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verveRevista Semestral do Nu-Sol — Núcleo de Sociabilidade Libertária

Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP

92006

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VERVE: Revista Semestral do NU-SOL - Núcleo de Sociabilidade Libertária/

I. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos

Pós-Graduados em Ciências Sociais.

VERVE é uma publicação do Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária doPrograma de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Co-ordenadores: Teresinha Bernardo e Paulo-Edgar Almeida Resende.

Editoria

Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária.

Nu-Sol

Acácio Augusto S. Jr., Anamaria Salles, Andre R. Degenszajn, Edson LopesJr., Edson Passetti (coordenador), Eliane Knorr de Carvalho, Guilherme C.Corrêa, Gustavo Ferreira Simões, Lúcia Soares da Silva, Márcio FerreiraAraújo. Jr., Martha C. Lossurdo, Natalia M. Montebello, Gilvanildo Avelino,Rogério H. Z. Nascimento, Salete Oliveira, Thiago M. S. Rodrigues, ThiagoSouza Santos.

Conselho Editorial

Adelaide Gonçalves (UFC), Christina Lopreato (UFU), Clovis N. Kassick(UFSC), Guilherme C. Corrêa (UFSM), Guilherme Castelo Branco (UFRJ),Margareth Rago (Unicamp), Roberto Freire (Soma), Rogério H. Z. Nascimen-to (UFPB), Silvana Tótora (PUC-SP).

Conselho Consultivo

Alexandre Samis (Centro de Estudos Libertários Ideal Peres – CELIP/RJ),Christian Ferrer (Universidade de Buenos Aires), Dorothea V. Passetti(PUC-SP), Francisco Estigarribia de Freitas (UFSM), Heleusa F. Câmara(UESB), José Carlos Morel (Centro de Cultura Social – CSS/SP), José Eduar-do Azevedo (Unip), José Maria Carvalho Ferreira (Universidade Técnica deLisboa), Maria Lúcia Karam, Paulo-Edgar Almeida Resende (PUC-SP), SilvioGallo (Unicamp, Unimep), Vera Malaguti Batista (Instituto Carioca deCriminologia).

ISSN 1676-9090

ISSN 1676-9090

Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP.

Nº 9 ( maio 2006 - ). - São Paulo: o Programa, 2006 -Semestral1. Ciências Humanas - Periódicos. 2. Anarquismo. 3. Abolicionismo Penal.

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revista de atitudes. transita por limiares e ins-tantes arruinadores de hierarquias. nela, nãohá dono, chefe, senhor, contador ou progra-mador. verve é parte de uma associação livreformada por pessoas diferentes na igualdade.amigos. vive por si, para uns. instala-se numauniversidade que alimenta o fogo da liberda-de. verve é uma labareda que lambe corpos,gestos, movimentos e fluxos, como ardentia.ela agita liberações. atiça-me!

verve é uma revista semestral do nu-sol queestuda, pesquisa, publica, edita, grava e fazanarquias e abolicionismo penal.

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partituras, John Cage

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SUMÁRIO

Somos todos canibaisClaude Lévi-Strauss

A filiação de ProudhonDaniel Colson

As políticas do pós-anarquismoSaul Newman

A paixão russa de destruirGeorges Nivat

Europa: a guerra inacabadaNildo Avelino

Ensaio sobre um abolicionismo penalEdson Passetti

Liberdade assistida: uma tolerância intolerávelThiago Souza Santos

Os anarquistas e as prisões:notícias de um embate histórico

Acácio Augusto

Contingentes de homens inúteisEdson Lopes

Tolerância e conquista,alguns itinerários na Declaração Universal dos Direitos Humanos

Salete Oliveira

A “ordem” do Estado,as peculiaridades humanas e anarquia!

Edgar Rodrigues

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Uma história do anarquismo:o surgimento da Federação Libertária Argentina

Pablo M. Perez

Durruti está morto, contudo vivoEmma Goldman

Elogio do amor livreAmparo Poch y Gascón

Narcisismo, sujeição e estéticas da existênciaMargareth Rago

Poéticas do virtual e os processos de subjetivaçãoTania Mara Galli Fonseca

O apelo desejanteou o roteiro improvável para uso

dos ratos de bibliotecaNilson Oliveira

A arte pela (an) ar(q)Michel Ragon

RESENHAS

É o bastante?ou a conveniência de se manter na moda.

Ana Salles

William Gibson e cyberpunk:reflexão ou antecipação?

Márcio F. Araújo Jr.

Para além do gêneroEliane Knorr de Carvalho

Michel Foucault: um rosto desenhado na areiaTony Hara

Thoreau, um andarilhoAna Godoy

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canibal não é mais a designação colonialista suplemen-tar aos selvagens, aos outros, aos anormais, aos perigo-sos. o antropólogo claude lévi-strauss, num gesto rápido ecerteiro, mostra que somos todos canibais: rompimentocom o etnocentrismo.

o iluminismo não é mais a referência inquestionávelda anarquia. práticas anarquistas contemporâneas, semperder o vigor das lutas e pensamentos passados, dissol-vem universais, problematizam o poder, terrorismos e apropagação da idéia de europa pacífica.

os novos campos de concentração urbanos reafirmamos etnocídios e levam o abolicionismo penal a se revirar ea decompor o controle de jovens infratores a céu aberto, osposicionamentos anarquistas sobre prisioneiros, os con-tingentes de pessoas tidas como inúteis e as declaraçõesuniversais humanistas relacionadas à tolerância zero.

é preciso federação anarquista? conheça a federaçãolibertária argentina.

mulheres corajosas atualizam outras discussões: emmagoldman, fala do petrel buenaventura durruti na guerracivil espanhola; e por dentro desta luta, amparo poch ygascón (dra. salud alegre) da revista mujeres libres, comba-te a tirania do amor; margareth rago e tania fonseca de-sassossegam pelo cuidado de si e a experimentação dehabitar entre.

leitor e livro corpo a corpo: escritas que queimam sel-vagens e sem paz, tendo o sangue como tinta. são mos-tradas as conexões entre a anarquia e as artes, mesmocom um silêncio sobre o dadaísmo. por isso, partituras doanarquista john cage não deixam cessar o ruído do silên-cio em verve 9.

as resenhas interceptam deslizes, relacionam ficçãocientífica e sociedade de controle, comentam a obra deuma anarquista contundente, analisam os encontros so-bre foucault ocorridos em 2004, e saúdam os andarilhosque ladeiam henry david thoreau.

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Somos todos canibais

somos todos canibais1

claude lévi-strauss*

Até 1932, as montanhas do interior da Nova Guinécompunham a última região totalmente desconhecidado planeta. Formidáveis obstáculos naturais protegiamseu acesso. Garimpeiros de ouro, seguidos logo depoispelos missionários, foram os primeiros a penetrá-la, masa Guerra Mundial interrompeu essas tentativas. Ape-nas a partir de 1950 foi possível perceber que esse vastoterritório era habitado por quase um milhão de pessoasfalando línguas diferentes de uma mesma família lin-güística. Esses povos ignoravam a existência dos bran-cos, que foram tomados por divindades ou fantasmas.Seus costumes, suas crenças, sua organização socialiria abrir aos etnólogos um campo de estudos inimagi-nável.

* Filósofo de formação, realizou pesquisas etnográficas no Brasil Central nadécada de 1930, período em que foi professor de Sociologia na Universidadede São Paulo. Conhecido como inventor da antropologia estrutural, é membroda Academia Francesa e do Collège de France, onde criou o laboratório deAntropologia Social.

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Não somente aos etnólogos. Em 1956, um biólogoamericano, Dr. Carleton Gajdusek, descobriu uma do-ença desconhecida. Nas pequenas populações divididasem cerca de 160 aldeias num território de 250 milhasquadradas, somando quase 35 mil indivíduos, uma pes-soa em cada cem morria todo ano de uma degeneres-cência do sistema nervoso central manifesta por umatremedeira incontrolável (donde o nome da doença: kuru,que significa “tremer” ou “tiritar” na língua do principalgrupo) e por uma desorganização progressiva dos movi-mentos conscientes, seguida de múltiplas infecções.Após acreditar ser a doença de origem genética, Gajdu-sek demonstrou que ela era causada por um vírus deação lenta, particularmente resistente, e que até hojenão foi isolado.

Foi a primeira vez que se percebeu uma doença de-generativa causada por um vírus de ação lenta no ho-mem; mas as doenças animais, como o scrapie2 e a do-ença das vacas loucas que recentemente fez estragosna Grã Bretanha, são muito parecidas. No próprio ho-mem, uma outra afecção degenerativa do sistema ner-voso, a doença de Creutzfeldt-Jacob, existe em estadoesporádico no mundo inteiro. Mostrando que, como nokuru, ela pode ser inoculada nos macacos, Gajdusekprovou que ela é idêntica ao kuru (uma predisposiçãogenética, contudo, não foi excluída). Ele recebeu o prê-mio Nobel em Medicina, em 1976, por esta descoberta.

No caso do kuru, a hipótese genética não coadunavacom a estatística. A doença acometia as mulheres ecrianças pequenas com freqüência muito maior que oshomens, a ponto de se contar, nas aldeias mais afeta-das, uma mulher para cada dois ou três homens, às ve-zes quatro. Surgido talvez no começo do século,3 o kurutambém tivera conseqüências sociológicas: redução dapoligamia, proporção aumentada de homens solteiros e

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de viúvos encarregados da família, além de mais liber-dade das mulheres na escolha do cônjuge.

Mas se o kuru é de origem infecciosa, faltava aindaencontrar os vetores do vírus e a razão da repartiçãoanormal entre as idades e os sexos. Procurou-se em vãopelo lado da alimentação e da insalubridade das caba-nas, nas quais vivem as mulheres e crianças (separa-das de seus maridos ou pais, que moram juntos numacasa coletiva; os encontros amorosos ocorrem nas flo-restas ou nos jardins).

Quando os etnólogos entraram por sua vez na região,desenvolveram uma nova hipótese. Antes de passar aocontrole da administração australiana, os grupos viti-mados pelo kuru praticavam o canibalismo. Comer ocadáver de certos parentes era uma maneira de lhestestemunhar afeição e respeito. Cozinhava-se a carne,as vísceras, o miolo; preparava-se os ossos pilados comlegumes. As mulheres, responsáveis pelo trincho doscadáveres e pelas outras operações culinárias, aprecia-vam particularmente essas refeições macabras. Pode-se supor que elas se contaminavam ao manipular oscérebros infectados e que, por contato corporal, conta-minaram suas crianças pequenas.

Parece que, naquela região, essas práticas canibaiscomeçaram a ser realizadas na mesma época em que okuru apareceu; e que, depois que a presença dos bran-cos deu fim ao canibalismo, o kuru diminuiu regular-mente até hoje quase desaparecer. Uma relação de cau-sa e efeito poderia pois existir. A prudência contudo seimpõe, uma vez que as práticas canibais descritas comum prodigioso luxo de detalhes pelos informantes nati-vos, já haviam desaparecido quando as pesquisas co-meçaram. Não dispomos de nenhuma observação dire-ta, de experiência realizada em campo, que permita afir-mar que o problema esteja definitivamente resolvido.

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Eis que, há alguns meses, na França, na Grã Breta-nha, na Austrália, a imprensa se apaixona por casos dadoença de Creutzfeldt-Jacob (idêntica ao kuru, eu dis-se) ocorridos após injeções de hormônios extraídos dehipófises humanas, ou enxertos de membranas prove-nientes de cérebros humanos (a hipófise é uma peque-na glândula situada na base do cérebro). Esses trata-mentos servem para combater, no primeiro caso, pro-blemas de crescimento de crianças, e no segundo, aesterilidade feminina. Diversas mortes foram assina-ladas na Grã Bretanha, na Nova Zelândia, nos EUA, re-lativas à esterilidade; outras mais recentes, foram re-gistradas na França, entre crianças tratadas através dehormônios de crescimento extraídos de cérebros huma-nos provavelmente mal esterilizados. Fala-se de umescândalo compatível àquele que, numa escala maior,comoveu a opinião pública francesa com o caso do san-gue contaminado pelo vírus da AIDS e, como nesse últi-mo caso, as queixas foram depositadas na justiça.

Assim, a hipótese sugerida pelos etnólogos e aceitapelos médicos e biólogos, de que o kuru, doença própriade algumas pequenas populações exóticas, tinha suaorigem no canibalismo, encontra uma ilustração sur-preendente entre nós: aqui e ali, as doenças irmãs setransmitiam às crianças e às mulheres que, através decaminhos sem dúvida diversos, incorporavam materi-ais cerebrais humanos. Um caso não prova o outro, mashá entre eles uma admirável analogia.

Talvez surjam protestos contra essa aproximação.Entretanto, que diferença essencial há entre a via orale a sanguínea, entre a ingestão e a injeção, para intro-duzir um pouco de substância de outrem num organis-mo? Uns dirão que é o apetite bestial pela carne huma-na que faz o canibalismo ser horrível. Deverão, pois,restringir essa condenação a alguns casos extremos, e

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subtrair da definição de canibalismo outros casos ates-tados, impostos como dever religioso, muitas vezes cum-prido com repugnância, repulsa mesmo, traduzida emmal-estar e vômitos.

A diferença que estaríamos tentados a estabelecerentre um costume bárbaro e supersticioso, de um lado,e uma prática fundada no saber científico, de outro, tam-bém não será probatória. Atualmente empregos de subs-tâncias retiradas do corpo humano, procedimentos ci-entíficos aos olhos das antigas farmacopéias, são su-perstição para nós. E a medicina moderna, ela própriaproscreveu há alguns anos os tratamentos, há pouco ti-dos como eficazes, porque se revelaram inoperantes,senão nocivos. A fronteira parece ser menos nítida doque gostaríamos de imaginar.

Entretanto, o senso comum continua vendo na práti-ca do canibalismo uma monstruosidade, uma aberraçãotão inconcebível da natureza humana que certos auto-res, vítimas do mesmo preconceito, chegam a negar queo canibalismo tenha alguma vez existido. Invenções deviajantes e etnólogos, dizem. A prova: durante o séculoXIX e XX, estes produziram inúmeros testemunhos pro-venientes do mundo todo, mas nunca uma cena de cani-balismo foi diretamente observada por eles. (Deixo de ladoaqueles casos excepcionais em que pessoas, quase mor-rendo de fome, foram constrangidas a comer seus com-panheiros já mortos, pois o que se contesta é a existên-cia do canibalismo como costume ou como instituição.)

Num livro4 brilhante mas superficial, que teve gran-de sucesso junto ao público mal informado, W. Arensbaseou-se particularmente nas idéias admitidas sobreo kuru. Se as histórias do canibalismo são fábulas ad-vindas, como afirma,5 da cumplicidade entre os pesqui-sadores e seus informantes indígenas, não existe maisa razão de acreditar que na Nova Guiné o canibalismo

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esteja na origem do kuru, menos ainda que na Europa adoença de Creutzfeldt-Jacob se transmita também pelavia do canibalismo: hipótese grotesca que ninguém afir-mou.

Ora, acabamos de ver precisamente que é a realida-de incontestável do segundo caso que, sem trazer a pro-va, confere uma verossimilhança acurada ao primeiro.

***

Nenhum etnólogo sério contesta a realidade do cani-balismo, mas todos sabem também que não se pode re-duzi-lo à sua forma mais brutal, consistindo em matarinimigos para comê-los. Este costume certamente exis-tiu, tanto que no Brasil onde — para ficar num únicoexemplo — alguns viajantes antigos e jesuítas portu-gueses que viveram no século XVI durante anos entreos índios e falavam sua língua, fizeram testemunhosbastante eloqüentes.

Ao lado deste exocanibalismo, deve-se localizar umendocanibalismo que consiste em consumir em grandeou muito pequena quantidade a carne fresca, apodreci-da ou mumificada de parentes defuntos, seja crua, cozi-da ou carbonizada. Nos confins do Brasil e da Venezuelaos índios Yanomami, infelizes vítimas, como sabemos,dos garimpos de ouro que invadiram seu território, con-somem ainda hoje os ossos previamente pilados de seusmortos.

O canibalismo pode ser alimentar (em período de pe-núria ou por gosto pela carne humana); político (comocastigo de criminosos ou por vingança contra inimigos);mágico (para assimilar as virtudes dos defuntos ou, aocontrário, para afastar suas almas); ritual (se ele decor-re de um culto religioso, de uma festa dos mortos ou dematuridade ou para assegurar a prosperidade agrícola).Pode enfim ser terapêutico como atestam as numero-

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sas prescrições da medicina antiga, e na Europa mesmonum passado não tão longínquo. As injeções de hipófise eos enxertos de matéria cerebral, das quais falei, os trans-plantes de órgãos tornados hoje prática corrente, decor-rem indiscutivelmente dessa última categoria.

As modalidades do canibalismo são, pois, tão varia-das, suas funções reais ou supostas tão diversas, quese chega a duvidar que a noção de canibalismo, tal comoé empregada correntemente, possa ser definida de modomais ou menos preciso. Ela se dissolve ou se dispersaquando se tenta delimitá-la. O canibalismo em si nãopossui uma realidade objetiva. É uma categoria etno-cêntrica: só existe aos olhos das sociedades que o pros-crevem. Toda carne, qualquer que seja a proveniência,é um alimento canibal para o budismo que crê na uni-dade da vida. Ao contrário, na África, na Melanésia, po-vos fazem da carne humana um alimento como um ou-tro qualquer, senão às vezes o melhor, o mais respeitá-vel que, dizem é o único a “ter um nome”.

Os autores que negam a existência presente e pas-sada do canibalismo sugerem que a noção foi inventadapara aprofundar ainda mais o fosso entre selvagens ecivilizados. Nós atribuiríamos falsamente aos primei-ros costumes e crenças revoltantes a fim de nos propor-cionar uma boa consciência e de confirmar a crença nanossa superioridade.

Invertamos essa tendência e tentemos perceber emtoda sua extensão os fatos do canibalismo. Sob modali-dades e com fins extraordinariamente diversos segun-do os tempos e os lugares, trata-se sempre de introduzirvoluntariamente, nos corpos de seres humanos, partesou substâncias provenientes do corpo de outros huma-nos. Assim exorcizada, a noção de canibalismo parece-rá doravante bastante banal. Jean-Jacques Rousseauvia a origem da vida social no sentimento que nos leva

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a identificarmos-nos a outros. Afinal, o meio mais sim-ples de identificar outrem a si mesmo é ainda comê-lo.

Em última análise, se os viajantes em terras longín-quas se inclinaram facilmente, e não sem complacên-cia, diante da evidência do canibalismo, é que, sob essaforma generalizada que permite abarcar a totalidade dofenômeno, o conceito de canibalismo e suas aplicaçõesdiretas ou indiretas, acontecem em todas as socieda-des. Como mostra o paralelo que tracei entre os costu-mes melanésios e nossos próprios usos, pode-se até di-zer que ele existe também entre nós.

Tradução do francês por Dorothea Voegeli Passetti.

Notas1 “Nous sommes tous des cannibales”, publicado em Lévi-Strauss, Michel Izard(org.). Éditions de L’Herne. Paris, 2004, pp. 34-36. A publicação original é emlíngua italiana: “Siamo tutti cannibali”, La Republica, 10 de outubro de 1993.2 O termo inglês scrapie é também usado no Brasil para designar essa doençaneurodegenerativa que afeta o gado bovino e caprino, que em francês é conhe-cida como tremblement du mouton (NT).3 Século XX (NT).4 William Arens. The man-Eating Myth. New York, Oxford University Press,1979.5 Idem, pp. 111-112.

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Somos todos canibais

RESUMO

O canibalismo além da forma amestrada que conhecemos é tambémuma designação etnocêntrica se for compreendido como do huma-no, todos somos canibais.

Palavras-chave: Etnocentrismo, ciência, canibalismo.

ABSTRACT

Cannibalism beyond the domesticated form that we know is alsoan ethnocentric designation if comprehended as belonging to thehuman, we are all cannibals.

Keywords: Ethnocentrism, science, cannibalism.

Indicado para publicação em 4 de outubro de 2005.

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A filiação de Proudhon

a filiação de proudhon

daniel colson*

Como a maioria dos outros teóricos do anarquismo(Godwin, Coeuderoy, Dejacque ou Bakunin, por exem-plo), Proudhon não escapa do desprezo ligado à aparenteexcentricidade de suas idéias — mas também a modosde agir e de situar-se no mundo — despreocupadas comas formas e convenções capazes de mascarar sua origi-nalidade. No entanto, a esse descrédito comum, Prou-dhon acrescenta uma má e estranha reputação (devidasem dúvida à importância e ao caráter durante muitotempo enigmático de sua obra) que não apenas reforçaas razões para não lê-lo, mas principalmente para dizerou repetir despropósitos a seu respeito. Por exemplo, epara citar somente o lugar comum mais extravagante,que ele seria “o pai do anti-semitismo moderno”.1 En-tretanto, o interesse contraditório e, por um longo perí-odo, inconcluso por seus escritos — de Elie Havély aGeorges Gurvitch, passando por Leon Brunschvicg ou o

* Professor de Sociologia na universidade de Saint-Étienne, membro da livra-ria libertária La Gryffe de Lyon, autor de Petit lexique philosophique de l’anarchisme.De Proudhon a Deleuze. Paris, ed. Le Livre de Poche, 2001 e Trois essais dephilosophie anarchiste, Islam, Histoire et Monadologie. Paris, ed. Léo Scheer, 2004.

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durkeiniano Célestin Bouglé e o inclassificável Geor-ges Sorel — basta para mostrar a força e a importânciade uma filosofia que apenas o ressurgimento libertáriodestes últimos anos, e a aparição de um pensamentocontemporâneo dito “pós-moderno”, finalmente tornouperceptíveis.

As ondas Proudhon

Embora seja certo que ele recusaria tal distinção, aimportância de Proudhon é de duas ordens. Ela é em pri-meiro lugar histórica e política. De fato, é impossível com-preender o que quer que seja sobre a natureza e signifi-cação dos movimentos revolucionários ocorridos a partirda segunda metade do século XIX sem conhecer a obrade Proudhon. Uma obra que esteve em parte na origemdesses movimentos, mas que é, sobretudo, expressão efonte de inspiração para a riqueza, diversidade e origina-lidade de sua realidade e significação emancipadoras.Durante mais de setenta e cinco anos (quatro geraçõesoperárias), desde a fundação da 1ª Internacional, em Lon-dres em 1865, até o fim da revolução espanhola em 1939,o conjunto de países em vias de industrialização foi atra-vessado por surpreendentes movimentos operários e re-volucionários, mas freqüentemente ignorados, duplamen-te massacrados, tanto em sua realidade quanto em sualembrança, pelas ulteriores configurações do comunis-mo marxista. A influência de Proudhon passa por múlti-plas ondas e histórias diferentes, que se recobrem e sereforçam mesmo quando são muito diversas. Temos porexemplo, os movimentos cooperativos — esse ramo du-radouro, mas negligenciado do movimento operário in-ternacional. Ou ainda a 1ª Internacional (AIT), uma pri-meira vez, com as posições moderadas dos “proudhonia-nos” de estrita observância (os “mutualistas”), e depois,contra os primeiros, através da radicalidade revolucio-

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A filiação de Proudhon

nária dos partidários de Bakunin, que conviveu regu-larmente com Proudhon (durante os anos 1840), e que olera com paixão, antes de se apropriar dele e de retomá-lo de outra forma. Outro exemplo é a Espanha. Inicial-mente o proudhonianismo aí se difunde não entre osoperários, mas na pequena burguesia dos meios repu-blicanos e federalistas, em especial com as traduções eos escritos de Pi y Margal, ministro da efêmera repúbli-ca de 1871, mas também inspirador mais ou menos di-reto dos levantes cantonalistas dos anos 1860. Esse pri-meiro proudhonianismo encontra-se e é recoberto poruma segunda onda, desta vez estrita e massivamenteoperária, através do duplo acontecimento que foi o ecoda Comuna de Paris e a ligação duradoura das princi-pais forças operárias com o anarquismo de Bakunin.Um outro exemplo, mais tardio, é o sindicalismo revoluci-onário que, a partir da França e depois um pouco emtodas as partes do mundo, acaba representando o proje-to de Proudhon em oposição, mas também em estreitaafinidade, com o proudhonianismo extremo e insurre-cional dos anarquistas, e com aquele aparentementetão diferente dos múltiplos e proliferantes movimentosculturais e cooperativos. Essa capacidade de Proudhonde inspirar realidades tão diferentes quanto os movi-mentos messiânicos dos operários agrícolas andaluzes,a rigorosa e complexa federação dos relojoeiros do Jurasuíço, as ações itinerantes dos Industrial Workers in theWorld (IWW) americanos, ou os grupos anarquistas doEast End judeu de Londres, serviu por um longo períodopara justificar o veredicto de incoerência e heteroge-neidade que geralmente se atribui à sua obra, como tam-bém às revoltas e realizações de caráter libertário dosquais ela é a vertente teórica. Mas é justamente aquique uma releitura contemporânea de Proudhon e des-ses movimentos, pode tentar esclarecer sua originali-dade e o rigor de sua lógica interna.

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“A anarquia, essa estranha unidade que não se dizsenão do múltiplo”. Através dessa fórmula, Gilles Deleu-ze e Félix Guattari descrevem com economia e precisãoa originalidade do projeto libertário, e do modo pelo qualProudhon o pensou, duplicando assim sua diversidade esuas contradições aparentes. De fato, como Proudhonconseguiu ao mesmo tempo, para nos atermos ao maisconhecido, afirmar-se como reformista e como revoluci-onário, celebrar e denunciar o trabalho, opor-se ao ro-mantismo insurrecional e tornar-se o apologista do guer-reiro, reclamar-se da emancipação e dar provas de umainverossímil misoginia, sustentar durante o conflito doSonderbund suíço (1847) os cantões católicos e reacioná-rios contra a maioria radical da Confederação, ou aindaadversário das greves e dos primeiros sindicatos trans-formar-se no primeiro inspirador do sindicalismo revolu-cionário? Graças a trabalhos como os de Pierre Ansart(especialmente Naissance de l´anarchisme2), mas também,mais recentemente, o trabalho da jurista Sophie Cham-bost,3 ou ainda o livro coletivo Lyon et l´esprit proudhoni-en,4 percebe-se melhor a coerência de um pensamento ede um projeto fundados sobre a anarquia do real e querompem com o conjunto das representações da moderni-dade. Lembremos rapidamente os traços mais marcan-tes dessa coerência e dessa ruptura.

Uma anarquia positiva

Contra a uniformidade e as simplificações opressivasda ordem e da representação, contra as ilusões das for-mas, das molduras, das aparências e das classificações,o anarquismo proudhoniano opõe o múltiplo e o diferen-te, uma avaliação interior e singular dos seres e das si-tuações, onde, segundo o princípio da homologia, os ami-gos e os associados desejáveis em tal ou tal movimento(opressivo ou emancipador) raramente estão onde se

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A filiação de Proudhon

pensa encontrá-los. À objetividade ordenada e mutilan-te de um mundo submetido a Deus, ao Estado, ao capi-tal, e à Ciência, o anarquismo de Proudhon — antes deNietszche e segundo um Leibniz liberado de Deus — opõeo subjetivismo absoluto de um mundo anárquico que deveser ordenado a partir do interior, por experimentação epelo senso prático, por associações e des-associações(federalismo), um mundo que convém escolher e cons-truir dentre todos os mundos possíveis, transformandoa anarquia do real em anarquia positiva. O anarquismode Proudhon substitui a articulação mecânica, exteriore utilitarista dos seres, por sua afinidade interior, parao bom ou para o mau, a partir do jogo infinito dos encon-tros e das associações, e como mostra qualquer históriade amor, a posse de um quepe, de um volante ou de umacasa no subúrbio. À concepção restritiva e republicanade uma liberdade que “pára onde começa a liberdadedos outros” (Rousseau), o anarquismo de Proudhon opõeuma liberdade transdutora, capaz de se estender “aoinfinito” (Bakunin). À igualdade exterior e formal dascasernas, “a igual nulidade e a escravidão igual de to-dos diante de um mestre supremo” (Bakunin), o anar-quismo de Proudhon opõe a igualdade interior de um euabsoluto, inviolável em sua dignidade, ali onde, como afir-ma Deleuze, “o menor torna-se o igual do maior desdeque não seja separado daquilo que ele pode.” Ao dualis-mo da alma e do corpo, o anarquismo opõe o monismo deum pensamento onde tudo é potência, desejo e vontade,forças a cada vez singulares e dotadas da possibilidadede avaliar incessantemente a qualidade emancipadoraou opressiva daquilo que as constitui. A falsas oposi-ções que fixam e justificam a prisão em que vivemos —indivíduo/sociedade, natureza/cultura, bem/mal, ho-mem/mulher, objetividade/subjetividade, humano/não-humano — são substituídas pelo anarquismo poruma composição e uma transformação permanentes dos

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seres e das situações. Todo indivíduo é um grupo, um“composto de potências”, e todo grupo, toda entidade co-letiva, não importando seu tamanho ou duração, é um“indivíduo”, dotado de vontade e força, de sua própria sub-jetividade. À liberdade abstrata e vazia do cidadão, doconsumidor e desempregado “livremente” em busca dedinheiro, de trabalho e de felicidade, o anarquismo opõea necessidade interior dos seres, segundo a naturezamais ou menos fugidia de sua composição, de seus en-contros e de suas associações. Necessidade e liberdadese confundem, pois para o anarquismo, e como em Spi-noza, é dita livre a coisa que existe apenas pela neces-sidade de sua natureza” e “obrigada, a coisa que é de-terminada por uma outra a existir e a agir segundo umalei particular e determinada.”5

Em suma, é preciso ler e reler Proudhon à luz dasexperiências das quais ele é ao mesmo tempo a expres-são e o inspirador, mas também à luz de um pensamen-to dito pós-moderno que ele esclarece e que o esclarece,contribuindo assim a dar sentido e força a todos aquelesque, seja à escala do mundo, seja à de sua vida maisimediata, recusam o absurdo e os pesadelos previsíveisdeste século XXI que se inicia.

Tradução do francês por Martha Gambini.

Notas1 Pierre Birnbaum, Le Monde, de 18 de janeiro de 1987; Roger Pol-Droit, Le Mondede 12 de setembro de 2003, etc.2 Piere Ansart. Naissance de l’anarchisme. Paris, ed. PUF, 1970.3 Sophie Chambost. Proudhon et la norme. Pensée juridique d´un anarchiste. Rennes, ed.Presses universitaires de Rennes, 2004.4 Vários autores. Lyon et l´esprit proudhonien. Lyon, Atelier de création libertaires,2003.5 Spinoza. Éthique, livro I, def. 7.

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RESUMO

O artigo apresenta o pensamento de Proudhon como multiplicadorde práticas distintas e diversas entre si ao longo da história dosocialismo, da Comuna de Paris ao sindicalismo revolucionário,do anti-romântico insurrecional ao apologista guerreiro. Pensamentodo múltiplo e da diferença evita os falsos dualismos indivíduo/sociedade, natureza/cultura, bem/mal...

Palavras-chave: Proudhon, anarquismo, história.

ABSTRACT

The article presents Proudhon’s thought as multiplier of distinctand diverse practices throughout the history of socialism, fromthe Paris Commune to the revolutionary syndicalism, from the in-surrectional anti-romantic to the apologist warrior. Thought of themultiple and of the difference avoids false dualisms person/soci-ety, nature/culture, good/evil…

Keywords: Proudhon, anarchism, history.

Indicado para publicação em 25 de junho de 2005.

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saul newman*

Recentemente, as políticas radicais vêm enfrentan-do novos e numerosos desafios, dentre eles, a reemer-gência do Estado agressivo e autoritário, juntamentecom seus novos paradigmas de segurança e biopolítica.A “guerra ao terror” serve como mais um disfarce paralegitimar a reafirmação coercitiva do princípio de sobe-rania estatal, ultrapassando os limites tradicionais im-postos pelas instituições legais ou pelas políticas demo-cráticas. Além disso, há uma hegemonia dos projetosneo-liberais da globalização capitalista, bem como o obs-curantismo ideológico da chamada Terceira Via. O co-lapso do sistema comunista há quase duas décadas pro-vocou uma profunda desilusão, que resultou num vácuoteórico e político da esquerda radical, que tem desenvol-vido na Europa uma ineficiente oposição à ascensão daextrema direita, assim como um insidioso e assustadorconservadorismo, cujas sombrias implicações ideológi-cas estão apenas começando a se desdobrar.

* Saul Newman é pesquisador (pós-doutorado) e professor no Departamentode Ciências Políticas da University of Western Australia.

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O momento anarquista

Talvez devido ao desarranjo no qual a esquerda en-contra-se atualmente, tem-se articulado uma renova-ção do interesse no anarquismo como uma alternativaradical possível ao marxismo. De fato, o anarquismo foisempre uma espécie de ‘terceira via’ entre liberalismoe marxismo, e agora, com o desencanto geral diante doliberalismo do livre mercado e com o socialismo centra-lizador, o apelo, ou pelo menos o interesse, pelo anar-quismo tende a crescer.

Esse revival do anarquismo é devido também à proe-minência do vagamente definido movimento anti-glo-balização, que contesta a dominação da globalização neo-liberal em todas as suas manifestações — da ganânciacorporativa à degradação ambiental e aos alimentosgeneticamente modificados. O movimento está alicer-çado numa ampla agenda de protestos, que incorporauma multidão de diferentes assuntos e identidades po-líticas. Porém, o que testemunhamos é uma nova for-ma de política radical, que é fundamentalmente dife-rente de ambas as políticas de identidade particulariza-das que têm prevalecido nas sociedades liberais doocidente e no velho estilo de política marxista de lutasde classe. De um lado, o movimento anti-globalizaçãounifica diferentes identidades numa luta comum; e ain-da assim, esse campo comum não é determinado deantemão ou baseado na priorização dos interesses par-ticulares de classe. Ao contrário, ele se articula de for-ma contingente no decorrer da própria luta. O que tornaesse movimento radical é a sua imprevisibilidade e in-determinação — o modo pelo qual ligações e conexõesinesperadas são constituídas entre diferentes identida-des e entre grupos que de outra maneira teriam poucoem comum. Assim, enquanto este movimento é uni-versal, no sentido de que ele evoca um horizonte eman-

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cipador comum que constitui a identidade dos partici-pantes, ele rejeita a falsa universalidade das lutas mar-xistas, que negam a diferença e subordinam outras lu-tas ao papel central do proletariado — ou, para ser maispreciso, ao papel de vanguarda do partido.

É a recusa das políticas hierárquicas e centralizado-ras, essa abertura a uma pluralidade de diferentes iden-tidades e lutas, que faz do movimento anti-globalizaçãoum movimento anarquista. Ele não se torna anarquistaapenas porque grupos anarquistas são proeminentes nomovimento, mas principalmente porque, mesmo nãosendo conscientemente anarquista, incorpora formasanárquicas de política em sua estrutura e organização1

— que é descentralizada, pluralista e democrática —assim como a sua política inclusiva. Da mesma formaque anarquistas clássicos como Bakunin e Kropotkininsistiram, em oposição aos marxistas, que uma lutarevolucionária não poderia ser confinada ou determi-nada pelos interesses de classe do proletariado indus-trial, e que também deveria estar aberta aos campone-ses, ao lumpen proletariado, aos intelectuais déclassé,entre outros, o movimento contemporâneo inclui umaampla gama de lutas, identidades e interesses — sindi-catos, estudantes, ambientalistas, grupos indígenas,minoridades étnicas, pacifistas, entre outros.

Pós-marxistas como Ernesto Laclau e Chantal Mou-ffe argumentam que o horizonte político radical já não émais dominado pelo proletariado e sua luta contra o ca-pitalismo. Eles apontam para uma série de novos movi-mentos sociais e identidades — negros, feministas,minorias étnicas e sexuais — que não cabem mais nacategoria marxista de luta de classe: “O denominadorcomum entre eles provém da sua diferenciação com aluta dos trabalhadores, considerada como luta de ‘clas-ses.’”2 Classe, portanto, não é mais a categoria central

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pela qual a subjetividade política radical é definida. Alémdisso, as lutas políticas contemporâneas não são maisdeterminadas pela luta contra o capitalismo, mas apon-tam para novos espaços de dominação e destacam no-vas arenas de antagonismo — racismo, privatização,vigilância no trabalho, burocratização, entre outros.Segundo Laclau e Mouffe, esses novos movimentos so-ciais têm sido fundamentalmente lutas contra a domi-nação, mais do que meramente exploração econômica,como iria supor o paradigma marxista: “A sua novidadese explicita no fato de que eles questionam as novasformas de subordinação.”3 Isto significa que são lutasanti-autoritárias — lutas que contestam a falta de reci-procidade em relações particulares de poder. Nesse caso,a exploração econômica seria vista como parte de umaproblemática mais ampla de dominação — que inclui-ria também formas sexuais e culturais de subordina-ção. Neste sentido, se poderia dizer que as lutas e osantagonismos apontam para um momento anarquista napolítica contemporânea.

De acordo com os pós-marxistas, as condições políti-cas contemporâneas já não podem ser explicadas a par-tir das categorias teóricas e paradigmas centrais para ateoria marxista. O marxismo era conceitualmente li-mitado pelo essencialismo de classe e determinismoeconômico, que teve o efeito de reduzir o político a umespaço estritamente determinado pela economia capi-talista e pela emergência dialética do que era visto comoo sujeito universal emancipador. Por assim dizer, omarxismo foi incapaz de entender o político como umcampo completamente autônomo, específico e contin-gente, considerando-o sempre como um efeito super-estrutural das estruturas econômicas e de classe. As-sim, a análise da política estava subordinada à análisedo capitalismo. Em decorrência disso, o marxismo sim-plesmente não possui nenhuma bagagem teórica em

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lutas políticas que não se baseiem na noção de classe eque não estejam focadas em questões econômicas. A fa-lha catastrófica do projeto marxista — e seu ápice en-contrado na massiva perpetuação e centralização do po-der e autoridade estatais — mostrou que ele negligen-ciou a importância e especificidade do âmbito político.Em contrapartida, pós-marxistas contemporâneos afir-mam a primazia do político, percebendo-o como um cam-po autônomo — que, em vez de ser determinado por umadinâmica de classe e pelos trabalhos da economia capi-talista, é radicalmente contingente e indeterminado.

É então surpreendente que a teoria pós-marxista nãotenha reconhecido a contribuição crucial do anarquis-mo clássico em conceituar um campo político completa-mente autônomo. Certamente, é a ênfase na primaziae especificidade da política que caracteriza o anarquis-mo e o distingue do marxismo. O anarquismo ofereceuuma crítica socialista radical do marxismo, expondo suafragilidade teórica sobre a questão do poder do Estado.Diferente do marxismo, que enxergava o poder políticocomo uma derivação da posição de classe, anarquistascomo Mikhail Bakunin insistiram que o Estado deveriaser visto como o principal impedimento à revolução so-cialista, e que ele é opressivo independente da sua for-ma ou da classe que o controla: “Eles (marxistas) nãoentendem que o despotismo não reside na forma do Es-tado, mas no próprio princípio do Estado e do poder políti-co.”4 Em outras palavras, a dominação existe na própriaestrutura e lógica do Estado — ele constitui um espaçoautônomo ou campo de poder que deve ser destruído comoo primeiro ato da revolução. Os anarquistas acredita-vam que a negligência de Marx dessa questão teria con-seqüências desastrosas para as políticas revolucionári-as — uma previsão comprovada com exatidão pela revo-lução bolchevista. Para os anarquistas, o poder políticocentralizado não poderia ser facilmente superado e es-

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tava sempre em perigo de ser reafirmado se não fosseespecificamente combatido. Assim, a inovação teóricado anarquismo reside em levar a análise do poder paraalém do paradigma de reducionismo econômico do mar-xismo, apontando também a outros espaços de autori-dade e dominação que foram negligenciados pela teoriamarxista — por exemplo, a Igreja, a família, as estrutu-ras patriarcais, a lei, a tecnologia, assim como a estru-tura e hierarquia do próprio Partido Revolucionário mar-xista.5 O anarquismo ofereceu novos instrumentos paraa análise do poder político e, assim, ampliou o espaço dopolítico como um campo específico da luta revolucioná-ria e antagonismos, que não poderiam mais se subordi-nar às preocupações puramente econômicas.

Especificadas as contribuições do anarquismo à polí-tica radical e, particularmente, sua proximidade teóri-ca aos projetos pós-marxistas atuais, houve um estra-nho silêncio sobre essa tradição revolucionária por par-te das teorias radicais contemporâneas. Entretanto, éimportante notar que assim como a teoria contemporâ-nea deveria considerar a intervenção do anarquismo, opróprio anarquismo poderia se beneficiar significativa-mente se incorporasse perspectivas teóricas contem-porâneas, particularmente àquelas derivadas da análi-se do discurso, da psicanálise e do pós-estruturalismo.Talvez nós poderíamos afirmar que o anarquismo hojese dá mais pela prática do que pela teoria, apesar, éclaro, das intervenções de diversos pensadores anarquis-tas modernos influentes, como Noam Chomsky, JohnZerzan and Murray Bookchin.6 Já chamei a atenção paraa anarquia em ação que vemos nos novos movimentossociais que caracterizam o nosso campo político. No en-tanto, as próprias condições que possibilitaram a emer-gência do momento anarquista — a pluralização das lu-tas, subjetividades e espaços de poder — são também ascondições que evidenciam as contradições centrais e

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limites da teoria anarquista, cujos alicerces ainda es-tão no paradigma do Iluminismo humanista, com suasnoções essencialistas do ser humano racional e sua fépositivista na ciência e na objetividade histórica dasleis. Assim como o marxismo estava politicamente li-mitado por suas próprias categorias de classe e deter-minismo econômico, bem como por sua visão dialéticado desenvolvimento histórico, pode-se dizer que o anar-quismo também está limitado por suas amarras episte-mológicas no discurso essencialista e racionalista doIluminismo humanista.

Novos paradigmas sociais: pós-estruturalismo e aná-lise do discurso

O paradigma do Iluminismo humanista tem sido subs-tituído pelo paradigma da pós- modernidade, que pode servisto como uma perspectiva crítica no discurso da moder-nidade — uma “descrença em metanarrativas”, como afir-mou Jean- François Lyotard.7 Em outras palavras, a con-dição pós-moderna questiona precisamente a universali-dade e o absolutismo dos alicerces racionais e moraisderivados do Iluminismo. Ela desmascara as próprias idéi-as que não questionamos mais — nossa fé na ciência, porexemplo — evidenciando sua natureza arbitrária e a ma-neira com que foram construídas pela exclusão violentade outros discursos e perspectivas. O pós-modernismo tam-bém questiona as idéias essencialistas sobre a subjetivi-dade e a sociedade — a convicção de que há uma verdadecentral e imutável na base de nossa identidade e de nossaexistência social, uma verdade que só pode ser reveladauma vez que as mistificações irracionais da religião ou daideologia forem descartadas. Em vez disso, o pós-moder-nismo enfatiza a natureza mutante e contingente da iden-tidade — a multiplicidade de maneiras pelas quais ela podeser experimentada e entendida. Além disso, a história pode

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ser vista, sob a perspectiva pós-moderna, como uma sériede contingências e acidentes desordenados, sem origemou propósito, diferente da história entendida como desdo-bramento da lógica racional e da verdade essencial, comona dialética. Assim, o pós-modernismo enfatiza a instabi-lidade e a pluralidade de identidades, a natureza constru-ída da realidade social, a incomensurável diferença, a con-tingência da história.

Há atualmente diversas estratégias teóricas críticasque tratam das questões da pós-modernidade, e que euacredito ter implicações cruciais para as políticas radi-cais hoje. Tais estratégias incluiriam o pós-estruturalis-mo, a ‘análise do discurso’ e o pós-marxismo. Elas deri-vam de uma variedade de diferentes campos em filosofia,teoria política, estudos culturais, estética e psicanálise,que ainda compartilham de uma maneira geral um en-tendimento discursivo sobre a realidade social. Por assimdizer, elas entendem as identidades sociais e políticas comoconstruídas por meio de relações de discurso e de poder,que não têm significado inteligível fora deste contexto. Alémdisso, tais perspectivas vão além de um entendimentoestrutural determinista do mundo, apontando para a in-determinação da própria estrutura, assim como para assuas múltiplas formas de articulação. Existem diversasproblematizações teóricas importantes que podem ser de-senhadas aqui, que são não somente centrais para o campopolítico contemporâneo, como também têm implicaçõesimportantes para o próprio anarquismo.

A) A opacidade do social. O campo sócio-político é ca-racterizado por múltiplas camadas de articulações, an-tagonismos e dissimulação ideológica. Ao invés da exis-tência de uma verdade social objetiva para além dainterpretação e da ideologia, há somente o antagonis-mo das articulações conflituosas do social, que deri-vam do princípio althusseriano (originalmente freudi-

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ano) de sobredeterminação — segundo o qual os signifi-cados nunca são totalmente fixados, possibilitando aemergência de uma pluralidade de interpretações sim-bólicas. Slavoj Zizek elabora um interessante exemplodesta operação discursiva por meio da análise de ClaudeLévi-Strauss sobre integrantes da tribo Winnebago esuas diferentes percepções sobre a localização espaci-al de suas construções. A tribo divide-se em dois gru-pos — ‘aqueles que estão em cima e aqueles que estãoembaixo’. Pediram para um indivíduo de cada grupodesenhar a planta de sua vila na areia ou num papel.O resultado deste estudo apontava diferenças radicaisentre as representações de cada grupo. ‘Aqueles queestão em cima’ desenharam a aldeia como um grupode círculos concêntricos dentro de círculos, com umgrupo de círculos no meio e círculos satélites arranja-dos ao redor destes. Este esboço corresponderia à ima-gem ‘conservadora-corporativa’ da sociedade sustentadapela classe superior. Enquanto ‘aqueles que estão em-baixo’ também desenharam a vila como um círculo,porém explicitamente dividido por uma linha em duasmetades antagônicas — correspondendo, assim, à vi-são ‘revolucionário-antagonista’ das classes inferiores.Zizek comenta: “a divisão entre as duas percepções ‘re-lativas’ implica uma referência oculta a uma constan-te — não a objetiva e ‘real’ disposição das construções,mas um núcleo traumático, um antagonismo funda-mental que os habitantes da aldeia foram incapazesde simbolizar, de considerar, de ‘internalizar’, de reali-zar — um desequilíbrio nas relações sociais que impe-diu a comunidade de se organizar de forma harmôni-ca.”8

De acordo com este argumento, seria impossível sus-tentar a noção anarquista de objetividade social ou to-talidade. Há sempre um antagonismo no nível de repre-sentação social que enfraquece a consistência simbóli-

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ca desta totalidade. As diferentes perspectivas e as in-terpretações conflituosas do social não poderiam ser vis-tas como meros resultados de uma distorção ideológica,que impedem o sujeito de capturar a verdade da socie-dade. Isto indica que as diferenças nas interpretaçõessociais — este incomensurável campo de antagonismos— é a própria verdade da sociedade. Em outras palavras,a distorção aqui explicitada não está no nível da ideolo-gia, mas no nível da própria realidade social.

B) A indeterminação do sujeito. Assim como a identi-dade do social pode ser vista como indeterminada, a iden-tidade do sujeito também pode. Isso deriva de uma sériede diferentes abordagens teóricas. Pós-estruturalistascomo Gilles Deleuze e Felix Guattari procuraram abor-dar a subjetividade como um campo de imanência e devirque permite a emergência de uma pluralidade de dife-renças, não como uma identidade fixa e estável. A su-posta unidade do sujeito é desestabilizada por meio dasconexões heterogêneas formadas com outras identida-des sociais ou assemblages.9 Uma abordagem distintasobre a questão da subjetividade pode ser encontradana psicanálise lacaniana, na qual a identidade do su-jeito é sempre deficiente ou incompleta devido à au-sência do que Jacques Lacan chama de object petit a — oobjeto perdido do desejo. Esta ausência na identidade étambém registrada na ordem simbólica externa por meioda qual o sujeito é entendido. O sujeito busca o reco-nhecimento de si por meio da interação com a estrutu-ra da língua; no entanto, esta estrutura é em si mesmadeficiente, já que existe um certo elemento — o Real —que escapa à simbolização.10 Fica claro nestas duas abor-dagens que o sujeito já não pode ser visto como umaidentidade completa, inteira e confinada a si mesmafixada numa essência — ao contrário, sua identidade éinstável e contingente. Portanto, a política não pode maisestar baseada inteiramente em reivindicações racio-

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nais de identidades estáveis, ou na afirmação revoluci-onária de uma essência humana fundamental. Pelo con-trário, as identidades políticas são indeterminadas e con-tingentes — e podem dar vazão a uma pluralidade delutas diferentes e freqüentemente antagônicas sobrecomo essa identidade deve ser definida. Tal abordagemquestiona claramente o entendimento anarquista dasubjetividade, como baseada numa essência humanauniversal com características morais e racionais.11

C) A cumplicidade do sujeito no poder. O status do su-jeito é ainda problematizado pelo seu envolvimento emrelações de poder e discurso. Este problema foi extensa-mente explorado por Michel Foucault, que revelou umamiríade de possibilidades pelas quais a subjetividade éconstruída por meio de regimes discursivos e práticasde poder-saber. De fato, a forma pela qual nos enxerga-mos como sujeitos auto-reflexivos, com característicase capacidades particulares, está ligada à nossa cumpli-cidade com as relações e práticas de poder que freqüen-temente nos dominam. Isto questiona a noção do sujei-to humano autônomo e racional e o seu status em umapolítica radical de emancipação. Segundo Foucault, “ohomem que nos é descrito, o qual somos convidados alibertar, já é em si mesmo o efeito de uma sujeiçãomuito mais profunda que ele mesmo.”12 Isto traz diver-sas implicações ao anarquismo. Em primeiro lugar, emvez de haver um sujeito cuja essência humana naturalé reprimida pelo poder — como acreditavam os anar-quistas — essa forma de subjetividade é na realidadeum efeito do poder. Assim, essa subjetividade foi produ-zida de tal forma que ela se vê possuindo uma essênciareprimida — de tal forma que a sua liberação é simultâ-nea à continuidade da sua dominação. Em segundo lu-gar, a figura discursiva do sujeito humano universal,central ao anarquismo, é em si mesma um mecanismode dominação, focada na normalização do indivíduo e na

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exclusão das formas de subjetividade que não se encai-xam nela. Esta dominação foi desmascarada por MaxStirner, que demonstrou que a figura humanista dohomem era na realidade uma imagem invertida deDeus, e desempenhava a mesma operação ideológicade oprimir o indivíduo e negar a diferença.

D) A visão genealógica da história. A visão da históriacomo desdobramento de uma lei fundamental é aquirejeitada, em favor de uma perspectiva que enfatiza asrupturas, as interrupções e descontinuidades. A histó-ria é vista como uma série de antagonismos e multipli-cidades, em vez da articulação de uma lógica universal,como encontramos na dialética hegeliana, por exem-plo. Segundo Foucault, não há ‘segredos essenciais ouatemporais’ para a história, mas meramente “perigo-sos jogos de dominação”13. Foucault entendia a genealo-gia nietzscheana como um projeto de desmascaramen-to dos conflitos e dos antagonismos, a “guerra silencia-da” que é travada por trás do véu da história. O papel dogenealogista é, portanto, “despertar, por debaixo da for-ma de instituições e legislações, o passado esquecidodas lutas reais, das vitórias e derrotas encobertas, dosangue que secou nos códigos da lei.”14 As instituições,práticas e leis que contemporizamos ou percebemoscomo naturais ou inevitáveis, condensam violentas lu-tas e antagonismos que foram reprimidos. Segundo Ja-cques Derrida, a autoridade da lei é baseada em umgesto fundador da violência que tem sido negada. A leideve ser fundada sobre algo que antecede sua existên-cia e, portanto, sua fundação é por definição ilegal. Osegredo da existência da lei deve, conseqüentemente,ser algum tipo de ilegalidade rejeitada, um crime ou atode violência original que concebe o corpo da lei e que seencontra agora escondido nas suas estruturas simbóli-cas.15 Em outras palavras, as instituições e identidadespolíticas devem ser entendidas como procedências polí-

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ticas — por assim dizer, antagônicas — e não de origensnaturais. Tais origens políticas têm sido reprimidas nosentido psicanalítico — isto é, foram “re-alocadas” e nãocompletamente eliminadas, e podem ser reativadas se osignificado destas instituições e discursos for contesta-do.16 Ao mesmo tempo em que o anarquismo comparti-lharia deste compromisso desconstrutivo com a autori-dade política — ele rejeitava a teoria do contrato socialdo Estado, por exemplo — ele ainda se submete a umavisão dialética da história. O desenvolvimento social epolítico é visto como sendo determinado pelo desdobra-mento de uma essência social racional e de leis histó-ricas e naturais imutáveis. O problema é que se essasleis imutáveis determinam as condições da luta revo-lucionária, sobra pouco espaço para entender o políticocomo indeterminado e contingente. Além disso, a críti-ca genealógica também poderia se estender às institui-ções ‘naturais’ e às relações que os anarquistas perce-bem como opostas à ordem do poder político. Isto ocorreporque a genealogia enxerga a história como um cho-que de representações e um antagonismo de forças, nasquais relações de poder são inevitáveis. Assim, qualqueridentidade, estrutura ou instituição são desestabiliza-das — mesmo aquelas que possam existir em uma soci-edade anarquista pós-revolucionária.

Estas quatro problemáticas, centrais às análises pós-estruturalista e de discurso, têm implicações fundamen-tais para a teoria anarquista: se o anarquismo preten-de ser teoricamente efetivo na atualidade, se almeja secomprometer inteiramente com as lutas e identidadespolíticas contemporâneas deverá abdicar das estrutu-ras do Iluminismo humanista no qual está articulado— com seus discursos essencialistas, suas percepçõespositivistas das relações sociais e visão dialética da his-tória. Deverá, ao contrário, afirmar inteiramente a con-tingência da história, a indeterminação da identidade

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e a natureza antagonista das relações sociais e políti-cas. Em outras palavras, o anarquismo deverá seguirseu discernimento sobre a autonomia da dimensão po-lítica e suas implicações lógicas — e perceber o políticocomo um campo aberto de indeterminação, antagonis-mo e contingência, sem as garantias da reconciliaçãodialética e da harmonia social.

A problemática do pós-anarquismo

O pós-anarquismo pode ser visto como a tentativa derevisar a teoria anarquista desprendida das abordagensessencialistas e dialéticas, por meio da elaboração eaplicação de pensamentos provenientes do pós-estrutu-ralismo e da análise do discurso. Este exercício servepara destacar o que há de inovador e importante no anar-quismo — precisamente a teorização da autonomia e aespecificidade do domínio político, assim como a críticadesconstrutiva da autoridade política. São estes aspec-tos cruciais da teoria anarquista que devem ser evi-denciados, e cujas implicações devem ser exploradas.Eles devem ser desprendidos das condições espistemo-lógicas que os criaram, mas que atualmente o restrin-gem. O pós-anarquismo atua por meio de uma operaçãode resgate no anarquismo clássico, extraindo seus prin-cípios centrais sobre a autonomia política e explora assuas implicações nas políticas radicais contemporâne-as.

O ímpeto desta intervenção pós-anarquista surgiu domeu entendimento de que a teoria anarquista era innuce pós-estruturalista, assim como o pós-estruturalis-mo era in nuce anarquista. Assim, o anarquismo permi-tiu, como eu havia argumentado, a teorização da auto-nomia do político com seus múltiplos espaços de domi-nação e poder, bem como em suas múltiplas identidades

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e espaços de resistências (Estado, Igreja, família, estru-tura patriarcal etc.), que vão além da estrutura do redu-cionismo econômico do marxismo. No entanto, tais ino-vações teóricas estão limitadas pelas condições episte-mológicas do tempo — as idéias essencialistas sobre asubjetividade, as visões deterministas da história e odiscurso racional do Iluminismo.

O pós-estruturalismo é, pelo menos no que se refere àsua orientação política, fundamentalmente anarquistas— particularmente seu projeto desconstrutivo de desmas-carar e desestabilizar a autoridade das instituições, con-testando as práticas de poder que são dominantes e ex-cludentes. O problema do pós-estruturalismo residia nofato de que ele demandava um comprometimento com aspolíticas anti-autoritárias e ao mesmo tempo não pos-suía conteúdos ético-políticos explícitos, nem tampoucoelaborava uma explicação adequada da individualidade.O problema central de Foucault, por exemplo, estava noquestionamento: se o sujeito é construído por meio dediscursos e relações de poder que o dominam, como exa-tamente ele resiste à dominação? Portanto, a premissada aproximação do anarquismo com o pós-estruturalis-mo, está na maneira como cada um deles evidencia elida com os problemas teóricos do outro. A intervençãodo pós-estruturalismo na teoria anarquista, por exem-plo, evidenciou uma lacuna teórica — o anarquismo nãoreconhecia as relações de poder ocultas e os autorita-rismos potenciais, presentes nas identidades essenci-alistas, e estruturas discursivas e epistemológicas, quecompunham as bases de sua crítica à autoridade. E aintervenção anarquista na teoria pós-estruturalista, deoutro lado, expôs suas abordagens éticas e políticas su-perficiais e, particularmente, suas ambigüidades emexplicar as agências e resistências no contexto das in-desejadas relações de poder.

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Esses problemas teóricos estão situados em torno daquestão do poder, do lugar e do fora. Foi evidenciado queenquanto o anarquismo clássico era capaz de teorizar,no sujeito revolucionário essencial, uma identidade oulugar de resistência fora da ordem do poder, este sujeitoencontrava-se, nas análises subseqüentes, emaranha-do nas próprias relações de poder que contestava. Aomesmo tempo, o pós-estruturalismo, enquanto expunhaprecisamente tal cumplicidade entre sujeito e poder eradeixado sem um ponto teórico de partida — um fora —pelo qual poderia criticar o poder. Deste modo a perplexi-dade teórica que eu procurei abordar em From Bakuninto Lacan, referia-se ao fato de que precisamos entenderque não há uma saída essencialista ao poder — nenhumcampo sólido ontológico ou epistemológico que vá alémda ordem do poder. As políticas radicais precisam, noentanto, de uma dimensão teórica exterior ao poder e deuma noção de agenciamento radical que não seja total-mente determinada pelo poder. Ao explorar a emergên-cia dessa contradição, eu descobri duas ‘interrupções epis-temológicas’ centrais no pensamento político radical. Aprimeira foi encontrada na crítica ao Iluminismo huma-nista elaborada por Stirner, que compuseram as basesteóricas para as intervenções pós-estruturalistas, arti-culadas dentro da própria tradição anarquista. A segun-da emergiu da teoria lacaniana, cujas implicações foramalém dos limites conceituais do pós-estruturalismo,17 queapontou para as deficiências presentes nas estruturasde poder e linguagem, e para a possibilidade de uma no-ção de agenciamento radicalmente indeterminada, evi-denciada por meio desta lacuna.

Assim, o pós-anarquismo não é tanto um programapolítico coerente, mas uma problematização anti-auto-ritária que emerge genealogicamente — ou seja, pormeio de uma série de conflitos teóricos ou contradições— a partir de uma abordagem pós-estruturalista do

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anarquismo ou, na realidade, de uma abordagem anar-quista do pós-estruturalismo. No entanto, o pós-anar-quismo também implica uma ampla estratégia de ques-tionamento e contestação das relações de poder e hie-rarquia, e de revelação de espaços de dominação eantagonismo previamente ocultos. Neste sentido, o pós-anarquismo pode ser entendido como um projeto ético-político inacabado de desconstrução da autoridade. Des-te modo, o que o distingue do anarquismo clássico éque ele é uma política não-essencialista. Isto significaque o pós-anarquismo não depende mais de uma iden-tidade essencial de resistência, e não está mais anco-rado nas epistemologias do Iluminismo ou nas garan-tias ontológicas do discurso humanista. Ao contrário,sua ontologia é constitutivamente aberta a outra, eassume um horizonte radical vazio e indeterminado,que pode incluir um pluralidade de diferentes lutaspolíticas e identidades. Em outras palavras, o pós-anar-quismo é um anti-autoritarismo que resiste ao poten-cial totalizante de um discurso ou identidade fecha-dos. Contudo, isto não significa que o pós-anarquismonão tenha limites ou conteúdo ético, que podem tersuas bases em princípios emancipadores tradicionaisde liberdade e igualdade — princípios cuja naturezaincondicional e irredutível foi afirmada pelos anarquis-tas clássicos. No entanto, é importante ressaltar quetais princípios não estão mais ancorados em uma iden-tidade fechada, mas tornam-se ‘significantes vazios’18

que estão abertos a diversas articulações decididas deforma contingente no decorrer da luta.

Novos desafios: biopolítica e o sujeito

Atualmente, um dos desafios centrais às políticasradicais encontra-se na deformação do Estado-Nação —uma deformação que exibe paradoxalmente sua verda-

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deira face. Segundo Giorgio Agamben, a lógica da sobe-rania além da lei, e a lógica da biopolítica, se cruzaramna forma do Estado moderno. Deste modo, a prerrogati-va do Estado é regular, monitorar e policiar a saúde bio-lógica de sua população. Conforme afirmou Agamben,esta função produz um tipo particular de subjetividade— a qual ele denomina homo saccer —, definido pela for-ma de “vida nua”, ou à vida biológica despida de sua sig-nificação política e simbólica, assim como pelo princí-pio de assassinato legal ou assassinato com impunida-de.19 Um exemplo paradigmático dessa condição seria asubjetividade do refugiado e os campos de refugiados queproliferam por toda parte. Dentro destes campos, umanova forma arbitrária de poder é exercida diretamentesobre a vida nua do detento. Em outras palavras, o corpodo refugiado, que foi despido de todos os seus direitoslegais e políticos, torna-se o alvo da aplicação da sobera-nia do biopoder. No entanto, o refugiado é meramenteemblemático do status biopolítico ao qual estamos todossendo reduzidos progressivamente. Certamente, istoaponta para um novo antagonismo que tem se reveladocentral à política.20 Uma crítica pós-anarquista seriaprecisamente direcionada a esta ligação entre poder ebiologia. Não é suficiente afirmar os direitos humanosdo sujeito contra as incursões do poder. É preciso exa-minar de forma crítica a maneira pela qual certas sub-jetividades humanas são construídas como condutoresdo poder.

O vocabulário conceitual para analisar estas novasformas de poder e subjetividade não estava disponívelao anarquismo clássico. No entanto, mesmo nesse novoparadigma de poder subjetivador, o compromisso ético epolítico de questionamento da autoridade do anarquis-mo clássico, assim como sua análise sobre a soberaniado Estado — que foram além das explicações de classe— são ainda hoje relevantes. O pós-anarquismo é ino-

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vador precisamente porque combina o que é crucial nateoria anarquista com uma crítica pós-estruturalista/analítico-discursiva do essencialismo. O resultado é umprojeto político aberto e anti-autoritário para o futuro.

Tradução do inglês por André Degenszajn e OliviaGoulart.

