula 5

1

O Modelo de Hodgkin-Huxley Os mecanismos iônicos responsáveis pela geração de um potencial de ação foram

elucidados pelos trabalhos de Hodgkin e Huxley com o axônio gigante de lula na primeira

metade do Século XX.

A lula é um invertebrado marinho que utiliza propulsão a jato para se movimentar. Por

contrações do seu músculo do manto, ela controla um órgão chamado de sifão (não

mostrado no desenho acima) por onde entra ou sai água do mar em jatos, fazendo com que

ela se movimente. O músculo do manto é controlado pelos neurônios do gânglio estelar,

que enviam longos axônios para inervá-lo. O axônio mais comprido é também o mais

grosso, e por isso é chamado de axônio gigante.

O axônio gigante da lula é uma fibra não-mielinizada com um diâmetro em torno de meio

milímetro e vários centímetros de comprimento. Ela é uma das maiores células de animais

conhecidas. Para comparação, as células dos vertebrados possuem diâmetros de alguns

poucos micrometros.

Por causa disso, o axônio gigante da lula constitui um sistema ideal para a realização de

experimentos eletrofisiológicos.

Para a realização de seus experimentos, Hodgkin e Huxley utilizaram duas técnicas

experimentais, conhecidas como grampeamento espacial e grampeamento de voltagem

(veja a figura a seguir).

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Dois eletrodos finos e longos são inseridos ao longo do axônio e conectados aos

instrumentos mostrados. A resistência dos eletrodos é tão baixa que pode-se considerar

que todos os pontos ao longo do axônio têm o mesmo potencial elétrico em cada instante

de tempo. Portanto, o potencial passa a depender apenas do tempo e não do espaço, como

numa célula pontual. Dizemos que a célula está sob um grampo espacial.

Um dos eletrodos está emparelhado com um eletrodo externo ao axônio, para medir a

diferença de voltagem V através da membrana. O outro eletrodo é usado para injetar ou

retirar corrente da célula, na quantidade justa para manter a diferença de potencial através

da membrana num valor constante qualquer. A medida dessa corrente permite o cálculo da

condutância (ou da resistência) da membrana. Esta técnica é chamada de grampo de

voltagem e permite controlar o potencial de membrana, fazendo com que ele tenha

qualquer valor que se queira.

Quando o potencial de membrana é elevado abruptamente do seu valor de repouso para

outro valor, e mantido neste valor, a corrente de membrana Im(t) apresenta um

comportamento como o mostrado abaixo.

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A corrente de membrana Im(t) tem três componentes:

1. Um brevíssimo pulso de corrente (de alguns poucos micro-segundos) para fora da

célula. Esta corrente corresponde ao carregamento do capacitor que constitui a

membrana, pois o aumento da voltagem implica num aumento da carga armazenada na

superfície da membrana.

2. Um fluxo de corrente para dentro da célula com duração de 1 a 2 ms. Vários

experimentos, como, por exemplo, substituindo-se os íons de sódio no meio extra-

celular por outros íons monovalentes, mostraram que esta corrente é devida à entrada

na célula de íons de sódio.

3. Uma corrente para fora da célula que se manifesta em aproximadamente 4 ms e

permanece estável pelo tempo que durar o grampo de voltagem. Estudos com

traçadores iônicos revelaram que esta corrente é devida a íons de potássio. (Em uma

escala de tempo de várias dezenas de mili-segundos, esta corrente de potássio também

cai para zero como a de sódio).

Além dessas três componentes, há também uma pequena corrente constante para fora

(imperceptível na escala do desenho) que corresponde a íons de cloro e outros íons que

passam pela membrana.

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Com base nos seus estudos experimentais, Hodgkin e Huxley postularam o seguinte

modelo fenomenológico para explicar os eventos observados durante a ocorrência de um

potencial de ação no axônio gigante da lula;

1. A corrente de membrana é dada pela soma da corrente capacitiva e de uma corrente

iônica:

dttdVCtItI m

iônicam)()()( += .

2. A corrente iônica é dada pela soma de correntes iônicas para íons específicos. A

corrente de um dado íon é independente das correntes iônicas dos outros íons. Há três

correntes iônicas responsáveis pela geração do potencial de ação: de sódio, de potássio

e de vazamento:

vazKNaiônica IIItI ++=)(

A razão para esta última corrente é que, em seus experimentos, Hodgkin e Huxley

observaram uma corrente adicional além das de sódio e de potássio cuja condutância

não dependia da voltagem; eles atribuíram essa corrente a um vazamento na membrana,

possivelmente devido ao eletrodo.

