50 crÔnicas de juventude - 17-06-2013

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1 Arte Studio 12 – Rogério Borges – Montes Claros

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Arte Studio 12 – Rogério Borges – Montes Claros

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Organização: Raphael Reys [email protected]

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COLABORADORES. Virgínia de Paula e Raphael Reys - NOSSA LINDA JUVENTUDE (ensaio de abertura) Georgino Neto. Professor de Educação Física, Cronista. - O DIA EM QUE O CIGARRO VIROU CINZA) Eduardo Nascimento Pisicólogo, Líder Sindical - REMINISCÊNCIAS Rita Shimada Coelho Poetisa, articulista. - VALORES REAIS Fernanda Belotti Pedagoga. - VENDAVAL Claúdia Veloso-Colen Jornalista, consultora, tradutora. -JUVENTUDE SE CURA COM O TEMPO Claúdia Cardoso Analista. Escritora. - JUVENTUDE EM PROSA E VERSO Luiz Roberto Neurologista, preceptor médico. - A BUNDA DE ARINDA. - ERA ISSO Karla Celene Campos Escritora - Poetisa - MEU AMIGO MAURÍCIO Jeanne Temis Cirurgiã-dentista, poetisa. - BONECO DE PANO - MENINA DAS ROSAS - PORÃO DE SONHOS - FLOR DE CACTO José Bernardino Filho Engenheiro. Reside em Glauschester-MA.USA - CAMINHAR É PRECISO - SIDNEY - CANACY E URATINGA - PARA ONDE FOI MONTES CLAROS DA NOSSA INFÂNCIA Luciano Vasconcellos Funcionário Público. Compositor

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- REMINISCÊNCIAS Will de Carvalho Artista Plástico - A ARTE COMO TERAPIA Ligya Saavedra Cantora. Compositora - A FUGA Noélio A. Melo Jornalista. Empresário - NO TEMPO DAS SERENATAS ROSILENE LIMA NEVES Advogada. - SIMPLES ASSIM FABIANO AMARAL Funcionário Público - TORMENTA Silvania Cruz Pedagoga - MAIS CLÁUDIA BACCHI Técnica em saúde pública - FALAR DE NÓS EM BOTUCATU... DENISE LIMA Funcionária Pública - Poetisa - BREJO DAS ALMAS Virgínia Abreu de Paula Beletrista, ativista. - É PRECISO CANTAR - NOSSA LINDA JUVENTUDE - REFLEXÕES SOBRE MINHA VIDA EM LONDRES

Raphael Reys Jornalista. Memorialista - OS ANJOS DE BARRO (trilogia) Gau, o Simples, Gregorinho Deitado, Denço. - A SEMÂNTICA LIBIDINOSA (trilogia) Pinguelo, Maria Bocaiúva, Mariposa Pelada. - SORVETE COM COCA COLA - A INICIAÇÃO - PISTOLEIROS NA NOITE - PURA ADRENALINA - A RESISTÊNCIA - SÉTIMA ARTE - OS CAÇADORES - TURQUINHO - QUEM DIRIA - OS BEM LANÇADOS - O EXORCISTA - O CACHORRO DO PENTÁUREA

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- NOTÍVAGOS E DILETANTES - INTUIÇÃO MATERNA - O BIGODE DE ZUPERO - FRAGMENTOS DA ADOLESCÊNCIA - A BELA DA TARDE

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UMA JUSTIFICATIVA. Raphael Reys Caríssimos! A crônica a seguir, Nossa Linda Juventude, escrita em pás de deux com a acadêmica Virginia de Paula é um ensaio falando dos anos 60, época da nossa adolescência. Uma projeção cinematográfica, narrada ao bom estilo de Tucídedes na histórica da Guerra do Peloponeso. O sonho ainda existia e eles são necessários à formatação dos atributos da alma. Logo veio o fim do Romantismo e início da Modernidade opressora. Era que nos surgiu como um Dite no Primeiro Portal dos Hades de nossas vidas. Os rapazes cortavam o cabelo ao estilo Príncipe Danilo, passava Gumes, para segurar o topete enquanto as meninas moças, armavam o coque no penteado com Laquê. Findava o glamour dos sentimentos e sobrevinha o lusco fusco dos tempos modernos. Culto ao sofismo e ao verniz do Ego/Bufo. Um mundo sem a sustentabilidade da alma que passa a encher, somente, o furado barril das emoções. Não mais se buscava a leveza de um bolero ou a passionalidade dos compassos alternados do tango. A mística do marketing roliudiano procurava implantar em nossas mentes heróis e facínoras, personagens de uma guerra subliminar. O adolescente masculino do meu tempo, cheio de liberdades próprias de campesinos era chegado a uma boate ou lupanar. Ósculos, amplexos e triangulações amorosas sob o sol inclemente dos trópicos. O porre com White Horse, o Cuba Livre cheio de cubos de gelo, a suavidade de um Hi Fi. Beijos trocados no escurinho do cinema com sabor de drops. Corridas entre obstáculos, montado em cavalo em pelo. Mães, avós com blusas de tafetá e jóias em coco e ouro e missais perolados. Antisardina número dois na pele. Alunas do colégio de freiras com suas saias azuis plissadas com a nesga da abertura voltada para o centro de gravidade das coxas. Facilitava o sexo entre pernas, acreditava-se, como medida contraceptiva. A vida noturna herança dos nossos pais e avôs além do que sobrou da estrutura montada na nossa urbe para dar prazer carnal e diversão a quinze mil operários e técnicos que construíram uma estrada de ferro com os dólares do Pentágono. Buscando abrir na garganta do Norte de Minas uma via ferroviária para transporte de tropas militares. Coisas da Segunda Grande Guerra, imaginando que sobrasse para nós, uma possível verdade em que todos nós conjeturávamos e nela acreditávamos. Sobravam para inocentes e inquietos efebos, dancing, lupanares, bares e, roendo afrodisíacos pequis, um barato Viagra curraleiro, o exercício da semântica libidinosa do homem da roça assegurada por Carlos Drummond de Andrade.

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Nossa Linda Juventude. Virgínia de Paula e Raphael Reys

Nascemos em plena era atômica no final dos anos 40, precisamente em 48, sob a égide astrológica de Vênus em Libra, juntamente com o Estado de Israel. Ghandi tinha sido assassinado no mês de janeiro, mas, para contrabalançar, ganhamos a Declaração dos Direitos Humanos em dezembro. No início dos 50 acontecia a Guerra da Coréia enquanto crescíamos livres e soltos nas ruas e quintais da campesina Montes Claros de então. Vivíamos como toda criança interiorana. Havia o grupo escolar, as matinês do domingo, a missa da matriz, a troca de revistinhas, jogos de botão pela calçada. Carmen Miranda cantando o Brasil no exterior, Marta Rocha representando a beleza da mulher brasileira, James Dean trazendo sinais de rebeldia, embora ainda sem causa. Elvis Presley chocando a conservadora sociedade americana, rebolando os quadris na TV e internacionalizando o Rock ‘n’ roll de Chuck Berry. Ainda éramos pré-adolescentes, quando JK tomou posse como presidente Bossa Nova dando inicio ao tempo posteriormente conhecido como os Anos Dourados do Brasil.

Vivíamos sob a ameaça da bomba, porém, pela primeira vez, parecia que o Brasil daria certo. Estudávamos o Ginasial, participávamos ativamente da vida estudantil nos grêmios, divertíamos com as chanchadas do cinema brasileiro, líamos, líamos, líamos... Havia M. Delly para as mocinhas, Monteiro Lobato. As meninas – mesmo as grandinhas - brincavam de Casinha com bonecas, jogavam bilboquê, pedrinhas, rodavam bambolê e pulavam Maré. Os alunos do recém inaugurado Colégio Marista São José jogavam Bentes Altas, jogo importado. Os demais jogavam finca e

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bola de meia. Meninos e meninas corriam juntos pelas ruas sem carros nos brinquedos de roda, no jogo Brasil- Espanha, Pique, e Queimada. Teatros de fundo de quintal eram quase semanais. Sem TV, inventávamos nossa diversão.

Esse mundo dourado era cheio de novidades. Novos modelos de radiolas, discos em Long Play, máquinas de lavar, o Ramac 305 da IBM, os portões eletrônicos criticados deliciosamente no filme “Meu Tio” de Jacques Tati. Víamos de pertinho as coisas boas e as coisas ruins. Prestando atenção, anotando... Ficamos sabendo em primeira mão da chegada das pílulas anticoncepcionais. Que susto para os católicos radicais.

Um pequeno salto de pouco anos e lá estava o astronauta Yuri Gagarin dando a volta a terra no satélite Sputinick. Logo mais, lançaram no espaço o satélite Tell star. Da França nos chegou a Nouvelle Vague inovando a linguagem do cinema. No Brasil o Cinema Novo mudou a cara do cinema nacional proporcionando a Palma de Outro em Cannes para Anselmo Duarte e seu Pagador de Promessas. Na arquitetura surgiu o modernismo de Niemayer. Até Montes Claros ficou de cara nova devido ao centenário da cidade. Che Guevara, um revolucionário com pinta de galã, sempre de boina. A revista O Cruzeiro com as garotas do Alceu e o Amigo da Onça. Suas páginas nos mostravam o que se passava no mundo. Fotos e mais fotos de Fidel Castro posando com seu charuto e roupa de militar... Tentando passar imagem simpática. Mostrou também o fuzilamento, ordenado por ele, dos antigos donos da ilha, em praça publica. Vimos quando ergueram o Muro da Vergonha separando a Alemanha em duas.

O Brasil ganhou a Copa do Mundo em 58 repetindo o feito em 62 tornando-se Bi campeão. No esporte Maria Ester Bueno no tênis, Eder Jofre no Box, Pelé e Garrincha no futebol. Em Montes Claros, os times de vôlei e basket do MCTC faziam bonito nos campeonatos mineiros. As partidas entre as agremiações Cassimiro de Abreu e Ateneu, lotavam os nossos campos de futebol.

Na música, Cauby Peixoto tinha suas vestes rasgadas pelas fanzocas montesclarenses enlouquecidas com sua voz de alta potencia. Então veio a Bossa Nova em 58, dando vez aos de pouca voz e muito talento. O Brasil inteiro se deliciou com a batida light e o canto nasal de João Gilberto e de Tom Jobim. E se divertiu a valor com as sátiras de Juca Chaves. A partir de 60, após show no Carnagie Hall de Nova York, onde os brasileiros cantaram sentados em banquinhos atrás de uma floresta de microfones, a Bossa Nova ganhou mundo. Ganhou também voz internacional para interpretá-la: Frank Sinatra.

Como tudo era novo, uma nova capital federal: Brasília. Acompanhamos a campanha política para presidente e vice com empolgação, influenciados pelos adultos ao nosso redor. Eles usavam na lapela uma vassourinha símbolo do candidato Jânio Quadros, ou uma espada, símbolo do candidato do governo, o Marechal Lot. Jânio e Jango venceram as eleições, após campanha

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com o melhor jingle: Jangar é muito mais do que votar eu vou jangar, é Jango é Jango, é o Jango Goulart.

A Radio Nacional e seu Repórter Esso. Foi por esse canal que ouvimos incrédulos a renuncia do presidente pouco tempo depois de empossado devido à forças ocultas. Éramos pré-adolescentes quando Jango Goulart subiu ao poder. E no meio a tanto barulho político, ouvíamos serenos a JB, radio Jornal do Brasil, com seus sons jazzísticos não encontrados em nenhuma outra emissora. Bela trilha sonora enquanto víamos os Anos Dourados cedendo espaço para um breve tempo sem cor.

Em todos os tempos convivemos com os mais interessantes tipos humanos... Pelas ruas dos Montes Claros campesina, andavam muitos lelés da cuca: Tuia, Maria Babona, Geraldo Pascovira, Seu Manoel Cego, Requeijão, João Doido, Galinheiro, Quinhentos Pro Cadáver, Alalaô e Zarur montado na sua bicicleta sueca vestido num uniforme de combate. Didi Pimenta bancava o jogo do bicho dentro do nosso Mercado Municipal, onde o publicitário Leonel Beirão promovia populares festas dançantes, regadas à fubuia desdobrada, muita animação e palavrões.

Já na turma do soçaite, o cronista Lazinho Pimenta comandava a cidade com suas listas dos mais elegantes e das debutantes vestidas de Sissi, a Imperatriz. Nos Anos Dourados, uma turma um pouco mais velha do que nós, inventou os clubes volantes. Sem sedes próprias esses clubes promoviam bailaricos nas residências de quem aceitasse ceder as salas de visitas como clube por uma noite. A cidade se encheu deles: Figueira, Oc, Acra, Golden, Halley, e principalmente It Clube, que de quebra, criou o teatro Itiano com peças de Pedro Bloch.

Assistimos todas elas, nos deliciamos com os esquetes do radialista Gelson Dias, e logo fomos também rodopiar nas Horas dançantes e bailes dos clubes. A boate da Praça de Esportes, ou MCTC, aberta para a juventude dançar nas manhãs de domingo. Rodar na pista da praça, nadar na piscinona, acompanhar os jogos esportivos era chiquérrimo. O parque Infantil era o País das Maravilhas das crianças.

No final dos anos cinquenta, ainda sob luz dourada, o Rotary Clube, sempre atuante em quase tudo na cidade, trouxe para nós o Centro Cultural Brasil Estados Unidos. A juventude se americanizava, usando os primeiros jeans, tomando coca cola, e, graças à escola, arranhando o inglês.

Hollywood nos brindou com o Tecnicolor em filmes grandiosos como “Dez Mandamentos” e “Ben Hur” que lotaram os cinemas. Charleston Heston tornou-se o astro mais cotado da indústria cinematográfica.

Não tínhamos permissão de ver todos os filmes. Era um tempo de censura declarada nos cartazes. Quem não sonhava em ver os marcados como proibidos para menores de 18 anos? Os franceses eram mestres em filmes proibidos. “E Deus Criou a Mulher” e

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“Hiroshima Meu Amor”, dois bons exemplos. Os carregados de pavor, como os de Hitchcock. O filme “Psicose” causou tanto pânico que muitas mulheres começavam a temer na hora do banho! Apesar disso foi um dos maiores sucessos de bilheteria da época. Marcaram aquele tempo dourado também os filmes que faziam a platéia chorar. “Imitação da Vida” e “Marcelino Pão e Vinho” foram campeões de lágrimas. As pessoas saíam do cinema escondendo os olhos inchados de tanto chorar. E adoravam!

Felizmente faziam filmes de puro entretenimento, especialmente para crianças. Os meninos vibravam com Roque Lane e Roy Rogers, com os desenhos de Walt Disney, os festivais Tom & Jerry, os musicais latinos com Joselito, Sarita Montiel e Miguel Aceves Mejia, as comédias de Cantinflas e da Atlântida. Tudo era alegria. Uma alegria que culminou com a presença de Eliana e Cyll Farney – os namoradinhos do Brasil - na cidade, precisamente em cocktail na Chacrinha de Dr. Hermes. Um filme se destacou entre as meninas: “O Mágico de Oz”. Aprenderam à versão em português, e sonhadoramente cantavam:

“Certa vez, eu ouvi alguém contar, que além sobre o arco íris há um lugar. Onde o céu sempre azul nos faz sonhar, onde a gente consegue os sonhos realizar. Por isso quando a chuva tamborila na vidraça da janela, eu olho o arco íris na esperança de encontrar a região, tão bela! Onde o céu sempre azul nos faz sonhar, onde a gente consegue os sonhos realizar.”