Notas1. Ver a discussão elaborada por David Graeber a respeito de algumas destasestruturas anarquistas e formas de organização em “The New Anarchists”.New Left Review 13 (Jan/Feb 2002): 61-73.2. Ernesto Laclau e Chantal Mouffe. Hegemony and socialist strategy: towards aradical democratic politics. London, Verso, 2001. p. 159.3. Idem, p. 160.4. Mikhail Bakunin. Political philosophy: scientific anarchism (Organizado por G. P.Maximoff). London, Free Press of Glencoe. p. 221.5. Ver Murray Bookchin. Remaking society Montreal, Black Rose Books, 1989. p.188.6. As duas últimas permanecem resistentes ao pós-estruturalismo e pós-moder-nismo. Ver, por exemplo, John Zerzan. “The catastrophe of postmodernism”.In Anarchy: A Journal of Desire Armed, Fall 1991, pp. 16-25.7. Ver Jean-Francois Lyotard. The postmodern condition: a report on knowledge. Tra-dução de Geoff Bennington e Brian Massumi. Manchester, Manchester Uni-versity Press, 1984.8. Ver Judith Butler, Ernesto Laclau e Slavoj Zizek. Contingency, hegemony, univer-sality: contemporary dialogues on the left. London, Verso, pp. 112-113.9. Ver Gilles Deleuze e Felix Guattari. Anti-oedipus: capitalism and schizophrenia.Tradução de R. Hurley. New York, Viking Press, 1972. p. 58.10. Para uma discussão aprofundada das implicações políticas da abordagemlacaniana sobre a identidade, ver Yannis Stavrakakis. Lacan and the political.London, Routledge, 1999. pp 40-70.11. Piotr Kropotkin, por exemplo, acreditava no instinto natural de sociabilida-de no homem, que constituía as bases para relações éticas, enquanto Bakuninargumentava que a moralidade e a racionalidade do sujeito emergia do seu

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Políticas do pós-anarquismo

desenvolvimento natural. Ver, respectivamente, Peter Kropotkin. Ethics: originand development. Tradução de L.S Friedland. New York, Tudor, 1947; e Baku-nin. Political philosophy, op cit., pp. 152-157.12. Michel Foucault. Discipline and punish: the birth of the prison. Tradução de A.Sheridan. Penguin, London, 1991. p. 30.13. Michel Foucault. “Nietzsche, genealogy, history” in (Paul Rabinow org.) TheFoucault reader. New York, Pantheon, 1984. 76-100. p. 83.14. Michel Foucault. “War in the filigree of peace: course summary” Traduçãode I. Mcleod in Oxford Literary Review 4, no. 2 (1976): 15-19. pp. 17-18.15. Ver Jacques Derrida. “Force of law: the mystical foundation of authority” in(Drucilla Cornell et al orgs.) Deconstruction and the possibility of justice. NewYork, Routledge, 1992, pp. 3-67.16. Ver Jacob Torfing. New theories of discourse: Laclau, Mouffe and Zizek. Oxford,Blackwell, 1999.17. A questão de que Lacan possa ser visto como um ‘pós-estruturalista’ levantaum ponto central de discussão entre pensadores como Laclau e Zizek, já queambos são fortemente influenciados pela teoria lacaniana. Ver Butler et al, op.cit.18. Esta noção de ‘significante vazio’ é central na teoria lacaniana da articulaçãohegemônica. Ver Judith Butler et al, op. cit.. Ver Ernesto Laclau. “Why doempty signifiers matter to politics?” in (Jeffrey Weeks org.) The lesser evil and thegreater good: the theory and politics of social diversity. Concord, Rivers Oram Press,1994. pp. 167-178.19. Ver Giorgio Agamben. Homo sacer : sovereign power and bare life. Tradução deDaniel Heller-Roazen. Stanford, Stanford University Press, 1995.20. Segundo Agamben: “A inovação das políticas assurgentes é que esta não serámais uma luta pela conquista ou do controle do Estado, mas uma disputa entreEstado e não-Estado (humanidade)... ”Giorgio Agamben. The coming communi-ty, Tradução de Michael Hardt. Minneapolis, University of Minnesota Press,1993. p. 84.

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RESUMO

O anarquismo é apresentado como pensamento radical que, naatualidade, potencializa e permeia o movimento anti-globalização.Entretanto, é justamente nesta atualidade que o anarquismo en-contra as limitações que o acompanham desde o século XIX. Im-porta, então, problematizar o anarquismo, aproximando-o e con-frontando-o ao pós-estruturalismo e aos limites do iluminismo.

Palavras-chave: anarquismo, pós-estruturalismo, pós-anarquismo

ABSTRACT

Anarchism is presented as a radical thought that currently poten-tializes and permeates the anti-globalization movement. However,it is exactly in this actuality that anarchism finds the limitationsthat are following it since the 19th Century. Then, it is critical toproblematize the actuality of anarchism, bringing it closer to andconfronting it to poststructuralism and to the limits of Enlighten-ment.

Keywords: anarchism, poststructuralism, postanarchism.

Indicado para publicação em 8 de março de 2004.

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Paixão russa de destruir

a paixão russa de destruir

georges nivat*

“O anarquismo é principalmente uma criação dosrussos”. Assim começa, em l´Idée russe,1 a reflexão deNicolas Berdiaeff sobre o que ele chama de paixão russade destruir. Uma paixão teorizada e colocada em práticano século XIX pela classe superior russa, ou seja, a no-breza. Bakunin, o príncipe Kropoktin, ou ainda o condeLeon Tolstoi criaram todo um corpus de textos que é umcatecismo do anarquismo, e que se transformou em umaverdadeira poética da anarquia.

É claro que, antes deles, os anarquistas e suas idéiasnão eram estranhas ao povo russo, e tinham gerado todauma lenda popular em contraponto à história oficial doImpério. Podemos mesmo dizer que a crônica lendáriadas revoltas, dos salteadores, e das inúmeras jacqueries,2

formavam uma espécie de contra-história da Rússia. Aos

* Professor emérito na Universidade de Genebra, publicou Vers la fin du mytherusse e Russie-Europe, la fin du schisme. Lausane, Ed. L´Âge d´Homme, 1988;Impressions de Russie, l´an I, e Regards sur la Russie de l´an VI. Paris, Ed. DeFallois, 1993.

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salteadores precipitando-se em hordas a partir do Les-te, juntavam-se os cismáticos de todo tipo que fugiamda Rússia central, entre os quais o proto-papa Avvakoum.Ditada a seus discípulos do fundo de sua prisão de gelode Poustozersk, sua notável Vida, traduzida magnifica-mente para o francês por Pierre Pascal, mostra muitosaspectos de um anarquista em nome de Deus.

Bakunin foi um senhor russo da têmpera deAvvakoum. Para ele, os vilarejos russos, com sua tra-dição de comunismo primitivo, ou seja, o comunismoda comunidade do mir,3 deviam incendiar toda a Eu-ropa burguesa, passando pelos camponeses do Jurasuíço ou da Calábria italiana. Aos olhos de Bakunin,Marx era apenas um pan-germanista hegeliano. Oestágio último da humanidade chama-se revolta. Em1842, Bakunin termina seu ensaio sobre a Reação naAlemanha,4 e lança sua divisa da “paixão pela destrui-ção”, uma paixão que, para ele, é “o único caminhoem direção ao verdadeiro cristianismo.” Aliás, aquelehegeliano, que vê na contradição um “conceito total,absoluto, verdadeiro”, também faz apelo ao Apocalip-se, que condena severamente os Mornos. “Confiemosno eterno espírito que destrói e que aniquila, simples-mente porque ele é a fonte insondável e eternamentecriadora de toda vida.” Pois a paixão da destruição étambém uma paixão criativa. Em seu livro Deus e oEstado, Bakunin ataca a religião estabelecida, assimcomo a ciência e os positivistas. “Se Deus existisse,seria preciso aboli-lo”, ele declara, invertendo ironi-camente a fórmula de Voltaire. Quando um chefe deEstado fala de Deus, monarquista ou republicano, “po-dem ter certeza que está pronto para tosar um poucomais seu povo rebanho.”

Alexandre Herzen deixou-nos um belo retrato deBakunin, em um capítulo de suas memórias, Passado

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e meditações,5 mas ele não se refere, por uma razão evi-dente, a um episódio muito estranho da vida de Baku-nin: o da Confissão. Bakunin havia inquietado muito par-ticularmente o poder czarista ao dominar o famoso Con-gresso eslavo de Praga, convocado em 1848, para anunciara liberação dos povos eslavos do jugo dos déspotas. Vindaa reação, ele foi entregue às autoridades czaristas pelogoverno suíço da época. Passou três meses preso em for-talezas, primeiro em Pedro-e-Paulo em São Petersburgo,depois na antiga fortaleza sueca de Shlusselbung. Foi láque ele redigiu, de sua própria iniciativa, a propósito deseu carcereiro-chefe, o Imperador Nicolau I, uma sur-preendente Confissão, que só foi publicada em 1923, naRússia soviética, satisfeita em golpear o prestígio dosanarquistas com essa publicação. Nesse documento, eleprofessa a propósito do czar, “carrasco dos povos”, um ódiocomum pelo Ocidente burguês, e o imperador deve terlido com prazer (anotado de seu próprio punho): “Pensoque, mais na Rússia que em outros lugares, é precisohaver um poder ditatorial forte, preocupado unicamenteem educar e esclarecer as massas.” Mais tarde, tendoescapado da Sibéria, Bakunin instala-se na Suíça, emGenebra, onde exerceu uma forte influência sobre osanarquistas suíços, principalmente do Jura. Ele tambémse rendeu ao encanto ambíguo de um jovem cínico vindoda Rússia, que chegou a Genebra em 1869, Nietcháiev, ofamoso autor do Catecismo revolucionário,6 que prega umaorganização fechada da conjuração revolucionária e umaabjuração total de qualquer consideração moral na esco-lha dos meios. Foi transposta a passagem teórica da anar-quia à ditadura absoluta. O crime também compareceupara selar a equipe dos conjurados: o assassinato do es-tudante Ivanov em Moscou, que se tornou, nos Demôniosde Dostoievski, o assassinato de Chatov pelo grupo dePiotr Verkhovenski.

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A luta ou a fuga

Assim, o Catecismo revolucionário enunciava no pará-grafo sexto: “Duro para consigo mesmo, o revolucioná-rio também deve ser duro com os outros. Todos os senti-mentos de ternura que tornam o homem efeminado,como os laços de parentesco, a amizade, o amor, a grati-dão, e mesmo a honra, devem ser sufocados pela paixãoúnica e fria pela causa revolucionária.” Foi só a contra-gosto que Bakunin abriu os olhos para os aspectos in-quietantes e mesmo pérfidos de Nietcháiev. Sua longacarta de ruptura enviada de Locarno em dois de junhode 1870 (e publicada pelo historiador Michael Confino) énotável pelo sentimento de constrangimento e de pusi-lanimidade do autor da carta, um nobre russo libertá-rio, ainda embaraçado em suas noções de honra, masfascinado por um louco saído do povo. Nessa longa decla-ração de amor frustrado, Bakunin afirma: “Se fosse pre-ciso escolher entre a bandidagem e o roubo daquelesque ocupam o trono, e o roubo e a bandidagem do povo,sem hesitar eu me colocaria ao lado desse último.” Aditadura será coletiva e invisível. “Pequenos grupos nãodesejando nada para si”, conduzirão o oceano populardesenfreado para “a organização da mais completa li-berdade popular”.

O príncipe Kropotkin, outro grande anarquista, conta,em suas Notas de um revlucionário, que o irmão do czarAlexandre II veio visitá-lo na sua cela da fortaleza Pedro-e-Paulo. Dirigia-se a ele chamando-o de “príncipe”, e ti-nha dificuldade de entender o engajamento de Kropok-tin. O príncipe conheceu muitas outras prisões, entre asquais a de Lyon em 1882, após a explosão do café Belle-cour. Tanto na França como em outros lugares, ele sevia rodeado de um enxame de agentes da polícia secretaczarista, a Okhrana. Kropotkin conheceu todos os dra-mas do anarquismo russo: a “degoevtchina”, do nome de

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um anarquista recrutado pela Okhrana e que foi obri-gado por seus camaradas a assassinar, em 1883, umchefe da polícia; o “azeftchina”, do nome de Azef, semdúvida um agente da Ohkrana, mas que, para se fazerconfiar por seus camaradas, tinha assassinado o mi-nistro do interior Plehvé; e finalmente a “bogrovtchina”,do nome de um revolucionário, colaborador da Okhranaque, em 1911, no Grande Teatro de Kiev, na presençado Imperador Nicolau II, assassinou a queima-roupa oPrimeiro ministro Stolypine, numa decisão individual(Soljenitsin transforma-o em episódio central de seuromance histórico Agosto 14). Os estragos do “entrismo”dos terroristas do partido socialista revolucionário napolícia secreta (e vice-versa) foram enormes. Consulta-do freqüentemente nesses episódios de duplas lealda-des ambíguas, o velho príncipe acreditava que os finsnão justificavam todos os meios, e condenava esse “en-trismo” fatal. Mas ele foi derrotado pela lógica perversados dois inimigos. Andrei Biély consagrou seu granderomance Petersburgo a uma descrição poética e policialdessa extraordinária confusão do terror e da repressãosecreta, ao longo episódio da Provocação que marca aépoca anarquista da Rússia. Como em seu romance,uma bomba tiquetaqueava no ventre do país, que pren-dia a respiração...

O debate sobre a utilização ou não da violência nainstauração de uma anarquia a serviço da felicidade detodos assumiu na Rússia um relevo particular. Aos ter-roristas da Vontade do povo que abateram o czar liberta-dor Alexandre II, no dia em que ele tinha sobre sua es-crivaninha o projeto de uma Constituição de seu mi-nistro Loris-Melikov, depois aos combatentes do Partidodos socialistas revolucionários que exterminaram osdignatários (como se vê no relato patético de LeonidAndreev, O Governante), opôs-se o conde Tolstoi, que pre-gava uma outra anarquia. Tolstoi abominava da mes-

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ma forma o regime czarista, e não era menos odiadopor ele, mas ele era o apóstolo da não-violência, queretirava do ensinamento do Evangelho. Em seu roman-ce Ressurreição (1899), Tolstoi retratou revolucionári-os na prisão. São eles que educam Katioucha, a prosti-tuta vítima de um sedutor, e falsamente acusada deum crime. O estudo dos rascunhos de Ressurreiçãomostra quanto, na primeira redação, Tolstoi era maissevero com os revolucionários. Ele vê na sua ação oresultado de pulsões sexuais insatisfeitas... Na versãofinal, atenua um pouco essa tese, mas ainda perma-nece uma forte condenação do recurso à violência re-volucionária. O príncipe Nekhlioudov, o sedutor de Ka-tioucha, encontra, atravessando o rio Ienisseï, umadepto da seita dos “begoun” ou seita dos fugitivos. Re-cusa do imposto, recusa do sorteio para o recrutamen-to militar, e mesmo recusa do estado civil, o begounrecusa-se a dizer seu nome. Sente-se que Tolstoi ad-mira profundamente o modo de vida desses fugitivos eenxerga aí uma solução plausível para a violência, so-lução que ele irá adotar in extremis, fugindo de sua casapara ir morrer numa pequena estação anônima, emAstapovo.

Os negros e os vermelhos

O anarquismo foi um componente da revolução rus-sa que a historiografia soviética naturalmente mini-mizou, e mesmo mascarou. No Journal de Russie dePierre Pascal,7 que fundou em Moscou o grupo bolche-vista francês, vê-se que os anarquistas estão muitopresentes. Ele mesmo tinha dois amigos anarquistasitalianos que vieram para Moscou, e juntos eles fun-daram uma espécie de comuna, numa vila requisita-da de Ialta. Ali discutiam à exaustão para decidir setinham o direito de ter um caseiro para o inverno, ou

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seja, se era certo recorrer a um trabalho alugado, ouem outras palavras, à exploração do homem pelo ho-mem... A bandeira negra dos anarquistas flutuou umaúltima vez nas ruas de Moscou no funeral de Kropotkin,em 1921.

Nestor Makhno, por sua vez, morreu em Paris. Brutal,incendiário, ele reuniu em 1917, na Ucrânia submetidaaos alemães pelo tratado de Brest-Litovsk, um exércitode quase quarenta e cinco mil homens sob a bandeiranegra. Suas façanhas guerreiras impressionaram Lênin.Kiev, às voltas com a guerra civil, mudava de mãos acada mês. A anarquia varria vitoriosamente as ricas ter-ras do tchernoziom. Makhno recusava a lei, o regulamen-to, a justiça. Cabia ao povo aplicar soberanamente a jus-tiça, fora de qualquer lei escrita. Makhno foi pouco a pou-co sendo vencido pelo Exército Vermelho, Kiev foi libertadade seu ataman8 nacionalista Petlioura. No romance A Tor-rente de ferro, Serafimovitch mostra como a massa anar-quista dos partisans conseguiu pouco a pouco se auto-disciplinar e, em suma, se bolchevizar. A literatura sovi-ética passa assim, pouco a pouco, ao elogio da vidaelementar, à celebração da vontade dos homens em ves-tes de couro e de punho inflexível: os comissários.

Duas semanas após os funerais de Kropotkin emMoscou, Kronstadt e seus marinheiros vermelhos sesublevavam contra a ditadura dos bolchevistas, e os ma-rinheiros socialistas e anarquistas lançavam seu fa-moso SOS para o mundo inteiro. Trotski veio retomara ilha revoltada graças à cavalaria vermelha. A ditadu-ra do proletariado estrangulava a velha liberdade anar-quista russa, nascida nos caminhos do bandido StenkaRazine, o velho sonho da justiça popular e direta.9

“Abre-te, abismo sangrento,

E na plenitude do ser,

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Diante do povo, o mundo e as estrelas

Que brilhe a tua justiça!”

Maximilien Volochine, 5 de janeiro de 1923.

Tradução do francês por Martha Gambini.

Notas1 Nicolas Berdiaeff. L´idée russe. Problèmes essentiels de la pensée russe au XIXe. etdébut du XXe. siècle. Tradução e notas de H. Arjakowsky. Paris, Ed. Marne,1969.2 Diz-se das insurreições dos camponeses contra a nobreza.3 O mir é a comuna camponesa.4 O livro foi publicado sob o pseudônimo de Jules Elysard.5 Alexandre Herzen. Passe et méditations. Tradução e apresentação de DariaOlivier. Lausanne, Ed. L´Âge d´Homme, 1974.6 Os principais documentos que permitem avaliar a amplidão do domínio queNietcháiev exerceu sobre Bakunin foram publicados pelo historiador MichaelConfino em Cahiers du monde russe et soviétique. Paris, Ed. Mouton, La Haye,1966-1967.7 Pierre Pascal. “Mon Journal de Russie, 1918-1921”, in Communisme. Lausan-ne, Ed. L´Âge d´Homme, 1977.8 Diz-se do chefe eleito dos clãs cossacos, na época de sua independência.9 Cf. Ante Ciliga. L´Insurrection de Cronstadt et la destinée de la révolution russe.Paris, Ed. Allia, 1998. Esse curto texto, escrito por um comunista desencanta-do, foi inicialmente publicado na revista de Boris Souvarine, Le Contrat social.

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RESUMO

Uma genealogia do anarquismo russo, enfatizando os percursosde Bakunin, Kropotkin, Tolstoi e Makhno, frente à Rússia do sé-culo XIX e começo do XX e no interior do próprio anarquismo.Delineiam-se a idéia de revolução, ou a paixão por destruir, assimcomo o anarquismo pacifista, como respostas contundentes, e nãoconciliadoras, diante da ordem estabelecida.

Palavras-chave: Anarquismo, Rússia, revolução, terrorismo.

ABSTRACT

Genealogy of Russian anarchism, privileging Bakunin, Kropotkin,Tolstoi and Makhno’s journeys in the Russian context of the 19th

Century and beginning of the 20th and inside anarchism itself. Itdelineates the idea of revolution, or the passion for destruction,as well as the pacifist anarchism, as firm, and not conciliating,answers for the established order.

Keywords: Anarchism, Russia, revolution, terrorism.

Indicado para publicação em 25 de junho de 2005.

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europa: a guerra inacabada

nildo avelino*

“Eis uma nação, há um tempo reputada uma das maisbelicosas, hoje a mais industriosa, a mais potente em capi-tais, que reclama o desarmamento geral e se pronuncia emtoda ocasião contra a guerra. Mas que outra coisa faz, tro-cando armadura, se não atrair os seus rivais para um novocombate, no qual se crê segura da vitória?”

Proudhon

Uma disposição parece comum aos grupos humanos:o etnocentrismo ou a atitude que consiste na negaçãodas diferenças a partir de um ponto mais ou menos dis-tante em que se encontram separadas duas culturas.Exemplo bem conhecido de uma prática etnocêntrica foia notória atitude com que a antiguidade chamou de bár-baro o que não se conformava aos costumes greco-ro-manos, e também o modo como a modernidade conside-

* Mestre em Ciências Sociais, pesquisador no Núcleo de Sociabilidade Libertá-ria, Nu-Sol, e integrante do Centro de Cultura Social de São Paulo. Autor deAnarquistas: ética e antologia de existência. Rio de Janeiro, Achiamé Editor, 2004.

verve, 9: 60-81, 2006

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rou selvagem o modo de vida que não se enquadravanos seus valores.

Trata-se de um olhar que lança sobre o outro umareprovação daquilo que ele afirma ser, ao mesmo tem-po em que afirma uma qualidade distintiva. Lévi-Strauss mostrou o quanto é precária e limitada a no-ção de humanidade como qualquer coisa que pretendeenglobar uma espécie ou gênero, já que a experiênciaetnocêntrica explicita que a humanidade cessa sem-pre nas fronteiras da tribo, do grupo lingüístico ou mes-mo da aldeia. O “Universal” espécie é impotente con-tra o particular etnocêntrico, ele se dissolve frente aogesto de um grupo qualquer, ao erguer-se e se autopro-clamar o portador, mais ou menos legítimo, de umacerta superioridade cultural. “Nas grandes Antilhas,alguns anos após a descoberta da América, enquantoos espanhóis enviavam comissões de investigação parapesquisar se os indígenas tinham ou não uma alma,estes últimos dedicavam-se a imergir brancos prisio-neiros, a fim de verificar, após uma vigília prolongada,se seu cadáver estava ou não sujeito à putrefação.”1

De modo equivalente, a Ordem de São Jerônimo reali-zava uma pesquisa psico-sociológica na qual submeti-am “(...) os colonos a um questionário visando saberse, segundo eles, os índios eram ou não ‘capazes deviver por conta própria’”. Ainda que todos tenham res-pondido negativamente, contemporizava-se que “‘a ri-gor, talvez, seus netos; ainda assim, os indígenas sãotão profundamente viciosos, que pode se duvidar; a pro-va: eles fogem dos espanhóis, recusam-se a trabalharsem remuneração, mas levam a perversidade a pontode dar de presente seus bens; não aceitam rejeitar oscompanheiros cujas orelhas os espanhóis cortaram’. Eà guisa de conclusão unânime: ‘É melhor para os índi-os tornarem-se homens escravos do que se manteremcomo animais livres...’”.2

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Mas Lévi-Strauss também nos fez supor que existeuma distância entre essas duas experiências etnocên-tricas. Uma distância que é da ordem da constituiçãodas sociedades, entre duas constituições culturais queseriam irredutíveis uma à outra, onde “(...) o outro, aque-le ser que em nossa cultura, para não ser dizimado, pre-cisa aceitar ser subordinado, tornando-se o mesmo demim”. Distância que separaria sociedades antropoêmi-cas de sociedades antropofágicas: “A nossa é antropoê-mica, não suporta os desvios, os vomita para fora: pren-de, interna, confina, exila, mata.”3

Com isso, seria necessário acrescentar mais estaafirmação: se toda cultura é etnocêntrica, apenas a cul-tura ocidental é etnocidiária. O etnocídio, entendidocomo destruição sistemática de modos de vida e siste-mas de pensamento, seria uma vocação do Ocidenteporque estaria inserido na moral do humanismo. É parao bem do selvagem que se pratica o etnocídio, é paraarrancá-lo deste estado deplorável e elevá-lo ao nível dacivilização e da cultura superior. Ele implica um gestocorrecional. “Suprime-se a indianidade do índio a fimde fazer dele um cidadão brasileiro. Na perspectiva deseus agentes, o etnocídio não poderia ser um empreen-dimento de destruição. É, ao contrário, uma tarefa ne-cessária, exigida pelo humanismo inscrito no coraçãoda cultura ocidental.”4

O etnocídio possui sua racionalidade, está ligado aesse princípio de identificação e a esse projeto de redu-ção do outro ao mesmo, ele funciona como uma política.Com efeito, essa dissolução do múltiplo através de umatécnica de assimilação e de assemelhamento encon-trou seu apogeu entre o crepúsculo da Renascença e oalvorecer da Idade Clássica, em meados do século XVII,lá onde se articulou uma nova percepção em relação àmiséria, “(...) novas formas de reação diante dos proble-

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mas econômicos do desemprego e da ociosidade, umanova ética do trabalho e também o sonho de uma cidadeonde a obrigação moral se uniria à lei civil, sob as for-mas autoritárias da coação.”5 Foi a partir da multiplica-ção de uma população duvidosa de camponeses expul-sos de suas terras, de soldados desertores, de operáriossem trabalho, de pobres, de doentes, etc.6 que um etno-centrismo “aquém mar” colocou em funcionamento ascategorias lógicas familiares aos povos colonizados dovelho mundo. Selvagens, dirá Eugène Buret, ao escreverem 1840 La misère des classes laborieuses en Angleterreet en France, a respeito desses pobres. “Selvagens os ope-rários o são pela incerteza da sua existência, primeirotraço de identificação que aproxima o pobre do selva-gem. Para o proletário da indústria, como para o selva-gem, a vida está à mercê das sortes do jogo, dos capri-chos do acaso: hoje boa caça e salário, amanhã caçaimprodutiva ou desemprego, hoje abundância e ama-nhã a fome.”7 Mas são selvagens principalmente por seunomadismo incessante que se inicia com a vagabunda-gem das crianças e que termina com essa “(...) popula-ção flutuante das grandes vilas, esta massa de homensque a indústria atrai em torno a si, da qual ela não podese ocupar constantemente e que ela tem sempre emreserva a sua disposição. É no interior dessa população,muito mais numerosa do que se supõe, que se recruta opauperismo, este inimigo ameaçador de nossa civiliza-ção.”8

Condição selvagem de uma população primitiva quehabita esses bairros malditos onde homens e mulheresflertam com o vício e com a miséria, onde crianças se-minuas se atrofiam nessas habitações sem ar e semluz. É lá, no coração mesmo da civilização e do progres-so, que se encontram esses homens e mulheres em-brutecidos por uma vida selvagem, por uma miséria “(...)tão horrível que inspira mais desgosto que piedade e

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que nos leva a vê-la como o justo castigo de um crime.”Chevalier faz notar que não apenas a condição do ope-rário e o seu gênero de vida possuíam uma analogiacom os povos selvagens, mas também os aspectos dasua revolta e dos seus conflitos de classe ganharam oscontornos de uma raça diferenciada. “Isolados da na-ção, colocados fora da comunidade social e política, soli-tários em suas necessidades e misérias, para sair des-sa apavorante solidão eles tentam e, como os bárbarosaos quais foram comparados, planejam provavelmenteuma invasão.”9

Até a primeira metade do século XIX a palavra prole-tário possuía conotações muito diferentes das que seconhecem e que estavam além de uma conotação eco-nômico-política. Proletário para Balzac era menos umaclasse que uma raça portadora de um modo selvagem ebárbaro de viver. Mas será Adolphe Thiers, chefe do po-der executivo de 1871 a 1873 e responsável pela repres-são à Comuna, quem atribuiu a essa “turba de nôma-des”, num discurso proferido em 1850, um princípio deseparação e de classificação sobre esses “vagabundos”que possuíam salários consideráveis para terem umdomicílio, mas que o recusavam, preferindo uma vidadesajustada. Dizia que “(...) não é o povo que queremosexcluir, é esta multidão confusa, essa multidão de va-gabundos dos quais não se pode tomar nem o domicílio,nem a família; de tal modo oscilantes que não é possívelencontrá-los em nenhuma parte; e que não souberamgarantir às suas famílias um sustento razoável: é estamultidão que a lei tem por finalidade afastar.”10

Foi esta percepção que se teve dos pobres: uma popu-lação que não pertencia à cidade, sobre quem caía asuspeita de todos os crimes, de todos os males como epi-demias e violências, nem tanto devido aos seus carac-teres próprios, mas pelo fato imediato desta sua posição

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e condição de exterioridade, “(...) por essa imigração, queprovocava rapidamente a proliferação da antiga mendi-cidade.”11

Foi por oposição à cidade, um lugar de ordem e decomportamentos bem definidos, que a analogia com ospovos selvagens foi possível; foi destacada a partir dessaoposição uma espécie de instinto selvagem como fonte derepugnância pelos esforços necessários ao bem-estartrazidos por uma vida sedentária: “Vossas vidas são a deum nômade e selvagem. (...) Da vida selvagem, eles apre-sentam a ausência de identidade e esta indiferença emrelação ao estado civil.”12 É que ao povoar Paris essa po-pulação emprestava-lhe, pelo mero fato da sua presen-ça, um outro modo de viver e morrer, outros hábitos evalores, outras preocupações e agitações, e sobretudodavam a todos seus co-habitantes demonstrações coti-dianas dessa experiência brutal, direta e concreta deuma existência nômade no coração mesmo do imobilis-mo social projetado pela cidade.

Mas o que foi a cidade? Paradoxalmente, a cidade doséculo XVIII foi um projeto concebido para garantir epromover a circulação. A antiga vila do século XVII einício do século XVIII, caracterizada por um enclausu-ramento no interior de um espaço fechado e murado,criava por isso um problema para o novo desenvolvimen-to econômico, jurídico e administrativo, que fazia comque o problema da cidade no século XVIII tivesse sidoum problema essencialmente de circulação. Era preci-so garantir essa nova e necessária circulação comerci-al, de pessoas, de bens, de mercadorias, etc., e a issorespondeu, mais ou menos de modo utópico, o projeto davila-capital. Tratava-se de uma metáfora arquiteturaldo Estado como um edifício em cuja capital, a parte no-bre do edifício, deveria habitar o Estado ou o soberano,seus funcionários e oficiais. A relação entre a capital e

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todo o resto do edifício (a fundação era representada pe-los camponeses, as áreas comuns do edifício pelos arte-sãos), era ao mesmo tempo uma relação geométrica queassumia a forma de um círculo em cujo centro a capitaldeveria se encontrar, e uma relação política, na medidaem que as ordens que dela emanavam deveriam ter umatal circulação que sequer o menor canto do territóriopudesse delas se subtrair. Conseqüentemente, a capi-tal cumpria também o papel do difusor moral, difusordisso que era necessário impor, quais condutas adotar,quais maneiras de fazer. Enfim, a capital era o lugar dobom exemplo moral.

Correlato ao problema da circulação nesses projetosda vila-capital foi igualmente o problema da vigilância.Problema-corolário, “(...) desde quando a supressão dasmuralhas exigida pelo desenvolvimento econômico fezcom que não mais fosse possível fechar as vilas à noiteou vigiar minuciosamente as idas e vindas durante ajornada, e por conseqüência a insegurança das vilas eraacrescida pelo afluxo de todas as populações flutuantes,mendigos, vagabundos, delinqüentes, criminosos, la-drões, assassinos, etc., que podiam vir, como se sabe,do campo. (...) Dito de outro modo se tratava de organizara circulação, de eliminar isso que nela era perigoso, defazer a divisão entre a boa e a má circulação, de maxi-mizar a boa circulação diminuindo-lhe a má.”13

De modo geral, tratou-se de limitar o impacto políticoque o estilo de vida dessas populações pobres oferecia.Foi preciso governar a miséria,14 procurando desarmarseu potencial de antagonismo, colocando em funciona-mento estratégias de despolitização que provocavam suadissociação em relação ao poder. Processo de criminali-zação, por exemplo, que a utopia da vila-capital articu-lou inicialmente em torno do problema da circulação,mas que rapidamente desenhou através dele uma polí-

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tica de fixação que terá como demiurgo a polícia. “É pre-cisamente a polícia quem introduziu e generalizou adenominação sistemática das ruas e das praças e anumeração das casas, como elementos indispensáveispara a identificação uniformizada das pessoas. Em 1749,por exemplo, o engenheiro Guillauté propôs ao entãochefe da polícia um projeto assaz ambicioso (...), o proje-to de Guillauté prevê subdividir a cidade em segmentosde vinte casas e de confiar cada um deles à vigilânciade um agente da polícia.”15

Mas é igualmente possível perceber como os “desvi-os” em relação ao projeto da vila-capital provocaram oque se poderia chamar de processos de colonização inter-na, que funcionaram de suportes por meio dos quais sedeu a extensão dos dispositivos disciplinares. Foucaultmencionou três tipos de práticas colonizadoras. Uma,que se estabeleceu sobre a juventude por meio dos es-quemas da pedagogia, através de uma colonização pe-dagógica, ou seja, pela idéia segundo a qual não é pos-sível um aprendizado sem passar por um certo númerode estágios necessários e obrigatórios. Outra prática co-lonizadora, muito conhecida pelo seu escândalo, foi acolonização dos povos. Aqui atuou o já mencionado hu-manismo dos jesuítas, fazendo com que a colonizaçãofosse pensada e organizada como contraponto às práti-cas da escravidão. Os jesuítas eram contrários à práti-ca escravagista, considerada em si mesma brutal e al-tamente consumidora de vidas. Opuseram “(...) a estaprática da escravidão tão custosa e tão pouco organiza-da, um outro tipo de distribuição, de controle e explora-ção humana por um sistema disciplinar”16 que consis-tiu em dar aos índios todo um esquema de comporta-mento estatutário, indicando-lhes horário para asrefeições, para despertar, para dormir e até mesmo ho-rário destinado aos atos sexuais. Outro tipo de coloniza-ção, desta vez mais crucial e fundamental para o funcio-

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namento da sociedade industrial dos séculos XVIII e XIX,foi a colonização interna dos vagabundos, dos mendigos,dos nômades, dos delinqüentes, dos pobres, numa pala-vra, colonização da miséria.

Creio ser nesse sentido que Clastres atribui a men-cionada vocação etnocidiária do Ocidente a essa parti-cularidade que ele diz “(...) constituir o critério clássicode distinção entre os Selvagens e os Civilizados, entre omundo primitivo e o mundo ocidental. O primeiro rea-grupa o conjunto das sociedades sem Estado, o segundose compõe de sociedades de Estado.”17 O Estado é o prin-cípio de inteligibilidade por meio do qual é possível com-preender como algumas sociedades podem ser etnocên-tricas sem ser etnocidiárias. Inteligibilidade que tam-bém serve para impedir em nossos dias o devaneio empensar que o “passado piromaníaco” da Europa possa sertransformado, através de um “processo poderoso e ir-reversível de hibridização e multiculturalismo”, na bran-dura de “(...) uma nova forma de conviver e aceitar asdiferenças mútuas, estabelecida para substituir as vio-lentas provas de força e eliminar a opção pela guerra.”18

Parece-me que, ao contrário, os dedos chamuscadosde pólvora e o sangue seco sob os tratados de paz forammenos uma “lição trágica” que uma espécie de subsolosobre o qual se ergueram as democracias contemporâ-neas. Essa convicção segundo a qual “(...) a Europa estábem preparada, se não para liderar, então muito certa-mente para mostrar o caminho que leva do planeta hob-besiano à ‘unificação universal da espécie humana’,segundo a visão de Kant (...),”19 demonstra bem o vigorcom que ainda funciona a vocação etnocidiária do Oci-dente.

Foucault forneceu os subsídios necessários para lan-çar sobre essa problemática uma reflexão crítica. Res-pondendo a questão “O que é a Europa?”, ele colocou o

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fim do Império Romano em 1648, ano em que a Europareconheceu que o sonho do Império não deveria maisconstituir a vocação última dos diversos Estados euro-peus, onde o acontecimento mais significativo estariano Tratado de Paz de Westphalia, que encerrou a Guer-ra dos Trinta Anos (1618-1648): um conflito que se es-tendeu para o âmbito internacional por meio das expe-dições marítimas holandesas que atracaram no Brasil,Angola e Ceilão.20 Westphalia é então um tratado anti-Império, dirigido contra o sonho do Império que se esta-va configurando pela dinastia dos Habsburgos da Áus-tria e da Espanha e pela sua pretensão à “monarquiamundial”; ele representou a restauração do equilíbriopolítico europeu após trinta anos de um grande conflitomultidimensional; equilíbrio que seria futuramenterompido, no novo despertar do sonho do Império, comNapoleão e Hitler. Mas, em todo caso, ele engendrou essegesto emblemático de limitação do Império que fundoua Europa como pluralismo de Estados.

Subjacente a esse gesto fundamentalmente práticode limitação do Império funcionou também toda a novi-dade da nascente razão de Estado do século XVII. TantoBotero quanto Palazzo21 definiram a razão de Estado como“(...) um conhecimento perfeito dos meios pelos quais osEstados se formam, se mantêm, se fortalecem e se ex-pandem.” Segundo Foucault, esse aspecto do crescimen-to de um Estado e da sua expansão atravessou todas asdefinições da razão de Estado formuladas no decorrer doséculo XVII. Porém, tratava-se de um crescimento quenão poderia ser indefinido, absoluto e ilimitado como noImpério, e não poderia sê-lo precisamente porque, se-gundo essa razão de Estado, era preciso evitar esse pro-cesso que se constata na história de todos os Impérios,“(...) processo praticamente inevitável, em todo caso sem-pre ameaçador, que arrisca colocar o Estado em deca-dência e de o fazer, após o ter conduzido ao zênite da

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história, desaparecer. Isso que é preciso evitar, no fun-do, e é nisso e para isso que funciona segundo Botero ePalazzo a razão de Estado, foi o que se deu no reinado daBabilônia e no Império romano: Império retirado do jogoapós a vitória [l’Empire de Charlemagne], esse ciclo donascimento, do crescimento, da perfeição e depois dadecadência. Esse ciclo é chamado, no vocabulário daépoca, de ‘revolução’. A revolução, as revoluções, é essaespécie de fenômeno quase natural, enfim, meio natu-ral meio histórico, que conduz os Estados a um ciclo que,após os ter conduzido ao esplendor e à plenitude, os fazem seguida desaparecer e se apagar.”22 Será esse tipode crescimento que é preciso evitar, crescimento exter-no, crescimento que traz em si mesmo o próprio germede sua aniquilação; porque toda pretensão ao Império,seja ele o dos Habsburgos, de Napoleão ou de Hitler, ar-risca sempre um excesso estratégico na forma de inimi-gos demais a combater e frentes demais a defender, umavez que o preço de possuir tantos territórios foi semprea existência de numerosos inimigos; mas também ex-cesso engendrado na forma do desequilíbrio político eu-ropeu que todo excesso de potência provocava. Foi issoque esses primeiros teóricos da razão de Estado procu-raram conjurar, era preciso passar de um tempo de ten-dências unificadoras e exacerbadas, para um tempoatravessado pelos fenômenos de concorrência. É a essefenômeno da concorrência entre diversos Estados, con-corrência entre pluralidade de domínios, que se deveatribuir o que os historiadores chamaram de “milagreeuropeu”. Perguntou-se “(...) porque foi entre os disper-sos e relativamente pouco adiantados habitantes daspartes ocidentais da massa terrestre da Eurásia queocorreu um processo incessante de desenvolvimentoeconômico e inovação tecnológica que faria dessa re-gião o líder comercial e militar do mundo?”23 A respostaestaria numa certa fragmentação política européia, no

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fato básico da inexistência de uma autoridade uniforme ede um governo central e, ao contrário, na existência devariados centros de poder. Dessa percepção anti-Impérionasceu essa concorrência fundamental que fez com queas forças militares das monarquias européias, que pare-ciam absolutamente insignificantes comparadas aos exér-citos do sultão e das tropas maciças do Império Ming, al-cançassem o desenvolvimento extraordinário que se co-nhece.

Mas para além do “milagre”, essa passagem das rivali-dades dinásticas para as concorrências entre Estados, quenada mais foi que o afrontamento pensado em outros ter-mos, colocou em evidência para a política a noção de for-ça: não se julgou mais necessário um crescimento exte-rior, uma expansão territorial, etc., mas o crescimentodas forças do Estado, da sua majoração e intensificaçãointerna. O que os teóricos da razão de Estado apontaram foio desenvolvimento de uma dinâmica das forças: uma vezque o Estado não existe sozinho, mas lado a lado com umapluralidade de outros Estados com os quais ele mantémrelações de concorrência, era necessário conceber umsistema limitativo de sua ambição exterior ao mesmo tempoem que deixava a liberdade absoluta para o aumento ili-mitado de suas forças no interior de suas fronteiras. “Muitofraco, um Estado se tornaria presa fácil de seu vizinho.Muito forte, ele constituiria uma ameaça para sua segu-rança. Esse foi o sistema do equilíbrio europeu. Como as-segurar um equilíbrio de forças, condição de uma paz du-rável, nesse espaço geográfico sem unidade, formado porEstados múltiplos, desiguais e rivais, que era a Europa?Um tal projeto supunha o funcionamento de meios milita-res, bem como da organização de uma diplomacia perma-nente: dispositivo político-militar.”24

A Europa enquanto espaço de paz foi, portanto, a re-sultante desses processos estatais, foi a obra de Estados

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e pensada do ponto de vista dos interesses de Estados,essa foi a sua história: a Europa “(...) como região geo-gráfica de Estados múltiplos, sem unidade mas com des-nivelamento entre os pequenos e os grandes Estados,tendo com o resto do mundo uma relação de utilização,de colonização, de dominação. (...) Eis o que é a Euro-pa.”25

É, portanto, possível localizar na Europa, nesse proje-to de constituição de um espaço de paz limitativo da po-tência dos diversos Estados, a procedência dos diversosprocessos de colonização. Tenham eles se dado sob aforma da obtenção de recursos pela extensão de seu do-mínio para o resto do mundo, onde uma das razões des-sa expansão residiu “(...) sem dúvida na dialética da pazperpétua e do crescimento das forças. Os Estados nãopodiam mais estender sua potência no seio da Europa,eram necessários outros terrenos para conquistar coma finalidade de neles encontrar os recursos e o expedi-ente necessários ao seu desenvolvimento.”26 Ou tenhameles se dado também sob a forma de todos aqueles pro-cessos de colonização interna de que falamos. Porquese é verdade que, segundo a razão de Estado, cada Esta-do deve se autolimitar no âmbito das suas relações in-ternacionais através de um dispositivo diplomático-mi-litar, pelo contrário, no âmbito da sua política interna, epor meio de um dispositivo de polícia, o Estado dá a simesmo uma série de objetivos ilimitados. “Nos grandestratados de polícia do século XVII e XVIII, todos que cor-relacionaram os diferentes regulamentos e que tenta-ram sistematizá-los estão de acordo sobre isso, e eles odizem em termos expressos: o objeto da polícia é umobjeto quase infinito. Quer dizer que enquanto potênciaindependente em relação às outras potências, aqueleque governa segundo a razão de Estado tem objetivoslimitados. Ao contrário, na medida que ele dirige umapotência pública que regula o comportamento dos sujei-

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tos, aquele que governa tem um objetivo ilimitado. Aconcorrência entre Estados é precisamente o ponto dejunção entre esses objetivos limitados e esses objetivosilimitados, porque é precisamente para poder entrar emconcorrência com os outros Estados, que aquele que go-verna deverá regulamentar a vida dos sujeitos, sua ati-vidade econômica, sua produção, o preço pelo qual irãovender as mercadorias, o preço pelo qual eles as com-prarão, etc. A limitação do objetivo internacional do go-verno segundo a razão de Estado, essa limitação nasrelações internacionais tem por correlativo a ilimitabi-lidade no exercício do Estado de polícia.”27

Há sentido em distinguir guerra e paz? É fácil pensara guerra na duração de suas batalhas, no clarão de suasbombas, na impertinência de seus assédios. Os fatosmateriais da luta além de não exprimirem toda sua re-alidade deixam intocado o princípio da sua inteligibili-dade. “A estratégia e a tática, a diplomacia e a sutileza,possuem seu lugar na guerra como a água, o pão, o vi-nho, a vela, no culto [religioso].”28 Diríamos, portanto,que aquilo que existiria de inacabado no contexto euro-peu seria menos uma “aventura” que uma experiêncianazista. Ora, a guerra não foi conjurada em nome dodireito dos indivíduos, em respeito à sua liberdade, etc.,mas foi, como se viu, a resultante de um cálculo, deuma racionalidade e de uma evidência política. Essa é,talvez, a razão porque o fim da guerra não significou ofim das violências, mas, como sugere Gros, sua distri-buição e re-configuração em estados de violência. De-pois do escândalo e de todo o teatro de protestos que eleimplicou, veio um tempo em que o tipo de experiênciavivida é estranho tanto a uma ordem imperial do tiporomano, quanto a uma ordem estatal do tipo westpha-liano. “Desde a ‘queda do muro’, uma distribuição novade violências teve lugar, que se reflete segundo dois ter-mos: intervenção e seguridade. (...) Nem um único Impé-

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rio com seus limites tumultuosos, nem uma pluralidadede Estados com suas fronteiras em alerta, mas um mun-do global atravessado por estados de violência, reguladospor um sistema de seguridade e de intervenções.”29

Basta pensar, por exemplo, que através desse siste-ma de seguridade um fenômeno tem servido para reati-var em nossos dias algumas das velhas funções da razãode Estado: o fenômeno da criminalização da imigração.Repetição monótona de uma antiga infâmia, o imigranteé hoje o novo selvagem, população deslocada e portadorade um estilo de vida retardatário em relação à moderni-dade. Nova classe de sujeitos sobre os quais se aplica e sefaz funcionar na sua plenitude as velhas funções pura-mente negativas do poder de soberania, mas também asvelhas funções positivas do poder disciplinar. Prisão, ba-nimento, morte; disciplinamento e utilização do corpo ouinclusão identitária, sujeição, etnocídio. É bem verdade,como notou Bauman, que depois do petróleo a mão-de-obra imigrante é o combustível que impulsiona as gran-des economias.30 Mas para além do lucro econômico, essanova classe de sujeitos produz um lucro que é da ordemdo poder, um lucro na economia do poder, um sobre-valorpolítico. Esses sans-papier, termo há um tempo utilizadopara o trabalhador desprovido da carteira de trabalho, cons-tituem hoje a base para “(...) a elaboração de um projetosecuritário europeu (...) através da produção de um ile-galismo normalizado (...). Do mesmo modo que o ‘delin-qüente’ do século XIX, o imigrante clandestino represen-ta, portanto, a nova figura de ameaça para os Estados eu-ropeus.”31

Por isso ser imigrante na Europa hoje é estar sujeitoa uma gestão essencialmente policial dividida entremedidas de integração e medidas de repressão, obvia-mente com a balança pendendo para a repressão. O jor-nal italiano L’Espresso noticiou o funcionamento inter-

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no de um desses “campos” para imigrantes ilegais. Ailha de Lampedusa (Agrigento, Sicília), que no final doséculo XIX “hospedou” anarquistas e subversivos con-denados por associazione di malfattori ao domicilio coatto(dentre os quais o “perigoso” Errico Malatesta) e que sobo fascismo “hospedou” os oppositori al regime, mantémhoje o mais importante Centro de Permanência Tem-porária, C.P.T.,32 da Itália: crianças numeradas no bra-ço, imigrados obrigados a assistir e a participar de para-das fascistas simuladas por policiais, agressões físicase humilhações tais como obrigar mulçumanos assistirfilmes pornográficos na tela de um celular, obrigar osimigrados a se sentarem sobre esgoto, etc.,33 quer di-zer, violência sistemática que não deixaria muito a de-sejar ao “antigo” regime fascista.

Mas seria equivocado pensar que as violências àsquais são submetidos os imigrantes na Itália são privi-légio desses “campos”: acontecem ali sob a forma do es-cândalo, mas seguramente eles não detêm seu mono-pólio. Vi pessoas com trabalho regular serem amontoa-das como ratos e sofrer agressões numa sala de Questuraao solicitar o permesso di soggiorno, vi a segregação totalimposta pela sociedade italiana a essas populações deimigrados. “Os marroquinos, os argelinos, os tunisia-nos, são dezenas de milhares (...) não se deve subesti-mar a perturbação estética... porque se pode dizer: ‘nãoestão fazendo nada!’. Mas perturbam simplesmente por-que existem! Ou seja, o mendigo perturba até certo pon-to, mas eles perturbam porque existem. É intolerância,dizem que é racismo; mas esse é um modo fácil de re-solver o problema; ‘vocês são racistas’, mas as pessoasnão são racistas! Em algumas paradas de ônibus, a umacerta hora, centenas de marroquinos tomam os meiospúblicos porque ali perto existem alguns locais onde dor-mem, etc., sobem 40, 50 extra-comunitários. As pes-soas não sobem naquele ônibus. Por que são racistas?

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Não, porque têm uma razão. Primeiro, ninguém paga obilhete; segundo, fazem de tudo dentro do ônibus; ter-ceiro, fedem: até quando um fede, tudo bem, mas se são50 não é mais caridade cristã, é suicídio!”34

Esse humanismo que brada o fechamento desses “cam-pos”, fechamento absolutamente justificado, não faria ces-sar a violência. Essa é a proposta da Rifondazione Comu-nista e demais democratas, para os quais seria precisorecuperar a cultura da legalidade: fechar os “campos” edar o voto aos imigrados. Mas o império da legalidade éapenas o outro verso da mesma opressão. Uma relaçãode domínio não lança mão apenas de mecanismos ne-gativos de poder, é mesmo provável que seu uso tenhasido minoritário na história; ao contrário, os mecanis-mos positivos de poder, pelo seu ardil e sutileza, foramsempre preferidos. O que estaria em jogo na cultura dalegalidade é que por meio dela funciona ainda a mesmaracionalidade política, é ainda o velho tema da coloniza-ção que é acionado a partir dela, quando se pensa que“(...) a figura do estrangeiro marca a borda extrema dainclusão, o limite a partir do qual a lógica da assimila-ção cessa de jogar para dar lugar aos mecanismos deexclusão se aplicando a grupos e indivíduos perigosospreviamente identificados, classificados e seriados. Emoutros termos, o sistema biopolítico homogeneíza as po-pulações quando ele pode e a encarcera, exclui ou de-porta quando estima necessário.”35 A escolha democrá-tica recai, portanto, entre esses dois extremos: mortefísica e direta, ou morte social/política e indireta, ca-racterizada pela existência negada ou precária: etnocí-dio.

Seria necessário perguntar-se de que outro modo sepoderia justificar a existência desses inúmeros campospermanentemente temporários, desses incrementossempre mais extensivos de policiamento e controle (como

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é o caso do Sistema de Informação Shengen, S.I.S.), dofuncionamento incessante de novos procedimentos judi-ciais (como é o caso do acordo Shengen), etc., de que modotudo isso poderia ser colocado em funcionamento em ple-na luz do dia e no coração das grandes democracias euro-péias, sem essa figura esquálida e virtualmente perigo-sa do imigrante? Apenas é possível porque ele represen-ta essa figura criada pela estigmatização consensual da“ameaça” pela qual se obtém o consenso da opinião pú-blica contra um inimigo político e social que é neces-sário combater em nome da segurança. “O projeto secu-ritário europeu encontra desse modo na construção doOutro ameaçador as razões da sua própria existência, bemcomo as condições de coesão das populações.”36

Como observou Passetti, de algum modo o Estado foilevado “a desdobrar-se para afirmar sua soberania, anco-rada na política dos direitos humanos ou no multicultu-ralismo.”37 Sob as vestes do multiculturalismo, escamo-teado numa pretensão pluralista e democrática, se ins-taurou o etnocídio, ou melhor, é somente pelo etnocídioque o multiculturalismo pode funcionar. O que são todasessas práticas governamentais de reconhecimento, deintegração, de direitos, se não um processo difuso de igua-litarismo homogeneizante? Práticas reclamadas sempreem nome de uma igualdade que nega a diferença, aomesmo tempo em que conferem um deslocamento da ló-gica dos conflitos sociais para o campo da cultura, provo-cando seu esvaziamento político e uma des-potencializa-ção das tensões. Práticas de participação dissociadas deimplicações de poder e que funcionam como estratégiasde despolitização das desigualdades.

Existe hoje uma necessidade urgente de pensar arelação política para além do âmbito jurídico da sobera-nia, como para além do âmbito institucional do Estado;é urgente pensar as relações de governo como direção

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de condutas. Um tipo de governo que implica a liberdadedo sujeito, mas que a vincula unicamente a partir derelações com o próprio governo. Foi isso o que caracteri-zou e continua caracterizando o liberalismo. Foucaultinsistiu que era preciso evitar o despropósito de pensara monarquia administrativa dos séculos XVII e XVIIIcomo sendo um tipo de regime que “(...) deixava mais oumenos liberdade que um regime dito liberal que tempor função ocupar-se continuamente, eficazmente dosindivíduos, seu bem-estar, sua saúde, seu trabalho, suamaneira de ser, sua maneira de se conduzir, até mes-mo da sua maneira de morrer? Portanto, julgar a quan-tidade de liberdade entre um sistema e outro não tem,creio, de fato, nenhum sentido.”38 Esse mesmo despro-pósito se insinua quando se compara o nosso presentedemocrático ao nosso passado totalitário: ruptura ou con-tinuidade insidiosa e obscura que ligaria esses disposi-tivos presentes a antigos sistemas de poder?

Notas1 Claude Lévi-Strauss. “Raça e história” in Antropologia estrutural dois. Traduçãode Maria do C. Pandolfo. Rio de Janeiro, Tempo brasileiro, 1993, p. 334.2 Claude Lévi-Strauss. Tristes Trópicos. Tradução de Rosa F. D´Aguiar. SãoPaulo, Cia. das Letras, 2004, p. 71.3 Edson Passetti. Nise da Silveira, uma vida como obra de arte. http://www.museuimagensdoinconsciente.org.br4 Pierre Clastres. “Do etnocídio” in Arqueologia da violência – ensaio de antropologiapolítica. Tradução Carlos E. M. de Moura. São Paulo, Brasiliense, 1982, p. 55.5 Michel Foucault. História da loucura na idade clássica. Tradução de José T. C.Netto. São Paulo, Perspectiva, 1999, p. 56.6 Segundo Foucault, em 1606 a cidade de Paris possuía 30.000 mendigos parauma população inferior aos 100.000 habitantes, idem, p. 64.7 Eugène Buret apud Louis Chevalier. Classes laborieuses et classes dangereuses aParis pendant la première moitié du XIXe siècle. Paris, Éditions Perrin, 2002, pp.451-452.

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8 Idem, p. 452.9 Ibidem, p. 453, grifo do autor.10 Adolphe Thiers apud Louis Chevalier, 2002, op. cit., p. 459.11 Louis Chevalier, 2002, op. cit., p. 460.12 Idem, p. 462.13 Michel Foucault. Sécurité, territoire, population. Cours au Collège de France, 1977-1978. Paris, Gallimard/Seuil, 2004, p. 20.14 Cf. Giovanna Procacci. Gouverner la misère. La question sociale em France (1789-1848). Paris, Seuil, 1993.15 Salvatore Palidda. Polizia Postmoderna. Etnografia del nuovo controllo sociale. Mi-lão, Ed. Feltrinelli, 2000, p. 32.16 Michel Foucault. Le pouvoir psychiatrique. Cours au Collège de France, 1973-1974. Paris, Gallimanrd/Seuil, 2003, p. 71.17 Pierre Clastres, 1982, op. cit., p. 57.18 Zygmunt Bauman. Europa. Uma aventura inacabada. Tradução de Carlos A.Medeiros. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2006, p. 45.19 Idem, p. 43.20 Paul Kennedy. Ascensão e queda das grandes potências. Transformação econômica econflito militar de 1500 a 2000. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro, Ed.Elsevier, 1989, p. 47.21 Giovanni Botero (1540-1617) escreve em 1589, em Veneza, Della ragion distato libri dieci; Giovanni Antonio Palazzo, nascimento e morte desconhecidos,escreve em 1604, em Nápoles, Del governo e della ragion vera di stato. Foi a eles queFoucault atribuiu a articulação da razão de Estado.22 Michel Foucault, 2004, op. cit., pp. 296-297.23 Paul Kennedy, 1989, op. cit., p. 25.24 Michel Senellart. “Michel Foucault et la question de l’Europe” in GabriellaSilvestrini (org.). Trasformazioni della politica. Contributi al seminario di Teoriapolitica. Department of Public Policy and Public Choice “Polis”, University ofEastern Piedmont “Amedeo Avogadro”, http://polis.unipmn.it/, pp. 45-46.25 Michel Foucault, 2004, op. cit., p. 306.26 Michel Senellart, op. cit., p. 47.27 Michel Foucault. Naissance de la biopolitique. Cours au Collège de France, 1978-1979. Paris, Gallimard/Seuil, 2004, p. 9.

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28 Pierre-Joseph Proudhon. La guerra e la pace. Lanciano, Ed. R. Carabba, 1974,p. 46.29 Frédéric Gros. États de violence. Essai sur la fin de la guerre. Paris, Gallimard,2006, p. 231.30 Zygmunt Bauman, 2006, op. cit., p. 25.31 Denis Dues. “Immigration clandestine et sécurité dans l’Union européenne:la sécurité intérieure européenne à l’épreuve des théories de Michel Foucault?”in Alain Beaulieu (org.). Michel Foucault et le controle social. Saint-Nicolas (Qué-bec), Presses de l’Université Laval, 2005, p. 6.32 Os Centros de Permanência Temporária [Centri di Permanenza Temporanea]foram instituídos em 1998 atendendo às exigências do acordo comum europeuSchengen, destinados a “hospedar” imigrantes ilegais em procedimento de ex-pulsão ou, para aqueles desprovidos de documento, imigrantes em procedi-mento de identificação. Existem 12 CPT espalhados pela Itália, dentre os quaiso da Ilha de Lampedusa que recebe as populações norte-africanas (marroqui-nos, argelinos, tunisianos, egípcios, etc.).33 Fabrizio Gatti. “Io, clandestino a Lampedusa”, L’Espresso, http://www.espressonline.it.34 Apud Salvatore Palidda, 2000, op. cit., p. 227.35 Denis Dues, 2005, op. cit., p. 16.36 Idem, p. 26.37 Edson Passetti. “Sociedade de controle e abolição da punição” in São Paulo emPerspectiva, vol.13, n.3, São Paulo, jul-set/1999, p. 56.38 Michel Foucault, 2004, op. cit., p. 64.

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RESUMO

A partir do funcionamento do etnocídio no Ocidente como políticade redução da diferença por um enquadramento dominante, umaoutra leitura é dada à idéia da Europa como espaço de paz defen-dida pelo sociólogo Zygmunt Bauman. Retomando as discussõesque Michel Foucault faz do surgimento da razão de Estado defini-da como principio limitativo de crescimento externo estatal e aomesmo tempo como intensificação das forças internas de um Esta-do, uma outra leitura é proposta para a Europa: espaço em quenum determinado momento, as relações de violência foram re-con-figuradas e re-distribuídas visando diminuir seu escândalo, atransmutação da guerra em estados de violência.

Palavras-chave: Europa, etnocídio, razão de Estado.

ABSTRACT

From the operation of ethnocide in the West as a policy for reduc-tion of the difference by a dominant framing, another reading isgiven to the idea of Europe as a space of peace defended by thesociologist Zygmunt Bauman. Taking Michel Foucault’s discussi-ons on the emergence of the reason of state, defined as limitativeprinciple for external growth of the state and, at the same time, asintensification of internal forces within a state, another reading isproposed to Europe: a space where, in a given moment, the relati-ons of violence were reconfigured and redistributed aiming at thereduction of its scandal, the transmutation of war in states ofviolence.

Keywords: Europe, ethnocide, reason of state.

Recebido para publicação em 6 de fevereiro de 2006 e confirmadoem 13 de março de 2006.

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ensaio sobre um abolicionismo penal

edson passetti*

O abolicionismo penal é uma prática libertária inte-ressada na ruína da cultura punitiva da vingança, doressentimento, do julgamento e da prisão. Problematizae contesta a lógica e a seletividade sócio-política do sis-tema penal moderno, os efeitos da naturalização do cas-tigo, a universalidade do direito penal, e a ineficáciadas prisões.

Refuta a natureza ontológica do crime, ao mostrá-locomo criação histórica, na qual a criminalização de com-portamentos, em maior ou menor quantidade, dependedas épocas e das forças sociais em confronto.

O abolicionismo revira o consenso a respeito da na-turalização do castigo, que fundamenta o princípio dapunição no direito penal. O abolicionismo penal operafora da órbita da linguagem punitiva e da aplicação ge-ral das penas, para lidar com a infração como situação-

* Professor no Depto. de Política e no Programa de Estudos Pós-Graduadosem Ciências Sociais da PUC-SP. Coordena o Nu-Sol — Núcleo de Sociabilida-de Libertária.

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problema, considerando cada caso como uma singulari-dade. Propõe novas práticas, relacionando as partes en-volvidas e a justiça pública, com base na continuidadeda vida livre de punições, ao visar, de um lado, reduzir eanular a reincidência e, de outro, obter do Estado umaindenização para a vítima.

Atua pela via da conciliação entre as partes, comoocorre no direito civil. Realiza uma reviravolta no atualsistema penal e abre possibilidades para um percursoexperimental de respostas à situação-problema. Destamaneira, abole a concepção criminológica de indivíduoperigoso, norte do direito penal contemporâneo, e propi-cia a expansão da educação livre do castigo. Diante dovelho, repetitivo, fracassado e inoperante itinerário pu-nitivo de sentenciamentos consolidado pelo direito pe-nal, o abolicionismo propõe percursos experimentaispara lidar com cada infrator em liberdade.

Do aprisionamento ao controle a céu aberto

Segundo os estudiosos do assunto, a expansão doscostumes abolicionistas levaria a uma drástica redu-ção dos gastos governamentais com o sistema penal etambém dos lucros da indústria do controle do crime.Este duplo movimento anti-reformista estabelece umnovo e diferente âmbito do querer político e explicita queo abolicionismo penal, com o fim da punição, da prisão edo direito penal, não desconhece o aparecimento de no-vos problemas, que exigirão das partes envolvidas in-ventivas maneiras de lidar com cada evento.