3. Os canais iônicos de sódio e de potássio são modelados por condutâncias ativas, que

dependem da voltagem e do tempo, em série com baterias cujas voltagens são dadas

por seus respectivos potenciais de Nernst:

( )( )íonmmíoníon EtVttVGtI −= )(),()( ,

onde íon = Na+ ou K+.

4. O canal iônico de vazamento é modelado por uma condutância passiva Gvaz em série

com uma bateria Evaz.

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Os valores de Gvaz e Evaz são determinados empiricamente para que a solução numérica

do modelo se ajuste bem aos dados experimentais.

O circuito elétrico equivalente ao modelo de Hodgkin-Huxley para a membrana do axônio

gigante da lula é dado pela figura abaixo:

Notem as posições das baterias: a posição de EK indica que o potencial de Nernst do

potássio é negativo (negativo no interior da célula em relação ao exterior) e a posição de

ENa indica que o potencial de Nernst do sódio é positivo (positivo no interior da célula em

relação ao exterior). A posição da bateria da corrente de vazamento indica que o seu

potencial de reversão é positivo.

Em seus experimentos de grampeamento de voltagem, Hodgkin e Huxley aumentavam a

voltagem para certo valor em relação ao repouso e determinavam o comportamento

temporal das correntes dos íons de sódio e potássio enquanto a voltagem permanecesse

constante no valor grampeado. Para fazer isso, é fundamental conseguir isolar as

contribuições de cada corrente iônica particular para a corrente iônica total.

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Hodgkin e Huxley conseguiram isso colocando o axônio de lula em um banho com

concentração de sódio muito baixa. Isso fazia com que a corrente de sódio (INa) fosse

praticamente zero, de maneira que toda a corrente medida era a de potássio (IK).

Posteriormente, colocava-se o axônio em um banho com concentração normal de sódio e

media-se a corrente iônica normal (Iiônica). Subtraindo-se dessa corrente a corrente de

potássio determinada anteriormente podia-se determinar INa.

Isso está ilustrado na figura abaixo (retirada do capítulo IV do The Book of GENESIS – ver

referência no fim desta aula).

Esta figura mostra o comportamento da densidade de corrente (em mA/cm2) contra o

tempo (em ms) quando se mantém a voltagem grampeada no valor de −9 mV (56 mV

acima do valor de repouso). A corrente total medida está indicada por IK + INa. A corrente

total quando o axônio está imerso em um banho com apenas 10% da concentração normal

de sódio está indicada por IK; e a corrente obtida pela diferença entre IK + INa e IK está

indicada por INa.

Outra maneira de se repetir esse experimento é usando um bloqueador de canais iônicos.

Existem toxinas e agentes farmacológicos capazes de bloquear seletivamente apenas

alguns tipos de canais iônicos. Um exemplo é a tetrodotoxina (TTX), capaz de bloquear

apenas os canais de sódio.

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Quando se faz um experimento como o ilustrado acima e se consegue isolar a corrente

devida apenas a um íon, a condutância do íon pode ser determinada da seguinte maneira.

Supondo que apenas um tipo de íon está presente, a equação para o potencial de membrana

torna-se

),())(,()(injrev tIEVtVG

dttdVC m

m =−+

ou

),())(,()(injrev tIEVtVG

dttdVC m

mm +−−=

onde Iinj(t) é a corrente que tem que ser injetada pelo eletrodo dentro da célula para manter

o potencial constante no valor grampeado e Erev é o potencial de reversão do único íon

presente. Como a corrente injetada faz com que o potencial de membrana permaneça

constante, dVm/dt = 0 e o lado esquerdo da equação anterior deve ser nulo. Pode-se então

escrever,

).)(()( revinj EVtGtI m −=

Esta equação indica que o comportamento temporal da corrente injetada é o mesmo da

condutância do íon que está fluindo através da membrana. Como os valores de Vm e de Erev

são conhecidos, ela permite que se determine G(t).

