antropolítica - revista contemporânea de antropologia (hofbauer)

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    Antropoltica Niteri n. 27 p. 1-302 2. sem. 2009

    ISSN 1414-7378

    An t r o p o l t i c A N

    o

    27 2o

    semestre 2009

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    2010 Programa de Ps-Graduao em Antropologia UFF

    Direitos desta edio reservados EdUFF - Editora da Universidade Federal Fluminense -Rua Miguel de Frias, 9 - anexo - sobreloja - Icara - CEP 24220-900 - Niteri, RJ - Brasil -Tel.: (21) 2629-5287 - Telefax: (21) 2629-5288 - http:///www.editora.uff.br - E-mail: [email protected]

    proibida a reproduo total ou parcial desta obra sem autorizao expressa da Editora.

    Normalizao:Caroline Brito de OliveiraReviso: Ricardo BorgesProjeto grco, capa e editorao eletrnica: Jos Luiz Stalleiken MartinsSuperviso grca: Kthia M. P. Macedo

    UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    ReitorRoberto de Souza Salles

    Vice-ReitorEmmanuel Paiva de Andrade

    Pr-Reitor/PROPPAntonio Carlos Lucas de Nbrega

    Diretor da EdUFFMauro Romero Leal Passos

    Diretor da Diviso de Editorao

    e Produo: Ricardo BorgesDiretora da Diviso de Desenvolvimentoe Mercado: Luciene Pereira de MoraesAssessoria de Comunicao e Eventos:Ana Paula CamposCOMISSOEDITORIALDAANTROPOLTICADelma Pessanha Neves (PPGA / UFF)Laura Graziela F. F. Gomes (PPGA / UFF)Marco Antonio da Silva Mello (PPGA / UFF)Simoni Lahud Guedes(PPGA / UFF)

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao - CIP

    A636 Antropoltica: Revista Contempornea de Antropologia n. 27, 2 sem. 2009,(n. 1, 2. sem.1995). Niteri: EdUFF, 2009.

    v. : il. ; 23 cm.

    Semestral.

    Publicao do Programa de Ps-Graduao em Antropologia da UniversidadeFederal Fluminense.

    ISSN 1414-7378

    1. Antropologia Social. I. Universidade Federal Fluminense. Programa dePs-Graduao em Antropologia.

    CDD 300

    Editora filiada

    Conselho Editorial da AntropolticaLuiz de Castro Faria (PPGA/UFF)(In memorian)

    Ana Maria Gorosito Kramer (UNAM Argentina)Anne Raulin (Paris X Nanterre)Arno Vogel (UENF)Charles Freitas Pessanha (UFRJ)Charles Lindholm (Boston University)Claudia Lee Williams Fonseca (UFRGS)Daniel Cefa (Paris X Nanterre)Edmundo Daniel Clmaco dos Santos (Ottawa Uni-

    versity)Eduardo Diatahy Bezerra de Meneses (UFCE)Eduardo Rodrigues Gomes (PPGCP/UFF)

    Joo Baptista Borges Pereira (USP)Josefa Salete Barbosa Cavalcanti (UFPE)Lana Lage de Gama Lima (UENF)Licia do Prado Valladares (IUPERJ)Lus Roberto Cardoso de Oliveira (UNB)Marc Breviglieri (EHESS)Mariza Gomes e Souza Peirano (UNB)Otvio Guilherme Cardoso Alves Velho (UFRJ)Raymundo Heraldo Maus (UFPA)Roberto Augusto DaMatta (PUC)Roberto Mauro Cortez Motta (UFPE)Ruben George Oliven (UFRGS)Soa Tiscrnia (UBA)

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    Sumrio

    NotadoSeditoreS, 7doSSi: DinmicaDeiDentiDaDessociaisepolitizaoDealteriDaDesculturais, 9

    apresentao: ComiteditorialdarevistaantropoltiCa

    EspEcificidAdEsdAidEntidAdEdEdEscEndEntEsdEitAliAnosnosuldoBrAsil: BrEvEAnlisEdAsrEgiEsdEcAxiAsdosulEsAntAMAriA, 21miriamdeoliveirasantosemariaCatarinaChitolinaZanini

    novossujEitosdEdirEitosEsEusMEdiAdorEs uMArEflExosoBrEprocEssosdEMEdiAoEntrEquiloMBolAsEApArElhosdEEstAdo, 43maristeladepaulaandrade

    A rEtricAdAtrAdio: notAsEtnogrficAsdEuMAculturAEMtrAnsforMAo, 63GilmarroCha

    cirAndAEprofissionAlizAo: rEflExEsApArtirdEoscoroAscirAndEiros, 85lysiareisCond

    artigoS

    EntrEolhArEsAntropolgicosEpErspEctivAsdosEstudosculturAisEps-coloniAis: consEnsosEdissEnsosnotrAtodAsdifErEnAs, 97andreashofbauer

    A construodooBjEtoquiloMBo: dAcAtEgoriAcoloniAl

    Ao

    concEito

    Antropolgico

    , 131vroniqueboyer

    colonizAoAgrcolAdirigidAEconstruodEpArcElEirostutElAdos, 155pedrofonseCaleal

    culturAjurdicAnAcionAl: sMBolosEcoMportAMEntosAutoritriospErMEAdospElodiscursodEMocrtico, 183

    dborareGinapastana

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    conflitospolticosEintolErnciArEligiosAEMAlAgoAsnApriMEirArEpBlicA, 203

    ulissesnevesrafael

    reSeNhaS

    livro: BArros, BEnEditAdAsilvA; gArcs, clAudiAl. lpEz; MorEi-rA, EliAnEc. pinto; pinhEiro, Antniodosocorrof.(org.). protEo

    AosconhEciMEntosdAssociEdAdEstrAdicionAis. BElM: cEntrounivErsit-riodopAr cEsupA / MusEupArAEnsEEMliogoEldi, 2007. 341 p.

    autorDaresenha: Brunoc. Brulonsoares, 225

    NotciaSdoPPga

    relaoDeDissertaesDefenDiDasnoppGa, 233

    relaoDetesesDefenDiDasnoppGa, 263

    iV JornaDaDeantropoloGiaDosalunosDoppGa/uff, 269

    reVistaantropoltica: nmeroseartiGospuBlicaDos, 275coleoantropoloGiaecinciapoltica(liVrospuBlicaDos), 297

    NormaSdeaPreSeNtaodetrabalhoS, 301

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    coNteNtS

    editorSNote, 7doSSier: dyNamicSofSocialideNtitieSaNdthePoliticizatioNofculturalalteritieS, 9

    forEword:editorialCommitteeofantropoltiCaJournal

    spEcificitiEsofthEidEntityofdEscEndAntsofiitAliAnsinsouthErnBrAzil:ABriEfAnAlysisofthErEgionsofcAxiAsdosulAndsAntAMAriA, 21miriamdeoliveirasantosandmariaCatarinaChitolinaZanini

    nEwsuBjEctsofrightsAndthEirMEdiAtors ArEflEctiononprocEssEsofMEdiAtionBEtwEEndEcEndEntsofrunAwAyslAvEsAndstAtEAppArAtus, 43maristeladepaulaandrade

    thErEtoricoftrAdition: EthnogrAphicsnotEsofAculturEintrAnsforMAtion, 63GilmarroCha

    cirAndAsAndprofEssionAlizAtion:rEflEctionsonthEgrouposcoroAscirAndEiros, 85lysiareisCond

    articleS

    BEtwEEnAnthropologicAlpErcEptionsAndthEpErspEctivEsofthEculturAlAndpostcoloniAlstudiEs: consEnsusEs

    AnddiscordAncEsinthEtrEAtMEntofdiffErEncEs, 97

    andreashofbauer

    thEconstructionofthEquiloMBooBjEct:froMcoloniAlcAtEgorytoAnthropologicAlconcEpt, 131vroniqueboyer

    dirEctEdAgriculturAlcolonizAtionAndconstructionofprotEctEdshArEcroppErs, 155pedrofonseCaleal

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    juridicAlculturEs: lEgAlsystEMs: syMBolsAndAuthoritAriAnBEhAviorpErMEAtEdBythEdEMocrAticdiscoursE, 183dborareGinapastana

    politicAlconflictsAndrEligiousintolErAncEinAlAgoAsinthEfirstrEpuBlic, 203ulissesnevesrafael

    reviewS

    Book: BArros, BEnEditAdAsilvA; gArcs, clAudiAl. lpEz; MorEi-rA, EliAnEc. pinto; pinhEiro, Antniodosocorrof.(org.).Proteoaosconhecimentosdassociedadestradicionais. BElM: cEntrounivErsit-rio

    do

    pAr

    cEsupA / MusEu

    pArAEnsE

    EMlio

    goEldi

    , 2007. 341p

    .reVieweDBy: Brunoc. Brulonsoares, 225

    PPga NewSphD thesisDefenDeDatppGa, 233

    thesisDefenDeDatppGa, 263

    4th

    JourneysantropoloGystuDentsofppGa/uff, 269reVistaantropoltica: numBersanDpuBlisheDarticles, 275

    puBlisheDBookscoleoantropoloGiaecinciapoltica, 297

    NormSforarticleSubmiSSioN, 301

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    notaDoseDitores

    Neste nmero 27 da Antropoltica, coorespondente ao segundo semestre de2009, reafirmamos nossa inteno de utilizar este veculo de comunicao paratornar pblica nossa produo acadmica, abarcando o corpo docente e discentedo Programa de Ps-Graduao em Antropologia, mas tambm autores vincu-lados s redes institucionais com as quais mantemos intercmbios sistemticos,bem como acolher, com muita honra, diversos autores que elegem esta revistacomo meio de publicao de sua prpria produo.

    A demanda por publicao vem se ampliando, condio que tem nos permi-tido, no processo de leitura dos textos encaminhados, induzir aproximaes

    temticas e metodolgicas entre os inmeros artigos que nos foram subme-tidos e aprovados pelos pareceristas. Agregamos, neste nmero 27, quatroartigos em torno da questo Dinmica de identidades sociais e politizao dealteridades culturais, ttulo de dossi que corresponde a uma das sesses daestrutura da revista. A pertinncia da agregao dos artigos demonstra no spreocupaes relativamente comuns de vrios antroplogos e seus respectivosprogramas institucionais, como tambm revela questes sociais candentes nasociedade brasileira contempornea. Fomos, assim, sensibilizados a colaborarna expanso do debate em torno de processos de construo de identidadessociais, bem como em torno de investimentos polticos de distino cultural,com os quais diversos antroplogos colaboram como pesquisadores e assessores,revelando facetas diferenciadas e concomitantes ou complementares do fazerantropolgico.