Na sociedade disciplinar, como mostrou Michel Fou-cault, a internação em espaços fechados fortalecia aobtenção de utilidade e obediência dos corpos, e as ima-nentes relações de poder produziam positividades pro-dutivas, políticas e sociais. No limite, a repressão fun-

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cionava pela ameaça. As forças armadas, internamen-te, intimidavam a parte da população disposta a provo-car levantes e revoluções e, ao mesmo tempo, protegi-am o Estado de forças ou Estados inimigos externos. Apolícia intimidava o indivíduo a ajustar-se à ordem, aozelar pela livre circulação de mercadorias e o tranqüilotrânsito de pessoas. Enquanto instituições sociais fun-cionavam para formar o corpo livre, útil e dócil, a prisãomoderna aparecia, no século XIX, como o lugar de ree-ducação e re-socialização dos infratores a serem cor-rigidos e devolvidos, produtivos e obedientes, à socieda-de. O prisioneiro era visto como um corpo a ser norma-lizado, não só pela aplicação dos dispositivos punitivosdo direito penal, mas também pelo investimento dos sa-beres das ciências humanas, atuando sobre ele na cor-reção dos desvios que o levaram a cometer ações peri-gosas e ameaçadoras à sociedade. Pensava-se corrigiruma caracterizada situação de anomia que vivia o in-frator pelas aplicações normalizadoras derivadas da as-sociação do saber penal e humanista. No interior da pri-são, o prisioneiro era um corpo passível de investimen-tos positivos, capazes de lhe retirar periculosidades eanormalidades, advindas das condições materiais e es-pirituais precárias de vida à margem da sociedade. Esteprisioneiro era visto então como delinqüente, e deveriaser devolvido, como cidadão obediente e produtivo: o efei-to simultâneo do direito de punir, das práticas científi-cas de reforma do indivíduo e da introjeção de valoressuperiores pela religião. Os reformadores da prisão, des-de então, não deixaram de acreditar neste tripé, e in-vestiram cada vez mais em agilizar procedimentos,ampliar atendimentos e assistências e estimular reli-giosidades. Os reformadores da prisão e do direito penalacreditavam neste sistema e em seus aperfeiçoamen-tos, e reconheciam que as condições materiais de exis-tência eram responsáveis pela maioria das infrações,

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sempre confirmadas, a qualquer momento, pelas esta-tísticas. Desta maneira, o pensamento reformista pro-curava associar políticas de redução das condições devida precárias com redução de criminalidade, ora glorifi-cando o liberalismo, ora o welfare-state, com mais oumenos políticas sociais. O limite reformista estava de-limitado pela utopia do igualitarismo sócio-econômico,de um lado pressionado pelo socialismo estatista quenão deixava de lançar mão da própria prisão, do tribunale das humanidades e, de outro, pelos anarquistas queconsideravam o crime uma doença social que desapa-receria com o fim do capitalismo, acreditando ainda nopotencial racional das humanidades superando o direi-to penal e as religiosidades. Ainda sob os desdobramen-tos dos efeitos iluministas, estes reformadores oscila-vam entre mais ou menos Estado (aproximando liberaise socialistas) ou ausência de Estado (com os anarquis-tas levando o liberalismo para além da fronteira).

Na sociedade atual o controle passa a ser a céu aber-to. Sugere Gilles Deleuze, que opera-se um deslocamen-to relativo à ênfase na internação da sociedade discipli-nar, sem com isso pretender uma substituição total.

O controle do território e da população, por terra, mare ar, passa a se efetivar pela distribuição de satélitesno espaço sideral. As forças armadas comandam pelocampo orbital, assim como a polícia, as polícias secre-tas e particulares, as polícias de seguro e comunitári-as, a polícia da polícia: a sociedade de controle policiapessoas, internações, espaços subterrâneos, profundi-dades de rios a oceanos, estrelas, planetas e sistemas.Policia exércitos, políticos e magistrados. Policia trân-sitos de pessoas, móveis e espaçonaves. A sociedade decontrole policia em fluxos, pretendendo alcançar segu-ranças, obtendo confianças e disseminando tolerânci-as. É a sociedade dos reformadores iluministas, depois

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que estes descobriram como ocupar-se com fronteirasconstantemente móveis que abarcam conjuntos de Es-tados como a Europa Unida, mercados como o NAFTA ouo Mercosul, forças militares como a OTAN, diplomaciascomo a ONU. Na sociedade de controle, o corpo não éprioritariamente o alvo produtivo e obediente; nela im-portam fluxos, importam inteligências. E estas nem sem-pre se acomodam em corpos a serem disciplinados. Pas-samos da era da mecânica dos corpos para a era dosfractais, quanta, genomas, células, as invisibilidades debactérias e vírus. Nesta sociedade pune-se mais, e aprisão deixa de ser o lugar preferencial destinado aoinfrator, em decorrência da diversificação do direito pe-nal. Os usos das penas para comportamentos desvian-tes também se desdobram, e aparecem possibilidadesde justiças punitivas de Estado sem aprisionamentos.Entretanto, isso não significa que a substituição da pri-são por dispositivos a céu aberto funcione pelo desloca-mento. Na maioria das vezes, ainda que os reformado-res tentem justificar controles a céu aberto — como li-berdade assistida, semi-liberdade, prestação de serviçosà comunidade, disseminação de tribunais de pequenascausas, leis de penas alternativas, justiça restaurati-va... — como redutores ou supressores da prisão, estesacabam somados à continuidade do encarceramento,agora em prisões eletrônicas, e passa-se a caminhar dotribunal penal local (proveniente do recente projeto dejustiça restaurativa) ao Tribunal Penal Internacional.O direito penal, as ciências humanas e as religiões seexpandem da prisão para outros acontecimentos puni-tivos, com custos indiretos do Estado com ONGs de as-sistência e acompanhamento do penalizado, ou direta-mente com polícias locais, técnicos de gabinete, infor-mantes e informática controlando locais, bairros,espaços selecionados e georeferenciados. Se na socie-dade disciplinar os custos eram com punições para forta-

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lecer a prevenção geral, que funcionava objetivando dis-suadir o potencial infrator pela ameaça do castigo, nasociedade de controle, que começa a se organizar combase em programas de tolerância zero (punir mais qual-quer infração, mesmo que ínfima), estão em jogo custoscom prevenção, no sentido de informar sobre a pluralida-de de penas como maneira de se contornar o aprisiona-mento ou deixar a prisão para criminosos irrecuperáveis. Alinha direta que havia entre infração e prisão agora étransformada em um fluxo que absorve, expele, modificae transforma. Se no passado se acreditava no saber daprisão para solucionar anomias, agora se lança mão daprópria prisão para afirmar que seu saber é incapaz decorrigir, socializar, educar, evitar reincidências, parajustificar a continuidade de uma prisão de segurançamáxima, e que abarca os sempre atualizados campos deconcentração e extermínio, as colônias penais em ilhas,a grande prisão no rochedo como Alcatraz, até aquelasmenorzinhas em qualquer cidade sobre o RDD — Regi-me Disciplinar Diferenciado. O corpo na prisão é menosimportante do que as organizações prisionais dentro efora dela, conectadas com produtividades, coordenandotráficos, empregos internos, sistemas de benefícios, re-lações com parentes e mulheres, consolidando um flu-xo dilatado de conexões com a sociedade livre, a segu-rança do lado de fora e seus vínculos com polícias e for-ças armadas. Na sociedade de controle não há mais amargem, apesar de permanecerem aumentadas as pre-cariedades materiais e imateriais; todos estão dentro. Aprisão não pretende mais devolver o encarcerado bom eobediente; ela negocia sentenças no interior do siste-ma penal, entradas e saídas de parentes, celebra casa-mentos, rotinas domésticas, até chegar ao ponto em quepermanecer preso chega a ser uma solução segura. Osreformadores do sistema penal não cessam de proporprojetos de punição, disciplina e controle em fluxos, es-

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tendendo aos poucos os interesses pela pena às descri-ções sobre a cidade, as zonas fronteiriças e o campo.Oscilam entre direito penal máximo e mínimo, substi-tuição de termos sentenciais em que a pena é substitu-ída por medida, da proliferação de jurisprudências à prá-tica de justiça efetiva; e, neste fluxo, diversas negocia-ções com tribunais são possíveis. Assim é que na atualsociedade de controle o conservador programa tolerânciazero se transforma em políticas que absorvem liberais esocialistas, rivalizando com lutas pela defesa de direi-tos humanos. Assim é que os anarquistas tradicionaistambém se restringem, no campo prisional, a lutas emdefesa de presos políticos, denunciando dispositivos deconfinamento perpétuo. Assim é que, por fim, lembran-do Michel Foucault, expande-se o teatro de denúnciasque o Estado espera de cada um.

O abolicionismo penal surpreende por enfatizar a edu-cação livre diante da cultura do castigo, suprimindo asolução fácil, burocrática e onerosa da aplicação da penaem nome de uma história remota, fundada no castigo,na sua naturalização e numa duvidosa moral superiorque atravessa a sociedade disciplinar e a de controle.Ele não se restringe à jurídica mão única destinada asuprimir o direito penal, mas inventa práticas modifi-cadoras dos costumes, eliminando os tribunais no coti-diano — como o conhecido julgamento caseiro em queos pais de todas as classes sociais punem seus filhoscom uso moderado ou não de violência, sob as garantiasdo direito penal. O abolicionismo penal provoca os juí-zes, advogados, promotores e técnicos sociais e compor-tamentais a abdicarem de procedimentos envelhecidose preconceituosos, anamneses caducas, testes obsole-tos, enfim, do poder que reitera seus saberes repressi-vos para exercitarem práticas liberadoras. Se é modifi-cando os costumes repressores que se inventa uma so-

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ciedade mais livre, a abolição do direito penal é tam-bém resultante de práticas liberadoras do castigo.

Disposto ao debate, mas avesso à polêmica, pelo fatodesta reiterar posições dogmáticas, o abolicionista pe-nal recusa a crítica dos normalizadores que o acusamde gerar anomias. O abolicionismo penal também nãoaceita o confortável confinamento numa utopia, comopretendem seus oponentes, mesmo quando estes lou-vam suas intenções com o objetivo de obstruir sua ex-pansão. O abolicionismo penal recusa elogios; ele querecos.

Qual sociedade sem penas?

Um breve, mas atento olhar para a sociedade atualnotará que práticas abolicionistas acontecem diaria-mente. Neste sentido, é preciso dizer que a sociedadesem penas já existe e é experimentada pelas pessoasenvolvidas em uma situação-problema, quando dispen-sam a mediação policial ou judicial e encontram solu-ções conciliadoras.

Entretanto, a sociedade sem penas também existesob o reino do direito penal, e é apaniguada pelos adver-sários e inimigos do abolicionismo penal. Mas esta, di-ferentemente da outra, somente terá fim quando desa-parecer o direito penal.

É notório que nem todos os chamados delitos chegamao sistema penal, compondo o que os burocratas cha-mam de cifra negra. Reconhece-se, assim, a incapaci-dade estrutural do sistema penal, tanto para garantir aproteção à sociedade contra os chamados indivíduos pe-rigosos que ela cria, quanto para reformar os encarce-rados que ela pretende reeducar pela penalização, obje-tivando redução ou supressão das reincidências. Toda-via, a dimensão do fracasso na prevenção à desordem e

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ao crime não cessa aí. É maior. Está acrescida de umoutro acontecimento interno ao sistema penal: sua in-capacidade em processar e sentenciar todo aquele quelhe é destinado, devido não só à lentidão dos procedi-mentos, dos que nenhuma reforma permanente conse-gue dar conta, mas porque o próprio sistema penal nãofoi criado para responder a todas as infrações a ele en-caminhadas. Desta maneira, conclui-se que o sistemapenal processa, prende e sentencia pelo dispositivo daseletividade, e os seus alvos principais se ampliam ouse concentram a partir das populações pobres e miserá-veis, das pessoas que atentam contra a moral e dos re-beldes contestadores do conformismo. Portanto, há maissociedades sem penas do que imagina o simplório e obe-diente cidadão. Diante disso, a doutrina da punição pelodireito penal como prevenção geral contra a desordem éa utopia da sociedade disciplinar que migra para a decontrole, sob o regime político democrático ou totalitá-rio.

Estas breves considerações a respeito da existênciadesta sociedade sem penas no interior da sociedadepunitiva mostram que a continuidade dos fracassos pe-nalizadores e de sua utopia depende de costumes pau-tados na disciplinar obediência ao superior hierárqui-co. Nesta roda-viva, os cidadãos pouco reparam nas in-ventivas soluções que eles próprios encontram nodia-a-dia para resolver as infrações cometidas, e mui-tas vezes diluem suas atitudes abolicionistas concilia-doras para com a situação-problema no elogio à sua es-perteza ou mesmo no júbilo pela sua capacidade de bur-lar a lei exercendo o direito pela exceção. É neste domínioque este mesmo cidadão, capaz de bradar pelo combateao fim da impunidade, contribui para a reprodução des-ta sociedade sem penas estruturada na perpetuação deassujeitamentos do cidadão e na consolidação de cor-relatas práticas de corrupção, que vão dos costumes ao

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direito penal e ao Estado, e deste novamente aos com-portamentos prescritos e normais. A corrupção, portan-to, jamais será uma disfunção do sistema penal ou doEstado, mas é somente uma prática inerente aos des-dobramentos hierárquicos decorrentes da naturalizaçãodo castigo e da obtenção de obediências pelo afago dasrecompensas.

Em nossa sociedade, a população mais abastada, eexcluída da seletividade penal, permanece desfrutando amesma boa sorte, produzindo, por meio de políticos e fun-cionários competentes, as leis universais atreladas àspráticas ilegais que sustentam interesses particulares.Este universalismo particularista da lei e do direito pe-nal se robustece e se perpetua pela capacidade de pena-lizar, de vez em quando e por diversos motivos, um indi-víduo privilegiado. Quando isto acontece, aumentam asagitações em favor da série punitiva, propiciando ao in-divíduo midiatizado satisfazer sua ânsia por participar ese sentir vingado. Sob este conforto efêmero, ele reiteraa crença na moral da pena, fundada em sua aplicaçãouniversal e igualitária, incluindo o poderoso. Contudo,cedo ou tarde, vem a decepção, quando ele constata que ocastigo imposto ao outro, e que o regozijou, foi minimiza-do ou suprimido mediante a revisão processual. Pertur-bado ou conformado, assimila o fato, e surpreendente-mente legitima a prática da seletividade, consolando-sena utopia do fim da impunidade e da corrupção, refugian-do-se na esperança de uma verdadeira reforma penal e nadoutrina do castigo apocalíptico advindo do julgamento deDeus. Por omissão, esperança, crença no sobrenaturalou desejo de garantir a universalização da punição, cadaindivíduo midiático, ao clamar por mais castigos, colabo-ra para a continuidade das penas e ampliação da corrup-ção. E assim, o direito penal e os seus críticos normaliza-dores fortalecem suas alianças com o rebanho, colabo-rando para a perpetuação de um viver conformista.

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Diferentemente do indivíduo massificado da socieda-de disciplinar, aparece na sociedade de controle o diví-duo, convocado constantemente a participar das decisões.Se a sociedade disciplinar precisava do corpo produtivo eobediente, a de controle necessita da inteligência parti-cipativa. Neste sentido, a democracia passa a ser a uto-pia da sociedade de controle (globalizada ou pela anti-glo-balização), e objetiva não mais reduzir resistências, even-tualmente suprimindo-as, mas integrá-las. Se nasociedade disciplinar o poder se exercia em rede, e daíconcluía Foucault que todo poder implicava resistências,na sociedade de controle o poder se exerce em fluxo, e daíse constata que todo poder implica integrar resistências.Se na sociedade disciplinar progrediam os grandes fas-cismos, na de controle preponderam os micro-fascismos:não mais o grande direito de causar a morte ou a vida,mas o direito de participar da vida pelo pluralismo civil,político, cultural e social.

Os novos reformadores penais

Diante do fluxo punitivo, veloz e certeiro, que se atua-liza constantemente, as reformas penais objetivam redi-recionar e ampliar os exercícios da punição e da corrup-ção. Os mais influentes reformadores na atualidade di-videm-se em dois grandes grupos: um pretende variar aspenalidades, reduzindo os encarceramentos, e o outropropõe o aumento de penalizações e aprisionamentos. Deum lado, posicionam-se os defensores das penas alter-nativas, os arautos da criminologia crítica; de outro lado,os conservadores que propugnam os programas de tole-rância zero. De ambos os lados, eles defendem a varia-ção de penas e a criminalização de novos comportamen-tos, mas por vias adversas, fomentam o paradoxo da con-tinuidade ampliada dos encarceramentos, e porconseguinte da corrupção do interesse particular.

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Numa era de controle eletrônico, estar dentro ou forada prisão deixa de ser um aspecto distintivo da seletivi-dade penal. Um novo acontecimento prisional aos pou-cos se consolida. Trata-se da conformação das periferi-as das grandes cidades como campos de concentração,nos quais as pessoas têm permissão para transitar parao trabalho, desde que regressem rotineiramente, rece-bendo do Estado escolas, equipamentos sociais e políci-as comunitárias. Aparece, então, uma nova diagrama-ção da ocupação do espaço das cidades, em que políticasde tolerância zero e de penas alternativas se combinam,ampliando o número de pobres e miseráveis visados,capturados e controlados, compondo uma escala maisou menos rígida de punições, deixando inalterados a ci-fra negra e os dispositivos de seletividade. Consolida-seuma nova prática do confinamento a céu aberto, e o sis-tema penal mais uma vez se amplia, dilatando os mu-ros da prisão.

Na sociedade disciplinar, falar em periferia era iden-tificar quem se encontrava à margem: da boa família,do lar, da sólida formação moral, do emprego, do consu-mo, da habitação... Falava-se daqueles que por um aca-so poderiam entrar para o interior da boa sociedade ouser dela expulsos em definitivo como prisioneiros, ban-didos, traficantes, criminosos... e confinados na prisão,quando não mortos em confronto com outras ganguesou com a própria polícia. Periferia ou subúrbio era o lu-gar dos outsiders, que, depois de assimilar os códigos demoradia e conduta hegemônicos, ainda administravama convivência com aqueles que ameaçavam à margemda margem, com uma interminável guerra civil. Na so-ciedade de controle a periferia está dentro. Todos sãopassíveis de captura. Vivemos, então, momentos de pe-riferias que pelo planeta se realizam de maneira plura-lista. Temos a periferia formada pela pequena cidadeou conjunto de cidades-dormitório, que acomoda a popu-

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lação que trabalha na metrópole, e que em seu interiorvê aumentar as ilegalidades. Outra maneira de perife-ria-dormitório acontece quando os moradores da peque-na cidade ou deste conjunto deslocam-se para trabalharem novos centros empresariais, abertos em suas proxi-midades, e que procuram dar conta da contenção do aflu-xo para a metrópole. Assim, ao mesmo tempo em queestas cidades-dormitório se conformam em relação àmetrópole ou ao centro produtivo, recentemente inau-gurado, desenvolve-se em paralelo a indústria do turis-mo. Esta se esmera em enaltecer as histórias destascidades como povoados seculares, visando colaborar paraa manutenção das pessoas no local, pela criação de no-vos empregos, atração de populações entorno ou empre-gados de escalões superiores dos centros empresariaisvizinhos para conhecer a história local, com o intuitode ampliar laços integrativos e culturais à zona de tra-balho e desdobrar empregos. Estas periferias formadaspor cidades pequenas também progridem por meio dediversificada política cultural, visando fortalecer as raí-zes ou as manifestações culturais populares e de massa,combinando ações governamentais com não-governa-mentais, na mesma sincronia em que funciona a novapolítica de penalizações com medidas anti-prisionais.Mas há uma terceira, mais intensa, violenta, surpre-endente. Pelo menos no Brasil ela se chama favela, noasfalto, no morro, nos alagados. Construídas com pape-lão, madeira, paus e plásticos, restos de outdoors, tijo-los, e erguidas sobre a laje, palafitas ou a rés do chão.Ali estão trabalhadores dos comércios e indústrias le-gais e ilegais, autônomos miseráveis, serviçais do nar-cotráfico, pequenas prostitutas, pequenos prostitutos,altos e baixos gigolôs, gente que vai servir na polícia ouno exército, gente que serve pessoas de fino trato, deescolas de samba, de digitação, de escola mesmo, decapoeira, de cultura popular, escola do crime, de negros

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e não negros, de brancos e não brancos, tudo girando, eno sobe e desce constante. Embaixo do edifício estelar,lá está a favela discriminada como pertencente ao bair-ro X, enquanto o prédio dos bacanas é do bairro Y. E todomundo quer ser bacana! E quem não quer ser bacanacomeça achar que a periferia é autêntica, um lugarespecial, até maravilhoso. E neste vaivém está todomundo ligado na TV, e pleiteando o bilhete único comvalidade de 2 horas, o atual dispositivo de custo baixo detransporte ao trabalhador, desde que ele regresse ime-diatamente para casa ou vá apenas da casa para o tra-balho. Todos de volta para a periferia. Todos mantidospresos na periferia. Periferia-prisão! E, como toda pri-são, com sua economia, justiça, violência, conexões einterligações.

Na sociedade de controle, as reformas do sistemapenal e das práticas de confinamento incorporam osespaços disciplinares, como a fábrica, a escola, o hospi-tal, a prisão, num campo ampliado que os conecta, cha-mado de periferia. Os comportamentos criminalizadossão multiplicados e as medidas penais variadas, conso-lidando o regime de tolerância zero — punir qualquerpequena infração como medida de dissuasão — crençaem segurança, estatal e privada, que migrou dos con-servadores aos mais radicais socialistas de Estado paraconstituir um novo consenso penal. Permanece, toda-via, inabalável a secular crença na associação pobreza-periculosidade, sem a qual o sistema penal, no passadoe no presente, não garante sua continuidade com refor-mas institucionais, mais ou menos democráticas.

No passado, foi pelo jogo político das reformas que osistema penal alimentou sua burocracia e fortaleceu aprisão. Consolidou-a como o local para onde devia ir oimoral, o desordeiro, o repugnante, refazendo no cida-dão obediente e responsável a crença na justiça pelo

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medo da prisão — local onde cabiam todos os ilegalismos eseu complemento, as rebeliões por liberdade e demoliçãoda prisão. Foi assim que todo sentenciado pelo sistemapenal acabava sendo tratado como um preso político, umperigo para a ordem, pois deixava de haver a distinção entreinfração material e ideológica. Eram todos ladrões, homi-cidas, estelionatários, rebeldes e revolucionários que ti-nham seus corpos disponíveis às confissões, torturas esujeições, aos negócios, às economias, empregos e subor-nos, à morte, e que, não raramente, viam seus familiarese pessoas próximas envolvidas nas trapaças, negócios ile-gais e novos assujeitamentos. A prisão encarcerava sele-tivamente o infrator e suas relações de afinidades, carce-reiros e diretores, reformadores e beatos. Advinda da soci-edade disciplinar do século XIX, tornou-se a matriz docampo de concentração da atual sociedade de controle, epermaneceu como a imagem mais forte do medo da forçarepressiva de um Estado. No passado, a prisão era, paracada cidadão livre e responsável, a imagem do terror. Hoje,são as periferias que assumem este lugar da imagem doterror, sejam elas compreendidas como os espaços dasgrandes cidades ou ações de agrupamentos terroristasestrangeiros, vistos também como procedentes das perife-rias da globalização. Estamos todos presos?!

Um abolicionismo

Diante dos reformadores em geral, podemos nave-gar outro fluxo, ainda pouco caudaloso e freqüentadopelos rebeldes.1 Não se trata de compreendê-lo a par-tir da histórica oposição entre revolucionários e re-formistas, pois desde os desdobramentos socialistasestatistas advindos do início do século XX, mais pre-cisamente após a Revolução Russa, constata-se queos revolucionários, como lembrava Proudhon,2 no sé-culo XIX, nada mais são do que novos reformadores,

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restaurando a centralidade de poder. Se os revolucio-nários e reformadores são intelectuais proprietáriosda verdadeira consciência, os rebeldes são agencia-dores de mudanças, compondo forças intempestivasque desassossegam centralismos.

Depois da II Guerra Mundial, pensadores como Fou-cault e Deleuze não deixaram de chamar a atençãopara a vida fascista, calcada no gosto pelo poder, pordesejar aquilo que nos domina e explora, e por justifi-car atrocidades cometidas por dirigentes e assujeita-dos, em nome da consciência verdadeira, alojada noEstado em nome da nação ou da classe.3 Foucault eDeleuze enfrentaram sem medos o discurso da viti-mização, mostrando que as subjetividades nela conti-das autorizam extermínios, que vão da casa ao Estadoe deste às minúsculas e supostamente inexpressivaslocalidades. Louk Hulsman, um dos mais intensos abo-licionistas penais, também é avesso ao domínio dosintelectuais, esclarecendo e dirigindo consciências, fa-lando em nome de pobres, oprimidos, excluídos, aban-donados, miseráveis, enfim, o grande contingente comsuposta deficiência de consciência, que muitas vezessegue seus tiranos, travestidos de messias, pai políti-co, condutor para a nova era.4

Pensadores como Proudhon e Hulsman ensaiam ou-tras saídas para o mundo da propriedade, a partir davivência de novos costumes que afirmam uma educa-ção libertária, uma liberdade que começa em cada um,abolindo o castigo em seu interior. Mesmo sem ser umareferência explícita de Hulsman, o anarquismo, e maisprecisamente o pensamento libertário, rondam suasreflexões, e em comum com Proudhon fazem transpa-recer a emergência contínua de uma nova sociedadelivre e desigual, que problematiza o saber do direitopenal e atua na luta dos movimentos abolicionistas.

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Pensadores como Foucault e Deleuze ensaiam outrasexperimentações para este mundo de propriedade em quea democracia somente progride com a disseminação demuita miséria. Experimentações são ensaios de vida,relações intensas entre o que se vive e pensa, provocan-do novas subjetividades voltadas para outros estilos devida, compondo uma intrínseca relação entre pensar eagir, na qual não está mais em jogo uma teoria que ori-enta uma práxis. Não está mais em questão o macro, omolar, levando-se em consideração que o devir revoluci-onário coletivo se esgotou. Por outros percursos, no sé-culo XIX, Max Stirner e depois Nietzsche sinalizavam parao fim dos universais e, ao estilo de Stirner, devíamosdeixar a sociedade morrer, e abdicar da gloriosa funçãode reformadores sociais. A sociedade é um conceito cria-do pelos homens, e acompanhado de suas fantasmagori-as, para mostrar um determinado momento evolutivo daespécie. A sociedade, seu nascimento e sua conserva-ção, é o objeto de interesse de revolucionários e reforma-dores. Os rebeldes, então, distinguir-se-iam destes agen-tes pluralistas, pela ênfase no devir insurreto pessoal eensaístico, nômade, nosso eterno retorno.

O abolicionismo penal, assim como o anarquismo, éum pensamento em aberto, inacabado, diverso, compostode singularidades, mas que podem ser uniformizadasou unificadas pelos critérios do pluralismo democráticoou das afinidades grupais. Ambos correm o risco de se-rem capturados por organizações molares. O primeirosubordinando-se à criminologia crítica — trajeto queparece agregar o abolicionismo penal de influênciamarxista — , funcionando como reformador radical nointerior do Estado e do tribunal. O segundo, pela noçãode sociedade, substituindo o Estado depois de sua aboli-ção, em que o indivíduo deixa de estar sobre o domíniorepressor do Estado para passar ao exercício autônomoe livre de autoridades sociais. Contudo, o poder é mais

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do que repressão. Desde a sociedade disciplinar, de ondeprovém o anarquismo moderno, o poder funciona pelassuas positividades expressas nas utilidades e docilida-des exigidas dos corpos, compondo uma tecnologia depoder que atravessou o capitalismo para se alojar tam-bém no socialismo de Estado. O anarquismo foi contun-dente em sua crítica a esta positividade do poder, pro-pondo demolir relações de obediência, desde as maispróximas como amor, sexo, educação de crianças e ami-zade, até arruinar o Estado. O anarquismo foi e é o dis-curso mais contundente à sociedade disciplinar, masque se restringe aos limites do deslocamento da sobe-rania do rei, povo, proletário no Estado para a sociedade.Foi a derradeira expressão da maioridade iluministarestaurada, ou da verdadeira emancipação humana.

Com a emergência da sociedade de controle, torna-se mais pertinente ainda uma das derradeiras proble-matizações de Foucault, ao se perguntar se algum dianós alcançaríamos a maioridade.5 Deleuze, anos depois,dirá que diante das maioridades se interpõe, vive e seaparta a força do menor como devir, aquela minoriaque evita modelos.6

O abolicionismo penal é um discurso que emergeda sociedade de controle, e é neste sentido que LoukHulsman aparece como seu instaurador, apartando-sedos desdobramentos herdados da crítica marxista re-volucionária ou reformista da sociedade capitalista,expressa em pensadores como Nils Christie e ThomasMathiesen. O abolicionismo penal de Hulsman é dife-rente dos marxistas, relembrando não só sua aversãoao intelectual condutor de consciências como tambémsua preocupação em demolir incondicionalmente odireito penal, sem direito a negociações de aprisiona-mentos transitórios, mas também por não condicionara situação-problema a uma determinação sócio-econô-

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mica. O abolicionismo penal de Hulsman responde àsinquietações provocadas pela sociedade de controle: estáapartado da centralidade do tribunal, da aplicação uni-versal da lei, do domínio acadêmico do direito penal, dababoseira fétida daqueles que dizem ser o abolicionis-mo penal uma belíssima utopia, e daqueles que o com-batem, descabelando-se e babando ensandecidos, emqualquer rodinha, que o abolicionismo penal disseminaimpunidades e anomias, bradando o surrado jargão bur-guês que associa anarquia a baderna.

O abolicionismo penal como amplificador de resis-tências na sociedade de controle atua em fluxos incor-poradores, mas não uniformizadores, e é assim que re-conhece e convive com os vieses marxistas em seu in-terior. Entretanto, na sociedade de controle não se operamais por posicionamentos e contra-posicionamentos,como na sociedade disciplinar. Nela se é convocado aparticipar democraticamente, com base na difusão deinformações e comunicações, em fluxos diversos, simul-tâneos e constantes. Mais do que resistir (porque o alvoda sociedade disciplinar é anular resistências), isto pro-picia a cada um, a cada divíduo, libertariamente, in-venções da vida, ensaios de existência, demolições dasociedade ou reconhecimento de que ela está morren-do.

Lembrando uma contundente reflexão deixada porFoucault para os tempos de agora, o ensaio é uma expe-riência modificadora de si no jogo da verdade, e não seconfunde com a aproximação ao pensamento de outro,com a finalidade de comunicar. Pensar é experimen-tar.7 Deleuze, tecendo um retrato de Foucault, mostroua distinção entre história e experimentação, para sali-entar que só há experimentação diante de condiçõesadversas colocadas pela história.8 Desta maneira, a ex-perimentação quase foge da história, é indeterminada,

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é filosófica, e Foucault teria colocado sua vida no seupensamento o que, segundo Deleuze, o caracterizavacomo o único filósofo do século XX que teria saído doséculo XIX. Foucault, por sua vez, e ainda vivo, dizia queesperava que o século XXI fosse deleuziano. Estamos,então, diante de experimentações, estilos de vida, en-saios de existências, que não são consumidos por pala-vras, livros, aulas, púlpitos, messiazinhos e corajosa-mente demolem universais. O abolicionismo penal quermodificar pelo transtorno gerado em si próprio. Então,se de um lado assimila em seu interior efeitos de resis-tências advindos da sociedade disciplinar, como o refor-mismo marxista, de outro incentiva a ensaios de expe-rimentações e a se separar dos reformadores.

Abre-se um campo a ser retomado pelo Nu-Sol, eque vem desde os estudos iniciados na década de 1990,a respeito do ensaio sobre o fim das punições, liber-tos, agora dos modelos. O ponto de discórdia e de bifur-cação de percursos com Hulsman (sem deixar de re-conhecer os instigantes trabalhos de pesquisa e teo-ria de Christie e Mathiesen) se encontram na alternativaaos universais. Hulsman em seus poucos, mas precio-sos escritos, mostra que na sociedade de controle não émais a abundância de publicações (tendência a crescercada vez mais por meio de obras temáticas, prescriti-vas, científicas e literárias, dentro e fora da Internet)nem os longos tratados que prevalecem, mas o apreçopelos ensaios de curta duração, capazes de gerar implo-sões transgressivas. O ponto de discórdia com Hulsmansitua-se, apenas, em relação à defesa de modelos alter-nativos.

De início, convêm lembrar que o rompimento com uni-versais é também uma superação do pensamento pormodelos. Portanto, ao situar cinco modelos alternativos àuniversalidade da lei (conciliação, educação, terapia, com-

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pensação e a própria punição, quando aceita pela outraparte) para buscar resoluções para situações-problema,Hulsman nos remete a trajetos que podem vir a ser imo-bilizadores. Menos pelos conteúdos dos modelos, mas pelaprópria existência dos mesmos, que funcionam, enfim,como uma referência para os custos de Estado, por meiodas exigências racionais do cálculo econômico e das re-presentações. Nada a discordar a respeito das atençõesrelativas a indenizações de vítimas ou suportes para in-fratores, a ênfase na conversação com base na concilia-ção e na compensação eficazes no direito civil, o acompa-nhamento regular, o efeito destas soluções para encerrarcom o processo de encarceramentos (o que não significaabrir as portas das bastilhas), a aposta na redução de rein-cidências. Mas a vida não cabe num modelo, nem em cin-co nem em n modelos. Tomemos um exemplo recente dejustiça, que se assemelha ao abolicionismo penal e quese fundamenta em modelos (sem esquecer que o regimede penas alternativas, como vimos, no passado recente,procurava legitimar-se diante das forças progressistas, dis-farçando-se de discurso não-encarcerador e argumentan-do que penas alternativas levariam à diminuição do nú-mero de prisões; ao contrário, a história o colocou comomais um discurso encarcerador, na medida em que nãodeixaram de aumentar as penalizações e não ocorreu aredução das prisões; enfim, pela culatra, o discurso daspenas alternativas também contribui para a aceitação dapolítica de tolerância zero). Trata-se de analisar, breve-mente, a atual proposta de justiça restaurativa, que cres-ceu também desde a década de 1990, e que se caracterizacomo “(...) um processo através do qual todas as partesinteressadas em um crime específico se reúnem parasolucionar coletivamente como lidar com o resultado docrime e suas implicações para o futuro”,9 vinculado aocontrole de pessoas que vivem situações de vulnerabilida-des (o que no passado recente se chamava situação irre-

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gular ou situação de risco, habitantes da cultura da pobre-za, ou diversas designações para a mesma e seletiva po-pulação perigosa). Enfim, a justiça restaurativa, que deveser analisada com mais detalhes noutra ocasião, não éapenas a nova face da reforma, mas é também a cara quemais se aproxima do abolicionismo penal, ao propor aosenvolvidos com a situação-problema que encontrem suassoluções, por meios diretos ou indiretos, mas sem apar-tar-se do Estado. Os princípios do programa de Justiça Res-taurativa, promovido pela ONU e financiado pelo BID, “(...)procuram privilegiar a conciliação, a restauração ou acura, prescindindo em muitos casos das autoridades judi-ciais, em favor das comunidades dos locais em que ocor-reram as infrações. Os valores que parametram a JustiçaRestaurativa dividem-se entre os diretos como o diálogorespeitoso, o republicano e o de não dominação; e os indi-retos como o perdão, a clemência e o remorso. A aplicaçãoda justiça restaurativa no Brasil delineia-se com o objeti-vo de formação de um domínio que seja, simultaneamen-te, preventivo do ponto de vista penal e instrumentaliza-dor de programas acoplados à reforma do sistema judiciá-rio. Fica uma questão: como é possível suprimir modelospunitivos se a justiça restaurativa pressupõe modelo al-ternativo que de antemão reconhece a superioridade dealguém? Então, suprime-se em parte as autoridades judi-ciais para pôr em seu lugar a comunidade. Desloca-se orisco da exceção para o do fascismo.”10

O abolicionismo penal pretende suprimir a autoridadesuperior. Dessa maneira deve apartar-se dos modelos emfavor de uma resposta-percurso que se modifica a cadacaso, por meio de um acompanhamento que também seafasta da vigilância em favor da parceria. Ora, isto émuito difícil de ser compreendido pelos reformadores,intelectuais condutores de consciência e militantes deONGs. Afinal, para onde pode seguir um infrator sem oseu condutor de consciência? A resposta-percurso en-

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volve os integrantes da justiça e da situação-problema,procurando acionar dispositivos antropofágicos em queos desvios são assimilados pelos envolvidos, abdicando-se das soluções antropoêmicas da nossa cultura ociden-tal, que por não suportar os desvios os reenvia para ar-quipélagos repressivos, como sublinhava o antropólogoClaude Lévi-Strauss.11 Portanto, diante da falência dassoluções universais, das ambigüidades dos modelos al-ternativos (não esquecendo que alternativo é somentea outra cara do mesmo modelo), a resposta-percurso apa-rece como maneira de ampliar as críticas e sugestõeselaboradas, inicialmente, por Hulsman, em função daexperimentação da vida como ensaio, fortalecendo o flu-xo abolicionista, não pelos resquícios de resistênciasadvindas da sociedade disciplinar, mas pela expansãode forças ativas diante das reativas, e considerando quecada situação-problema realmente é um caso.

Diante da insistência na restauração da tese da liber-tação, coloca-se a pertinência das práticas de liberação,ensaístas e rebeldes. O que fortalece o fluxo abolicionistapenal na sociedade de controle são as rebeldias que aba-lam a crença de outros abolicionistas em eliminar ascondições de miserabilidade, que vão da defesa da res-tauração do welfare-state diante do Estado punitivo atual,compreendendo um leque que abarca abolicionistas comoChristie12 e Mathiesen,13 mas também socialistas esta-tistas não convencionais, como Zigmunt Bauman,14 LoïcWacquant15 e Antonio Negri & Michael Hardt,16 e anar-quistas como Noam Chomsky.17 Por mais bem intencio-nados que estejam, ficam esbaforidos no interior das for-ças reativas. O abolicionismo penal de Hulsman não quermais ou menos Estado; ele quer o fim do direito penal,costumes libertários, outros estilos de vida. Aproxima-semais do campo molecular, apartado do molar, rizomáticoe nômade. Não pretende recuperar o molar, como Negri& Hardt com a noção de multidão, como Wacquant e a

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restauração de políticas públicas, como Bauman, dandoconta da atenção sobre as vidas desperdiçadas e comoChomsky, aderindo ao passado do welfare-state para re-cuperar direitos sociais, e elaborando uma estranha,expressionista e estratégica teoria da ampliação da jaula.Todos, com as melhores intenções, permanecem no cam-po reativo das reformas ou utopias revolucionárias.

A rebeldia do abolicionismo penal procedente de Hul-sman favorece liberar a vida dos modelos, tornando-amais salutar, mais ensaísta, e suprimindo a autoria. Oabolicionismo penal passa a ser uma outra linguagem,que arruína autorias individualizadas em pessoas, car-gos, procedimentos ou instituições. Ela se faz por expe-rimentações sem pleitear hegemonias. Pode até coe-xistir estrategicamente com outras forças redutoras decentralidades ou taticamente, segundo as circunstân-cias. Ainda que a sociedade de controle pretenda pacifi-car definitivamente as relações de poder pela participa-ção democrática generalizada, fazendo reluzir, outra vez,os raios iluministas kantianos e de seu projeto de pazperpétua, a política ainda permanece sendo uma guer-ra prolongada por outros meios.

Vaivém: sinal de alerta

Vivemos uma era de tolerância zero, era da segu-rança propagada por meio de cercas, construções e dis-positivos eletrônicos, e que pretende capturar singula-ridades, como o abolicionismo penal, em nome da am-pliação de universalidades repressoras, pluralistas,democráticas e uniformizadoras. Em defesa da seguran-ça do cidadão, institui-se a periferia como campo de con-centração, a disseminação da educação de crianças ejovens pela denúncia e delação, o culto à repressão, apropagação de preconceitos metamorfoseados em políti-

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cas de cotas, enfim, novas tecnologias de poder restau-radoras do discurso aristocrático, porém por seu avesso,em cujo limite se acusa o outro como sangue ruim pornatureza. Se antes se naturalizava o castigo, agora oracismo reaparece, não mais como decorrência da cri-minologia, mas da disseminação de direitos por meio domulticulturalismo.

O abolicionismo penal alerta para o fato de que a lógi-ca punitiva começa muito antes de aparecer uma situa-ção-problema, e que muitas vezes ela cala, esconde, dis-farça, maquia e ronda a vida de muitas pessoas. Encon-tra-se disseminada no cotidiano, fomentando não apenasos pequenos fascismos, mas ampliando sua faceta terro-rista por meio de respostas legais ao crescente clamorpor mais punição e aprisionamentos, deixando aconte-cer chacinas e execuções por agentes policiais, ganguese sicários, contemporizando com o terrorismo diário ins-talado, segundo a moral, em lares venerados e barracosdesrespeitados.

O fascismo terrorista possui outros dois aspectos,além daqueles conhecidos historicamente, quais sejam:o Estado de exceção temporário ou permanente, comprática de morte e intimidação pela ação violenta vi-sando destruir os oponentes do Estado. Advindo da fasedo Terror da revolução Francesa, e próprio do Estado-nação, o fascismo molar no século passado se concreti-zou como efeito do nacionalismo exacerbado contra mo-bilizações socialistas e democráticas, constituindo-seem um movimento reativo a um outro fascismo, queemergira no início do século passado e inerente aosdesdobramentos da revolução socialista. Neste caso, oterror na revolução Russa consagrou o seu grupo reati-vo, o bolchevista, pretendendo perpetuar a ditadura doproletariado. A seu modo, reprisou o período do Terrorfrancês do século XVIII: em nome do proletariado ou do

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povo, os condutores de consciência pretendem obter ple-nos poderes para dirigir a massa... E assim como o fas-cismo europeu sofreu seu golpe fatal com o final da IIGuerra Mundial, o totalitarismo socialista sucumbiudepois da reviravolta neoliberal da década de 1980. To-davia, as longas convivências com o estado de sítio,em vez de confirmá-lo como dispositivo de exceção, ocatapultou à condição de regra, como mostrou GiorgioAgamben:18 o estado de exceção foi sendo trazido gra-dativamente para dentro da lei e das constituições de-mocráticas e liberais do Estado de Direito, desde o iní-cio do século XX, principalmente desde a República deWeimar.

Um outro terror, anti-estatal, molecular e anarquis-ta, e desvencilhado do fascismo, apareceu na Europa,no século XIX , visando, pela ação direta, provocar mor-tes, explosões e pânicos, não só contra reis e prínci-pes, mas também em locais privados tidos como pú-blicos, escancarando a falácia da segurança ofereci-da pelo Estado, os equívocos propositais de sua justiça,os desdobramentos relativos ao regime da proprieda-de disseminando miséria.19 Os novos rumos dos anar-quismos individualista, sindicalista, coletivista e co-munista da primeira metade do século XX praticamen-te acabaram com o terrorismo anarquista, que podeser caracterizado como ação rebelde radical diante dorefluxo do movimento operário europeu, depois domassacre da comuna de Paris e do domínio das lide-ranças operárias pelos socialistas estatistas fora dapenínsula ibérica.

De cima para baixo ou de baixo para cima, o terrorse concentrava em ações no interior do território deum Estado-nação, para conservá-lo ou destruí-lo, di-ante do imperativo da internacionalização das rela-ções de poder.

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Os dois novos aspectos do fascismo terrorista (e édesnecessário lembrar que o fascismo também cria po-sitividades de poder e não se define somente pelo usoviolento ou repressivo) relacionam-se com a internaci-onalização das relações de poder na sociedade de con-trole. Um deles, o de pulverização, diz respeito à açãoimediata de grupos adversários de Estados hegemôni-cos, como Al Qaeda (agrupamento que vem se desdobran-do em programa na sociedade de controle), ativistas pa-lestinos, ou até mesmo antigos nacionalistas (como oIRA, na Irlanda e o ETA, na Espanha), atualmente emfase de assimilação pela Europa, ou grupos conservado-res derivados da dissolução da URSS, como os cheche-nos, e que pleiteiam ser Estado Nacional (numa era quenão admite mais sua predominância, mas na qual, con-traditoriamente, para pertencer aos consórcios contem-porâneos, ser Estado continua a ser a condição de ad-missão), sem esquecer, ainda, dos terroristas das déca-das de 1960 a 1980, dentro e fora da Europa, como“Brigadas Vermelhas”, “Baader-Meinhof”, “Sendero Lu-minoso”, “FARC”. Não há marcos fixos para suas emer-gências. Elas são diversas e oscilam entre os vestígiosda primeira parte do século XX, final da II Guerra Mun-dial, com o reconhecimento do Estado de Israel, a conti-nuidade das lutas de grupos separatistas, a emergênciados aiatolás no Irã do final da década de 1970, o redi-mensionamento do controle petrolífero no Oriente Mé-dio, a luta contra o Império soviético, a luta contra oImpério norte-americano, a reterritorialização da URSS,o aparecimento de guerrilheiros e terroristas radicaisna América Latina e na Europa, lutando contra regimescapitalistas, ditaduras militares, enfim, um interminá-vel aparecer, desaparecer e reaparecer de terrorismosde procedência molar. Foi assim que, no vaivém dos com-bates, as restrições aos aclamados direitos civis e políticose a censura explícita à liberdade de expressão, não só

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foram sendo justificadas, mas prontamente assimiladas.E isto não se deve apenas ao ataque às torres gêmeas doWorld Trade Center, em Nova Iorque, em 11 de setembrode 2001. Os Estados, aos poucos, assimilaram estados deexceção em seu interior, que agora se justificam emnome da democratização do planeta. Antes era precisointervir em outros Estados em nome da liberdade contrao socialismo ou em nome do socialismo contra o indivi-dualismo. Na sociedade de controle atual se intervém emnome da democracia, seus direitos, seus espaços, suapermanência, a garantia da segurança do planeta. O se-gundo fascismo terrorista, o de concentração, realiza-secom o processo descrito anteriormente de transforma-ção das periferias em campos de concentração, amplian-do os dispositivos dos Estados fascistas na Europa, naAmérica Latina e no Brasil (em um contínuo que vai doEstado Novo à ditadura militar, mas que também apanhaoutro fluxo, que vai da repressão democrática pelo estadode sítio, na década de 1920 contra anarquistas, até oslimitados direitos políticos na atualidade democrática emque não só inexiste a liberdade do voto facultativo, mastambém a introjeção da repressão, incluindo o direito aoemprego e à liberdade de sair do território, para aquelesque decidirem não exercer seu direito de abstenção). Ofascismo terrorista se expande, rejuvenescido com suabela cirurgia plástica chamada de democracia. Nos Esta-dos Unidos, no Brasil e um dia na China, as pessoas nes-te planeta passaram a viver em um imenso arquipélagoformado por campos de concentração, encenando rituaisdemocráticos, regrados por dispositivos de exceção e vi-giados desde o espaço sideral.

Nesta época repleta de distribuição de direitos, para-doxalmente, estamos mais presos ainda, acostumadoscom a pena de morte e a construção de prisões para sen-tenciados que lá devem permanecer até morrer. Se nopassado constatava-se que a prisão não corrigia nem in-

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tegrava o infrator à sociedade, hoje se reconhece que elapassou a ser um lugar de sociabilidade de pessoas aban-donadas pelas ruas, que visitam parentes e amigos con-finados nestes palácios de repressão e morbidez.20 En-quanto as periferias das grandes cidades se consolidamcomo prisões a céu aberto, a antiga prisão no interiordeste espaço funciona tanto como dispositivo de sociabi-lidade de miseráveis quanto como acionista de negóciosilegais. Não há mais lugar ou legitimidade para rebeli-ões; vivemos uma era de reformas tamanhas, que a con-tinuidade da prisão passou a ser um modo lucrativo devida, defendido pela hierarquia empresarial superior dosencarcerados. Num piscar de olhos tudo parece integra-do no vaivém da lei pelos ilegalismos.

O abolicionista penal se afasta das práticas seletivasque alimentam os corredores limpos e engravatados dostribunais, e as sujeiras e fedores nas prisões, lares eescolas, repartições públicas... Adversário do universa-lismo moralizador, o abolicionista pratica a ética da libe-ração. Problematiza o direito penal e os costumes puniti-vos na atualidade, não se restringindo ao papel de resis-tência jurídica. Não é uma utopia, mas a escolha libertáriade quem abole o castigo em si e na sociedade, proferindoum não afirmativo e bradando aos que querem mais pu-nição: em meu nome não!

Notas1 Max Stirner. O único e a sua propriedade. Tradução de João Barrento. Lisboa,Antígona, 2004; Albert Camus. O homem revoltado. Tradução de Valerie Rumi-anek, São Paulo/Rio de janeiro, Record, 1996.2 Paulo-Edgar A. Resende & Edson Passetti. Proudhon. Política. Tradução deCélia Gambini e Eunice Ornelas Setti. São Paulo, Ática, 1986.3 Michel Foucault. “Uma introdução à vida não-fascista”. Tradução de Fernan-do José Fagundes Ribeiro. In Cadernos de Subjetividade. Gilles Deleuze, São Paulo,Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade/PUC-SP, 1996, pp. 197-200.

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Michel Foucault e Gilles Deleuze. “Os intelectuais e o poder. Conversa entreMichel Foucault e Gilles Deleuze” in Microfísica do poder. Tradução e Organiza-ção de Roberto Machado. Rio de Janeiro, Graal, 1979, pp. 69-78.4 Louk Hulsman. “Temas e conceitos numa abordagem abolicionista da justiçacriminal”. Tradução de Maria Brant. In Verve. São Paulo, Nu-Sol/PUC-SP,2003, v. 3, pp. 190-219. “Alternativas à justiça criminal”, Tradução de MariaLucia Karam, in Edson Passetti (org). Curso livre de abolicionismo penal. Rio deJaneiro/São Paulo, Revan/ Nu-Sol, 2004, pp. 35-68.5 Michel Foucault. “O que são as luzes?” in Manoel de barros Motta (org.).Michel Foucault. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Ditose Escritos. Tradução de Elisa Monteiro. Rio de Janeiro, Forense Universitária,2000, pp. 335-351.6 Gilles Deleuze. “Controle e devir”, in Conversações. Tradução de Peter PálPelbart. Rio de Janeiro, 34 Letras, 1992, pp. 209-218.7 Michel Foucault. O uso dos prazeres. Tradução de Maria Thereza da CostaAlbuquerque. Rio de Janeiro, Graal, 1984.8 Gilles Deleuze. “Um retrato de Foucault”, in op. cit., 1992, pp. 127-147.9 www.nu-sol.org , hypomnemata 63/jul.2005.10 Idem. Ver também, Catherine Slakmon, Renato Campo P. de Vito & RenatoSócrates Gomes Pinto. Justiça restaurativa. Brasília, Ministério da Justiça e Pro-grama das Nações Unidas para o Desenvolvimnto – PNUD, 2005.11 Claude Lévi-Strauss. Tristes trópicos. Tradução de Rosa Freire D’Aguiar. SãoPaulo, Companhia das Letras, 1996.12 Nils Christie. “Civilidade e Estado”. Tradução de Beatriz Scigliano Carneiro.In Edson Passetti & Roberto B. Dias da Silva (orgs). Conversações abolicionistas.Uma crítica do sistema penal e da sociedade punitiva. São Paulo, IBCCrim/PUC-SP,1997, pp. 241-257. A indústria do controle do crime. Tradução de Luis Leiria. Riode Janeiro, Forense, 1998. A suitable amount of crime. London/New York,Routledge, 2004.13 Thomas Mathiesen. Prison on trial. London. Sage, 1990.14 Zigmunt Bauman. Modernidade e holocausto. Tradução de Marcus Penchel. Riode Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998. Vidas desperdiçadas. Tradução de CarlosAlberto Medeiros, Rio de Janeiro, Jorrge Zahar Editor, 2005.15 Loïc Waquant. As prisões da miséria. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro,Jorge Zahar Editor, 2003.16 Antonio Negri & Michael Hardt. Império. Tradução de Berilo Vargas, Rio deJaneiro, Record, 2001. Multidão. Tradução de Clovis Marques, Rio de Janeiro,Record, 2005.

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17 Noam Chomsky. Notas sobre o anarquismo. Tradução de Vários. São Paulo;Imaginário/Sedição, 2004.18 Giorgio Agamben. Homo sacer, o poder soberano e a vida nua. Tradução deHenrique Burigo. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2002. Estado de exceção.Tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo, Boitempo Editorial, 2004.19 Jean Maitron. Ravachol e os anarquistas. Tradução de Eduardo Maia. Lisboa,Antígona, 1981. É importante salientar também a diferença entre este terroris-mo anarquista europeu e, em especial, o russo. Ver: Os demônios de Dostoievskie Georges Nivat, neste número.20 Megan Comfort. “‘A casa do papai’: a prisão como satélite doméstico esocial”, in Discursos Sediciosos. Rio de Janeiro, ICC-Instituto Carioca de Crimi-nilogia/Revan, 2004, v. 13, pp. 77-100. Loïc Wacquant. “O curioso eclipse daetnografia prisional na era do encarceramento de massa”. in Discursos Sediciosos,op. cit., pp. 11-34.

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RESUMO

O abolicionismo penal, em sua atualidade, como problematizadorcontundente do direito penal visa afirmar outros percursos paralidar com as situações hoje tipificadas como crimes. O abolicio-nismo investe em aproximações táticas com o direito civil e suaspráticas conciliatórias, mas pretende ir além, com a invenção demodos libertários e não-encarceradores de lidar com situações-problema. Desse modo, o abolicionismo não pactua com os posici-onamentos da criminologia crítica e do direito penal mínimo e, afas-tando-se do rótulo de utopia, se posiciona como prática viável nopresente.

Palavras-chave: abolicionismo penal, sociedade de controle, re-beldias.

ABSTRACT

Penal abolitionism, as a sharp strategy to problematize penal law,aims to affirm other possibilities to deal with situations currentlyconsidered crimes. Penal abolitionism invests in tactical approa-ches to civil law e its conciliatory practices. But it intends to gobeyond, inventing libertarian and non-incarcerating ways to dealwith situations-problem. Therefore, abolitionism does not concurwith the perspectives of critical criminology and minimum penallaw. And at the same time, it stands apart from utopias and affir-ms itself as a viable practice today.

Palavras-chave: penal abolitionism, society of control, defiances.

Recebido para publicação em 18 de outubro de 2005 e confirmadoem 14 de fevereiro de 2006.

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Liberdade assistida: uma tolerância intolerável

liberdade assistida: uma tolerânciaintolerável1

thiago souza santos*

“Eu tenho o dever de amar. E se o amor é um manda-mento e uma lei, eu terei de ser educado para isso; e se merebelar, serei punido. Por isso se exercerá sobre mim umainfluência moral, o mais forte possível, para me conduzirao amor.”

Max Stirner

A Liberdade Assistida, L.A., é uma das sete medidassócio-educativas previstas pelo Estatuto da Criança edo Adolescente, que são passíveis de aplicação a jovensque praticarem algum ato infracional. Correntemente estáassociada à Liberdade Vigiada, prevista pelo Código deMenores Mello Matos de 1927 (decreto lei nº 17.943/27), seguida da liberdade assistida instituída pelo Códi-go de Menores de 1979 (lei nº 6.697/79). A Liberdade

* Sociólogo e mestrando em Ciências Sociais pela PUC-SP, pesquisador no Nu-Sol.

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Vigiada compôs o capítulo VIII do Código Mello Matos (art.92 ao art. 100), que estabelecia que o jovem pudesseconviver com seus pais, mas estaria sob constante vigi-lância do juiz, através de pessoa designada por ele, e,ainda, teria de “(...) comparecer em juízo conforme oagendamento designado; o prazo máximo desta vigilân-cia seria de um ano; fazia alusão a um termo com as‘condições de livramento’, que deveria ser assinado pe-los pais ou responsáveis; e, no artigo 100 preconizava apossibilidade de sua aplicação para qualquer ‘menor’ —abandonado ou delinqüente, conforme o arbítrio do juiz,tendo em vista a segurança ou moralidade deste “me-nor””.2

Com a implantação do Código de Menores de 1979, aLiberdade Vigiada cedeu lugar à Liberdade Assistida.3 Aprincipal diferença entre o antigo atendimento e o sur-gido em 1979 remete à doutrina expressa pelo governomilitar, que privilegiava ações de vigilância conjugadacom tratamento psicossocial; contudo, apesar da mu-dança de foco, culminando com o aparecimento da Li-berdade Assistida, o atendimento em meio aberto nãoseria incorporado como uma prática recorrente parapunir jovens: manter-se-ia privilegiado o tratamentocom internação em instituições específicas, sob a dire-triz da doutrina da situação irregular.4

A conceituação situação irregular foi proposta por AllyrioCavallieri, segundo a lógica binária do normal e anor-mal. Para ele, “(...) regular é o que está de acordo com aregra, a norma. Irregular é o que contraria a norma, oque se opõe a normalidade.”5 Em situação irregular —ou fora da normalidade — era considerado o jovem esta-belecido em família desestruturada, privado de condi-ções essenciais de subsistência, saúde e/ou instruçãoobrigatória por falta, ação, omissão, impossibilidademanifesta, de pais ou responsável. Era também consi-

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derado menor em situação irregular: jovens vítimas demaus tratos impostos por familiar ou responsável; osem perigo moral; os privados de representação ou assis-tência legal pela falta eventual dos pais ou responsávele, ainda, jovens considerados autores de infração penale/ou com desvio de conduta.6

Tudo isto correspondia ao modelo norteador do Códi-go, as diretrizes da Política Nacional do Bem-Estar doMenor, PNBM. A PNBM “(...) introduzida pós-64, atravésda lei 4513 de 1º de dezembro de 1964, e apresentadaem setembro de 1965. (...) A lei invoca a participaçãodas comunidades para que junto ao governo participemda ‘tarefa urgente’ de procurar encontrar soluções parao problema do menor no Brasil.”7 O Estado de São Paulohesitou em aderir à PNBM, mantendo suas instituições,como o Recolhimento Provisório de Menores, RPM, e oCentro de Observação Feminina, COF. Somente em1973, com a criação da Fundação Paulista de Promoçãodo Menor, PRÓ-MENOR, e posteriormente com a criaçãoda Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor, FEBEM,São Paulo incorporou-se definitivamente à PNBM.8

O Código de Menores de 1979 vigorou até a promul-gação do Estatuto da Criança e do Adolescente, ECA, ins-tituído em 1990 pela lei nº 8.069. Com o ECA, a nomen-clatura “Liberdade Assistida” permanece; entretanto, ocaráter da medida é diferenciado, por ser, a partir deentão, considerada uma medida sócio-educativa, e nãomais uma pena. Vemos como vigiar e tratar são substi-tuídos pelo princípio de acompanhar, auxiliar e orientar, oque denota o caráter educativo e pedagógico da medida— mas não se pode deixar de ressaltar que este carátereducativo é acompanhado de uma lógica penalizadoraexplícita no ECA, ao associar medida sócio-educativa apena9 e correlacionar ato infracional a crime.10 Alémdisto, a Liberdade Assistida, sob a vigência do ECA, pre-

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vê um atendimento descentralizado, dando ênfase à pre-sença de Organizações Não-Governamentais, ONGs, ePrefeituras para a realização dos acompanhamentos.

Compõe-se assim, uma gênese que segue um mode-lo jurídico de progresso (Liberdade Vigiada, 1927/Liber-dade Assistida, 1979/Liberdade Assistida, 1990), privi-legiando o aperfeiçoamento das práticas legais atravésde constantes reformas das legislações. No entanto, como ECA, a Liberdade Assistida comporta uma caracterís-tica muito peculiar, que emergiu na década de 1980,nos movimentos sociais de defesa de direitos: a partici-pação da comunidade no acompanhamento de jovens sob amedida, consagrando experiências que nasceram nasparóquias, nas associações de bairros, em que se desta-ca a Pastoral do Menor.

Quando começou o trabalho com jovens sob a medidade Liberdade Assistida (início da década de 1980), a Pas-toral, juntamente com o Centro de Defesa dos Direitosda Criança e do Adolescente, CEDECA, inventou umanova forma de acompanhamento; instaurou uma práti-ca de libertação que visou desinstitucionalizá-los, re-tirando-os, de certa forma, das mãos do Estado. Neste mo-mento, ainda com a vigência do Código de Menores de 1979,era pequeno o número dos que recebiam a Liberdade As-sistida como medida, apesar de já ser prevista na legisla-ção,11 devido ao enfoque em práticas disciplinares-insti-tucionais que visavam corrigir os ditos desvios dos jovens.

Estes primeiros acompanhamentos eram realizados porcasais da comunidade que tinham envolvimento com aPastoral. Eles escreviam relatórios informativos a respei-to dos jovens e do andamento de seu acompanhamento,com o objetivo de informar ao juiz sobre todo processo dereintegração. A experiência foi intitulada Liberdade Assis-tida Comunitária, e a nomenclatura L.A.C. também serviupara diferenciá-la do atendimento realizado pelo Estado.

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A L.A.C. foi implementada visando “(...) completar asações dos técnicos da FEBEM (...),”12 com o objetivo cen-tral de “(...) desenvolver o potencial humano do jovem,buscando a sua realização pessoal e social e utilizando oato transgressão da lei num gesto construtor do seu pró-prio projeto de vida; esclarecer e orientar o jovem sobre omotivo da medida aplicada a ele pela Justiça, o que devemudar no seu estilo de vida, e os novos compromissosque devem ser assumidos por ele para haver mudançana sua conduta; elaborar com o jovem um projeto educa-tivo individual — com atividades escolares, profissiona-lizantes, esportivas, de lazer e de trabalho — capaz deredimensionar seus hábitos e valores e reorganizar o seutempo; orientar o jovem sobre o seu relacionamento fa-miliar, com os vizinhos e com outros grupos sociais.”13 APastoral inseriu uma referência de atendimento que setornou o modus operandis para controlar jovens conside-rados infratores em meio aberto e foi capturada comopolítica governamental do Estado.

Atualmente, a Liberdade Assistida segue este modelode aplicação, em que as ONGs estão encarregadas de de-senvolver todo o gerenciamento da medida, informandoao juiz o andamento de cada caso; cabendo à FEBEM efe-tuar os convênios e fiscalizar o acompanhamento. Os jo-vens são encaminhados, preferencialmente, às ONGs in-seridas na comunidade de sua procedência. Então, o queantes era uma pequena experiência local tornou-se gran-de, universal. O acompanhamento realizado por casaisda comunidade cedeu lugar a um atendimento mais es-pecializado, feito por técnicos em diversas áreas do co-nhecimento — assistência social, psicologia e pedagogiae as organizações de bairros, assim como o número dejovens em Liberdade Assistida multiplicam-se.

Isso indica duas possibilidades: uma relativa ao dis-curso oficial, que afirma retirar jovens internados das

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Unidades de Internação da FEBEM para serem atendi-dos em meio aberto por Organizações Não-Governamen-tais e Prefeituras; outra, a utilização da Liberdade As-sistida como uma medida a mais a ser imposta, ampli-ando o poder do Estado de punir.

Dados de 1996 e 2003 indicam tanto o aumento donúmero de jovens internos, quanto de jovens sob a me-dida de Liberdade Assistida. Em 1996, o número absolu-to de internações era de 1.479,14 chegando em 2003 a6.189.15 Em sete anos, houve um aumento de 265%. Comrelação à medida de Liberdade Assistida, constatou-seque em março de 1996 o número de jovens atendidospela FEBEM-SP era de 4.705. Nessa época, como mostrao estudo de Francisca da Silva,16 eram poucas as orga-nizações que faziam o acompanhamento da LiberdadeAssistida: apenas a associação Dom Bosco e mais trêsCEDECA’s, que atendiam, no total, cerca de 380 jovens.Somando os atendimentos da FEBEM-SP — maior res-ponsável na época — com os das organizações ligadas àPastoral do Menor, totaliza-se aproximadamente 5.085jovens sob medida de Liberdade Assistida no ano de 1996,enquanto que em janeiro de 2003 esse número chegoua 13.310,17 evidenciando um aumento de mais de 141%.Estes dados, enfim, sugerem que a Liberdade Assistida,estrategicamente, não é um redutor da internação, masantes disso, um outro recurso punitivo.