Tempo sem cor definida. Boquiabertos vimos o Brasil perdendo o tom dourado, sem perder o gás. Dançávamos o Twist. Usávamos os tecidos com fibras sintéticas, as últimas novidades como: O Volta ao Mundo, o Ban Lon, o Buclê, que eram vendidos pelo comerciante Josias Loyola. Na escola, os rapazes faziam o cientifico e as meninas faziam o Normal. Acompanhávamos o desenrolar do Concilio Vaticano II – que se estende até 65 – passávamos as manhãs de domingo no Pentáurea Clube, marcávamos ponto de encontro na Pracinha, nas sessões das quatro no Cine Teatro Fátima. Tomávamos vaca preta no Bar Cristal, Cubana ou no Tony Colorido. A França nos legava à moda de Courrèges e Gern Reich lançava o Monokini. Brigite Bardot mostrava a sua boquinha sexy, chegava a Búzios com namorado brasileiro lançando as calças Saint Tropez, levando as meninas a mostrarem seus umbiguinhos. Alain Delon, sob a supervisão de Luchino Visconti, ganhava, por merecimento, o titulo do Homem Mais bonito do Mundo. O filme de maior sucesso daquele início dos sessenta chamava-se “Candelabro Italiano”. A moçada ainda preferia o romantismo xarope. E o galã do filme, Troy Donahue, lançou moda antes impensável para homens: suéteres vermelhos e mocassins sem meias, também usados por Delon. Trouxe as motocicletas lambretas e vespas aprovadas totalmente pela juventude Pão com Cocada montesclarina. Por que Pão com Cocada? Os rapazes bonitos eram chamados de pães e as

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mocinhas bonitas, de cocada ou Doce de Leite. Tudo era bacana, bárbaro! Continuávamos devorando livros. Érico Veríssimo, Jorge Amado, Fernando Sabino, Oscar Wilde, Emile Zola, T. H. Lawrence com seu famoso e proibido Romance de Lady Chatterley... Curiosamente os livros católicos de Michel Quoist viraram Best Sellers: O Diário de Danny – que já fazia sucesso desde os tempos dourados - e o Diário de Ana Maria. A turma começou a se engajar nos movimentos estudantis influenciados por esses livros. A rapaziada fumava cigarros Capri com filtro, tomava Cuba Libre, comia canapés e usava camisa Macgregor abertas no sovaco. Os Condons não eram lubrificados e muito menos musicados. Tralha de pescaria era levada de Rural Willes. Tínhamos as garruchas Rabo de Égua, calibres 320 e 380. Bala 44 para caçar de carabina Winchester era vendida livremente na porta do Mercado Municipal, dentro de uma cesta de vine por Emanuel Pinto, o maior 171 do pedaço. Entrou em cena o vestido Tubinho e o cabelo em coque alto com Bombril como armação por influência de Audrey Hepburn no filme “Bonequinha de Luxo”. Permanecia na moda o Vestido Saco introduzido no ano da Bossa Nova. Algumas meninas já pensavam em seguir os estudos devido a faculdades chegando por obra e graça de cidadãos destemidos. Porém, o principal era encontrar o marido. As alunas do Colégio Imaculada Conceição nem precisavam fazer footing na pracinha ou Praça de Esportes. Os rapazes, loucos para melhorar o status sendo namorados de uma delas, faziam ponto na porta do colégio montados em suas vespas. As de outros estabelecimentos precisavam correr atrás do prejuízo frequentando os Clubes Montes Claros, - e a partir de 65, o Automóvel Clube - os aniversários de 15 anos, e cavando de todas as formas algum tipo de titulo de beleza. Os cronistas sociais criavam títulos de todos os gêneros, como Rainha do Algodão, Rainha da Primavera, Miss Simpatia, Miss Fada Azul, Miss Sweater, Rainha da Imprensa, e o mais cobiçado deles: Rainha dos Estudantes. Curiosamente, eram as alunas da Escola Normal que mais venciam esses concursos. Os movimentos estudantis começaram a ganhar força. As eleições para presidência do Diretório dos Estudantes tornaram-se disputadíssimas com direito a briga e insultos. A antiga Juventude Estudantil Católica, que nos anos dourados se reunia apenas para estudar o evangelho, foi invadida por membros de partidos de esquerda levando mocinhas e mocinhos a se reunirem no centro comercial numa sala do Edifício Clemente Farias (Ciosa) para estudo da Realidade Brasileira. Cartilhas marxistas eram distribuídas com toda tranquilidade entre os Jescistas. Quem entrasse naquela sala no início de 64 veria farto material revolucionário com desenhos de uniformes a serem usados pelos habitantes do Brasil Operário além da terrível lista dos políticos programados para o fuzilamento.

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Encabeçando a lista o nome do jornalista e político Carlos Lacerda. Em contrapartida, a mesma Igreja Católica organizava a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”. Donas de casa atenderam ao chamado lotando as ruas de terço nas mãos demonstrando desaprovar e temer o governo João Goulart.

Nos Estados Unidos a cor dourada do tempo foi apagada num triste dia de 63. Um pistoleiro francês argelino, dono de um restaurante em Niterói matava Kennedy a serviço do FBI e da máfia, o que impôs Johnson, um cego moral, como presidente. No mesmo ano a CIA fecha o paletó, ou melhor, o corpete de Marilyn Monroe. Para muitos, foi à última das estrelas do cinema americano. Outras chegaram, mas não com aquele corpo voluptuoso, nem aquele movimento dos lábios e o ronronar de gata.

No Brasil, desde a saída do presidente JK a era dourada começou a sumir, se apagando completamente com a renúncia de Jânio. Dizem que alguns pontinhos dourados surgiam aqui e ali. Mas, o pouco de que restava veio abaixo no dia de 31 de março de 64. Os nossos militares treinados pelo exército norte americano tomavam o poder acabando com nossa frágil democracia por 15 anos. Na época, escrevia o maravilhoso e corajoso Rubem Braga, que: militar não faz nada, mas começa cedo prá burro: às 7 da manhã estão todos lá...

De repente tudo voltou a ser em preto e branco. No mundo! De Liverpool chegaram The Beatles abrindo portas antes fechada para a juventude. Em preto e branco. Capa do primeiro disco em preto e branco. Fotos em preto branco. Até o primeiro filme, “A Hard Days Night”, foi filmado em preto e branco. É verdade que com fotografia da melhor qualidade artística. Rita Tushingham, também de Liverpool, e de olhos dourados, fez vários filmes em preto e branco. Todos ganhando prêmios nos festivais pelo mundo afora. Era apenas o universo juntando forças para agregar todas as cores e fazer acontecer... Os Anos Psicodélicos.

Esse tempo colorido com fortes pinceladas chegou a meados da década com a literatura de Kerouac, o rock de garagem, os movimentos civis em favor dos negros, das mulheres e dos homossexuais. Desde o sumiço do pó dourado tornou-se importante demonstrar sinais de liberdade até no vestir. Mary Quant lançava a mini saia e as mulheres chiques aderiram ao Prete a Porter. Logo mais vieram as estampas psicodélicas de Rucci, os tecidos com fibras sintéticas, o Pervinc, a sensual meia calça, as meias arrastão, os micro vestidos Op Art e African Look e a moda Unissex. Chegaram as pantalonas e as calças ‘Pata de Elefante” ou “Boca de Sino” adotadas também pelos homens na década seguinte.

Veio a magreza de Twiggy, os batons claros em bocas tropicais, o cabelo Franjão para homens e mulheres. As distancias se encurtaram com os jatos Boeing e a promessa do super veloz Concorde, que chegaria só em 76. No meio a tudo isso havia um super herói à moda antiga com direito de matar: Bond, James Bond, vivido magistralmente por Sean Connery.

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Enquanto os Beatles gritavam Yeah, Yeah, Yeah, e incitavam todos a rebolar e gritar, - Twist and Shout - os Rolling Stones apareceram gritando “No, No, No”. No Satisfaction falava da insatisfação com o mundo que nos cercava. E todos gritaram “sim” e “não” com eles.

A Jovem Guarda com Roberto Carlos no comando sem calhambeque e mandando tudo para o inferno. Ele, que tinha sido lançado ainda nos tempos dourados no programa de Carlos Imperial. Como cantor de bossa nova, finalmente encontrava o seu caminho sendo sagrado o Rei de Juventude. Ao mesmo tempo nasceu a MPB recheada de talentos e a nossa maior Diva: Elis Regina. Surgiram os festivais de Música Popular da Record, e os internacionais da Rede Globo. Este último teve a honra de lançar Milton Nascimento fazendo a “Travessia”. Os Mutantes com Rita Lee, o Retrô e o Pop! Bob Dylan enfureceu os puristas ao tocar guitarra elétrica, mas, compôs aquela que seria considerada como a melhor música da década: “Like a Rolling Stone”. Mas há quem prefira “Whiter Shade of Pale”. No Brasil, Gil e Caetano também enfureceram os puristas pelo mesmo motivo e criaram o Tropicalismo com todas as cores do arco íris. Já podíamos ver tudo isso pela TV inaugurada no final de 64, apesar da imagem de péssima qualidade. Sob forte chuva que assistimos Virginia Barbosa vencendo o concurso Miss Minas Gerais. Recebida com pompa e circunstância no aeroporto de Montes Claros ela desfilou em carro aberto para uma população em êxtase. Pouco depois representaria o Brasil em Long Beach no Concurso Miss Beleza Internacional sendo bem classificada. Tal feito trouxe um novo sonho para as mocinhas da terrinha: ser Miss Montes Claros. Alguns anos depois outra beldade da cidade ganhava faixa e coroa de miss campeã: Marly Santos. O povo aplaudiu orgulhoso. Martin Luther King recebia o Nobel da Paz, Guevara era visto doutrinando na Bolívia, Robert Kennedy visitou o Brasil usando camisa pelo avesso, a guerra no Vietnã passou dos limites e os jovens americanos queimavam suas convocações em plena rua. Betty Friedman também acendeu fogueiras, porém para queimar sutiãs. Era o Woman’s Lib chegando a clamar pelos direitos das mulheres. O Festival de Monterey nos apresentou Janis Joplin deixando Mama Cass de boca aberta. Nasceu o movimento Hippie, ou Flower Power, de Paz e Amor, Bicho. A linguagem jovem ganhava novos sons, novas palavras, novo sentido. Chegaram também o Poder Negro e o Poder Jovem. No cenário musical internacional eram muitos cantando o que sentíamos: Simon & Garfunkel, The Mamas and the Papas, Herman Hermits, The Animals, Sony & Cher, The Doors, esses últimos inspirados nas “Portas da Percepção” de Aldous Huxley. A MPB continuava em alta com Chico Buarque, Gil, Caetano, Betania, Gal,

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Edu, Vandré, Marcos e Paulo Sérgio Vale, MPB Quatro, todos botando pra quebrar. Sérgio Ricardo quebrou mesmo o violão ao ser vaiado num festival. A música de protesto tomava conta tanto no exterior como aqui. Mas sempre havia tempo para o romantismo das canções do Festival de San Remo, para ouvir Sérgio Endrigo, Peppino Di Capri, e Nico Fidenco com seu esmagador sucesso “A Casa de Irene”. Franceses marcando presença. Gilbert Bécaud, Alain Barriere, a voz rouca de Charles Asnavour na liderança, a voz doce de Françoise Hardi. Suspiros se espalhando pelo ar sempre que se ouviam melodias como “Aline” ou... A campeã de todas: “F Comme Femme”. Os Beatles, que já vinham namorando a música de vanguarda há algum tempo, lançaram o mais avançado disco imaginável: o conceitual Sangeant Peppers Lonely Hearts Club Band, aparentemente composto sob efeito de LSD. Paul McCartney declarava que a nova droga era o antídoto para a violência. Morreu Brian Epstein, o mentor do quarteto, e eles se refugiaram na Índia, nos apresentando tudo de bom da cultura indiana: a yoga, a meditação, os mantras, a cítara de Ravi Shankar. Está valendo até hoje! Os seresteiros de Montes Claros, após vencerem concurso em Ouro Preto, iniciaram bela carreira musical pelo Brasil e exterior sob a batuta do historiador Hermes de Paula. Jovens do Conservatório Lorenzo Fernandes descobriam as amplas possibilidades do Para Folclórico dançando no grupo Banzé ao redor do mundo. O hilário Hélio Guedes, o Patão, beatlemaníaco por excelência, repassou sua versão para a origem do nome. Sendo Zezé Colares a mentora do grupo, Banzé só poderia ter um significado: A Banda dos Corações Solitários de Zezé Colares. Mao-Tsé-Tung continuava com sua cabeça achatada e o seu livro vermelho. Mas John Lennon informava cantando “não contem comigo para carregar cartazes do Chairman Mao”. Irrompia a Guerra dos Seis Dias entre Israelenses e Palestinos com consequências nefastas até os dias atuais. E enquanto isso... Jackie Kennedy curtia um nudismo na ilha de Skorpios e depenava um milionário grego otário. Por aqui a turma seguia perplexa com o militarismo que nos foi imposto. Estudava, se formava, trabalhava, sentia medo diante das notícias de desaparecimentos, sonhava e conseguia se divertir. Fundaram o CEC, Centro de Estudos Cinematográficos, estudando cinema entre os caibros da construção da sede do Diretório dos Estudantes. Organizaram festivais, fizeram curta metragem e até mesmo participaram de um filme profissional: Os Marginais, do Montes-clarense Carlos Alberto Prates Correa. Dois novos clubes chegaram trazendo opções para onde ir paquerar: Max Min e Lagoa da Barra. Aos sábados o gostoso era dançar modernamente no Encontro de Jovens do Clube Montes