Um comportamento típico das condutâncias específicas (ou condutâncias por unidade de

área) gK e de gNa para um aumento de 26 mV no potencial, a T = 6oC, está mostrado na

figura abaixo.

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Exercício: tente explicar o comportamento temporal das condutâncias específicas de sódio

e de potássio acima em termos do que já foi discutido neste curso sobre os mecanismos

iônicos responsáveis pela geração de um potencial de ação.

Após a identificação experimental das condutâncias específicas de potássio e sódio,

Hodgkin e Huxley tiveram que encontrar equações capazes de fitar o comportamento

temporal dessas condutâncias para cada valor de grampo de voltagem usado.

A figura abaixo (também retirada do The Book of GENESIS) mostra o resultado de vários

experimentos dando a variação temporal da condutância específica do potássio para

diferentes valores da voltagem grampeada. Os círculos abertos indicam os dados

experimentais e as linhas sólidas indicam as curvas obtidas por Hodgkin e Huxley para

fitar os dados.

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Observe que o valor final (chamado de valor de estado estacionário) da condutância

específica aumenta com o valor da voltagem grampeada (os valores de voltagem dados no

gráfico são medidos em relação ao potencial de repouso da célula). Observe também que a

taxa de crescimento da condutância específica em direção ao valor de estado estacionário

aumenta com a voltagem grampeada.

Observando seus dados, Hodgkin e Huxley pensaram em fitar as curvas de condutância

específica por uma função envolvendo uma exponencial, tal como

⎟⎠⎞

⎜⎝⎛ −=

−)(e1)(),( V

t

KK VgtVg τ,

com gK e τ dependentes do valor da voltagem. gK(V) daria o valor de estado estacionário

para o qual a condutância específica tenderia a uma dada voltagem grampeada e τ(V)

determinaria quão rapidamente a condutância específica cresceria para o valor de estado

estacionário.

Observação: note que passamos a escrever a condutância como uma condutância

específica e a representá-la por uma letra minúscula, g, para diferenciá-la da condutância

total de um pedaço de membrana, indicada por uma letra maiúscula, G. De agora em

diante, vamos passar a escrever as equações em termos de grandezas específicas.

No entanto, uma exponencial simples como a da função acima não daria um bom ajuste. A

figura abaixo mostra por quê. Uma curva de condutância específica tem inclinação

(derivada) nula em t = 0, enquanto que uma exponencial tem inclinação não nula.

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Existem muitas maneiras de se gerar uma função matemática que se pareça melhor com a

curva experimental de uma condutância específica. Uma delas é usando o fato de que para

x pequeno (1 – e-x) é aproximadamente igual a x. A função x elevada a uma potência se

aproxima da origem com inclinação nula (veja o gráfico esboçado a seguir). Por outro

lado, para x → ∞, (1 – e-x) → 1 assim como (1 – e-x)α, onde α é um expoente qualquer.

Isto implica que uma função que envolva um termo do tipo (1 – e-t/τ)α pode ser capaz de

fitar a curva experimental da condutância específica: para t → 0 ela se aproxima da origem

com inclinação nula e para t → ∞ ela tende a 1.

Hodgkin e Huxley propuseram uma expressão do tipo a seguir para descrever o

comportamento da condutância específica do potássio para cada valor grampeado de V:

ατ⎥⎦⎤

⎢⎣⎡ ⎟

⎠⎞⎜

⎝⎛ −=

t

KK eVngtVg 1)(),( .

Nesta expressão, Kg é o maior valor possível que a condutância por unidade de área pode

atingir durante a aplicação do grampo de voltagem por um longo tempo. O valor n∞(V)

varia entre 0 e 1 e determina o valor assintótico da condutância específica gK para um dado

valor de voltagem grampeada (ele determina qual a fração de Kg que vai ser atingida em

t → ∞ para um dado valor do grampo de voltagem). Portanto, o valor de estado

estacionário da condutância específica para um dado valor de voltagem grampeada V é

descrito por ).(VngKα∞

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Após muitas tentativas, Hodgkin e Huxley obtiveram um bom ajuste para os seus dados

com um expoente α = 4 na expressão proposta (este valor foi o menor expoente capaz de

fornecer uma concordância aceitável da equação com os dados experimentais). Desta

maneira, para cada valor de V, o comportamento experimental da condutância do potássio

por unidade de área pode ser bem descrito empiricamente pela expressão:

),,(),( 4 tVngtVg KK =

com

.e1)(),( )(⎟⎠⎞

⎜⎝⎛ −=

∞V

tnVntVn τ

Note que a constante τ está agora indicada com um sub-índice n, τ = τn. Isto foi feito para

indicar que ela é relativa à variável n sendo usada para o potássio, pois aparecerão outras

variáveis do tipo de n e outras constantes de tempo quando a condutância específica do

sódio for modelada.