De fato, houve um redimensionamento das formaspunitivas do Estado, em que a internação não desapare-ceu. Apenas as medidas em meio aberto ganharam maisforça política e cultural. Um problema permeia esta dis-cussão e refere-se à punição em meio aberto, previstadesde 1927 com o primeiro Código de Menores brasilei-ro e que, somente agora, torna-se uma prática recor-rente e generalizada: como ela ganha essa importânciaestratégica e se torna um modelo punitivo atual, já que

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estamos em uma época em que proliferam expressões con-servadoras, cobrando mais unidades de internação parajovens, redução da idade penal e ampliação do período deinternação?

A fiscalização é uma das variáveis responsáveis pelaresolução deste problema. O suporte das novas tecnologi-as de informação facilita esta fiscalização, proporcionan-do um maior controle dos jovens em meio aberto atravésdo estabelecimento de rotinas e dos mapas geo-referenci-ados, alimentados com dados que geram coordenadas pre-cisas sobre locais de residência dos infratores, contribuin-do para a implementação de novas “políticas públicas”. Con-tudo, estas tecnologias ainda não estão completamentedisseminadas, e são implantadas, muitas vezes, como pro-jetos piloto. Em razão disso é importante atentar para ofato de que as tecnologias de informação são apenas ins-trumentos de uma estratégia política de governo que colo-ca em prática a descentralização do atendimento das me-didas sócio-educativas em meio aberto previstas pelo ECA,que devem ser realizadas através de convênios do Estadocom ONGs e Prefeituras, que ficam incumbidas de fiscali-zar os jovens pobres, mas sempre sob a supervisão do Es-tado.

Além do convênio com o governo do Estado, estas orga-nizações também recebem verbas de investidores priva-dos beneficiados pelo abatimento fiscal. Com isto, o custopor jovem sob sanção é reduzido, mas seria equivocadoafirmar que a escolha por esta forma de atendimento jun-to às ONGs seja meramente econômico, por dois motivosdistintos: primeiro, o desvio da receita fiscal para aplica-ções filantrópicas faz com que o Estado reduza apenas osgastos diretos com o acompanhamento dos jovens; segun-do, além dos gastos com convênios, é importante notarque, se o custo é reduzido por pessoa, aumenta no todo,pois pune-se muito mais. Por essa razão não se deve di-

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zer, como o faz o discurso oficial, que o aumento de jovenssob a imposição da liberdade assistida é decorrente de umesforço político para esvaziar as unidades de internação.Há um complemento estratégico entre as medidas, umaunião indissociável, fazendo com que o regime de inter-nação e a medida em meio aberto acompanhem-se: hátanto o jovem egresso que teve a Liberdade Assistida comoprogressão de medida, como os que foram punidos, acusa-dos de terem cometido uma infração leve e consideradosprimários, acarretando na imposição da Liberdade Assis-tida. A medida em meio aberto tem a internação comoseu complemento e respaldo; o jovem vive sob intensaameaça, pois o descumprimento da medida pode resultarem internação. É assim que a institucionalização da Li-berdade Assistida consolidou um novo itinerário punitivo.

Percebe-se, assim, que essa medida atualiza e dá maisvitalidade às práticas punitivas. Onde antes se punia mui-to, ou não se punia, cria-se uma gradação de medidas (leia-se penas)18 para abranger todo tipo de conduta criminali-zada. Se, antes, muitos jovens que realizassem algum tipode furto, utilizassem algum tipo de substância considera-da ilegal entre outras coisas, poderiam ser soltos por nãoser viável encaminhá-los às unidades de internação, coma Liberdade Assistida abre-se um leque de possibilidadespara impor ao jovem uma tutela. Cada tipo criminal podeser remetido a uma medida específica: das infrações maisirrelevantes às consideradas mais graves (dependendo doque for estabelecido pelo Estado como certo e errado, legale ilegal). Todas as infrações deverão estar cobertas, e paracada uma, a sua respectiva medida.19 Ampliam-se as pos-sibilidades de punir, cria-se uma gradação da punição quese articula como estratégia política de tolerância zero.

O conceito principal da tolerância zero é punir os peque-nos delitos para combater os grandes crimes e impediruma conduta desviada que não seja normalizada. A polí-

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tica de tolerância zero não é apenas um aumento nosíndices carcerários, mas sim uma estratégia policial decombate a certas condutas. Promove punições conside-radas tolerantes, disseminando-as estrategicamentecomo afirmação da necessidade da existência das pri-sões (seja de jovens ou de adultos) para trancafiar osconsiderados perigosos.

A Liberdade Assistida acoplada ao programa de tole-rância zero redimensiona a visão acerca dos jovens.Surge uma separação entre o que seria o jovem estru-turado na vida do crime20 e o jovem passível de recupe-ração. O estruturado no crime será não só o que come-teu o ato infracional, mas também o que está envolvidocom certos valores provenientes de uma vida relacio-nada com o mundo do crime: é um irrecuperável. Comoidentificar esta proximidade do jovem com os valoresnegativos da criminalidade? Através de exames psicos-sociais, psiquiátricos e observações constantes da roti-na e ambiente físico de residência realizados pelos téc-nicos, tendo como um de seus objetivos a apresentaçãode relatórios aos juízes para classificar o jovem. É pormeio dessas informações que o juiz assina sua senten-ça. Termos como “revela com o seu proceder índole in-fracional latente” e “apresenta linguagem de gíria demarginalidade” são recorrentes nesses relatórios, com-pondo o rol de expressões que estigmatizam o jovemcomo delinqüente, e indicam sua adesão (ou recusa) aosvalores contrários dos bons valores da sociedade. Paraos considerados estruturados ou irrecuperáveis são vol-tadas ações mais repressivas, enquanto que para os pas-síveis de recuperação são direcionadas ações mais to-lerantes, despenalizadoras. Assim, espera-se apartar ví-cios de virtudes. A internação entretanto, mescla jovensirrecuperáveis com os que ainda são possíveis de colo-car no rumo certo, o que transforma o encarceramentoem um espaço de contaminação moral, onde os viciosos

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influenciam negativamente os passíveis de recupera-ção.

Quando se faz essa separação e essa qualificação dojovem como estruturado, delinqüente, marginal, proble-ma, não se diz apenas o que o jovem é. O jovem qualifi-cado é estigmatizado não só por seu ato, pelo que afir-mam sobre ele, mas, antes, por tudo aquilo que ele nãoé e deveria ser. A partir desta estigmatização pune-se eencarcera-se por meses e até por três anos, tempo limi-te estipulado pelo ECA.21 Entretanto, sob a concessão demedidas de segurança, o Ministério Público tem conse-guido “(...) aumentar o tempo de permanência do jovemem regime de internação. Isso ocorre quando se com-prova, por meio de laudos psicológicos, psiquiátricos ede assistentes sociais, que se trata de um adolescenteque colocará a sociedade em risco.”22 Jovens, enfim, sãopunidos pelo que podem vir a fazer.

O poder de observar e de analisar, delegado aos edu-cadores sociais, coloca-os em posição de agentes da lei,23

que selam destinos de terceiros. Suas observações eanálises partem de uma racionalidade técnico-científi-ca que determina o grau de periculosidade do jovem,para com isso estabelecerem o que deve ser feito comele. É baseado no laudo destes técnicos que o juiz deter-mina se o jovem permanece internado, ou se, já nãosendo mais considerado perigoso, pode ser encaminha-do à Liberdade Assistida para continuar seu processo deressocialização em meio aberto. Enfim, a presença dostécnicos atravessando todo o processo punitivo do jovemconstitui aquilo que Michel Foucault chamou de microtribunal.24

Nota-se assim que a sempre louvada tolerância ex-pressa no ECA não só redesenha um novo itineráriopunitivo, mas também mantém, em termos gerais, osmesmos objetivos: punir como forma de ressocializar. O

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Liberdade assistida: uma tolerância intolerável

que se espera da Liberdade Assistida é que ela cumpraesse papel de recolocar o jovem no rumo, já que, preten-siosamente, ela é um espaço de reconstrução de suavida, e um equipamento social de sua inserção em pro-gramas governamentais de assistência social. O acom-panhamento realizado, seja por instituições estatais ounão, reitera a expectativa das entidades de controle, afim de pacificar indisciplinas, conter rebeldias, adaptare integrar o jovem, tendo por meta tornar suportável oinsuportável.

Notas1 Este artigo decorre de uma pesquisa de Iniciação Científica intitulada Liberda-de Assistida: uma tolerância intolerável. Aconteceu com o auxílio de bolsa PIBIC-CNPq, no período de agosto de 2003 a agosto de 2004, e faz parte do projetoPolíticas Libertadoras, Tolerância e Experimentação de Liberdade, Prodoc-CAPES.2 Roberta Pompêo de Camargo Carvalho. A abordagem da ação educativa naliberdade assistida sob a ótica do orientador, Dissertação de Mestrado. São Paulo,PUC-SP, 2003, p. 19.3 “Art. 38. Aplicar-se-á o regime de Liberdade Assistida nas hipóteses previstasnos incisos V e VI do art. 2º desta lei, para o fim de vigiar, tratar e orientar omenor. Parágrafo único. A autoridade judiciária fixará as regras de conduta domenor e designará pessoa capacitada ou serviço especializado para acompanharo caso.” Ana Valderez A. N. de Alencar e Carlos Alberto de Sousa Lopes. Códigode Menores. Brasília, Senado Federal, 1982, p. 14.4 “Art. 1º - Este Código dispõe sobre a assistência, proteção e vigilância amenores: I – até dezoito anos de idade, que se encontrem em situação irregular;II – entre dezoito e vinte e um anos, nos casos expressos em lei. Parágrafo único– As medidas de caráter preventivo aplicam-se a todo menor de dezoito anos,independentemente de sua situação.” Ana Valderez A. N. de Alencar e CarlosAlberto de Sousa Lopes, op. cit. 1982, p. 9.5 Idem, p. 83.6 Ibidem.7 Edson Passetti. “O Menor no Brasil Republicano” in Mary del Priori e Fer-nando Londoño (orgs) História da Criança no Brasil. São Paulo, Contexto, 1991,pp. 150-151.8 Idem.

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9 Salete Oliveira. Inventário de Desvios – os direitos dos adolescentes entre a penalizaçãoe a liberdade. Dissertação de Mestrado. São Paulo, PUC-SP, 1996.10 “Art. 103. Considera-se ato infracional a conduta descrita como crime oucontravenção penal”. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília-DF, Im-prensa Nacional, 1997.11 Título V – Das Medidas de Assistência e Proteção. Capítulo I – Das MedidasAplicáveis ao Menor. (...) Art. 14 – São medidas aplicáveis ao menor pelaautoridade judiciária: (...) IV – imposição do regime de liberdade assistida.Código de Menores. Brasília, Senado Federal, 1982.12 Hedwig Knist. O adolescente infrator em regime de liberdade assistida: uma reflexãopsicossocial sobre reintegração. Dissertação de Mestrado apresentada na PontifíciaUniversidade Católica, São Paulo, 1996, p. 16.13 Dom Luciano Mendes. “O que é a liberdade assistida comunitária (L.A.C)” inAnote, http://www.anote.org.br/desta/index.asp?cod=51, 17/09/2002. Aces-sado em set. 2003.14 Dados e indicadores para análise da situação do adolescente de ato infracional no Estadode São Paulo. São Paulo, CONANDA/FEBEM-SP, 1996.15 Folha Online. 11/03/2005. http://www1.folha.uol.com.br/folha/especi-al/2005/febem/perfil.shtml. Acesso em jan. 2005.16 Francisca Silva. Liberdade Assistida, uma proposta sócio-educativa? Dissertaçãode Mestrado. São Paulo, PUC-SP, 1998.17 Folha On line, op. cit.18 Uma primeira discussão sobre a ligação entre medida sócio-educativa e o seucorrelato, pena, foi feita no livro Violentados – crianças, adolescentes e justiça.Edson Passetti (coord.). São Paulo, Imaginário, 1999, 2° ed.19 Segundo o ECA, a medida de privação de liberdade não deveria ser impostaa jovens que cometessem infrações consideradas leves, como o furto. O estudorealizado por Enid Rocha Andrade Silva e Simone Gueresi, Adolescentes emconflito com a lei: situação do atendimento institucional no Brasi, forneceu dados arespeito da internação dos jovens segundo os delitos praticados. Percebe-se,então, que muitos jovens são internados por delitos, que segundo o ECA,deveriam receber medida sócio-educativa mais branda. Um exemplo é o altonúmero de jovens internados por furto (14,8%). Enid Rocha Andrade Silva eSimone Gueresi. Adolescentes em conflito com a lei: situação do atendimento instituci-onal no Brasil. Brasília, s/n, 2003.20 Essa diferenciação aparece em um estudo realizado por Nilton Ken Ota, empesquisa encomendada pela UNICEF. Em seu estudo, o autor faz uma reflexãoda percepção do adolescente acerca da lei. Na página 53 de seu relatório,

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Liberdade assistida: uma tolerância intolerável

escreve o seguinte: “Nas entrevistas concedidas durante o levantamento explo-ratório, alguns educadores figuraram a modalidade extremada deste tipo deatendimento pela opinião de que certos adolescentes responderiam plenamen-te às obrigações formais da medida por estarem conscientes do seu âmbitocoercitivo, manejando com eficácia suas prescrições, de modo instrumental ecalculado. Em contrapartida, outros educadores atribuíram o descumprimentoreiterado da medida aos já ‘estruturados’, os ‘bandidões’. Por estarem envolvi-dos no mundo do crime, estes adolescentes desprezariam qualquer determina-ção judicial, mesmo sabendo das conseqüências implicadas neste comporta-mento. Em detrimento do seu sentido educativo, nestes casos, o atendimentoseria restringido ao seu aspecto punitivo”. Nilton Ken Ota. A liberdade assistidae os sentidos da lei: a percepção dos adolescentes. São Paulo, consultoria para aUNICEF, 2002.21 “Art. 121, § 3º - Em nenhuma hipótese o período máximo de internaçãoexcederá a 3 (três) anos”. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília-DF,Imprensa Nacional, 1997.22 Ariel de Castro Alves. Especialista se posicionam contra a redução da maioridadepenal. Agência dos Direitos da infância e Adolescência, http://www.andi.org.br.Acessado em jan. 2004.23 Roberta Pompêo de Camargo Carvalho, op. cit., 2003.24 Michel Foucault. Vigiar e Punir – História da violência nas prisões. Tradução deTaquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 1987.

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RESUMO

A liberdade assistida como forma de ampliação da punição aosjovens infratores está associada à política de tolerância zero. An-tes de ser um dispositivo ressoacializador como se apresenta, aliberdade assistida acrescenta ao conjunto de estigmas que car-regam jovens pobres.

Palavras-chave: Liberdade assistida, jovens, punição.

ABSTRACT

The assisted freedom as way of strengthening punishment to in-fractions committed by youth is associated to the policy of zerotolerance. Rather than being a device of resocialization, as it pre-sents itself, the assisted freedom is added to the stigmas thepoor youth are condemned to carry.

Keywords: Assisted freedom, youth, punishment.

Recebido para publicação em 13 de setembro de 2005 e confirma-do em 14 de fevereiro de 2006.

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os anarquistas e as prisões: notícias deum embate histórico1

acácio augusto*

“Fazemos nossos caminhos como o fogo suas centelhas.”

rené char

A prisão, esta criação recente, emerge em um deter-minado momento no século XIX. Logo ela é entendidacomo indispensável, mesmo para os que admitiam seufracasso. Torna-se, a partir de então, peça fundamentalde uma nascente economia do castigo e para o funcio-namento de uma nova tecnologia de poder. Expressãoterminal do dispositivo disciplinar. Imagem do medo.

Sabemos disso desde as contundentes análises his-tóricas de Michel Foucault, em Vigiar e punir. É tambéma partir de Foucault que entendemos o nascimento dasprisões como efeito de lutas intermináveis. A prisãoexpressa uma situação estratégica de exercício de po-

verve, 9: 129-141, 2006

* Bacharel em Ciências Sociais, mestrando no Programa de Estudos Pós-gradu-ados em Ciências Sociais da PUC-SP e pesquisador no Nu-Sol.

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deres, não se trata de repressão ou ideologia, mas deembates que se travam contra, para, pela e apesar dasprisões.2

Temos que ouvir o ronco surdo das batalhas

No momento mesmo em que esses embates se confi-guram no velho mundo, os anarquistas emergem comoatiradores e alvo dessas novas técnicas de exercício depoder: ao mesmo tempo em que as combatiam, eram tam-bém alvos seus. A demolidora reflexão, em 1793, acercado castigo perpetrada por William Godwin (1756-1836);3 ocontra-noticiário policial dos anarquistas do La Phalange(1836);4 o controverso escrito de Proudhon sobre a propri-edade (1840);5 o julgamento do anarco-terrorista ÉmlieHenry (1894);6 as reflexões de Kropotkin acerca das pri-sões;7 as polêmicas levantadas por Malatesta no final doséculo XIX;8 ou mesmo a profilaxia de Lombroso contraos anarquistas,9 são todos estes fatos de batalha que oslibertários travaram contra o tribunal, lutas em que fo-ram atiradores e alvo das prisões, do tribunal e, sobretu-do, das técnicas de governo e do exercício das disciplinas.

Não é objetivo deste artigo fazer uma antologia des-sas batalhas, mas é inevitável rememorá-las quandose quer apresentar uma série de associações anarquis-tas que em nossos dias se propõem a lutar contra asprisões. Sobretudo quando se trata de associações quereivindicam para si uma tradição que se inicia em 1905na Rússia, ainda sob o governo czarista e em meio auma guerra civil. É neste momento específico que sur-ge a Cruz Negra Anarquista (CNA).

No entanto, não se trata também de contar a histó-ria dessas associações, mas a partir da notícia de suaexistência levantar a seguinte pergunta: qual a radica-lidade da histórica oposição dos anarquistas ao sistema

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penal nos dias atuais? Nesse questionamento somos le-vados a situar como uma associação anarquista de atu-ação planetária empreende suas práticas de resistên-cias às prisões em uma sociedade que diversifica am-plamente suas técnicas de exercício de poder, conformemostraram as reflexões que o filósofo Gilles Deleuze fezda chamada sociedade de controle a partir das problema-tizações estabelecidas por Michel Foucault sobre o fun-cionamento do poder no Ocidente.10

As CNA’s

As CNA‘s compreendem diversas associações queprestam apoio a presos no planeta, em especial pre-sos políticos e de guerra. No Brasil praticamente ine-xiste. Constitui-se como federação de associações au-tônomas que se articulam, como grupos de afinida-de,11 exclusivamente na defesa de casos.

Cada associação age na sua localidade e conta comas demais para divulgação das suas ações. As infor-mações entre elas são trocadas por via postal, masprincipalmente pela Internet. É desta maneira que re-alizam uma de suas principais atividades, a CRE (Ca-deia de Resposta de Emergência). Esta ação consisteem enviar cartas, e-mails, fax e realizar manifesta-ções diante de embaixadas ou outras instituições pú-blicas, vinte e quatro horas após a notícia de uma pri-são, como maneira de pressionar autoridades para ga-rantir a comunicação ou mesmo a liberação de umapessoa presa.

Não há nenhum tipo de financiamento governamen-tal ou privado para sustentação das CNA‘s. As associ-ações vivem da colaboração de pessoas ligadas ao mo-vimento, contribuições espontâneas e rendas decor-rentes da venda de livros, revistas, jornais, camisetas,

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adesivos, shows e CDs produzidos por seus integran-tes.

Como já apontado no início do texto, a primeira as-sociação da CNA surge na Rússia, em 1905. Com atomada do Estado pelos bolchevistas (1917), ela setransfere para Berlim apoiando os anarquistas perse-guidos pela ditadura do proletariado. É extinta na dé-cada de 1940, com a ascensão do nazismo, e ressurgeem 1960, na Inglaterra, prestando apoio a persegui-dos pelo regime fascista de Franco, na Espanha. Des-de 1980 diversas associações passam a ser criadasno planeta (há associações da CNA em toda AméricaLatina, Estados Unidos, Europa e Austrália). Na déca-da seguinte, ocorre sua maior difusão nas bordas dosnovos movimentos anti-capitalistas e do uso da Inter-net como ferramenta de intervenção política.12

A atuação destas associações, que se rearticulamnas décadas de 1980 e 1990, explicita uma atituderadical de oposição às prisões, ao enfrentar o proble-ma do encarceramento como um problema político, enão como um drama pessoal, psicológico ou técnico-jurídico. Embora ainda se filiem à argumentação pro-filática de Kropotkin — desenvolvida em seu escritoclássico sobre as prisões, que toma a revolução socialcomo panacéia para o problema do encarceramentonas sociedades sob regime do monopólio, estatal ouprivado, da propriedade — é em meio às suas açõespontuais de embate direto com o sistema penal queemerge sua radicalidade, possibilitando experimen-tações de liberdade.

É a partir desse critério que se pode destacar asassociações de Madri e Nova Jersey como as mais re-levantes dentre todas que agem em diversas cidadesdo planeta, apresentadas a seguir por meio das lutasespecíficas travadas por cada uma das associações.

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A nova CNA Nova Jersey

A década de 1980 marca a reativação planetária daatuação das CNA‘s. Esta década está marcada, também,pela expansão das políticas de superencarceramento, comomostram os estudos de Nils Christie e Loïc Wacquant.13 ACNA de Nova Jersey, em especial, passa a problematizaros novos programas penais, nomeadamente o tolerânciazero estadunidense, aplicados pelos governos à direita nasprefeituras de Detroit e Nova York, e posteriormente ex-portados como políticas de tolerância zero para AméricaLatina e Europa, por partidos ligados à social-democracia.

Encontram-se no sítio da CNA Nova Jersey14 121 textosque analisam e combatem tal política apresentado-a comoparte de uma guerra de extermínio dos indesejáveis (ne-gros, imigrantes, moradores de rua, subversivos, etc.), paradepois apontar para uma luta objetivando estancá-la.15 Aose analisar os textos, partindo do tema principal de com-bate às políticas de tolerância zero, nota-se uma proposi-tal distinção, feita pelos autores da associação de NovaJersey, entre as palavras war (guerra) e struglle (luta). Estadistinção visa apontar as políticas de Estado como umaguerra de extermínio dos indesejáveis e as resistências aela como necessidade de uma luta, cujo alvo é a manuten-ção da vida livre.

Desta maneira elas se inserem numa tradição de lu-tas políticas do século XIX contra o exercício de poder bio-político, que se articulava, por meio da norma, junto às dis-ciplinas. Como sugere Foucault: “contra o poder ainda novono século XIX, as forças que resistem se apoiaram exata-mente naquilo sobre o que ele investe — isto é, na vida eno homem enquanto ser vivo. [...] Pouco importa que setrate ou não de utopia; temos aí um processo bem real deluta; a vida como objeto político foi de algum modo tomadaao pé da letra e voltada contra o sistema que tentava con-trolá-la.”16

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A intervenção contumaz da associação de Nova Jer-sey não só coloca a discussão acerca das prisões no cam-po político, como faz da vida o objeto de suas lutas porlibertação. Isto faz com que as reivindicações dos pre-sos e dos que estão fora da prisão não se coloquem emtermos de Direito, mas como um embate direto contra oEstado e seus mecanismos de regulamentação da vidaassociados aos dispositivos disciplinares. Neste ponto,é inevitável fazer ecoar a afirmação de Foucault: poucoimporta se o que orienta as lutas da CNA Nova Jersey éa busca utópica da sociedade livre e igualitária, mas épreciso atentar para os efeitos destes discursos nas lu-tas contra a prisão e o sistema penal.

A CNA Madri

A CNA Madri foi dissolvida em janeiro de 2006 por pro-blemas internos, mas suas campanhas prosseguiram poroutras regiões da Espanha. O documento que notícia suadissolução argumenta a incapacidade material e huma-na (dinheiro, material, militantes, repressão da polícia)para prosseguir as campanhas na cidade de Madri, des-locando esforços para as associações da Galícia, Albace-te, Barcelona e a recém criada Federação Ibérica de Asso-ciações da Cruz Negra Anarquista, que agrega as associa-ções existentes em Portugal.17

A principal campanha das associações espanholas, quetinha como núcleo Madri, é a de combate a uma medidaadministrativa veiculada nas prisões espanholas chama-da FIES (Fichero de Internos de Especial Segmento).18

Campanha de expressão planetária, rendeu um embatedireto das CNA‘s com o governo espanhol, chegando aassociação de Madri ser declarada ilegal — sob a acusa-ção de ser grupo terrorista — pelo juiz Baltazar Garzon,19

que ainda decretou a prisão de diversos integrantes da

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CNA de Madri, promovendo uma caça às bruxas aos cen-tros culturais anarquistas, de Madri e Albacete, e àsOkupas — casas ocupadas que funcionam como mora-dia e espaço de atividades culturais dos jovens espa-nhóis, em geral punks, anarquistas e anarco-punks.

Nestas fichas “especiais” encontram-se anarquistas,militantes do ETA, muçulmanos acusados de envolvi-mento com a Al Quaeda, objetores de consciência, trafi-cantes, imigrantes ilegais e pessoas acusadas de en-volvimento com o “crime organizado” ou supostamenteligados a grupos políticos na prisão. O argumento de com-bate ao FIES articulado pelas CNA`s comporta a apre-sentação de técnicas de governo utilizadas pelo Estadoespanhol para eliminação dos indesejáveis ao produzirum cárcere dentro do cárcere, configurando um métodode eliminação pelo isolamento e indução ao suicídio.

O FIES é definido em seu estatuto como um “regimede vida” aplicado a um determinado grupo de presos, queprotege os outros presos não incluídos no FIES, e aomesmo tempo, defende a sociedade daqueles conside-rados mais perigosos. É um regime que regulamenta eadministra a vida de terroristas e narcotraficantes re-clusos. Não aplica a execução sumária, mas adminis-tra a vida pela utilização da norma que define certascategorias de presos que ameaçam a saúde e a segu-rança da população: os presos deixam de ser considera-dos passíveis de disciplina para serem controlados eanulados até a morte chegar.

Trata-se de um procedimento definido como admi-nistrativo e acoplado a uma instituição disciplinar parafins de gestão dos conflitos e controle contínuo dos pre-sos, cientificamente classificados como perigosos. Nes-se procedimento de sujeição peculiar há uma positivi-dade: diante de pessoas que são, do ponto de vista po-lítico e produtivo, perigosas e inúteis, as técnicas de

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controle biopolítico — a gestão calculista da vida se-gundo um poder que causa a vida ou devolve à morte,como definiu Foucault20 — são experimentadas e tes-tadas em pessoas tomadas como cobaias dos meca-nismos de gestão e controle de vidas.

Em meio a uma escalada planetária de prisões comoGuantánamo, que escandaliza grupos de direitos huma-nos no mundo todo, ou mesmo da existência incontesta-da das RDD‘s (Regime Disciplinar Diferenciado) — pri-sões de segurança máxima espalhadas pelo interior deSão Paulo — a luta infame dos anarquistas na Espanhacontra esse regime de detenção peculiar se apresentacomo uma urgência que estranhamente não encontraeco no Brasil, onde — salvo o singular contraposiciona-mento do Nu-Sol que alia anarquismo e abolicionismopenal — alguns dos contemporâneos grupos e associa-ções de anarquistas parecem estar mais preocupados emocupar as prateleiras do supermercado das esquerdas efazer manifestações com escolta policial.

Em um texto que conta a história das lutas anti-prisionais na Espanha,21 o grupo de pessoas que pro-duz e assina o texto como CNA ressalta que o fim daditadura fascista lembrou aos militantes que lutavamcontra o regime de Franco, e acabavam no cárcere,algo que sempre esteve evidente no embate históricodos anarquistas com o sistema penal: todo preso é umpreso político.

O que o fim da ditadura brasileira trouxe de novo aosgrupos de luta por anistia e aos grupos que durante aditadura militar lutaram pela libertação de presos polí-ticos? Esta é uma questão pertinente quando o alvo éproblematizar um discurso contemporâneo que afirmaa democracia e os direitos humanos como a superaçãodos problemas vividos durante aquele período ditatorial.Muitos destes problemas persistem e tornam-se mais

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agudos na medida em que nos dias de hoje se fortaleceum discurso que afirma as políticas de tolerância zerocomo a grande panacéia no campo das políticas sociais,e encontrando diminutas resistências. Afirmar que todopreso é um preso político é uma urgência icontornávelpara qualquer pessoa, anarquista ou não, que se ocupedo problema das prisões.

Lutas contra o sistema penal e experimetações deliberdade

Foi sob os efeitos de hegemonia da burguesia no sé-culo XIX que os anarquistas apresentaram-se como con-testação radical das técnicas disciplinares e das regu-lamentações de governo das populações. Marcaram nahistória moderna seus contra-posicionamentos, expe-rimentaram liberdades com suas práticas sediciosas,arruinadoras das hierarquias e da autoridade centra-lizada, e pretenderam abolir os castigos no próprio pre-sente. Nas experiências das CNA’s, os anarquistas sem-pre souberam fazer de suas lutas utópicas experiênci-as heterotópicas.22

São portadores de uma tradição, reivindicada pelasCNA‘s, que se renova nos enfrentamentos com autori-dades. Hoje habitam outros espaços e travam conver-sações e batalhas com práticas sociais diversas, in-cluindo as vinculadas com as novas tecnologias eletrô-nicas. Contudo, resistir na atualidade implica outrasintensidades que não mais apenas as experimentadasna decadente sociedade disciplinar. É preciso estar atentopara não ser capturado na velocidade dos fluxos eletrôni-cos e nas convocações constantes à participação.

Lutar contra o regime das penas é um estilo de vida,uma prática cotidiana, pois a intensidade da vida é capazde arruinar o programa. Desse modo, “resistir também

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não é mais uma atitude que ocorre em lugares ou atra-vessa a estratificação. É preciso se desdobrar velozmente.É preciso ser intenso, virar vacúolo. (...) Se a sociedade decontrole governa pela velocidade, integrando e convocan-do a participar, o que se exige das resistências? Elas alte-ram velocidades. Exercitam intensidades, surpreenden-tes ataques, a antidiplomacia: diante da negociação, o ime-diato; diante da razão, o instintivo; diante da criação, ainvenção”.23

As CNAs travam suas lutas dentro de um campo dareforma da sociedade. Há experimentações de liberdade,radicalidades experimentadas em alguns momentos pe-los que estão envolvidos nestas lutas, mas há uma limita-ção na medida em que existe um programa societário aser cumprido. Uma intensa luta contra as prisões que abaleos castigos assim como as novas tecnologias de controle,não passa pela busca de um horizonte libertador, mas pelaurgência em se liberar, no presente, dos fluxos que ar-rastam para uma vida de servidão.

Amarradas a programas societários, as lutas contra asprisões correm um duplo risco: de receberem o comandoCtrl+b, isto é, serem salvas e incorporadas num programamaior, totalizador; ou o Ctrl+Alt+Del, isto é, serem sim-plesmente eliminadas.

Todo preso é um preso político!

Notas1 Este artigo apresenta resultados da pesquisa de iniciação científica “Cruz NegraAnarquista (CNA). Embates com o sistema penal: controle e experimentações deliberdade”; apresentada, em 2005, ao Departamento de Política da Faculdade deCiências Sociais da PUC-SP e à Comissão de Pesquisa e Extensão da PUC-SP,financiada pelo CNPq e premiada como melhor trabalho de iniciação científica doDepartamento de Política em 2005.2 Michel Foucault. Vigiar e punir. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis,Vozes, 2002, pp. 195-254.

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3 Willian Godwin. “Crime e punição” Tradução de Maria Abramo Caldeira Brant inVerve, n° 5. São Paulo, Nu-Sol, 2004, pp. 11-84.4 Michel Foucault, 2002, op. cit., pp. 228-242.5 Pierre-Joseph Proudhon. O que é a propriedade. Tradução de Marília Caeiro. Lisboa,Editorial Estampa, 1975.6 Jean Matrion. “Émile Henry, o benjamim da anarquia” Tradução Eduardo Maia.in Verve n° 7, São Paulo, Nu-Sol, 2005, pp.11-41.7 Piotr Kropotikin. As prisões. Tradução Martin La Batalha. São Paulo, IndexLibrorum Prohibitorum, 2002.8 Ver em especial Errico Malatesta. Escritos revolucionários. Tradução Plínio AugustoCoelho São Paulo, Imaginário/Nu-Sol/Soma, 2000; Errico Malatesta. “Incompa-tibilidade” in Francesco Saveiro Merlino & Errico Malatesta. Democracia ou anar-quismo. Tradução Júlio Carrapato. Lisboa, Ed. Sotavento, 2001.9 Cesare Lombroso. Los anarquistas. Tradução J.M. Domínguez. Madrid, Jucar,1977; Michel Foucault. Os anormais. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo,Martins Fontes, 2002, pp.173-206.10 Gilles Deleuze. “Post-scriptum sobre as sociedades de controle” Tradução dePeter Pál Pelbart in Conversações. Rio de Janeiro, Ed. 34, 2000, pp.219-226. .11 A noção de grupos de afinidades dentro das práticas anarquistas orienta que asassociações são formadas a partir da proximidade e preferências dos indivíduos,garantindo que as relações entre as associações se fundem pela afinidade que cadaassociação tem com as práticas anarquistas específicas. Edgar Rodrigues. PequenoDicionário de Idéias Libertárias. Rio de Janeiro, CCeP Editores, 1999, pp.35-36.Também em Murray Bookchin. “Grupos de Afinidade” in Geoorge Woodcock.Grandes Escritos Anarquistas. Porto Alegre: LPeM, 1999, pp.162-164. Um outrouso da prática de afinidades entre os anarquistas pode ser encontrada em EdsonPassetti. “Atravessando Delueze” in Verve, n° 8, São Paulo, Nu-Sol, 2005, pp. 42-48.12 www.anarchistblackcross.org; www.nodo50.org/federacioniberica_cna/;www.angelfire.com/zine/libertad/cna.html; entre outros.13 Loïc Wacquant. As prisões da miséria. Tradução de André Telles Rio de Janeiro,Jorge Zahar, 2001; Nils Christie. A indústria do controle do crime — a caminho dosGULAGs em estilo ocidental. Tradução de Luis Leiria. Rio de Janeiro, EditoraForense, 1998.14 www.anarchistblackcross.org.15 A preocupação da CNA Nova Jersey com essa seletividade racial do sistema penalestadunidense (que não é privilégio deste) decorre, sobretudo, pelo fato de ser na

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sua maioria composta por ex-militantes dos Black Panters, fato evidente inclusivepela cidade em que está localizada. www.anarchistblackcross.org16 Michel Foucault. A vontade de saber — vol. 1 da História da sexualidade. Tradu-ção de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Riode Janeiro. Graal, 2001, p. 136.17 Conforme comunicado recebido por e-mail de janeiro de 2006. Os grupos deAlbacete, Barcelona e a recente CNA Ibérica, que reúne associações da Espa-nha e Portugal, prosseguem os trabalhos descritos aqui, especialmente juntoaos presos inclusos no FIES.18 Para cartas, escritos e documentos de combate ao FIES em espanhol, francêse inglês, ver: www.ecn.org/breccia/dossier/;www.ucm.es/info/eurotheo/nor-mativa/fies.htm; www.toutmondehors.free.fr/fies.html; www.ainfos.ca/01/feb/ainfos00368.html.19 Baltazar Garzon, iminente juiz espanhol famoso mundialmente por coman-dar o julgamento do ditador chileno Augusto Pinochet. Chegou a ser indiacdoao prêmio Nobel da paz com assinatura de figuras ilustres como a do escritorportuguês José Saramago.20 Michel Foucault, 2001, op. cit., pp. 127-149.21 A discussão encontra-se no texto: “Breve história da luta contra o FIES”,publicada no site da CNA Nova Jersey. “A transição do facismo ditatorial parauma “democracia de Estado” no meio dos anos setenta não fez dirferença nesteponto: a repressão continua severa, e as prisões superlotadas. A luta pela liber-tação de presos políticos se alterou então para uma luta pela a libertação detodos os prisioneiros e a abolição do sistema penal”. Cf.www.anarchistblackcroos.org.22 Para Foucault a sociedade moderna se carateriza por posicionamentos nasrelações de vizinhança dentro de grades, redes ou organogramas, os contra-posicionamentos atravessam essas redes e estratificações, desestabilizando-as.Isso aparece na noção de heterotopia apresentada por Foucault, Michel. “Ou-tros espaços” in Ditos e Escritos III. Tradução de Inês A. D. Barbosa. São Paulo,Forense, 2001, pp. 411-422. Essa noção é utilizada por Edson Passetti paraproblematizar práticas anarquistas, entendendo-as como contraposicionamen-tos heterotópicos. Edson Passetti. “Heterotopias anarquistas” in Verve, n° 2,São Paulo, Nu-Sol, 2002, pp. 141-173.23 Edson Passetti. Anarquismos e sociedade de controle. São Paulo, Cortez, 2003, p.251.

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Os anarquistas e as prisões: noticias de um embate...

RESUMO

A Cruz Negra Anarquista (CNA) é uma associação que emerge em1905 na Rússia e existe até hoje em diversos países. A atuação desuas associações mais expressivas, locadas em Nova Jersey eMadri, é problematizada diante do histórico embate dos anarquis-tas contra a prisão, o sistema penal e Direito.

Palavras-chave: Prisões, Cruz Negra Anarquista, abolicionismopenal.

ABSTRACT

The Anarchist Black Cross is an association that emerged in 1905in Russia and still exists today in several countries. Its mostexpressive associations, located in New Jersey and Madrid, areproblematized before the historical anarchist struggle against pri-son, the penal system and the law.

Keywords: Prisons, Anarchist Black Cross, penal abolitionism.

Recebido para publicação em 6 de fevereiro de 2006 e confirmadoem 6 de março de 2006.

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contingentes de homens inúteis

edson lopes*

Em 2001, quando da adoção da Declaração Universalda Diversidade Cultural o diretor geral da Unesco, Koïchi-ro Matsuura , expressou a esperança de que um dia essetexto adquirisse mais força do que a Declaração Univer-sal dos Direitos Humanos. Esta esperança, pretende ain-da sustentar-se sobre o universalismo moral dos direi-tos humanos, como condição indispensável para a cons-trução da dignidade do homem, que desde o preâmbuloda constituição da Unesco de novembro de 1948, apóia-se na difusão da cultura e da educação para a justiça, aliberdade e a paz.

Entre a Constituição da Unesco e a Declaração Uni-versal da Diversidade Cultural, há algumas dezenas deoutras declarações, compromissos, pactos, conferênci-as e convenções, que programam uma regularidade, aque Salete Oliveira chamou de “exercícios ordinários”:a educação, a difusão, o compromisso, a responsabilida-de, a conscientização, sensibilização, fomentação, pro-

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* Edson Lopes é mestrando do Programa de Estudos Pós Graduados emCiências Sociais da PUC-SP, pesquisador no Nu-Sol e bolsista CNPq.

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teção, consolidação e definição de políticas. Exercíciosque se repetem através de instituições, recomendáveisà linguagem, aos corpos e aos fluxos difusos de comuni-cação. Segundo a autora os documentos se endereçamuns aos outros, prenunciam-se, refazem um circuito depresença e lembrança, “a naturalização de seu discur-so rarefeito”1. Neste movimento de regularidades e “na-turalização”, desde a década de 1940, a UNESCO, des-ponta como o espelho de promessas de melhores garan-tias para a paz. Neste sentido, paz é um clima desegurança, um conjunto de condições, que abarcam agarantia dos direitos humanos, justiça, tolerância, igual-dade política e diversidade cultural; uma programáticapara a idéia de paz realizar-se enquanto concreto, naausência de guerra ou solução violenta de conflitos,numa constelação histórica que não é o hoje.

Traduz-se segurança como condição que exerce im-pacto tanto no sistema que sustenta a sociedade comotambém a vida no planeta. Segundo Bauman, “a segu-rança na qual nos preocupamos, da qual somos adverti-dos, encorajados e preparados para temer, enquanto ospoderes constituídos nos prometem que será garantida,não é mais a que Roosevelt ou Beveridge tinham emmente”. Não é a segurança de nosso lugar na socieda-de, da política de seguros contra riscos inevitáveis numaeconomia capitalista, da dignidade pessoal, da honra pelotrabalho, do pleno emprego, do auto-respeito, da com-preensão e do tratamento humanos, “mas a segurançado corpo e das posses pessoais”2; ainda, completa Pas-setti, a segurança por ações que são capazes de “garan-tir certa restauração do planeta diante do reconheci-mento do inevitável estrago proporcionado pelo capita-lismo e o efêmero socialismo estatal”.3

O que era combatido por Roosevelt e Beveridge, eramcalamidades, pestes, aflições, sofrimentos, doenças,

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misérias, imundícies, ignorância, demasiadamenteconcretos, “que se colocavam entre as pessoas e as suaschances de uma vida decente”.4 As estratégias utiliza-das no pós-guerra, para se enfrentar o desemprego, asdestituições, as exclusões e degradação social obstina-vam-se na regular definição da dignidade. De outromodo, ao passo que o episódico Estado Social abre asalas ao Estado Penal, os “riscos” e “vulnerabilidades” tor-naram-se os motes para uma economia das penas.

Riscos e vulnerabilidades são invisíveis, são traçosde cálculos, traços comparativos, deduções estatísticas,índices, fontes de tutelas informáticas, que se colocamentre as pessoas e suas chances de viver tranquilamen-te, exigente de grande dose de prevenção. O tema davulnerabilidade, no campo das investigações biológicase ecológicas é equacionado através de escalas de inter-ferências na biodiversidade e ecossistemas. Portanto, asegurança ecológica opera suas condições marcadas porvulnerabilidades naturais que impactam a sobrevivên-cia das espécies, reivindicando controle e prevenção.Seja na vida social ou natural, a vulnerabilidade apre-senta-se como perigo potencial, situação alarmante,associada a comportamentos e impactos que ameaçama consolidação das condições propícias e que pretendemabarcar a totalidade da vida. O direito, sob a forma dejustiça de Estado, opera a condição prioritária da justiçacapaz de garantir a tranqüilidade social, diversidadecultural e biológica como condições próprias e univer-sais à segurança.

Em “O Nativo Relativo”, ao demonstrar a inquietaçãodos antropólogos em relação à identidade e destino daantropologia, “o que ela é, se ela ainda é, o que ela deveser, se ela tem o direito de ser, qual é seu objeto próprio,seu método, sua missão, e por aí afora”;5 ao definir quecultura, sociedade e natureza redundam no mesmo e

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são noções que não designam o objeto da antropologia esim seu problema, ao questionar a tradição do nativo eintroduzir a variação das relações sociais enquanto ob-jeto da antropologia, Viveiros de Castro, introduz umasérie de implicações éticas e políticas em favor da no-ção imanente de problema. Não se propõe a interpretaro pensamento pelo ponto ancorado da equivalência cul-tural, mas realizar uma experimentação com ele. Nãodialoga. Não coleta visões de mundo, porque não hámundo pronto para ser visto. Esta experimentação, alémde problematizar o estado de arte da antropologia, forne-ce elementos singulares para a problematização do temado diálogo cultural e do imperativo moral da diversidadecultural como política de Estado, acenando para direitosexclusivos.

A participação, como ato, insere-se atualmente numainterface de fluxos, exigida como um estatuto vital decidadania. É preciso, gerir, criar, administrar, reformar,opinar, delatar, interferir, manifestar, monitorar, nu-merar, fixar, etc. Ou seja, a participação exige e acomo-da para a interlocução diplomática.6 A noção de diálogoque acomoda-se nesse veio, apontando para a virtudedo consenso e o respeito à diferença, segundo Viveirosde Castro, encerra uma vantagem estratégica, umavantagem epistemológica, a razão que outra razão des-conhece, explica e interpreta, traduz e introduz, textua-liza e contextualiza, justifica e significa. “Mas o queaconteceria se o tradutor trair sua própria língua?”7

O referencial da diversidade cultural, fundado no di-álogo e na interface diplomática, sustenta-se na noçãotranscendente do contexto, seja ecológico, econômico,político (indispensáveis para efeitos comparativos) e pri-vilegia uma convergência referencial universal, o posi-cionamento multiculturalista, como reação ao monocul-turalismo ou etnocentrismo. Discriminação diretamen-

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te associada a uma vocação da Europa ocidental funda-da nas suas conquistas que direcionariam a hierarquiadas relações entre homens e sociedades.

Diferenças são reconhecíveis, assaltam-nos comosurpresas, maravilhas, medos. Dorothea Voegeli Pas-setti, alerta para o equívoco de se reduzir o etnocentris-mo a uma atitude exclusivamente européia ou branca.“Trata-se de uma forma generalizada do enfrentamentocom os outros, que ultrapassa o “nós” uniformizador oci-dental”.8

O enfrentamento e o reconhecimento do outro, em-bora atravessado por uma atitude relativista, pronta paradar o mesmo peso a todas as coisas, ainda assim, carac-terizaria uma forma aparentemente oposta ao etnocen-trismo, lidando de forma cordata com diferenças reple-tas de preconceitos. O relativismo diz: tudo vale a mes-ma coisa, todas as diferenças se equivalem. Ainda quealguns críticos visualizem a postura relativista comoincapaz de reduzir o etnocentrismo, recaem na defesado reconhecimento e reconstrução de categorias deidentificação, refazendo o itinerário que irá do diálogo àtolerância, das políticas multiculturais à política de to-lerância, à tolerância zero.

Enquanto fonte valiosa para se moldar o futuro, omulticulturalismo, pode ser visto como um terreno deluta tendo em vista a reformulação da memória históri-ca, da identidade nacional, da representação individu-al, social e política, bem como da política da diferença.9

A partir dos EUA a expansão do tema multiculturalistase deu na confluência das lutas dos negros por direitoscivis na década de 1960, favorecendo a emergência dasações afirmativas, relativas a minorias capazes de maio-ria (consenso, acordo e direitos visando a universais),mulheres, índios, negros, homossexuais, etc. Também,virou um novo quadro de estudos, compondo na década

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de 1970, currículos de universidades como San Fran-cisco State University, Havard, Yale e Columbia. E, se-gundo Luiz Alberto Oliveira e Petronilha Beatriz, “a artefoi e será o veículo mais privilegiado do multiculturalis-mo”10, haja visto o filme Filadéfia, Faça a Coisa Certa deSpike Lee e o recém Oscar de melhor filme, Crash dePaul Haggis. No Brasil, as ONGs foram as responsáveispela implementação das teses e projetos multiculturais,embora as universidades tenham criado programas sen-síveis ao estudo da temática. Desde o final da década de1980 o debate sobre o multiculturalismo estava muitoligado à forma como estava sendo realizado no campoeducacional brasileiro, já que estava em foco no períodoa constituição dos Parâmetros Curriculares Nacionais.

O referencial multiculturalista exige a construçãoda categoria “outro”, uma identidade a priori. Como omostra Martuccelli11, o que está em jogo é sempre umaarticulação entre a identidade e o político.

O reconhecimento do viver na insegurança, disse-mina vulnerabilidades escaladas hierarquicamente,naturaliza a periculosidade enquanto fonte de crimina-lidade, deita as cartas do mapeamento, levantamento ereconhecimento das anomias e profilaxias, numa pai-sagem povoada de outros, formando setores de popula-ção (internas ou estrangeiras, confinadas ou em vistade reaquisição de antigos territórios) visados de algumamaneira, criminalizados, descartados e vivos enquantoparticipativos. O perigo potencial, associado a compor-tamentos e situações, acena ao reconhecimento do ou-tro entre o ressentimento e a compaixão. “São precisosexercícios ordinários para que uma cultura grandilo-quente subsista e sustente relações assimétricas.”12

Pequenos hábitos repetitivos, paixões pelo poder, com-paixões, ressentimentos, indignações, simplicidade,vontade de reformar, proporcionalidades, relativismo,

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participação, gestão, educação, inculcação... que digamrespeito ao convívio, à saúde, à justiça, à liberdade polí-tica, preservação dos ecossistemas, para que tudo virecostume e afine no interior da globalização. O que nãosuspende de modo algum a importância vital que a mor-te, o racismo, o isolamento e os micros fascismos exer-cem no equacionamento dos medos.

Notas1 Salete Oliveira. “A grandiloqüência da tolerância, direitos e alguns exercíciosordinários” in Verve, vol. 8. São Paulo, Nu-Sol, 2005, p. 279.2 Zygmunt Bauman. Europa. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro,Jorge Zahar Editor, 2006, p. 84.3 Edson Passetti. Anarquismos e sociedade de controle. São Paulo, Editora Cortez,2003, pp. 47-48.4 Zygmunt Bauman, 2006, op. cit., p. 85.5 Eduardo Viveiros de Castro. “O nativo relativo” in Mana. Rio de Janeiro, vol.8 abril de 2002, p. 6.6 Edson Passetti, 2003, op. cit., p. 2.7 Eduardo Viveiros de Castro, 2002, op. cit., p. 6.8 Dorothea Voegeli Passetti. “Intolerável tolerância intolerante” in Edson Pas-setti e Salete Oliveira (orgs). A tolerância e o intempestivo. São Paulo, AteliêEditorial, 2005, p. 205.9 V. R. Silvério. “O multiculturalismo e o reconhecimento: mito e metáfora.” InRevista Brasileira de Cultura, vol. 94, nº 5. Rio de Janeiro, 2000, p. 86.10 Luiz Alberto Oliveira Gonçalves & Petronilha Beatriz Gonçalvez e Silva.“Multiculturalismo e educação: do protesto de rua a porpostas e políticas” inEducação e pesquisa, vol 29, nº 1. São Paulo, janeiro/junho de 2003, p. 20.11 D. Martuccelli. “As contradições políticas do multiculturalismo“ in RevistaBrasileira de Educação. São Paulo, maio/agosto de 1996.12 Salete Oliveira, 2005, op. cit., p. 287.

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RESUMO

A diversidade cultural e biológica, enquanto conteúdo que atuali-za a programática para a realização da paz e da segurança noplaneta, reivindica ao mesmo tempo prevenção e controle, e multi-culturalismo como reação ao monoculturalismo. Conteúdo concei-tual que embora tenha reconhecidas suas limitações, recorrem aaperfeiçoamentos e ao reforço do itinerário que vai do diálogo cul-tural à tolerância, das políticas multiculturais às políticas de tole-rância.

Palavras-chave: multiculturalismo, segurança, controle.

ABSTRACT

The cultural and biological diversity, as the content that updatesthe program for the realization of peace and security in the planet,claim at the same time prevention, control, and multiculturalism asreaction to monoculturalism. Conceptual content that although itslimitations are recognized, reach out to improvements and to theemphasis on the itinerary that goes from cultural dialogue to tole-rance, from multicultural policies to policies of tolerance.

Keywords: multiculturalism, security, control.

Recebido para publicação em 6 de fevereiro de 2006 e confirmadoem 13 de março de 2006.

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tolerância e conquista, alguns itineráriosna declaração universal dos direitos

humanos

salete oliveira*

a conquista da tolerância e a natureza humana, estesuniversais

Se fosse possível indicar um território, tornado frase,capaz de condensar o ponto de convergência do discursomoderno e contemporâneo acerca da tolerância, seria este:a tolerância é uma conquista. Se fosse possível apontarum domínio no qual este território, do século XVII ao XXI,refestela-se no discurso em defesa da tolerância, seriaeste: a conquista de direito. Se fosse possível tocar no cam-po discursivo da tolerância no qual o domínio se constituia partir do território, seria este: a natureza humana. Mascomo na história não há “se”, é preciso ir de encontro aoespaço de enfrentamento deste território, domínio e campo,1lá onde eles se fazem rasteiros e brutais, imperceptíveis e

* Doutora em Ciências Sociais e pesquisadora no Nu-Sol, professora-pesquisa-dora na PUC-SP pelo Prodoc-CAPES.

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legíveis, ordinários e grandiloqüentes: na educação paraa obediência.

O cultivo do medo ao castigo é a base da educação paraa obediência. Ao contestá-la Godwin, no século XVIII, afir-ma que a questão da punição talvez seja a mais funda-mental da ciência política.2 Sua análise mordaz sobre ocastigo descreve como a prevenção assume o nome de jus-tiça penal, ou punição. A falácia da prevenção geral resi-de, segundo ele, em seu próprio efeito reverso de eficácia,ao converter quase todos em uma massa de covardes. Acovardia tornada obediência.

O deslocamento do direito penal clássico para o moder-no, além de compor uma das procedências da prevençãogeral mostra-se como um dos efeitos da humanização daspenas presente no discurso dos reformadores do séculoXVIII, ao defenderem a individualização e proporcionali-dade da pena ao delito, concomitante à gestação da prisãomoderna e imediata constatação de seu fracasso. Prou-dhon, no século XIX, atento a estes efeitos realiza umacrítica demolidora para o momento em que vivia e pre-sentifica a prática abolicionista como uma das atualida-des vigorosas da atitude anarquista.

“O crime faz a vergonha e não o cadafalso, diz o provér-bio. Apenas por isso, pelo fato do homem ser punido mes-mo que o mereça, ele se degrada: a pena o torna infamenão em virtude da definição do Código Penal, mas por cau-sa da falta que motivou a punição. O que importa pois amaterialidade do suplício? O que importam todos os siste-mas penitenciários? O que fazeis deles é para satisfazer avossa sensibilidade, mas eles são impotentes para reabi-litar o infeliz que vossa justiça golpeia. O culpado, uma vezdobrado pelo castigo, é incapaz de reconciliação; sua man-cha é indelével e sua danação eterna. Se as coisas pudes-sem ocorrer de outra maneira, a pena deixaria de ser pro-

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porcional ao delito e não seria mais do que uma ficção,não seria nada.”3

A atualidade das análises de Godwin e Proudhon seencontra, também, em incidir sobre o próprio princípioda tolerância que exige uma relação assimétrica de co-mando do superior e obediência do inferior. Neste sen-tido, ambos explicitam os efeitos de direitos, descober-tas, submissões e extermínios provenientes da tolerân-cia como conquista.

A tolerância é uma conquista. Assertiva regular que,desde Voltaire4, Locke5, Stuart Mill6 e Kant7, dentre ou-tros, não cessou de respaldar o discurso moderno da to-lerância. Forma segura para justificar a necessidadede sua existência, a partir de uma ausência a ser pre-enchida pela educação para a obediência.

Para Voltaire a tolerância não sendo um atributonatural é um valor moral que deve ser aprendido e in-corporado pela alma, na educação dirigida a uma natu-reza fraca como resposta ao fanatismo; em John Lockea educação, distinta para governantes e governados,deve ser pautada por uma conduta da tolerância sob ospressupostos de democracia, pluralidade e liberdade defazer o que a lei não proíbe; em John Stuart Mill na edu-cação correlata à instrução geral utilitária na qual oaprendizado do sentimento da tolerância cumpre a fun-ção de controle social e pauta as intervenções morais elegais no interior de uma comunidade civilizada.

Em Voltaire, Locke e Mill a tolerância iluminista,assume, respectivamente, a conotação educadora devalor moral vinculado ao Estado; de conduta pluralistacom separação entre religião e comunidade política con-jugada à instrução formadora de governantes e gover-nados; de controle social na comunidade civilizada. En-tretanto, é com Kant que a tolerância ganha seu atribu-

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to de maioridade universal. Ao perguntar “quem somosnós” Kant condiciona a emancipação para a maioridadea partir do sujeito esclarecido, capaz de distinguir entreo uso privado da razão — o cidadão que, mesmo discor-dando, obedece aos mecanismos sociais para responderaos interesses da comunidade — e o uso público da razão— o homem que expõe suas concordâncias e discordân-cias publicamente. Logo, a liberdade que leva ao esclare-cimento vincula-se à atitude do homem enquanto sujei-to racional e não enquanto membro de um determinadogrupo social, pois o uso da razão vincula-se, com Kant aoconceito de hospitalidade.

Independente de a natureza humana ser boa ou má,não faz parte dela ser tolerante, logo a tolerância deveser uma conquista do homem. Contudo, ela só passa asê-lo como um direito a conquistar pelo homem esclare-cido de Kant. Na assertiva grandiloqüente a tolerâncianasce da falta cujo pressuposto universal é a naturezahumana que passa a ter como meta o direito. O projetode paz mundial em Kant alçado por meio do esclareci-mento exige que também o direito ganhe maioridade nauniversalização do direito dos povos, hospitalidade aco-plada ao cosmopolitismo.

A tolerância é uma conquista do direito e de direito. Opressuposto metafísico do campo (a natureza humana)constituiu a preposição do domínio universal (a conquistade direito) por meio da ausência de território (a tolerânciaé uma conquista). É assim que a conquista de direito seamplia para sua própria maioridade. Não se tratará mais,tão somente dos direitos do homem e do cidadão, consa-grados na Declaração de 1789, mas da universalização dosdireitos humanos, prescrita na Declaração de 1948, queatualizará o projeto de emancipação kantiano. O brilhoreluzente iluminista da tolerância veio traduzir-se namaioridade do domínio jurídico-político da humanidade.

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O que o registro da lei, seu texto escrito em sua im-ponência legível explicita reside nos gestos que só setornam imponentes quando nas miudezas cotidianasexplicitam esta vontade de verdade do humano acompa-nhada da vontade do pequeno e do grande julgamento.8

Para a tolerância conquistar esta grandeza equiva-lente ao humano maior, convém abordar, de forma bre-ve, uma cartografia etimológica do próprio termo tole-rância apresentada por Daniel Lins.9 O autor em seutexto aponta para a possibilidade de uma tolerância rizo-mática diante da tolerância arborescente. Para efeito des-ta análise específica interessa apenas deter-se nestaúltima.

Segundo ele, a idéia de tolerância surge tarde no oci-dente, por volta do século XII, e emerge do termo into-lerância, do latim intolerabilis. O autor brinca: no come-ço era a intolerância. O sentido de tolerável aparece doisséculos mais tarde e o registro do verbo tolerar, de acor-do com Antonio Houaiss, no século XV e o da palavratolerância no XVII.

Lins mostra que a tolerância como conceito surge noséculo XVII com Espinosa em seu Tratado teológico, noqual propõe uma “nova ética independente e tolerante”— uma rebelião contra a moral religiosa da época —que viria a ser revisitada por John Locke. Montesquieupor sua vez, ao articular sua teoria acerca da separaçãodos três poderes, segundo Lins, imprimiria maior prag-matismo ao escopo teórico de Locke. Mas não só, os filó-sofos do iluminismo, principalmente Voltaire, em suadefesa da tolerância concluíam que “o humano, dotadode razão, compreenderia a necessidade desse ideal e o apli-caria. Ao combinar as teorias da democracia à tolerân-cia, chega-se à Declaração dos Direitos Humanos, docidadão e da democracia liberal. (...) Tolerância: ato ouefeito de tolerar; indulgência, condescendência; tendên-

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cia a admitir nos outros modos de agir e sentir diferen-temente o mesmo, diametralmente opostos às nossas;o adjetivo tolerante (1789) é assim definido por Houaiss:que tolera, que desculpa certas falhas e erros.”10

Após apresentar um rol de definições etimológicas àpalavra tolerância — reter-se, conter-se, no grego anti-go; aturar, suportar, sofrer, sentido encontrado na mai-oria das línguas; perdoar, nos idiomas árabes e turco;permitir nas línguas orientais, dentre outras — o autorsublinha que a maior parte das definições alocam a to-lerância no âmbito da não-violência e a situam no âm-bito da passividade e do conformismo, o dever de tole-rância. Provém daí a definição oficial aceita e difundidatanto pela UNESCO como pela Declaração Universal dosDireitos Humanos de 1948.

Lins fornece, em sua análise acerca do dever da to-lerância, uma receita bem humorada e corrosiva da pró-pria tolerância: “um gesto de desprezo, uma pitada decaridade, um punhado de hipocrisia, uma suspeita decinismo, uma nuvem de presunção, uma camada deconsentimento: eis a composição química da tolerân-cia.”11

Diante de tal receita é inócuo pleitear o direito datolerância em detrimento do dever da tolerância, poisambos são complementares e já estavam dispostos àmesa. A tolerância é uma conquista. A tolerância é umaconquista de direito e do direito.

a tolerância e os direitos universais, este espírito dareforma

A defesa da tolerância naturaliza o direito, cujo ápi-ce aloca-se no Estado e na Lei, naturalizando-se, simul-taneamente, castigo e recompensa como forma de res-tauração do direito violado. Este campo discursivo indi-

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ca, para uma perspectiva analítica, a possibilidade demapeá-lo de forma breve por três itinerários, conecta-dos a trechos presentes na Declaração Universal dos Di-reitos Humanos, respectivamente: o da origem do huma-no; o da falta no humano e o da diversidade do humano.

O itinerário da origem do humano — e que se mostramatriz para o desdobramento dos itinerários seguintes— parte do conceito de natureza humana, cuja condiçãoimperfeita justifica a necessidade de uma mediaçãosuperior para atingir a verdadeira humanidade. Nestecaso, a imperfeição não só constituiu um dispositivopolítico para fundamentar as teorias do contrato comoatualiza sua instrumentalidade, operando pelo referen-cial de soberania ao transitar pela cisão inequívoca en-tre os estados de guerra e os de paz.

É pertinente retomar, ainda que de forma pontual,as críticas contundentes de Godwin e Proudhon às teo-rias do contrato.12 Em Godwin os homens se associamem função da ajuda mútua, entendida como reciproci-dade. Logo o surgimento do governo é um produto damoral, não de um contrato, e exige sempre submissãopela força ou pelo consentimento. Em Proudhon, o con-trato não passa de uma criação, de literatura, pois umcontrato diz respeito a um acordo entre dois indivíduose sempre em torno de um objeto específico. Não há con-trato universal uma vez que não existe objeto univer-sal.

Foucault ao dar adeus às teorias de soberania, mos-trou como elas pertencem à construção filosófico-jurídi-ca da grande origem, que opera a cisão entre os estadosde guerra e os de paz. A teoria da soberania se apóia emum tríplice primitivismo: o do sujeito que deve ser su-jeitado, o da unidade do poder que deve ser fundamenta-da e o da legitimidade da lei que deve ser respeitada.13

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No itinerário da origem do humano o preâmbulo daDeclaração assume o estatuto não só do grande come-ço, o ponto de origem gloriosa que reafirma duplamentea natureza digna, seja a humana, seja a da humanida-de do documento.

“Preâmbulo

Considerando que o reconhecimento da dignidadeinerente a todos os membros da família humana e deseus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento daliberdade, da justiça e da paz no mundo.

Considerando que o desprezo e o desrespeito pelosdireitos humanos resultaram em atos bárbaros que ul-trajaram a consciência da humanidade e que foi procla-mado, como a mais alta aspiração do homem comum, oadvento de um mundo em que os seres humanos, livresdo medo e da miséria, gozem da liberdade de palavra eda liberdade de crenças.

Considerando essencial promover o desenvolvimen-to de relações amistosas entre as nações.