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Claros. Aos domingos, era a vez do salão do Automóvel Clube, no Juventude em Brasa, ao som dos grupos de rock que eram formados a todo o momento, - inclusive de meninas - com destaque para Os Brucutus. Na falta deles, sempre havia o Les Cheri. Dos conjuntos de rock, dois nomes da mesma família se projetariam no cenário nacional: Beto Guedes e Luis Guedes, conhecido por nós como Luis Coca. Toninho Rebello assume a nossa prefeitura numa eleição única: apenas ele como candidato. Veio numa missão apoiada por todos os partidos para salvar a cidade do caos em que se encontrava. E conseguiu por se dedicar apenas a administrar sem interesses políticos. Continuávamos lendo. E como! Prosa e verso. Drummond, Vinicius, Bandeira, Whitman. Herman Hesse em todas as prateleiras. Simone de Buvoir, Sartre, Marx. Descobrimos o Anarquismo e o Misticismo. “Quarup” e “A Época dos Tristes” passaram de mão em mão. O filme “Dr. Jivago” tornou-se o grande campeão das bilheterias revelando a beleza e talento de Julie Christie. Palmas para ela que ajudou a jogar fora de vez os penteados de laquê e a superficialidade. Com ela, - e Marianne Faithful, partner de Mick Jagger - a mulher inteligente ganhou vez. E qual moça não queria ser que nem elas? Em 1968, A Dita Dura endureceu ainda mais com o intumescimento do ato inconstitucional número 5. No Rio, todo o elenco da peça Roda Viva, foi preso de uma só vez. Os estudantes franceses deram início a uma revolução nas ruas sem igual, em tão alto som que se espalhou pelo mundo. A frase mais gritada por eles virou música de Caetano Veloso: “É proibido Proibir”. Incompreensivelmente, foi vaiada no festival da Record daquele ano. Pouco depois ele e Gilberto Gil foram presos e exilados em Londres. Também Vandré, após quase derrubar o Maracanazinho tal a força de seu hino “Pra Não dizer que Não falei de Flores”, foi forçado a se refugiar em outras terras. São muitos os que assim fizeram inclusive amigos chegados aos nossos corações. A coisa tava feia. Nos Estados Unidos, Robert Kennedy e Martin Luther King foram assassinados. Richard Nixon parecia enlouquecido para vencer a tal a guerra do Vietnã custasse o que custasse. Nos palcos da Broadway, a peça musical “Hair” encantava, fascinava e ao mesmo tempo escandalizava a todos. Escandalizava por mostrar atores nuinhos em pelo pela primeira vez. Encantava pela beleza das músicas e coreografia. Fascinava pela coragem de revelar ao mundo uma juventude que rejeitava a guerra e proclamava o amor livre. Com muita maconha. E eis que o homem chegava à lua. Kubrick nos brindava com sua obra prima “Dois Mil e UM, uma Odisséia no Espaço” num festival de cores. Foram muitos os que compraram novo ingresso apenas para rever as cenas finais, misteriosas e belas. O astronauta

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envelhece transformando-se num feto dourado olhando para a Terra ao som de “Assim Falou Zaratustra” composição de Richard Strauss inspirada no tratado filosófico de Nietzsche. Algo lindo assim ocorreria no futuro? 2001 nos pareciam tão distante! É a vez da contra cultura tomar corpo. O underground. Ser reaça era fino! O Pasquim tava na moda. Era preciso ler esse jornal semanalmente para ficar inserido no contexto. Aí pintou uma doideira de estilos musicais. Vários tipos de rock – Pop rock, acid rock, Folk Rock, progressive Rock, Heavy Metal, California Soun e os seus representantes: Zappa, Zepellin, Yes, Genesis, Wakeman, Cream, e Pink Floyd cujo som ainda nos emociona. Nascia a Arpanet, o embrião da Internet. Surgia a lata de Spray e pichar muros virou arte. Andy Warhol, vindo de outra era, se consagrou definitivamente como o Papa da Pop Art. Havia refletores de luz negra nas boates. Pouco depois chegaria outra ainda mais doidona: a Luz Estroboscópica. Regis Debray foi julgado, condenado e depois misteriosamente libertado. No Brasil, um grupo de jovens revolucionários adeptos da luta armada sequestrava o embaixador americano para a libertação de companheiros presos. Até hoje Fernando Gabeira, que estava entre os sequestradores, não consegue visto para os Estados Unidos. Ainda deu para assistir “Midnigth Cowbo”, “A primeira Noite de Um Home”, “Bonnie and Clyde”, “Barbarella”. Caminhava-se curtindo a liberalidade de Leila Dinis e o FEBEAPA. Viajava-se pela Viação Cometa escutando um radinho de pilhas Mitsubitch. Os OVNIS já ameaçavam invadir este mundo doido e besta, o I Ching fazia as mutações. Lao Tse se popularizava com o seu Caminho do Meio. Os habitantes do planeta andavam no Campo de Kuruchetra com o guerreiro Arjuna nas rédeas do carro de combate e Krisna na condução! A galera sintonizava nas rádios piratas com o seu Disk Jockey Rodrigo Lucas, ou na Mundial para ouvir Big Boy chamando todos de doidos ao cumprimentar gritando em voz rouca: “Hello Crazy People.” Em 69 acontecia um festival para 400.000 pessoas durante três dias – de amor e paz – em Woodstock. Joe Cocker nos foi apresentado cantando “With a Little Help From My Friends” e pronto: nascia uma estrela. A música tornou-se sua por toda a eternidade. Sorry, Ringo. No mesmo festival Hendrix virou um semi Deus – porque Deus mesmo era o Eric Clapton, como estava escrito nos muros do metrô de Londres - tocando o hino americano como apenas um anjo seria capaz de tocar. Ali provaram o que ninguém acreditava ser possível: viver em paz. Desde que se tomasse cuidado com a qualidade do ácido que rolava livremente. Poucos meses depois, no festival de Altamont, o oposto aconteceria. Brigas pipocando de minuto a minuto forçando um horrorizado Mick Jagger a interromper a música – Sympathy for the Devil - a cada frase musical. Virou um pastor, de tanto medo:

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“Irmãos, irmãos, não briguem...”! Um jovem foi assassinado a facadas em frente ao palco. O futebol canarinho vencia mais uma copa do mundo. Os jogos puderam ser vistos numa TV com boa imagem, finalmente. O Brasil inteiro cantou “pra frente Brasil, Brasil, salve a seleção”, abafando os gritos dos presos políticos torturados nas prisões. Pouco depois John Lennon, o porta voz oficial daquela geração, declarava que o sonho tinha acabado. Em 72 os soldados americanos, em frangalhos e alucinados, deixavam o Vietnam. Tinham sido todos drogados no front para aquentar o tranco da guerra, que continuaria martirizando os civis por mais três anos. Explodia o escândalo Watergate. Richard Nixon renunciou do cargo de presidente da nação mais poderosa do mundo. No Brasil, os militares continuavam no poder. Aqui em Moc, Beto Guedes usando camiseta de vidrilhos, empinava araras de papel na Praça da Catedral. Logo passaria a soltar aviões de aero modelo. Alçou vôo na música popular brasileira se tornando membro efetivo do Clube da Esquina com direito a ter suas músicas nas trilhas das novelas da Rede Globo até mesmo como tema central. As dondocas, usando sapato Plataforma Alta, concorriam ao titulo de Glamour Girl, no prestigiado baile anual do colunista Thedomiro Paulino. Também prestavam vestibular sem precisar sair da cidade, agora recheada de faculdades, inclusive de medicina. No mundo musical após fim de sonho, os roqueiros também optaram pelo Glamour e imagem andrógina, pintando os rostos e usando ousados modelitos. Os Stones entraram nessa. Vieram novos nomes: Alice Cooper, Elton John, e David Bowie, o mais glamoroso deles, dando origem à nova modalidade de rock: O Glam Rock. No Brasil é a vez de Ney Matogrosso causar frizzon com os Secos e Molhados, também de caras pintadas. Passado o modismo, eles permaneceram com novos estilos. Até hoje! No tradicional, brilhava Vinicius fazendo dupla com Toquinho para o agrado de todos. No estilo da época de quebrar convenções, surgiu Raul Seixas, o maluco beleza, insistindo em sonhar. Enquanto na Europa os jovens aderiam ao look do Glam e ao movimento Punk, - encabeçados na música pelos Sex Pistols e The Police – por aqui os rapazes optaram pelos cintos de couro com fivela de prata ou de alpaca estilo cowboy. Tomavam Urupol para limpar a bexiga após curarem a blenorragia tropical. Aqui, para alguns, o sonho – o antigo sonho dourado - não tinha acabado e os garanhões dançavam bolero no lupanar de Roxa sob as luzes do abajur lilás. À noite imitavam o Sirtaki grego nas praças. Zoca Gontijo, um notívago das nossas noites, inaugurava o coquetel Teresa Cristina no Bar Cristal, e umas cabeças ocas cheiravam teracloretileno-etil (um vermífugo) nas festas e diziam que estavam doidos e flutuando...

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Continuávamos lendo sem parar. Os clássicos, os ensaios, os filosóficos. A Metafísica tornou-se tema das conversas. Descobrimos que Saint Exupery era muito mais do que um pequeno príncipe. Seu “Cidadela” se tornou livro de cabeceira de muitos. Continuamos indo ao cinema muitas vezes por semana. Jane Fonda passou de sex symbol que era há poucos anos para mulher genial, cabeça. Sem deixar de ser sexy. Talvez o filme que mais encucou a todos tenha sido “Teorema”, de Pier Paolo Pasolini. Criamos novo Cine Clube, fizemos mais curtas metragens, subimos novamente nos palcos. Seguimos nossas vidas nesse tempo complicado cada qual do seu jeito. Alguns se casaram, separaram, casaram-se novamente, tiveram filhos. Outros ficaram solteiros. Muitos trabalharam em escritórios, empresas, imprensa, estúdios de radio, consultórios. Muitos foram iniciados em Escolas de Mistério. Viajamos, mudamos de cidade, conhecemos terras distantes, estudamos fora, alguns ficaram famosos, como por exemplo, o artista plástico Rai Colares... Mas sempre retornando para encontros em algum lugar. No início dos 70 o ponto era o barzinho Viche, o primeiro onde moças também podiam frequentar. Os restaurantes tradicionais continuavam a nos receber carinhosamente: Mangueirinha, Intermezzo, Espeto de Ouro, e um pouco mais tarde, Quintal, que antes foi de Enio (chamado de Tio Enio) e passou a ter Waltinho Fernandes no comando, um dos muitos que foram embora do mundo de repente. Com Toninho Rebelo de volta, a cidade vai ganhando ares de capital. Os barzinhos da nova avenida, a Deputado Esteves Rodrigues (Avenida Sanitária), tornaram-se palco de uma nova geração em tudo por tudo diferente da nossa. Mas, é ali, na Pizzaria Papaula que, algumas vezes nos encontramos, já nos 80. Ainda lemos, lemos, lemos... Agora também, escrevemos, escrevemos, escrevemos... Uma noite qualquer em meados dos 70. É tempo de Natal, férias, muitos dos ausentes se acham presentes. Por acaso nos encontramos no Quarteirão do Povo. Rai Colares, em frente à Discobrasa, chora ouvindo Roberto Carlos cantar “Eu prefiro as curvas da Estrada de Santos”... De pura emoção. João Walmor explica que a palavra curva, em turco, significa puta. Seria esse tipo de curva que o Rei se referia na música? Zé Guedes bate palmas de aprovação. Chegam Darlan Rego, Durval Santos, Rosa, Goya, Fatinha. Parados ali por quê? Vamos ao Restaurante Mangueirinha? Vamos. Outros vão chegando e seguindo juntos. Rai Mendes, Eduardo Brasil, Juquinha, Roberto Luiz, Rafael Reis, Mirinha e Rita Maciel. Aquele será o saxofonista Jose Eymard? Sim, é ele. Chegue aqui, rapaz! Patão Guedes aparece mais tarde e com ele vem Reginauro Silva. Bee Gees estão cantando staying Alive. Virginia gosta. Sempre gostou dos Bee Gees. Há censura aberta... O que? Música Disco não. Vai ver que ela curte o ABBA. E não me diga que

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gostou dos Embalos de Sábado à noite. O pior é que tinha gostado. Não se importa com as críticas. Elas acontecem sempre e isso é bom. Revelam uma verdadeira amizade, onde todos podem discordar sem medo de rejeição. Ela concorda quanto à qualidade musical caindo vertiginosamente. “Those were the days, my friend...” cantam todos celebrando o passado. Um clima de nostalgia toma conta. Nostalgia pelos bons muitos bons momentos. Porém, conscientes dos momentos de puro pesadelo que aconteceram e ainda aconteciam. Haverá um bom tempo para nós? Na saída, o artista plástico Patão Guedes se encarrega de levar as mulheres em casa... A noite está tranquila, o céu estrelado, a lua visível por entre nuvens. Como num milagre, vem de longe, não se sabe de onde, o som da música Aquarius, da peça Hair, cuja letra como que responde à pergunta feita ainda no Restaurante Mangueirinha. Sim, haverá bom tempo para todos, mas apenas quando a lua estiver na sétima casa e Júpiter se alinhar com Marte... Cheios de renovadas esperanças, eles cantam juntos na noite: “This is the downing of the Age of Aquarius, the Age of Aquarius... Aquarius... Aquarius!” “Romantismo”. Inicialmente apenas uma atitude, um estado de espírito, o Romantismo toma mais tarde a forma de um movimento, e o espírito romântico passa a designar toda uma visão de mundo centrada no indivíduo. Os autores românticos voltaram-se cada vez mais para si mesmos, retratando o drama humano, amores trágicos, ideais utópicos e desejos de escapismo. Se o século XVIII foi marcado pela objetividade, pelo Iluminismo e pela razão, o início do século XIX seria marcado pelo lirismo, pela subjetividade, pela emoção e pelo eu. O termo romântico refere-se ao movimento estético ou, em um sentido mais lato, à tendência idealista ou poética de alguém que carece de sentido objetivo. O Romantismo é a arte do sonho e fantasia. Valoriza as forças criativas do indivíduo e da imaginação popular. “Opõe-se à arte equilibrada dos clássicos e baseia-se na inspiração fugaz dos momentos fortes da vida subjetiva: na fé, no sonho, na paixão, na intuição, na saudade, no sentimento da natureza e na força das lendas nacionais”. ( Fonte Wikipédia)”

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Georgino Neto é o primogênito de Dona Cléo e Georgino Júnior. Comunista, atleticano e espírita, arrisca escrever torto por linhas certas. Pai de João Victor, Marina Morena e João Francisco, se autoproclama um impenitente crédulo no bicho humano, mesmo contra a sua vontade. Formado em Educação Física, apaixonado pelas letras e casado com Fernanda, não necessariamente nesta ordem. Quem quiser saber mais sobre o autor, leia-o, “devoradamente”.