    Na sesso Artigos, a inteno editorial a agregao de temas diversos, pu-blicados conforme as demandas individuais dos autores. Neste nmero, apre-sentamos desde textos de intenes mais tericas e revisionistas da produoantropolgica, como os dois primeiros, at contribuies que acompanham

    diversas faces da ao do Estado e da construo democrtica, alm de camposde tenso que permeiam a convivncia de diferenciadas aes religiosas.

    Mediante publicao de resenhas, estimulamos nossos alunos insero nomundo acadmico pelo exerccio de tomada de posio frente bibliografia deinteresse mais imediato, bem como acolhemos outras contribuies pertinentes.

    Nas Notcias do PPGA, temos o orgulho de publicar o programa da IV Jornadade Antropologia, comemorativa dos 15 anos de existncia do Programa, eventopelo qual os alunos organizam alternativas de debate e contraposio entre

    nosso corpo docente e discente, mas incluindo como proposta fundamentala participao de professores ou pesquisadores de instituies externas, que

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    assim colaboram na discusso dos trabalhos acadmicos a que os alunosse dedicam no decorrer do curso, na elaborao da dissertao ou tese.Sendo um evento anual, iniciativa sistematicamente reproduzida pelosalunos, orgulhamo-nos pela demonstrao da maturidade intelectual e

    desvelo com que se profissionalizam.Continuamos a disponibilizar os nmeros publicados da Revista Antropo-ltica nositewww.uff.br/ppga, facilitando assim o acesso dos interessadose honrando os autores que escolhem a revista como meio de circulaode idias, dando ampla divulgao reflexo de questes que quiseramtornar pblicas. E assim, reafirmamos um dos objetivos da revista, a decircular idias no campo acadmico brasileiro, mas tambm naqueles emque autores e leitores dominam a lngua portuguesa.

    Comit editorial da Revista Antropoltica - UFF

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    Dossi:Dnmca de dentdade

    ca e pltza de

    alterdade cultura

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    comiteDitorialDareVistaantropoltica

    apresentao

    Os artigos que compem este dossi Dinmicade identidades sociais e politizao de alteridades cul-turais convidam reflexo sobre conceitos asso-

    ciados como identidade social, memria coletivae dinmica cultural, todos bastante utilizados nascincias sociais, diramos mesmo, bastante explo-rados, alm de, por vezes, abundantes na lingua-gem poltica. Todavia, conforme demostram osautores, tambm importantes para compreenderuma srie de fenmenos sociais da contempora-neidade. Muitos desses fenmenos se apresentammais visveis no atual contexto socioeconmicoe poltico, de investimentos pblicos no sentidoda construo de reconhecimentos da diversida-de de produo de formas de existncia social.Correlativamente, da produo de situaes eeventos constitutivos da definio e consolidaodo sistema democrtico de organizao social, deexerccio de cidadania representativa. Tais rei-vindicaes polticas pressupem a produo de

    diferenciadas formas de pensar e agir, portanto,de reconhecimento da crescente diversidade dereferncias culturais.

    To recorrentes aqueles conceitos, o leitor, aoidentificar a temtica geral deste dossi, podeento imaginar: Mas ainda h o que se dizersobre identidade social ou tradio cultural? Eimediatamente poderamos responder: Ento,por que tantos movimenos memorialistas no atualcontexto?

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    Ora, como aqueles conceitos integram a formao dos cientistas sociaise criam os meios de comunicao entre eles prprios e os pblicos comos quais tm interesse em interagir, esto na ordem da produo aca-dmica, porque tambm na ordem da produo da vida social. Sendo

    de usos to recorrentes, so por vezes descredenciados, tendo em vistasignificados assim banalizados. No obstante, so inerentes ao sentido daproduo dos cientistas sociais: compreender a capacidade de produoe reproduo das relaes sociais segundo parmetros formulados pelaelaborao contextual de significados. Por conseguinte, so de tamanhautilidade e amplitude, como todos os autores demonstram, que eles,por tais circunstncias, exigem exerccios de explicitao dos contedosempregados e dos respectivos processos de constituio. Este exerccio

    metodolgico cuidadosamente praticado em todos os artigos.Frente a questionamentos recorrentes sobre formas de construo degrandes memrias memrias coletivas politicamente mais assentadase, assim, supostamente homogeneizadas , grupos sociais reivindicam aproduo de memrias singulares e diferenciadas. Memrias fragmen-tadas e destinadas a fazer diluir relaes de poder que fundamentaramos marcos impositivos de sistemas de posies sociais correspondentesquelas formas de cristalizao de hegemnicas vises de mundo.

    Sob movimentos de desvalorizao de memrias coletivas recomendadascomo nicas e, correlativamente, de valorizao de memrias mltiplase questionadoras de histria imposta, enfim, diante de processos de lutapelo reconhecimento de singularidades de formas de vida, os antrop-logos operam em contextos oportunos para registro e compreenso deformas de constituio de espaos sociais propiciadores dos investimentosna distino poltica de grupos sociais.

    Em todos os casos estudados, os autores focam em pesquisas empri-cas em torno de grupos que reclamam o reconhecimento poltico e opertencimento social, investindo para que as fronteiras simblicas dosuniversos sociais assim reclamados, sejam reconhecidas, ora como con-formadoras de comunidades de origem ou de percursos comuns, orade projeo de destinos sociais estimados, ora de memria coletiva embusca de reconhecimento. Portanto, os artigos trazem como questofundamental do exerccio antropolgico, o papel constitutivo e consti-tuinte do imaginrio social na institucionalizao de prticas e formas

    de contraposio; reportam compreenso de prticas de grupos emrelao contrastiva, de modos de produo de discursos referenciadoresdas experincias comuns.

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    Ento, desde j se justifica a agregao dos artigos neste dossi: em todossendo demonstrado que, para se compreender a natureza das relaessociais vividas pelos grupos que foram privilegiados para efeitos do estudode situaes empricas, importa compreender como elas so pensadas e

    vividas, que modos de vida e crenas configuram as identidades sociais.Essas questes analticas atravessam, diferentemente, todos os textos.

    Separando o exerccio analtico daquele correspondente aos fenmenosdelimitados para objetos de pesquisa, os autores insistem na distinoentre as relaes conceituais que delimitam seu prprio universo de sig-nificaes, e aquelas sobre as quais pretendem compreender, para tantoexplicando os processos de produo de distines sociais e polticas degrupos e, assim, de construo de identidades sociais.

    Todos ento investem no combate a concepes objetivistas, essencialistas,primordialistas ou substancialistas da identidade social, da cultura e datradio, empenhando-se em fazer cair por terra qualquer pretensoinocente de pensar experincias passadas como memorizadas a partirda idia de conservao e recuperao; mesmo que os agentes, emcada situao, no af do reconhecimento e de produo da vida social,reivindiquem tais pressupostos. Importante recurso da construo daidentidade social, a memria coletiva, to valorizada no contexto como

    portadora de atributos de definio da tradio, no pode ser definidacomo restituio ou reproduo do passado; mas um conjunto de mar-cas na reconstruo referenciada aos outros que se encontram em jogonos termos da vida social em causa; ou um conjunto de referncias aopassado, fundamentadas neste mesmo jogo social, implicando estratgiasde investimentos no que deve vir a ser mediante a contraposio ao quese admite que se foi.

    A originalidade de cada caso estudado incide sobre a demonstrao docomo e do porqu tais traos ou atributos sociais so dramatizados e

    reivindicados no processo de valorao de uns vis-a-vis os outros. Porconseguinte, o que est em jogo a forma como os homens se tornamseres sociais e culturais se transfigurando e se convertendo por diversasverses coletivamente consentidas. Este tornar-se ser social , no tempoe no espao, da ordem da incomensurabilidade. Os casos aqui analisadosso apenas alguns exemplos.

    Destacamos ainda que todos os autores entram em acordo quanto pers-pectiva conceitual e metodolgica de que a identidade social representa

    formas de cristalizao de conquistas obtidas ou de contraposies, emmeio a processos mais ou menos conflitivos, processos que permitemento compreender a construo social da viso de si mesmos vis-a-vis

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    o mundo social imediatamente referenciado. Integram os universos deagentes em estudo, tanto aqueles identificados como pertencentes aosgrupos sociais em pauta, como os demais agentes em interao e emcontraposio. Ns antroplogos argumentamos: tais reflexes pressu-

    pem a valorizao do estudo dialgico das relaes sociais em causa, adepender da situao social.

    Defendemos ento a relevncia da temtica deste dossi, do mesmo modoque afirmamos a diversidade de formas com que individuos e gruposcompartilham prticas e representaes sociais, sistemas de crenas, delembranas, de sentidos para a vida coletiva. To diversas que s podemser conhecidas pelo estudo de como se apresentam em cada caso.

    Iniciamos a organizao do dossi pelo artigo Especificidades da iden-

    tidade de descendentes de italianos no sul do Brasil: breve anlise dasregies de Caxias do Sul e Santa Maria, de Miriam de Oliveira Santose Maria Catarina Chitolina Zanini. Elas colaboram para a reflexo datemtica, considerando alguns dos possveis desdobramentos de pro-cessos de imigrao, situao especial de provimento na construo deidentidades culturais.

    Assumindo a importncia da perspectiva construtivista de anlise parapensar os processos e o campo institucional em jogo na constituio

    identitria, as autoras enfatizam a construo contextual de atributossociais, expresses de processos de atribuio de significados sociaisna interao entre agentes sociais privilegiadamente qualificados pelaalteridade. Para valorizar a singularidade situacional do processo empauta, elas constroem parceria intelectual no estudo comparativo decasos, cada uma demonstrando como os agentes sociais participam demaneiras diferenciadas das definies de modos coletivos de viver einteragir. Os dois casos so selecionados de experincias vividas pordescendentes de italianos no estado do Rio Grande do Sul, mas cada

    um compreendido por contextos prprios referentes aos municpios deCaxias do Sul e Santa Maria.