Considerando que os povos das Nações Unidas rea-firmaram, na carta, sua fé nos direitos humanos funda-mentais, na dignidade e no valor da pessoa humana ena igualdade de direitos dos homens e das mulheres, eque decidiram promover o progresso social e melhorescondições de vida em uma liberdade mais ampla.

Considerando que os Estados-membros se comprome-tem a promover, a cooperação com as Nações Unidas, orespeito universal aos direitos humanos e liberdadesfundamentais e a observância desses direitos e liber-dades é da mais alta importância para o pleno cumpri-mento desse compromisso, a Assembléia Geral procla-ma a presente Declaração Universal dos Direitos Huma-nos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos

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e todas as nações, como objetivo de cada indivíduo e cadaórgão da sociedade, tendo sempre em mente esta De-claração, se esforce, através do ensino e da educação,por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e,pela adoção de medidas progressivas de caráter nacio-nal e internacional, por assegurar seu conhecimento esua observância universais e efetivos, tanto entre ospovos dos próprios Estados-membros, quanto entre ospovos dos territórios sob sua jurisdição.”14

O preâmbulo não só aloca-se na origem da próprianatureza humana como, também exige que é precisoreescrever sua verdade, qualificar, esquadrinhar o hu-mano naquilo que o identifica. A natureza humana as-sume neste momento o valor equivalente ao do própriodocumento, no qual o preâmbulo prepara a entrada emcena para seus 30 artigos. A grandiloqüência da lei seimiscui no discurso cotidiano e ordinário que passará ainflacionar os ouvidos por meio das incontáveis reco-mendações, convenções, decretos, projetos, denúncias,reformas. O humano reformado: a pessoa humana, a dig-nidade da pessoa humana.

“Artigo 1°. Todos os seres humanos nascem livres eiguais em dignidade e direitos. São dotados de razão econsciência, por isso devem agir fraternalmente unscom os outros.”15

“Artigo 3°. Toda pessoa tem direito à vida, à liberdadee segurança pessoal.”16

“Artigo 6°. Todo ser humano tem o direito de ser, emtodos os lugares, reconhecido como pessoa perante alei.”17

Os seis primeiros artigos da Declaração trafegam deforma insistente no itinerário da origem do humano. Écomo se fossem, simultaneamente, o elogio ao preâm-bulo e a condensação do desdobramento dos demais ar-

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tigos. Contudo esta multiplicação da origem sedimentao destinatário ao qual, não apenas o humano, mas apessoa humana se remete para se familiarizar; acredi-tar-se viva e livre se segura e, por fim, se reconhecer: alei.

a tolerância e o julgamento, esta uniformidade

O itinerário da falta no humano — que se desdobra doanterior mostra-se como a conexão necessária entre oprimeiro e o terceiro itinerário (o da origem do humano eo da diversidade do humano) — parte da afirmação de au-sência de tolerância no homem, devido à sua naturezafraca. E é diante dela que se estabelece uma outra neces-sidade mediadora vinculada à sua própria libertação. Paralibertar-se de sua fraqueza o verdadeiro homem necessi-ta de uma razão de julgamento superior e universal.18

O sexto artigo da Declaração, por sua vez, opera a pas-sagem não apenas para os subseqüentes como se torna oponto de inflexão entre o itinerário da origem do humanoe o da falta no humano. Do sétimo ao décimo primeiroartigo a ausência na natureza humana (tolerância) passaa ser preenchida pela razão de julgamento, tanto para su-prir a falta como para julgá-la.

Trata-se do incremento penal que vem fortalecer a idéiade tribunal humano, entendido a partir de então dupla-mente: o grande tribunal do mundo e a disseminação detribunais no mundo. E como o direito não sobrevive sem areinvenção da vítima, esta é o suporte necessário paraque se parta dela a fim de se concentrar, demoradamen-te, no seu duplo inerente, o algoz.

“Artigo 7°. Todos são iguais perante a lei e têm direito,sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têmdireito a igual proteção contra qualquer discriminação que

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viole a presente Declaração e contra qualquer incitamen-to a tal discriminação.

Artigo 8°. Toda pessoa tem direito a receber dos tribu-nais nacionais competentes remédio efetivo para os atosque violem os direitos fundamentais que lhe sejam reco-nhecidos pela constituição ou pela lei.

Artigo 9°. Ninguém será arbitrariamente preso, detidoou exilado.

Artigo 10°. Toda pessoa tem direito, em plena igualda-de, a uma justa e pública audiência por parte de um tribu-nal independente e imparcial, para decidir de seus direi-tos e deveres, ou do fundamento de qualquer acusaçãocriminal contra ele.

Artigo 11°.

1- Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o di-reito de ser presumida inocente até que sua culpabilidadetenha sido provada de acordo com a lei, em julgamentopúblico no qual lhe tenham sido asseguradas todas as ga-rantias necessárias à sua defesa.

2- Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ouomissão que, no momento, não constituíam delito peran-te o direito nacional ou internacional. Também não seráimposta pena mais forte do que aquela que, no momentoda prática, era aplicável ao ato delituoso.”19

A partir do que falta no humano, a Declaração define afalta humana, o erro o desvio, o crime. O crime de lesa-sociedade e lesa-humanidade, diante do qual a própriaDeclaração é a primeira vítima. Neste circuito o tribunalpassa a ser o território do direito no campo punitivo uni-versalizado, cujo parâmetro econômico-político sedimen-ta o domínio da conquista de direitos. O regime do castigoencontra sua pacificação na formalidade da aplicação doprocedimento.

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a tolerância e a educação, esta obediência

O itinerário da diversidade do humano — forma mo-bilizadora mais atual dos dois itinerários anteriores(o da origem do humano e o da falta no humano), aoredimensionar a diferença na uniformidade20 — exi-ge a garantia do pluralismo, congregando o elementomulticultural. A meta a ser atingida é o julgamentoneutro e total que condense a expressão do humanoverdadeiro.

A educação, neste caso, constitui o espaço privile-giado de investimento para uma cultura da paz combase na tolerância. Trata-se de uma educação espe-cífica com estatuto de universalidade firmada em umtríptico: paz, direitos humanos e democracia. O plura-lismo o atravessa, oficialmente, como o grande tematransversal capaz de conectar a neutralidade pragmá-tica do relativismo cultural e diversos projetos liber-tadores vinculados à instituição de novas identidades,com o objetivo de harmonizar conflitos.21 A defesa datolerância neste campo discursivo incide no espaço daeducação para a obediência como uma ética do futu-ro.22 O humano verdadeiro.

Se por um lado a Declaração dos Princípios da Tole-rância de 1995 é o documento maior que explicita deforma acabada o itinerário da diversidade no huma-no, por outro só o faz embasada no espírito da reformaque é o animador privilegiado das soluções e dos prin-cípios universais reafirmados pela ONU em 1948.

Embora o valor tolerância atravesse a íntegra da De-claração Universal dos Direitos Humanos apenas umaúnica vez o termo tolerância é citado; precisamente noartigo que se refere de maneira pontual à educaçãoigualada à instrução.

“Artigo 26.

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1- Toda pessoa tem direito à educação. A instruçãoserá gratuita, pelo menos nos graus elementares e fun-damentais. A instrução elementar será obrigatória. Ainstrução técnico-profissional será acessível a todos,bem como a instrução superior, esta baseada no méri-to.

2- A instrução será orientada no sentido do plenodesenvolvimento da personalidade humana e do forta-lecimento do respeito pelos direitos do ser humano epelas liberdades fundamentais. A instrução promove-rá a compreensão, a tolerância e a amizade entre to-das as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadju-vará as atividades das Nações Unidas em prol da ma-nutenção da paz.

3- Os pais têm prioridade de direito na escolha dogênero de instrução que será ministrada a seus fi-lhos.”23

Eis aí a expressão do pluralismo, cujos efeitos re-produzem uma cultura da semelhança. Para garantira diversidade é preciso fazer o outro parecer-se com oum. As crianças aos adultos responsáveis, como ex-tensão de suas propriedades. A família à comunidadena proximidade da confissão e delações transparentes.A multiplicação disto na sociedade e no monopólio queo Estado detém sobre a educação, laica ou religiosa, aserviço da humanidade, bem a defender na uniformi-dade da diferença.

Vale ressaltar que os artigos situados entre o 11°,citado anteriormente, e o 26° percorrem dois trajetosespecíficos. O primeiro parte da proteção da lei à famí-lia, ao lar e à vida privada; para se multiplicar nos se-guintes em sociedade e Estado, enfatizando religião,raça e nacionalidade ao retornar à família instituídapelo matrimônio no 16° artigo.

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“Artigo 16°.

1- Os homens e mulheres de maior idade, sem qual-quer restrição de raça, nacionalidade ou de religião, têmo direito de contrair matrimônio e fundar uma família.Gozam de iguais direitos ao casamento, sua duração esua dissolução.

2- O casamento não será válido senão com o livre epleno consentimento dos nubentes.

3- A família é o núcleo natural e fundamental da so-ciedade e tem direito à proteção da sociedade e do Esta-do.”24

O segundo trajeto específico parte do direito à propri-edade no 17° artigo, multiplicando-se em liberdade in-dividuais até o 20° artigo: liberdade de pensamento eopinião; liberdade de consciência e religiosa, liberdadede reunião e associação pacífica. Do 21° ao 25° artigosas referências contemplam variações da liberdade soci-al vinculadas no 21° aos direitos de representação esufrágio universal; no 22° à segurança social garantidapelo esforço nacional e cooperação internacional; nos23°, 24° e 25° à regulamentação trabalhista associada àdignidade humana, à presença de sindicatos, ao lazer ebem-estar.

No espaço entre o julgamento e a educação que co-bre o intervalo do 11° ao 26° artigo, o primeiro trajetoespecífico, entre o 12° e 16° artigos, pode ser apreendidopela equação tribunal, família, sociedade e Estado en-quanto o segundo trajeto, compreendido entre o 17° e26° artigos, mostra-se parametrado pela propriedade, li-berdade, segurança e educação. Os quatro artigos finaisda Declaração prescrevem em linhas gerais a reafir-mação da própria declaração, contudo conectam a pes-soa humana, a comunidade e a própria ONU, valendodestacar os dois últimos.

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Artigo 29°

1- Toda pessoa tem deveres para com a comunidade,na qual o livre e pleno desenvolvimento de sua persona-lidade é possível.

2- No exercício de seus direitos e liberdades, todapessoa estará sujeita apenas às limitações determina-das pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar odevido reconhecimento e respeito dos direitos e liber-dades de outrem e de satisfazer as justas exigências damoral, da ordem pública e do bem-estar de uma socie-dade democrática.

3- Esses direitos e liberdades não podem, em hipóte-se alguma, ser exercidos contrariamente aos objetivose princípios das Nações Unidas.

Artigo 30. Nenhuma disposição da presente Declara-ção pode ser interpretada como o reconhecimento a qual-quer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qual-quer atividade ou praticar qualquer ato destinado à des-truição de quaisquer dos direitos e liberdades aquiestabelecidos.25

O atual programa de tolerância zero não foi um errode percurso. Ele tão somente constitui um dos efeitosdestes itinerários, ou ainda o itinerário mais recentedeste passado que de tão fraco não tem força nem paramorrer: o homem.

O espaço do cultivo da obediência vai da educação aojulgamento. Sobreposição de itinerários na disputa daverdade verdadeira no espaço de uma cultura embasa-da no valor da tolerância, em nome, não mais de deus,mas da demarcação de territórios, domínios e campos dauniversalidade do humano e dos direitos universais. Épossível que tanta persistência em falar do humano sejaa maneira mais eloqüente de manter viva, por outras

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vias, a idéia de juízo final. Se no passado, para afirmar amaioridade iluminista foi necessário equacionar deuse razão, hoje ela se atualiza pela acomodação e tolerân-cia entre razão e religião.

No ocidente a intolerância foi um dos baixos come-ços da tolerância. A construção do anormal, do perigosodiante do qual a sociedade precisa se defender, ao con-trário do que se pensa, antes de ter sido a posteridadeda norma, do normal, é paradoxalmente o que lhe ante-cedeu — afirma Canguilhem ao lembrar que a vontadede limpar exige um adversário à altura. Em defesa dahumanidade a prática preventiva se engrandece e im-prime novos contornos ao regime do castigo e da educa-ção para a obediência.

Notas1 Utilizo-me aqui dos termos território: noção jurídico-política; domínio: no-ção jurídico-política e campo: noção econômico-política, a partir da sugestãofornecida por Michel Foucault. Isto não significa se voltar para uma reflexãofilosófico-jurídica, mas a uma análise histórico-política travada no espaço, dis-tante, tanto do recorte de períodos, etapas e idades temporais, quanto de umahermenêutica do direito. “A descrição espacializante dos fatos discursivos de-semboca na análise dos efeitos de poder que lhe estão ligados.” Michel Fou-cault. “Sobre a geografia” in Roberto Machado (Org. e trad.) Microfísica dopoder. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1979, p.159.2 William Godwin. “De crimes e punições”, Tradução de Maria Abramo Caldei-ra Brant, in Verve. São Paulo, Nu-Sol, vol. 5, 2004, pp. 11-86.3 Pierre-Joseph Proudhon. Sistema das contradições econômicas ou Filosofia da misé-ria. Tradução de José Carlos Morel. São Paulo, Ícone, tomo I, p. 427.4 Voltaire. Tratado sobre a tolerância: a propósito da morte de Jean Calas. Tradução dePaulo Neves. São Paulo, Martins Fontes, 1999.5 John Locke. “Carta acerca da tolerância”, tradução de Anoir Aiex in Locke.São Paulo, Abril Cultural, Col. Os pensadores, 1983.6 John Stuart Mill. Sobre a liberdade. Tradução de Alberto da Rocha Barros.Petrópolis, Vozes, 1991.

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7 Immanuel Kant. “Resposta à pergunta o que é ´esclarecimento`?” in TextosSeletos. Tradução de Raimundo Vier e Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis,Vozes, 1974; A paz perpétua e outros opúsculos. Lisboa, Edições 70, 1990.8 A este respeito ver Salete Oliveira. “A grandiloqüência da tolerância, direitose alguns exercícios itinerários” in Verve. São Paulo, Nu-Sol, vol. 8, 2005, pp.276-389; “Tolerar, julgar, abolir” in Edson Passetti e Salete Oliveira (orgs.). Atolerância e o intempestivo. São Paulo, Ateliê Editorial, 2005, pp. 191-201; “Tribu-nal, fragmento mínimo, palavra infame” in Edson Passetti (org.). Kafka, Fou-cault: sem mdos. São Paulo, Ateliê Editorial, 2004, pp. 115-122.9 Daniel Lins. “Tolerância ou imagem do pensamento?” in Edson Passetti eSalete Oliveira (orgs.), 2005, op. cit., pp.19-33.10 Idem, p. 24-25.11 Ibidem, p. 20.12 William Godwin, 2004, op. cit.; Pierre-Joseph Proudhon. Do princípio federa-tivo. Tradução de Francisco Trindade. São Paulo, Nu-Sol & Imaginário, 2001.13 Michel Foucault. Em defesa da sociedade: curso no Collége de France (1975-1976).Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo, Martins Fontes, 1999,14 “Declaração Universal dos Direitos Humanos”. in Zélia Maria Mendes Bia-soli-Alves e Roseli Fischmann (orgs.). Crianças e adolescentes: construindo umacultura da tolerância. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 2001, pp.197-198.15 Idem, p. 198.16 Ibidem, p. 199.17 Ibidem, p. 199.18 Voltaire, ao defender o zelo da humanidade, afirmava que devido à fraquezahumana não só a religião se faz necessária como a educação cumpre papel opapel de desenvolvimento da tolerância que se fundamenta em um valor supre-mo: “o bem físico e moral da sociedade”. Trata-se da prevenção ao intolerávelpromovida pelo fortalecimento da razão como meio indispensável para a inter-venção de um julgamento justo. Voltaire, op. cit., 1999.19 “Declaração Universal dos Direitos Humanos”, 2001, op. cit., pp. 199-200.20 A este respeito ver Edson Passetti. Anarquismos e sociedade de controle. SãoPaulo, Cortez, 2003; Silvana Tótora. “Devires minoritários: um incômodo” inVerve. São Paulo, Nu-Sol, vol. 6, 2004.21 No âmbito internacional coaduna-se com as diretrizes atuais da ONU para-metradas pela Declaração sobre os Princípios da Tolerância, promulgada pelaUNESCO em 1995, implementadas em redes regionais, nacionais e locais por

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meio da promoção de projetos e políticas de educação, com vistas ao combateda violência e aumento da segurança. A este respeito ver Zélia Maria MendesBiasoli-Alves e Roseli Fischmann (orgs.), 2001, op. cit.; Regina Novaes e PauloVannuchi (orgs.). Juventude e sociedade: trabalho, educação e cidadania. São Paulo,Instituto Cidadania £ Editora Fundação Perseu Abramo, 2004.22 Guilherme Corrêa. Educação, comunicação e anarquia. Procedências da sociedade decontrole no Brasil. São Paulo, Cortez, 2006.23 “Declaração Universal dos Direitos Humanos”, 2001, op. cit., p. 203.24 Idem, p. 201.25 Ibidem, pp. 203-204.

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RESUMO

Itinerários da conquista da tolerância, na política moderna, anali-sados a partir de trechos da Declaração Universal dos DireitosHumanos de 1948. Os efeitos políticos do investimento na obedi-ência vão da educação ao julgamento.

Palavras-chave: Tolerância, declarações universais, abolicionismopenal.

ABSTRACT

Itineraries of the conquest of tolerance, in modern politics, areanalyzed from fragments of the 1948 Universal Declaration of HumanRights. The political effects of the investment on obedience areperceived from education to judgment.

Keywords: Tolerance, universal declarations, penal abolitionism.

Recebido para publicação em 6 de fevereiro de 2006 e confirmadoem 13 de março de 2006.

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a “ordem” do estado, as peculiaridadeshumanas e anarquia!

edgar rodrigues*

Após ler alguns verbetes do meu dicionário e de ou-tros que tive a curiosidade de conhecer, pude resumir,e não fui só eu, que “anarquia é falta de governo consti-tuído: desordem!”

Ora, esta falta de “ordem” atribuída aos anarquistas,para o antigo republicano espanhol Alfredo Calderón,quem falou no parlamento espanhol e também escre-veu, é obra do governo, do Estado!

Disse-o com toda a clareza, no começo do século XX:“O Estado mata! É homicida, é assassino, mata por pre-meditação, com aleivosia, com ferocidade. Mata semcompaixão, sem obcecação, sem arrebatamento — porconveniência, por egoísmo, por cálculo. O Estado rouba.Casta sem conta nem medidas, e, para pagar as suas

* Vivendo no Rio de Janeiro desde 1951, Edgar Rodrigues é um dos maisimportantes arquivistas do movimento anarquista no Brasil e em Portugal.Suas análises, entrevistas e compilações de documentos distribuem-se em maisde quarenta livros e cerca de mil artigos.

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dívidas, enterra as mãos nos bolsos dos contribuintes. OEstado joga. É empresário, é banqueiro, é aliciador. OEstado folga. A ociosidade, mãe de todos os vícios, é suapredileta. [...] Na vida oficial tudo é mentira: mentira opacto constitucional, mentira a lei fundamental do Es-tado, mentira a folha oficial, mentira a representaçãoparlamentar, mentira os atos da maioria, mentira aspromessas, mentira os programas, mentira a adesão,mentira a disciplina, mentira o orçamento... Há menti-ra representativa, administrativa, eclesiástica, militar,naval, acadêmica, jurídica, penal, bancária, bolsista,aristocrática, democrática, moral, estética, higiênica ealimentícia... Todo o Estado é uma grande mistificação,uma burla colossal...”1

Antes e depois do retrato da desordem feito pelo antigopolítico republicano espanhol, a história não oficial, de-monstra, sem precisarmos de lentes de aumento, queartesãos e trabalhadores das cidades e dos campos fo-ram, e são, vilmente explorados e escravizados há sé-culos. Os governantes reduziram ao silêncio os produto-res de riquezas. A burguesia que “veio” substituir o feu-dalismo, para assegurar “suas conquistas”, organizouexércitos com gente deserdada, sob o comando de “seusnobres”, esmagou o próprio povo, usando os jovens filhosdo povo, a quem armou para matar seus irmãos, seuspais, sempre que pleiteavam, e pleiteiam, alguma me-lhoria social. E foi essa burguesia “nova” quem saiu vi-toriosa nas revoluções Francesa, Inglesa e nas de ou-tros países, usando a boa-fé dos ingênuos, para dominaros produtores de riquezas que lhes “oferecem” as mãos(dos filhos) armadas para matar seus irmãos trabalha-dores.

Foram, e são, esses governantes, que para manter a“ordem”, a deles, nos 3357 anos, entre 1500 antes donazareno até ao final do século XIX, deflagraram 3130

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anos de guerras, contra 227 anos de paz.2 E de 1900 a1980, também para manter a “ordem”, com as mãos dosfilhos dos operários cujos pais e irmãos fabricaram asarmas, provocaram 154 guerras, conflitos armados einvasões, com milhões de mortos, mutilados, órfãos,neuróticos, casas e plantações destruídas.3

Em contrapartida, para os antigos pensadores e filó-sofos, o anarquismo nunca declarou guerras, nem é uma“idéia nova, data de muito antes da nossa era”. Temsuas raízes no pensamento egípcio,4 hindu e chinês deConfúcio, Mo Ti, Chung Tse e Lao Tse. Este último filó-sofo antecedeu em 500 anos a Cristo, e mereceu notado escritor Victor Garcia:5 “Quando estudamos a filoso-fia chinesa, apoiando-nos em palavras de força, como ade Carrington Goordrich, a de Will Durant e a de TsuiChi, podemos observar como todos estes escritores nãoregateavam elogios e afirmavam que tanto Lao Tse, comoMo Ti, Hsiin Tse e Chuang Tse, todos eles, projetaram opensamento libertário de que se nutriram as geraçõesvindouras. Não se trata, pois, de apoiar-se no pensamen-to ácrata de um Paul Gille ou de um Elisée Reclus, que,logicamente, destacam esta trajetória anarquista de umramo do pensamento chinês. Carrington Goodrich, WillDurant e Tsui Chi são historiadores imparciais, aber-tamente convencidos da necessidade do Estado em todaa sociedade. É sua honestidade profissional que os obri-ga a não silenciar esta importante corrente libertáriaque inicia Lao Tse, inclusive antes do próprio Confú-cio.”

Não é estranho aos anarquistas o pensamento grego,e principalmente o hebreu. Este último, embora religio-so e autocrático, envolve idéias de igualdade e ajudamútua, chegando a profetizar uma sociedade integral,anárquica. O professor Aníbal Vaz de Melo, em seu livroCristo, o Maior dos Anarquistas, defende a seguinte tese:

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“A anarquia que foi um sonho generoso, uma utopia, umanseio de amor e de fraternidade imaginado e sonhadopela bondade santa de um Reclus, de um Bakunin, deum Malatesta e de um Kropotkin apresenta, numa sériede seus adeptos, um gigante anarquista — Cristo.

Galileu foi, na realidade, o maior dos anarquistas.

Cristo já era anarquista. Lançou fora e longe todas asmuletas religiosas, combateu, energicamente, os credospolíticos de sua época, colocou-os fora da órbita do Estado,indo de encontro às leis escritas, aos usos, costumes,tradições e firmou a grandeza (da personalidade humana— livre) inteiramente livre, de todas as peias (trata-se deuma antiga forma de prender as pessoas pelos pés comcordas) e algemas do formalismo social.

A Anarquia será a verdadeira forma da futura organi-zação social, com as suas bases e raízes no amor, na bon-dade e na fraternidade.”6

Na Idade Média, os adamistas, seita herética popularda Boêmia, proclamavam a abolição da propriedade indi-vidual e estabeleciam a comunidade de bens.

Não é menos significativo o exemplo da seita cristãdos carpocráticos, em Alexandria: “A comunidade — es-creve Max Beer — e as igualdades são a base da justiçade Deus. No universo tudo é comum. O céu se estendeigualmente em todas as direções e cobre a terra do mes-mo modo. A luz banha igualmente todos os seres. A natu-reza proporciona seus benefícios a todos os organismosvivos. O próprio Deus deu tudo a todos.”7 E não diz que aTerra tivesse divisas, fronteiras, fosse retalhada ou foidoada pela natureza a algum político. À luz da geografiauniversal, da verdade histórica, o planeta Terra, obra danatureza, não foi doado individualmente ou retalhado.

Na época — não se ignora isso —, não existiam topó-grafos, desenhistas ou arquitetos para dividir em lotes

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a Terra, e nem tabeliões para fazer escrituras, deter-minando a quem seriam distribuídos os “países” ou aspropriedades individuais. Tudo isso é obra da ambiçãohumana, das guerras e dos vencedores, que impediramos vencidos de possuir sua parte em nosso planeta.

“As legislações dos povos (egípcios, hindus e judeus)como a do sábio Minos, em Creta, obedeciam igualmen-te ao princípio do Comunismo.”8

Pitágoras fundou também, em Cretona, na Itália,uma sociedade destinada a estudar e a praticar os prin-cípios da igualdade, fraternidade e comunidade. ParaPlatão (450 anos antes do nazareno), “(...) em qualquerparte que isto se realize ou deva realizar-se é precisoque as riquezas sejam comuns, e que se empregue omaior cuidado em separar do comércio da vida até o nomede propriedade.”9

“O europeu do século XII — escreve Kropotkin — eraessencialmente federalista. Homem de livre iniciativae de livre entendimento, partidário acérrimo de uniõesdesejadas e livremente aceitas, ele via, em si próprio, oponto de partida para toda a sociedade.”10

Em nome desse belo entendimento da igualdade li-bertária, das comunidades de iguais, G. Etiévant, desa-fiando os juízes durante seu julgamento no Tribunal deVersalhes, em Julho de 1892, disse: “Desde os neófitosaté os homens, todos os seres possuem órgãos mais oumenos aperfeiçoados para deles se servirem. Todos osseres têm, então, o direito de se utilizar dos seus ór-gãos, de acordo com a vontade da mãe natureza. Assim,com nossas pernas, temos o direito a todo o espaço quepodermos percorrer; com nossos pulmões a todo o ar quepudermos respirar; pelo nosso estômago a todo o alimentoque pudermos digerir; pela parte do nosso cérebro a tudoque pudermos pensar, ou assimilar nos pensamentosdos que nos cercam; pela nossa faculdade e elocução a

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tudo que pudermos dizer; pelos nossos ouvidos a tudo quepudermos escutar. E, temos direito a tudo isso porquetemos direito à vida e tudo isto constitui a vida. São es-tes os verdadeiros direitos do homem! Ninguém precisadecretá-los: eles existem como existe o sol!”11

Étienne Cabet, no livro Rumo ao Icário; Lord Lytton, emThe coming race; Edward Bellamy, em Looking Backward,2000 to 1887; William Morris, em Notícias de lugar ne-nhum; Eugene Richter, Pictures of a Socialistic Future;Mably, Barbenf, Simon Linguet, Brissot, entre outros,também ajudaram a quebrar as armaduras do capitalis-mo, formando os precursores das idéias libertárias a queWilliam Godwin e Proudhon deram forma doutrinária, tor-nando o anarquismo uma filosofia de vida, resgatando abandeira da Anarquia, passando-a de mão em mão paraos anarquistas que lhe sucederam até aos nossos dias.

É muito construtiva, e educativa, a definição e a in-terpretação do velho pastor protestante americano, reve-rendo J. C. Kimball, quando pergunta e responde: “O queé anarquia? Que doutrina é essa pela qual os seus parti-dários sacrificam as suas vidas, e por que tantos outros,entre eles os mais profundos pensadores deste século,estão dispostos a morrer [o texto do pastor Kimball foi es-crito e divulgado durante o enforcamento dos “mártiresde Chicago”, 1887, nos EUA], propagando-a em todas aspartes do mundo civilizado? É forçoso que haja nessa dou-trina alguma coisa digna de estudo.

Crê-se geralmente que a Anarquia é uma sociedadeem completo estado de confusão, desordem e violência;um Estado em que pequenas facções fazem entre si umaguerra de supremacia, resultando, hoje, umas vitorio-sas, amanhã, outras; um Estado no qual se destinam to-das as garantias de vida e de propriedade; um Estado,enfim em que cada um faça o que lhe pereça, julgando sópor um critério torpe.

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A palavra Anarquia quer dizer literalmente sem go-verno (não sem orientação nem ordem), como a enten-dem os verdadeiros anarquistas; um Estado social ondenão haja poder autoritário que legisle a ação dos ho-mens. É das leis humanas e não das leis naturais queos anarquistas procuram libertar-se; são os livros de leisque eles intentam destruir, e não a sociedade. Longe dedesejarem um estado de confusão, desordem e violên-cia, os anarquistas aspiram a conquistar e a assegurara paz e a ordem.

Os anarquistas crêem — e é verdade — que a atualconfusão, desordem e violência que flagelam a socieda-de, são devidas à interposição dos governos artificiososcom as leis naturais; e que o único meio de se veremlivres destes males é se desligarem dessa causa artifi-cial, humana e necessariamente imperfeita. A nature-za, dizem eles, em todas as suas relações, opera unica-mente pelo impulso das leis interiores.

Nos prados, as flores e as ervas crescem juntas, emagradável consórcio, e não têm livros de leis; os pás-saros na gruta, as inúmeras espécies de peixes no mar,os castores fabricando as suas habitações, as formigas— perfeitas sociedades na sua defesa — não escolhemlegisladores, nem mantém governos, nem juízes, nemexércitos, nem polícias; não, nada disto. Regem-se pe-las suas leis naturais. E se estes seres podem passarsem leis artificiais, por que é que o homem, com maisalto grau de inteligência, há de submeter-se a essa dis-posição arbitrária e opressora? Nesse sentido os discí-pulos da Anarquia não combatem a sociedade, antes pelocontrário, são socialistas, na mais lata acepção da pala-vra. Eles consideram o homem como um ser natural esocial, a quem, se se deixasse em completa liberdade,por suas próprias intuições constituiria uma organiza-ção social mais perfeita que nenhuma das que o gênio

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humano possa inventar; um organismo igual ao corpohumano, no qual todos os membros teriam o seu lugar eocupação, e todos juntos cooperariam harmonicamen-te.”12

Os anarquistas são irredutíveis inimigos da autori-dade política: do Estado; da autoridade econômica: docapitalismo; da autoridade moral, intelectual: da reli-gião, do patrimônio e da moral oficial.13 Advogam a li-berdade plena por compreender que sem esta não sepode entender a anarquia.

Segundo o anarquista romeno Eugen Relgis, “A Li-berdade é uma energia que resulta de aspirações e rea-lidades humanas, de suas potências conscientes, pro-gressivas e combativas, segundo as estruturas das or-ganizações sociais. Há uma energética de liberdade quese aprende. A liberdade interior que se capta, se dirige,se conquista, se defende e se cultiva, já que ela é essaúltima expressão, cultura.”

O anarquista é, portanto, uma pessoa partidária daanarquia. Cidadão contrário à desigualdade existentena atual sociedade mercantilista, bélica, imperialista eexploradora, que subjuga os homens em prejuízo da feli-cidade humana!

É um propagandista de um mundo novo, onde o saber,o bem-estar, a beleza, a franqueza, a justiça e a frater-nidade são necessidades permanentes, tratadas e cul-tivadas como a saúde, a vida do ser humano. O anar-quista defende o livre acordo, a ajuda mútua, a coexis-tência harmoniosa, a igualdade de direitos, deveres,responsabilidades, de oportunidades e possibilidades,independente da idade, força física, diplomas, aparên-cia, nível de inteligência, cor, sexo, etnias.

O elemento mais importante a desenvolver, a pre-servar para o anarquista é o ser humano. Por isso advo-

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ga a liberdade integral (física, psíquica, econômica, re-ligiosa, política, etc.) como meio de se dar ao homem odireito e a possibilidade de desenvolver todas as suascapacidades, potencialidades, aptidões, sem temores,restrições, cerceamentos ou frustrações.

Para o anarquista existe um só homem: a humani-dade; uma só nação: o universo!

Se tivermos de acusar o anarquista de alguma coisa,seria certamente de ser um obstinado defensor de umasociedade de iguais, sociedade que uma minoria — parapoder continuar vivendo e acumular as riquezas produ-zidas pela maioria — impede que se realize. E não dedesejar a desordem, em meio à qual se recusa a convi-ver, e a qual contesta e combate com o anarquismo.

E para não se atribuir aos anarquistas ou ao anar-quismo o poder de destruição armazenado pelos gover-nantes, pelo Estado e suas bombas, vamos sintetizá-lo.Anarquismo é a doutrina dos anarquistas — a nova or-dem social — baseada na liberdade, na qual a produção,o consumo e a educação e instrução devem satisfazeras necessidades de cada um, de todos os seres huma-nos. Os anarquistas (independente das inúmeras pecu-liaridades que respeitarão e ajudarão a superar suaslimitações, quando for o caso) propõem-se a substituir aorganização obrigatória pela organização voluntária, pelolivre acordo, espontaneamente firmado e eternamentedissolúvel, sempre que se faça necessário, não ligandoos homens senão pela comunidade de interesses, ne-cessidades e pela reciprocidade de conseqüências, afi-nidades e simpatias. O anarquismo, filosofia de vida dosanarquistas, profundamente humanitarista e de liber-dade plena (física e psíquica), não aceita que o homemprecise ser governado, que por costume se tornou es-cravo, razão pela qual lhe parece irracional, utópico, umaverdadeira calamidade pública deixar de sê-lo.

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O hábito de sofrer a autoridade dos chefes, dos gover-nantes e seus mandões auxiliares condicionou o indi-víduo ao longo dos séculos, deformou-o naquilo que eletem de mais importante: a iniciativa, a razão, a inteli-gência, o desejo de ser livre, tirou-lhe a confiança em simesmo!

O idealista ácrata vê em cada ser humano um cola-borador em potencial e procura revelá-lo pela educação,pelo ensino racionalista e pelo exemplo.

Não se ocupa exclusivamente das lutas de classes,não vê intelectuais ou operários como seres superioresou inferiores, diferentes; não combate os patrões por serpatrões! Sua meta é o ser humano no seu todo, por vernele o elemento mais importante para tornar a velhasociedade um mundo novo!

Suas idéias ou doutrinas pretendem ajudar a des-pertar e desenvolver, em cada ser humano, toda as ap-tidões de que é possuidor, seu potencial, fazê-lo desa-brochar!

O anarquista não ignora que cada indivíduo, ao nas-cer, traz disposições psíquicas que, no conjunto, refle-tem as influências atávicas, hereditárias, infiltradas aolongo dos séculos, transmitidas de gerações a gerações,e que esses males não se curam com a marginalização,ou pancadas no exterior das crianças ou castigos físi-cos. Do meio em que nasce e cresce, do ambiente —dentro e fora do lar — em que viveu ou vive os primeirosanos de vida, dependerá a formação do seu caráter, eeste guiará seus atos durante sua existência: será suapersonalidade.

A educação, o temperamento, a herança genética,as influências naturais do meio que cerca as crianças,impõem-lhe formas de vida, juntamente com as influ-ências sociais do meio, e determinarão o seu compor-

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tamento positivo, negativo ou artificial. O ser humano éfruto da sociedade em que viveram seus antepassados,do meio onde nasceu, dos padrões religiosos, políticos,econômicos, sociais, culturais, opressivos e repressivospredominantes, do ambiente onde formou sua personali-dade.

Logo, não é válida a concepção de que o poder e ogoverno evitam, pela sua existência e “fiscalização”, atosanti-sociais e violentos.

O anarquista demonstra que atos anti-sociais e vio-lentos são o resultado da organização social baseada nasdesigualdades de condições, carências, níveis de vida,políticas, terrorismos, punições! O roubo, o atentado, oassassinato contra pessoas contra exploradores ou abas-tados, resultam dos sistemas vividos que impedem umaimensa maioria de pessoas trabalhadoras, como nós, desatisfazer todas as suas necessidades! Têm suas raízesna propriedade privada, suas origens no “direito divino”de uns poucos, que estragaram aquilo de que carecemmilhões de seres humanos, em geral, os produtores deriquezas durante oito horas ou mais diariamente. Equando o impulso do temperamento é demasiado forte,quando a necessidade ou a revolta fala mais alto, a in-justiça grita primeiro, o indivíduo “infringe” as leis arti-ficiais, estudadas, mentalizadas, escritas e aprovadaspor uns poucos para submeter muitos à obediência, vi-sando consagrar a espoliação do homem pelo homem. E,na voz de seus administradores, são considerados e qua-lificados tais atos como anti-sociais, quando a verdadei-ra causa reside exatamente na situação desigual eopressiva, conduzida e sustentada pelos mandões, go-vernantes e seus parasitas, encarregados de aparecerna frente como amortecedores, pára-choques. Numasociedade em que cada indivíduo tenha a faculdade dese desenvolver livre, integralmente, sem carências,

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esses atos certamente não poderão ser cometidos, dadaa ausência das razões e motivos que hoje os determi-nam (salvo os casos raríssimos que são de origem mé-dica, psiquiátrica).

Por outro lado, está provado cientificamente que den-tro da atual sociedade não existe nenhum meio impe-ditivo ou repressivo que evite que tais atos tenhamlugar, pois é em seu seio que germinaram os mias-mas que correm o sistema e chegam ao exterior deseus porões. A violência imposta na sociedade gera aviolência individual, cada vez em maior escala. E fren-te a essa anomalia do poder público são chamados ju-risconsultos, para dar opiniões e apresentar soluções,sem se darem conta de que o comprometimento morale material do homem depende, exclusivamente, dascondições de “saúde do meio”, das hereditariedades,da educação a que foi e é submetido! E por último, da“ordem” e da exploração do governo, do Estado!

O homem infringe leis penais feitas pelo homempara dominar seus semelhantes, acreditando sempreque pode escapar à punição de seu ato. Comete delitosanti-sociais, e tem como professores os legisladores oupunidores — porque sua vontade é incapaz de impediros motivos que o impeliram a cometê-los. A insufici-ência de sua vontade é devida à educação recebida, aomeio freqüentado, faz parte dos seus vícios orgânicos,hereditários, das deformações de caráter que lhe fo-ram impostas pela sociedade que o esfomeia e o con-diciona. E por mais violentas que tais leis artificiais se-jam, são sempre impotentes para prevenir e evitar os de-litos e os crimes! E a violência de baixo cresce na proporçãoe intensidade da violência e a exploração de cima!

Por isso, a gravidade de tais atos reflete a incompetên-cia, é a própria negação da validade das leis, é a autocon-denação do Estado! Quando a autoridade irracional pensa

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acabar com a necessidade, a usurpação que ela mesmarepresenta e defende, contrariando o direito das pessoas,torna-se impotente para cumprir sua pretendida missão,e se declara fatalidade na realidade!

O homem não é uma máquina que se ajusta por meiode botões, tem necessidades físicas, psicológicas, alimen-tares, educacionais, emocionais, possui um cérebro quepensa!

E o anarquismo possui a química capaz de “lapidar” aeducação dos seres humanos. Os que sabem mais, detémmais conhecimentos, ajudarão a elevar os conhecimen-tos dos que sabem menos, a preparar os seus companhei-ros em vez de explorá-los ou colocar-se no topo da pirâmi-de social, como acontece nas sociedades política, capita-lista ou bolchevista hoje.

Um ser humano vale um ser humano: os anarquistassabem isso! E na medida em que os anarquistas, intelec-tuais e operários, se integrarem, independentemente dasferramentas que cada um use, no meio das peculiarida-des com que terão de conviver, saberão elevar os menospreparados, acabando com as hierarquias, igualando-setodos em deveres, direitos e possibilidades. Uma comuni-dade de iguais não quer dizer que têm de ser todos domesmo tamanho, possuir as mesmas capacidades inte-lectuais ou profissionais: as diversidades humanas fazemparte de uma sociedade que os anarquistas pretendemtornar um novo mundo, onde cada um de seus membrossó se sentirá feliz com a felicidade de todos.

O corpo humano possui milhões de células, e estas fun-cionam livremente, cada uma realizando suas funções semse atropelar, sem precisar de chefes para dizer a cada umao que deve fazer, sem leis ou autoridades para obrigá-las aexercer suas tarefas, dizer quem é quem. E se essas “má-quinas humanas” impulsionadas pelos milhões de célu-

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las realizam trabalhos manuais e intelectuais, capazesde produzir a felicidade individualmente, de cada um denós, por que achamos impossível transformar essa felici-dade em um bem de todos, em Anarquia?

Juntando todas as experiências e interpretações doanarquismo, da idéia ou da filosofia de vida dos pensado-res que evoco aqui, das mais distintas regiões e culturasdo planeta, somadas com a visão do autor, chego à conclu-são de que se as células que nos movem conseguem rea-lizar um sábio e gigantesco trabalho sem chefes, nós, quetemos o privilégio de as possuir e ainda um cérebro parapensar, optar, decidir pelo melhor caminho, porque nãosomos capazes de fazer a felicidade humana, pela anar-quia?

Ao concluir minha pesquisa e divagações, penso queuma Declaração de Princípios ajudaria a entender a novamecânica, a anarquia. Declaração provisória, entenda-se,por ser individual e ainda por ser o anarquismo uma filo-sofia de vida evolutiva, certamente atualizada todos os dias,até onde a ciência ao serviço da humanidade e a inteli-gência humana puderem elevar cada componente da so-ciedade ácrata.

1: A anarquia é um sistema social à margem da igrejae do Estado, livre da influência de poderes ou forças políti-cas, democráticas ou autoritárias: econômicas ou religio-sas, e não aceita lideres.

O anarquismo é um corpo de doutrinas científico-filo-sóficas, econômicas e sociais, que estabelecem as basesda vida de relação, da harmonia social, em substituiçãoaos presentes sistemas de desequilíbrio social que deter-minam o caos, as violências, tragédias e vicissitudes paraa humanidade.

2: Em religião, o anarquismo proclama o direito dolivre exame, a emancipação humana, libertando o inte-

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lecto de todas as concepções, teológicas ou metafísicas,do misticismo e da superstição, dos poderes teocráticosdas instituições eclesiásticas.

3: Em política, o anarquismo ignora o Estado, bemcomo todas as formas de governo, domínio do homemsobre o homem.

O anarquismo visa a extinção de todas as institui-ções jurídicas, políticas, militares e policiais, leis, códi-gos, elementos de opressão, de repressão, desapareci-mentos de privilégios, casta e classe. A sociedade por simesma terá a responsabilidade da ordem pública, a ga-rantia dos direitos individuais ou coletivos.

4: O anarquismo quer a supressão do sistema do sa-lário, do patronato e do capitalismo. O poder político daigreja, e do capitalismo são estados de guerra, não ha-vendo lugar a entendimento de espécie alguma.

O anarquismo quer a supressão da propriedade pri-vada, individual, de grupo, empresa, Estado, igreja, so-ciedade. Um regime em que cada indivíduo indistinta-mente almeje a posse da riqueza natural ou social quelhe corresponda como parte que é da nossa espécie.Dentro deste princípio federalista, o indivíduo se har-moniza para a realização do socialismo anarquista inte-gral.

5: O anarquismo, doutrina revolucionária, é, ao mes-mo tempo, libertária, combatendo todas as formas de coa-ção, partam da igreja, do Estado, ou mesmo de qualquergrupo ou indivíduo.

6: A filosofia anarquista preconiza a igualdade e a su-pressão de todas as formas de hierarquia religiosa, políti-ca, econômica, social e cultural.

7: No que respeita à fraternidade, o anarquismo pro-põe-se, para chegar à realização dessa aspiração huma-

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na, a supressão das diferenças injustas dos interesseseconômicos e políticos, e a supressão das fronteiras políti-cas, eliminando os preconceitos nacionalistas e patrióti-cos, dos quais os dirigentes se servem para oprimir e ex-plorar a humanidade.

8: Tratamos aqui somente do sindicalismo revolucio-nário ou de resistência, que age com os próprios meiosdiretamente, na luta pelo melhoramento econômico dosoperários sindicalizados, ou quando muito, das classes emque mais se evidencia a organização sindical.

O sindicato, órgão específico de defesa dos interessesprofissionais ou corporativos e de resistência à desenfre-ada exploração patronal, agindo, porém, nos limites do sis-tema do salário e, ao mesmo tempo, nos acordos salariais,não é susceptível de transformação no sentido de subver-são do regime econômico, de modo a estabelecer uma novadistribuição da riqueza ou inaugurar uma nova economia,capaz de facultar a todos os seres humanos, de maneiraeqüitativa, os elementos indispensáveis à própria subsis-tência.

É, pois, o sindicalismo um meio de luta dos trabalhado-res, que perpetua a desigualdade (aumento de salários,aumento do custo de vida), salvo quando pensa na eman-cipação do proletariado, fato que exige projeções franca-mente revolucionárias. A atitude dos anarquistas em faceao sindicalismo deve consistir em apoiar, em suas lutas,os operários sindicalizados, com propaganda das idéiasrevolucionárias, anarquistas, da implantação de uma so-ciedade nova, de igualdade social.

9: No verdadeiro terreno da propaganda e da ação dosácratas está a criação de agrupações especificamenteanarquistas. Deste ponto é que a sua ação e atividade deveirradiar para toda parte.

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O anarquismo, longe de popularizar-se e diluir-seem torno de elementos estranhos, perdendo de vistaa base de onde emerge, deve, pelo contrário, ser a basesobre a qual se apóiam as forças da igualdade e da liberda-de. Os anarquistas, atuando em todos os campos onde pos-sam agir, estarão em toda parte onde haja movimento,não se deixando arrastar pelas influências conservadorase autoritárias.

Por sua vez, às agrupações anarquistas cabe desenvol-ver uma atividade intensa e permanente, de modo a man-ter vivo, nos militantes, o espírito idealista e revolucioná-rio.

A obra dos militantes e agrupações anarquistas deveser feita sem reticências, de forma que crie homens depensamento esclarecido, com princípios definidos e con-vicções profundas, senhores da filosofia e da ética anar-quista.

10: O Comitê dos Grupos Anarquistas, considerando anecessidade de cada momento, sugere a criação de ummovimento organizado, das forças anarquistas, as quaisdevem estar preparadas, o mais possível, para realizar comeficiência o advento da sociedade anarquista.

Para concretizar essa aspiração, propõe-se a adoção deum método de organização, pois está demonstrada a evi-dência, pelos fatos históricos das sociedades humanas, deque os que vencem, em qualquer terreno de luta, não sãoos que têm o direito e a razão de seu lado, mas os maiscoesos, os mais bem organizados, os que têm melhoresmétodos de organização e táticas de luta.

Assim, acredito na necessidade de: a) criar, em todasas localidades cuja situação geográfica seja favorável, umcomitê local para a relação entre os grupos ali existentes;b) entre os vários comitês locais da mesma região, criar ocomitê regional ou federação; c) entre os comitês regio-

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nais ou federações, criar o comitê federal ou confedera-ção, cuja localização deve ser estabelecida em um con-gresso; d) provisoriamente estes comitês tomarão para sio encargo de se relacionar com todos os elementos do país,para a realização prática das bases acima enunciadas efuturos congressos, onde se avaliará o que foi feito, o quedeu certo e o que terá de ser corrigido: atualidade em de-cisão coletiva.

Notas1 Alfredo Calderón desenha o governo-Estado como pai-mãe da desordem! Provaduplamente que seus servidores putrificam tudo em que botam as mãos!2 Enciclopédia Universalis Mumdaneum. Bruxelas, Paul Otlet.3 ONU – Relatório da Comissão Palme, Independent Commision on Disarmamentand Security Issues. Common Security, 1982.4 A primeira greve no Egito data de 1170 aC. Benjamin Cano Ruiz. ¿Qué es elanarquismo? México, Nuevo tiempo, 1985.5 Victor Garcia. Escarceos sobre China. México, Tierra y Libertad, 1962, e La sabidu-ría oriental. México, Tierra y Libertad, 1985. Robert Scalapio. Anarquism in China.Seattle, University Washington Press, 1972.6 Aníbal Vaz de Mello. Cristo, o maior dos Anarquistas. São Paulo, Editora Piratininga,1956. Everardo Dias, espanhol de nascimento, maçom, anti-clerical, em seu opús-culo Cristo era Anarquista, São Paulo, 1919, também tinha a mesma opinião. Sómudou depois que se tornou comunista, sogro de Astrojildo Pereira, dirigernte doP.C.B..7 Max Beer. História do Socialismo e das Lutas Sociais. São Paulo, Editora Expres-são Popular, 1968. Edgar Rodrigues. Universo Ácrata, Santa Catarina, EditoraInsular, 1999.8 Henrique Martins. Socialismo. Porto, Portugal, 1912, 3 vols.9 Idem.10

10 Piotr Kropotkin. O Estado e o seu papel histórico. Portugal, Porto, 1922.11 G. Etiévant. “Declaração de Princípios Anarquistas – Comunistas” in ARevolta. Portugal, Lisboa, 1893.12 Edgar Rodrigues. Jornal de Almada, 8-2. Portugal, 1977.13 O autor diferencia a autoridade racional, do saber, da irracionalidade, daforça, do poder!

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RESUMO

Apresentação de levantamento realizado pelo autor acerca das in-terpretações dadas à palavra anarquia. Nega os que afirmam queesta signifique desordem e afirma a anarquia como única possibi-lidade de realização das aspirações humanas de felicidade, liber-dade, igualdade e fraternidade. Ao final, apresenta uma declara-ção de princípios anarquistas, contendo dez pontos, como resul-tado de suas pesquisas e reflexões.

Palavras-chave: anarco-cristianismo, primitivismo, história das idéi-as anarquistas, anarco-sindicalismo.

ABSTRACT

Presentation of research produced by the author about the inter-pretations given to the word anarchy. Denying those who assertthat this word means disorder, he affirms anarchy as the onlypossibility for realization of human aspirations of happiness, li-berty, equality and fraternity. In the end, he presents a declarati-on of anarchist principles, including ten points, as a result of hisresearches and reflections.

Keywords: anarcho-christianism, primitivism, history of the anar-chist ideas, anarcho-syndicalism.

Recebido para publicação em 2 de fevereiro de 2006 e confirmadoem 3 de março de 2006.

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Uma história do anarquismo: o surgimento...

uma história do anarquismo: osurgimento da federação libertáriaargentina

pablo m. perez*

Nota introdutória por natalia montebello**

Centro da cidade, bairro de Constitución, avenida Bra-sil. A série de demarcações territoriais termina por aqui.A casa da sede de Buenos Aires da Federação LibertáriaArgentina, a FLA, transborda as delimitações e suas me-didas. O espaço projeta-se em múltiplos percursos: dosanarquistas que há mais de 30 anos transitam por ela,dos amigos, dos pesquisadores, dos curiosos, dos desavisa-dos, dos interessados, dos encontros, das invenções, dosconfrontos, dos documentos, dos vestígios... Os movimen-tos se sobrepõem, descrevendo uma descontinuidade que

* É historiador. Faz parte do grupo de trabalho de catalogação, preservação,difusão e pesquisa da Biblioteca Archivo de Estudios Libertarios, BAEL. Coorde-nou a elaboração e edição dos dois catálogos da BAEL lançados até o momen-to.

** Pesquisadora no Nu-Sol e doutoranda no Programa de Estudos Pós-Gradu-ados em Ciências Sociais da PUC/SP.

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afirma e constantemente atualiza um estilo libertário deviver. Não há demarcação onde práticas de liberdade in-ventam o espaço, subvertendo qualquer cristalização ter-ritorial.

Práticas de liberdade emergem de bons encontros, deencontros interessados em ampliar, em potencializar eem atualizar relações livres, insubmissas diante do auto-ritarismo da ordem geral. Se muitas propostas deste oudaquele futuro libertário para todos passaram e passam,entre conversas e publicações, pelo espaço em movimen-to da FLA, também passam, e reverberam, invenções deliberdade que irrompem com a alegria, sempre revolucio-nária, daqueles que se interessam por práticas anarqui-zantes. São os encontros, e nunca o espaço, a possibilida-de de subverter qualquer representatividade sobre a vidade cada um. Surgem assim associações livres, que pres-cindem de um formato que dê voz à vontade: a vontade dosinteressados não ecoa na representação em nome de to-dos, e associações livres não interessam a todos. Interes-sa aqui um deslocamento, que nos aproxima das associa-ções que percorrem a casa da FLA, que a atravessam, adespeito de qualquer representação, sempre ideal, quepossa ser feita de um espaço e mesmo de sua cronologia.A casa, não como território, mas como superfície, e seusrelevos, pela qual, sobre a qual, invenções de liberdadereinventam e subvertem o próprio espaço.

Aqui chegaram e chegam documentos que contammiríades de histórias do anarquismo, ou melhor, de anar-quismos. Revistas, jornais, folhetos, cartas, anotações,cartazes... vêm de 44 países, desde 1890, e são arquivadospelo trabalho autogestionário que se organiza, na casa,desde começos da década de 1990. Inventa-se, então, aBiblioteca Archivo de Estudios Libertarios, BAEL. Pessoasinteressadas em organizar, preservar e disponibilizar aimensa quantidade de material que à casa chega desde

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seu surgimento associaram-se para repetir o gesto, tãocomum no interior do anarquismo, de inventar um espa-ço para o estudo, o debate, a pesquisa, enfim, o movimen-to vital das idéias libertárias. Espaço também de reflexãoe de práticas anarquistas, que descreve, em seu cotidia-no, os princípios da associação livre, que prescinde da hi-erarquia e da centralização e que afirma a participaçãosegundo a vontade de cada um para tanto.

Como grupo autogestionário, a BAEL dispensa os subsí-dios, públicos ou privados, e se desdobra em encontros comoutros arquivos, com outros interessados. Encontros quedesenham um descompasso, uma descontinuidade, e sónisto são uma resposta contundente à produtividade capi-talista e às concessões que a ela se fazem em nome de...em nome do quê? Sem concessões, entretanto, a BAELproduz, apaixonadamente, material de impecável quali-dade acadêmica e, com a mesma qualidade oferece orien-tação aos pesquisadores que a consultam.

Estes pesquisadores, vindos de diversos lugares, tran-sitam pelo galpão de 20 metros de comprimento por 10 delargura que guarda as publicações organizadas por países.Eles não enfrentam os procedimentos burocráticos do quese entende por eficiência, eles se deparam com jovensgenerosos, que os recebem em sua casa, em meio à suavitalidade. Pesquisadores atentos repararão que a vida li-bertária que dá o ritmo ao arquivo, longe de uma produti-vidade linear e eficiente, possibilita a potencialidade: in-ventam-se peças de teatro, conferências, seminários, ofi-cinas, outras associações autogestionárias, outros espaços,outros trabalhos.

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O movimento anarquista argentino, que emerge nasegunda metade do século XIX, cresceu continuamentedurante várias décadas. A formação de clubes culturais,bibliotecas, companhias filodramáticas, escolas e a Federa-ção Operária fizeram do anarquismo a expressão de am-plos setores operários e populares. Milhares de imigran-tes e argentinos silenciados, submetidos a jornadas de tra-balho humilhantes, amontoados em cortiços, encontramum espaço para suas reivindicações. Para eles, não háredenção no céu, mas aqui, no banquete da vida, afirman-do práticas de liberdade, prescindindo de hierarquias oupatrões. Assim vivem, inventando suas próprias respos-tas, desenvolvendo um movimento cultural alternativo,arrancando conquistas nos seus lugares de trabalho. Nãose pode esquecer a passagem de Errico Malatesta, na dé-cada de 1880, ou a de Pietro Gori, em 1900,1 com confe-rências por toda a Argentina e seminário na Faculdade deDireito.2 Ambos imprimem vitalidade ao movimento local.

Mas é em abril de 1902 quando começa a aparecer demaneira mais contundente o anarquismo. Nesta data sedefinem os delegados socialistas da Federação OperáriaArgentina, FOA, e se afirma a Federação Operária Regio-nal Argentina, FORA, tornando-se rapidamente o setormais forte do movimento operário. Paralelamente, no dia23 de novembro, o Estado Argentino sanciona a Lei de Re-sidência, dirigida aos anarquistas, e que os submetem acentenas de detenções e deportações. A ordem conservado-ra não se detém em perseguições, e isto não impede queem 7 de novembro de 1903 apareça La Protesta,3 o maiorjornal anarquista argentino e um dos mais importantesdo mundo.

O anarquismo não deixa de crescer, protagonizandotodos os conflitos sociais e lutas populares daquela pri-meira década do século. As crônicas sobre as enormes

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manifestações de rua o dimensionam como movimentode massas. As classes dirigentes não podem ignorar a pres-são constante e, em 1904, o Ministro do Interior, JoaquínVíctor González, leva um projeto de lei ao Congresso pararestringir a jornada de trabalho a oito horas e efetivar ou-tras demandas operárias; mas, sob pressão dos empresá-rios, a lei não é aprovada. Em 1907 o Congresso cria oDepartamento do Trabalho, uma nova tentativa de agirlegalmente contra um movimento que questiona a ordemestabelecida. Enquanto isso, em 1905, a FORA realiza seuV Congresso, no qual estabelece como princípio o anarco-comunismo, e não apenas o setor operário se reafirma, mastambém se realizam diversas experiências em âmbitosculturais, como a criação das escolas racionalistas, im-pulsionadas por Julio Barcos. Em 1910, La Protesta estáchegando ao seu ápice, passando a ser o único diário anar-quista do mundo que edita também um vespertino, LaBatalla. Mas a vida deste será breve, já que, em junho de1910, em apenas 48 horas, o Congresso aprova uma leirepressiva: a Lei de Defesa Social, provocando o fechamen-to de jornais libertários, e a perseguição, deportação e pri-são de muitos militantes.

Toda a década de 1900 é de crescimento, confrontos,elaboração de projetos e debates internos no movimentoanarquista argentino. Sob seu princípio de liberdade, con-trário à autoridade institucionalizada e à hierarquia, eafirmativo da igualdade, encontram-se diversas expres-sões.4 Estas diferenças podem ser rastreadas nas varia-das publicações editadas no período e, se é verdade que LaProtesta converte-se no porta-voz por excelência do movi-mento, grupos com uma posição diferenciada em relaçãoà organização e ao movimento operário têm sua própriavoz, constituindo um grande leque libertário que não res-ta forças, mas, ao contrário, amplia a proposta e permitechegar aos mais vastos setores da sociedade.

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Qual é o peso dos confrontos sociais, em seu conjun-to, no devir histórico, na construção de uma realidadecotidiana?

Se olharmos para a primeira década do século XX,veremos que do anarquismo surgem muitos projetos querepresentam amplos setores, com uma Federação Ope-rária mais forte que a socialista União Geral dos Traba-lhadores, UGT, com lutas que obrigam o Estado a darimportância à problemática social.

Com quanto contribuiu a indomável atitude anarquis-ta para a queda da ordem conservadora e para a aberturada representação política? O anarquismo, sem o propor,alheio a acertos parlamentares e resistente à políticaburguesa, talvez pusesse contra a parede a velha formado Estado, aquela que não conseguiu mais se abrir eincorporar novos setores, mostrar-se como representan-te de todos, incluir as novas vozes, reconhecer uma novavoz que falava, rangia, e reclamava cuja língua era in-ventada no movimento libertário. Mas, para poder abrirespaço, o Estado devia oferecer a ilusão da igualdade:devia construir cidadãos argentinos. Frente ao Estadoconservador não só estavam os anarquistas, mas tam-bém radicais e socialistas. Entretanto, resulta inegávela incidência dos anarquistas na vida política do país. Osanarquistas não lutavam pela abertura política, nãoacreditavam no parlamentarismo e, mesmo assim, tal-vez seus atos tenham contribuído para desenhar um novojogo de representação política, concessão feita pelo Es-tado restritivo com a finalidade de manter sua conti-nuidade.

Para alguns historiadores, a Lei Sáenz Peña, que es-tabelece o voto universal, marca o fim da influência po-lítica do anarquismo. Também no âmbito social e cultu-ral foi diminuindo seu espaço, devido as modificaçõesna estrutura social: com a nova oferta do ócio, direcio-

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nada aos setores populares (futebol, cinema), a reestru-turação do espaço urbano (distanciamento das popula-ções dos lugares de trabalho) e a agressiva campanhade argentinização (símbolos pátrios, extensão da escolaprimária, serviço militar obrigatório). O Estado e a eco-nomia capitalista agora se espalhavam e penetravamnaqueles âmbitos que antes lhes escaparam. No movi-mento operário também foi sentida a nova realidadepolítica, diante de um presidente, Hipólito Yrigoyen, elei-to por voto universal, secreto e obrigatório. A ação dire-ta como método de luta ainda tinha argumentos, masdeixava de atingir muitos setores, ao se propagarem no-vos mecanismos de negociação desde o Estado.

Não é possível entender a perda de peso do anarquis-mo argentino, a partir de 1910, apenas pela repressãodesatada com terrível ferocidade: invasões, fuzilamen-tos, deportações e encarceramentos de milhares de pes-soas. Mas tampouco podemos atribuí-lo apenas à aber-tura da representação política, à modificação nos hábi-tos sociais ou à transformação que passava o sistemaprodutivo nacional. E menos ainda a certa visão mar-xista que identificou o anarquismo com um tipo de tra-balhador atrasado, rêmora de regimes pré-capitalistascom tendência a desaparecer. Talvez todas as explica-ções anteriores, exceto a última, nos ajudem a enten-der o desalento de um movimento, mas é possível afir-mar que o anarquismo estava longe de desaparecer. Emostrará toda sua vitalidade nas duas décadas seguin-tes, até o que podemos chamar de segundo momentolibertário, momento que descreve o surgimento da Fe-deração Libertária Argentina na década de 1930.

Se em um princípio o debate interno esteve perpas-sado pela adesão ao individualismo, coletivismo e co-munismo,5 o acontecer histórico possibilitará novas dis-cussões. O Estado fechado, alheio e mero representan-

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te das classes abastadas, começava a se abrir, e aindaque apenas se tratasse de um distanciamento estratégi-co das classes dominantes do controle direto da políticapara se refugiar num controle menos visível mas maisefetivo, o certo é que o cenário mudava, e muitos pensa-ram que as estratégias de luta também deveriam fazê-lo.Desta forma acontece o rompimento na FORA, no IX Con-gresso de 1915, que decide retirar, por 46 votos contra 14,a definição do comunismo anárquico como finalidade e sepronunciar contraria à adoção de sistemas filosóficos ouideologias determinadas. O grupo minoritário se manterácomo FORA V Congresso e reafirmará seus princípios.Apesar do peso das idéias sindicalistas na nascente FORAIX, é possível encontrar nela muitos representantes queaderem ao anarquismo e que se formaram nele. Suas con-signas seguem apelando à luta de classes revolucionária eà greve geral revolucionária,6 inclusive na organização quea sucede, a União Sindical Argentina, USA, em 1922. Ha-bitualmente se atribui à USA uma extração puramentesindicalista, porém ela manteve uma forte influência anar-quista ou, mais precisamente, anarco-bolchevista,7 gra-ças à qual a Aliança Libertária Argentina, ALA, soube exer-cer seu controle numa relação semelhante à conseguidapela FAI com a CNT espanhola.8 O surgimento da ALA podeser localizado no Primeiro Congresso Regional Anarquis-ta de Buenos Aires, realizado em outubro de 1922. Ali seencontram 84 grupos argentinos, dois estrangeiros e 40representações individuais, sendo excluídos os anarco-bol-chevistas, que realizarão seu próprio congresso, com aparticipação de 60 militantes, representando oito organi-zações da capital e nove do interior, e constituindo a Ali-ança Libertária Argentina em 23 de janeiro de 1923, emBuenos Aires. No dia 23 de abril já começa a ser publicadoseu jornal oficial, El Libertario, que aparecerá até 1932,com um total de 109 números editados.