O DIA EM QUE O CIGARRO VIROU FUMAÇA Georgino Neto Rememorar arroubos juvenis, fuçando o clichê literário chamado baú de memórias, nunca se dá impunemente. Lembrar quem fomos um dia pode ser extremamente perigoso, pois que desperta em nós desejos latentes que com muito esforço foram postos para dormir. Convém acordá-los? Arrisco dizer que sim, e mais ainda, para além de conveniente é algo necessário. Se torna uma catarse que alivia o peso das lembranças que nos forjaram. Mas o quê, exatamente, puxar do fundo deste baú? Escolhi, dentre as muitas memórias que me constituem, uma em particular: o dia que o cigarro virou fumaça. Era um domingo qualquer, destes com direito a almoço na casa da avó, encontro com os primos e uma alegria no olhar que não se explica, que não se entende. Enfastiados pela macarronada suculenta, e mais ainda, pelo arroz doce inigualável de D. Dinorah, as pessoas foram buscando algum canto que lhe dessem alento ao peso do cometimento do capital pecado da gula. Alguns retornaram para as suas casas, outros foram se aninhando por ali mesmo, nos quartos espalhados pela morada do Coronel. Nós, meninos cuja energia não se abalava por qualquer pecado, continuávamos por ali, a incomodar o descanso dos outros. Me lembro de produzirmos uma terceira guerra mundial (de mamonas com estilingue), com direito à vergalhões enormes nos braços e pernas (e para aqueles mais infelizes, nos pescoços e rostos). Depois

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de fustigado o corpo, um refrescante copo de suco de manga ubá, (colhidas diretamente do quintal de Dr. Mário Ribeiro, cujas mangueiras generosamente vergavam sobre a calçada defronte) e preparado com carinho pelas mãos trêmulas da gaga Alexina. Nova dispersão. Desta vez motivada por um gosto e um hábito que tenho desde a mais tenra idade: assistir jogos de futebol, quaisquer que sejam, e principalmente do meu glorioso Clube Atlético Mineiro, mais conhecido como o Galo mais lindo do mundo. Nem todos os primos me seguiram nesta escolha, e me vi ali, sozinho na sala de TV, à espera do início da partida válida pelo campeonato mineiro de 1983 entre o Atlético e o Valério de Rio Doce. Contudo, minha solidão não vingou muito. Na cabeceira da mesa, lugar inviolável do Coronel, que obviamente não estava, senta-se o Tio Jotaeme. Jotaeme é daqueles tios que adoram judiar impiedosamente dos seus sobrinhos, sobrecarregando-lhe de tarefas e afazeres, tornando-os praticamente escravos de suas vontades pessoais. Pois bem. Estávamos ali, à espreita do apito inicial, quando Jotaeme quis pitar o seu cigarrinho (aproveitando-se perigosamente da ausência do Coronel). Bateu a mão no bolso da calça e nada. Apalpou o bolso na camisa e neca. Olhou para mim, e acho que, vendo a minha ânsia em assistir ao jogo, mudou de ideia. Perguntou pelo sobrinho mais velho, o Heraldo Jr. Respondi que não sabia, e ele então retrucou que se eu quisesse ver o jogo, encontrasse o mais rápido possível o Heraldo Jr. Fácil. Ele, que era metido a geniozinho, estava na esquina, em uma disputada partida de xadrez com um dos Melo Franco. Voltei e apontei a localização do dito cujo. Jotaeme foi até lá e vociferou: - Vá lá no Seu Genaro comprar um cigarro picado pra mim. Heraldo Jr. respondeu, explicando que iria quando acabasse a partida. – Mas o jogo vai começar agora, e quero que você vá agora. – Não vou. Se quiser, vou quando terminar a partida. Ah, rapaz, pra quê. Só se viu peça de xadrez voando do tabuleiro, indo para longe. Um tapa que passou zunindo e acertou em cheio peões, cavalos, bispos, e pasmem, até reis e rainhas. Heraldo Jr. não se conteve (acho que estava ganhando) e começou a chorar. Ainda soluçando, pediu que eu fosse com ele. Estava tão assustado que fui (sempre tive como características a covardia e a solidariedade). Seguimos pela calçada, em uma curta caminhada, pois que a bodega de Seu Genaro (da nobre e distinta estirpe dos Barreto) ficava apenas a uma esquina de distância. Acho que peguei birra de cigarro desse dia em diante. Toda aquela confusão por causa de um cigarrinho. Um só. Não era um maço, ou dois ou três. Apenas um. Voltamos. Olhei para Heraldo Jr. e vi que o seu olhar de tristeza havia se transmutado em um olhar de ódio. No meio do caminho, ele para e pede para eu segurar o cigarro. Retira do bolso um pacotinho que eu não fazia a menor ideia do que se tratava. Pega o cigarro, e fazendo movimentos de vai e vem com os dedos indicador e polegar, esvazia parte do fumo, coloca um pozinho preto que estava no

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pacotinho, e tampa novamente com um pouco do fumo retirado. Enquanto fazia isto, ele resmungava baixo, quase em dialeto próprio, que eu me esforçava para entender. Em vão, a não ser num momento em que um “você me paga, você me paga” se tornou inteligível. Perguntei o que era aquilo tudo que ele estava fazendo. – Você verá. Foram suas últimas palavras até a casa do Coronel. Chegamos. Um estranho silêncio se fez. Jotaeme pegou o seu cigarro sem agradecer, e sentado na cadeira do Coronel pôs os pés sobre a mesa (ele estava cada vez mais ousado). O Atlético já ganhava de dois a zero, mas juro que aquele jogo não me interessava mais nem um pouco. Fixei o olhar para Jotaeme e não conseguia desprendê-lo. Heraldo Jr. se posicionou estrategicamente do lado de fora da casa, mas na janela, de modo que pudesse acompanhar o desenrolar de tudo. Cigarro aceso. Primeira baforada. Nisto o Galo acerta a trave (acho que foi o Reinaldo). E eu nada. Só olhando para o Jotaeme. Antes da segunda baforada, ele ainda disse: - Que foi, porra? Nunca me viu não? Fiquei com medo, mas esqueci de dizer que curiosidade é outra característica da minha personalidade. E olhava, sem piscar. Incomodado, Jotaeme deu a segunda baforada, e não aconteceu nada (nem a bola na trave do Reinaldo se repetiu). Desviei o olhar rapidamente para a janela, e Heraldo Jr. permanecia lá, mas desta vez com um sorriso insano na cara. Mal deu tempo para eu retornar meu campo de visão para Jotaeme, que puxando com força e com prazer a terceira baforada, viu o cigarro, num barulho de chiado longo, explodir entre seus lábios. Meu susto só não foi maior do que o próprio Jotaeme. Por dois segundos, ele ficou estático, sem saber o que havia acontecido. A fumaça em que o cigarro havia se transformado ainda não se dissipara quando ele, com os beiços pipocados, voou para cima de mim. Pensei que iria morrer. – Que porra é essa? Repetia Jotaeme sem parar. Eu, já gaguejando mais que a velha Alexina, só conseguia apontar para a janela (que nesta altura estava vazia) e tentar dizer: - Foi o Heraldo Jr., foi o Heraldo Jr. Não sei como nem porque, mas ele acreditou em mim. Com a mão freada a poucos centímetros da minha orelha direita, Jotaeme sai desembestado rua afora, e vê Heraldo Jr. parado na esquina, montado em sua bicicleta, gritando com toda a força: - Eu falei que ia ter troco, não falei? Despencou em gargalhadas pela ladeira abaixo, deixando Jotaeme tremendo de ódio e pavor, que apenas conseguia difamar a própria irmã, bradando pela Irmã Beata: FELADAPUTA!! Desconfio que Joateme tenha parado de fumar deste dia em diante. Naquele domingo qualquer, em que o Galo venceu o Valério do Rio Doce por 5x2, em que reis e rainhas voaram pelos ares e o Coronel estava ausente, um cigarro virou fumaça. Mais que fumaça, virou uma doce e engraçada lembrança, que mora no fundo do baú das minhas memórias.

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Shimada Coelho, poetisa, pretensa escritora, articulista colaboradora do Diário Digital de Minas Gerais Via Fanzine. Já teve algumas de suas poesias publicadas na versão impressa do jornal O Norte. Quando não escreve é artesã, ciber ativista e mantém os blogs Alma Nua e Projeto Adão. VALORES REAIS

Shimada Coelho Desde que o clima em São Paulo mudou as tardes tornaram tão tranquilas que tudo ao redor parece paz... O vento balança discreto as cortinas estampadas e ao longo o canto dos pássaros completam esta atmosfera de pura calmaria. É envolvida neste aconchego todo que as lembranças começam a contar histórias passadas de dias bem semelhantes a estes... Histórias da simplicidade da vida, da crença que sobrepunha-se as dificuldades e do valor da honra e do caráter. Embora fosse a última década do Militarismo, nosso bairro parecia estar em uma dimensão á parte. Todo mundo da rua tinha uma boa história de vida para compartilhar, todo mundo mudou-se para ali pelos mesmos motivos, vindos da roça, cansados da lavoura que pouco lhes rendia... O galo avisava a todos o raiar do Sol e todos os outros da vizinhança confirmavam o novo dia. Ainda deitada na cama a certeza do amanhecer só vinha com o cheirinho de café perfumando a casa toda. Ainda com os cabelos desgrenhados, chegava na cozinha esfregando os olhos. Minha mãe mais uma vez lembrava para lavar o rosto e escovar os dentes antes de se sentar à mesa. Seguia para o banheiro sem tirar os olhos da mesa simples, como se desejasse memorizá-la para sempre: uma tolha xadrez em cores mistas em tons pastéis; o bule grande de café onde se podia ver a fumaça

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saindo do bico como que dançando; a enorme caneca de leite espumado que a princípio era comprada em garrafas de um sítio que madrugava para a ordenha logo depois eram vendidos em pequenos sacos plásticos; um bolo de fubá perfeito apesar da forma toda amassada; a 'bengala', um pão com sabor semelhante ao nosso conhecido pão francês mas cinco vezes mais longo. Sempre passava a mão no rosto para cima, empurrando os cabelos para trás, apagando os sonhos ruins pois, acreditava-se que passar a mão na própria cabeça após acordar fazia-nos esquecer os sonhos... Escovava os dentes olhando para o espelho, sem pensar em nada, olhando-me nos olhos, sem nada querer, sem planos, apenas ouvindo os sons da manhã. A mesa da cozinha sempre me parece um local sagrado e a cerimônia era comer dividindo o alimento. Ainda hoje não me agrada a sala de jantar... Prefiro que todos se reúnam na cozinha onde quem prepara a comida não fica só e pode participar das conversas. Meus pais comentavam seus planos para o dia enquanto o rádio tocava modas de viola na mesma estação de sempre. Ao ouvir a voz de Zé Betio me perguntava o que seria de nossas manhãs se ele não falasse mais... Minha irmã molhava o pão na caneca de Ágata com café e comia despreocupada de tudo como se ainda estivesse dormindo e sonhando. Nunca gostou de leite. Nem de cebola. Os cachorros sentavam-se à porta esperando que alguém lhes jogasse algo para comer. Saíamos da mesa e meu pai nos levava para o quintal dos fundos enquanto minha mãe tirava a mesa e se preparava para limpar a cozinha pois em seguida já iria preparar o almoço. No quintal, uma horta repleta, algumas árvores frutíferas o Chuchuzeiro formando uma tenda carregada de chuchus, galinhas, pintinhos, patos, jacús, todos soltos pelo quintal onde também passeavam gatos e cachorros. Meu pai nos lembrava a porção de milho que deveria ser moído no moedor manual onde era preciso girar várias e várias vezes a manivela para fazer a quirela para os pintinhos. Trocar a água das aves, varrer o chão de terra e depois, seguir para o fim da rua ainda sem asfalto para colher mato para os coelhos. Meu pai seguia para o trabalho e ficávamos eu e minha irmã por ali no quintal, procurando o portal de nosso mundo de imaginação. Por muitos anos não tivemos TV e quando enfim meu pai conseguiu uma, haviam os horários específicos para assisti la. Novelas nem pensar! Os filmes do Velho Oeste eram permitidos dependendo da hora e eu gostava do seriado Os Pioneiros. Desenhos aos fins de semana ou se eu ou minha irmã estivéssemos acamadas. A faixa etária determinada pela censura era respeitada. Naquele tempo, não havia essa variedade de distrações que chamam de diversão. Então,

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nosso dia era para criar um brinquedo com latas ou tampinhas de garrafa, colocar nome nos animais do quintal e conversar com eles, fazer 'capucheta' - uma pipa sem vareta feita de jornal - seguir borboletas, fingir ser as bonecas que se aventuravam no meio das plantas do jardim. O dia passava e nem sentíamos. Ali, mergulhadas no nosso mundo não havia Tempo/Espaço. Não haviam os problemas que nossos pais atravessavam. Não havia escassez de nada nem falta de dinheiro. Não havia pobreza, desconfiança, medo ou perigo. O que havia acima das nuvens não era o que hoje se explica. Era o que quiséssemos que fosse. As longas filas das formigas eram pessoinhas pequenas unidas para o trabalho. As plantas podiam ouvir o que dizíamos e se observássemos bem elas podiam responder. Uma lagartixa morta era um ser vivo que perdeu a vida do mesmo modo que gente então, enterrávamos no jardim com direito a cruz, flores e oração. No nosso céu entravam formigas, lagartixas, cães, gatos, todos os animais, não apenas pessoas. Na hora do almoço, engolíamos a comida com pressa para continuar as brincadeiras. Ao fim da tarde, haviam brinquedos, folhas de caderno, latas espalhados pelo quintal. Minha mãe gritava na porta para que tudo fosse recolhido e guardado porque era hora do banho. Lamentávamos pedindo pra brincar só mais um pouquinho. Esquecíamos de tudo e novamente ela gritava à porta. Juntávamos tudo fazendo planos para continuar a brincadeira no outro dia que nunca era terminada porque sempre havia uma nova. Escurecia e olhávamos o Sol 'indo dormir'. Queríamos ver a Lua chegar pois, por um bom tempo não sabíamos de onde ela vinha, mas o banho nos esperava. No jantar retornávamos todos juntos para a mesa da cozinha. Meus pais falavam das coisas feitas durante o dia, das contas pra pagar, do que precisava ser feito, desfeito, refeito. Meu pai não se cansava de pedir para minha mãe não lavar a louça e deixar tudo como estava porque os anjos e os espíritos comiam pelo cheiro. A luz de vela, comíamos laranja ou amendoim em casca, e enquanto minha irmã e eu nos distraíamos fazendo sapatinhos com as cascas de amendoim ou dobrando as cascas de laranja para que espirrasse na chama da vela, meu pai contava histórias de assombrações ou de suas aventuras na cidade natal. Embora distraídas, ouvíamos tudo e ás vezes, parávamos para fitá-lo diante do suspense que ele conseguia criar. Ás vezes, pela porta aberta alguns vizinhos chegavam. Os quintais sem muro eram atalhos de uma casa para outra. Já chegavam rindo e eram convidados para entrar, tomar um café e 'prosear'. Ouvíamos mais histórias sem nada dizer, apenas era permitido ouvir. Não por

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opressão mas por respeito as palavras e experiências dos mais velhos. Ouvíamos até o sono bater, até a hora de ir para a cama. O mundo mudou muito. Nem sempre sabemos o nome do vizinho do lado e ás vezes, uma vez por ano é um vizinho novo. As crianças correm de medo quando raramente uma borboleta voa sobre o jardim. Elas não enxergam os bichinhos que se formam nas nuvens, não riscam o chão de giz para desenhar a 'Amarelinha', não podem pegar chuva, não podem dançar com o vento, nem descer a rua em alta velocidade em carrinhos de rolimãs... Elas vão sendo condicionadas a quatro paredes, com babás eletrônicas que mostram a face e a voz dos amigos que não podem brincar na rua por causa dos assaltos, dos viciados, das más influências... Apesar da infância difícil, foi naquela vidinha simples que aprendemos a respeitar os mais velhos, os animais, a Natureza, acreditar em Deus, dar valor ao pai, a mãe e a família. Comia-se o que havia e ainda dava-se graças por ela. Vestia-se e calçava-se o que tínhamos e o que contava é que era o melhor pois foi feito pela mãe. Não, as pessoas não eram acomodadas e conformadas com a própria sorte. As pessoas sabiam o real valor das coisas e o que de fato é importante para ser feliz!