    Como o processo de imigrao propiciou a convivncia de individuose grupos referenciados a nacionalidades diversas, mesmo que em tesetais experincias fossem respostas a reajustamentos populacionais cor-respondentes elaborao e objetivao de projetos de reproduofamiliar valorada pela autonomia da atividade agropecuria e artesanal,as experincias apontam para a diversidade de prticas. Reconstituindo-

    se no espao do outro, imigrantes italianos construram e responderam construo de atributos sociais, alguns deles ainda transmitidos comolegados a geraes sucessivas. As autoras refletem ento sobre a produo

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    de sinais de tipificao e adscritivos comuns, tais como valores associadosao pioneirismo, reafirmao do trabalho e da famlia, recursos funda-mentais para projeo e objetivao de estratgias de ascenso social.Mesmo que haja valores em comum na estruturao dos processos de

    integrao, as autoras demonstram o quanto a denominaoimigraoitalianaest longe de corresponder a um fenomeno homogneo, comopode insinuar a utilizao genrica do termo.

    Para dar conta da especificidade de cada caso, as autoras destacam osprocessos de negociao interativa, valorizando a relao entre culturae identidade, tal como o fazem outros tantos autores com os quais elasentram em acordo, especialmente os que se dedicam quela reflexono contexto da globalizao. Por esta afiliao, os autores por elas

    anunciados, tambm defendem o reconhecimento de qualificaes quedefinem certos universos culturais como culturas hibridas;tambm ad-vogam o compartilhamento de princpios que orientam o engajamentonecessrio aos investimentos no sentido da substantivao desejada; etambm consideram a institucionalizao de smbolos fundamentais conformao de uma crena coletiva nos modos de distino de grupossociais. Relevam ento o carter imaginrio da constituio da prticasocial dos grupos e dos termos da construo de reivindicaes social-mente reafirmativas. E, nesses termos, tambm valorizam a produode discursividades, algumas socialmente institucionalizadas para efeitosde produo de memria coletiva.

    Alm do estudo dos recursos de textualizao discursiva, as autorastomam como unidade de anlise alguns dos eventos significativamentevalorizados, recursos operacionais demonstrao dos modos de cons-truo de percursos consagrados de alteridades. Fazem ento refernciaa movimentos sociais, apreendidos pela dinmica das trajetrias em jogo,que em muito devem sua existncia a outros tantos engajamentos coleti-

    vos na construo de outras identidades culturais. Para citar um exemplo,destacaramos a identidade talo-gaucha, por meio da qual os agentesintegram processos enriquecedores dos sentidos e sinais diacrticos queos grupos utilizam para delimitar as fronteiras de pertencimento, subs-tantivadas na crena numa origem comum ou numa tradio prpria.

    Reafirmando o mesmo princpio metodolgico defendido por todosautores que compem o dossi, qual seja o entendimento da construoda identidade pela anlise do carter contextual de suas possibilidades

    de significao, seguimos enfatizando a contribuio de Maristela dePaula Andrade, no artigo Novos sujeitos de direitos e seus mediado-res uma reflexo sobre processos de mediao entre quilombolas e

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    aparelhos de Estado. A autora demonstra a constituio de campos demediao cultural, inerentes ao processo de construo institucional deindentidades distintivas. E o faz analisando processos de construo dequilombolas como sujeitos polticos, processos que deslancharam enquan-

    to desdobramentos da luta no sentido de inscrever direitos especficos naConstituio Brasileira de 1988. Os processos de luta no se esgotarama. Pelo contrrio, a incluso de tais princpios de definio oficial ope-rou como oportunidade fundamental para a emergncia de multiplosprocessos de reivindicao e luta, no s no sentido da objetivao dostermos inscritos, mas tambm de sua melhor adequao diversidadede situaes, viabilidade de produo de meios de representao oude espaos pblicos para encaminhamento de reivindicaes.

    Dado transversalidade das questes polticas em jogo e diversidade desentidos que eram assim produzidos, formas de dependncia intelectualforam se constituindo. Exigiu-se assim a construo de mediadores pro-jetados do prprio grupo ou emergidos em outros espaos institucionaisintegrados a esse campo de mediao cognitiva e de produo de sen-tigos polticos. Portanto, espaos de aprendizagem da negociao e darepresentao delegada, mas tambm de expresso dos desdobramentosdas formas de integrao social que foram ento sendo qualificadas. Des-tacamos ento a demonstrao mais sistematizada de Maristela de PaulaAndrade, porque tomada como o prprio objeto de estudo, no que tangeaos princpios de interdependncia ou de construo de redes de inter-conexo na prtica de construo e redefinio de identidades sociais.

    Entre outras contribuies destacamos no artigo de Maristela de PaulaAndrade o exerccio demonstrativo da produo de meios e recursos eda redefinio de papis formais, diante de outros arranjos institucionaise da construo de espaos prprios visibilidade e estruturao doque a autora qualifica como questo quilombola. Para construo do sujei-

    to quilombolae todos os atributos inerentes a esta existncia social pelaparticipao poltica e jurdica em questo, diversos recursos se fizerame se fazem necessrios como instrumentos intercambiadores da comuni-cao entre representantes de posies diferenciadas: jornais, passeatas,congressos, seminrios, relatrios, produo de conhecimentos acad-micos. A diversidade desses recursos corresponde assim construo dadiversidade dos agentes mediadores inerentes aos processos em marcha.

    Portanto, a contribuio demonstrativa, fundamentada em longo tra-

    balho de pesquisa e assessoria, impede qualquer crena na definiosubstantivada ou essencializada do quilombola. E nos coloca diante deprocessos de investimentos no sentido da re-historicizao de grupos

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    sociais que, outrora, viviam tambm distintivamente, contudo a partirde outros sinais diacrticos. E entre eles, um dos mais consensualmentereconhecidos, fundamentava-se no privilegiamento do aspecto racial.

    Prosseguindo na valorizao das contribuies demonstrativas da diver-sidade de situaes empricas, mas tambm da importncia dos cuida-dos metodolgicos sistematicamente anunciados por todos os autores,integramos o artigo de Gilmar Rocha, intitulado A retrica da tradio:notas etnogrficas de uma cultura em transformao.

    O autor toma como objeto de anlise, diante do contextual processo deespetacularizao do circo no Brasil, tal como enfatizam as recentes rea-presentaes do Cirque du Soleile a criao proliferante de inmeras com-panhias, trupes e escolas de circo em vrias cidades do pas, a produo

    de discursos sobre o sentido da tradio em processos de modernizao,questo que veio sendo enfatizada por todas as autoras precedentes, masdoravante tomada como unidade analtica pelos autores que se seguem.

    Instigado pela compreenso dos motivos pelos quais as apresentaes econstituies de unidades circenses alcanam tamanho sucesso, o autorconstri a questo analtica em torno dos sentidos que vm sendo atribu-dos cultura nas sociedades contemporneas, questo que, como sabe-mos, percorre as trajetrias de constituio da disciplina antropolgica.

    Como indica o ttulo do artigo, o autor se dedica anlise de sentidosatribudos tradio frente ao processo de modernizao da culturacircense no Brasil, mas no s: faz revelar especificidades do fenmeno apartir dedmarchescontrastivas entre o caso estudado por longo trabalhode campo: o Grande Circo Popular do Brasil (Marcos Frota Circo Show), e aliteratura acadmica e jornalstica produzida sobre outros tantos casosde reproduo e reinveno daquela expresso cultural.

    O exerccio antropolgico se situa, por um lado, entre o dilogo produ-

    zido a partir da anlise da produo acadmica do caso em foco e, poroutro, a partir das mltiplas interpretaes a que os antroplogos tmse dedicado quanto s possibilidades de ressignificao do conceito decultura nas sociedades contemporneas. O autor do artigo reivindicaento o reconhecimento de sua contribuio emprica e epistemolgicaao estudo da eficcia simblica da retrica da tradio, perfilando,em correlao, um profcuo dilogo com diversos antroplogos contem-porneos, mas tambm com aqueles que se consagram pelas reflexesem torno da temtica da reinveno da tradio ou da economizao da

    cultura. Quanto a este ltimo aspecto, destacam-se os investimentos nosentido de eleger manifestaes culturais estilizadas enquanto fatoresenriquecedores e diversificadores de processos de desenvolvimento social

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    local ou territorial (e poltico, para concatenarmos com a contribuiodas autoras precedentes).

    Em consonncia com os princpios analticos cultivados por antroplogos,adverte o autor: o novo no significa ruptura, especialmente quando secontrape tradio. Pelo contrrio, tradio e modernidade no so ex-cludentes, porque a modernidade , at certo ponto, o refundamento ou,para nos valermos de expresso consagrada: reinveno da tradio.Manter a tradio manter a modernidade, mesmo que politicamentea tradio venha a ser defendida pela competncia de quem se colocaacima da vida social e define verdades.

    Para mais facilmente entrarmos num acordo, basta acompanharmos osdiversos campos de concorrncia e a expresso de conflitos sociais que

    subjazem definio do que moderno ou tradicional; e assim verificar-mos os atos de violncia simblica: o reconhecimento de que a definiono um dado, no corresponde a uma expresso naturalizada, aindaque seja esta a grande questo que sustenta as lutas simblicas definidasem campos de poder especficos. Da mesma forma, basta acompanharmosas tentativas de definio dos princpios de incluso e excluso, dos dedentro e dos de fora, dos establecidos e dos recem-vindos ou imposto-res, para reconhecermos que so exerccios de classificao socialmenteconstrudos, como j nos apontavam Durkheim e Mauss.

    Associando as diversas contribuies dos autores j apresentados, po-deramos estimular os leitores, por uma anlise tambm contrastiva, arefletirem sobre alguns processos de construo distintiva de estilos devida, de modos de compartilhar e, assim, de pensar se representando, e,em se representando em geral contrastivamente mas no s, tambmaos outros eleitos cmplices diretos ou indiretos de pertencimentos aosmesmos universos de significao e reconhecimento de prticas sociais.

    Tal o caso dos que se definem como circenses tradicionaisque, genetica-mente e por estilo de vida, se pensam fundadores, legtimos definidoresdo que a cultura circense. Nesses termos, ela representada sacralizada-mente, levando em conta a contraposio aos modos de construo dos

    negciose s formas racionalizadas de uso do corpo que so atribudas soutras tentativas de representao da reivindicada arte.

    Este tambm o caso do grupo de msicos de ciranda em Paraty, Riode Janeiro, que se pensam os mais tradicionais, os mais verdadeiros,contrapondo-se aos aventureiros. No obstante, por esta reivindicaodistintiva, promovem as condies para alcanarem ostatus de profis-sionais, dotados de racionalidade mnima que esta posio pressupe.