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Os debates foram intensos e ferozes entre as duascorrentes, visíveis nos confrontos verbais mantidos en-tre La Protesta9 e El Trabajo, depois Unión Sindical e pos-teriormente Bandera Proletaria. Mas a partir de 1917,com a Revolução Russa, se incorporaria outro tema quesacudiria o ambiente anarquista: o apoio primário e deexpectativa que produzirá o levantamento do povo russodiante da opressão tirânica de séculos, irá se traduzin-do tanto em grupos críticos da revolução10 como em ou-tros que apoiariam a construção da União Soviética aqualquer custo. Este debate aparece em todas as publi-cações da época, e é graficamente retratado em La Pro-testa, El Trabajo e Bandera Roja. O tempo dissolverá estapolêmica, mas quando o Estado soviético já não tivernada mais de revolucionário e os anarquistas se reuni-rem contra ele, haverá aparecido na política argentinauma nova variável impossível de ignorar: o Partido Co-munista Argentino.

Aos debates anteriores falta acrescentar as ações degrupos menores, mas de grande repercussão e tambémemblemáticos do anarquismo: o anarquismo expropria-dor ou o anarco-banditismo, definido assim por La Protes-ta.

A década de 1920, com um novo Estado, eleições uni-versais, novas relações entre o movimento operário eo governo, não foi um tempo tranqüilo.11 O fuzilamentomassivo de trabalhadores rurais na Patagônia, o as-sassinato de Jacinto Aráuz, em La Pampa,12 as açõesassassinas de bandos nacionalistas unificados na LigaPatriótica, comandada por Manuel Carlés, encontravado outro lado lutadores dispostos a se armar, a se de-fender, a matar seus inimigos e a expropriar para fi-nanciar suas publicações e ajudar os companheirospresos. Severino Di Giovanni foi o mais lendário detodos eles e, ao seu lado, América e os irmãos Scarfó.

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Miguel Arcángel Rosigna,13 cérebro de fugas carcerári-as impressionantes, inaugura a figura trágica do desa-parecido na Argentina, depois de ser detido pela polícia.O grupo de Tamayo Gavilán também deve ser lembradoe, sem dúvida, a rápida passagem de Durruti, Ascaso eJover pela Argentina, com o assalto à estação de metrôde Caballito e ao Banco da Província de Buenos Aires,em San Martín.

Deve ter sido muito grande o impacto que estes gru-pos provocaram, perseguidos sem trégua pela polícia e oexército, em fuga constante e gerando em muitas in-tervenções a morte de transeuntes ocasionais. Assimpodemos entender a posição cada vez mais dura do gru-po de La Protesta, que os condenou publicamente, acu-sando-os de violência fascista e negando seu anarquis-mo. Mas frente a ela estavam La Antorcha, Brazo y Cere-bro, Pampa Libre e Ideas (La Plata), que se mantiverampróximos. Os expropriadores viram passar milhares depesos por suas mãos, mas viveram pobres, ajudando in-cansavelmente as famílias dos presos, editando publi-cações anarquistas, como a emblemática Culmine, e comdesfechos que são um símbolo de suas vidas.

Lembremos que Di Giovanni é surpreendido em umagráfica revisando a edição das obras de Elisée Reclus,Rosigna cai depois de se arriscar para libertar seus com-panheiros da prisão de Montevidéu e Durruti morre nadefesa heróica de Madri. Enfim, a década de 1920 foi deduro e sangrento debate dentro do anarquismo,14 no tomdo ambiente social de violência e repressão estatal, deassassinatos patrióticos da Liga de Manuel Carlés.

Não podemos entender a violência entre as tendên-cias anarquistas sem analisar seu conteúdo social, semconsiderar a violência a que eram submetidos pelo Es-tado, que os colocava contra a parede, ou as definiçõespolíticas, que eram vividas como uma escolha de sobre-

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vivência. Provavelmente esta análise sobre a violênciapraticada durante toda a década para dirimir as dife-renças políticas no interior do anarquismo não seja com-pleta, e outros interessantes fatores possam ser incor-porados,15 mas sem dúvida é um elemento a ser consi-derado.

Não interessa aqui definir as arestas que delimita-riam um suposto corpus anarquista, incluindo e exclu-indo as tendências do movimento, estabelecendo umaortodoxia ou um pensamento definitivo para o anarquis-mo. Como sabemos, o desenvolvimento do pensamentolibertário contemplou em todas as épocas diversos ma-tizes e também aqueles que pretenderam se atribuir acondição de verdadeiros porta-vozes da idéia. Foram LaProtesta e a FORA V os que cuidaram estritamente dospostulados, mas o que podemos dizer do antorchismo, doanarco-sindicalismo da ALA, dos anarco-bolchevistas, doanarquismo expropriador, e ainda daqueles libertáriosindividualistas que não se enquadravam em nenhumdestes grupos?

Enquanto em décadas anteriores os diferentes olha-res ampliavam a chegada a crescentes setores sociais,agora não havia lugar para dissidências e a violênciadirimia os confrontos. As transformações econômicas,políticas e sociais colocaram em disjuntivas impossí-veis de prever um movimento que tivera eco em amplossetores sob seus límpidos princípios. Estes deviam sermantidos a custa de uma menor representação nas mas-sas? Em caso afirmativo, como agir, como manter o so-nho da derrocada do capitalismo, como fazer política?

No interior do anarquismo, na medida em que nãose trata de uma teoria acabada que pressupõe a quedado capitalismo ou a sucessão de modos de produção queaugura a chegada do socialismo, são intensas as variá-veis que entram em jogo, pois é mais forte aqui apenas

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a potente voz que reclama justiça, a indomável atitudecontra toda forma de exploração, o sensível grito dianteda opressão. Assim pode ser entendida a atitude solitá-ria e reivindicadora de tantos anarquistas como Rado-witzky, Wilckens e Wladimirovich, e se bem se conside-ra que onde há opressão deverá haver um ato de rebel-dia, tudo isto estava delimitado pela idéia firme de queo mundo libertário seria alcançado em breve, de que ocapitalismo desmoronaria inevitavelmente.

Se o anarquismo estava longe de estar morto em1910, também já não era o mesmo. Agora havia tensãoem diversos setores, e alimentava-se de novas práticasdiante de uma nova realidade, mas ainda mantinha umaforte influência no cenário argentino. A FORA acusa osoutros, talvez com razão, de desviacionismo. Mas semreconhecer que seu purismo a distancia e a reduz cadavez mais. Os outros buscam novas formas de articularas idéias libertárias, de operar em uma realidade quemuda, mas sem visualizar que agora estão longe de umaépoca em que a queda de todo um sistema parecia imi-nente. Acabara, então, a crença das massas em umamudança revolucionária, na queda abrupta do capita-lismo.

Então, como agir? Como efetivar um posicionamentopolítico de agora em diante? O tempo, e mais precisa-mente a década de 1930, irá desenhando no movimentolibertário esta busca de respostas.

II

No dia 6 de setembro de 1930, o General José FélixUriburu inaugura a história dos golpes de Estado naArgentina do século XX. O presidente Hipólito Yrigoyenentregará um trunfo aos anarquistas meses antes deser derrocado: o indulto a Simón Radowitzky. Mas isto

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contribuirá para a irremediável queda do líder radical.Imediatamente, todas as publicações anarquistas foramproibidas16 e seus locais invadidos. Aconteceria um dosmomentos de maior repressão para o movimento. Sur-preendido em meio a divisões internas, desarticulado esem capacidade de resposta, sofre centenas de detenções,aprisionamentos em Ushuaia, deportações, fuzilamen-tos17 e torturas. Na hora do resguardo, de nada serviu àFORA manter-se longe do que definia como um conflitodentro da burguesia, e a La Protesta tampouco lhe foi útilse desligar dos setores violentos do anarquismo, conven-cida a ter um rosto mais humano. Diante da ditadura seapagam todas as diferenças. Para o autoritarismo nãoexistem tons de cinza, mas um só inimigo. As sutilezasnão são seu ponto forte, e a tortura emergirá como sínte-se de seu discurso.

Paradoxalmente, a repressão serviu para refletir sobrea luta e a morte mantida nos anos 20: parecia uma res-posta da história, que castigava violentamente aquelesque tinham se relacionado com violência, convidando-osa se unirem contra o verdadeiro inimigo. A ditadura deuo marco concreto para possibilitar a unidade: o batalhão3o bis da prisão de Villa Devoto,18 onde tinham confluídocentenas de militares de diferentes tendências, muitoscomo passo prévio à transferência para Ushuaia. Os li-bertários, depois de várias disputas,19 conseguem expul-sar os comunistas do pavilhão, situação que deve ter con-tribuído para o seu reconhecimento e se unirem nesteconfronto secundário, mas não de menor importânciapara o anarquismo. Assim, o espaço estava completo paradar início às discussões; e seus olhares se voltaram paraa autocrítica, e produziram um fato impensável anosatrás: 300 militantes de todas as tendências, em setem-bro de 1931, organizaram um Congresso na prisão.20 Erao começo da unidade e da reinvenção, e ao mesmo tempodo surgimento de um novo tema de discussão: a criação

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de uma organização específica do anarquismo que logras-se coordenar e unificar suas forças.

O especifismo não era na verdade um tema novo: sem-pre havia se aproximado da idéia de construir uma or-ganização mãe e o I Congresso Regional de 1922 podiater aberto este caminho. O certo é que, intimamente,todos21 coincidiam em reconhecer a FORA como organi-zação finalista, e em se distanciar de construções maispróprias de partidos políticos burgueses ou autoritários.Enfim, era o proletariado sob seus princípios federativosa verdadeira expressão do anarquismo local,22 sua fer-ramenta de luta, e talvez o começo da sociedade futu-ra.23 Mas a FORA não tinha cada vez menos peso dentrodo movimento operário? E, por outro lado, como coorde-nar setores crescentes, como o movimento estudantil24

ou os núcleos culturais? Estas perguntas foram chavesna hora de pensar a nova organização; parecia que oanarquismo tinha começado a variar em sua composi-ção.

Mas 1930 é também a década que marca o fim domodelo agro-exportador argentino, é a crise final do so-nho harmônico, como celeiro do mundo, que tinha pro-porcionado a divisão internacional do trabalho. E comisto a estrutura produtiva irá se transformando, acele-rando as mudanças já anunciadas durante a PrimeiraGuerra Mundial. Isto reanimará o debate iniciado nadécada anterior entre aqueles partidários da organiza-ção por ofício ou por indústria. A FORA se manterá fiel aseus princípios federativos, opondo-se a todo tipo de or-ganização por indústria. Esta posição, que já tinha ge-rado a incorporação de muitos sindicatos à USA, agorapropiciará que muitos anarquistas criem grupos inter-sindicais nas associações reformistas, e que reconhe-çam as transformações no capitalismo como um fatoobjetivo com o qual deverão trabalhar. Com estes pontos

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centrais de discussão: superar as diferenças fratricidasda década anterior, criar uma organização específica doanarquismo e revitalizar a FORA sem deixar de levar emconsideração outras formas de participação sindical.Acontecerá então, um grande encontro em setembro de1932, em Rosario, o II Congresso Regional Anarquista.25

Todos os setores contribuíram para sua realização; LaProtesta pediu, desde suas páginas, a elaboração de co-municações que delineassem os pontos de discussão, me-diante uma pesquisa destinada a seus leitores, e váriosmilitantes percorreram o país, reabilitando as velhas prá-ticas linyheras,26 para concentrar os grupos e instar suaparticipação.

Em 13 de setembro de 1932 começa o Congresso, coma participação de 53 delegados em representação de 30organizações de toda a Argentina.27 Tinha sido aberto,uma vez mais na história anarquista, um lugar de inter-câmbio, construção e reconhecimento. Mas, tinham sidodiluídas realmente as diferenças para permitir a unida-de? Na verdade, o que pareceu acontecer é que se esgo-taram certas discussões e se estabeleceram outras, pro-duto de uma nova conjuntura histórica e da reorganiza-ção de grupos e militantes diante de novas disjuntivas.Desta maneira, encontramos agora representantes dogrupo La Antorcha unidos com a FORA e apoiando o pontode minoria no Congresso, três votos, enquanto que 49delegados aprovam a conformação de uma organizaçãoespecífica libertária. As principais resoluções que ofe-receu o encontro instaram a criar uma organização fe-derativa de grupos que pudesse conter todas as verten-tes, em ampla liberdade e, ao mesmo tempo, seguir dan-do à FORA a qualidade de organização finalista doanarquismo. Por que a FORA se opunha, então, à forma-ção da organização específica?28 Não podemos omitir queoutras resoluções também impulsionavam a formação

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de grupos inter-sindicais exteriores à FORA e em sindi-catos opositores.

O impasse estava colocado: resistir dentro da FORA eprovocar dali que os operários percebessem sua verda-deira luta e nutrissem suas filas, ou reconhecer a per-da da hegemonia anarquista dentro do movimento ope-rário e atuar como tal em outros sindicatos. O Congres-so, sem aceitar totalmente a segunda opção, optou peloreconhecimento tácito da realidade, convencido de umatática que devolveria ao anarquismo as massas operá-rias perdidas. Se, depois de mais de 70 anos, vemos estatática como infrutífera, este encontro de Rosario, semalcançar seus objetivos revolucionários, sempre aber-tos e presentes, possibilitou o Comitê Regional de Rela-ções Anarquistas, CRRA, que revitalizou todo o movi-mento no país e deu ao ideal libertário novas forças. Jáem setembro de 1933, fez nascer Acción Libertaria comoseu porta-voz, retratando quase quarenta anos de histó-ria, até seu desaparecimento, em março de 1971.

O CRRA29 teve um importante papel na organizaçãoda militância, conseguindo que os seis comitês locaisestabelecidos no Congresso de Rosario (Rosario, Resis-tencia, Bahia Blanca, Santa Fe, Tucumán y Capital)aumentassem para 16 em setembro de 1933, e chegas-sem posteriormente a 30. Conseguiu a conformação deuma organização inter-sindical na corporação da indu-mentária, a reorganização da Associação de Trabalha-dores do Comércio de Rosario e a construção do Sindi-cato de Operários de Bondes e Anexos em Buenos Aires,de expansão em todo o país (autônomo, não aderido àFORA).

A FORA, enquanto isso, terá duas importantes atua-ções no começo da década: a greve portuária, em janei-ro de 1931 e, em julho, diante da chegada de uma em-barcação nazista, a agitação e a greve convocada pela

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Federação Operária Local Bonaerense. Agora, enquantoas atividades do CRRA cresciam, conectando zonas e pre-parando a todos os militantes do país para um próximocongresso que fizesse surgir a Organização Específica,esperavam-se os resultados da Assembléia Geral daFORA, a ser realizada em outubro de 1934. Mesmo sen-do conhecida a opinião contrária da maioria dos mem-bros da FORA em relação à formação específica, espera-va-se que influísse a majoritária votação do congressode Rosario. Mas, finalmente, as resoluções aprovadas pelaFORA não foram alentadoras para aqueles que impulsio-navam os acordos de 1932: reafirmou-se a organizaçãopor ofício, a posição contrária às comissões inter-sindi-cais30 e a opinião anti-especifista, assentando uma durapostura contra a organização libertária nascente. Dian-te disto, o CRRA optou por se definir abertamente a favorde impulsionar o trabalho nos sindicatos por rama de in-dústria. A brecha estava aberta novamente.

Entretanto, isto não malogrou o objetivo, e o trabalhodesenvolvido pelo CRRA durante três anos pôde se concre-tizar em outubro de 1935, ao ser realizado o CongressoConstituinte da Federação Anarco-Comunista Argentina,FACA.

A FACA, primeira organização específica da Argentina,estabelece sua sede de correspondência em Buenos Aires,e começa a desenvolver múltiplas atividades em todo opaís, em continuidade com as desempenhadas pelo CRRA.Podemos destacar a intensificação da campanha pela li-berdade dos presos de Bragado: Pascual Vuotto, Reclus deDiago e Santiago Mainini, torturados e condenados por umcrime que não cometeram, em 1931. Foram editados mi-lhares de exemplares do jornal Justicia,31 porta-voz da cam-panha, e percorrido todo o país, com manifestações, supor-tando a perseguição e o assassinato,32 até conseguir o in-dulto, em 1942.

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Em 1936 acontece um dos fatos mais importantespara o anarquismo mundial. O levantamento do gene-ral Franco contra a República Espanhola desencadeia aGuerra Civil, mas também acelera o processo revoluci-onário que vinha sendo desenhado, e que tinha comoprotagonista o forte movimento anarquista espanhol. Omovimento anarquista cumpriu um papel decisivo naderrota dos sublevados em várias cidades, e conseguiucontrolar importantes zonas, desenvolvendo seu traba-lho de construção revolucionária. Assim nasceram ascoletividades de Aragón e a coletivização de indústriase serviços na maior parte da Catalunha. Na Argentina,a FACA realizou uma campanha importante a favor domovimento espanhol. Interveio na formação de nume-rosos comitês populares de ajuda à Espanha. Fundou,em acordo com a CNT e a FAI espanhola, o Serviço dePropaganda de Espanha, editando a revista DocumentosHistóricos de España, e impulsionou a formação da Soli-dariedade Internacional Antifascista, SIA. Foram desig-nados três militantes como delegados na Espanha: Ja-cobo Prince, Jacobo Maguid e José Grunfeld, que ocupa-ram cargos de máxima responsabilidade no jornal daconfederação Solidaridad Obrera, na publicação da FAI,Tierra y Libertad, e na Secretaria Peninsular da FAI, res-pectivamente.

A década de 1930 foi de formação e crescimento paraa FACA, em duras condições de repressão, que tinhamdizimado o movimento no início da ditadura. Em 1939,com uma estratégia de ampliação e junto a homensque não eram libertários, é criada a revista Hombre deAmérica. E em 1941 surge o jornal Solidaridad Obrera,como expressão de um importante setor de corporaçõesautônomas orientadas pela FACA. Em 1946, a criaçãoda editorial Reconstruir foi de notável importância paraa difusão das idéias libertárias, editando dezenas de fo-lhetos e livros, até os dias de hoje.

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A derrota na Revolução Espanhola e o começo da Se-gunda Guerra Mundial reavivaram as campanhas anti-militaristas, assim como a ajuda a todos os refugiados.Neste marco se iniciou uma campanha para auxiliar oscompanheiros sobreviventes do terror nazista, envian-do roupas e mantimentos à Alemanha.

O enorme impacto repressivo que causou o fascismoem todo o mundo, sua expansão, o surgimento do regi-me nazista e a existência, na Argentina, de grupos queassassinavam os operários e que apoiavam estas ten-dências, gerou um clima político que buscou evitar onascimento de movimentos similares no país. O pero-nismo parecia reunir as condições de um movimentofascista vernáculo, construindo sua base de sustenta-ção na massa operária, organizada em sindicatos im-pulsionados desde o Estado e com uma orientação auto-ritária. A maior parte dos libertários não duvidou ematacar o Estado peronista, recebendo prisão e fechamentode seus jornais: em 1946 foi criado o jornal Reconstruir,que sofreu processos por desacato e seqüestro de edi-ções, transladando sua impressão para a cidade de Ro-sario, e em 1952 foram encarcerados os operários por-tuários da FORA.

O ano de 1945 foi outro ponto de inflexão para a his-tória argentina. Juan Domingo Perón chega à presidên-cia e com ele se produz uma das grandes mudanças doséculo. A crise terminal do modelo agro-exportador ar-gentino, que tanto proveito gerou até a década de 1930,e as condições criadas pela Segunda Guerra Mundial,impulsionaram setores da burguesia nacional para aconstrução de um projeto de desenvolvimento interno.A indústria nacional, e mais ainda o controle estatal daeconomia, serão os pilares do peronismo. Somado a isso,a necessidade de criar um mercado interno de consu-mo crescente que possibilitasse a produção nacional.

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As mudanças sociais e políticas produzidas a partir dis-so foram de tal magnitude que provocaram um movi-mento de massas de importância mundial. A sindicali-zação operária elevou-se de 500.000 para 2.500.000 fili-ados e os benefícios obtidos pelos trabalhadores, emcondições de pleno emprego, produziram um desloca-mento rápido de adesões ao peronismo. Esta atitude damaior parte do movimento operário, que se prolonga atéos dias de hoje, relegou ao esquecimento a riqueza dasexperiências anteriores, produzindo uma invisibilida-de, sobretudo do movimento anarquista.

A construção do discurso peronista alimentou-se dereivindicações operárias existentes, apelou para a dig-nificação do oprimido e aludiu para tanto à exaltação dapátria. Mas, se em décadas anteriores recorreu-se àpátria desde o poder e contra os operários de idéias es-trangeiros, agora se utilizava para designar àqueles quetinham ocupado o subsolo da nação. O verdadeiro feitorda pátria era, então, o povo trabalhador, aquele que for-java com seu esforço as riquezas nacionais. O movimen-to operário, que durante décadas tinha construído suasreivindicações em oposição direta ao conceito de pátria,estabelecendo-o como raiz do militarismo, as guerras eo aproveitamento da burguesia, via agora que seus re-clamos se veiculavam através dela. O trabalhador co-meçou a ser protegido por uma legislação inexistentetempo atrás, a redistribuição do ingresso nacional diri-giu-se para os mais desfavorecidos, os salários aumen-taram, muitas reivindicações socialistas e anarquistas33

começaram a ser cumpridas e muitas pessoas começa-ram a aceder a benefícios antes negados. Mas, se osbenefícios econômicos e sociais foram reais, e a explo-ração descarnada que realizava a elite foi restringida, adignidade alcançada estava longe dos postulados revo-lucionários da primeira metade do século. O melhora-mento das condições sociais pareceu reconstruir o

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movimento operário, e direcioná-lo por um sentido depertencimento e inclusão. As lutas já não estavamdirigidas para a emancipação do gênero humano, paraderribar as fronteiras que separam os homens e der-rocar o capitalismo. E a dignidade pretendida tinhaum recorte nos ideais mais altos, nascidos nos movi-mentos revolucionários.

Neste sentido, se a abertura da ordem conservadoraao voto universal significou uma inclusão de amplossetores na representação política, o peronismo con-formou um segundo movimento de abertura, agora naesfera econômica e social, e uma construção de per-tencimento no âmbito capitalista. Será necessárioaguardar algumas décadas para que uma nova fase dosistema capitalista descarte a necessidade do plenoemprego e o consumo massivo para se realimentar, epossa acomodar a acumulação junto à exclusão degrandes massas do mercado de trabalho e de consu-mo.

A posição assumida pela FACA frente ao governoperonista ficou plasmada no jornal Acción Libertaria, etambém nas resoluções e declarações dos diferentescongressos e plenários nacionais, celebrados por estaorganização.

Desde a formação da FACA até sua designação comoFederação Libertária Argentina, FLA, aconteceram seisgrandes encontros: em dezembro de 1936 o PlenárioNacional de Agrupações Provinciais, em fevereiro de1938 o Primeiro Congresso Ordinário, em julho de 1940o Segundo Congresso Ordinário, em outubro de 1942o Plenário Nacional de Agrupações e Militantes, emdezembro de 1951 o Terceiro Congresso Ordinário e,em fevereiro de 1955, o Quarto Congresso Ordinário;nasce a FLA.

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Se nesta data as idéias anarquistas tinham deixa-do de ser uma expressão de massas e de representaro movimento operário majoritário, sobressai a conti-nuidade e o desenvolvimento conseguido pela organi-zação específica. Enquanto o anarquismo via-se rele-gado em sua expressão operária a um espaço cada vezmais reduzido, desenvolveu-se uma nova forma decanalizar os ideais libertários que, sem deixar de es-tar imersa no retraimento geral do movimento, esfor-çava-se para demonstrar a vigência das idéias anar-quistas. Este novo momento histórico, vivido sob anecessidade de uma mudança de estratégias, que ar-ticulava a militância não incluída na FORA, insuflouforças ao movimento e possibilitou a Federação Liber-tária Argentina, em atividade permanente até os diasde hoje. Sem prejuízo da FORA, que soube contemplarmilhares de trabalhadores nas décadas anteriores,tinha sido aberta um novo momento, que propiciavaoutro tipo de militância. Ainda que para ambas orga-nizações apenas ficasse reservado um lugar de mino-rias.

Não se pode dizer que as idéias anarquistas tenhamfalecido. Nem tampouco que ao serem adotadas porgrandes contingentes humanos fossem de maior acer-to. Isto só expressaria um especial clima de época,quando maiorias estariam dispostas a romper com osvalores que sustentam todo um sistema. Possibilida-de sempre aberta, neste breve momento da históriaque é o capitalismo, e no qual as idéias anarquistas,através dos questionamentos colocados sobre a igual-dade e a liberdade, seguem expressando sua vigênciae, sobretudo, em seu grito firme contra toda opressão.

Tradução do espanhol por Natalia Montebello.

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Notas1 As atividades de Malatesta e Gori na Argentina, assim como seu pensamento,aparecem bem retratados em: Hugo Mancuso & Armando Minguzzi. Pensami-ento social italiano en Argentina: utopias anarquistas y programas socialistas (1870-1920). Buenos Aires, Ediciones Biblioteca Nacional, 1999, p. 12. Também ver:Hector Adolfo Cordero. Alberto Ghiraldo, precursor de nuevos tiempos. BuenosAires, Editorial Claridad, 1962.2 Na revista Ciencia Social n° 15, fevereiro de 1900, reproduz-se o seminárioministrado por Pietro Gori na Universidade de Buenos Aires.3 Tinha surgido antes como La Protesta Humana. Ver Pablo M. Pérez (Coord.).Catálogo de Publicaciones Políticas, Sociales y Culturales Anarquistas (1890-1945).Colección Archivo. Federación Libertaria Argentina. Biblioteca Archivo deEstudios Libertarios. Buenos Aires, Editorial Reconstruir, 2002.4 A publicação anti-organizadora por excelência foi El Perseguido, que apareceem 18 de março de 1890. O porta-voz máximo da tendência anarco-individu-alista foi Germinal, que por sua vez aparece em 14 de novembro de 1897. E atendência organizadora inicia-se com força em 1894, com três publicações: ElObrero Panadero, El Oprimido e La Questione Sociale.5 Em 1898 o grupo Progreso y Libertad, de La Plata, organiza um EncontroSocialista Libertário, onde um dos temas propostos mostra a importância destedebate: “(...) o coletivismo, o comunismo e o individualismo, origem e impor-tância atual e futura destas teorias socialistas. Qual delas está mais em harmo-nia com os princípios da anarquia?”. Folheto do grupo Progreso y Libertad, nabiblioteca José Ingenieros.6 Ver Samuel L. Baily. Movimiento obrero, nacionalismo y política en la Argentina.Buenos Aires, Editorial Paidós, 1984.7 Sobre esta definição ver Andrés Doesswijk. Entre camaleones y cristalizados: losanarcobolcheviques rioplatenses, 1917-1930. Tese de Doutorado. Universidade deCampinas, 1998.8 Foi consultado o trabalho de Fernando López Trujillo, “El anarquismo en los´30: la FACA”, apresentado em: I Jornadas de Historia de lãs Izquierdas, organiza-ção do Centro de Documentación e Investigación de la Cultura de Izquierdas,CeDInCI, em Buenos Aires, em dezembro de 2000. O autor afirma a hipótesede que o conflito entre a USA e a FORA pode ser entendido como uma disputaideológica no interior do próprio movimento anarquista. Também ver núm. 7de Vía Libre, abril de 1920. No artigo intitulado “Federación Obrera Argenti-na, apuntes de historia y critica del movimiento obrero argentino”, assinadopor Armando Flogueral, é criticada duramente a constituição da FORA V. Estegrupo é acusado diretamente de ter realizado um golpe interno no anarquismo,e de atentar contra a unidade do movimento operário e lhe retirar, ao mesmo

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IX, mas em menor número em relação a outros grupos, até que a FORA IX,perdida em sua linha de ação, foi presa de negociações oportunistas. Desde oanarquismo, e referenciando a Malatesta e Bakunin, rejeita a tática da FORA Ve adere à moção de omitir a definição de anarco-comunismo dos estatutosinternos, segundo o argumento de que não é possível chegar à “Idéia” atravésda luta econômica sindical, mas sim em um momento posterior, sendo que estaluta proporciona apenas a solidariedade operária e o reconhecimento comogrupo.9 Em 1916 acontecera um rompimento no interior de La Protesta, que provo-cou a saída de Antilli e Rodolfo González Pacheco, que fundam La ProtestaHumana, La Obra, depois Tribuna Proletária, e mais tarde La Antorcha.10 Atitude acentuada pela matança de anarquistas em Kronstadt, perpetradapelo Exército Vermelho, comandado por Trotsky.11 A década fora inaugurada em 1919, com os acontecimentos da SemanaTrágica. Ver Edgardo Bilsky. La Semana Trágica. Buenos Aires, CEAL, 1984, eJulio Godio. La Semana Trágica... Buenos Aires, Hyspamerica, 1985.12 Ver Osvaldo Bayer. Los anarquistas expropiadores, Simon Radowitzky y otrosensayos. Buenos Aires, Editorial Galerna, 1975. Na década de 1920 sucedem-seos assassinatos de trabalhadores, assim como na grande greve de La Floreetal,na região do Chaco em Gualeguaychu, cometidos pela Liga Patriótica.13 No dia 27 de março de 1931, nove dias depois da famosa fuga do presídio dePunta Carretas, de Montevidéu, quando conseguiram fugir Vicente Moretti etrês anarquistas catalães, Ros.igna é capturado pela policia em seu alojamentona rua Curupí. No dia 31 de dezembro de 1936 chega ao fim sua reclusão noUruguai e é deportado para a Argentina, onde o aguardam vários processos,mas, apesar de anulados, é transladado de delegacia em delegacia, até que seperde qualquer pista dele. Supõe-se que tenha sido lançado ao Rio da Prata.Em 10 de maio de 1935, Juan Antonio Moran, secretario geral da UniãoOperária Marítima e também anarquista, sofreu uma morte similar, quando foiseqüestrado ao ser libertado da prisão de Caseros, mas encontrado morto etorturado dois dias depois em General Pacheco.14 Vale lembrar o ataque ao jornal Pampa Libre, de General Pico, em agosto de1924, efetuado por gente de La Protesta, ou o assassinato de López Arango em1929, praticado, supostamente, por gente de Severino Di Giovanni. Ver JorgeEtchenique. Pampa Libre., anarquistas en la Pampa argentina. Buenos Aires, Ame-ríndia, 2000.15 Na década seguinte, a repressão estatal será feroz durante a ditadura e,entretanto, o movimento se dispõe a encontrar outros mecanismos parar solu-cionar as diferenças; ali começa a Federação Libertária Argentina.

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16 Curiosamente, a primeira publicação que consegue ser editada na clandestini-dade é Anarchia, elaborada por Di Giovanni e América Scarfó. Mas a suaatitude insubmissa acabará em pouco tempo, quando Di Giovanni é capturadoe fuzilado.17 No dia 1o. de fevereiro de 1931 será fuzilado Di Giovanni e, no dia seguinte,Paulino Scarfó.18 Ver José Grunfeld. Memorias de un anarquista. Buenos Aires, Editorial NuevoHacer, 2000; e Jacobo Maguid. Recuerdo de un libertario. Buenos Aires, EditorialReconstruir, 1995. Os autores fazem o relato destes fatos como participantes.19 Resultam vários feridos depois de um grande enfrentamento.20 Ver Jacobo Maguid. op. cit. O autor afirma que as atas do Congresso foramelaboradas por Jesús Villarías, primeiro editor do jornal Pampa Libre e depois deBrazo y Cerebro. Posteriormente, estas atas servirão como antecedentes no Con-gresso de Rosario, de 1932, para onde serão enviadas. No dia sábado 17 dejaneiro de 1931, o jornal L´Adunata del Refrattari, de Nova Iorque, publica umacarta sobre o congresso da prisão.21 Ver Jacobo Maguid, op. cit. O autor explica que a criação de uma organizaçãonão se pretendia em detrimento da FORA. Ver também José Grunfeld, op. cit.,2000, em que narra as atividades realizadas em Rosario para vitalizar a FORA,ao mesmo tempo em que eram organizados os Comitês Regionais de RelaçõesAnarquistas.22 Em outros países existiam organizações específicas, lembremos apenas o casoda FAI, na península Ibérica.23 Neste sentido, cabe esclarecer que a FORA rejeitou a posição anarco-sindica-lista. Isto é, não aceitava que os sindicatos se encarregassem da construção dasociedade, depois da revolução emancipadora, e manteve sua posição de quenão é possível legislar sobre o futuro da sociedade depois da mudança. VerAntonio López. La FORA en el movimiento obrero. Buenos Aires, Centro Editorde América Latina, 1987.24 José Maria Lunazzi, reconhecido militante, chegou a ser presidente da Fede-ração Universitária de La Plata.25 Ver Jacobo Maguid, op. cit., O autor afirma que foi considerado comoantecedente o Congresso de 1922, para denominar este como II Congresso.26 Os linyheras costumavam perambular pelas ruas, sem trabalho fixo. Tambémeram contatos que levavam jornais anarquistas a diferentes partes da Argenti-na. Havia certos lugares marcados onde enterravam estes jornais, para seremapanhados por outras pessoas. Ver Jorge Etchenique, op. cit.

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27 Fernando López Trujillo, em seu trabalho antes citado, reproduz uma nota deLa Protesta, de 24 de setembro de 1932, na qual aparecem todos os gruposparticipantes.28 A FORA sempre combateu a formação de uma organização específica doanarquismo. Neste período o fará com maior força a partir do Congresso deRosario, de 1932. Ver Antonio López. La FORA en el movimiento obrero. TomoI. Buenos Aires, Centro Editor de América Latina, 198729 A secretaria geral do CRRA funcionou na clandestinidade, na casa do mili-tante Enrique Balbuena.30 Será necessário esperar até a Reunião Geral da FORA, realizada em 1962,para que aconteça uma abertura neste sentido. Na ocasião, uma resoluçãoestabelece a formação de grupos inter-sindicais de orientação forista em asso-ciações alheias ao movimento. Ver Antonio López, op. cit.31 Ver Pablo M. Pérez, op. cit.32 Em um ato em Santa Fe é assassinado o militante Salvatierra por um grupofascista. Ver Jacobo Maguid, op. cit.33 Ver Antonio López, op. cit.34 “O anti-Édipo: uma introdução à vida não fascista”. Prefácio à edição norte-americana de O anti-Édipo, capitalismo e esquizofrenia, de Gilles Deleuze e FélixGuattari.

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RESUMO

O movimento anarquista argentino desde começos do século XX,considerando os seus diferentes posicionamentos, divergências eencontros. Conflui no surgimento da Federação Anarco Comunis-ta Argentina, FACA, em 1955 e seu desdobramento na FederaçãoLibertária Argentina, FLA, em 1935. Descreve o surgimento e asatividades da Biblioteca Arquivo de Estudos Libertários, BAEL,na década de 1990.

Palavras-chave: movimento anarquista, história, Argentina

ABSTRACT

The Argentinean anarchist movement since the beginning of the20th Century, taking into account its different positions, divergen-ces and encounters. Converge in the emergence of the Argentine-an Anarcho Communist Federation, FACA, in 1935 and its develo-pments to the Argentinean Libertarian Federation, FLA, in 1955.Describes the emergence and activities of the Archive Library ofLibertarian Studies in the 1990s.

Keywords: anarchist movement, history, Argentina.

Recebido para publicação em 3 de março de 2006 e confirmado em21 de março de 2006.

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Durruti está morto, contudo vivo

durruti está morto, contudo vivo1

emma goldman*

Durruti, a quem vi há não mais que um mês, perdeusua vida nos combates de rua de Madrid.

Meu conhecimento anterior deste tempestuoso pe-trel do anarquismo e seu revolucionário movimento naEspanha era meramente das leituras sobre ele. Em mi-nha chegada a Barcelona aprendi muitas histórias fasci-nantes sobre Durruti e sua coluna. Elas tornaram-me ávi-da para ir ao front de Aragon, onde ele era o espírito guiadas audazes valentes milícias, lutando contra o fascismo.

verve, 9: 217-225, 2006

* Emma Goldman, russa, anarquista e feminista, chegou nos Estados Unidoscom a irmã indo trabalhar como operária têxtil. Em pouco tempo tornou-se umamilitante combativa juntamente com seu companheiro Alexandre Berkman, oque lhe valeu alguns encarceramentos, um deles por ensinar publicamente o usode contraceptivos. Escolhemos este texto (In Emma Goldman. Anarchism andOther Essays. Toronto, Dover Publication Inc., 1969. pp. 109-126) de 1910 pormostrar uma reflexão ativista, dirigida aos trabalhadores organizados, situandoos efeitos de uma leitura científica e a necessidade da abolição das prisões. EmmaGoldman participou criticamente da Revolução Russa, da Guerra Civil Espa-nhola e morreu em 1940, no Canadá. Seu corpo foi sepultado em Chicago, juntocom os dos anarquistas de Haymarket.

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Cheguei ao quartel-general de Durruti quase à noite,completamente exausta pela longa viagem numa estradarude. Poucos momentos com Durruti foram um forte tôni-co, refrescante e animador. Um corpo poderoso como seabrisse o caminho das Pedras de Monteserrat, Durrutirepresentava facilmente a imagem mais dominante en-tre os Anarquistas que conheci desde minha chegada àEspanha. Sua energia extraordinária me entusiasma-va, como parecia ser o efeito em todos os que estavam aoseu redor.

Vi Durruti em uma verdadeira colméia de atividades.Homens entrando e saindo, o telefone constantementechamando por Durruti. Além disso, haviam as ensurdece-doras marteladas dos trabalhadores que estavam constru-indo um galpão de madeira para a equipe de Durruti. Atra-vés de toda a gritaria e constante exigência de seu tempo,Durruti permaneceu sereno e paciente. Recebeu-me comose me tivesse conhecido por toda sua vida. A gentileza ecordialidade de um homem engajado em uma luta de vidaou morte contra o fascismo era algo que eu dificilmenteesperava.

Havia ouvido muito sobre o comando de Durruti, so-bre a coluna que levava seu nome. Estava curiosa parasaber por quais meios, além da campanha militar, eleutilizou para conseguir unir ao todo 10.000 voluntáriossem treinamento ou experiência militares de nenhumtipo. Durruti pareceu surpreso que eu, uma velha Anar-quista, pudesse mesmo perguntar isso.

“Tenho sido um Anarquista por toda minha vida”, elerespondeu. “Espero que tenha permanecido um. Eu deve-ria achar muito triste ter me tornado um general e domi-nar os homens com pulso militar. Eles vieram a mim vo-luntariamente, estão prontos a arriscar sua vida na lutaantifascista. Acredito, como sempre acreditei, em liber-dade. A liberdade que repousa no senso de responsabilida-

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de. Considero a disciplina indispensável, mas precisa serinterna, motivada por um propósito comum e por um fortesentimento de camaradagem.” Ele ganhou a confiança doshomens e sua afeição porque nunca agiu como superior.Durruti era como um deles. Comia e dormia com tantasimplicidade quanto eles; freqüentemente negando a sisua própria porção para alguém fraco ou doente, e maisnecessitado. E dividia com eles, também, o perigo de cadabatalha. Este era sem dúvida o segredo de seu sucessocom a coluna. Os homens o adoravam. Eles não somentelevavam adiante todas as instruções dele como tambémestavam prontos para segui-lo ao maior risco possível pararepelir a posição fascista.

Eu havia chegado na noite de um ataque que Durrutitinha preparado para a manhã seguinte. Ao amanhecer,Durruti — assim como o resto da milícia, com o rifle sobreo ombro — liderou o caminho. Junto deles, fez o inimigoretroceder 4 km, e também obteve sucesso em capturaruma quantia considerável de armas que os inimigos ti-nham deixado para trás em sua fuga.

O exemplo moral de simples igualdade não era de modoalgum a única explicação para a influência de Durruti.Havia um outro: sua capacidade de fazer com que seusmilicianos compreendessem o sentido mais profundo daluta antifascista — o sentido que havia dominado sua pró-pria vida e que ele havia aprendido a articular para osmais limitados.

Durruti me falou da sua abordagem aos difíceis proble-mas dos homens que vinham para depois se fazerem au-sentes logo quando mais se precisava deles no front. Oshomens evidentemente conheciam seu líder — conheci-am sua determinação — sua vontade férrea. Mas eles tam-bém conheciam sua compaixão e a nobreza escondidospor trás de sua aparência austera. Como ele poderia re-

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sistir quando os homens contavam a ele de doença emcasa — pais, esposa ou filhos?

Durruti foi perseguido antes dos gloriosos dias de ju-lho de 1936, como um animal selvagem, de país a país.Preso por vezes como criminoso, até mesmo condenadoà morte. Ele, odiado anarquista, odiado pela trindade si-nistra: a Burguesia, o Estado e a Igreja. Esse sem-tetovagabundo incapaz de sentimento, como o diabrete ca-pitalista inteiro proclamava. Quão pouco eles conheci-am Durruti... Quão pouco entendiam seu coração aman-te. Ele nunca ficou indiferente às necessidades de seuscompanheiros. Agora, no entanto, ele estava engajadoem uma luta desesperada contra o fascismo em defesada Revolução, e cada homem era imprescindível em seuposto. De fato uma situação difícil de enfrentar. Mas aengenhosidade de Durruti vencia todas as dificuldades.Ele ouvia pacientemente a história de infortúnio e entãodiscorria sobre a causa da doença entre os pobres: exces-so de trabalho, desnutrição, falta de ar livre, de alegria deviver.

“Você não vê, camarada, que a guerra que eu e vocêtravamos é para salvaguardar nossa Revolução, e a Re-volução é para dar fim à miséria e ao sofrimento dos po-bres. Nós temos de vencer nosso inimigo fascista. Nóstemos que ganhar essa guerra. Você é uma parte es-sencial disso. Você não vê, camarada?”. Os camaradasde Durruti viam sim, e geralmente permaneciam.

Quando alguém insistia em partir, Durruti dizia “Tudobem, mas você vai a pé, e quando chegar a seu vilarejo,todos saberão que sua coragem falhou, que você fugiu, quese esquivou da tarefa que impôs a si mesmo”. Isso funcio-nava como mágica. O homem implorava para ficar. Ne-nhuma intimidação militar, nenhuma coerção, nenhu-ma punição disciplinar para manter a coluna Durruti no

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front. Só a energia vulcânica do homem carregava to-dos consigo e fazia todos sentirem-se unos com ele.

Um grande homem este anarquista Durruti, umlíder nato e professor dos homens, atencioso e ternocamarada em uma só pessoa. E agora Durruti estámorto. Seu grande coração já não bate. Seu corpo po-deroso veio abaixo como uma árvore gigantesca. E noentanto, porém —Durruti não está morto. As cente-nas de milhares que compareceram no sábado, 22 denovembro de 1936, para prestar sua última homena-gem a Durruti, são a prova disso.

Não, Durruti não está morto. O fogo de seu espíritoardente acende em todos que o amaram e conhece-ram, e nunca poderá ser extinto. As massas já ergue-ram alto a tocha que caiu das mãos de Durruti. Eles aestão carregando ante si na estrada que Durruti mos-trou por muitos anos, a estrada que leva ao ápice doideal de Durruti. Esse ideal era o anarquismo — agrande paixão da vida dele. Ele o serviu completamentee se manteve leal a ele até seu último suspiro.

Se fosse necessária uma prova da ternura de Durruti,sua preocupação com minha segurança teriam-nadado. Não havia lugar para alojar-me nos quartéis daequipe geral. E o vilarejo mais próximo era Pina. Maseste fora bombardeado repetidamente pelos fascistas.Durruti abominava que eu fosse mandada para lá. In-sisti que estava tudo bem. Afinal só se morre umavez. Pude ver em seu rosto o orgulho de que sua ca-marada não tinha medo. Deixou-me ir, sob forte pro-teção.

Fui grata a ele porque me deu a rara oportunidadede conhecer muitos dos camaradas em armas de Dur-ruti e também de falar com as pessoas do vilarejo. O

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espírito dessas vítimas do nazismo, mais que postas àprova, era extremamente impressionante.

O inimigo estava a apenas uma pequena distância dePina e do outro lado de um riacho. Mas não havia medoou fraqueza entre as pessoas. Eles heroicamente segui-am lutando. “Antes mortos que regidos pelo nazismo”, dis-seram-me. “Estaremos com Durruti e tombaremos comele até o último homem”.

Em Pina, descobri uma criança de 8 anos, uma órfãque já havia sido atrelada à labuta diária com uma famíliafascista. Suas mãozinhas estavam vermelhas e incha-das. Seus olhos, cheios de horror dos terríveis golpes sofri-dos nas mãos pelos mercenários de Franco. O povo de Pinaé deploravelmente pobre; no entanto todos davam a estacriança maltratada todo o amor e carinho que ela nuncaconhecera antes.

A imprensa européia, desde o começo da guerra anti-fascista, uniu-se para caluniar e difamar os espanhóisdefensores da liberdade. Não houve um só dia dos últimos4 meses em que estes sátrapas não escreviam as repor-tagens mais sensacionalistas das atrocidades cometidaspelas forças revolucionárias. Todos os dias os leitores des-sas folhas amarelas eram alimentados com notícias detumultos e desordens em Barcelona e outras cidades evilarejos livres da invasão fascista.

Tendo viajado por toda a Catalunha, Aragão e Levante,visitado cada cidade ou vilarejo no caminho, posso atestarque não há sequer uma palavra de verdade nos horripi-lantes relatos que li nas imprensas britânica e continen-tal.

Um exemplo recente da fabricação de notícias comple-tamente inescrupulosas era dada por alguns jornais a res-peito da morte do anarquista e líder heróico na luta anti-fascista, Buenaventura Durruti.

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De acordo com este relato absurdo, a morte de Durrutisupostamente levou adiante violentas dissensões e revol-tas em Barcelona entre os camaradas do falecido heróirevolucionário Durruti.

Seja quem for que escreveu essa invenção descabi-da, esta pessoa não esteve em Barcelona. E sabia me-nos ainda do lugar que Buenaventura Durruti ocupavanos corações dos membros da CNT e da FAI. De fato, noscorações e na estima de todos apesar de sua divergên-cia com as idéias políticas e sociais de Durruti. Na ver-dade, nunca houve tão completa unidade nas fileiras dofront popular na Catalunha, como desde que a morte deDurruti foi conhecida até quando ele foi finalmente postopara descansar.

Cada partido de cada facção política que lutava con-tra o fascismo espanhol parou para prestar tributo amo-roso a Buenaventura Durruti. Mas não só os camaradasdiretos de Durruti, contando centenas de milhares etodos os aliados na luta antifascista, a maior parte dapopulação de Barcelona representou um incessante aflu-xo de humanidade. Todos tinham vindo para participardo longo e exaustivo cortejo fúnebre. Barcelona nuncahavia testemunhado antes tal mar de gente, cujo pesarsilencioso ergueu-se e prostrou-se em completo unís-sono.

Assim também com os camaradas de Durruti — ca-maradas intimamente ligados por seu ideal, e os cama-radas da esplêndida coluna que ele havia criado. Suaadmiração, seu amor, sua devoção e respeito não deixa-ram espaço para discórdia e dissensão. Eles eram comoum só em seu pesar e determinação de continuar a ba-talha contra o fascismo, e pela concretização da revolu-ção pela qual Durruti havia vivido, lutado e se arriscadopor inteiro até seu último suspiro.

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Não, Durruti não está morto! Ele está mais vivo queos vivos. Seu exemplo glorioso será agora emulado portodos os camponeses e trabalhadores catalães, por todosos oprimidos e desamparados. As lembranças da cora-gem e da força de Durruti os incitarão a grandes feitosaté que o fascismo seja destruído. Aí então começará overdadeiro trabalho — o trabalho sobre uma nova estru-tura social de valor humano, justiça e liberdade.

Não, não! Durruti não está morto! Ele vive em nóspara todo sempre.

Tradução do inglês por Maria Abramo Caldeira Brant.

Notas1 “Durruti is dead, yet living”, Hoover Institution on War, Revolution andPeace, Stanford, 1936.

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RESUMO

Emma Goldman, momentos após a morte de Durruti, escreve umbreve e inesquecível texto sobre a existência revolucionária, naEspanha de 1936.

Palavras-chave: Durruti, Revolução Espanhola, anarquismo.

ABSTRACT

Emma Goldman, soon after Durruti’s death, writes a short andunforgettable essay on the revolutionary existence, in Spain in1936.

Keywords: Durruti, Spanish Revolution, anarchism.

Indicado para publicação em 15 de março de 2004.

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…elogio do amor livre1

amparo poch y gascón

Apresentação por Margareth Rago*

A ativista anarquista Amparo Poch y Gascón nasceem Saragoça, na Espanha, em 1902 e, como muito pou-cas mulheres em sua época, torna-se médica pedia-tra. Funda a Organização “Mujeres Libres”, vinculadaà CNT - Confederação Nacional do Trabalho, ao lado deMercedes Comaposada e Lucía Sanchez Saornil, algunsmeses antes da eclosão da Guerra Civil Espanhola, em1936. Escreve na revista do mesmo nome, onde assinacomo Dra. Salud Alegre, abordando, com fina ironia, te-mas políticos, sociais e relativos à saúde feminina einfantil. Assim como suas companheiras, — e como abrasileira Maria Lacerda de Moura (1887-1945), que tam-bém publicava na imprensa anarquista espanhola —,Amparo criticava a moral burguesa, a virgindade e o ca-samento monogâmico indissolúvel; defendia a liberda-de sexual para as mulheres, assim como a maternida-

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* Professora do Depto. de História - IFCH/UNICAMP.

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Elogio do amor livre

de consciente e voluntária. Dedica sua vida à luta re-volucionária, mesmo durante o exílio forçado pela as-censão do regime franquista. Falece em Toulouse, em1968.

Prece do Amor Livre

Diz assim:

I. Tome a pétala fresca e suculenta; tome a polpadoce da fruta madura; tome a senda esbranquiçada sobo sol do poente, a colina de ouro, o carvalho, e a fontena sombra. Tome meus lábios e meus dentes onde brin-cam as risadas como fios de água, e os fios de águacomo risadas.

II. Eu não tenho Casa. Tenho, sim, um teto amávelpara resguardar você da chuva e um leito para que vocêdescanse e me fale de amor. Mas não tenho Casa. Nãoquero! Não quero a insaciável ventosa que enfraqueceo Pensamento, absorve a Vontade, mata o Sonho, que-bra a doce linha da Paz e do Amor. Eu não tenho Casa.Quero amar no extenso “além” que não fecha nenhummuro nem limita nenhum egoísmo.

III. Meu coração é uma rosa de carne. Em cada fo-lha tem uma ternura e uma ansiedade. Não o mutile!

Tenho asas para ascender pelas regiões da pesqui-sa e do trabalho. Não as corte!

Tenho as mãos como palmas abertas para recolhermoedas incontáveis de carícias. Não as acorrente!

Convite ao Bom Amor

Mulher, ame sobre todas as coisas. Mas antes apren-da o Bom Amor. No Bom Amor pesa tanto o alto quanto

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o baixo, o Pensamento quanto a Carne, a Doçura quan-to o Desejo; e é incompleto se lhe falta qualquer umadestas coisas. Aprenda o Bom Amor.

Para ele é necessária plena liberdade, mas tam-bém capacidade plena, pois sem esta a primeira é umaficção. Apenas se é livre quando se pode tomar umadecisão dentre todas as que a ocasião oferece, quandose pode escolher um caminho depois de ter reconhe-cido todos, aquilatando seus valores e aceitando suasconseqüências. Mas isto é obra da Inteligência, do Co-ração e da Vontade, e é necessário aperfeiçoar os trêsse queremos alcançar a categoria de seres livres. Senão é assim, continuaremos afogando a nossa inqui-etude entre simulacros amorosos.

Se você não se capacita, mulher, será um ser deinstintos, será uma carne simples, monótona e limi-tada, fechada em você mesma e por você mesma abo-lida. Se você não se capacita poderá vibrar com o rit-mo irregular das estações e dos céus nublados segui-dos de sol forte; você terá a pulsação perene dosanimais e das plantas; dará suas generosas floraçõesde fêmea; mas não conseguirá o Bom Amor.

Cultive a Inteligência para enroscá-la como umameiga roseira trepadeira no duro tronco dos impera-tivos do Instinto; cultive a Sensibilidade e a Delicade-za para correr como um calmo riacho, recolhendo to-das as dores e todas as alegrias sem descanso, sem omenor abatimento de sua generosidade; cultive a Von-tade para perfilar sua vida, para modelar sua canção,para esculpir suas obras por você mesma.

E depois desdobre o Sorriso como uma suave ser-pentina multicolorida; reparta o Abraço num denso ra-cimo de frutas douradas; e solte o Beijo, como um cau-dal de música feliz.

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Elogio do amor livre

Lembre que o delicado Eros, para chegar ao Bom Amor,teve de desatar suas vendagens.

Mulher, ame sobre todas as coisas.

Casamento e amor

Quando o homem perdeu a fresca graça de seus amo-res sem travas, ingênuos e primitivos; quando se consu-miu a inocente naturalidade de suas paixões e se afogouem regras morais a sincera, a cordial simplicidade dodesfrute em plena marcha sobre a Natureza; quando ohálito perfumado e voluptuoso das “Canções da Bílis” foitotalmente esquecido... desceu o amor à categoria depecado. Mas como a vida, sem ele, estancava-se com suafadiga inexplicável, os homens, com um insano desejode vingança, lutaram contra Eros e lhe cuspiram no ros-to.

O condenaram ferozmente, sem pensar que se fazi-am desgraçados. Por uma paixão, toda uma vida de tortu-ra. Pela atração de um dia, incontáveis anos de repug-nância. Eros foi despojado de suas asas.

Por um doce olhar espontâneo é obrigado a estar olhan-do sempre o mesmo objeto; por um generoso e cândidoabraço é forçado a abraçar sempre a mesma pessoa. AAlma humana, imóvel; e a Vontade, solidificada em gelo!

Do gesto amoroso se fez um minucioso código, morto efrio; do mais grato e ardente presente, uma compra-ven-da em parcelas, inclusive com sua regulamentação; ou àvista, com seu contrato em regra, e a um preço muitomais elevado, porque além do dinheiro, que conta paramuito pouco, entram em compromisso o Coração e a Li-berdade, que são tudo para o Amor.

Quando, roubada a nobreza de toda manifestação amo-rosa, já feita dever, os homens se envergonharam, tal-

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vez, de tudo o que tinham manchado, tão só tentaramjustificar sua profanação com outra maior, tomada comodesculpa: o filho. E disto, tão claro e tão simples, tão divi-namente brutal e tão profundamente humano, fizeramum novo elo e soldaram a corrente para sempre, entre oscovardes. Fizeram tampo para sua hipócrita timidez, dofilho, que é apenas um ponto no qual convergem doiscuidados e dois deveres, mas nunca uma justificativa moraldo que tão só o Bom Amor, sobre nós, justifica.

E cegos os homens e as mulheres por si mesmos, con-tinuam caindo na armadilha; e, quando lhes falta nobrezapara encontrar saída, arrancam-se o Coração e o colocamcomo alicerce do Casamento.

Um fruto esplêndido: o adultério

Precisamente porque a Vida é Vida, não é quietude.Somos todos os seres de uma dupla corrente, que não ces-sa um momento, de entradas e saídas. Sob esta perma-nência aparente das formas, a matéria e a energia — duasmodalidades da mesma coisa — estão em perpétuo fluir,em um ir e vir sem descanso. E assim a Alma. Por isso, aose sentir ferida no mais profundo, ao sentir degradado omais nobre de sua natureza, rangeu de dor e espanto. Ain-da tentou conter-se na fria unidade de sua condena; masa Vida, em seu fluir eterno, impôs-se com razão. Assim,da degradante aceitação do casamento — contrato e regu-lamentação do inalienável — surgiu esse fruto vermelhoe redondo, farto e eloqüente, estupendo e prometedor: oadultério. É o protesto natural e humano contra a travapesada ao alado e imponderável; e reivindica, como umagargalhada fresca, entre zombeteira e honrada, o plenodireito à liberdade de amar, o transbordamento sobre ascorrentezas artificiais, da evolução da personalidade. Aquiestá, como uma conseqüência do esquecimento do verda-deiro ser de Eros e do Homem, este duplo crime da mísera

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Elogio do amor livre

vida diária: a convivência fria ou a carícia instintiva eisolada sobre a Carne muda; e o abandono culpado e te-meroso do Sentimento, valor universal. Em suma, amorque não é Amor.

A mulher em defesa

Quando perdeu sua louçania graciosa de lírio ereto,a mulher, estritamente monogâmica por imposição, jun-to ao homem, essencialmente poligâmico por natureza,e sinceridade cuidadosamente mantidas, percebeu umfato: a Propriedade. A Casa se fechava como uma bocaansiosa e havia nela muito que fazer. A realidade eco-nômica enterrou a mulher, completamente ignorantejá do ingênuo prazer da vida primitiva, de que a Casa aexcluía de todas as tarefas de produção, de todos os tra-balhos públicos que dão direito à subsistência. Esta lhevinha por meio do homem, a quem rendia seus serviçosprivados, inclusive os sexuais; e se defendeu em suanova posição, preocupando-se por consolidar os laços quea uniam ao homem.

Este homem é meu e eu sou sua, disse. A Proprieda-de encolheu seu pontudo nariz de agiota, piscou seusrepugnantes olhos e todos os regimes de opressão au-mentaram as cifras de suas vítimas.

Foi a venda da Consciência, da Liberdade, da Espon-taneidade, pela Irresponsabilidade e a negação a produ-zir.

Em direção ao Bom Amor

Mulher, se você quer recobrar a dignidade perdida;se quer encontrar um sol novo neste sol tão antigo; sequer sentir o renascimento de sua alma e a graça sin-gular de se encontrar a si mesma, suba a escada amo-

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rosa em benefício de sua superação. Multiplique suacapacidade de amor, mulher, mas...

Pense que o sentir nem lhe dá direito sobre nin-guém nem a faz objeto de propriedade.

Pense que por muito grandes que sejam a paixãodo prazer e o prazer da paixão, não devem arrastarvocê em sua torrente; e que se em uma hora gloriosavocê pode extraviar seus sentidos, jamais deve per-der sua vontade.

Pense que o homem amado tem sua alma, suasidéias, seus interesses, sua personalidade, enfim, quesó em alguns pontos coincidirá com a sua; mas que amais perfeita coincidência não supõe a absorção deum pelo outro.

Pense que é imoral permanecer em vida comum eíntima quando não existe uma florescente Ilusão, umapalpitante Ansiedade, um doce e sereno Bom Amor,ainda quando tenham sido feitas mil promessas e milpropósitos tenham criado mil ligações.

Pense que o filho também não é, nem deve ser, ra-zão de comunidade amorosa quando já não há amor;que é possível amá-lo, cuidá-lo, instrui-lo, protegê-lo,educá-lo, sem se servir dele como pretexto para a maisrepugnante das mentiras.

Pense que por ele não se deve mentir, que precisa-mente por ele se deve ser nobre, sincero, corajoso,com uma alma e uma ação paralelas, com uma fé euma atitude acordes; que é necessário sentir e fazera verdade para poder ensiná-la a ele.

Pense que para chegar ao Bom Amor é necessárioaprender a trabalhar, a sentir docemente e com reti-dão, a ter aspirações, a movimentar a inteligência,profundamente inquieta, em direção ao Bem...

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Amor livre!

E então, mulher, apaixonadamente apaixonada, nãopeça por seu amor. Grane-o, como a videira; floresça-o,como a roseira; levante-o, como o eucalipto; sem pergun-tar nada, sem pedir nada para o amanhã.

Nem a videira, nem a roseira, nem o eucalipto, an-tes de granar, antes de florescer, antes de se levan-tar, pedem um jardineiro que os atenda, nem exigempromessa de que o sol não haverá de secá-los, nem ovento haverá de quebrar seus talos, nem a água im-petuosa haverá de afogar suas raízes. Eles são gene-rosos, e quando um deles perece, muitos mais nas-cem para a vida. Ame, ame, mas que os braços nãolhe sirvam como amarras, mas como coroa. Deixe quetudo vá e volte; e você, sorria sempre, tenaz procura-dora de todas as alegrias terrenas. Sorria sempre, ágile sentimental, doce e reflexiva, através do esqueci-mento, do desprezo, da critica. Alente sua criação: lan-ce à Vida uma nova medida para estimação de seusexo. A Vida está cansada já da Mulher-esposa, pesa-da, demasiado eterna, que já perdeu as asas e o gostopelo deliciosamente pequeno e pelo nobremente gran-de; está cansada da Mulher-prostituta, à que resta ape-nas a raiz sucintamente animal; está cansada da Mu-lher-virtude, séria, branca, insípida, muda...

Invente o novo tipo; ponha o sal na Vida; a cor e achama nos beijos desiguais. Ame, fale, trabalhe. Com-preenda, ajude, console.

Aprenda a desaparecer e a desobrigar de sua pre-sença; e a conhecer o valor do “eu” livre. Sem nada;nem por dinheiro, nem por paz, nem por sossego...Amor Livre!

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Remessa

Eu não tenho a Casa, que o arrasta como uma in-transigente e implacável garra; nem o Direito, que olimita e o nega. Mas tenho, Amado, um carro de flores ehorizonte, onde o sol se põe como roda quando você meolha.

Quando você me beija...

Mujeres Libres, número 5, julho 1936

Tradução do espanhol por Natália Montebello.

Notas1 Extraído de Antonina Rodrigo. Amparo Poch y Gascón. Textos de una médicalibertaria. Zaragoza, Alcaraván, 2002, pp. 95-101.

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RESUMO

Amparo Gascón fala do Bom amor. O amor livre de correntes, deamarras, de prisões. Critica a monogamia como relação anti-natu-ral, como uma imposição institucionalizada que atinge com maisforça a mulher que o homem e a torna a protetora da Casa, guardiãde sua prisão. E em contra-partida à regulamentação do corpo,dos sentimentos e das relações, aponta para o adultério como umprotesto natural e humano.

Palavras-chave: adultério, amor-livre, mujeres libres.

ABSTRACT

Amparo Gascon talks about the Good love. The love that is freefrom chains, ties and prisons. She criticizes monogamy as an anti-natural relation, an institutionalized imposition that strikes harderwoman than man and turns her into the protector of the House,guardian of her own prison in opposition to the regularization ofthe body, the feelings and relationships, pointing out adultery asa natural and human protest.

Keywords: adultery, free love, mujeres libres.

Indicado para publicação em 3 de março de 2006.

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narcisismo, sujeição e estéticas daexistência

margareth rago*

“...mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistidode si mesmo.”