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Fernanda Belotti (de Azevedo Impelizieri) Nascida em 14 de Julho de 1964 em Belo Horizonte, filha de Arnaldo Impelizieri e Letty Maria de Azevedo Impelizieri; Casada com Cláudio Belotti, tem um filho de nome Bruno e vive na Suiça, em Lugano. Formada em Pedagogia na Universidade Newton de Paiva, fala e escreve o italiano e recentemente terminou o curso de Psicologia Generativa com especialização em Gestão de Grupos no Instituto Ricerche di Gruppo (LU). Trabalha em um Projeto de Integração de Mães e Crianças Estrangeiras Refugiadas. VENDAVAL Fernanda Belotti Vou correndo pelas ruas ansioso para te encontrar. Vejo-te numa curva do caminho, já mais calmo me aproximo, te beijo e acaricio seus cabelos despenteados ao meu toque estremecido de desejos. Sinto seu hálito morno e seus olhos me encontram em uma lágrima, e essa emoção me entrelaça triste, com medo de te perder. Corremos juntos na mesma direção, mas o que eu queria mesmo era sentir sua força que empurrasse com ardor o meu desejo insaciável do seu corpo, dos seus pelos arrepiados, seus cabelos em desalinho e sua boca seca por cada beijo meu.

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Meus braços não mais resistem e te abraçam com paixão desenfreada e minhas pernas procuram as suas que me evitam com seus passos firmes, insistentes e ligeiros a me abandonar descendo a escadaria da escola. Giro-me furioso arrebatando folhas e galhos, batendo portas e janelas ao imaginar seus pensamentos que não buscam os meus. Persistente eu grito seu nome e te vejo na janela olhando o muro pichado com cores de liberdade. Seus olhos procuram o céu azul e eu lá fora esperando que você saia decidida a se entregar para mim, mas é tudo uma ilusão e dessa vez a deixo ir, envolvida em outro abraço, com lábios molhados de outros beijos, os cabelos penteados e um sorriso no sétimo céu que venceu o passageiro vendaval da minha juventude.

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Cláudia Colen - Formou-se Comunicação Social em 1986, na PUC do Rio de Janeiro. Fez mestrado em marketing na Universidade de Buckingham, Inglaterra (2007-2009) e pós-graduação em tradução (português-inglês) na Universidade de Westminster/Institute of Linguists (2001).Trabalha atualmente como consultora de marketing, professora e jornalista e é membro da Academia Feminina de Letras de Montes Claros. Entre 1997 e 2010 trabalhou na Royal Academy of Arts (Academia Real de Artes de Londres). Foi tradutora voluntária da Associação Brasileira no Reino Unido e correspondente em Londres para o Jornal Correio Popular, S.Paulo. Começou a carreira jornalística em 1990 como repórter de televisão da Rede Globo, depois de trabalhar por quatro anos como redatora publicitária. JUVENTUDE SE CURA COM O TEMPO? Cláudia Colen Juventude deve ser um estado de espírito mais do que propriamente um estágio da existência definido pela idade. É possível que muita gente perceba quando ela começa, no embalo inspirador da adolescência, das primeiras paixões e amizades, no brotar da vontade de sair pelo mundo e de ser protagonista da própria vida. Ainda não sei se este estado espírito, eventualmente, nos abandona por completo. No início dos anos 80 fui estudar comunicação social na PUC do Rio de Janeiro. Saí de Montes Claros aos 18 anos para amadurecer numa cidade fervilhante, que parecia desafiar com alegria o desgosto social causado pela crise econômica e hiperinflação, num período pós-hippie em que a transição da ditadura para a democracia era discutida nos pilotis da universidade, na praia, nas manifestações de rua. Muitos que frequentavam a faculdade pertenciam à nata da

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sociedade carioca, mas outros como eu, sem grana, morando de favor e inseguros com relação ao futuro, não sabiam nem como iriam pagar as mensalidades que subiam assustadoramente todos os meses. A inflação não perdoava e o dinheiro que eu recebia de casa só encolhia. Tínhamos que ter um despojamento inimaginável nos dias de hoje para sublimar as dificuldades, insistir no propósito de estudar e ser feliz apesar das circunstâncias. E havia o mar para lavar a alma. Bastavam duas calças jeans, camisetas, um par de tênis e sandálias de borracha. Quem não podia ser “patricinha” tinha que ser “descolada”. Criar os próprios acessórios e se contentar em usar o mesmo biquíni até acabar. Cozinhar o arroz e o feijão, aproveitar as “xepas” da feira de rua e adorar pão com manteiga – o que até hoje, eu adoro. Consegui uma bolsa de estudos oferecida pela vice-reitoria comunitária da PUC aos alunos carentes. Os que vinham de fora tinham mais facilidade para conseguir a bolsa, caso tivessem boas notas, porque as despesas com moradia, alimentação e transporte podiam ser mais facilmente comprovadas. Fui salva por uma assistente social que logo se simpatizou com a minha situação. Todos os semestres ela avaliava o meu progresso escolar e confirmava que sem aquela bolsa eu não poderia continuar os estudos. Fazia tudo para não decepcioná-la e valeu à pena. Quando terminei a especialização em jornalismo, ela aceitou estender a bolsa por mais uns meses, para que eu também concluísse as disciplinas de publicidade me formasse com dupla especialização. Muitos “anjos” aparecerem ao longo da minha vida e, graças a eles, mantive sempre a índole otimista e batalhadora, desafiando junto com meus amigos a vida dura que insistia em minar os sonhos da nossa geração. E ela gritou. Tirou da garganta tudo o que a geração passada não podia dizer. Muitas vezes tachados de “rebeldes sem causa”, nós jovens, usávamos o “besteirol” carioca como vingança. Curtíamos também a boa música popular brasileira, os clássicos do rock n’roll, a Rádio Fluminense FM, lotávamos a sala da Funarte e o gramado do Parque da Catacumba nos finais de tarde aos domingos, para assistir belíssimos shows instrumentais, gratuitamente. Os “duros” antenados não perdiam essas oportunidades. Saíamos a protestar pelas eleições diretas, a bater panelas nas manifestações chamadas de “panelaço” contra a crise econômica e frequentávamos os comícios na Cinelândia. Certa vez, trabalhando num restaurante na Dias Ferreira, Baixo Leblon, distribuí tampas de panelas aos frequentadores quando uma dessas passeatas tomou a rua. Fomos todos para a janela fazer barulho. O espírito carioca é irreverente e na PUC, tanto os alunos ricos como os pobretões comungavam da responsabilidade de lutar pela democracia, pela liberdade de expressão e igualdade social. Protestar era o nosso papel. Havia sim, os chamados “alienados”, mas eu fiz amizade com gente de todas as tribos.

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Vimos Leonel Brizola se eleger governador, a construção dos CIEPs, do Sambódromo (ideias de Darcy Ribeiro, com projetos de Oscar Niemeyer), tivemos professores maravilhosos, grandes nomes do jornalismo brasileiro, da publicidade, rádio e cinema. Comunicação Social era um curso ainda novo e nós estudantes de jornalismo e publicidade éramos vistos, às vezes, como agitadores sem conteúdo. No final dos anos 70, Jô Soares já havia criado uma personagem que se dizia “comunicóloga da PUC” (ou melhor, da “poohc”, com aquele sotaque carioca), brincando com a suposta frivolidade da nova profissão. Na verdade, as provas eram nada fáceis. Não havia internet, mas a indústria das cópias Xerox (já que os livros eram caros) funcionava a todo vapor nas universidades. Líamos exaustivamente, compreendíamos pela metade as teorias da comunicação que só fariam sentido em nossas cabeças algum tempo depois. Púnhamos a Rádio PUC no ar durante o intervalo de aulas – a programação, que ia de Heavy Metal ao Jazz, nem sempre agradava aos alunos de outros cursos. Isso sem falar nos acidentes “experimentais” dos aspirantes a locutores e repórteres. Pouco nos davam atenção. Não sei se por implicância ou porque éramos chatos, hiperativos ou insignificantes mesmo. Nossos jornais eram distribuídos pelo campus (cada turma produzia o seu, por volta do sétimo período), às vezes recebidos com interesse, outras com “quase desprezo”. Ignorados na maioria do tempo, gozávamos de alguma liberdade para “pintar e bordar” e de vez em quando, atraíamos a atenção da mídia profissional. Lembro-me de uma equipe de tevê da cidade cobrindo um “despacho ” no meio do campus, em que a oferenda era o material quebrado e obsoleto do departamento de comunicação. Vestidos de pais e mães de santo, alunos do oitavo período protestavam contra os cortes de verba para a remodelação do laboratório. Outro fato polêmico foi uma capa de jornal em preto e branco, com uma foto de alguém não identificado fumando um cigarro no escuro. A manchete era “Pela legalização da maconha”. Detalhe: sob as regras da universidade, toda publicação estudantil teria que exibir no expediente o nome do editor responsável, o reitor da universidade. E foi assim que em meados dos anos 80, o Jornal do Brasil publicou matéria e a foto de capa do “jornalzinho” com o título escandaloso, se não me engano, “estudantes da PUC defendem a legalização da maconha”. Não foi o jornal da minha turma, mas o fato de ter ganhado espaço no Jornal do Brasil, encheu de orgulho os inconsequentes “rebeldes sem causa” do curso de comunicação. Estudar era a minha forma de justificar a liberdade de morar no Rio de Janeiro, era o propósito que influía em minhas escolhas, resguardava o senso de responsabilidade para que aqueles tempos difíceis definitivamente valessem à pena. Valeu. Terminada a faculdade, trabalhei por outros quatro anos no Rio como redatora publicitária e redatora de projetos, até optar pelo jornalismo de TV.

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A vida profissional que se seguiu foi igualmente enriquecedora tanto no Brasil como na Inglaterra (onde continuei a estudar e trabalhar por quase duas décadas). Pelo meio, as mesmas agruras e alegrias que todos têm. Namoros, casamento, perdas, conquistas, descobertas, desafios emocionais, profissionais, dupla nacionalidade, viagens, idas e vindas... Se a juventude passou, não deixou bilhete de despedida.

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Cláudia Cardoso nasceu em Belo Horizonte, em 07 de maio de 1964. Formou-se em Administração de Empresas e Ciências Contábeis, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC/MG e é Mestre em Administração Rural pela Universidade Federal de Lavras – UFLA. Sócia Benemérita da ANELCA – Academia Nevense de Letras, Ciências e Artes. Trabalha como analista numa empresa da administração indireta do município de Belo Horizonte. JUVENTUDE DE VERSO EM VERSO Cláudia Cardoso A vida, como um poeta, segue escrevendo versos. Palavras que ora rimam com alegria, ora com dor... Na menina, aos doze anos, desperta o relógio biológico e, justo no dia do seu aniversário, como um presente desejado, a primeira menstruação. Aos poucos, põe de lado as bonecas e vai se fazendo moça em meio às curvas, pelos perfumes, seios, delicadezas e sentimentos - tantos, confusos, exacerbados pelos hormônios, duais... Choro e riso sempre presentes, intensos, profundos... Dói crescer! Final dos anos 70. A juventude da época frequenta discotecas da moda influenciada pelo filme “Os Embalos de Sábado À Noite" e pela novela "Dancin' Days". A deliciosa descoberta do próprio corpo no ritmo da dança, a sensualidade dos contornos à meia luz, as sensações, os cheiros, os olhares... Foi quando aconteceu o primeiro

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beijo, um susto, um repente, uma sensação inesquecível, o coração aos pulos, a quentura... Ele, o dono dos olhos mais verdes que já se viu... Ela, preocupada com sua imagem, vitimada pelo padrão de beleza que nunca alcançou... Dói ser diferente! Precocemente entra na faculdade. Mundos emergindo e ela não se sente preparada para o novo formato de escola, entretanto encanta-se pela iminente liberdade, pelas novas amizades e pelas sensações das mãos dele sob seu vestido, passeando por suas curvas, visitando lugares antes nunca permitidos... Descobre a paixão e todas as delícias que acompanham esse momento. Olhos dele continuam de um verde nunca visto, mas não tem mirada só para ela, vislumbram olhos outros que não só os dela... Dói apaixonar-se! Aos vinte e poucos anos, muda de cidade em busca de novos desafios. Vive toda sorte de situações, dentre elas dividir a moradia com outras quatro garotas. O convívio enriquece. No balanço final, ri muito mais que chora! Apaixona-se... Deliciosa surpresa, um professor, homem maduro, e ela então conhece o amor. Faz um mergulho profundo, fica una com ele, transborda bem querer... Acontece o desencontro! Os planos dela não cabem em sua vida, desenlace, tristeza, desencanto... Dói amar!

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L Luiz Roberto Nascido em BH em 27/05/1948, mas com genética do Nordeste de Minas. Sou médico neurologista e professor Adjunto na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, nas disciplinas neuroanatomia e neurologia. Torço para o Galo e sou tio do Cris Jilvan (esse último dado, sim, é o mais importante). A Bunda da Arinda. Luiz Roberto Ela era linda! Morena... Grandes olhos verdes e um sorriso, que mais parecia uma pintura, de dentes tão lindos. Chamava-se Arinda. Um nome tão raro que eu nunca havia ouvido e também nunca esqueci. Os olhos eram raros, os cabelos eram raros, a boca e os dentes eram raros. E como eram... O seu jeito era de quem queria produzir uma revolução por onde passava, não sei se estou certo em pensar assim, mas tenho certeza que ela sabia o alvoroço que produzia na minha mente adolescente”. Este relato me foi feito por um amigo. Um homem sério, inteligente, culto e muito bem sucedido na vida. Ele é um importante industrial do fecundo e poderoso interior de São Paulo e me fez o relato em público. Público que incluía a sua bela esposa, diga-se de passagem. A falta da necessidade de falar em of mostra o quanto ele estava sendo sincero e não precisando esconder, não precisava de castigo. Este meu amigo, na sua adolescência (que já me deixa tão invejoso), era auxiliar na farmácia de um dos seus tios. Se me disse o nome dele eu não me lembro,

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mas o descreveu como um homem fino e educado, sisudo e exigente. O tio ficava boa parte do tempo na porta da farmácia, metido em um linho impecável e chapéu, sempre cumprimentando a todos que passavam com um leve aceno da cabeça. Queria se certificar que tudo estava bem, que os clientes estavam sendo bem tratados ou fazia aquilo simplesmente por prazer em ser educado. O que o tio não sabia é que quando a Arinda, com todo o seu conteúdo, chegava na farmácia, tudo mudava. O ar ficava mais puro, o cheiro fazia o cérebro tontear, o olhar fagueiro fazia a imaginação do meu amigo voar alto. Ele não precisava do salário de balconista da farmácia, só precisava estar lá para ver e sentir a linda Arinda. Se fosse hoje, ela seria atriz na Globo, seria vencedora do BBB, seria capa da Play Boy, seria esposa de um dos Ronaldinhos, seria fenômeno como diria um outro grande amigo meu. Às vezes ela adoecia... Isso mesmo, com todo aquele poder, ela também adoecia. Graças a Deus que adoecia... Bom mesmo era quando adoecia um pouquinho mais gravemente... O ótimo doutor nas ciências medicinais que, há muito já clinicava na cidade, preferia nessas situações, receitar medicamentos por via intramuscular. O meu amigo, nos dias que a Arinda adoecia, não saia da farmácia para nada. Que almoço que nada! O meu ofício é de utilidade pública, dizia. Como posso pensar em almoçar quando sei que a Arinda vai precisar ser medicada. Escola? É evidente que ele não ia às aulas nesses dias. Se não conseguia almoçar, muito menos ir à escola... Ficava ali, horas e horas de plantão. Esperava por todos que precisassem dele, principalmente ela! Arinda... A linda, estonteante, e voluptuosa morena dos olhos verdes! Ela deixaria a Juliana Paes no bolso. Sem mentira nenhuma! Luiza Brunet? Quem seria ela para chegar aos pés daquele monumento que era a Arinda! Podem pensar em qualquer mulher de hoje. Mesmo assim ela as poria no bolso... E valia a pena ficar sem almoço e muito mais ainda, perder as aulas do dia. Valia a pena sim. A Arinda, por estranho e maravilhoso capricho, só gostava que lhe fossem aplicadas injeções na bunda! E ele me disse com todas as palavras que as aplicava... “Sabe? Sou cumpridor dos meus deveres e eu estava ali para isso!” Disse-me, abrindo um largo sorriso, o sortudo...