Note que, para um dado valor de V, a função n(V, t) acima é solução da equação

diferencial

,)()( nVndtdnVn −= ∞τ

para constantes τn(V) e n∞(V).

A variável n(V, t) é chamada de variável de ativação do potássio. A equação diferencial

acima descreve como a ativação do potássio aumenta até atingir o valor de estado

estacionário para um dado valor de voltagem.

Para completar a modelagem fenomenológica da condutância específica do potássio,

Hodgkin e Huxley tiveram que determinar como os parâmetros τn(V) e n∞(V) dependem de

V. Isto foi feito a partir de fittings de dados experimentais como os mostrados

anteriormente. As equações obtidas por eles para τn(V) e n∞(V) serão mostradas mais

adiante.

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A modelagem da variação temporal da condutância específica do sódio para cada valor de

grampo de voltagem foi feita de maneira similar por Hodgkin e Huxley. Porém, olhando

para as curvas experimentais a seguir, dando o comportamento de gNa contra t, vemos que

o comportamento de gNa é mais complicado que o de gK. A condutância específica do

sódio inicialmente sobe em resposta ao aumento do potencial, mas depois decai enquanto

o potencial fica mantido num valor alto.

O gráfico acima mostra as respostas da condutância por unidade de área do sódio, gNa, a

aumentos em V do tipo de grau de diferentes valores, obtidos pelo grampo de voltagem e

indicados pelos números à esquerda (em mV). As curvas suaves são os ajustes fornecidos

pelas equações do modelo de Hodgkin-Huxley. As escalas verticais à direita estão em

unidades de mS/cm2.

Para explicar o comportamento transiente de gNa observado na figura acima, Hodgkin e

Huxley propuseram que a condutância específica do sódio deve obedecer a uma equação

do tipo:

),,(),(),( 3 tVhtVmgtVg NaNa =

onde Nag é o máximo valor que a condutância específica do sódio pode atingir e m e h são

funções de V e t com valores entre 0 e 1 que determinam qual a fração de Nag que vai ser

atingida em t → ∞ para um dado valor do grampo de voltagem.

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Observe que a maneira de modelar a condutância específica do sódio é análoga à usada

para modelar a condutância específica do potássio, só que agora são usadas duas variáveis

(m e h) para descrever o comportamento temporal de Nag ao invés de apenas uma (n)

como no caso de Kg .

As variáveis m e h obedecem equações diferenciais similares àquela para a variável n do

potássio:

mVmdtdmVm −= ∞ )()(τ e ,)()( hVh

dtdhVh −= ∞τ

onde τm(V), m∞(V), τh(V) e h∞(V) têm a mesma interpretação que as variáveis τn(V) e n∞(V)

para o potássio.

Os comportamentos de m(t) e h(t) para um dado valor de grampo de voltagem são os

seguintes (veja a figura abaixo):

- m é inicialmente pequena e aumenta com o tempo de maneira similar à da variável de

ativação n do potássio; por causa disso, ela é chamada de variável de ativação do

sódio.

- Já h tem um valor inicial mais alto e depois decai para zero; por causa disso, ela é

chamada de variável de inativação do sódio. Quando h = 0, a corrente de sódio está

completamente inativa. Os expoentes, 3 para m e 1 para h, foram determinados por

Hodgkin e Huxley como sendo os que proporcionavam o melhor ajuste às curvas

experimentais de condutividade obtidas.

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O mecanismo de geração de um potencial de ação pode ser entendido a partir de uma

análise da figura acima. Inicialmente, existe um balanço entre a corrente de Na para dentro

e a corrente de K para fora. No repouso, m é pequena e h é grande, de maneira que o termo

m³h é pequeno, mas não nulo. A variável de ativação do K, n, tem um valor intermediário

entre m e h, mas n4 é também pequeno.