Clarice Lispector

A cultura de si que se desenvolve nos marcos da atu-alidade poderia fazer ouvir uma voz uníssona postulan-do comportamentos narcisistas, egocêntricos e altamen-te alienantes, de modo a acentuar as tendências de iso-lamento, a quebra de vínculos e a desagregação socialque enfrentamos em nosso mundo. Já sabemos que aModernidade introduziu concepções e valores masculi-nos, que norteiam as formas de constituição de si e dasrelações com o outro, muito problemáticos, porque es-peculares, autoritários, competitivos e sedentários. Con-tudo, também aprendemos, nas últimas décadas, que,em outros momentos históricos, a exemplo da Antigüi-

* Professora do Depto. de História - IFCH/ UNICAMP.

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dade greco-romana, encontram-se experiências sociaise reflexões éticas em torno das práticas de si bastantediferenciadas, ou seja, mais humanizadas, integradase sofisticadas. Nessa direção, as problematizações deMichel Foucault foram decisivas para introduzir e des-dobrar essas discussões.1 Já o feminismo, em sua lutapela emancipação feminina, denunciou vigorosamenteas formas de sujeição das mulheres e de produção desua subjetividade pela “cultura do narcisismo”, queabrangem as práticas corporais de embelezamento erejuvenescimento largamente difundidas pela mídia,assim como o recurso a avançadas tecnologias de inter-venção no corpo ou de cirurgia plástica.

Christopher Lasch analisa com profundidade a “cul-tura do narcisismo”, mostrando como, nesta, o indiví-duo se torna incapaz de sair de dentro de si mesmo e deter distância em relação ao mundo, tamanho o grau deprojeção e identificação que estabelece com o mundoexterior.2 Portanto, dificilmente consegue perceber o Ou-tro em sua diferença e positividade. Para a personalida-de narcisista, o mundo público é visto como um espelhodo eu, confundido com o privado. Ao contrário do que ocor-ria no século XVIII, na Europa, em que as pessoas com-partilhavam um fundo comum de signos públicos, o quecriava melhores condições de sociabilidade, no séculoXIX, o culto romântico da transparência e da autentici-dade “rasgou as máscaras da civilidade” usadas em pú-blico.3 Doravante, fortalece-se a crença de que o “verda-deiro eu” se encontra no fundo de cada um de nós, mar-cado pelo sexo biológico, e que aquele que conseguemostrar-se em sua transparência é digno de ser defini-do como o mais verdadeiro e o mais confiável no gruposocial. No entanto, ao sobrepor o privado no público, aoconfundir as duas esferas, o indivíduo deixa de ver acidade como espaço possível de interação social e torna-se um “espectador passivo,”4 constantemente insatis-

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feito consigo mesmo e com as relações sociais que con-segue estabelecer.

Nesse contexto, a preocupação consigo mesmo refor-ça o narcisismo, à medida que incita o indivíduo a vol-tar-se para “o seu próprio umbigo”, a ter olhos exclusi-vos para si mesmo, ao mesmo tempo em que esta imer-são na própria interioridade é especialmente reforçadapela estetização da aparência pessoal e pelo embeleza-mento do próprio corpo, seja através das práticas de gi-nástica em academias e do consumo de cosméticos, sejapelas intervenções cirúrgicas que proliferam, especi-almente, no Brasil. Vale enfatizar, entretanto, que ovoltar-se para o próprio eu não significa um encontrointerior, uma conquista do equilíbrio pessoal, num mo-vimento subjetivo libertário, mas, ao contrário, leva auma dissociação de si, já que se trata de um investi-mento para adequar-se a um modelo exterior, impostopelo mercado e pela mídia. Nesse caso, o indivíduo as-sume e adere sem mediações à fantasia que projeta desi mesmo.

No entanto, como forma de sujeição e de renúncia desi, o culto contemporâneo do corpo está nas antípodas do“cuidado de si” do mundo greco-romano, aonde era fun-damental a “conversão a si”, a partir de todo um traba-lho ético-estético de elaboração pessoal. Para Foucault,aliás, quanto mais o indivíduo é incitado a exprimir oseu eu mais profundo e a revelar as suas emoções maisíntimas, mais fica submetido a essa forma de poder de-nominada de “governo por individualização”, que se exer-ce na vida cotidiana, vinculando-o à sua identidade.

Já sabemos também o quanto essa “cultura somáti-ca”5 é, de algum modo, tributária da estética do racis-mo, que, apropriando-se do ideal da beleza grega desdeas suas origens, no século XVIII, preconiza harmonia,proporção nas formas corporais, virilidade e moderação,

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conseguidas a partir de atividade física, do esporte e daginástica. No século XIX, esta se torna moda enquantoforma de escultura do corpo, tendo por função criar ho-mens saudáveis e fortes para a nação. Para a mulher,excluída da esfera pública, afirma-se o ideal da “mãe daraça”, santificada, de formas opulentas, mulher natu-reza voltada para o amor pelo esposo e para os cuidadosdo lar e dos filhos, em oposição à figura feminina notur-na, erotizada, avessa ao trabalho e ansiosa por prazer.6

Vale lembrar o quanto essa discussão se afina comas reflexões da filósofa alemã Hannah Arendt, especial-mente em suas análises sobre As origens do totalitaris-mo, livro que aparece primeiramente em 1951. Para ela,o surgimento das massas, constituída por multidões deindivíduos atomizados, indiferentes, carentes de ideale de ação política explica, em grande parte, a força dosregimes totalitários, como o nazismo e o estalinismo.Ela afirma que uma das principais estratégias de con-trole social dos regimes totalitários é a atomização doindivíduo, a quebra dos vínculos espontâneos estabele-cidos entre os homens/mulheres e os grupos sociais. Éa destruição das redes de articulação política, como ossindicatos, as comissões operárias, as formas informaisde organização de base, tanto quanto sociais, — clubes,associações de moradores, grupos de lazer, etc. — quese tornam focos de violenta repressão do Estado. Semlaços afetivos e sociais suficientemente fortes para an-corá-los, sem compromissos políticos que os envolvam earticulem, os indivíduos ficam soltos e cada vez maisfragilizados em sua solidão; isolados e sentindo-se de-samparados, tornam-se vulneráveis à propaganda tota-litária, presas fáceis para o poder. Em suas palavras: “ototalitarismo que se preza deve chegar ao ponto em quetem de acabar com a existência autônoma de qualqueratividade que seja, mesmo que se trate de xadrez. Osamantes do “xadrez por amor ao xadrez”, adequadamen-

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te comparados por seu exterminador aos amantes da“arte por amor à arte”, demonstram que ainda não fo-ram totalmente atomizados todos os elementos da soci-edade, cuja uniformidade inteiramente homogênea é acondição fundamental para o totalitarismo. [...] Os mo-vimentos totalitários são organizações maciças de indi-víduos atomizados e isolados.”7

O objetivo do poder totalitário é, assim, destruir asredes associativas espontaneamente constituídas, dis-tribuir os indivíduos, isolá-los, classificá-los e organizá-los, como mostra tão bem Foucault nos anos 1970, demodo a facilitar a dominação. Vigiar e Punir é, nesse sen-tido, um estudo profundo da formação da sociedade dis-ciplinar, que, na verdade, é a sociedade totalitária porexcelência, produtora de “corpos politicamente dóceis,mas economicamente produtivos.”8 Indivíduos isoladosuns dos outros, sem laços de interesse comum que osunam, como acontece, por exemplo, com as classes so-ciais, incapazes de estabelecer redes de relações soli-dárias, carentes da interação humana possível com omundo na esfera pública e privada, tornam-se indife-rentes e desinteressados não só em relação aos outros,mas também diante de si mesmos. Como afirma Duar-te, ao analisar o pensamento da filósofa alemã: “A perdados interesses é idêntica à perda de si, e as massasmodernas distinguem-se [...] por sua indiferença quan-to a si mesmas (selflessness), quer dizer, por sua au-sência de interesses individuais.”9

Reforçando essa discussão, Giorgio Agamben, na es-teira de Walter Benjamin, mostra como o indivíduo, nomundo contemporâneo, foi expropriado também cultu-ralmente, ao ser destituído de sua própria experiência.Em suas palavras: “(...) aliás, a incapacidade de fazer etransmitir experiências talvez seja um dos poucos da-dos certos de que disponha sobre si mesmo.”10 Segundo

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ele, já não é nem mesmo necessária uma catástrofepara a destruição da experiência, uma vez que a própriaexistência cotidiana profundamente repetitiva e monó-tona, nas grandes cidades não deixa nada a ele que pos-sa ser traduzível em experiência: “o homem modernovolta para casa à noitinha extenuado por uma mixórdiade eventos — divertidos ou maçantes, banais ou insóli-tos, agradáveis ou atrozes — entretanto nenhum delesse tornou experiência.”11

Portanto, desenraizados, expropriados, sem vínculosfortes com a tradição e com o seu meio social, os indiví-duos se tornam disponíveis, pois se consideram semimportância e, logo, tornam-se presas fáceis para osregimes totalitários e para os discursos sedutores dosfascismos cotidianos.

De outro lado, é na Antigüidade clássica que Foucaultencontra morais que não se destinam a sujeitar o indi-víduo, a produzir “corpos dóceis”, obedientes e submis-sos, como na Modernidade, fazendo-o renunciar a simesmo, como pregará o cristianismo, submetendo-se anormas, leis, códigos e regras pretensamente univer-sais, impostos a todos em nome do bem comum. Naque-le mundo, evidenciam-se outros modos de constituiçãoda subjetividade, — as “estéticas” ou “artes da existên-cia” — , estilos de vida em que a preocupação maior é daordem da ética e da liberdade. Segundo ele: “da Antigui-dade ao cristianismo, passa-se de uma moral que eraessencialmente procura de uma ética pessoal a umamoral como obediência a um sistema de regras. E se eume interessei pela Antiguidade, é que, por toda umasérie de razões, a idéia de uma moral como obediênciaa um código de regras está em vias, hoje, de desapare-cer, já desapareceu. E a esta ausência de moral respon-de, deve responder uma pesquisa que é a da estética daexistência.”12

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Num mesmo movimento, portanto, a valorização daHistória, o reencontro com a tradição herdada da Anti-guidade clássica, — tradição cujos elos haviam sido per-didos, como enfatizara Hannah Arendt, referindo-se à“herança sem testamento”, na expressão do poeta RenéChar — e a constituição de um novo conceito: o da “sub-jetivação”.

No primeiro caso, a genealogia de inspiração nietzs-chiana é fundamental para escapar de uma leitura apa-ziguada e linear do passado, legitimadora do presente, erestituir-lhe sua própria temporalidade. O outro concei-to é importante para que Foucault possa sugerir saídaspara nossa atualidade, que se debate com a necessida-de urgente de fundar uma nova ética,13 — novas refe-rências para a construção dos códigos norteadores daação —, enquanto os códigos modernos de sociabilidadedesmoronam por falta de fundamentos éticos e a noçãode identidade é criticada como forma fascista de cons-trução e afirmação de personalidades autoritárias e ego-cêntricas. Mostrando modos diferentes e estilizados deexistir, Foucault aponta para as práticas de si do mundogreco-romano como práticas da liberdade, exercidas narelação consigo mesmo e constituídas por exercícios quea sociedade oferece e ensina, como maneiras de formarlibertariamente o cidadão, educar o jovem na aprendi-zagem do “cuidado de si” e na relação com o outro. Se-gundo ele, “(...) as morais antigas [...] eram essencial-mente uma prática, um estilo de liberdade. [...] A vonta-de de ser um sujeito moral, a procura de uma ética daexistência eram principalmente, na Antiguidade, umesforço para afirmar sua liberdade e para dar à sua pró-pria vida uma certa forma na qual se poderia reconhe-cer, ser reconhecidos pelos outros [...].”14

Reforçando esses argumentos e referindo-se à expe-riência de si e do corpo que tinham os antigos gregos, o

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historiador Jean-Pierre Vernant explica que para eles,“(...) o eu não é nem delimitado nem unificado: é umcampo aberto de forças múltiplas [...] essa experiênciaé, sobretudo, orientada para fora e não para dentro. Oindivíduo se procura e se encontra no outro, nesses es-pelhos que refletem sua imagem e que são para ele cadaalter ego, parentes, filhos, amigos.”15

Segundo Vernant, o indivíduo se realiza naquilo queele projeta e opera, sem introspecção. O cogito ergo sumnão faria nenhum sentido para um homem grego. Emsuas palavras: “O sujeito não constitui um mundo inte-rior fechado, no qual ele deve penetrar para se reencon-trar ou antes para se descobrir. O sujeito é extrovertido.[...] A consciência de si do indivíduo não é reflexiva, vol-tada para si mesmo, fechamento interior, face a facecom sua própria pessoa: ela é existencial. A existênciaé anterior à consciência de existir.”16

Vale acompanhar, mesmo que brevemente, algunsdesdobramentos das reflexões de Foucault sobre o “cui-dado de si”, tema que atravessa a reflexão moral da An-tigüidade e que contrasta radicalmente com a experi-ência moderna. Em nossa sociedade, ocupar-se de simesmo é interpretado de modo suspeito, como forma deindividualismo exacerbado, sinal de vaidade e de egoís-mo, em oposição aos interesses públicos, ao bem comum.Já para os gregos e romanos, era imprescindível sabercuidar de si, ter o governo de si para a relação libertáriatambém com o outro. Com o cristianismo, a salvaçãopessoal só pode ser obtida com a renúncia de si, com anegação dos próprios desejos, com o sacrifício pessoal.Para os antigos, ao contrário, tratava-se de trabalhar-se, de esculpir-se, de dar-se uma forma estilizada devida, o que implicava saber usar os prazeres, para sechegar à vida temperante, equilibrada. Segundo Fou-cault, “(...) para os gregos e romanos — sobretudo para

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os gregos —, para bem se conduzir, para praticar comose deve a liberdade, era preciso ocupar-se de si, preocu-par-se consigo mesmo, ao mesmo tempo para conhe-cer-se [...] e para formar-se, para superar-se a si mes-mo, para dominar em si os apetites que ameaçariamlevá-lo.”17

Foucault insiste, portanto, em mostrar como o conhe-cimento de si, entendido como uma busca do que existede verdadeiro no fundo de nós mesmos não é um atoneutro, mas uma forma de submissão ao olhar do outro,já que se estabelece, como explica Gros, “(...) uma soli-dariedade histórica entre a constituição de si como ob-jeto de conhecimento por si mesmo, a obediência inde-finida ao Outro e a morte perpétua para si mesmo.”18 Aomesmo tempo, Foucault abre a possibilidade de proble-matizar a reinvenção de si mesmo, ao pensar a subjeti-vidade como histórica e não natural, como uma cons-trução e não como uma determinação biológica ou cul-tural inevitável, como afirmara o século XIX e aceitaragrande parte do século XX.

Considero que dar destaque, como faz o autor, ao temado “cuidado de si” na cultura greco-romana adquire, naatualidade, um significado político maior, pois trata-se,nessa “conversão” — e não “renúncia de si” — da pos-sibilidade das rebeldias e resistências, das mudanças,dos deslocamentos, do ser outro/a do que se é, de esta-belecerem-se novos laços sociais, enfim, de pensar eviver diferentemente. Foucault encontra essas práticaslibertárias precisamente naquilo que não era visto, emespaços que nos escapavam substancialmente por faltade olhar, ou antes, porque estávamos aprisionados emum modo de olhar identitário, profundamente excludentee normatizador. Por isso, escapava-nos uma outra ma-neira de pensar a subjetividade, não como uma nature-za ancorada no corpo e no sexo biológico, mas como um

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trabalho refletido sobre si e orientado por regras e prin-cípios.

Essa inversão do olhar nos faz perceber o quanto es-távamos distantes dessas problematizações, já que os“discursos da revolução” incitavam a esquecer-se daprópria subjetividade, considerada como “desviante”.Contudo, nessa inversão de cento e oitenta graus, nãose trata de mergulho, mas de ficar na superfície, en-contrando o sujeito imerso em redes de relações e sig-nificações, constituído na linguagem, como efeito e nãocomo origem.

Foucault pergunta pelas condições sociais e cultu-rais que produzem indivíduos narcisistas, personalida-des egocêntricas, insensíveis e intolerantes, questio-nando, portanto, os modos naturalizados de produção doser e da própria existência, para além da dimensão eco-nômica. Ao mesmo tempo, aponta, vale repetir, paramodos diferenciados de problematização e de experiên-cia individual ou social, como os que possibilitam a cons-tituição do eu ético através das práticas do “cuidado desi”.

Examinando aquilo que caracteriza o “cuidado de si”na experiência dos antigos gregos, Gros enfatiza a di-mensão da oposição entre o “cuidado de si” e o “conheci-mento de si”: à pergunta “quem é você”, Sócrates res-ponde com um deslocamento: “o que você está fazendode sua vida?”. A seguir, Gros explica que o “cuidado desi” não remete tanto a uma forma de meditação, mas deconcentração, pois se trata de mostrar que os exercíci-os de “conversão a si” não implicam atitudes de intros-pecção, de hermenêutica de si, nem da objetivação desi por si mesmo, como poderíamos supor. “A atitude queconsiste para o sábio em se retirar em si mesmo, em sevoltar para si, em se concentrar em si mesmo visa an-tes uma intensificação da presença para si.”19

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Discutindo a “A parrésia no cuidado de si”, Foucaultexplica que, na conversa face a face com Sócrates, emque se é exigido a fazer um exame da própria vida, nãose trata de preencher o modelo da autobiografia confes-sional, afinal, “dar conta de sua vida, seu bios, inclusi-ve, não é dar uma narração dos acontecimentos histó-ricos que ocorreram em nossa vida, mas bem demons-trar que se é capaz de mostrar que há uma relação entreo discurso racional, o logos, que se é capaz de usar e amaneira como se vive. Sócrates está perguntando acer-ca do modo como o logos dá forma a um estilo de vidapessoal, porque está interessado em descobrir se há umarelação harmônica entre os dois.”20

Segundo ele, quando Sócrates pergunta a Laques pelasua coragem na guerra do Peloponeso, não pretende queele lhe relate todas as suas façanhas heróicas, mas quemostre como o logos dá forma racional, inteligível, à suacoragem. O “cuidado de si” supõe, pois, uma correspon-dência regulada e harmônica (a metáfora do músicoque consegue a bela harmonia não na lira, mas quesabe harmonizar sua vida — logos e bios) entre o pensa-mento e a ação; entre o que se diz de si mesmo e o quese faz, entre palavras (logoi) e ações (erga). Visa tornar-se senhor de si mesmo, pelas meditações sobre o mun-do, a natureza das coisas e si mesmo. Diz Foucault, “(...)o sofista pode fazer discursos muito pertinentes e boni-tos sobre a valentia, mas não é ele mesmo valente.”21 —por isso, Sócrates pode ser considerado um parresiasta.

Portanto, aqui não se trata do elogio do individualis-mo narcisista, de uma figura solitária e indiferente aomundo, como lembra Gros, mas da “(...) maneira comoele se integra num tecido social e constitui um motorda ação política. O cuidado de si se exerce num quadrolargamente comunitário e institucional: é a escola deEpíteto que oferece formações diferenciadas e dirige-se

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a um amplo público de discípulos; é Sêneca praticando ocuidado de si, ao entreter uma correspondência escritacom amigos, escrevendo tratados circunstanciados, etc.Foucault não deixa de insistir sobre esse ponto: o cuida-do de si não é uma atividade solitária, que cortaria domundo aquele que se dedicasse a ela, mas constitui, aocontrário, uma modulação intensificada da relação so-cial. Não se trata de renunciar ao mundo e aos outros,mas de modular de outro modo esta relação com os ou-tros pelo cuidado de si.”22

Contudo, apesar de todas essas críticas aos modosimperantes de subjetivação no mundo contemporâneo,também se pode afirmar que nem todos sucumbiram aessa moral do espetáculo e que nem todos caíram den-tro da “bolha narcísica”, como destaca Freire Costa. Sa-bemos, ademais, que cuidar de si pode ser uma manei-ra de facilitar a relação com o outro. E, aliás, hoje co-nhecemos melhor nosso corpo, damos maior atenção àsaúde, cuidamos melhor de nós mesmos, sem necessa-riamente nos alienarmos. Para Sennett, faz parte dacivilidade o cuidado de si, da aparência e da higienepessoal.

Finalmente, gostaria de destacar a maneira pela qualo feminismo também traz importantes contribuiçõespara esse debate, tanto pelos questionamentos que co-loca, quanto pelas práticas que incita. Afinal, o feminis-mo valorizou as mulheres, enfatizando especialmentesua capacidade política e administrativa, sua inteligên-cia e espiritualidade, em oposição aos discursos misó-ginos que as associavam exclusivamente ao corpóreo;desfez, pois, as tradicionais dicotomias que separavamhierarquicamente corpo e alma. Realizou, ainda, umacrítica contundente ao ideal de feminilidade e beleza eaos cuidados excessivos com o corpo como formas desujeição, preconizados pela mídia, e não como trabalho

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sobre si mesmas, o que ao mesmo tempo não significaque tenha descartado as preocupações com as questõesda saúde. Muito pelo contrário, deslocando o foco das aten-ções, o movimento feminista deu visibilidade a uma sériede temas diretamente relativos ao corpo feminino, à se-xualidade e à maternidade, mas também à violência do-méstica, ao estupro, ao aborto, antes silenciados pela so-ciedade em geral. Portanto, discutir os temas que envol-vem o corpo feminino passa, desde as lutas empreendidaspelo feminismo, por considerar importantes aspectos re-lativos à saúde física e psíquica das mulheres, o que porsua vez, implica a demanda por novas formas de relaçãoentre os gêneros.

O movimento feminista denunciou as inúmeras for-mas de alienação e sujeição feminina, sobretudo aquelasque levam à perda de si mesmas para se constituirempelo olhar e pelo desejo masculinos, a partir de modelosveiculados pela mídia e favorecidos pelo mercado. Nessesentido, criou e tem criado estratégias de valorização daauto-estima das mulheres, entre ricas ou pobres, bran-cas ou negras, hétero ou homossexuais, que passam tam-bém pelo corpo, com seus encantos e seduções, ou comsuas rugas e estrias. Em outras palavras, se a ideologia dadomesticidade defendeu a abnegação e o esquecimentode si como virtudes femininas, trata-se agora de defenderum outro modo de cuidado de si, marcando claramenteas críticas e diferenças em relação ao culto narcísico, fa-vorecido na contemporaneidade.

Notas1 Michel Foucault. História da sexualidade – o uso dos prazeres. Tradução de MariaThereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro, Graal, 1985 ; História da sexualidade– o cuidado de si. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro,Graal, 1985 e A hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio Alves da Fonseca eSalma Tannus Muchail. São Paulo, Martins Fontes, 2004.

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2 Christopher Lasch. A cultura do narcisismo. Tradução de Ernani Pavaneli. Rio deJaneiro, Imago Editora Ltda., 1983.3 Idem, p. 51.4 Richard Sennett. El declive del hombre publico. Tradução de Gerardo di Masso.Barcelona, Ediciones Peninsula, 1978.5 Jurandir Freire Costa. A aura e o vestígio. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2004, p.192.6 George Mosse. La révolution fasciste. Paris, Seuil, 2003, p. 89.7 Hannah Arendt. Origens do totalitarismo. Totalitarismo, o paroxismo do poder. Traduçãode Roberto Burigo. Rio de Janeiro, Editora Documentário, 1979, pp. 50-51.8 Michel Foucault. Vigiar e punir. Tradução de Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro,Vozes, 1976.9 André Duarte. À sombra da ruptura. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2000, p. 51.10 Giorgio Agamben. Infância e História. Destruição da experiência e origem da história.Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2005, p. 21.11 Idem, p. 2212 Michel Foucault. Dits et ecrist, vol II. Paris, Gallimard, 1994, p. 1551.13 Diz Frédéric Gros: “Esta história do sujeito na perspectiva das práticas de si, dosprocedimentos de subjetivação se separa nitidamente do projeto formulado, nosanos setenta, da história da produção das subjetividades, dos procedimentos desujeição pelas máquinas do poder. A história que Foucault quer descrever, em 1982é a das técnicas de ajuste da relação de si para consigo: história que leva em conta osexercícios pelos quais eu me constituo como sujeito, a história das técnicas desubjetivação, história do olhar a partir do qual eu me constituo para mim mesmocomo sujeito.” In Margareth Rago e Alfredo Veiga-Neto (orgs.). Figuras de Foucault.Rio de Janeiro, DPA, 2005, no prelo.14 Foucault, op. cit, 1994, p. 155015 Jean-Pierre Vernant. L´individu, la mort, l´amour. Soi-même et l´autre en Grèce ancien-ne. Paris, Gallimard, 1981, p. 224.16 Idem.17 Foucault, op. cit., 1994, p. 1531.18 Gros, op. cit., 2005.19 Idem.20 Foucault, op. cit., 2004, p. 332.21 Idem, p. 335.22 Gros, op. cit., 2005.

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RESUMO

Entendendo a questão da subjetivação como eminentemente políti-ca — já que se trata de uma forma extremamente sofisticada dedominação individual e social — busca-se evidenciar a crítica aosmodos de constituição da subjetividade vigentes no mundo con-temporâneo, percebidos, também pelo feminismo, como formas desujeição e não de liberação. Por sua vez, o feminismo é responsá-vel pela desconstrução da identidade feminina e pela proposta denovos modos de existência para as mulheres.

Palavras-chave: narcisismo, estética da existência, subjetividade,feminismo, gênero.

ABSTRACT

Assuming that subjectivation is a political issue, I try to highlightthe critique of contemporary modes of production of the subjectivi-ty, considered as forms of power and subjection and not as rela-ted to liberation. Feminism is considered as responsible for thecontemporary deconstruction of female identity and by the searchfor new ways of existence especially for women.

Key-words: narcisism, aesthetics of existence, subjectivity, femi-nism, gender

Recebido para publicação em 20 de fevereiro de 2006 e confirma-do em 20 de março de 2006.

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Poéticas do virtual e os processos de subjetivação

poéticas do virtual e os processos desubjetivação

tania mara galli fonseca*

“De certa forma, a identidade nômade é a reinvenção demim enquanto outro. É o espaço de mim. Se pensarmos esteespaço identitário como estando em ligação com todos osoutros espaços de um “eu” que os critica, designa ou refle-te, temos aí uma heterotopia identitária. Eu, nômade, sououtro, além daquilo que pareço ou falo. Eu sou um espaçode mim, migratório, de transição, nesta cartografia que merevela e me nega. Eu sou o espelho de mim, um lugar semlugar. (...) Em um espaço irreal que se abre virtualmenteatrás da superfície, eu estou lá, onde não estou, uma espé-cie de sombra que dá a mim mesmo minha visibilidade,que me permite olhar-me lá onde não estou.”

Michel Foucault

* Psicóloga, Professora Titular do Instituto de Psicologia, pesquisadora e do-cente do programa de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional daUniversidade Federal do Rio Grande do Sul.

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A conversa que procuraremos estabelecer com osnovos modos de produção de imagens, impulsionar-nos-á na direção de um enredamento conceitual, situado noentre de relações disciplinares. Para fins de situar nos-so ponto de vista, julgamos interessante delimitar nos-sa concepção de sujeito-corpo como efeito complexo deagenciamentos maquínicos que se processam inces-santemente no entre dos corpos, das máquinas, dos dis-cursos e das práticas.

Imersos no mundo, os corpos fazem suas dobras car-nais. Neles ressoam as potências e as tendências deseu tempo, para o qual se oferecem como vias de passa-gem. Nos corpos formados, revelam-se as marcas do modoque os produziu, sendo que, portanto, podemos afirmarque abrigam a dupla condição de criaturas-criadores desua atualidade. Corpos engendrados por tecnologias di-versas, fabricações temporalizadas, isentos daquela es-sencialidade que permitiu a difusão de um paradigmauniversalizante, a-histórico e naturalizado de homem.

Considerando os novos modos de produção digitalcomo dispositivos disruptores dos limites do corpo sen-sorial e, sobretudo, de suas potências vitais, buscamosvislumbrar algo das potencialidades subjetivantes dasatuais poéticas tecnológicas.1 Pode-se dizer que, hoje,vivemos uma idade social que nos coloca possibilidadesde libertar a imagem da noção de verdade e o pensa-mento dos dogmas da naturalização, da autoria e da ori-gem. A marca da transformação continuada da imagemdigital desloca nosso olhar da linearidade tranqüilizan-te do fio de Ariadne da representação e desorienta-o aponto de estranhar a quase imperceptível repetição. Apossibilidade tecnológica atual de produção de imagensatravés de abstrações matemáticas, através de gensnuméricos, que nada tem a ver com o sistema figurati-vo — especular e representacional —, que modela o nos-

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so modo de ver e pensar, desfere-lhe um golpe mortal.As imagens geradas em computador não são resultadode um agente físico enunciador. Sendo inteiramentesintéticas, não dependem de conexões com objetos doexterior, e podem ser consideradas como meta-imagens,isto é, atualizações provisórias de um campo de possibi-lidades, algo parcial de um universo plástico potencialque ela não pode jamais exibir no seu todo. Em um certosentido, a imagem digital é uma hipertrofia dos postu-lados estéticos do século XV, pois ela realiza, hoje, o so-nho renascentista de uma imaginação puramente con-ceitual, passível de ser materializada em imagens. Re-alismo desencarnado, puro conceito e abstração, sãoelaboradas com modelos matemáticos e não em dadosfísicos arrancados da realidade visível e sensível.

Estaríamos vivendo as possibilidades de ver o invisí-vel? Talvez muito mais, conforme nos mostra ArlindoMachado, quando analisa as atuais tendências da cul-tura do virtual. Para o autor, pelo menos “(...) teorica-mente uma mesma informação depositada em supor-tes digitais pode ser atualizada sob forma de música,imagem, texto, escultura holográfica ou qualquer outramodalidade de saída.”2 Não consistindo senão de bits ele-trônicos, a informação de natureza eletrônica dependedo meio de exibição. Este é que definirá o caráter formalde sua mensagem. Assim, uma peça musical pode ser“vista” em uma tela, uma imagem pode ser “ouvida” emuma caixa de som e um poema literário pode ser expe-rimentado como uma escultura holográfica.

Estas torções e desencontros entre órgãos sensori-ais de recepção e formalização da mensagem, apon-tam oportunidades para pensarmos a problemática docorpo-sem-órgãos, proposta por Antonin Artaud e estu-dada por Gilles Deleuze e Félix Guattari. Para os auto-res, o olhar deve ser concebido como a possibilidade de

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ultrapassagem do que os olhos vêem, e assim, todas asfunções corporais que se encontram, por sua vez, cap-turadas por um funcionalismo moralizado, reducionistade novas possíveis experimentações.3

Por outro lado, e ainda perseguindo as torções quesomos obrigados a efetuar, podemos dizer que, enquan-to dispositivos expressivos, comunicacionais e informa-tivos, as tecnologias digitais inscrevem-se na geome-tria fractal que coloca em xeque as últimas garantiasdo sistema euclidiano da representação, pois consegueoperar através de categorias abstratas inexistentes nanatureza como o ponto, a linha, o plano e o volume. Nageometria fractal, as relações entre diferença e repeti-ção são demonstradas de forma contundente: cada par-te repete a forma macroscópica predominante, como sefosse uma miniatura e o exame pode ser continuadoinfinitamente, ampliando detalhes cada vez menores efazendo vir à tona novas reverberações do motivo plásti-co principal. O princípio fractal consiste em considerarque as formas complexas derivam de padrões elemen-tares, codificados por um “gerador”; elas operam por co-nexões aberrantes, desmontam a lógica binária quecaracteriza o predominante modo cartesiano de pen-sar e daí emergem deformações perspectivas, desdo-bramentos do código perspectivo, produzindo efeitos ir-realistas e fantásticos. Se o olhar do sujeito contempo-râneo permanece determinado por modelos formativosdo passado, atualmente é possível dar-lhe a ver umaespécie de realismo conceitual construído por anamor-foses, contrárias à lógica do déjà vu e que pervertem asbases da clássica perspectiva, por negar os postuladosda objetividade e da coerência, a ponto de abolir radical-mente a figura especular por meio da abstração.

Em seu processo de reprodução, as formas fractaisse complexificam através da acumulação e da super-

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posição sucessiva das formas originais, e passam a umaaparência disforme e irregular se comparadas à imageminicial. Sob aparência anamórfica, sabemos, no entan-to, a estrutura original e seu gerador, o que nos permitepensar que há padrões de semelhança em qualquer ní-vel de complexidade de uma forma observada e que a par-te já contém o todo, o que coloca em questão o princípiomecânico em que as partes só têm sentido em relaçãoao todo em que se encontram inseridas. Leva-nos a iden-tificar o mundo como um imenso sistema de redes inter-conectadas, ressonantes e coexistentes, sem que, con-tudo, possamos continuar falando a respeito do Uno e doMesmo. Nesta geometria da dobra e da desordem, geo-metria rizomática e errática, o sistema fractal possibili-ta realizar essa coisa impossível que é supor que a liber-dade, a irregularidade e o acaso possam ser expressosmatematicamente e que o caos possa ser um aconteci-mento de interesse científico, rico em ilações filosóficase fértil como fonte de produção estética.

É em Félix Guattari que encontramos o nosso prosse-guimento. O autor francês nos diz que tudo leva a reco-nhecer que os conteúdos da subjetividade dependem,cada vez mais, de uma infinidade de sistemas maquíni-cos. Para ele, “(...) nenhum campo de opinião, de pensa-mento, de imagem, de afectos, de narratividade pode,daqui para frente, ter a pretensão de escapar à influên-cia invasiva da ‘assistência por computador’, dos ban-cos de dados, da telemática, etc...”4 Juntamente com oautor, não pretendemos a posição de entrega acríticaaos efeitos propiciados pelos novos maquinismos, e tam-pouco a rejeição dos mesmos. Não vemos sentido nosmovimentos de fazer o homem se desviar das máqui-nas, consideradas, na verdade, como nada mais do que“formas hiperdesenvolvidas e hiperconcentradas de cer-tos aspectos da subjetividade.”5 Apostamos em novas ali-anças entre homem e máquina, desde que estas sejam

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postas a serviço de novos agenciamentos coletivos eindividuais de enunciação e sejam posicionadas comosuportes a projetos proto-subjetivos. Reconhecemos quetodo e qualquer processo de subjetivação que venhamosa identificar desde a história remota da humanidadeaos dias atuais, tem seu engendramento a partir demáquinas diversas embutidas nas instituições e quese expressam como equipamentos coletivos de subjeti-vação. Estes se constituem como operadores tanto dasvozes do poder e das forças do fora, circunscrevem osconjuntos humanos e lhes formam o espírito, quantodas vozes de saber que orientam as práticas técnico-científicas e econômicas, como ainda das vozes de auto-referência que desenvolvem uma subjetividade proces-sual autofundadora de suas próprias coordenadas. Taisvozes são engendradas por cada tempo social e o defi-nem, e apontá-las não significa afirmar uma fundaçãoestrutural universal. Se temos, pois, que os equipamen-tos coletivos de subjetivação são fabricados historica-mente, devemos distinguir, em seu processo, zonas defratura a partir das quais se reconfiguram forças e secompõem novas formas de existência.

Na vigência do modo de produção capitalístico,6 pode-mos identificar como própria à nossa atualidade umaintensa e extensa fratura produzida pelas novas tecno-logias de comunicação e informação, NTCI, cujas ope-rações, em escala planetária, “tendem a duplicar asantigas relações orais e escriturais. (...) A opinião e ogosto coletivo, por sua vez, serão trabalhados por dispo-sitivos estatísticos e de modelização, como os que sãoproduzidos pela publicidade e pela indústria cinemato-gráfica.”7 Se temos tido oportunidade de evidenciar quea subjetividade permanece hoje massivamente contro-lada por dispositivos de poder e de saber que colocam asinovações técnicas e científicas a serviço das mais re-trógradas figuras da socialidade, cabe-nos delinear al-

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gum horizonte no qual possamos refletir novos modosde nos colocarmos à altura dos desafios da criação dotempo presente. Com Guattari, também afirmamos ser“(...) possível conceber outras modalidades de produçãosubjetiva — processuais e singularizantes. Estas formasde reapropriação existencial e de autovalorização podemtornar-se, amanhã, a razão de viver de coletividades ede indivíduos que se recusam a entregar-se à entropiamortífera, característica do período que estamos atra-vessando.”8

A imagem digital como entrada no ilimitado rizoma9

homem-mundo

Se até o momento temos pontuado alguns elementose tendências de nossa atual posição, cabe-nos, agora,buscar desembaraçar alguns fios, de procedência diver-sa, e que supomos devam ser correspondidos e enreda-dos novamente, com vistas à tessitura de uma via depassagem ou mesmo de uma ponte entre o modo digitalde produção de imagem e os processos de subjetivaçãocontemporâneos.

Tomaremos, como ponto de partida, a noção de indi-viduação de Gilbert Simondon que corresponde “(...) àorganização de uma solução, de uma ‘resolução’ paraum sistema problemático.”10 Encontramos, nas formu-lações deste autor, elementos que nos fazem correlaci-onar, de forma irresistível, os processos de subjetivaçãoà questão do virtual. Para ele, a categoria de problemá-tico não designa um estado provisório. Ela designa o pri-meiro momento do ser: o pré-individual, que correspon-de à existência no corpo de singularidades em metaes-tabilidade e em estado de “acavalamento” uma vez queainda não se comunicam ou não são apreendidas emuma individualidade. A individuação como “resolução”

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deve ser compreendida como ressonância interna e comoinformação, sendo que desta última decorrerá a comu-nicação entre dois níveis díspares, um definido pela for-ma já contida no receptor e outro pelo sinal trazido doexterior. Se o ser pré-individual não comporta fases,porque se coloca como um plano aberto que contém emsi todos os devires em potencial, sendo simultaneamentepassado, presente e futuro, o ser individual pode ser re-conhecido como o ser fasado, o ser que se desenrola,que se desenvolve e que se encontra, pois, associado aodevir do ser. Desta forma, podemos compreender que oser jamais é Um: pré-individual, ele é metaestável, su-perposto, simultâneo a si próprio; individuado é aindamúltiplo, perpassado pela fase do devir que o conduziráa novas operações.

Se temos afirmado a subjetivação como o eixo de nos-so interesse de pesquisa e se a entendemos como pro-cessualidade engendrada pelo encontro de uma forma ede uma matéria, isto significa também que devemosnos colocar na direção de uma verdadeira ontogênese, oque significa uma torção nos tradicionais modos de ex-plicá-la. Trata-se de constituir uma ontogênese inver-tida, uma gênese às avessas, porque não busca explicara individuação a partir do indivíduo. Supõe, ao contrá-rio, a existência de um primeiro termo, o princípio quetraz em si o que explicará que o indivíduo seja indiví-duo, e que o mesmo seja recolocado no sistema de rea-lização em que a individuação se produz.

Nosso pensamento tradicional, tende para o ser aca-bado, individuado, do qual é necessário dar explicação.Consideramos que é necessário fazer uma reversão,considerando primordial a operação de individuação apartir da qual o indivíduo vem a existir e da qual refleteo desenrolar, o regime, e enfim, as modalidades em seuscaracteres. Apreendido como realidade relativa, o indi-

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víduo como determinada fase do ser, supõe uma reali-dade pré-individual anterior e que, mesmo depois daindividuação, não existe complemente sozinha, pois aindividuação não esgota de uma só vez os potenciais darealidade pré-individual. A individuação é, portanto, con-siderada como resolução parcial e relativa que se ma-nifesta em um sistema que contém potenciais. Destamaneira, o devir é considerado como um modo de reso-lução parcial de um nó problemático inicial, rico em vir-tualidades. O ser pré-individual corresponde a um sis-tema tensionado de forças que procede por saltos quân-ticos, e a individuação não é o encontro de uma matériae de uma forma prévias que existem como termos sepa-rados, anteriormente constituídos. Refere-se a uma re-solução que surge no seio de um sistema, sendo ins-tantânea, brusca e definitiva. Para Simondon, a vida éindividuação perpétua, conforme o modelo do devir. Ovivo não é resultado só de individuação, mas teatro deindividuação.11 O indivíduo vivo é considerado, para oautor, como sistema de individuação, sistema individu-ante e sistema individuando-se.

Julgamos que tal enfoque nos permitirá desenvolvernossas análises a partir de um regime lógico que colocao virtual como cerne do devir e da diferenciação. Perce-bemos existir uma importante vizinhança entre estedeterminado modo de conceber a individuação e o fabu-loso potencial imanente aos processos de digitalizaçãoque, como sabemos, modificam os modelos de represen-tação e questionam o atual estatuto de nossa capacida-de corporal. Podemos supor que as potências de ima-gens digitalizadas instauram um novo regime semióti-co em que o referente é anulado, remetendo as imagensa si próprias. Todo um modo de buscar assemelhar asformas existentes, e operá-las através do reconhecimen-to, pode dar lugar a processos cognitivos fundados nainvenção, e que permitem fusionar cognição e subjeti-

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vação, abrindo rupturas na lógica binarizante que dis-socia mente e corpo, razão e afetos. Da mesma forma,abrem-se possibilidades de reversão do platonismo,12 cujabase se institui pela instauração de uma realidademetafísica e ideal que se sobrepõe à realidade munda-na e sensível, funcionando como modelo a ser seguido.Pelo platonismo, o sensível é considerado impuro e im-perfeito, corrói e arruína as formas ideais e é capaz deapenas produzir cópias e simulacros. O devir é conside-rado como indesejável processualidade, movimento queevoca a problemática da finitude e coloca em questãopressupostos de uma lógica que opera por identidades,fixando a verdade como essência do ser e ex-conjurandotudo o que dela difere.

Nesta perspectiva, o pensamento faz do mundo e dossujeitos uma imagem analogizável, expulsando a puraalteridade. Se a imagem se libera da analogia, como nosmostra André Parente,13 é porque o que pensa nela éum puro interstício como sua possibilidade de se meta-morfosear.

Acreditamos que os desenvolvimentos conceituaisque encontramos na obra de Simondon,14 permitem ca-racterizar os processos de digitalização como dispositi-vos dos devires da individuação. Oferecendo imagensliberadas de sua função especular, a digitalização pro-duz aberrações e mesmo monstruosidades em relaçãoaos pressupostos da imagem-mundo-analógica. Nada delaressoa no modelo, e ela pode ser considerada como umapequena máquina que potencializa os modos de subjeti-vação calcados na alteridade e na afirmação das potên-cias do falso. A partir de seu poder de se produzir semreferente, ela pode fazer com que venhamos a colocarem análise os nossos próprios modos de ver, oferecen-do-se como novas máquinas de visão que, “(...) à primei-ra vista funcionam seja como meios de comunicação,

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seja como extensões da visão do homem, permitindo-lhe ver um universo jamais visto, porque invisível a olhonu. Do conhecer infinitamente pequeno ao infinitamen-te grande um novo universo se ‘descobre’, se ‘desvela’,se ‘cria’, em seus movimentos regulares e caóticos, emsuas miríades de dobras, em outras faixas do espectroluminoso para além daquelas captadas pelo olho huma-no, em outros espaços e em outros tempos também.”15

O modo de produção digital se oferece, ao nosso ver,também como imagem do pensamento que não se des-gruda do tempo, conferindo-lhe o atributo de criador dadiferença.

A imagem-labirinto

No contexto das NTCI, a noção de labirinto passa aser positivada, passando dos sentidos de prisão e desori-entação para o de uma arquitetura de complexidademáxima, desafiadora de uma imaginação radical paraencontrar-lhe as possíveis saídas ou “resoluções”, comonos diria Simondon. Metáfora do próprio pensamento, olabirinto se opõe às estradas amplas e pavimentadas darazão segura e certa, iluminada pelas verdades e pelo jáconhecido. Nele, os caminhos dobrados, redobrados emcircunvoluções, nos fazem dar atenção aos própriosmodos de andar, que nos indicam caminhos no ato deseu próprio acontecer. Constituído por volteios, idas evindas em sentido inverso, expandido em diversas dire-ções, tal como a construção das cidadelas medievais, olabirinto-rizoma nos impulsiona a uma exploração semmapas e nos convoca para uma vista desarmada. Nadanele permite prever e calcular a geometria do lugar. Eleinstiga a uma geometria dos acasos e a uma inteligên-cia astuciosa. Percorrê-lo significa investigar, explorar-lhe as entranhas, cartografá-lo naquilo que se faz pre-

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sença em nós como afecção e possibilidade de núpcias,devorá-lo naquilo em que julgamos que nos potencializa-rá. No labirinto, somos navegantes do fora-em-nós, con-dicionados à situação de estarmos sempre à procura esempre em busca de ultrapassar seus sobrepostos e in-termináveis muros, cavando, no seu espaço, possíveissaídas que, na verdade, nos fazem cada vez mais afun-dar nas profundidades de suas superfícies. Portas paraum fora que, no final das contas, se abrem para o campode dentro, como aberturas para um horizonte móvel ejamais alcançável. No labirinto, transformamo-nos emhabitantes do tempo, oferecemos nosso viver como umadas possibilidades de manifestação da vida, vivemos ointerminável e o indeterminado das formas e sofremosa cada uma de suas partidas. Somos, por isto, obrigadosao eterno retorno dessa incessante busca de ultrapas-sagem dos muros, perseguição que se acende em nóscomo demonstração de que estamos vivos. No labirinto,vivemos a vida em suas incalculáveis manobras e neleaprendemos também a localizar nossa vontade de sabere nosso método de fazê-la avançar.

Menos do que um método, porque não aponta cami-nhos prévios à caminhada a ser realizada, o labirintonos ensina que o conhecer implica-se com a poiesis,estando distante dos cálculos frios e neutralizados daracionalidade técnica e instrumental. No labirinto, vie-mos a saber que, para conhecer o mundo, precisamosmuito mais do que interagir e nos adaptar a ele, temosde deixá-lo trabalhar em nós, afetar-nos para que pos-samos responder desde este estranho laço de nossa in-discernível implicação. Sua estrutura não se dobra àstentativas de linearização e, em seus volteios, avança-mos sem garantias de volta. Somos paradoxalmentecurvados e elevados pela complexidade que lhe é ima-nente, pela multiplicação de suas possibilidades e pelavivência de tempos e espaços simultâneos. No labirin-

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to, somos forçados a nos fazermos à sua altura, sempreultrapassando limites, fronteiras e desenhando novoscontornos imprevisíveis. Nosso modo de percorrê-lo e to-par com as insuspeitadas imanências de sua confusaordem-caos sugerem-nos, de modo instigante, a dimen-são ético-estética de nossas escolhas em relação às pos-síveis estratégias de produção de conhecimentos, de nósmesmos e de mundos. No labirinto, tudo nos é simultâ-neo, nada está decidido a priori. Sua indeterminaçãoprévia, que deve ser entendida como abertura para amultiplicidade, nos autoriza a avançar em nossa cons-trução da ponte-passagem, apontando que a imagemdigital como espaço de criação de mundos e ruptura coma perspectiva de duplicidade signo-real, pode invocar asensibilidade em relação ao tempo e tratar as potênciasvirtuais como emblema do desejo de trânsito conformea demanda do momento, emblema da modelagem pró-pria de nosso tempo e de suas formas de conhecer. Setoda a imagem é linguagem, temos, então, na imagemdigital, um acesso ao ritmo e à estética da produção desubjetividade contemporânea.

Ao colocar em jogo a formação do olhar, a criação e aleitura da imagem digitalizada permitem-nos entenderque o conhecer se dá através da memória como maraberto de imagens, disponível para ser cartografado pelopresente, memória como espaço virtual capturado pelaúltima vista. É em pelo menos um pequeno ponto deacoplamento entre o espectador e a imagem que o su-jeito se surpreende com o reflexo de seus próprios olhos.Sedução da afecção — via inconsciente —, que faz comque a imagem não seja jamais em si, mas sempre parae com um sujeito. Ela existe na relação. Se o sujeito éconsiderado como dobra, como espessura do fora-mundorecolhida em si, interior do exterior, é verdade que, paraalém de uma memória psicológica, ele se torna guar-dião de uma memória-mundo, história encarnada. O fora

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é percebido como um plano de forças, informe e caótico,ainda por vir a ser. O sujeito é tido como um dos pos-síveis efeitos da dobragem destas forças, do que resultauma forma parcial, porque a feitura de si correspondesempre a operações de seletividade e desaceleração. Estefora pode também ser pensado como o impensado e oirrepresentável, e não podemos acessá-lo sem pronta-mente aproximá-lo de nós mesmos. Desta forma, exis-tir e subjetivar significa atualizar as virtualidades dofora que se colocam como plano de composição de devi-res e em relação ao qual o sujeito se posiciona comocanal (milieu) de existencialização.

Acreditamos que não existe palavra final, certeza eporto para o pensamento, sendo que o que resta para osujeito contemporâneo é a manutenção constante danarrativa no sentido de não deixar o labirinto hipertex-tual fazer calar, pois a vivacidade da imagem constantee deslocada de si, aponta para um mundo aberto e aindapor fazer. É preciso perder o medo de navegar atualizan-do o virtual que nos espreita e aguarda. É preciso inva-dir as uniformidades, fortalecer as diferenças e desvir-tuar a ordem das coisas. Precisamos desestabilizar oque pretende ser total, global, uniforme, geral. Devemostecer novos enredos, estabelecer novas ligações na redede elementos históricos, uma nova trama, um novo en-redo, um novo imaginário. Devemos experimentar no-vas conexões entre a série de eventos que nos cercame os documentos que conhecemos. Colocar a históriaem movimento, para apreender-lhe as estruturas, ilu-miná-la através da descontinuidade produzida por acon-tecimentos. “As estruturas são as formas de regulari-dade dos acontecimentos, são as regras imanentes àspróprias práticas sociais e que as direcionam em dadossentidos repetitivos, mas que não impedem, o aconte-cimento desviante, a fuga esquizo, a metamorfose ines-perada, o acaso instaurador de novos processos.”16

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Para Muniz de Albuquerque, a história não é como umcastelo. Ela deve ser considerada como um labirinto decorredores e portas contíguas, aparentemente semelhan-tes, mas que, dependendo da porta que o sujeito escolheabrir, pode estar provocando um desvio, um deslizamentopara um outro porvir.

Se a imagem digital pode ser considerada como ima-gem-tempo que, em vez de representar o real já decifrado,vise um real sempre ambíguo, a ser decifrado, pode-se afir-mar que ela funda as possibilidades de um neo-realismo,definido, por Deleuze, como “(...) a ascensão de situaçõespuramente óticas (e acústicas) que se distinguem essen-cialmente das situações sensório-motoras.”17 Na imagem-tempo, é preciso investir os meios e os objetos pelo olhar,que as pessoas e coisas sejam ouvidas e vistas, inventari-adas prolongadamente. Na exploração deste real, as situa-ções não se prolongam necessariamente em ação explíci-ta, não são mais de caráter sensório-motor, mas antes,óticas e sonoras, investidas pelos sentidos, antes da açãose formar e afrontar seus elementos. Trata-se de estabe-lecer com o mundo, uma relação onírica, por intermédiodos órgãos de sentidos, libertos. Do ponto de vista da ima-gem ótico-sonora, a diferença entre objetivo e subjetivotem valor apenas relativo e provisório, pois o mais subjeti-vo é perfeitamente objetivo, já que ele cria o real pela for-ça da descrição visual. E, inversamente, o mais objetivo jáé completamente subjetivo, pois substitui pela descriçãovisual, o objeto “real”. Colocamo-nos num ponto de indis-cernibilidade entre real e imaginário e nos permitimosentrar em um novo e admirável mundo e apreender algointolerável e insuportável, poderoso demais e que excedenossas capacidades sensório-motoras. “Fazer da visãopura um meio de conhecimento e de ação.”18

Comumente apenas percebemos clichês, ou seja,imagens sensório-motoras das coisas. Não percebemos

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a imagem inteira das coisas, percebemos sempre me-nos, apenas o que nos interessa, o que temos interesseem perceber. Poderíamos, neste sentido, pensar a digita-lização de imagens como uma poderosa máquina de vi-são, uma quebra em nossos enfraquecidos sistemas sen-sório-motores, para dar lugar a uma outra imagem semmetáfora, que faz surgir a coisa em seu excesso de hor-ror ou de beleza, para além do bem e do mal. Acedendo oolho a uma função de vidência, os elementos da imagemfazem com que ela deva ser lida não menos que vista,legível tanto quanto visível. Imagem-pensante, imagem-tempo que nos toca naquilo em que ainda não somos,mas que já faz parte de nós. Imagem desdobrável, plásti-ca porque carrega consigo as inúmeras possibilidades deconfiguração e diversos regimes de tempo, pois, ao setransformar também se conserva enquanto memória.Imagem como realização apenas parcial das virtualida-des ilimitadas de um programa matemático que operacom base de bits, estes comparáveis a “células-tronco”ou a grãos da matéria-mundo, cuja re-aplicação pode ge-rar qualquer geografia de qualquer paisagem. Semprepronta a se auto-destruir para renovar a cena, a novaimagem afastada do sistema sensório-motor e fabricadasintética e abstratamente, é também anti-genealógica,uma vez que se encontra inscrita na lógica das conexõesrizomáticas, a-significantes e descentradas. Sua produ-ção é geradora de possíveis monstruosidades ao olho co-lonizado. Em sua fabricação, encontramos, sem dúvida,incríveis potencialidades de mutação e de reinvenção.Como nos alerta Guattari, tudo dependerá de como sedará a aliança homem-máquina, fazendo-se necessárioque esta seja colocada a serviço de novos modos de sub-jetivação, em que possamos ultrapassar a marca destehumano do qual somos sujeitos.

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Notas1 Arlindo Machado. Máquina e imaginário. São Paulo, Edusp, 1996.2 Idem, p. 18.3 Gilles Deleuze & Félix Guattari. “Como criar para si um corpo-sem-órgãos”,in Mil platôs. Capitalismo e Esquizofrenia, vol.3. Tradução de Aurélio GuerraNeto. Rio de Janeiro, Editora 34, 1996. pp. 9-29.4 Félix Guattari. “Da produção de subjetividade”, in André Parente (org.).Imagem-máquina. Rio de Janeiro, Ed.34, 1993. pp. 177-191.5 Idem, p. 177.6 O termo “capitalístico” foi forjado por Félix Guattari durante os anos 1970para designar um modo de subjetivação que não se acha apenas ligado a socie-dades ditas capitalistas, mas que caracteriza também as sociedades, até aquelemomento ditas socialistas, bem como as do Terceiro Mundo. Entende o autorque todas vivem uma espécie de dependência/contradependência do modelocapitalista e, por isso, do ponto de vista de uma economia subjetiva não hádiferença entre elas, pois todas reproduzem um mesmo tipo de investimentodo desejo no campo social.7 Guattari, Félix. “Da produção de subjetividade”, in André Parente (org.), op.cit., 1993. p. 186.8 Idem, pp. 190-191.9 “Subtrair o único da multiplicidade a ser constituída; escrever a n-1. Talsistema poderia ser chamado rizoma. Diferentemente das árvores ou de suasraízes, o rizoma conecta um ponto qualquer, e cada um de seus traços nãoremete necessariamente a traços de mesma natureza, ele põe em jogo regimesde signos muito diferentes, inclusive estados de não-signos. O rizoma não sedeixa reduzir nem ao Uno nem ao múltiplo... Ele não é feito de unidades, masde dimensões, ou antes, de direções movediças. Não tem começo nem fim, massempre um meio, pelo qual ele cresce e transborda. Ele constitui multiplicida-des”. François Zourabichvili. O vocabulário de Deleuze. Tradução de André Tel-les. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 2004. p. 97.10 Gilbert Simondon. L’individu et sa genèse physico-biologique. Paris, PUF, 1964.11 Gilbert Simondon. “A gênese do Indivíduo”, in Cadernos de Subjetividade/Reencantamento do Concreto. São Paulo, Hucitec, 2003. pp. 97-117.12 Luis Antonio Fuganti. “Saúde, Desejo e Pensamento”, in Saúdeloucura, nº3.São Paulo, Hucitec. 1990. pp. 19-82.13 André Parente (org.), op. cit., 1993. p. 11.14 Gilbert Simondon, op. cit., 1964.

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15 André Parente (org.), op. cit., 1993. p. 14.16 Durval Muniz de Albuquerque Jr. “No castelo da história só há processos emetamorfoses, sem veredicto final”, in Edson Passetti (org.). Kafka, Foucault:sem medos. Cotia-SP, Ateliê Editorial, 2004. p. 17.17 Gilles Deleuze. A Imagem-tempo. Tradução de Eloisa de Araújo Ribeiro. SãoPaulo, Brasiliense, 1990. pp. 11.18 Idem, p. 29.

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Poéticas do virtual e os processos de subjetivação

RESUMO

As novas tecnologias digitais e um novo pensar-corpo. Da geome-tria fractal para pensar a noção de corpo sem órgãos de Artaud,desenvolvida por Deleuze e Guatari para perceber na imagem digi-tal e no virtual novas invenções, devires, rupturas. A história estámarcada no corpo, e interessa como labirinto, como simultaneida-des.

Palavras-chave: Corpo, virtual, filosofia.

ABSTRACT

The new digital technologies and a new body-thinking. From thefractal geometry to think Artaud’s idea of the body without or-gans, developed by Deleuze and Guatarri to perceive in the digitaland virtual images new inventions, becomings, disruptions. Thehistory is marked on the body. Here it is viewed as labyrinth, assimultaneities.

Keywords: Body, virtual, philosophy.

Recebido para publicação em 8 de outubro de 2005 e confirmadoem 6 de fevereiro de 2006.

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O apelo desejante ou o roteiro improvável para uso...

o apelo desejante ou o roteiroimprovável para uso dos ratos debiblioteca

nilson oliveira*

“A leitura faz do livro o que o mar e o vento fazem daobra modelada pelos homens: uma pedra mais lisa, o frag-mento caído do céu, sem passado, sem futuro, sobre o qualnão se indaga enquanto é visto. A leitura confere ao livro aexistência abrupta que a estátua parece reter do cinzel: esseisolamento que a furta aos olhos que a vêem, essa distân-cia altaneira, essa sabedoria órfã; que dispensa tanto oescultor quanto o olhar que gostaria de voltar a esculpi-la.”

Maurice Blanchot

A escrita, fala-se da escrita literária que faz revelar oestilo e a força de cada um que nela se enreda. Na maio-ria das vezes, a escrita deixa poucos rastros das inúme-ras implicações, das dúvidas, dos impasses, dos vácuos,sobre a realidade em que foi tecida. Lautréamont e PauloPlínio Abreu são casos implícitos dessa realidade. Celine

* Editor da revista literária Polichinello. www.polichinello2004.blogger.com.br.

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reescreveu um sem-número de páginas, podando de poucoa pouco, até alcançar o ponto essencial de Viagem ao fimda noite; Kafka, em seu Diário, narra as situações maisestranhas e adversas que atravessou para edificar suaobra; Robert Musil atravessou a vida inteira e não tevepor concluído o seu Homem sem qualidades (romance deuma vida, beleza sem igual na sua realidade de obra fa-lha, não-concluída). Nessas obras, e em muitas outrasdessa natureza, ficam para trás as dobras mal fechadasde uma ferida que dilata uma espécie de não-confissão,segredo mal amarrado, mas ainda assim algo não aces-sível nem mesmo ao leitor mais atento, que só o escritorsabe, e por vezes ainda sofre por não conseguir dele selivrar, e que vai estar presente em seu próximo livro ouque vai arrastá-lo até ele. Dessa experiência, Mallarmédisse, escrevendo a um amigo: “sinto sintomas inquie-tantes causados só pelo ato de escrever”; mas, por vezes,tal como o fizeram Kafka e Joubert, o escritor lança mãoantes para se aliviar do que para dividir um segredo doseu Diário; o diário não é essencialmente confissão, algorelatado em primeira pessoa, mas um memorial, espaçoem que se relata o percurso de uma narrativa, tal comovimos nos Diários de Maria Gabriela Llansol.1 Nessescasos, as reminiscências do autor cedem lugar às expe-riências literárias. Através dos diários, o autor descreveos rastros e vestígios da sua fonte, mas fazendo jorrar nasua narrativa a força que resiste e atravessa os tempos.São textos que nos tiram do lugar, que nos provocam. Es-crever é um desafio de criação de uma ética que nos con-vida a nos transformar em meio à própria escrita. Não setrata de um compromisso com “o belo”, mas de um com-promisso com a vida, que pulsa por entre os textos, comuma potência de solidariedade que nos conduz a um de-vir-outro: estrangeiro, estranho ou o que for. A escrita,então, torna-se uma experiência que não coincide coma razão, com a inteligência, com a erudição. Mas com

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uma proliferação de fluxos: de linguagens, de pensamen-tos, que transcorrem linha a linha pelas veias abertasdo acontecimento, que no texto literário se faz revelar,incidindo, pela leitura, numa superfície que nos força apensar e seguir em frente. Na literatura, a leitura é tãofundamental quanto a escrita, pois é a leitura que reco-nhece o livro (sua força, suas cintilações) — é a leituraque atravessa o abscesso do livro e mergulha no cora-ção da obra de arte. Essa viagem remete o leitor a umespaço outro: o espaço inominável da escritura, o espa-ço onde só a obra persevera; a obra lapidada na sombra,apartada das representações do mundo, acessível so-mente a um leitor anônimo. Só esse leitor possui a for-ça afirmativa que consente ao livro o poder de existir.Só esse leitor assegura à escrita a condição de obra dearte e mantém com ela uma intimidade desejante querecusa, a qualquer custo, reconhecer o livro fora de qual-quer conceito que não seja o de obra de arte. Ler, nosentido da leitura literária, não tem outro objetivo se-não o da própria leitura. Nada, fora desse invólucro, atraia atenção daquele que nessa jornada se remete, perfi-lada por assombros e fruições. Não há nada mais peri-goso que a escrita. Sim, a ameaça contida nas linhasque avançam com violência, nos arremessando para umaatmosfera que nos comprime contra o tempo. O que sepassa no interior do livro, isso não se sabe, nem mesmoaquele que escreve, porque o faz desenganado de qual-quer objetivo. A escrita é contagiosa. Aquele que escre-ve agoniza. Aquele que lê persevera: ler, ver e ouvir aobra de arte exige mais ignorância que saber, exige umsaber que se nutre de uma imensa ignorância e umdom que não é dado de antemão, que é preciso cada vezreceber, adquirir e perder, no esquecimento de si mes-mo. E depois de consumida, essa escrita evapora semdeixar rastro, sem formação, sem nada. Só o silêncio.Talvez algumas parcas lembranças que se apagarão à

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medida que o leitor se confrontar com a violência de umoutro texto, e outro, e outro. A leitura em esfera de su-cessiva continuidade alcança a intimidade do vício; tor-na-se algo tão fundamental quanto um cigarro ou umcafé. Faz parte da vida daquele que lê. E aos poucos vaiatravessando como um câncer que evolui no corpo até oextremo da morte. Ler literatura é entregar-se ao delí-rio desta possibilidade, é mergulhar no fascínio enquantoo texto é consumido, digerido sem economia. Não seerige literatura com boa vontade, não se lê literaturacom boas intenções. Escrever, engendrar literatura sig-nifica mergulhar no coração da escrita e escrever comtodos os sonhos, com todo o corpo; escrever com a tintaque vaza das artérias: “a escrita que não consola, nemsalva ninguém da verdade.” Nada em relação à escritu-ra se assemelha à experiência sofrida por Artaud: “es-crever ou morrer, mas escrever e morrer, escrever atéa morte, escrever a sua própria morte.” Artaud pensa aescrita como “um ato de dejeção do ser”; a escrita, nes-sa esfera, dilacera a face daquele que escreve. Artaudimprime a escrita-rosto-em-desfazimento. Ela desfaz “orosto como território da arte, de todas as artes”; desfa-zer o rosto para erigir o devir-escrita: “uma escrita deliberdade, uma escrita não mais contra o organismo,mas sem organismo.” Desfazer o rosto para gerar pen-samento: pensamento evasão, sem sair do lugar. A es-crita de Artaud fratura o muro que aparta obra e leitor,sua força verte os contornos do livro e age direto no cor-po, contra o corpo; contrai as vísceras, suja a alma. Oleitor que se alimenta dessa escrita não está imune àssuas irradiações, não sai ileso: “vocês vão ter que estarprontos, como eu, para queimar todas as formas.” Quei-mar a forma para aliviar o corpo, queimar a carne paraevacuar deus: matar deus e com ele sua criação. In-ventar um outro homem para salvá-lo de deus. No espa-ço literário, o escritor só pertence à sua obra e a ela

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está condenado: sem deus, sem razão, sem identidade.A obsessão da obra arrasta aquele que escreve pra umextremo onde a morte não é um limite intransponível.Solitário, apartado do mundo e das coisas, o escritor selança à viagem da escrita. Viagem ao infinito da obra:“a nossa viagem é inteiramente imaginária. É essa suaforça. Ela vai da vida à morte.” Essa viagem é signifi-cante, forte, não permite outra opção, não é do caminhopara a morte, mas morte certa: morte aos poucos, mortea crédito; morte do autor, regozijo do leitor, mas um gozosofrido, arrancado, página por página, das entranhas dolivro; livro que traz nas suas linhas a selvageria da arte,o devir selvagem, a escrita arte: “O livro que tem suaorigem na arte não tem sua garantia no mundo, e quandoé lido, nunca foi lido ainda, só chegando à sua presençade obra no espaço aberto por essa leitura única, cadavez a primeira, cada vez a única”; a leitura que atraves-sa o espaço do significante, a fadiga dos códigos, as in-terpretações dos especialistas que “pensam” a escritu-ra a partir de uma atmosfera fechada; que investem naescritura valendo-se ou de uma análise ideológica oude uma leitura publicitária ou de uma interpretaçãopsicológica, que busca na obra um significado social,uma gênese traumatizante ou um objeto de mercado,passiva de elogios hiperbólicos ou de críticas demolido-ras. Em ambos os casos a escrita está apartada de umapossibilidade artística. No espaço literário, a leitura étão fundamental quanto a escrita, pois é a leitura quereconhece o livro: a leitura do fora, a leitura diletante, aleitura que atravessa o abscesso do livro mergulhandono delírio da obra.