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ERA ISSO! Luiz Roberto Aconteceu em 1975. Lá se vão vinte e dois anos. Eu, acadêmico de medicina, era na verdade pouco mais que um adolescente. Tinha todos os sonhos dos adolescentes somando-se ainda muita coragem. Coragem que cegava para as limitações, e dentre essas, a mais mutilante de todas: imensa falta de dinheiro! Apaixonei-me como era do meu direito e comecei a poupar tudo que conseguia amealhar. Havia me apaixonado pela rainha da Inglaterra, ou se não, por alguém muito próxima disso. Ela era linda, rica, filha de ex-secretário de estado... Uma paixão própria de um homem corajoso! Após meses de sonhos infantis e adulta vontade férrea, consegui levar minha fantasia para um jantar à luz de velas. Subi pela Rua Grão Mogol cantando a minha fantasia, como dizia o poeta da nossa MPB. E aos trancos e barrancos... Um chute aqui, outro ali, jogava algumas pedras para fora do passeio. Parece mentira, mas mesmo no Sion, existiam pedras, verdadeiros cascalhos espalhados pelo passeio. Parei de frente a aquele casarão da Rua Washington. O pai, como já disse, era um senhor importante. Ex-secretário de estado. De Oliveira, cidade não menos importante, conservadora. Eu, calça de nycron marrom. Camisa? Não me lembro mais. Com certeza não era grande coisa! Preparava-me para apertar a campainha. Conferi o dinheiro, bem guardado no bolso. Equivalia a quase um mês de salário de instrutor de práticas profissionais da Universidade Católica de MG. Ela, a razão da minha fantasia, lindos olhos azuis, era pequenina e delicada... Apertava ou não aquele botão? Tremi, calafriei, apertei! Em poucos minutos descíamos a Rua Grão Mogol. A minha fantasia já era realidade dentro de um vestido semilongo, mangas compridas, cinza, austero, quentinho. E os olhos? Lindos e azuis. Eram reais, maravilhosamente reais! Agora, já mais relaxado, começando a dominar a situação, me fazia uma psicoterapia de urgência: “Sou acadêmico de medicina, professor dela, dinheiro no bolso, feio, mas com incrível capacidade de persuasão e além do mais, fonte do amor dela. “Apaixonei-me,” me disse entre um fêmur e um úmero naquele dia! Sou acadêmico de medicina, professor dela, dinheiro no bolso, despertei o amor dela... Sou mais importante que secretário de estado! O Restaurante, não me lembro bem, era um dos melhores com certeza. Seleção de vinhos digna daquele casal real. Ela já estava encantada! Mais apaixonada do que quando entre os ossos e também já menos tão inatingível. Aliás, já definitivamente entregue ao poder daquele homem maravilhoso e encantador que era simplesmente, eu! Garrafa aberta, taças de cristal sobre toalha branca rendada que fazia dos olhos dela os mais azuis. Um dedo de vinho na minha taça... Garçom infeliz, descuidado ou mal treinado! Olhos brilhantes, peito de halterofilista, semblante do maior e mais garboso cavalheiro do mundo, passo aquele dedo de

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vinho para os meus olhos azuis apaixonados. Em câmara lenta, com toda a graça das mulheres especiais, minha fantasia leva a taça aos lábios, deixa o vinho passear suavemente por sua língua, e, num leve estalar da língua no céu da boca: Está ótimo, pode servir! ERA ISSO!

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KARLA CELENE CAMPOS nasceu em Montes Claros, viveu a infância e a adolescência em Francisco Sá (Brejo das Almas) e a juventude em Belo Horizonte, tudo Minas Gerais. Vive atualmente em Montes Claros, mas nela persistem a velha infância do Brejo das Almas e as dores e delícias da juventude nos tempos dos Belos Horizontes. Graduada em Jornalismo pela FAFI-BH e em Letras pela UNIMONTES. Pós-graduada em Literatura Brasileira pela PUC-MG, em Língua Espanhola e Literatura pela EUROCENTER-Salamanca, Espanha. Publicou cinco livros. Em 2004 foi homenageada no Salão Nacional de Poesia - Psiu-Poético 2004. Membro da Academia Montes-clarense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros.

MEU AMIGO MAURÍCIO Karla Celene Campos Algumas vezes reencontro a senhora. Sempre que a vejo, ela me abraça. No abraço, percebo seu sorriso e seu olhar. Correspondo ao abraço, ao sorriso, ao olhar. E noto que seus olhos, ao olhar-me, veem além de mim. O olhar da senhora atravessa-me. Atinge outro universo que não sou eu. Não me incomoda; pelo contrário, me faz bem. Faz-me bem por ser um olhar que me envolve num sentimento bom. Ontem reencontrei a senhora. Soube então o motivo daquele olhar. Além do abraço, do sorriso, do atravessar meu ser com os olhos, ela avançou em palavras e me disse: “– Sempre que olho pra você, enxergo Maurício.”

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Apesar de confusa diante da confissão, minha compreensão me permitiu balbuciar, para quebrar o ar grave instalado em seu rosto: “– Muitas vezes, quando adolescentes, imaginávamos fugas. Sorte sua que não fugimos...” Minha voz soa alegre, num tom de brincadeira proposital. Rimos. Naqueles tempos, o Brejo das Almas era o nosso mundo. Nossa miniatura de paraíso, mas, ao mesmo tempo, nossa gaiola. Queríamos muito mais do que viver nossas adolescências engaiolados naquela cidade, enquanto os anos 1970 aconteciam, como um concerto de rock lá fora. Todos diziam que Maurício era doidão. E era. Todos diziam que não conhecia limites. Verdade. Acabou por pagar o preço que a desobediência às regras costuma cobrar àqueles que passam por cima das limitações que o corpo e a mente exigem e impõem. Suspendo os dedos das teclas do computador, na busca de palavras que possam definir o que era ser “doidão” naqueles doidos anos 70. As palavras, no entanto, não vêm. Não estou sabendo hoje definir o que era ser doidão... Sei que era algo condenável; que os adultos não apreciavam; mas o que me vem à mente são palavras relacionadas a sonhos, buscas, liberdades e irreverências. Maurício era muito inteligente – com isso, toda a cidade concordava. E vivia livremente seus sonhos e suas buscas. Com essa atitude poucos concordavam... (Será que isso é que era ser “doidão”?) Admirável era sua presença de espírito, comparável apenas com a do velho Almeida – outra alma livre. Não por acaso, os dois foram grandes companheiros. Maurício era um cara que não passava despercebido. Para todas as situações, tinha palavras e gestos inusitados. Expressões utilizadas por ele viravam moda e entravam em nosso cotidiano com o rótulo de “gírias do Brejo”. Assim, não é exagero afirmar que a minúscula cidade podia se gabar de possuir um idioma próprio, só seu. Era capaz de gestos surpreendentes. Uma vez, coube a ele atuar como atacante num disputadíssimo campeonato de futebol no Araês Tênis Clube. Seu time perdia feio. Nas arquibancadas, torcedores em fúria. A bola chega aos pés de Maurício num momento em que já não dava para empatar e posteriormente virar o placar. Mesmo assim, todos gritavam “Vai, Môra, chuta, Môra”. Môra, dentro do campo, simplesmente pega a bola com as mãos, coloca-a debaixo do braço direito e olha para a torcida, então boquiaberta com o gesto suicida do jogador. Ato contínuo, com a mão esquerda começa a lançar beijos: leva a mão aos lábios, beija-a e estende o braço desocupado, espalhando sucessivos beijos em direção às arquibancadas, envolvendo todos os torcedores com os

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beijos lançados... Desconcertados torcedores, que queriam gols, em vez de beijos. Ninguém entendeu naquela hora que o que o Môra queria dizer é que perder ou ganhar o jogo não era exatamente o mais importante. Algumas vezes, o importante mesmo é estar em campo. E o Maurício sempre estava – esse era seu jeito de viver intensamente. Morávamos na mesma rua. Para qualquer lugar da cidade que Maurício fosse, obrigatoriamente teria de passar na calçada em frente à minha casa. E sempre parava. E a gente conversava. O assunto quase sempre eram as grandes bandas de rock. Sensação foi quando ele invadiu a minha casa, para mostrar-me um long-play de um cara maluco demais que surgia cantando umas canções diferentes de tudo o que conhecíamos na música brasileira. Foi assim, pelas mãos de Maurício, que ouvi pela primeira vez todas as faixas do “Krig-Ha, Bandolo”, o primeiro vinil de Raul Seixas, de 1973. O título do álbum é o grito de guerra de Tarzan e significa “Cuidado, aí vem o inimigo”. Genial. Muitas vezes, Maurício foi embora do Brejo. Morava por algum tempo em outras cidades, mas acabava sempre voltando. Durante essas ausências, enviava-me cartões postais e escrevia-me cartas quilométricas. O adjetivo aqui não é apenas força de expressão, uma vez que as cartas eram quilométricas mesmo, pois Maurício as escrevia... em rolos de papel higiênico. Era comum eu receber em meu endereço, entregues por portadores de ocasiões, rolos de papel higiênico escritos. Eu já sabia e ria: carta de Maurício. Em todas elas, invariavelmente, havia um pedido: “Quando aquela pessoa chegar aí no Brejo, me escreva avisando”. Nunca o nome “daquela pessoa” era mencionado, mas eu já o sabia. Tratava-se da filha do prefeito. A moça residia em Belo Horizonte. Férias e feriados longos eram passados por ela na aldeia em que o pai era autoridade maior. O livre e inquieto coração do Maurício, que ninguém acreditava poder bater de modo especial por alguém, batia diferente por causa daquela menina. Em 1979, a minha família já deixara o Brejo. Morávamos no bairro São José, em Montes Claros. Naquele ano, voltei a ser vizinha do Môra. Junto a outros rapazes, Maurício alugou uma casa e fundou uma república na Joviniano Ramos, uma rua depois da minha. Havia na casa uma varanda. Na varanda, um canteiro que, como todos os canteiros, fora criado para receber flores e plantas ornamentais. Mas, numa república de rapazes, ainda mais tendo como presidente o irreverente Maurício, aquele canteiro, coitado, não cumpriria sua missão. Nem terra adequada para plantio havia nele;

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muito menos qualquer possibilidade da cor verde. O que havia mesmo era a terra dura e vermelha original do terreno. E, desconcertadamente, uma placa nele fincada, roubada por Maurício num jardim de verdade. Assim, a única coisa plantada no canteiro era aquela placa de “proibido pisar na grama”. O tempo foi passando, a vida dando voltas, cada um de nós ocupado em fazer seu próprio caminho. E nossos caminhos foram ficando cada vez mais distantes um do outro. De vez em quando, encontrávamos quando eu retornava ao Brejo. Naquelas ocasiões, colocávamos o papo em dia: “– Lembra que a gente adorava “Crocodile rock”, com Elton John? – Nossa! Quanto tempo tem que não escuto essa música...” Até que chegou o dia 13 de abril de 1991. Um acidente de moto tenta sossegar Maurício para sempre. Diante da gravidade do ocorrido, difícil acreditar que sobreviveria. Sobreviveu. Porém com o rosto completamente desfigurado, apesar das incontáveis cirurgias plásticas corretivas. Seu aspecto parecia não constrangê-lo, embora fosse constrangedor para quem o olhasse. Vida, porém, tem de continuar. E continuou. No Baile do Brejeiro Ausente, em setembro de 2005, Maurício convidou-me para dançar uma música lenta. Diante do seu rosto desfigurado, eu procurava agir com naturalidade, como se o que via, diante de mim, fosse o rosto do Maurício com menos de vinte anos. Algo ocorreu, no entanto, durante a nossa dança. Maurício me apertava mais do que o necessário, durante os nossos passos pelo salão. Aquilo me incomodou, e eu lhe disse: “– Você está me apertando.” Foi como se ele não me ouvisse. Repeti o comentário e acrescentei: “Se você me apertar assim, terei de interromper a nossa dança.” Ele olhou-me com um olhar estranho, não disse nada, não afrouxou o abraço, e eu então cumpri a ameaça: pedi para interromper a dança e deixei a pista antes do término da música – ele ficou lá sozinho. Foi a última vez em que vi Maurício. Vinte e quatro de março de 2006. A senhora que, quando reencontro olha-me como quem enxerga além de mim, voltava de uma viagem a Belo Horizonte. Na estrada, trânsito muito lento devido a um acidente. Fila extensa de carros em

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pista única. Bombeiros, policiais, curiosos. Um caminhão com carregamento de carvão e uma moto são os veículos envolvidos no acidente. O corpo do motoqueiro estendido no chão. Mauro, o filho com o qual viajava a senhora, reconhece, estarrecido: - Mãe, é Maurício. A primeira reação da senhora foi a de não acreditar. O filho nem tinha viagem marcada. A ninguém dissera que viajaria naquele dia. “– Quando vi que o corpo no chão era mesmo o do meu filho, o desespero foi tanto que, se tivesse uma pirambeira na estrada, eu teria pulado” , diria a senhora mais tarde. Socorrido, lutou contra a morte por mais seis dias. Mas daquela vez, a segunda, a vida não continuou. A senhora chorou durante dois anos, todos os dias, sem parar. Conhecedora da verdade de que somos provisórios, comentou, ainda no enterro: “– Daqui a seis meses, ninguém mais vai se lembrar de Maurício...” Segundo suas palavras, sempre que olha para mim, enxerga o filho. Espero que me veja aos 13 e Maurício aos 18 anos. E que estejamos sentados no meio-fio da calçada em frente à minha casa, como sempre fazíamos, e que no aparelho de som Raul Seixas esteja cantando “Eu prefiro ser esta metamorfose ambulante...” E que seja para sempre uma tarde de férias escolares. Que Maurício esteja feliz, porque a filha do prefeito vai chegar.