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    Incorporamos ento, entre as diversas contribuies dos autores aquiintegrados, aquela apresentada por Lysia Reis Cond, quando tambmse dedica a refletir sobre a construo social distintiva de identidades,sobre modos de operacionalizao de exerccios polticos de produo de

    sentidos atribudos tradio, assim erigida como competncia inerente posio de quem outrora e atualmente foi responsvel pela execuoda dana. Inclumos, em referncia a esses objetivos.

    No artigo Ciranda e profissionalizao: reflexes a partir do Os CoroasCirandeiros, produtos da dissertao de mestrado defendida juntoao Programa de Ps-Graduao da Universidade Federal Fluminense,Lysia Reis Cond considera a valorizao da tradio como prestao deservios, num contexto socioeconmico de implementao do turismo

    como atividade econmica municipal. Mediante tal proposta, analisa oprocesso pelo qual a ciranda, como ela mesma define: saber e forma dese expressar musicalmente outrora aprendidos como atributos da socia-lizao de agricultores e pescadores em seus meios de origem, passou aser oferecida sob a forma de servio cultural no municpio de Paraty, RJ.

    Entre e correlativamente aos diversos grupos que disputam as oportu-nidadades de prestao desse servio e que, por vezes, concorrem nadefinio da ciranda como verdadeiramente tradicional, a autora, porperspectiva relacional, analisa a experincia social dos integrantes dogrupo Os Coroas Cirandeiros. Assim se integrando no campo de pres-tao de servios culturais, especialmente voltados para turistas nacionaise estrangeiros, os componentes de Os Coroas Cirandeirosempenham-se,mediante desejo compartilhado, para serem socialmente reconhecidospelo exerccio dessa atividade cultural economicamente redimensionadae, tambm como msicos profissionais. Este desejo em grande parte ali-menta e alimentado pela dotao de recursos, inclusive financeiros, paraenfrentamento dos desafios e dilemas inerentes sistemtica prestao

    de servios. Nessa condio pretendida, poderiam, frente aos demais,se firmarem competitivamente no mercado turstico.

    Em consenso por ns sinalizado com os demais autores, Lysia ReisCond investe na demonstrao do contexto econmico e social em quea ciranda, enquanto expresso da singularidade histrica da formaocultural de habitantes do municpio, veio a ser valorizada como recursoimportante na definio das particularidades tursticas do municpio deParaty. Isto, quanto ao desenvolvimento local da economia e das ativi-dades produtivas para os moradores, ladeadas por outros investimentoseconmicos na construo de hotis e pousadas, infraestrutura capaz de

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    permitir o engajamento de outros, no caso positivamente qualificados erecebidos como turistas.

    Mesmo na condio de itinerantes ou passageiros, os turistas povoamo sistema de imagens dos produtores culturais, no s no sentido dopressuposto atendimento do que estes desejam ver, mas tambm davalorizao do que ou vem sendo um paratyense.

    O artigo da ltima autora vem ento enriquecer a apresentao destedossi, pelo destaque da contribuio demonstrativa dos recursos mate-riais e discursivos, imaginativos e dialgicos de defino da tradio namodernidade, processo que implica conflitos na definio legitima doque a tradio. Enquanto desejo poltico do grupo em foco, s podeser atendido pela incluso de elementos e significados que venham a

    assegurar tal definio no contexto vigente, isto , nas condies em queas relaes entre os diversos agentes sociais em jogo vo se configurando.

    Concluiramos chamando a ateno para a contribuio dos autoresperfilados, no que tange problematizao das dificuldades que vmsendo enfrentadas pelos cientistas sociais para acompanhar os processosvigentes de mudanas. Os processos sociais em sua complexidade no tmcorrespondido aos investimentos mais lentos da construo de termose categorias conceituais ou de linguagens e sistema de representaes

    adequados expresso do que se advoga ser compreendido. Ento,paradoxalmente pouco compreendido, quando nos deparamos com aausncia de termos correspondentes ao que se quer explicar. Ento, tendeo cientista social para o uso de metforas indicadoras das tentativas deaproximao interpretativa.

    o caso de diversos autores que estudam processos de mudanas so-ciais pela designao ou reconhecimento de que houve transformaes,mas que s podem ser pensadas pela contraposio tipificadora ao que

    supostamente era o fenmeno social, isto , seu ponto inicial, embrio apartir do qual se tentou demonstrar os percursos dos desdobramentos.Essas dificuldades so reconhecidas por adjetivaes com pretensesconceituais, como bem demonstra o uso, torto e direito, do qualifi-cativo novo:novos movimentos sociais, novas ruralidades, novos atores, novos

    mediadores, novas instituies, novos processos,etc.

    Os autores deste artigo, desenhando uma problemtica de pesquisa erefletindo sobre aes sociais contextualmente significativas, elaboramanlises sobre dinmicas de modos de construo social, quais sejam:os que expressam o dinmico exerccio de se produzir e se reproduzirsocialmente, contnuo mas no repetitivo.

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    miriamDeoliVeirasantos*mariacatarinachitolinazanini**

    especificiDaDesDaiDentiDaDeDeDescenDentesDeitalianosnosulDoBrasil: BreVeanliseDasreGiesDe

    caxiasDosulesantamaria***

    * Professora Adjunta UFFRJ. Pesquisadora

    Associada do Ncleo In-terdisciplinar de EstudosMigratrios NIEM. En-dereo: Rua Tomaz Coelho,80/402 Vila Isabel, Rio de

    Janeiro RJ, CEP.: 20540-110. Tel.: (21) 22689271.E-mail: .** Professora Adjunta UFSM.Pesquisadora Associada doNcleo Interdisciplinarde Estudos Migratrios NIEM. Endereo: CaixaPostal 5046 Agncia Cam-pus UFSM, Santa Maria RS, CEP.: 97110-970. Tel.(55)22263583. E-mail:

    *** Uma verso preliminardesse artigo foi apresen-tada na VII Reunio de

    Antropologia do Mercosul.

    A identidade de descendente de italianos, italianosdo Rio Grande do Sul, talian, talo-gachosou simplesmente italianos construda por meio

    de alguns sinais adscritivos comuns, tais como opioneirismo, o elogio famlia enquanto valor, dareligio e, principalmente, da rearmao do trabalhocomo estratgia de ascenso social. So esses os smbolosescolhidos, que servem como tipicao diacrtica do

    grupo e elementos de contraste em relao aos demaisbrasileiros. Entretanto, no prprio Rio Grande doSul existem diferenas com relao trajetria deconstruo das italianidades. Neste artigo, pretende-se

    efetuar um contraponto etnogrco entre a regio decolonizao da serra gacha, especialmente Caxias

    do Sul, e a colonizao ocorrida na regio centraldo estado, principalmente, em Santa Maria e regio.Palavras-chave: identidade; imigrao italiana;colonizao.

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    Iniciamos este artigo ressaltando: aquilo que se costuma chamar generi-camente de imigrao italiana tem pouco de homogneo, apresentandodiversas especificidades, entre elas: locais de origem do imigrante naprpria Itlia, geografia da terra hospedeira, clima, insero econmica.

    Muitas vezes, mais fcil encontrar semelhanas entre a imigrao italianae alem para o Rio Grande do Sul do que entre a imigrao italiana paraSo Paulo e para o Rio Grande do Sul.

    Mesmo dentro do Rio Grande do Sul, deparamo-nos com diferenassignificativas entre o desenvolvimento de Caxias do Sul e o da QuartaColnia de Imigrao Italiana (ex-colnia Silveira Martins).1Por outrolado, podem ser encontradas semelhanas entre a colonizao de Caxiasdo Sul e cidades de colonizao alem, at de outros estados, como, por

    exemplo, a de Blumenau, em Santa Catarina, onde, analogamente aCaxias, instaurou-se uma forte burguesia comercial e industrial vincu-lada colonizao, que incentivou a manuteno de uma distintividadebaseada na etnicidade (SEYFERTH, 1974; ROCHE, 1969). Esses contra-pontos nos serviram de inspirao para, de forma breve, problematizaras diferenas no interior de um processo que poderia parecer coeso ehomogneo, como a revitalizao e reivindicao das italianidades,mas que apresenta, em sua dinmica, cruzamentos com outras questes

    sociais e polticas mais amplas, internas e externas ao contexto brasilei-ro, que exigem dos pesquisadores trnsitos interdisciplinares e constatevigilncia epistemolgica acerca do fazer etnogrfico.

    iDentiDaDeeconstruoDeiDentiDaDeInteressa-nos, especialmente, a relao entre cultura e identidade, naforma enunciada por Goffman (1978). Este autor afirma que a cultura produzida por meio de negociaes no mbito das interaes sociais, em

    uma posio bastante prxima de Firth (1974), para quem a cultura socialmente produzida, em consonncia com a organizao social. Mas oautor que melhor se adapta ao que observamos no Rio Grande do Sul Stuart Hall. Segundo Hall, percebe-se, atualmente, uma desintegraodas identidades nacionais pela tendncia da homogeneizao cultural daglobalizao. Em funo disso, h um reforo das identidades nacionais e1 A antiga colnia Silveira Martins abrange trechos do que atualmente conhecido como os municpios da

    Quarta Colnia: Silveira Martins, Agudo, Nova Palma, Faxinal do Soturno, Ivor, Pinhal Grande, So Joo doPolsine, Restinga Seca e Dona Francisca. Parte de seu territrio inicial foi desmembrado em 1888 e dividido

    entre os municpios de Santa Maria, Cachoeira do Sul e Jlio de Castilhos. Contudo, devido municipali-zao crescente no estado, algumas dessas localidades se emanciparam e hoje possuem vida administrativaprpria. A Quarta Colnia est situada no interior do estado, prximo cidade de Santa Maria. Em Agudo,Dona Francisca e Restinga Seca a colonizao foi mista: alemes e italianos.

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    de outras locais e particularistas, em virtude da resistncia ao processo deglobalizao. Como sntese desse choque, as identidades nacionais estoem declnio, mas novas identidades, que ele denomina hbridas, estotomando o seu lugar (HALL, 1999). Com essas afirmaes, Hall nos d

    pistas interessantes e inovadoras para compreender o contexto culturaldo Rio Grande do Sul como parte de um processo mundial, no qualculturas locais e nacionais se mesclam com aspectos novos trazidos pelaglobalizao e resultam no que o autor vai chamar de culturas hbridas. 2

    Contudo, essa reafirmao do regional no totalmente nova. J em1963, Freyre, em um artigo escrito originalmente em ingls, afirmava:

    Alguns estudiosos da situao internacional como ela se tem desenvol-

    vido no mundo desde a revoluo Industrial da Europa a conquistaindustrial do mundo baseada em ideais de estandardizao de todosos pases, de acordo com os padres dos Estados capitalistas mais po-derosos reconhecem a necessidade de um regionalismo criador emoposio aos muitos excessos da centralizao e da unificao polticae da cultura humana, estimuladas no s poltica mas economicamentepor foras e interesses imperialistas. Os que assim pensam tm comofundamental que um crescente nmero de unidades culturais diversascontribuiria para a estabilidade do mundo, prevenindo a formao e a

    expanso de imperialismos e imprios. (FREYRE, 2000, p. 119)

    Hall tambm nos auxilia a perceber que a revalorizao da cultura italianae da diferenciao cultural, que os descendentes de italianos habitantesdas cidades de Caxias do Sul e Santa Maria pretendem ter em relaoaos demais brasileiros, no um fenmeno local, inserindo-se numcontexto mundial de valorizao das identidades locais.