Após o início do pulso de voltagem, a despolarização aumenta m rapidamente e os canais

de Na se abrem. Após alguns milissegundos, h vai a zero e a condutância do Na se inativa.

Enquanto isso, n aumenta e a condutância do K cresce, atingindo um valor estacionário

alto. Após o fim do pulso, n, m e h retornam aos seus valores de repouso.

A chave para se entender o comportamento do potencial de membrana gerado pelas

variáveis m, h e n está nas suas respectivas constantes de tempo, τm, τh e τn. Observando a

figura, vemos que as variáveis de ativação do potássio (n) e de inativação do sódio (h)

levam muito mais tempo para atingir seus valores de estado estacionário do que a variável

de ativação do sódio (m). Como o comportamento temporal das três variáveis é

exponencial, do tipo e−t/τ, as constantes de tempo associadas às variáveis n e h devem ser

maiores do que a constante de tempo associada à variável m.

Isso pode ser mais bem entendido observando-se as figuras abaixo, que mostram como as

constantes de tempo e as variáveis de ativação e inativação dependem da voltagem no

modelo de Hodgkin-Huxley.

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Observe que a constante de tempo de ativação do sódio, τm, é aproximadamente dez vezes

menor que as constantes de tempo de ativação do potássio, τn, e de inativação do sódio, τh.

Isso significa que, quando ocorre uma despolarização, m varia bem mais rapidamente que

n e h em direção ao seu valor de estado estacionário. Portanto, há um breve período

durante o qual m é grande e h diminui muito pouco, de maneira que o termo m3h nas

equações é suficientemente grande para fazer com que a condutância de sódio seja

dominante. Isso força o potencial de membrana em direção ao potencial de Nernst do

sódio e provoca uma despolarização ainda maior, resultando em um feedback positivo que

acaba provocando um potencial de ação.

Enquanto isso, como τn e τh têm valores relativamente grandes as variáveis n e h levam um

tempo maior para atingir seus estados estacionários: n indo em direção a 1 e h indo para

zero. Quando h = 0 a condutância de sódio fica inativada e a corrente de sódio cessa. Já o

lento crescimento de n causa um aumento gradual na condutância de potássio, produzindo

uma corrente para fora da célula. Essa corrente, juntamente com a corrente de vazamento,

produz o retorno do potencial de membrana ao seu valor de repouso (repolarização).

Quando o potencial retorna até aproximadamente o valor de repouso (indicado por setas

nas figuras), as constantes de tempo τn e τh são relativamente grandes. Isso faz com que as

variáveis n e h retornem lentamente aos seus respectivos valores de repouso. Uma

conseqüência disso é que, como n continua com um valor relativamente grande, ainda há

corrente de potássio para fora de célula mesmo quando o potencial de membrana retorna

ao valor de repouso. Isso faz com que o potencial de membrana ultrapasse o valor de

repouso e fique ainda mais negativo, tendendo ao potencial de Nernst do potássio. Este

fenômeno é conhecido como pós-hiperpolarização (afterhyperpolarization em inglês). A

outra conseqüência é que h permanece com um valor muito pequeno por um longo tempo,

mantendo a condutância de sódio inativada. É isso que causa o período refratário absoluto,

pois enquanto h estiver inativada não é possível haver um potencial de ação. Lentamente,

porém, h vai retornando ao seu valor de repouso (ela vai se desinativando, no jargão dos

fisiologistas) e passa a ser possível a geração de um novo potencial de ação desde que o

estímulo seja suficientemente forte (período refratário relativo).

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Observe novamente os valores dos parâmetros do modelo no repouso, com o potencial de

membrana em torno de −70 mV. Note que o valor de h aumenta com a hiperpolarização da

célula e que existe uma faixa de valores de hiperpolarização tal que m se mantém diferente

de zero. Isto implica que uma possível estratégia para se despolarizar a célula é, primeiro,

hiperpolarizá-la um pouco e depois despolariza-la. Quando a célula é hiperpolarizada o

valor da variável de inativação do sódio cresce (h se desinativa). Posteriormente, quando

ocorre a despolarização, a variável m de ativação do sódio cresce rapidamente e h se

mantém em um valor relativamente alto por certo tempo (por causa da sua constante

temporal grande). Isto implica que o produto m3h pode chegar a atingir valores maiores

neste caso do que quando ocorre apenas uma despolarização a partir do repouso.