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Jeanne Temis. Um ser menos igual, 45 anos, cirurgiã-dentista de profissão e sonhadora por vocação. Adoro escrever, desde menina. Traduzir meus sonhos em palavras... Difícil, mas elas me vem prontas, como numa psicografia. Quando vejo os já estão na tela. Impressões do dia a dia, dor de amor, ausência de chão... Sinto-me perdida neste mundo tão normal, tão diferente de mim. Sou assim... Sinto-me meio cão, que fareja, ouve, sente mais que gente. Beijos. MENINA DAS ROSAS Jeanne Temis Menina que colhe tuas rosas num jardim sem flor... Olhar no horizonte, se perde de repente. Nada ve, só sente. Menina dos cachos dourados, colhe tuas rosas num campo sem flor. Uma a uma, ajeita no tempo, diz que isso é amor. No campo dos sonhos , colhe rosas sem flor o aroma só ela sente e diz que vem da alma da gente. Enxerga o que não se vê sente além do sentir menina, olha tuas mãos ensanguentadas esqueceu dos espinhos que vem com as rosas. Mas continua... O tempo passa... Ainda menina ,colhendo as rosas sem flor

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no campo dos sonhos, o campo do amor. Perdi os rumos de mim!! Aqui estou a deriva, no campo dos sonhos!! Menina grita, sem voz, colhendo rosas sem flor nos campos do amor.

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PORÃO DOS SONHOS Jeanne Temis Me escondi no porão não conta pra ninguém lá fora todos mentem aqui não. Tranquei a porta tá escuro mas trago a minha luz, os sonhos alimentam aqui tenho as bonecas elas tem coração falam a verdade são cúmplices. Lá fora fora do porão todos mentem pensam que sou boba que neles acredito ilusão, sei de tudo sou criança protegida no porão. Versos encantados lua vem me visitar estrela mais distante aqui também a passear Os sonhos alimentam cresço na minha loucura vejo fantasmas, príncipes, fadas penso ser uma bruxa daquelas que andam em vassouras visitam as casas tudo sabem e lançam feitiços. Enfeiticei um anjo caiu na porta do sonho abri pra ele entrar ficou um pouco voamos juntos a leveza do amor se foi soprou que volta um dia, espero... Tenho as bonecas a lua e a estrela distante

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onde mora o Anjo. Lá fora todos mentem... fico eu crescendo mais e mais na minha loucura de ser só criança no porão dos sonhos

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BONECO DE PANO Jenne Temis Nesse porão mora um anjo. Alimenta solta a criatura ama, sorri, canta encanta a leveza de ser. O maduro é indigesto personagens ruminantes... o anjo te sorri desce leve a essencia. Sonha acordado boneco de pano tem coração.

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Jose Bernardino Nascimento Filho – Montesclarense- Engenheiro. Reside em Glaucester- MA. – USA Caminhar é preciso... José Bernardino Nascimento Filho

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(Praça Demóstenes Rochester em frente a Estação Ferroviária de Montes Claros – foto dos anos 50) O pé direito e o primeiro passo. Isso é tudo que você pode saber naquele momento. A partir dai o futuro é um mistério profundo, insondável, imprevisível, cheio de aventuras, uma espiral. A cada volta completa você esta mais distante e se afastando a cada passo daquele mundo tão querido, que lhe dava tanto conforto. Quando dei meu primeiro passo em direção a estação ferroviária de Montes Claros, não sei se tive muito tempo de pensar em futuros distantes. Só pensava que iria para Belo Horizonte estudar, ser um engenheiro ou arquiteto, talvez. Tinha acabado o cientifico na E.E.P. Plínio Ribeiro e, dali para frente, a opção para mim era olhar adiante, dar um monte de abraços no Pai, Mãe e irmãos, e me preparar para uma longa caminhada. Jornada que veio me trazer ate aqui, do outro lado do mundo, quase oito mil quilômetros distante daqueles a quem tanto amo e que sempre estão apertados dentro do meu peito. Da saudade que nunca diminui, mas, às vezes, aperta tão forte que as lágrimas correm sem alarde, imperceptíveis, ardidas, salgadas. Interessante que hoje, quando penso em minha infância em Montes Claros dos anos 60 e 70, consigo ver que nos meus 14, 15 anos, esse inconformismo com a mesmice estava forte e presente. Não muito o inconformismo revoltoso, do revolucionário que mais tarde veio a despontar, quando das minhas lutas políticas por assim dizer. Era com o mundano, o lugar comum, sempre pensei em ver coisas novas, em conhecer lugares, pessoas, experiências. O desconhecido

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toda vida me fascinou. Posso dizer que de alguma forma eu sentia que minhas asas sempre foram maiores do que a minha gaiola. Lembro-me bem que desde os sete ou oito anos já descia, depois da escola e do almoço, para a sapataria de meu pai na Rua Governador Valadares. Tinha minhas obrigações. Ir ao Banco da Bahia ou Banco Econômico da Bahia, trocar algum cheque ou depositar, entregar algum sapato, tirar o gasto solado de outros, deixando-os prontos para as mãos experientes de meu pai, que ainda sabem como fazer milagres, devolvendo vida a um pobre sapato, fazendo de um pedaço de vaqueta ou pelica, raras obras primas, porque hoje em dia pouquíssimas pessoas se lembram do tempo em que se ia à Sapataria Penalva e outras tantas encomendarem aquele sapato especial para uma festa de casamento de um filho ou filha, uma formatura, ou uma bota de desenho único para desfilar na famosa exposição no parque João Ataíde. Pois foi naquele pequeno cômodo, cercado por velhos e nem sempre bem cheirosos sapatos de todas as formas cores e tamanhos que a minha janela para o mundo se abriu. Lembro-me das intermináveis conversas de pescarias e caçadas de perdizes e mateiros do seu Penalva com meu pai, Bahia Relojoeiro, Fausto takaki, Sargento Elesbão e outros. Intermináveis porque elas duravam de segunda a sábado. Na segunda, se ria dos tiros errados e dos mateiros empurrados. Trabalho dos cachorros, Corrente, Tupi, Xavante, Jóia e Princesa. Terça feira, ainda se falava de quantas perdizes foram abatidas ou do delicioso arroz com lombo do velho amigo Penalva. De quarta em diante, o único assunto era o próximo final de semana. Onde elas estão piando? Vamos à Casa Branca (nos campos dos Matarazzo)? Vamos à Lagoinha? Morro Alto? Lembro-me muito bem do dia em dei um tiro no pneu do famoso jeep (disparo acidental). Este, não era movido do lugar a não ser no sábado, hora de ir para o mato. Mas nem só de caçadas e pescarias viviam todos aqueles amigos que entravam e saiam sem parar. Cada freguês, gente fina ou nem tanto, tinha alguma coisa nova para dizer, ali se sabia de todas as noticias de política ou polícia. Os Versiani (Feliciano, Carlinhos, Tadeu) falavam da fazenda em Miralta (MG), mas o Haroldo só das namoradas. O João, com suas inspiradas dissertações jurídicas nos punha a par de tudo que acontecia no fórum. Ele sempre me intrigava com os Modus Operandi, Data vênia, Habeas Corpus, Defesa Putativa e outros termos técnicos que usava. O Helio Teixeira, que era a única pessoa que eu conhecia em condições de comprar discos. Com ele ouvia Beatles, Credence, Jimmy Hendrix e tive meu primeiro contato com o Led Zepelim. Porém, quem eu esperava impaciente era o seu Hildebrando, o carteiro, que nos trazia todos os dias depois de terminada sua tarefa, as revistas e jornais de

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assinantes que mudavam de endereço ou destinatários que já não existiam. Era difícil esperar o final do mês para receber o premio maior, a Seleções do Readers’ Digest e a Revista Geográfica. Ele sabia que eu gostava muito de ler e duvido de alguma outra criança na minha idade que lesse tanto jornal. Lia todos que vinham embrulhando sapatos velhos e ainda recebia as noticias frescas do “Jornaaal de Moons Claaaa r oooooooooooooos” e, também, O Diário de Montes Claros. Essas eram as minhas janelas para o resto do planeta. Não demorou muito para eu perceber que o fim do mundo era muito mais longe do que o campo de futebol do Cassimiro de Abreu, o Rio do Melo onde às vezes íamos pescar ou os “Paus Pretos” para buscar pitomba. Nessa época, meu mundo inteiro cabia dentro do triângulo formado pelas ruas Corrêa Machado (nossa casa), a escola normal (E.E.P.P.R.), na Avenida Mestra Fininha e a sapataria de meu pai na Rua Governador Valadares. E que mundo cheio de riquezas! A Escola Professor Plínio Ribeiro, era o meu pote, com professores como Dr. Simeão Ribeiro (Química) Waldir Rametta (Matemática), responsáveis por matar a minha sede de saber. Simeão Ribeiro era um daqueles professores que além das aulas no laboratório, nos falava de suas pesquisas; de antropologia, folclore ou tabela periódica com a mesma paixão e sabedoria. Sempre quis conhecer mais e melhor sobre sua teoria das escritas Vikings achadas em algum lugar no norte de Minas e nunca mais encontrei alguém que já ouvira falar disso. Waldir Rametta sabia como fazer o aluno sentir amor por cálculos e equações. Ate hoje me lembro que a derivada da soma é igual à soma das derivadas ou que o logaritmo natural de 1 = zero, o que devo a ele. E ainda tinha a mestra Yvonne Silveira e suas letras. Nem sempre paramos para pensar como professores deixam profundas lembranças em cada um de nós. Desde Dona Lourdes Oliva no Grupo Aristides Porto, passando pelo “Padrão Gonçalves Figueira”, E.E. Plínio Ribeiro, Sandra Starling na FAFICH, Chiquinho (outro mestre da matemática) e Virgílio Guimarães na FACE (UFMG) da Rua Curitiba em Belo Horizonte ate aqui, na Harvard, em Massachussetts. Todos eles, de alguma forma, colocaram no chão uma pedra da pavimentação do difícil e longo caminho que todos nós temos que trilhar. Não poderia deixar de lembrar também do grande “Piloto”. Com ele tive minha orgulhosa trajetória na fanfarra, de mero tocador de surdo ate a linha de frente, no tarol, numa quente manhã de setembro nos desfiles do dia da Pátria. Tocava junto com um de seus filhos, o Janilson, o outro era o Jaime. Emboramente não possuir a pretensão de me passar por escritor ou cronista, somente os anos vividos na Escola Normal dariam um belo livro. O Grêmio estudantil, com o jornalzinho (VOCE – Vanguarda Organizada estudantil) e minhas primeiras ingênuas idéias subversivas e socialistas, o Teatro com a peça “VOMUPOPONO” (você, musica, poesias, poetas e nós), nossa Liege, a musa, o Grupo Raízes, e também as grandes aventuras e estripulias sempre com o famoso delegado Noraldino

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para nos aterrorizar. Meus amigos, meus queridos amigos, foram muitos e muitos já se foram, mas alguns serão para sempre inesquecíveis, mesmo que nunca mais os venha a encontrar de novo. Entre os preferidos, estão o Francisco Mauro (Dentinho), Flávio Maurício, Ernani Freire, O Chico, Suzana, Sílvia, Vamberto, Marlene e a Fátima Lima. A Fátima Lima era a amiga com quem eu conversava muito, mas que nunca ficou sabendo da minha paixão por ela, pois nunca falei. E por falar em arte, como era rico aquele tempo. O Konstatin Kristoff morava na casa em frente à escola e era um dos nossos preferidos pelo inusitado e revolucionário. Godofredo Guedes que víamos quase sempre fascinados pela sua assinatura, dois G’s com as pernas bem compridas. Era um G.G. diferente, gráfico, único como deveria ser todo artista. Um pouco depois e tínhamos a feira na Praça da Matriz. Ainda no tempo do viveiro dos colibris, feira de arte com o que havia de melhor na região, o búlgaro Konstatin com suas explosões de cores em contraste, o acadêmico G.G., também o Wanderlino Arruda. Naquele tempo eu já pintava escondido; forma, cor e composição sempre me fascinaram. De longe admirava e tentava absorver tudo que via naqueles mestres, queriam poder levar alguns daqueles quadros para casa, ter mais tempo para tentar entender a linguagem, a emoção que o artista estava passando, mas nem em sonho teria dinheiro para comprar um quadro daqueles grandes artistas de minha adolescência. As pescarias no rio Canacy, o juvenil do Ateneu com o Bonga, as viagens de bicicleta para apanhar as deliciosas mangas em São Geraldo, os pequis da Lagoinha... Caminhar é preciso... Mesmo longe desse meu árido e tão saudoso sertão, mesmo longe das trilhas empoeiradas que trilhei com o amigo Tuca Porreta, ainda continuo caminhando... .

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CANACY E URATINGA. Jose Bernardino Nascimento Filho Era muito comum naquele tempo a gente pegar o trem de manhãzinha em Montes Claros e ir passar o dia inteiro e ate dormir em Canacy ou Uratinga. Ficava-se o dia inteiro tomando banho de rio e pescando. No final do dia, voltávamos para a plataforma para embarcar de volta. Era interessante o ritual, varas e tralha de pesca iam amarradas do lado de fora da composição. Tinha que se fazer um bom nó de laçada, daqueles que não desamarrariam sozinhos, mas que seriam facilmente desatados quando se chegasse ao destino. A parada não durava mais do que poucos minutos, assim que se aproximava da plataforma, as bolsas, sacolas, mochilas eram atiradas para fora e era comum ver os mais corajosos descendo do trem ainda em movimento, correndo, desatando as varas que iam caindo no leito de britas. Uratinga era um desses lugares que, para nós crianças, permitiam a realização de uma grande aventura, sem contar as deliciosas jabuticabas para encher latas. Lembro-me que em uma dessas, ficamos todo o dia na beira do rio pescando, nadando, brincando e correndo. À tarde, já cansados e sem muita vontade de ir embora, demoramos mais do que o previsto para juntar tudo e caminhar de volta para a estação. Íamos andando o mais rápido possível com os adultos falando da hora e pedindo que andássemos mais depressa. Para o nosso espanto e horror, o trem apitou longe na curva. Um corre-corre de desespero, com os pais não querendo deixar as crianças para traz. Foi um vamos, vamos, de pânico, mas não teve jeito. Quando já estávamos a algumas centenas de metros da plataforma a condução férrea começou a mover-se e, naquele vapt-vupt foi pegando velocidade e aumentando nosso desespero. Já estávamos sem fôlego para correr, fomos parando de um a um, olhando para a cara do outro, sem saber o que fazer. Já era tardinha, quase noite e o próximo trem aconteceria no final do outro dia. Depois de muita conversa e alguma discussão entre os “grandes”, chegaram à conclusão que iríamos dormir perto do rio e, de manhã, voltaríamos para a estação na esperança que passasse algum carro; se não, teríamos que esperar ate o fim do dia para pegarmos normalmente o trem de regresso. Caminhamos de volta, se arrumou algo para comer, ainda tinha alguma coisa e peixe era o que não faltava. Depois de mais algumas brincadeiras fomos tentar dormir. Foi uma noite daquelas...