    Por isso, buscaremos analisar como as identidades dos imigrantes italia-nos e seus descendentes so socialmente construdas mediante a noode cultura compartilhada. importante lembrar que existe um duploestatuto na questo da identidade. De um lado, trata-se de um processoem construo e, de outro, pressupe substantivao na qual os agentessociais decidem acreditar.

    Alguns autores, como Cohen, afirmam que a identidade tnica est ligadaa interesses corporativos. Segundo esse autor, a etnicidade instrumen-talizada e acionada nos momentos em que relevante, e a instrumentali-zao poltica da etnicidade usada como arma para adquirir privilgios2 Cabe observar que Emlio Willems, em um trabalho no qual se propunha observar a assimilao de imi-

    grantes alemes pela sociedade brasileira, vai utilizar o mesmo termo. Para ele, os colonos alemes estavamproduzindo no Brasil uma cultura hbrida (WILLEMS, 1980).

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    (COHEN, 1979). No entanto, importante lembrar que a identidadetnica at pode ser manipulada e utilizada para atingir determinadosobjetivos de alguns grupos corporados, mas que no se resume a isso,j que o grupo pode preexistir ao interesse corporativo.

    Em um artigo indito sobre a identidade brasileira, Schneider chama aateno para o fato de que a construo de uma identidade envolve aconstruo de uma origem histrica, e que essa construo envolvetambm no apenas origens mticas ou mitolgicas, mas uma leituraespecfica de determinados fatos histricos(SCHNEIDER, 2003, p.1).3Schneider aponta ainda para um culto imigrao, fruto da visopositiva que os brasileiros tm da Europa, e para o fato de que a culturado descendente de imigrantes aparece, discursivamente, como diferente

    daquilo que considerado tipicamente brasileiro4(SCHNEIDER, 2003).Assim, objetivamos mais do que responder a questes que salientam auniversalidade entre a diversidade das italianidades: elencar o quanto oscontextos nos quais esses grupos se inseriram fizeram com que negocias-sem sinais diacrticos que lhes possibilitassem sobrevivncia grupal e ma-nuteno de fronteiras. Como exemplo, podemos citar, em Caxias (RS),a uva e suas simbologias como algo italiano; em Silveira Martins (RS), abatata, sustento das famlias. Em Caxias, a riqueza; na Quarta Colnia,

    certa nostalgia por no se considerar uma colnia prspera.Enfim, elementos que permitem ao antroplogo encontrar as diversida-des no interior de um processo comum: a etnicidade. Em ambas, Caxias eSanta Maria, observa-se a italianidade como sentimento de pertencimentobaseado numa origem que dialogou historicamente com vrios perodosda vida regional e nacional, cada uma a seu modo. Seu apogeu simblicose deu aps os festejos do Centenrio da Imigrao Italiana no estado,em 1975, quando j havia uma elite intelectual e econmica capaz de

    produzir uma discursividade acerca de si mesma, salientando o quantoesse grupo havia contribudo para o desenvolvimento e riqueza do es-tado. Em Santa Maria, os resultados dessa revitalizao apareceram nadcada de 1980, com a fundao de entidades italianas patrocinadas pormembros das camadas mdias e altas, que visavam promover a culturaitaliana. O que se observaria, a partir de ento, em todo o estado, era umacrescente efervescncia de entidades italianas, associaes, crcoli, corais3 O trabalho foi apresentado no PPGAS do Museu Nacional e a verso preliminar do artigo foi gentilmente

    enviada ao autor.4

    De acordo com Ferreira (1999, p. 153): Nos discursos correntes, o brasileiro aparece bastante desqualicado.Como so discursos pronunciados por brasileiros, cabe perguntar quem so os verdadeiros brasileiros ou osbrasileiros ideais espelhamento que parece remeter-se ao europeu, aprofundando sempre ainferioridadebrasileira, ao defrontar-se com o olhar discriminador do colonizador.

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    etc., que buscariam promover a italianidade. So processos particularesque ainda requerem muitos estudos para que suas dinmicas possam sercompreendidas e analisadas. Contudo, o que para ns foi estmulo paraas pesquisas a fora encontrada nesse tipo de reivindicao.

    As italianidades guardam um conjunto de especificidades que, seja doponto de vista simblico ou pragmtico, merecem ser melhor estuda-das. As anlises a seguir, sobre Caxias ou Santa Maria, foram fruto depesquisas etnogrficas realizadas pelas autoras. Santos (2004) defendeutese sobre a simbologia da Festa da Uva em Caxias. Zanini (2002, 2006)defendeu tese sobre a construo da trajetria de italianidade em SantaMaria e regio. Ambas continuam a estudar esses e outros grupos mi-gratrios, objetivando a melhor compreenso dessas dinmicas, que no

    so privilgio dos descendentes de italianos mas presentes tambm emoutros grupos tnicos no Brasil, tanto no meio urbano como no rural.

    ositalianos DecaxiasDosulAo estudar os grupos tnicos, Barth (2000) chama a ateno para aslinhas divisrias que separam os grupos humanos atravs da criao emanuteno de fronteiras simblicas e distintivas. No caso especfico dacidade de Caxias do Sul, houve uma dissoluo das fronteiras entre asidentidades regionais (na poca da grande imigrao, apesar do passa-porte italiano, as pessoas consideravam-se venetas, trentinas, lombardasetc.) e a fuso dessas identidades em uma nova, a de italianos ou des-cendentes de italianos. 5

    Essa fuso ocorreu por meio de uma alterao dos critrios de perten-cimento a uma coletividade. No significou, entretanto, incorporaoplena identidade nacional brasileira, mantendo-se uma identidadediferenciada, vinculada ao processo migratrio.

    Observamos que, em Caxias do Sul, a nfase est, sobretudo, nas orien-taes valorativas bsicas, pois ser talo-gacho ou de origem italiana,remete a um determinado tipo de comportamento: trabalho duro, ho-nestidade, religiosidade, moralidade. E apesar de, nos ltimos anos, oestudo da lngua italiana e a participao em corais e grupos de danacom vestimenta tpica terem se transformado em atividades bastante5 No entanto, necessrio ressaltar que at hoje existem na cidade, alm do Centro Cultural talo-Brasileiro,

    o Circolo Trentino de Caxias do Sul e a Associao Vneta de Caxias do Sul. Parece-nos que o mecanismo

    que opera na manuteno dessas identidades regionais o mesmo que faz com que os descendentes deitalianos preram ser considerados talo-gachos a talo-brasileiros. Anal, o desenvolvimento desigualdo Norte e do Sul da Itlia faz com que os descendentes de Trentinos e Vnetos tenham mais prestgio doque genricos descendentes de italianos.

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    valorizadas, o que continua sendo basilar para o pertencimento oaspecto moral.

    No entanto, embora o aspecto moral seja prioritrio, a distino baseia-

    se na reivindicao de uma origem tnica especfica, por parte dosdescendentes de imigrantes italianos chegados a Caxias do Sul a partirde 1875. A reivindicao progressiva dessa distino formulada espe-cialmente por residentes da zona urbana do municpio. Reivindicaoque reforada a partir da criao da Festa da Uva em 1931. Frosi (1998,p. 166) assinala que:

    [...] O uso da fala dialetal italiana , muitas vezes, artificial na bocade falantes urbanos. Ela no tem a uma funo de comunicao e de

    transmisso de cultura. Ela usada como um instrumento para de-marcar um espao prprio, uma identidade cultural local, um perfilde determinado grupo humano talo-brasileiro regional.

    Os descendentes de italianos que residem em Caxias do Sul delineiam-secomo um grupo diferenciado no interior da sociedade nacional, apresen-tando sinais diacrticos que conformam o seu reconhecimento enquantogrupo. Os habitantes da regio reportam essa identidade como caracters-tica dos descendentes de imigrantes italianos, que se instalaram na regio

    a partir de 1875. As lideranas da cidade falam em talo-brasileiros,talo-gachos ou descendentes de italianos. O povo refere-se a simesmo como italianos ou italianos do Rio Grande do Sul.

    Em Caxias do Sul, observamos que uma pequena elite de descendentesde imigrantes detinha o poder poltico e econmico. Porisso, ao contr-rio do que aconteceu em outras zonas de imigrao, mesmo durante operodo no qual a campanha de nacionalizao foi mais forte, de 1930at 1954, os prefeitos foram descendentes de italianos, inclusive DanteMarcucci, nomeado durante o Estado Novo e que ficou no poder at1947. Euclides Triches, prefeito de Caxias do Sul no perodo de 1951 a1954, secretrio de obras pblicas do estado em 1955, foi eleito gover-nador em 1972. Giron (1994, p. 41) ressalta que:

    Das listagens dos empresrios apresentados como as maiores empresasindustriais e comerciais da Regio, no lbum comemorativo de 1925,nenhum dos nomes era de brasileiros. A burguesia era constituda por

    italianos natos, ou, no mximo, de filhos de imigrantes. Sob o pontode vista econmico, estavam plenamente integrados ao capitalismonacional.

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    Ao poder econmico sucede rapidamente o poder poltico. Machadoobserva que:

    A escolha do nome de Miguel Muratore e depois de Dante Marcucci,

    integrantes da Associao dos comerciantes para governar o Municpiode Caxias do Sul, permitiu que as elites locais chegassem ao poderpblico municipal [...]. (2001, p. 254).

    A cidade um espao aberto e disputado por grupos distintos, sendotambm palco privilegiado de disputas, classificaes e segregaes. Almdisso, na cidade que vai se concentrar a elite colonial: comerciantese industriais no incio e, um pouco mais tarde, intelectuais e polticos.Nesse processo, ocorre uma hibridizao cultural: por um lado, a elite se

    afasta dos valores dos grupos rurais e se aproxima dos valores da elitebrasileira e, por outro, constri para si uma identidade distinta da eli-te luso-brasileira.