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Nota1 Maria Gabriela Llansol. Escritora portuguesa. Escreveu alguns livros emforma de diário, entre eles: Finita. Diário II. Lisboa, Rolim, 1987 e Um Falcão emPunho. Diário I. Lisboa, Rolim, 1985. Fragmentária, singular, a escrita de Llan-sol fratura os limites entre a memória e a ficção, fazendo de suas obras espaçosde experimentações que buscam o além da linguagem, o impronunciável, apalavra em estado libidinal. Em uma de suas narrativas nos diz: “nada se podedizer com o sexo, mas é com ele que se diz, tal a folha com o lápis.”

RESUMO

A escuta e a leitura sem organismos.

Palavras-chave: Escritores, leitores, arte.

ABSTRACT

Listening and reading without organisms.

Keywords: writers, readers, art.

Recebido para publicação em 10 de novembro de 2005 e confirma-do em 6 de fevereiro de 2006.

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A arte pela (an)ar(q)

a arte pela (an) ar(q)

michel ragon*

Rémy de Gourmont dizia do simbolismo, em 1892, queele “se traduz literalmente pela palavra liberdade, e paraos violentos, pela palavra anarquia.”

Existia, de fato, um estranho cruzamento das teoriaspolíticas mais extremas e da literatura mais etérea nofim do século XIX.

Os poetas simbolistas tinham um verdadeiro culto porLouise Michel, à qual Verlaine dedicou uma balada pu-blicada em Le Décadent, revista que reunia Mallarmé,Rimbaud (fascinado pela Comuna de Paris) e LaurentTailhade. Convidada pelos “decadentes” a dar uma con-ferência na sala do Ermitage, em 20 de outubro de 1886,Louise Michel declarou: “Os ‘decadentes’ criam a anar-quia do estilo... Os anarquistas, como os ‘decadentes’,querem o aniquilamento do velho mundo.”

* Romancista, crítico, historiador da arte e da arquitetura, Michel Ragon éautor de La Voie libertaire. Paris, Ed. Plon, 1991, e Jean Dubuffet. Paris, Ed. deFallois, 1995. Recentemente, publicou a primeira grande biografia de Courbet,Gustave Courbet, peintre da la liberté. Paris, Ed. Fayard, 2004.

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Com exceção de Félix Fénéon, diretor da La RevueBlanche de 1885 a 1903, que foi aprisionado em Mazas, porocasião do processo dito dos Trinta, e de Richard Wagner,que se associou a Bakunin no momento da insurreiçãode Dresden, a afiliação dos poetas e dos pintores simbolis-tas ao movimento anarquista foi na realidade mais teóri-ca que ativa.

Apesar disso, a fascinação desses movimentos artísti-cos de vanguarda coincide com o período mais extremo doanarquismo, ou seja, o ilegalismo e o terrorismo dos anos1886 a 1912. E muitos textos literários são verdadeirosapelos à insurreição.

A violência das afirmações publicadas nesse período éhoje inimaginável. A propósito da bomba de Vaillant naCâmara dos deputados, Laurent Tailhade (1854-1919), umdos fundadores do Mercure de France escrevera: “que im-portam as vítimas se o gesto for belo!” E ele reclamava porum regicida contra o czar, em visita a Paris em 1902: “será[ele escreve em Le Libertaire] que entre esses soldadosilegalmente retidos na estrada, onde acampa a covardiaimperial, entre esses guarda-barreiras, que ganham novefrancos por mês, entre os pedintes, os mendigos, os vaga-bundos, os fora-da-lei, os que morrem de frio sob as pon-tes, no inverno, não há nenhum que pegue seu fuzil, seuatiçador, para arrancar dos freixos dos bosques o bastãopré-histórico e, subindo no estribo das carruagens, gol-peie até a morte, golpeie no rosto e golpeie no coração acorja triunfante, czar, presidente, ministros, oficiais e osclérigos infames... O sublime Louvel, Caserio, não temmais herdeiros? Os matadores de reis também estão mor-tos?”

Quanto a Octave Mirbeau (1848-1917), ele escreve emL´En-dehors, em 1º de maio de 1892: “a sociedade não podese queixar. Foi ela mesma que gerou Ravachol. Ela se-meou a miséria, ela recolhe a tempestade.”

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A arte pela (an)ar(q)

Pintores engajados

E embora em 1903 o doce romancista dos humil-des, Charles-Louis Philippe (1874-1917), pronuncian-do-se sobre o assassinato de McKinley, presidente dosEstados Unidos, levante algumas dúvidas sobre a eficá-cia política dessa prática, ele não deixa de esclarecer,em uma de suas Chroniques du Canard Sauvage: “Nãoquero absolutamente condenar a filosofia anarquista,clara e bela, impregnada de amor e de fraternidade, eensinada por santos, desde o sapateiro Jean Grave atéo príncipe Kropotkin. Isso seria uma má ação, pois elacontém um pouco da grande esperança humana.”

Entre os pintores neo-impressionistas, Pissarro erasem dúvida o que possuía a mais sólida formação políti-ca. Paul Signac dizia, no entanto, ter sido formado porKropotkin, Élisée Reclus e Jean Grave. Ambos, assimcomo Seurat e Maximilien Luce, eram colaboradores dosjornais anarquistas. Classificado como suspeito após oassassinato do Presidente Carnot, Pissarro teve até quese refugiar na Suíça.

Oscar Wilde e Alfred Jarry também reclamavam aanarquia, tanto por suas atitudes e provocações quantopor suas obras.

Embora o simbolismo e o neo-impressionismo tenhamsido estreitamente ligados às teorias anarquistas, a te-oria libertária encontra-se de modo mais evidente noromancista popular Michel Zevaco, que se dizia discípu-lo de Louise Michel e de Jules Vallès, e que foi preso em1892 por seu elogio da ação direta. Colaborador do jornalLe Libertaire, de 1893 a 1918, ele fará passar em suasérie de Pardaillan a idéia do herói sem mestre. A filo-sofia anarquista, veiculada por romances de capa e espa-da, irá assim marcar muitos leitores populares e mesmoinfantis, como Jean-Paul Sartre, que dirá, em As Pala-

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vras, que Pardaillan tinha sido o herói preferido de seussete anos.

Entre 1930 e 1940, a literatura proletária animada porHenry Poulaille (1896-1980) em oposição política ao mar-xismo e em oposição literária aos escritores ditos burgue-ses, mostrava adequação muito maior com a anarquia doque a literatura simbolista. O vocabulário realista, a des-crição da vida dos operários e camponeses, o pacifismo, ainsubordinação... Pode-se dizer que Henry Poulaille e seusamigos ao mesmo tempo aderiram à doutrina libertária ea ilustraram com suas obras.

A adesão inesperada do surrealismo

A conjunção anarquia e movimento artístico de van-guarda, como no episódio simbolista, concretizou-se, no-vamente, no início dos anos 1950, com a súbita adesãoinesperada dos surrealistas ao movimento libertário.

Inesperada, quando lembramos das conclusões baru-lhentas do surrealismo e do marxismo. É verdade que aideologia surrealista combinava infinitamente melhorcom o anarquismo do que com o partido comunista. E opensamento libertário nunca deixou de entusiasmarBuñuel, Artaud, Desnos e Benjamin Péret, que chegará ase engajar nas milícias anarquistas em 1936, indo com-bater na linha de frente de Teruel.

Em 1952, em seus Entretiens com André Parinaud,André Breton se perguntava por que o surrealismo emseus inícios havia tomado o caminho da colaboraçãocom o marxismo e não com o anarquismo; “por que”,ele dizia, “uma fusão orgânica não pôde ser realizadanesse momento entre elementos anarquistas propria-mente ditos e elementos surrealistas? É o que aindame pergunto vinte e cinco anos depois.”

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Brigados por O homem revoltado

De outubro de 1951 a agosto de 1952, os escritoressurrealistas colaborarão regularmente no jornal anar-quista Le Libertaire. Trinta e um artigos serão assimpublicados, dentre os quais apenas um assinado porAndré Breton, em dois de janeiro de 1952, intitulado AClara Torre: “onde o surrealismo pela primeira vez sereconheceu [ele escrevia], bem antes de definir a simesmo e quando era apenas associação livre entre in-divíduos que rejeitavam espontaneamente e em blocoas restrições sociais e morais de seu tempo, foi no es-pelho negro do anarquismo.”

Embora os artigos dos colaboradores surrealistas doLibertaire nunca se refiram à filosofia anarquista e nun-ca citem seus pais fundadores, André Breton partici-pará de todas as lutas da Federação Anarquista: solida-riedade com os militantes da CNT, defesa dos insub-missos...

A briga entre surrealistas e anarquistas se dará arespeito da publicação de O homem revoltado, de AlbertCamus. Atacar Camus em Le Libertaire, como faziam ossurrealistas, pareceu intolerável aos militantes anar-quistas, embora Camus nunca tenha declarado com tan-to alarde sua adesão à anarquia quanto Breton.

Apesar da briga, André Breton continuará a colabo-rar episodicamente no Monde Libertaire (sucessor do jor-nal Le Libertaire). É nessa publicação que irá aparecer,em 23 de dezembro de 1956, o manifesto surrealista,Hungria, sol levante, onde os insurgidos de Budapesteeram comparados aos partidários da Comuna deParis.Em novembro de 1966, por ocasião da morte deAndré Breton, Le Monde Libertaire publicou na primei-ra página o seguinte anúncio fúnebre:

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“André Breton morreu

Aragon está vivo...

Uma infelicidade dupla para o pensamento honesto...”

Mas, sem dúvida, desde Fénéon, desde Tailhade, desdeMirbeau, o autor que se situa mais violentamente na es-fera de influência anarquista é um pintor: Jean Dubuffet(1901-1985). Embora nunca tenha tido relações com a Fe-deração anarquista, ele escreveu em primeiro de novem-bro de 1970 a Henry Poulaille: “Meus próprios impulsossempre foram, acredito, os que constituem a posição doanarquismo.”

Seu livro Asfixiante cultura (1968) é uma fogueira, quepode ser considerada uma espécie de manual libertário.

Tradução do francês por Martha Gambini.

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RESUMO

Relações entre arte e anarquismo na França, problematizando oterrorismo e o surrealismo. Do simbolismo ao surrealismo, a anar-quia não se limita a movimentos, mas transborda-os.

Palavras-chave: Arte, anarquia, terrorismo.

ABSTRACT

Relations between art and anarchism in France, problematizingterrorism and surrealism. From symbolism to surrealism, anarchydoes not restrict itself to movements, but overflows them.

Keywords: revolutionary movements, art, anarchy.

Indicado para publicação em 25 de junho de 2005.

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* Estudante de graduação em Ciências Sociais pela PUC-SP, pesquisadora noNu-Sol e bolsista CNPq.

é o bastante?ou a conveniência dese manter na moda

Nils Christie. A suitable amount of crime. Londres, Routledge,2004, 137 pp.

O livro de Christie é sem dúvida alguma um estudo degrande importância para a análise das condições utiliza-das para a construção do conceito de crime e dos efeitosque o sistema punitivo de justiça têm sobre as socieda-des. O autor tem como ponto de partida a investigação dostipos de atos que são vistos como ‘maus’ por meio de umesquema classificatório e que terminam por designá-loscomo crime. Buscando encontrar quais são as condiçõessociais utilizadas para que se classifique uma situaçãoconflituosa como crime, Christie tem como desafio seguiro destino dos atos por meio do universo dos significados:

Resenhas

** Professor no Depto. de Política e no Programa de Estudos Pós-Graduadosem Ciências Sociais da PUC-SP. Coordena o Nu-Sol — Núcleo de Sociabilida-de Libertária.

ana salles*/edson passetti**

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“crime não existe”, mas trata-se de uma das formas pos-síveis de classificar situações indesejáveis. Interessa-lheo modo como os sentidos nascem e criam formas partindoda idéia de que o crime é um produto de processos cultu-rais, sociais e mentais.

A suitable amount of crime (Uma quantidade convenientede crime) mostra como nas sociedades modernas a convi-vência entre estranhos tornou-se uma situação conveni-ente para que atos indesejáveis sejam designados e con-siderados como crimes. Por meio de relatos de situaçõesconflituosas vividas no cotidiano, Christie aponta a con-veniência que certos conflitos possuem para serem clas-sificados como crime como, por exemplo, um homem queviolenta sua mulher e afirma que a está apenas “discipli-nando”. O homem violento usa a intimidade para fazercom que certas práticas não sejam designadas como cri-minosas, na medida em que freqüentemente isola a mu-lher para não ser enquadrado na categoria de criminoso ea mulher, talvez por depender financeiramente do homemou mesmo pelas lembranças dos dias de amor que vive-ram juntos, se submete à idéia do seu disciplinamento.

O autor aponta para o uso do conceito de máfia e deterror como ferramentas para que o Estado alcance seuspropósitos. Christie cita trechos da obra de Johan Back-man em seu livro The Inflation of Crime in Russia: The Soci-al Danger of the Emerging Markets (A inflação do crime naRússia: O perigo social dos mercados emergentes) paraexemplificar de que modo as idéias que se têm sobre má-fia tornaram mais fácil a preservação do controle pela au-toridade russa. Além da imagem em que a máfia aparececomo uma indústria extremamente lucrativa, seja en-quanto tema da literatura ou do cinema russo, ela é tam-bém usada por políticos como figura do novo inimigo pós-guerra fria: se a máfia existir na Rússia o país não é dignode confiança. Sua imagem fez com que as autoridades

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russas devolvessem poderes ao Ministério do Interior einstalassem um sistema de policiamento intenso no país.

A contemporaneidade está presente no livro deChristie. O autor reflete sobre o atentado de 11/9 re-metendo-se às atrocidades históricas de Auschwitz,de Hiroshima e Nagasaki, de Dresden, dos Gulags, doVietnã e do Camboja. Segundo ele, o 11/9 não atingiuapenas a cidade de Nova York ou os Estados Unidos,mas atingiu todo o Ocidente que enxergou nele umnovo mal, um novo monstro que deve ser eliminado: oterrorista.

Christie apresenta ao longo do livro tabelas que mos-tram a diferença nas taxas da população carcerária entreos países industrializados onde figuram os Estados Unidose a Rússia com as maiores taxas; discute algumas simi-laridades e diferenças que levaram os dois países a apre-sentarem taxas tão elevadas no número de presidiários,apontando para a diferença do conceito marxista do “valorde uso” das prisões nos dois países.

Apesar de não ver mais viabilidade para o abolicionis-mo penal, e conseqüentemente na completa abolição dainstituição penal agora, Christie demonstra, retomando atese de seu livro anterior A indústria do controle do crime,grande simpatia pelo chamado minimalismo. O minima-lismo aproxima-se do abolicionismo ao desconstruir a idéiade crime, tendo como ponto de partida de análise o atoconflituoso, mas se distancia dele ao admitir ainda a prá-tica do encarceramento. A corrente minimalista admitea histórica crítica abolicionista penal de que o sistemapunitivo é fragmentário e seletivo, rompendo com a cons-trução ontológica do crime, mas admite a punição comoinevitável para certos casos, sustentando a existência douso de um direito penal mínimo que acaba por se mani-festar de forma drástica no encarceramento de corpos. Se-ria necessário questionar até que ponto a substituição do

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Direito penal pelo Direito penal mínimo não seria meradiferenciação de grau de um sistema que tem os mesmosimpactos e as mesmas finalidades. Seria isso o bastante?

Em todo caso, para Christie, a generosidade e o per-dão são valores que poderiam fazer com que a instituiçãopenal fosse a menor possível. A punição é algo que estáem completa desarmonia e em oposição com esses valo-res. E aqui Christie parece desconhecer de William Go-dwin a Elias Canetti, que o perdão é a parte positiva dopoder de punir.

Manter alguém dentro de uma cela está próximo a re-tirar a vida dessa pessoa, é que apenas ainda não ganhoua mesma aversão que a tortura e a pena de morte tem naatualidade. Por isso o autor acredita na negociação diretaentre as partes envolvidas nas situações-problema quese transformam em proximidades com a justiça restaura-tiva. Assim, ele reescreve o que afirmara, anteriormente,como abolicionista que o sentimento de vingança susten-ta um ciclo no qual a vítima faz uso do mesmo método queo agressor, ou seja, não se trata de promover meios pararestaurar os danos que a vítima sofreu, mas de causardanos àquele que a agrediu.

Segundo o autor, o criminologista possui uma posiçãoética perante a sociedade. Ele aponta sua preocupação emrelação às universidades se transformarem em institui-ções de marketing fazendo com que os pesquisadores se-jam capturados pelo sistema penal: ambos estão se tor-nando produtores e fornecedores de materiais para a ad-ministração da justiça criminal.

Christie finaliza seu livro citando os povos Mennonitese Amish, do Canadá e dos Estados Unidos como exemplosde pequenos núcleos de resistência à cultura monolíticadominante, mostrando a importância da comunidade e dacriação de uma contracultura para tornar possível a exis-tência de uma justiça criminal menor possível.

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William Gibson e cyberpunk: reflexão ou antecipação?

william gibson e cyberpunk:reflexão ou antecipação?

William Gibson. Neuromancer. São Paulo, Aleph, 2003, 304 pp.

William Gibson. Reconhecimento de Padrões. São Paulo, Aleph,2004, 409 pp.

A ficção científica, enquanto gênero literário, firmou-se no pós II Guerra Mundial, quando alguns trabalhosse tornaram best-sellers, alcançando o rádio, a televisãoe, principalmente, o cinema. E isso se deveu à crescen-te sofisticação do gênero e à forma como assuntos deteores psicológicos e sociais passaram a ser tratados.Foi nesse período, também, que Deleuze situou a as-censão da sociedade de controle e que começaram a sercolhidos os resultados das pesquisas realizadas durantea guerra, principalmente no que diz respeito à telein-formática.

* Estudante de graduação em Ciências Sociais pela PUC-SP e pesquisador noNu-Sol.

verve, 9: 289-292, 2006

O tempo apanhou Christie de diversas maneiras. Eleacomodou-se à era das punições e da moda do direito pe-nal mínimo. Apressado em permanecer influente trans-creve trechos de artigos publicados anteriormente semcitá-los. Ajusta-se ao lado progressista dos sociais-demo-cratas. Ainda, por vezes, permanece contundente, masChristie se burocratizou e acabou conveniente.

márcio f. araújo jr.*

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O termo cyberpunk é cunhado por Bruce Bethke em1983 num conto homônimo, e está diretamente ligadoao conceito de ciberespaço/cibercultura. O cyberpunkestá imerso no presente e engloba literatura, música,cinema, ciência, e a cultura do PC/Macintosh. Abrangeobras que vão de Mary Shelley, Philip K. Dick, J.G.Ballard, Gibson até McLuhan e Walter Benjamin, emúsicos como Patti Smith, Lou Reed, Ramones, Sex Pis-tols — e a geração punk — como fontes de influência. Omovimento tem como ponto zero Neuromancer, 1984, deWilliam Gibson, obra na qual também é elaborado o con-ceito de ciberespaço e que inspira outros autores comoPat Cadigan, Bruce Sterling, Lewis Shiner e Greg Bear.

O cyberpunk “reconhece” o enfraquecimento dos indi-víduos controlados o tempo todo, quando a tecnologia setransforma na mediadora das relações sociais. Há a todo omomento, ênfase na interação e interface homem-má-quina, pela via da internet, realidade virtual, RPGs (RolePlaying Games), MPORPGs (Multiplayer On-Line Role PlayingGames) que remete à dicotomia cartesiana mente/corpo,em que a interação humana e mecânica aparece comoindissociável e conflituosa. É por isso que na narrativacyberpunk há uma redução nas diferenças entre hu-manos e andróides, como a presente em Blade Runnerde Ridley Scott, baseado no romance Do androids dreamof eletric sheep? de Philip K. Dick.

William Gibson é considerado um dos mais influ-entes escritores da escola cyberpunk e conduz os lei-tores ao ciberespaço/matriz, termos criados por eleem Neuromancer e largamente utilizados atualmentequando nos referimos à internet. Mundo novo, local —ou locais, devido a seus platôs — de novas e imprevi-síveis experiências. Virtualizado.

Em Idoru, Rez, um pop star de carne e osso, anun-cia seu desejo de se casar com uma idoru. Os idoru

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William Gibson e cyberpunk: reflexão ou antecipação?

são ídolos que não existem no mundo real, feitos deinformação pura, formados por arranjos de informa-ção extremamente complexos e sofisticados, que con-ferem a eles uma “existência” original. Humana. So-mos alertados para o poder da informação digitalizadae “sua” capacidade de, insidiosamente, criar e des-truir “coisas”. Criados em sistemas com alta densi-dade de informação, a vida dos personagens reais evirtuais pode ser investigada com precisão a partir de“(...) dados cruciais em pilhas aparentemente aleató-rias de informações incidentais” (p. 32), os bancos dedados.

O comportamento de todos é registrado em basesde dados extremamente vulneráveis, podendo ser in-terpretados de forma quase precisa. O ciberespaço éum local de invenção, de “constructos” — termo cria-do por Gibson para se referir à personalidade de umhomem morto arquivada num cartucho de memóriabinária, em algumas traduções pode ser encontrado otermo espectrom, que procura dar um tom tecnológicoe fantasmagórico ao mesmo tempo, de confirmação/determinação do real. Assim, apesar da frieza dos da-dos e da impessoalidade do ciberespaço, tais inven-ções humanas ainda buscam por humanização dossentimentos.

Isso pode ser observado em alguns jogos eletrôni-cos e, inclusive, William Gibson antecipou em Neuro-mancer o fato de que a inteligência artificial surgiriada interação entre homem e máquina a partir dos jo-gos eletrônicos. Por isso a confusão quando ocorre oencontro entre o humano, Rez, e a idoru no espaçoreal ou no ciberespaço. Trata-se da confusão frenteàs características humanas desenvolvidas pela má-quina, em constante aperfeiçoamento digital de pro-tocolos e interfaces. Por isso o desconforto é evidente:

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“Que tipo de capacidade computacional era necessá-ria para criar algo assim, algo que respondia ao seuolhar?” (p. 211). Por isso, a relação de Rei Toei (a ido-ru) e Rez é resultado de sentimento, tecnologia e lou-cura.

Em Reconhecimento de Padrões, trechos de um fil-me começam a aparecer na Internet. Em pouco tem-po o proprietário de uma renomada agência de publi-cidade multinacional se interessa por ele, conside-rando-o a maior “sacada” em termos de marketing.Para identificar quem poderia estar editando e dispo-nibilizando os trechos do “Filme” é contratada CaycePollard, uma especialista em marketing, uma coolhun-ter, caçadora de tendências para a indústria. Caycetem a capacidade de avaliar imediatamente a eficá-cia de um novo logotipo. O problema é que essa habili-dade, essa “patologia controlada”, desencadeia emCayce uma mórbida alergia a certos logotipos, a pontodela somente utilizar produtos sem marca.

“Homo Sapiens é reconhecimento de padrões”, umpersonagem diz a certa altura, relacionando-o à cria-ção de novas mídias digitais e às novas relações deforças provocadas. Daí advém o fenômeno contempo-râneo do “buzz” por meio do qual agências publicitári-as criam falsas páginas ou financiam páginas exis-tentes para a divulgação de seus produtos transfor-mando, assim, fãs em marketeiros. As agênciasreconhecem os padrões de consumo via convergênciade banco de dados e informa os clientes acerca da dis-ponibilidade de produtos ou então envia um e-mailque, aparentemente, não tem ligação alguma com aempresa, mas a marca aparece e é disseminada pelaInternet via “fwd”, e todos se transformam em agen-tes de marketing e consumidores a partir de uma ope-ração simples como “send”.

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Para além do gênero

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Miriam Lifchitz Moreira Leite (org.). Maria Lacerda de Moura:uma feminista utópica. Florianópolis, Editora Mulheres, 2005, 369pp.

Maria Lacerda de Moura, anarquista do amor livre, pa-cifista, individualista e de contradições. Entre revoltas,amigos, novas descobertas, caos interior, inventou suavida. Preocupada com a conscientização da mulher de suaposição servil, dedicou a isso grande parte de sua obra.

Em meados dos anos 80, Miriam Lifchitz Moreira Leitepublicou o primeiro estudo acadêmico sobre Maria Lacer-da, intitulado Outra face do feminismo: Maria Lacerda de

* Mestranda no Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais daPUC-SP e pesquisadora no Nu-Sol.

verve, 9: 293-296, 2006

Os romances de Gibson nos convidam a identificar comquais forças exteriores as forças presentes no homementram em relação na sociedade de controle. Em Neuro-mancer, por exemplo, Case é expulso da Matriz — ciberes-paço — e condenado a viver restrito em seu corpo, “na pri-são de sua própria carne” (p. 7). No ciberespaço o corpo éum fardo sujeito à modulação. Portanto, devemos tomarcertos cuidados ao procurar estabelecer com quais forçasexternas estamos em relação, sob pena de cair em enre-dos de histórias em quadrinhos, mas não podemos perderde vista que o futuro de Gibson é nosso presente. E que ocampo de concentração, o extermínio, o estado de exceçãoe o uso de tecnologias digitais para sua consecução estãopresentes.

eliane knorr*

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Moura e, atualmente, organizou para a Série Feministas,da Editora Mulheres, o livro Maria Lacerda de Moura: umafeminista utópica.

O livro foi criado a partir de excertos de suas obras.Miriam Moreira Leite contextualiza, na introdução do li-vro, a vida e o pensamento de Maria Lacerda com o pensa-mento e os fatos da época. O primeiro dos cinco temasdefinidos no livro é o registro biográfico.

Maria Lacerda conta sobre sua infância, marcada pelareligiosidade, e escreve sobre a importância de seu pai,espírita convicto, na construção de seu caráter. Muitasvezes, a linguagem que utiliza em suas reflexões remetea essa religiosidade, ainda que teça uma forte crítica àprópria religião. Muitas das contradições de Maria Lacer-da de Moura estão nessa fusão do pensamento radical como pensamento religioso; no entanto ela não nega suas con-tradições, pois não suprime seus conflitos. Seu pensamen-to não é mumificado, está em movimento, em constantemutação. É um pensamento vibrante.

O livro está dividido a partir de algumas temáticas prin-cipais dentro de cada um dos excertos, temáticas que seatravessam e se entrecruzam sem cessar. Quando refletesobre a educação, Maria Lacerda coloca também o proble-ma do corpo, da educação do corpo da mulher, deste corpocomo uma propriedade que, por princípio, não lhe perten-ce, e da importância de que cada mulher, a partir de simesma, emancipe-se, tome conta deste corpo, e destamaneira também se preocupe com uma maternidadeconsciente.

Maria Lacerda foi uma das pioneiras nos estudos sobrea condição feminina. Criticava ferozmente a servidão dasmulheres, afirmando que essa situação era sustentada,também, por elas mesmas. Quando trata do amor plural, oopõe, não só à mulher, dona de casa melindrosa, esposa,mãe de família, mas também às “heteras gregas”, que se

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entregam à promiscuidade banal, as mulheres que, dealguma forma, se assujeitam, aceitam as condições colo-cadas pelo homem. Uma e outra são um duplo de umamesma face.

O amor plural de que fala é o amor livre, o amor entreindivíduos únicos, o amor do coração generoso, como ge-nerosos são os anarquistas. Apesar de muitas vezes colo-car a fraternidade como um conceito importante na vidade todos os homens, noutros momentos ela também seposiciona contra, no sentido de que a fraternidade busca arelação somente entre iguais, preocupando-se com a uni-formização de todos, enquanto que o amor plural aprecia oparticular, o único. “O verdadeiro pluralista é um indiví-duo que ama indivíduos” (p.171).

Desenvolve mais intensamente a reflexão que faz so-bre o amor plural na companhia de Han Ryner. Não forampoucas as idéias que influenciaram o pensamento deMaria Lacerda de Moura, como as pacifistas religiosas,anarquistas, mas foi com Han Ryner, seu amigo, que en-controu maior ressonância.

Maria Lacerda mostra, a partir do grande número deautores que comenta, sua vontade de conhecimento. Porvezes, deixa evidente uma certa confusão no uso dos ter-mos, adotando conceitos díspares de sua própria reflexão,o que gerou críticas de seus “(...) contemporâneos, quantoà prolixidade, à inconsistência teórica e política, às im-precisões e contradições de suas posições” (p.15). No en-tanto, sua vontade rebelde e vontade de conhecimentotambém despertaram a atenção de anarquistas como JoséOiticica, responsável por introduzi-la na leitura de diver-sos revolucionários anarquistas. Entre os mais radicais,conheceu e conviveu com o pensamento de autores queainda hoje enfrentam resistências, como Max Stirner.

A leitura da obra de Maria Lacerda de Moura remetetanto a um tempo passado como a uma atualidade ex-

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pressiva. Em uma época em que se discute sobre a legi-timidade do comércio das armas, Moura compreende,muito anteriormente, que se trata de uma indústria deguerra e armamentos, que vai muito além da questão daproibição. Afirma ainda que, devido às técnicas moder-nas, todas as indústrias são hoje indústrias bélicas empotencial.

Levanta a crítica às instituições de confinamento, econdena qualquer espécie de castigo: “(...) as prisões fa-zem criminosos. A cadeia humilha. Ali explodem dege-nerescências” (p.106).

Ao contrário de grande parte de seus contemporâne-os, não faz uma distinção rígida entre exploradores e ex-plorados, entende que estas posições são mutáveis e in-tercambiáveis.

A atualidade de seus textos é expressiva, pois as críti-cas que fazia ao seu tempo cabem ainda hoje, a umasociedade que preserva, em muito, seus valores. MariaLacerda de Moura pensa no Brasil e sobre a maternidadeconsciente quando diz: “(...) a mulher trabalha, ganha asua vida, mas, não pode dispor do seu corpo, que não éseu” (p.51).

Pelo tom dado ao texto, consegue passar a vibração desua revolta. E apesar da crítica que fazia, devido à severi-dade com que tratava sua “missão” de conscientizar asmulheres, deixa escapar o humor, às vezes irônico, àsvezes sarcástico, que não costuma faltar a nenhum anar-quista.

De contradições, amores, rebeldias, invenções, vivemos anarquistas. Maria Lacerda de Moura não foi diferen-te. Na sua singularidade não se tornou uma igual. Nãofoi uma, foi muitas. Reinventou-se, e não se deixou fos-silizar. Não se tornou bolor, e tampouco embolorada tor-nou-se sua obra.

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Michel Foucault: um rosto desenhado na areia

michel foucault:um rosto desenhado na areia

Edson Passetti (org.). Kafka, Foucault: sem medos. Cotia, AteliêEditorial, 2004, 195 pp.

Tereza Cristina B. Calomeni (org.). Michel Foucault: Entre o mur-múrio e a palavra. Campos, Editora Faculdade de Direito de Cam-pos, 2004, 260 pp.

Luis Felipe Falcão; Pedro de Souza (orgs.). Michel Foucault: pers-pectivas. Rio de Janeiro, Achiamé, 2005, 142 pp.

A Terra, uma experiência humana cada vez maisinóspita e estéril. O deserto se amplia e sobre ele searrasta o homem reduzido à sua animalidade adoecida,ao seu instinto de sobrevivência que o impele a enfren-tar apenas a morte, o fim, o ocaso infame. Uma morteanônima, sem glória que mal chega a alterar as sonda-gens e os inacreditáveis gráficos estatísticos. A domi-nação biopolítica flagrada por Michel Foucault trata, emresumo, da redução dos estilos de vida, dos modos devida de um indivíduo ou grupo (chamada de Bios) à “vidanua” (Zoé), isto é, a vida biológica, natural. No desertoque se alastra o homem é seduzido e esmagado por essepoder que “faz viver e deixa morrer”.

Essa forma de poder se instala justamente no momentoantevisto e chamado por Nietzsche de “apogeu do niilis-mo”. A época em que se “arrisca uma crítica dos valoresem geral; reconhece sua origem; reconhece o bastantepara não acreditar mais em nenhum valor; o páthos estápresente, o novo calafrio...”(Friedrich Nietzsche, Sabe-

* Jornalista e Doutor em História da Cultura pela Unicamp.

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tony hara*

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doria para depois de Amanhã, p. 265). Não há cavernasna planície; não será possível mais, a esta altura, pro-curar abrigo e nem consolo em sombras metafísicas enem no manto confortável dos valores universais. A peleradicalmente exposta à luz, ao sol, ao hálito do deserto.“Se o homem recupera-se dela, apodera-se dessa crise,trata-se de uma questão da sua força: é pos-sível...” (Fri-edrich Nietzsche, Sabedoria para depois de Amanhã, p.265).

Evocar o pensamento de Michel Foucault, 20 anosapós a sua morte, é, sobretudo, evocar essa força e pos-sibilidade de vida a que se referia Nietzsche em 1888.Evocar a “poeira ou o murmúrio de um combate” mes-mo em condições difíceis, desfavoráveis em que até odesamparo e a precariedade se tornam aliados na lutacontra o conformismo, a resignação e as forças totalitá-rias que atravessam o corpo.

O amplo legado de Michel Foucault desperta inte-resses diversos, fundamenta análises precisas de ins-tituições disciplinares, motiva interpretações cada vezmais minuciosas de conceitos filosóficos, abre a possi-bilidade para a reflexão de domínios do saber como apsicanálise, a psicologia, o direito, a medicina social,a história... Os possíveis usos da filosofia ou da “açãofilosófica” de Foucault na atualidade são surpreenden-tes e múltiplos. É o que se pode constatar na leiturados livros Kafka, Foucault: sem medos (KF), Michel Fou-cault: entre o murmúrio e a palavra (MF) e Michel Foucault:perspectivas (MFP).

Essas obras reúnem diversos artigos (34 no total) es-critos por intelectuais brasileiros e estrangeiros convi-dados a participar de colóquios organizados por conta dascomemorações dos 20 anos da morte do filósofo, em SãoPaulo, Campinas, Campos e Florianópolis. No prelo, olivro Figuras de Foucault coordenado pelos professores

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Alfredo Veiga-Neto e Margareth Rago, que reúne os tex-tos apresentados e discutidos no “Colóquio Internacio-nal Michel Foucault, 20 anos depois”, realizado na Uni-camp.

Os livros compõem um mosaico, ou talvez, um labi-rinto no qual o leitor curioso poderá se aproximar e sedistanciar de Foucault a cada novo artigo lido ou sendapercorrida. De qualquer forma, após a leitura e releitu-ra desses artigos, a impressão mais ligeira e ao mesmotempo mais profunda, diz respeito ao caráter descontí-nuo da obra de Foucault. Daí a idéia de um mosaico ina-cabado, mais ainda, em permanente construção.

Tem-se a impressão forte de que neste agora, a figu-ra de Foucault é como aquele rosto desenhado na areiada praia. Transforma-se, desaparece e ressurge confor-me a maré das interpretações. E o movimento é inces-sante e tem finalidades diferentes. De forma puramen-te esquemática e, portanto, falível com qualquer esque-ma, pode-se reconhecer três ondas interpretativas.Aquela que busca capturar os traços marcantes do ros-to/obra do filósofo e aplicá-los em novas realidades oucontextos históricos; a que busca os traços mais sutis,ou seja, a reflexão sobre temas, problemáticas, teoriasnão escritas e apenas abordadas indiretamente pelo fi-lósofo; e aquelas que lêem no rosto um convite à experi-mentação e aos horrores e às delícias da invenção desi.

É desnecessário dizer que esses modos de ler se in-terpenetram e se confundem no fluxo da escrita. Porém,teimando em seguir aqui o esquema cometido, os leito-res encontrarão amplos panoramas da paisagem men-tal criada por Foucault, perpassados por pontuais análi-ses, nos artigos de Roberto Machado, Tereza Cristina B.Calomeni e do pesquisador da Universidade de Lisboa,Jorge Ramos do Ó.

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Neste modo de configurar o mosaico é possível entre-ver, primeiro, através do texto de Roberto Machado, uma“(...) síntese da genealogia das ciências do homem, talcomo foi pensada por Foucault” (MF, p. 33). Trata-se deuma análise e apresentação em rápidos traços, tantoda chamada fase “arqueológica”, quanto da fase “genea-lógica” do pensador francês. Em um segundo momentoTeresa Calomeni elabora um extenso breviário das prin-cipais teses foucaultianas sobre a analítica do poder (MF,pp. 39-77). E, finalmente, chega-se às teses da “gover-namentalidade” ou as “artes de governo” que surgem,segundo Jorge Ramos do Ó, “(...) como pivô e um pontode condensação do conjunto das reflexões de Foucault.”(MFP, p. 38). Os três artigos reunidos cobrem um grandeperíodo da produção intelectual de Foucault e, na medi-da do possível, procuram ordenar e sintetizar as suasdescobertas mais instigantes.

É possível dizer que outros textos complementam essaconfiguração. São os artigos que analisam com Foucault— a partir das suas sugestões e conceitos —, certas ins-tituições ou práticas disciplinares ainda em voga nacontemporaneidade. Como é o caso das prisões, dos Cen-tros de Atenção Psicossocial que substituíram os anti-gos manicômios e da escola, agora acoplada às novastecnologias de comunicação e de controle, tal como abor-da Guilherme Corrêa, no contundente artigo intitulado“Do livro de receitas: como produzir um homem” (KF, pp.45-54).

De uma forma geral, esses artigos que tematizam aspráticas e instituições disciplinares destacam, com ex-trema lucidez e precisão, as linhas de continuidade daspráticas características da sociedade disciplinar, ou ain-da, do poder soberano. Apesar das aparentes mudanças,dos espetáculos do progresso, das inteligências artifici-ais, a época em que vivemos se alimenta e se curva à

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moralidade produzida em épocas anteriores. Para o pes-quisador Thiago Rodrigues, por exemplo, o castigo e avontade de punir são constantes que perpassam tanto asociedade da soberania (aquela que fazia dos suplíciospúblicos uma festa/punição exemplar), quanto a socie-dade disciplinar e chegam até a nossa época de coleirase de ostensiva vigilância eletrônicas (KF, p. 176).

A professora Sandra Caponi, no mesmo movimento,finaliza seu artigo sobre o poder psiquiátrico questio-nando a sobrevivência, mesmo nos atuais Centros deAtenção Psicossocial, de duas velhas estratégias do sa-ber psiquiátrico do século XIX: o interrogatório e o usode drogas. “É verdade — argumenta Caponi — que a or-dem da psiquiatria deixou de ser o internamento, po-rém, hoje, trata-se de medicalizar e dominar as paixões,os delírios e os maus hábitos pelo uso de psicofármacosaparentemente eficazes. Em lugar de docilizar pelo en-cerramento físico manicomial, dociliza-se pelo isolamen-to que impõe o uso de psicofármacos” (MFP, p. 94).

Para encontrar uma outra forma de remontar o mo-saico é necessário chamar os artigos elaborados por Kle-ber Prado Filho, Joel Birman e Márcio Alves da Fonseca.Uma outra estratégia de leitura se aplica a esta confi-guração. Ao procurar mapear as possíveis trajetórias daproblematização da subjetividade na obra de Foucault,Kleber Prado Filho lança mão de um recurso chamadode “leitura transversal”, ou seja, aquela que “remete aum olhar (...) para temas paralelos, muitas vezes perifé-ricos, que proliferam nas análises do autor” (MFP, p. 43).

Em um artigo bastante denso — que na prática fun-ciona como um convite à leitura de seu livro Entre ocuidado e saber de si: sobre Foucault e a Psicanálise (Re-lume Dumará, 2000) —, o psicanalista Joel Birman, aobuscar convergências e divergências entre Foucault eo discurso da psicanálise também afirma que “[A psica-

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nálise] (...) nunca é trabalhada de forma direta, massempre num campo outro e mais amplo. É para esta tor-ção, teórica e metodológica, que devemos ficar atentos,para que possamos captar devidamente a posição da psi-canálise como produção discursiva na obra de Foucault”(MFP, p. 99).

Já a ausência de uma teoria do direito na obra deMichel Foucault torna possível, segundo a análise deMárcio Alves da Fonseca, “(...) a compreensão do sentidoque pode vir a ter o direito legítimo para Foucault” (MF,p. 184). Em resumo, é possível dizer que cabe ao direito,para Foucault, o papel de resistência aos mecanismosde normalização. E para que a resistência se realize efe-tivamente é fundamental pensar esse domínio do sabera partir do indeterminado, do inacabado. A formulaçãode uma teoria do direito faz com que se paralise o movi-mento e se limite a ação dos indivíduos ou grupos queassumem uma “atitude crítica” ao expressarem a “re-cusa em ser governado”.

No terceiro movimento ou onda interpretativa desta-cam-se os artigos de Oswaldo Giacóia Júnior, de PeterPál Pelbart e do professor da Universidade de Barcelona,Jorge Larrosa, intitulado “La operación ensayo: sobre elensayar e el ensayarse en el pensamiento, en la escri-tura y em la vida.” Na nascente deste fluxo a famosapassagem do livro O Uso dos Prazeres em que o autor sepergunta, “De que valeria a obstinação do saber se eleassegurasse apenas a aquisição de conhecimentos enão, de certa maneira, e tanto quanto possível, o desca-minho daquele que conhece?” (Michel Foucault, Histó-ria da Sexualidade II: O Uso dos Prazeres, p. 13). Trata-seaqui dos efeitos da definição e da prática do “ensaio”entendido por Foucault, como experiência modificadorade si no jogo da verdade, como exercício de si no pensa-mento.

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Esse estilo de filosofar surge, segundo o professorOswaldo Giacóia Júnior, no momento de abalo das cons-truções metafísicas e de descrença em relação à capa-cidade do pensamento em organizar um sistema inte-gral do conhecimento e de encerrar uma firme totalida-de. Um estilo forjado, sobretudo, pelo martelo filosóficode Nietzsche e retomado por Michel Foucault. Com ofim da metafísica, Nietzsche teria praticado o experi-mento com o pensamento em busca de algo efetivo. “Aofilósofo — afirma Giacóia — resta a tarefa crítica e aconquista daqueles novos reinos de experimentaçãoconsigo mesmo, antecipando, pela via da filosofia, a pos-sibilidade de novas formas de existência” (KF, p. 91).

Neste artigo ainda, o filósofo Oswaldo Giacóia desta-ca o caráter político dessa filosofia experimental, en-saística que impele a uma constante fuga das verda-des objetivas e do processo de consolidação de uma iden-tidade fixa e permanente. Nos termos de Foucault,trata-se de um estilo de pensamento que permite “se-parar-se de si mesmo” e que, por esta razão, “se trans-figura em política e antídoto contra toda espécie de fas-cismo.” Giacóia retoma o artigo “Anti-Édipo: Uma Intro-dução à Vida não Fascista” (Prefácio do livro de Deleuzee Guattari) e reconhece nesse processo de transforma-ção de si pelo exercício do pensamento e da escrita, umaresistência radical às formas totalitárias de pensar ede viver. E como observa Foucault: “E não somente ofascismo histórico de Hitler e Mussolini — que soubetão bem mobilizar e utilizar o desejo das massas —, mastambém o fascismo que está em nós, que ronda nossosespíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo quenos faz gostar do poder, desejar essa coisa mesma quenos domina e explora” (KF, p. 98).

Se, de fato, o que resta ao pensamento é a criação denovos territórios experimentais, a literatura é, então,

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uma bela aliada, pois, como afirma Peter Pál Pelbart, aliteratura e o pensamento “são experimentos sem ver-dade [...] em que arriscamos menos as nossas convic-ções do que nossos modos de existência” (KF, p. 139).Peter Pelbart lança mão, em seu artigo, de um experi-mento inusitado, surpreendente sobre a idéia de umcorpo que não agüenta mais todo o sistema de crueldadeutilizado no adestramento e na domesticação do ani-mal-homem.

A partir de duas imagens literárias o autor apresentao signo de uma resistência, a afirmação de “algo essen-cial do próprio mundo”. Mas, ao contrário do que se pode-ria imaginar, não se tratam de personagens robustas,temerárias, sangüíneas. Antes, são figuras literáriaspálidas, de olhos cinzentos mergulhados no vazio, sãocorpos cadavéricos que definham sem alarde, em silên-cio. O artista da fome, personagem de Kafka e Bartleby,de Melville, assemelham-se na recusa inabalável, nogesto extremo de renúncia ao mundo. E o curioso é quenesse corpo frágil, neste torpor passivo e manso, há efe-tivamente “indício de uma vitalidade superior”. Os des-dobramentos desse experimento deslocam, invertem,alteram as perspectivas e as avaliações do que seja umcorpo saudável, forte, organizado para os embates da vida.Ao evocar as idéias de Nietzsche, de Artaud, de Deleuzee de Beckett surge um diferente “estatuto do corpo comoindissociável de uma fragilidade, de uma dor, até mes-mo de uma certa ‘passividade’, condições para uma afir-mação vital de outra ordem” (KF, p. 147).

O artigo, na verdade o ensaio, de Jorge Larossa dis-pensa maiores comentários porque é um texto que me-rece, antes de tudo, ser incorporado. Trata-se de um tipode composição que proporciona, no movimento da leitu-ra, a oportunidade de refletir cuidadosamente a nossaprópria escrita, a nossa própria relação com o conheci-

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mento e com o presente. De qualquer forma fica aqui oregistro, o comentário muito parcial e precário de que,para Larrosa, Foucault reinventa o ensaio, esse estilotradicionalmente considerado um híbrido entre a lite-ratura e a filosofia.

E, finalmente, aquém ou além de qualquer esque-ma, vale lembrar o texto apresentado por Durval Munizde Albuquerque Júnior. No artigo, “No castelo da histó-ria só há processos e metamorfoses, sem veredicto fi-nal” é possível ler/ver a realização do pensamento en-quanto jogo, brincadeira maior, força de fabulação. Umasimples pergunta abre o belo artigo: “O que os historia-dores podem aprender lendo os escritos de Kafka?” (KF,p. 13). Na construção rigorosa da resposta, encontra-setanto o riso filosófico de Foucault, quanto a gargalhadade Kafka. O riso atormentado que lembra as pantomi-nas, os giros e rodopios do Acrobata da Dor: “Gargalha,ri, num riso de tormenta, / Como um palhaço, que de-sengonçado, / Nervoso, ri, num riso absurdo, inflado /De uma ironia e de uma dor violenta” (Cruz e Sousa,Obra completa, p. 89).

Aos olhos de um Tuaregue, de um beduíno nômade odeserto é uma vastidão de saídas. Tudo depende para ondese quer ir. Alguns comentadores dizem que Foucaultaponta a trilha insólita rumo a um oásis democrático.Outros, afirmam que ele “evita discípulo, competente eajuizado seguidor das suas descobertas para desafiar acom ele atuar” (KF, p. 11). Ensaiar, experimentar e atuarno deserto dentro e fora da gente. Um novo calafrio podeanunciar novas miragens. As linhas de vulnerabilidadese movem como as dunas em dias de tempestade. Quemsente o arrepio do deserto não suporta mais esperar acaravana passar.

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thoreau, um andarilho

Henry David Thoreau. Caminhando. São Paulo, José Olympio,2006, 122 pp.

A primeira versão de Walking, ou o Selvagem foi es-crita em 1851 e lida publicamente neste mesmo ano.Seguiram-se diversas reescritas e releituras, dandoorigem a dois textos, Walking e Wild. Entre os anos de1851 e 1854, Thoreau reescreveu ambos os textos,acrescentando ou retirando trechos; em 1862, poucoantes de morrer, recombinou as duas palestras, dasquais resultou o ensaio denominado Walking. É esteensaio que ora vem a ser lançado em português na tra-dução de Roberto Muggiati, sucedendo a obscura tradu-ção lançada pela Best Seller.

A particularidade desta nova edição reside nos mui-tos equívocos por ela oferecidos ao leitor, a começar pelaapresentação que, a pretexto de aproximar-nos do en-saio de Thoreau, confina-nos numa infindável e cansa-tiva descrição do ato de caminhar. Aprisionado em meioàs trilhas de Itaipava, Buda e o Caminho de Santiago,resta ao leitor inventar uma fuga, um percurso, queseria, como afirma Thoreau, como os rastros de um pás-saro, ou o salto de um trapezista no ar. Fuga que, aolongo de seus muitos ensaios e infindáveis reescritas,Thoreau não cessou de inventar, abalando as certezasdo pensamento domesticado, abrindo-se ao imprevisí-vel, ao desconhecido, desconcertando aqueles que pre-tendem estabelecer seu pertencimento a um domínio.

* Doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP.

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ana godoy*

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Que outra coisa seria um ensaio senão uma experi-mentação sem começo e nem fim, a composição de umapaisagem movente que se faz enquanto é percorrida?Que outra coisa seriam os percursos, senão as vizi-nhanças que inventamos, tanto mais potentes quantoinesperadas e surpreendentes?

Assim chegamos à primeira página de Caminhando.

Cada parágrafo — que a recente edição, em maisum equívoco, traz sem os espaçamentos originais —apresenta-se como uma pequena narrativa na qualThoreau descreve uma personagem, o andarilho, emais adiante, os diferentes horários do dia, o sol e ovento, um temperamento, as grandes estradas e as im-prováveis trilhas, as longas e pequenas caminhadas,as regiões estranhas e inabitadas, e aquelas em queimpera a servilidade e o gosto da multidão. Engana-seo leitor que vê ali tão-somente a descrição de um esta-do de coisas, pois cada parágrafo configura pequenosterritórios, paisagens construídas em torno de temasque vão e voltam e cujos elementos são constantementere-arranjados, convidando-nos a abandonar “usos e há-bitos enferrujados e antiquados” (p. 119), com os quaisnão paramos de criar os meios de mantermo-nos, jun-to ao pensamento, confinados. Usos e hábitos que tran-formam-nos em “andarilhos acovardados (...). [Pois] nos-sas expedições não passam de giros e regressamos ànoitinha para o pé da velha lareira da qual nos apartá-ramos. Metade da jornada é para trilhar os caminhosjá percorridos” (p. 68).

Que caminhos seriam estes? Talvez aqueles que noslevam “ao campo estreito da política” (p. 77), talvez se-jam ainda aqueles da ecologia, da imensidão selvagem— a wilderness — com suas inúmeras florestas e ani-mais a serem conservados, os caminhos do proprietá-rio e do homem de bem, cuja gorda saúde deve ser

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mantida a custa de permanecermos sempre prisionei-ros do já dito, do já visto e sentido, ou ainda os cami-nhos já dados pelas leis que não cessamos de criar,pela razão necessária que nos induz a determinar pon-tos de chegada e de partida, aqueles pelos quais noslevam os guias impelindo-nos à retidão moral e dossentidos. “Cada um de vocês cuidará bem disso” (p.67), declara Thoreau, logo no primeiro parágrafo, aler-tando-nos quanto ao hábito que adquirimos de procu-rar reconhecer em qualquer lugar as marcas do já co-nhecido, do já sabido.

É deste modo que Thoreau distingue-se dos trans-cendentalistas norte-americanos, seus contemporâ-neos, mas é sobretudo deste modo que Thoreau dis-tingue seus leitores. Aqueles cuja rebeldia há muitose separou da selvageria e seus percursos, confun-dindo-se com as trajetórias seguras da política e damoral, e aqueles para quem caminhar é tomar a pai-sagem como meio a ser explorado, experimentandooutros funcionamentos com os elementos dados, umapaisagem que comporta, aquém e além do que é dado,um certo regime de intensidades, não determináveis;paisagens táteis, sonoras, auditivas e visuais que se fa-zem e desfazem nos percursos inventados na errância.Pois trata-se, como afirma Thoreau no início de Cami-nhando, de “dizer uma palavra em favor da natureza,da liberdade e da selvageria; uma palavra que não sereduza às acusações e queixas de uma época, aos la-mentos chorosos dos impotentes para quem o “mundotermina aqui, no leste implacável no qual vivem decompreender a história e refazer os passos da raça”(p. 84); uma palavra que exprima o furor, a selvageria,que nenhuma civilização poderia suportar, uma pala-vra que somente aqueles que se lançam à errâncianão cessam de inventar.

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Seguimos caminhando, saltando de um parágrafo aoutro, agora mais atentos aos pequenos e insidiosos con-finamentos no corpo e no pensamento que nos impedemde escutar “o galo cantar em cada quintal de nosso hori-zonte” (p. 119), que nos mantêm satisfeitos no aconche-go dos cercados por nós construídos e multiplicados, umadentre as tantas “armadilhas humanas e outros enge-nhos inventados para confinar os homens à estrada pú-blica” (p. 82).

Caminhamos, mas mais incertos quanto às paisagensque percorremos e quanto aos percursos que extraímosde cada paisagem. Uma vila, um bosque uma pedra, umcrepúsculo arrastam-nos e a Thoreau em direção a pai-sagens não localizáveis; deixam de ser referências fixa-das pelos discursos, sejam eles o de um certo anarquis-mo romântico ou os da ecologia, ou aqueles salpicados deespiritualismo, mediadores das relações entre pessoas ecoisas, para apresentarem-se como pontos de cruzamento,em relação aos quais os percursos não são dedutíveis.

Caminhando, inventam-se passagens, saltos que da-mos de uma coisa a outra, desfazendo o contorno que limi-taria as caminhadas e não seria um círculo, senão “umaparábola, ou uma daquelas órbitas de cometa que foramtidas como curvas sem retorno” (p. 83). Caminhando, tor-namo-nos salteadores de fronteiras; nessa errância, osterritórios existentes se desfazem; experimentamos, ca-minhando, a urgência vital da invenção em relação à qualnatureza, liberdade e selvageria permanecem intimamen-te implicados com a experiência da existência. Longe depedir por portos seguros ou ancoragens, ela exige abando-no e partida, o incessante caminhar como experimenta-ção de si e do pensamento, pois o mais selvagem perma-nece aquém ou além de toda convenção, de todo confor-mismo cujas coerções seriam apenas outros meios dedesbravamento, domesticação e confinamento.

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São estes os percursos de um andarilho, que para opensamento, segundo Thoreau, andando menos “podeser o mais errante de todos” (p. 68), sempre segundo asinquietações que lhe sobrevêm, deslocando-se e perse-guindo um a mais de vida diante da pequenez das alter-nativas oferecidas e da vulgaridade do senso comum,empenhado em reduzir a vida ao regime contábil da pro-priedade e da dívida.

Em Caminhando, Thoreau incita-nos a inventar ummodo de pensar, um modo de habitar, inseparável deuma política, modos potentes o bastante para derrubaras cercas, para abrir os territórios para outras forças,arrastando-nos na direção de um outro de nós mesmose do pensamento, de um sans terre, de alguém sem ter-ra ou moradia, mas capaz de sentir-se igualmente emcasa em qualquer local. Eis aí, para Thoreau, “o segredode vagar com sucesso” (p. 68).

Prossiga a leitura, salte por sobre os equívocos da tra-dução, esqueça-se da apresentação. Ali tudo é aborreci-do e fatigante, como só o são os conformados: para es-ses, caminhar é para bípedes, aqueles a quem só restoupôr um pé na frente do outro como parte de igualmenteaborrecidos e enfadonhos slogans de bem viver.

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NU-SOLNU-SOLNU-SOLNU-SOLNU-SOLPublicações do Núcleo de Sociabilidade Libertária, do Programa de Estudos

Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP.

hypomnemata

Boletim eletrônico mensal, 1999-2006

vídeos

Libertárias, 1999

Foucault-Ficô, 2000

Um incômodo, 2003

Foucault, último, 2004

Manu-Lorca, 2005

A guerra devorou a revolução. A guerra civil espanhola, 2006

CD-ROM

Um incômodo, 2003 (artigos e intervenções artísticas do Simpósio Um

incômodo)

Coleção Escritos Anarquistas, 1999-2004

1. a anarquia Errico Malatesta

2. diálogo imaginário entre marx e bakunin Maurice Cranston

3. a guerra civil espanhola nos documentos anarquistas C.N.T.

4. municipalismo libertário Murray Bookchin

5. reflexões sobre a anarquia Maurice Joyeux

6. a pedagogia libertária Edmond-Marc Lipiansky

7. a bibliografia libertária — um século de anarquismo em língua portugue-

sa Adelaide Gonçalves & Jorge E. Silva

8. o estado e seu papel histórico Piotr Kropotkin

9. deus e o estado Mikhail Bakunin

10. a anarquia: sua filosofia, seu ideal Piotr Kropotkin

11. escritos revolucionários Errico Malatesta

12. anarquismo e anticlericalismo Eduardo Valladares

13. do anarquismo Nicolas Walter

14. os anarquistas e as eleições Bakunin, Kropotkin, Malatesta, Mirbeau,

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Grave, Vidal, Zo D’Axa, Bellegarrigue, Cubero

15. surrealismo e anarquismo Joyeux, Ferrua, Péret, Doumayrou, Breton,

Schuster, Kyrou, Legrand

16. nestor makhno e a revolução social na ucrânia Makhno, Skirda,

Berkman

17. arte e anarquismo Ferrua, Ragon, Manfredonia, Berthet, Valenti

18. análise do estado — o estado como paradigma do poder Eduardo

Colombo

19. o essencial proudhon Francisco Trindade

20. escritos contra marx Mikhail Bakunin

21. apelo à liberdade do movimento libertário Jean-Marc Raynaud

22. a instrução integral Mikhail Bakunin

23. o bairro, o consumo, a cidade... espaços libertários Bookchin, Boino,

Enckell

24. max stirner e o anarquismo individualista Armand, Barrué, Freitag

25. o racionalismo combatente: francisco ferrer y guardia Ramón Safón

26. a revolução mexicana Flores Magón

27. anarquismo, obrigação social e dever de obediência Eduardo Colombo

28. Bakunin, fundador do sindicalismo revolucionário Gaston Leval

29. Autoritarismo e anarquismo Errico Malatesta

Livros

Edson Passetti e Salete Oliveira (orgs.). A tolerância e o intempestivo. São

Paulo, Ateliê Editorial, 2005.

Edson Passetti (org.). Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro,

Editora Revan/Nu-Sol, 2004.

Edson Passetti (org.). Kafka-Foucault, sem medos. São Paulo, Ateliê Editorial,

2004.

Mikhail Bakunin. Estatismo e anarquia. São Paulo, Ed. Imaginário/Ícone

Editora/Nu-Sol, 2003.

Pierre-Joseph Proudhon. Do Princípio Federativo. São Paulo, Ed.

Imaginário/Nu-sol, 2001.

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Recomendações para colaborar com verve

Verve aceita artigos e resenhas que serão analisados pelo Con-selho Editorial para possível publicação. Os textos enviados à re-vista Verve devem observar as seguintes orientações quanto à for-matação:

Extensão, fonte e espaçamento:

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As notas, concisas e de caráter informativo, devem vir em notade fim de texto.

Citações:

As referências bibliográficas devem vir em nota de fim de textoobservando o padrão a seguir:

I) Para livros:

Nome do autor. Título do livro. Cidade, Editora, Ano, página.

Ex: Margareth Rago. Entre a liberdade e a história: Luce Fabbri eo anarquismo contemporâneo. São Paulo, UNESP, 2001, p. 111.

II) Para artigos ou capítulos de livros:

Nome do autor. “Título” in Título da obra. Cidade, Editora, ano,página.

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Ex: Michel de Montaigne. “Da educação das crianças” in En-saios, vol. I. São Paulo, Nova Cultural, Coleção Os pensadores,p.76.

III) Para citações posteriores:

a) primeira repetição: Idem, p. número da página.

b) segunda e demais repetições: Ibidem, p. número da página.

c) para citação recorrente e não seqüencial: Nome do autor,ano, op. cit., p. número da página.

IV) Para resenhas

As resenhas devem identificar o livro resenhado, logo após otítulo, da seguinte maneira:

Nome do autor. Título da Obra. Cidade, Editora, ano, númerode páginas.

Ex: Pierre-Joseph Proudhon. Do Princípio Federativo. São Pau-lo, Ed. Imaginário, 2001, 134 pp.

V) Para obras traduzidas

Nome do autor. Título da Obra. Cidade, Editora, ano, númerode páginas. Tradução de [nome do tradutor].

Ex: Max Stirner. O único e sua propriedade. Tradução de JoãoBarrento. Lisboa, Antígona, 2004.

As colaborações devem ser encaminhadas por meio eletrônicopara o endereço [email protected] salvos em extensão rtf. Na impos-sibilidade do envio eletrônico, pede-se que a colaboração em dis-quete seja encaminhada pelo correio para:

Revista Verve

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