O modelo de Hodgkin-Huxley é caracterizado pela seguinte equação,

,)(

),(AtI

tVJdtdVC inj

mm

m +−=

onde Cm é a capacitância específica da membrana, Iinj(t) é a corrente injetada na célula e A

é a área da superfície da membrana da célula. A divisão por A foi feita porque a equação

acima está escrita em termos de grandezas específicas (por unidade de área).

A densidade de corrente de membrana Jm é composta por três componentes (corrente de

sódio, de potássio e de vazamento):

( ) ( ) ( ) ( ).),(, 433

1VmVKmkNamNa

kkm EVgEVngEVhmgtVJtVJ −+−+−==∑

=

As variáveis de ativação m e n e de inativação h, por sua vez, obedecem às seguintes

equações diferenciais:

,)()( nVndtdnVn −= ∞τ

mVmdtdmVm −= ∞ )()(τ e

.)()( hVhdtdhVh −= ∞τ

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Por razões que serão vistas na próxima aula, é costume reescrever cada uma destas três

equações em termos de duas novas variáveis, αi e βi, onde i = n, m, h.

Exercício: Mostre que as equações acima para n, m e h podem ser reescritas como

( ) ,)(1)( nVnVdtdn

nn βα −−=

( ) e )(1)( mVmVdtdm

mm βα −−=

( ) ,)(1)( hVhVdtdh

hh βα −−=

com as variáveis αi e βi, i = n, m, h, definidas por

;)()(

)(VVnV

nn τ

α ∞= ;)()(

)(VVmV

mm τ

α ∞= ;)()(

)(VVhV

hh τ

α ∞=

;)()(1

)(VVnV

nn τ

β ∞−= ;

)()(1

)(VVmV

mm τ

β ∞−= .

)()(1

)(VVhV

hh τ

β ∞−=

As dependências das variáveis, αi e βi com o potencial de membrana V foram

determinadas empiricamente por Hodgkin e Huxley, resultando nas expressões:

11010exp

1001,0)(−⎟⎠

⎞⎜⎝

⎛ −−

=VVVnα e ⎟

⎞⎜⎝

⎛ −=80

exp125,0)( VVnβ (potássio)

11025exp

251,0)(−⎟⎠

⎞⎜⎝

⎛ −−

=VVVmα e ⎟

⎞⎜⎝

⎛ −=18

exp4)( VVmβ (sódio)

⎟⎠

⎞⎜⎝

⎛ −=20

exp07,0)( VVhα e 1

1030exp

1)(+⎟⎠

⎞⎜⎝

⎛ −=

VVhβ (sódio).

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A voltagem V que aparece nestas equações é o potencial de membrana medido em relação

ao potencial de repouso do axônio gigante da lula (isto é, no repouso V = 0), em milivolts.

As condutâncias específicas máximas para cada um dos três canais e os respectivos

potenciais de reversão também foram determinados experimentalmente por Hodgkin e

Huxley e seus valores são:

120=Nag mS/cm2; 36=Kg mS/cm2; 3,0=Vg mS/cm2;

ENa = 115 mV; EK = −12 mV; Ev = 10,163 mV; Cm = 1 µF/cm2.

A solução numérica das equações do modelo de Hodgkin e Huxley mostra o aparecimento

de potenciais de ação para correntes acima de um valor limiar, conforme observado

experimentalmente.

O exemplo a seguir é de uma simulação das equações de Hodgkin e Huxley implementada

no MATLAB, com potencial de repouso Vrep = −65mV e densidade de corrente injetada

Jinj = 10 µA/cm2 com duração de 1 ms aplicada em t = 0.

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Referências: - Bower, J.M. and Beeman, D. (1998) The book of GENESIS (2nd ed.), Springer-Verlag,

New York.

- Hille, B. (2001) Ion Channels of Excitable Membranes (3rd ed.), Sinauer, Sunderland,

MA.

- Hodgkin, A. L. and Huxley, A. F., A quantitative description of membrane current and

its application to conduction and excitation in nerve. Journal of Physiology, London,

117: 500-544, 1952.

- Nicholls, J.G., Martin, A.R., Wallace, B.G. and Fuchs, P.A. (2001) From Neuron to

Brain (4th ed.), Sinauer, Sunderland, MA.