    Na dcada de 1950, construiu-se a identidade de imigrante italiano,marcada pela imagem do colono progressista, desenvolvido, pioneiro quehavia se transformado em industrial. Nessa mesma poca, aqueles quepermaneciam como colonos (rurais) eram vistos como smbolo de atraso.A idia de progresso era de desenvolvimento urbano, industrializao,

    grandes edifcios, enfim, a transformao da colnia de imigrantespioneiros na grande metrpole civilizada e civilizadora, que servia demodelo de desenvolvimento ao resto do pas. Portanto, ser italiano erapositivo, ser colono negativo. A dicotomia rural/urbano correspondia dicotomia colono/italiano. Contemporaneamente, observamos umarevalorizao do campo (e do colono) e a fuso das duas identidadesanteriores em uma s: o colono italiano. Segundo Lagemann:

    A interpretao herica, fazendo do colono bem sucedido econmica oupoliticamente um verdadeiro self-made-man, perfeitamente compa-tvel a um sistema ideologizado pela democracia agrria. Dentro dessaperspectiva, existe a possibilidade democrtica, livre, de ascenso social.Por uma deciso individual, exclusivamente pelos prprios mritos,ultrapassam-se as barreiras da pobreza, ignorncia, isolamento e dainsignificncia. Assim, quem teve sucesso no empreendimento, mereceser cultuado. o culto do vencedor. Vm da as trajetrias imaginriasdo colono de mos calejadas rumo ao sucesso nas diversas reas, seja

    o comrcio, indstria, poltica, etc. Chega-se, seguindo esse caminho,a colocar o imigrante como o civilizador, o que tudo iniciou, incluindoa industrializao. (LAGEMANN, 1980, p. 118)

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    Ou seja, os polticos e a elite de origem contriburam para a construoe cristalizao da imagem do imigrante como pioneiro e civilizador. Nolbum Comemorativo dos 75 Anos da Imigrao Italiana, encontramos:[...] Entre os rdegos pioneiros de 1875 e os lutadores de hoje, no vai

    diferena maior que nos mtodos e meios de trabalho. A vontade de ven-cer, o nimo na luta, a ambio de melhorar e ir para diante, a vibrao,o entusiasmo, as virtudes e os defeitos so os mesmos. 6

    De acordo com Maestri (1999, p. 191), essa interpretao herica dacolonizao surge em funo da universalizao e generalizao dedepoimentos singulares sobre as dificuldades vividas pelo imigranteitaliano, nos primeiros tempos, no Rio Grande do Sul, isto , parte dosrelatos e das biografias dos primeiros imigrantes. Emerge tambm emfuno deuma viso hipercrtica da organizao do movimento coloni-zador pelas autoridades nacionais, em que as dificuldades dos temposiniciais da colonizao so maximizadas e as providncias tomadas pelasautoridades brasileiras para o desenvolvimento da colnia convenien-temente esquecidas. 7

    Maestri considera que existe uma leitura hagiogrfica da histria dacolonizao, leitura que encampada pelos meios de comunicao, ad-quirindo foro cientfico ao se propor como interpretao hegemnica dofenmeno migratrio (MAESTRI, 1999, p. 191). Deriva da um discursoetnocntrico demarcador de fronteiras tnicas, que aparece tanto nosdepoimentos quanto na historiografia. Exemplo paradigmtico desseculto ao vencedor a inaugurao, em 1946, do busto de bramoEberle, na Praa Vestibular, em Caxias do Sul. L-se na inscrio da placa:Pioneiro do Progresso Caxiense.No entanto, uma leitura atenta da suabiografia aponta para o fato de que ele no era um colono qualquer.Ao narrar a partida da famlia Eberle da Itlia, Franco relata que o pai

    de bramo Eberle:

    Vendeu a granja, saldou suas dvidas, tirou uma pequena quota paraas despesas imediatas de viagem e o restante foi investido na comprade objetos que, segundo opinavam seus amigos j estabelecidos no RioGrande, ofereciam boa margem de lucro. Trouxe, assim, um lote dechapus para homens e para mulheres, mudas de videira, macieiras,

    6 Discurso do Sr. Alceu Barbedo, Procurador Geral da Repblica e orador ocial designado pela Comissoda Festa da Uva. Apud Bertaso; Lima (1950, p. 22).

    7 As primeiras exposies de produtos coloniais so organizadas pelos administradores das colnias. No RioGrande do Sul, h incentivo policultura, na busca de melhores culturas, e o governo chega, inclusive, atrazer agrnomos e tcnicos da Itlia para orientar os colonos em suas culturas.

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    cerejeiras e outras plantas de produo comercial, alm de caldeiras ealambiques de cobre. (FRANCO, 1943, p. 31)

    Ou seja, longe de ser o pobre pioneiro aliciado pelas promessas dos

    agentes de colonizao, Eberle e sua famlia vm para o Brasil por contaprpria, j informados sobre as condies de vida e trazendo um bomsortimento de mercadorias para iniciarem-se no comrcio. Comrcioque permitiria a acumulao de capital para a indstria. bramo Eberlevendeu de vinho a colnias, passando por diamantes.

    Como nos lembra Wolf (2003, p. 238),

    [...] o nacionalismo italiano postulava um Estado criado por membrosde uma elite urbana, uma Itlia criada a fim de criar italianos. Essenacionalismo no apela para um Volkoriginal, mas insiste no conceitode cilvit(as qualidades da civilizao) [...].

    Ao construir o lugar do pioneiro, colonizador e civilizador para si, osimigrantes italianos e seus descendentes determinaram tambm o lugardos outros moradores da terra: para os negros e ndios o papel de selva-gens e incultos; para os descendentes de portugueses, o papel de pessoassem refinamento, de maneiras rudes e portadores de uma religiosidade

    catlica distinta daquelas que traziam os italianos, julgamento j expressono apelido pelo qual eles so conhecidos: plo duro, uma designaoregional (no resto do pas se conhece como casca grossa).

    Ao contrrio das grandes cidades, em especial So Paulo, onde apareceainda hoje o estigma do italiano grosso, pouco educado casca grossa,carcamano (CARELLI, 1986), em Caxias do Sul o grau de coeso gru-pal permite que os estigmatizados como grossos sejam os descendentesde portugueses e tambm aqueles considerados brasileiros, alcunhados

    genericamente de negri.Durante a Segunda Guerra Mundial, ser italiano era uma categorianegativa, mas, a partir do final da guerra, observamos uma reelaboraoque aponta o imigrante italiano como o civilizador, aquele que transfor-mou a selva em cidade por meio do suor de seu rosto. A cultura italiana assumida como um elemento de diferenciao, porque promovedorade progresso e riqueza. H uma construo histrica de uma identidade,ligada a determinados comportamentos, que esto associados ao sentido

    de pertencimento a um grupo. Acontece, nesse caso, um privilegiamentode natureza biolgica (a descendncia italiana) para explicar fenmenossociais, inclusive, o desenvolvimento econmico de Caxias do Sul. A cul-

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    tura adquire assim um significado classificatrio, implicando a noo desuperioridade e inferioridade, num discurso que hierarquiza as etnias.

    Da mesma maneira que Cohen8fala em uma retribalizao, podemosapontar para uma reetnizao, na qual indivduos que se transferemdo campo para a cidade enfatizam e exageram a sua identidade e ex-clusividade cultural, com objetivos polticos e econmicos. Mas isso noquer dizer que tal identidade seja desprovida de outros significados noinstrumentais afetividade , esprito de comunidade, valores compar-tilhados etc.

    Giron tambm aponta para a relao entre o discurso laudatrio e aeconomia. A autora sublinha que o imigrante herico, trabalhador,econmico e realizador da economia gacha a imagem que o grupo [de

    descendentes de imigrantes italianos] criou sobre seus feitos(GIRON,1980, p.66). Em suma, a construo de uma identidade contrastiva emrelao sociedade nacional surge quando o grupo se diferencia se-parando colonos e citadinos mas, principalmente, quando tal posturacomea a se mostrar vantajosa, levando, inclusive, nos ltimos anos, incorporao e reelaborao de valores e costumes camponeses por parteda populao urbana.

    ositalianos emsantamaria(rs) ereGioA imigrao italiana para a regio central do Rio Grande do Sul teve incioem 1877, feita em levas familiares, principalmente oriundas do norteda Itlia. Eram catlicos, mas alguns com influncia da maonaria (quemarcou, de certa forma, aquele processo migratrio). A maior parte erade camponeses. A colnia Silveira Martins, contudo, foi construda comum centro urbano e alguns imigrantes para l se dirigiram. No inciodo processo igualou-se ao que foi descrito anteriormente com relao a

    Caxias do Sul. Aqueles indivduos orientavam suas existncias guiadospela crena religiosa, desejo de ascenso social e motivados pela possibi-lidade de manuteno de uma ordem familiar idealizada, na qual o paiera o patro e os filhos mo-de-obra, fosse enquanto camponeses ou naspequenas empresas domsticas. Nessas hierarquizaes, pouco espaocabia s mulheres, fosse na busca de sua prpria ascenso social ou napossibilidade de se tornarem proprietrias ou empreendedoras, caracte-8 Segundo Sprandel (1992, p. 9), Em 1969, Abner Cohen em, Custom and politics in urban Africa, deniu como

    retribalizaoo processo pelo qual o indivduo pertencente a grupos tribais que se transferem para as cidades,

    enfatizam e exageram a sua identidade e exclusividade cultural, com objetivos polticos e econmicos. Aretribalizaopode ser entendida como uma manipulao sciocultural da formao de novos agrupamentospolticos, e como resultado da interao entre grupos tnicos dentro de um contexto de novas situaespolticas.

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    rstica que, nos relatos, possui uma face eminentemente masculina. Suaimagem foi construda sombra da imagem masculina. Ela trabalhava,mas no usufrua da sua produo de riqueza; criava filhos, educava-osnas normas crists, tornando-os aptos ao trabalho e disciplina, mas era

    alijada da parte pblica da produo da riqueza.Sobre os primeiros colonos h poucos relatos (LORENZONI, 1975;POZZOBON, 1997; ANCARANI, [19--]).Dois deles so especialmentericos, pois foram escritos por imigrantes e, posteriormente, traduzidos epublicados por seus descendentes: Julio Lorenzoni (1975), que tinha 14anos quando sua famlia migrou, em 1877, e Andra Pozzobon (1997),com 22 anos quando sua famlia migrou, em 1895. Nesses relatos,percebe-se a dinmica do processo migratrio: a pobreza daquelas po-

    pulaes, o aliciamento por agentes, padres, parentes, entre outros, e avinda para a Amrica, na expectativa de uma melhora nas condies devida. O contraste entre o mundo do qual provinham ( Europa) e o aquiencontrado (matas, ndios, negros, comida e muita terra), fez com que osrelatos de ambos apresentassem o encontro com a natureza brasileira esua diversidade. A noo de processo civilizador se inicia nesse encontronarrativo acerca do mundo americano. Como ressalta Pratt (1999), emsua anlise de relatos de viajantes, essa zona de contato9possibilita a re-presentao desse encontro como uma anticonquista, numa nova forma

    narrativa, na qual a presena do europeu civilizador naturalizada, esua autoridade representada como civilizao e no como invaso,fazendo uma impresso mais de inocncia do que de interveno(PRATT, 1999, p. 27). Eles chegam, dominam e domesticam o que antesera considerado natureza e espao vazio e se sentem autorizados paraisso. Os relatos de Lorenzoni e Pozzobon (estes, ambos homens, letra-dos, oriundos do norte da Itlia), narrados em tom pessoal, podem serconsiderados dessa forma. Em suas apresentaes da natureza, como

    salientaria Pratt, h um certo colonialismo classificador acerca do outroe do mundo encontrados.

    Esses imigrantes eram vnetos, lombardos, trentinos, friulanos, manto-vanos etc. No se sentiam italianos no sentido de um pertencimento aum Estado Nacional, numa Itlia que acabara de se unificar de direito(1870) e a contragosto de muitos. Consideravam-se habitantes de um

    paese que possua caractersticas especficas, adoravam santos espec-ficos e, em algumas situaes, falavam, inclusive, dialetos particularese incompreensveis, como relata Lorenzoni quando narra a travessia9 Para a autora, zona de contatoseria aquele espao de encontros coloniais ...onde os povos que estavam

    separados geogrca e historicamente entram em contato e estabelecem relaes duradouras, envolvendonormalmente a coero, a desigualdade racial e o conito irresolvvel (PRATT, 1999, p. 30).

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    ocenica. Ele salienta que, no navio que os trazia para o Brasil, algunsno se entendiam. Contudo, algo os unia: eram migrantes pobres em suamaioria, despossudos, e essa experincia os tornava iguais, apesar dasdiferenas culturais. A lembrana de terem participado de um processo

    comum, apesar das diferenas, pode ser observada ainda hoje entre osdescendentes, mesmo que de regies distintas. A invocao do passado,da figura do pioneiro, daquele antepassado que migrou, que efetuou aruptura, algo forte. Alguns desses imigrantes so ainda lembrados pormeio de fotos de passaportes e documentos copiados e transformados emquadros, que so exibidos nas paredes das salas de estar, seja residenciaisou comerciais e de servios.

    Ao receberem os lotes, agregavam-se de acordo com os pertencimentosregionais (vide a nominao das localidades Val de Buia, Val Feltrina, ValVerones,Linha dos Mantuanosetc). O processo de assentamento nos lotese de produo foi animador nos primeiros anos, permitindo que asfamlias vivessem bem, como ressalta Lorenzoni. Essas diferenciaes,mantidas nas localidades de habitao mas generalizadas ao se torna-rem os italianos, foram absorvidas pelos descendentes nas situaesde interao social fora da colnia. Fato alterado contemporaneamentedevido s novas dinmicas dos processos identitrios em nveis transna-

    cionais. Esses descendentes tm reivindicado origens dentro da origem:se autodenominam friulanos, trentinos, lombardos, vnetos e gostam desalientar isso. Assumem a condio genrica tambm, numa negociaode alteridades, mas ressaltam suas particularidades orientados, em parte,pelas dinmicas identitrias da prpria Itlia que favorece os descenden-tes de acordo com as regionalidades de origem e estabelece convniose agenciamentos orientados pelo critrio de antecedncia do imigrantepioneiro, o antepassado, transformado no iniciador da saga familiar.

    A colnia Silveira Martins foi desmembrada e extinta em 1888 e seuterritrio dividido entre os municpios de Jlio de Castilhos, Santa Mariae Cachoeira do Sul. O centro urbano no qual comeara a colnia ficousendo distrito de Santa Maria e, em 1987, emancipa-se, tornando-se omunicpio de Silveira Martins, conhecido como o bero da colonizaoitaliana local. A colnia, prspera em seu nascedouro no conseguiuprogredir como aquelas da serra gacha, em especial Caxias do Sul,considerada a prola das colnias, questo que tem motivado estudos

    na regio. A elite da colnia Silveira Martins migrou para Santa Mariae para outras localidades e no reinvestiu seu capital econmico (e hu-mano) em nvel local.

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    No houve tambm o desenvolvimento de indstrias, como ocorreuna serra. Os camponeses pobres tambm migraram, criando redes dedeslocamento muito interessantes de se estudar. Havia seleo de mem-bros que rumavam para os centros urbanos para se tornarem operrios,

    trabalhar no comrcio ou em servios. Geralmente os pais e alguns filhospermaneciam na colnia, recebendo, muitas vezes, o valor do salriodaquele membro que se deslocara. Essas redes se alastravam, permitindoa circulao de mo-de-obra e tambm de pessoas da colnia para SantaMaria, no caso, a situao de pesquisa que mais de perto acompanhei.Essas pessoas eram hospedadas por parentes ou padrinhos, e as mulheres,que trabalhavam como empregadas domsticas, residiam com os patresque eram, em sua maior parte, migrantes e descendentes de italianos quehaviam ascendido economicamente, formando j distines baseadas nosucesso da empreitada migrantista, muitas vezes, no interior da mesmafamlia. Essa circulao deve ser compreendida como estratgia de so-brevivncia da condio de campons, porque com lotes de 22 hectares,em mdia, muitos deles em terrenos acidentados, a sobrevivncia noera fcil, o que favorecia e impelia essas migraes internas e a busca pornovas oportunidades de renda, que no estivessem assentadas somenteno trabalho com a terra.

    Em Santa Maria, cidade econmica e politicamente mais importantena regio, a reivindicao de uma italianidade positivada acompanhao trajeto das reivindicaes em nvel nacional e estadual. Na dcada de1980, criam-se as primeiras agregaes que, em 1991, transformam-sena Associao Italiana de Santa Maria. Em 1994, a cidade recebe umaAgncia Consular. Aliada a essas entidades, h a criao constante decircoli, que so entidades que possuem vnculo com as regies italianas,tais como: Circolo veneto, Circolo Lombardo, Circolo Emiglia-Romana, entreoutros. Em nvel local, os acontecimentos do perodo do Estado Novo

    tambm marcaram os descendentes de italianos e fizeram com que, noperodo ps-Segunda Guerra Mundial, as italianidades fossem vivencia-das de forma mais discreta e ressentida. O Estado Novo havia deixadomarcas, ao proibir que os descendentes e os imigrantes falassem seusdialetos, que se reunissem publicamente e que se deslocassem livre-mente. Houve uma srie de represses que, localmente, permaneceramna memria dos descendentes (vide ZANINI, 2005b, 2006) como umsinal adscritivo importante, embora nem sempre bem compreendido.10Zanini denominou esse processo de memrias em construo, pois

    revelavam, justamente, o percurso de construo das alteridades locais10 Compreendemos memria no sentido atribudo por Halbwachs (1990): uma construo sobre o passado,

    efetuada no presente, por meio das categorias de sentido atuais dos descendentes.

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    e quais seriam os sinais adscritivos que estavam tendo significado parao grupo. Processo esse que a autora considera em constante atualizao,orientado por dinmicas interativas locais, nacionais e transnacionais,inclusive fazendo uso das novas mdias, o que transforma a italianidade

    numa noo privilegiada para os estudos tnicos.

    consiDeraesfinaisFoi importante para o desenvolvimento deste artigo,com base em pes-quisas empricas, compreender a trajetria do movimento de reivindi-cao da identidade talo-gacha, sua constituio e negociao comouma estratgia de manuteno do grupo e, tambm, como um smbolo

    de classificao social, que est em constante dinmica. Muitos dos des-cendentes que reivindicam a identidade talo-gacha hoje o fazem poracreditar que essa identidade lhes agrega valor e contribui para a dife-renciao social. Ser talo-gacho mais valorizado do que se denominar,simplesmente, brasileiro. Diramos, assim, que essa reivindicao umaestratgia de distino no interior de um mercado regional e nacionalde bens simblicos, embora os italianos do Rio Grande do Sul no seidentifiquem com os esteretipos atribudos aos italianos de So Paulo,por exemplo, considerados menos religiosos e distintos daqueles daqui

    (ZANINI, 2005b).Alm disso, mediante a insero nas redes desses grupos, as possibilidadesde ascenso social ampliam-se, uma vez que a marca da identidade talo-gacha passa a ser um diferencial, que permite ter acesso, por exemplo, cidadania italiana, trabalho no exterior, bolsas de estudo e a uma redede contatos que os situa entre iguais e entre pessoas que, idealmente,valorizariam as mesmas coisas: trabalho, poupana, famlia, religiosidade.

    O importante para compreender a invocao da italianidade desses imi-grantes so os sinais diacrticos que o grupo utiliza para delimitar suasfronteiras de pertencimento, a construo de tradies e de sentidospara essas tradies. interessante a observao de Oro (1996, p. 621),ao salientar que os descendentes de italianos do Rio Grande do Sul nonegariam suas identificaes como brasileiros e gachos, mas reivin-dicariam uma identidade tnica plural, hibridizada. Salientaramos:so talo-brasileiros, talo-gachos. Essas hibridizaes, contudo, sonegociadas nos contextos interativos, de acordo com situaes que se es-

    tabelecem. Ora mais lucrativo se denominar simplesmente de italiano,lombardo, talo-gacho e assim por diante. Portanto, so possibilidadesde os indivduos agregarem valor a si, reivindicando a identidade e se

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    identificando como descendentes de um grupo tido como empreendedor,progressista e ordeiro nas representaes atuais.

    Tal afirmao se coaduna com as observaes de Hall (1999). A etnicida-de, vista por esse prisma, seria uma forma de reao homogeneizaoimposta por padres sociais dominantes. No contexto das negociaesidentitrias, a cultura seria um elemento a ser considerado dinamica-mente e no como fonte imutvel de pertencimento grupal, com o queconcordamos amplamente e sobre o que nossas pesquisas etnogrficasconstantemente nos alertam. Encontramos, em Caxias do Sul, uma li-derana tnica ligada burguesia comercial de origem colonial, com aidentidade tnica fornecendo uma rede de proteo social. A etnicidadefoi mobilizada pela elite dominante como recurso e estratgia para manter

    o controle. Nesse caso, a cultura utilizada tambm como instrumentopoltico (JENKINS, 1997).

    Deste ponto de vista, a etnicidade se desdobra como uma ideologia, nosentido que Gramsci (1978) d ao termo, ou seja, como um cimento queunifica as prticas e pensamentos de um determinado grupo social. Surgea o conceito de lealdade ao grupo e de uma identidade local. No casodo grupo que estudamos, h uma clara hierarquizao de identidades:a identidade local (de origem) sobrepe-se regional e nacional. Osdescendentes de italianos consideram, de acordo com as negociaes, quea sua identidade mais significativa a identidade local de italianos, sem,contudo, renegar seu pertencimento ptria brasileira. Como dizem:so brasileiros de origem italiana.

    O que pensamos ser relevante do ponto de vista das discursividades acer-ca da italianidade(s) : com a ascenso econmica e poltica da parcelada populao de migrantes e descendentes que enriqueceu, h versesacerca da trajetria dos italianos no estado, que se torna hegemnicae legtima, a ponto de virar quase uma histria oficial, na qual so res-

    saltadas dificuldades e unio do grupo e apagadas ou minimizadas asdissenses. Nesse sentido, pesquisas etnogrficas alertam para as com-plexidades internas nesses processos de reivindicao de pertencimentoe tambm para o importante papel exercido pelos agenciadores tnicos,ainda pouco estudado.

    Na histria oficial daquela regio, no ressaltado o contexto em que sederam a imigrao e o povoamento do Rio Grande do Sul, mas aquelasvirtudes que so pensadas como inatasdos imigrantes trabalhadores,

    honestos, bons catlicos, criativos, persistentes, apegados famlia e apoupadores.

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    O sangue seria uma metfora, conforme ressaltado por Seyferth (2004).11Ele usado narrativamente para definir ou invocar a ndole ou o carterdo descendente, ressaltando o quanto a identidade, potencialmente, seriainata. Isso, conforme observamos em nossas etnografias, uma retrica,

    pois os descendentes se sabem negociadores identitrios e so cientesde que a italianidade pode se tornar mais ou menos visvel, de acordocom seus interesses, portanto, no seria to substantivada ou inata assim.

    Observamos, nesse caso, a imposio de uma ideologia dominante comosenso comum. Segundo a teoria gramsciana, as ideologias mais ativase orgnicas interferem no senso comum e nas tradies. isso que ob-servamos em Caxias do Sul. As idias da elite caxiense so no apenashegemnicas, mas tambm parte do senso comum da regio. preciso

    lembrar, porm, que, para Gramsci, ideologia no uma falsa consci-ncia, mas reproduo e transformao (ROUANET, 1978). Porm, toimportante quanto esse aspecto de possibilidades de criar discursividadese transform-las em representaes com fora, que os descendentesde imigrantes italianos, sejam de Caxias do Sul ou de Santa Maria, sonegociadores em potencial. As italianidades so mesclas de pragmatismocom valoraes, sentimentos e uma infinidade de elementos selecionadosnos contextos de fronteiras. Isso, pensamos, torna esse tema apaixonantepara a Antropologia.

    aBstractThe identity of the descendants of Italians, Italian of Rio Grande doSul, Talian, Italian-gauchos or simply Italian is constructed by

    some common signs ascriptions, such as pioneering, the compliment to thefamily as value of religion and particularly the reafrmation of the work asa strategy of social ascension. These are the chosen symbols, which serve asthe group and typing diacritical elements of contrast in the other Brazilian.

    However, in the Rio Grande do Sul, there are differences with respect to theconstruction of Italian history. This article is intended to make a contrastbetween the ethnographic region of colonization of the mountain gacha,especially Caxias do Sul, and settlement occurred in the central region ofthe state, mainly in Santa Maria and region.Keywords:identity; italian immigration; colonization.

    11 A armao da autora em relao aos teuto-brasileiros, mas acreditamos que pode ser utilizada tambmem relao aos descendentes de italianos.

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    maristelaDepaulaanDraDe**

    noVossuJeitosDeDireitoseseusmeDiaDoresumareflexosoBreprocessosDemeDiaoentrequilomBolaseaparelhosDeestaDo*

    * Chefe do Departamentode Sociologia e Antropolo-gia/UFMA, Professora doPrograma de Ps-Gradua-o em Cincias Sociais/UFMA, Coordenadorado Grupo de Estudos Ru-rais e Urbanos. Tel.: (98)33018325, (98) 88239261.Email: . Ultimas Publi-caes: Conitos agrriose memria de mulherescamponesas.Revista EstudosFemini sta s, Florianpolis,v. 15, p. 445-451, 2007;Expropriao de grupos t-nicos, crise ecolgica e (in)segurana alimentar: pro-

    blematizando as noes defome e pobreza.Revista PsCincias Sociais, So Lus, v.

    2, p. 37-60, 2007; Os gachosdescobrem o Brasil: projetosagropecurios contra aagricultura camponesa.So Lus: EDUFMA, 2008;Terra de ndio: identidadetnica e conito em terrasde uso comum. 2. ed. SoLus: EDUFMA, 2008.

    ** Texto apresentado no GTTransformaes sociais e

    projetos polticos em con-corrncia, durante a 33Reunio Anual da Anpocs,2009.

    Este artigo trata da constituio de um novo sujeito dedireitos os quilombolas e do campo de mediao emque se viu envolvido desde a insero do Artigo 68 na

    Constituio Brasileira de 1988. A partir da anlisede situaes empricas envolvendo os quilombolas deAlcntara, Maranho, busca-se problematizar o fato deque, para existir publicamente, para encaminhar suas

    reivindicaes, esses novos sujeitos de direitos passarama depender de uma grande diversidade de estruturase agentes de mediao que se interpuseram entre eles e

    as instituies nacionais e internacionais.Palavras-chave:Alcntara; quilombolas; conitos

    agrrios; mediao.

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    parte delas ancoradas em fundamentos tnicos. J vinham lutando pelapermanncia em seus territrios, por meio do sindicato de trabalhadoresrurais, de associaes de moradores no nvel do povoado, com apoio daIgreja Catlica e de outros mediadores tradicionais (WOLF, 1984, p.

    12), conforme cada conjuntura. A partir de 1988, novas entidades derepresentao assumiram papel de intermediao, agregando-se quelesmediadores mais tradicionais.

    Alguns autores viram nesse processo o resultado do esgotamento dasformas clssicas de representao e de mobilizao poltica o Sindicato,o partido poltico e a inaugurao de outras, mais plsticas e diversi-ficadas, construdas a partir de situaes localizadas e especficas, e combase em identidades como as deatingidos, pela construo de barragens,

    hidroeltricas, portos, indstrias ou outros empreendimentos de grandeporte (ALMEIDA, 1994).

    Em alguns casos essa identidade foi provocada pela prpria ao oficial caso j referido dosatingidos e, em outros, assistiu-se a uma passagem ouuma combinao de antigas categorias de autodenominao comopretos,

    moradores de terras de preto, de terras de santo, de terras de ndio, ressaltandoo seu fundamento tnico, para a de quilombolas simplesmente. Os mo-vimentos, entidades, organizaes da sociedade civil ligadas ao chamado

    movimento negropassaram a utilizar a expresso comunidades negras ruraise,atualmente, comunidades negras rurais quilombolas. Os aparelhos de estado,numa estratgiada condescendncia (BOURDIEU, 1994, p. 121) passarama adotar vrios desses termos e expresses.

    Neste artigo pretendo problematizar o fato de que para existir publica-mente, encaminhar suas reivindicaes, os quilombolas passaram a de-pender de uma grande diversidade de estruturas e agentes de mediaoque se interpuseram entre eles e a nao para utilizar os termos de Wolf(2003, p. 75) quando trata seu material sobre o Mxico e analisa a rede derelaes de grupos que conecta as localidades e as instituies nacionais:

    Essa no uma questo presente apenas no caso dos quilombolas.Para existir publicamente como sujeito poltico coletivo, para sair dacondio da existncia atomizada e ser reconhecido como sujeito dedireitos, qualquer segmento ou categoria social necessita de porta-vozes que falem em seu nome, que faam com que o problema vividoindividualmente, privadamente, se imponha na arena pblica como

    problema social. (LENOIR, 1998, p. 85-88)No caso de Alcntara essas redes se estendem entre as localidades eorganismos nacionais e supranacionais como OEA e OIT. A ligao

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    agricultura e extrativismo, baseando sua economia no uso comum dosrecursos naturais. Constituem-se comopopulaes tradicionaissegundo alegislao nacional e internacional. So grupos protegidos por lei pelofato de sua dinmica cultural representar patrimnio contemplado na

    Constituio Federal (artigos 215 e 216 e artigo 68 dos ADCT) e naConveno 169 da Organizao Internacional do Trabalho, da qual oBrasil signatrio.

    Alguns anos aps um decreto de desapropriao por utilidade pblica,em 1980, 312 dessas famlias foram deslocadas compulsoriamente dosseus lugares, beira do oceano, e instaladas em lotes, nas chamadas

    agrovilas. Nesses novos locais no podem se reproduzir material e social-mente, pois, so reas distantes do mar e constitudas de solos arenosos,

    inviabilizando a pesca e a lavoura. Ainda hoje no receberam ttulos dasterras e das casas entregues pela Aeronutica. Os jovens casais so proi-bidos de edificar novas residncias. Essa situao pode ser consideradacomo limpeza tnica, pois as jovens geraes so obrigadas a migrar paraa periferia de Alcntara e de So Lus, proibidas de viver nos territriosde seus ancestrais.

    Por ter tratado esses brasileiros como no cidados e provocado umagrave desestruturao ambiental e social no municpio como um todo,3o

    Brasil responde perante a Cmara Interamericana de Direitos Humanosda OEA. Nasagrovilas, famlias foram separadas, sua soberania alimentarfoi duramente atingida, a realizao de festas e rituais foi seriamentecomprometida e impedido o contato com cemitrios antigos.

    H tambm uma ao interposta junto OIT Organizao Interna-cional do Trabalho no mesmo sentido, j que so cerca de 30 anos dedescumprimento da legislao, de desrespeito a acordos l