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NOSSO ANJO SIDNEY. Jose Bernardo Nascimento Filho Antes do tempo das televisões, computadores e vídeo games, tudo o que tínhamos para brincar encontrávamos nas ruas próximas a nossa casa. Era normal depois da escola e do almoço, ficarmos na rua até 22 horas, nos envolvendo em aventuras sem fim. Entre essas, uma das maiores, ou o maior desafio, era ir ate os rios, do Melo, Carrapato ou Pai João para nadar. A mim era proibido acompanhar os amigos, talvez porque fosse um verdadeiro machado sem cabo na água. Vez por outra, com uma pessoa de muita confiança, era liberado. As tentativas frustradas do seu Mario Norberto falando que era fácil aprender a nadar. Era só bater os pés e os braços. Isso porque seus filhos, Belo, Carlucio e ate o Renato já eram como peixes dentro dágua. Alguns quilômetros de caminhada, às vezes com uma parada no Matadouro Otani para um pedaço de linguiça Maria Rosa, algumas horas no rio e a volta sempre alegre, subindo o morro. Mas numa dessas aventuras, o nosso mundo de sonhos infantis ruiu de vez. Não me encontrava no momento da via de fato. Estávamos na Rua Melo Viana brincando como quase sempre, quando alguém chegou correndo ao Destak Bar, da carnavalesca Dona Linda, gritando... O Sidney afogou! Ele era um dos nossos queridos amigos, filho de criação da família Silva. Acho que não tinha mais que dez anos... Um pouco mais gordo que a maioria de nós, criança muito alegre, cômica, divertia a todos com seu talento para mexer com os músculos da barriga como se alguma coisa estivesse se revirando lá dentro. Todos tentavam, mas acho que só o Zeca, seu irmão, conseguia imitá-lo. Dona Linda (Aurinda Silva) foi a pessoa com o maior coração que já conheci, sempre sorrindo, mãe de tantos filhos e uma espécie de madrinha para quase todos nós da vizinhança. No minuto que alguém chegou trazendo a noticia, começamos a correr pela Rua Corrêa Machado abaixo em direção ao rio do Melo. Com certeza éramos umas vinte pessoas entre adultos e crianças pelas ruas. Genésio era um desses. Gente do morro, como todos nos éramos chamados, que se mudou para o Rio de Janeiro por um tempo, alguns meses, e já voltou carioca. Todo cheio de gírias e trejeitos de malandro da Mangueira. Ele correndo com os tamancos enfiados nos braços, quando ninguém mais usava tamanco naquele tempo. Alguns entraram num carro, poucas pessoas os tinham na época. Chegando ao rio, nós, as crianças, ficam no barranco só olhando enquanto os homens e rapazes que sabiam nadar procuravam pelo Sidney rio abaixo.

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Não sei por quanto tempo este drama durou, mas, me recordo das palavras que acho nunca vou esquecer. O Muleque esta aqui! Aquele não era o nosso vocabulário do dia a dia, mas de Genésio com o seu carioquês. Eles estavam caminhando de um lado para outro no curso da água, explorando o fundo com os pés porque a lâmina turva não permitia que se visse nada. De repente o Genésio parou, tinha sentido no pé o contato com o corpo sem vida. Depois daquelas palavras, aqueles longos minutos, toda a realidade se confundiu em um pesadelo. Ate hoje, uns quarenta e cinco anos depois, as cenas me vêm à mente como pedaços de filme em preto e branco. O choro, os olhares, o medo, a tensão, o vazio o pensamento confuso. O corpo sendo levado nos braços dos irmãos. É como se um pedaço da fita tivesse sido tirado do filme. Não me lembro do velório, enterro, da tristeza dos dias subsequentes. É como se durante aquela procissão vinda do rio em direção à Rua Melo Viana, o Sidney simplesmente tinha subido para o Céu e virou anjo.

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Para onde foi Montes Claros da nossa infância?... José Bernardino Filho Caminhando pelas ruas do passado, paro na esquina, espero alguns minutos, volto no tempo. Ainda meio confuso procuro sincronizar o que é hoje com o que já foi; o barulho do tráfego, a sirene, o jogo de bente altas, a pelada na rua, o Circo do Zeca Porrão. Pelo menos, é o que tento. A esquina de Corrêa Machado e Mello Vianna não é mais a que vivi. Foram-se o Bar de Dona Linda, a sorveteria de Miltão, o armazém de Dona Zó e, muito antes deles, o Cabaré de Zé Coco. Caminho pela rua, piso no asfalto que me parece muito mais velho do que o calçamento pé de moleque que antes havia por aqui. O Cine Ypiranga também sumiu, levando para sempre os engraxates, a troca de revistas, a Turma do Gibi, o cow-boy, a moça quase nua e aquele monstro em forma de ameba que apavorava nossa infância. Continuo pela Rua Mello Vianna; a estação também não é a mesma, não tinha aqui esse viaduto. A rodoviária mudou e levou o burburinho dos migrantes, o trem “de” Monte Azul já há muito partiu, de vez. Do “Trem pra Montes Claros”, agora só resta o da canção do Grupo Raízes. A estátua do Dr. Francisco Sá na Praça. Raul Soares continua lá, saudando o sertão com seu gesto largo. Na base do monumento pude ler um sincero “muito obrigado” (Gratias tibi agit respublica) “I – IX – MCMXXVI” (1-SET-1926), o dia em que o primeiro trem da central (EFCB) chegou por aqui. Desço pela Avenida Francisco Sá, a nossa Catedral continua linda, apesar de não existir mais o altar de mármore da minha primeira comunhão, demolido não se sabe por quê. Esplendor gótico no coração do sertão. Planejada para ser construída em alguma capital no leste da Europa, o projeto extraviado apareceu por aqui. Se isso é lenda não sei, não me lembro de quem ouvi talvez o nosso vizinho, o construtor Levy Pimenta tivesse a resposta. Desço a Rua Grão Mogol, os assustadores transformadores da subestação elétrica vaga-lume já não nos metem mais medo, as casas das “tias” na Rua Padre Augusto também há muito se foram. Um quarteirão abaixo era o atelier do Godofredo Guedes. Não conhecia muito sua arte propriamente dita, mas me encantava vê-lo pintar placas comerciais e assinar com o G.G. de pernas bem compridas, como elegantes bengalas, igualmente as bengalas do meu avô Ernesto, eram assim que eu as via. Outra esquina e estou na Rua Governador Valadares, a sapataria do Seu Penalva há muito se foi. A do meu pai continua lá, pequena e solitária testemunha de um tempo passado, a única sobrevivente da antiga Rua do Bate-Couro, assim conhecida pelas suas inúmeras selarias, sapatarias e oficinas de chapéu de couro.

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Agora caminho pelo centro. As massas e volumes da arquitetura do meu dia a dia, vivendo do outro lado do mundo, me parecem fora do lugar aqui, sem contexto, como que sufocando as ruas estreitas e as calçadas diminutas. As ruas me parecem muito mais estreitas do que quando eram vistas pela perspectiva do menino no passado. Praça Dr. Carlos, a cacofonia, a dissonância de buzinas, carros e motos num caótico balé me fazem dar um passo atrás, pois a praça sumiu. Não vi o fotógrafo “lambe-lambe”, não vi o táxi do “Seu” Maroto. O imponente mercado, demolido pela falta de compromisso com a história, pela falta de visão do futuro, poderia ser hoje um renomado centro cultural, com uma escola de artes e um belo museu. Descendo a Rua Carlos Gomes me lembro de “O Caneteiro” da minha primeira caneta Parker 51, do Palácio da Borracha. Sigo em direção à matriz. O prédio dos Correios me parece o mesmo, a Praça da Matriz me é familiar. Lá não estão mais a fonte, o imenso viveiro com colibris, a feira de arte com trabalhos do Godofredo, do Wanderlino Arruda e de tantos outros artistas plásticos. As cores, os cheiros, o clima alegre de uma manhã de domingo. Uma bela surpresa: o Corredor Cultural, os maravilhosos casarões. Por aqui existiu um dia o Educandário Padrão Gonçalves Figueira, de tão efêmera existência que poucos já ouviram falar. Fui aluno acho que no primeiro ano, me lembro dos uniformes de nylon marrom, as aulas de Dona Yvonne Silveira e do Professor Krupp. Subo a Rua Simeão Ribeiro. A ZYD7 se foi, o vesperal D7 no antigo Cine São Luiz, com titio Bira e Gelson Dias silenciados para sempre. Penso nos domingos distantes, os jogos do Cassimiro de Abreu e Ateneu, os chutes do Elizio, as defesas do Ozias, as peladas no Industrial, o YPÊ. O orgulho de ter treinado no time do técnico Bonga e a decepção de descobrir que jogar futebol não era meu forte. Memórias, boas lembranças. Ainda tenho tempo de subir a Avenida Mestra Fininha e caminhar pela nossa Escola Normal E.E.P. Plínio Ribeiro, por batismo. O prédio parece o mesmo, mas existindo em uma outra dimensão, noutra realidade; não há mais a matemática do professor Rametta ou a química do Simeão Ribeiro, os beijos da Fátima ou Marli, o grêmio estudantil, o jornal V.O.C.E., o Dentinho, o Flávio, a emocionante interpretação de Liege na peça VOMUPOPONO; também não estão mais nos corredores os supostos contatos com a guerrilha urbana, VAR-Palmares, Lamarca e nem tão pouco os agentes do SNI. Porque hoje é sábado. As cidades, assim como nós, nascem, crescem, se modificam, se transformam ou são transformadas e até morrem. Quando estamos longe, perdemos a cadência, o passo a passo, o virar de cada página. É como se lêssemos somente a última página

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de cada capítulo em um livro, uma sinfonia com três acordes e fico com a sensação de que estou perdendo alguma coisa. Porque hoje é sábado e depois de amanhã voarei de volta para Boston. Acho que estou ficando velho. Bons tempos, bons tempos... Jose Bernardino Nascimento Filho Montes Claros, 30 de Março de 2013.

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Luciano Vasconcellos - Tive uma boa infância numa família de onze filhos na qual eu era o décimo. Fui para escola (Jardim de Infância) aos seis anos e minha estréia ali não foi nada bem. Achei que haviam me tirado muito cedo do meu ninho. Minha primeira professora, Dona Terezinha, era terrível, eram beliscões, reguadas e tapas com que eu não estava acostumado. Depois veio Dona Lili, um amor de pessoa. Já estava me acostumando, quando decidiram me mandar para o Colégio Marista. Foi pior: ficar de castigo, apanhar de vara, rezar terço todo dia. Acho que foi naquela época que me afastei de todo de religiões. Ou bem ou mal, completei ali o curso primário e a admissão. E foi ali que conheci Rafael Reis. Puseram-me então numa escola pública, para o meu mal, dos professores e do educandário. Acredito que fui o pior e mais indisciplinado aluno que já passou por lá. Os maristas tinham-me transformado num rebelde, mercê de sua injusta pedagogia. Recordo-me que abandonei a escola, e só um ano depois me mandaram para o Colégio Militar, lugar de consertar menino. Na verdade foi o que melhor fizeram, entrei nos brios e, no primeiro mês, já era o melhor aluno da sala, depois de um ano o melhor do colégio. Terminei o ginásio, comecei o 1º científico. Concluído este, decidi ser militar. Fui tentar o CFO (Curso de Formação de Oficiais da PM). Desisti no começo do caminho e parti para fazer o serviço militar. Um ano depois me filiei no Partido Comunista do Brasil (Pcdob), então na clandestinidade. Fui morar em Brasília, depois em BH, com meu irmão, no Edifício Maleta. Ali tinha de tudo: bicha, sapatão, maconheiro, estudante, travesti, comunistas, pseudointelectuais. Consegui sair ileso, mas não deu certo. Mudei-me para uma cidade do interior, na qual me casei, fui vendedor e comerciante. Voltei para Montes Claros, lutei pelas diretas e pela anistia. Quando esta veio, abandonei o partido e, a pedido do Dr. BH (Célio de Castro), tornei-me um dos fundadores do PMDB daqui de Montes Claros, quando vencemos as eleições para prefeito em 1982, com uma chapa encabeçada pelo advogado e radialista Luiz Tadeu Leite, tendo como o vice Mário Ribeiro da Silveira. Já naquela época trabalhava como bancário e, posteriormente, funcionário público e líder sindical. Entrei para o PT pelas mãos do meu colega de DER/MG, vereador e presidente do Sintder, Roberto

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Carvalho, quando disputei a eleição sindical para sucedê-lo, em Belo Horizonte. Retornei, voltei para escola em 2006, daí terminando o terceiro científico. Em 2008, ingressei na faculdade para fazer psicologia, e acabei desistindo também. Aposentei-me em fevereiro de 2011 e agora estou sentado à porta da minha casa, esperando passar o meu enterro. PT saudações! REMINISCÊNCIAS Para meu irmãozinho Raphael Reys, da Ordem dos Filhos dos Dragões. Que me intimou a ir à sua toca, para me tornar um deles. Só ternura, Política (UNE), Teatro, Festivais Estudantis de Música e até Festa do Cabide... Tudo começou com a chegada de Eduardo Demétrius em Montes Claros. Mas quem era esse jovem que mexeu com a cabeça dos estudantes da nossa cidade, brincou de esconde-esconde com a polícia da terra durante quase um ano e esta nunca conseguiu por a mão nele, desafiou a imprensa que nunca conseguiu saber sua verdadeira identidade e dormiu na casa de um sargento PM, que era o homem designado para prendê-lo? São fatos, é só pesquisar nos jornais da época, ano 66/67. As manchetes são várias. Polícia procura agitador comunista. Onde está Eduardo Demétrius? Quem está por traz dele? Quem o hospeda? Quem é ele afinal? Tudo há seu tempo. Ele mesmo fez repassar à imprensa seu nome, ou era um cognome. Dizia que era diretor da UNE em Belo Horizonte, o que nunca foi provado, tinha 16 anos de idade e vivia na clandestinidade, o que era verdade. Chegou pela primeira vez em nossa urbe de ônibus, vindo das Alterosas, e já tinha um contato. Através deste marcou uma reunião conosco no salão paroquial da Catedral, onde costumávamos nos reunir com um padre para discutirmos política estudantil (interessante é como esse padre apareceu por aqui e, na época, ninguém questionou nada).

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Eu e o Armeninho Graça estávamos entusiasmadíssimos, e, de tanto fuçar a velha biblioteca da cidade, descobrimos a cópia do Manifesto Comunista de Karl Max (ainda guardo comigo esta cópia), daí para conseguirmos o volume de O Capital, de Karl Marx, foi um pulo, e olhe que nós ainda não tínhamos 16 anos quando o lemos. Reuníamos a partir das 20h30min horas no salão paroquial. Éramos eu, Armênio, Deocleciano, Luciano Tanajura (dizia que o irmão dele pertencia ao partido), Rogério, Luiz Carlos (o pai dele era porteiro do Cine São Luiz), Tiãozinho Preto (Tião Comunista, que mora hoje em Brasília), Nenzão, Hebert Caldeira, Miguel de Ducho, Haroldinho Tourinho, Hilda, Beth Mesquita, Patão, Yuri Popov, Hélio Milard, e outros mais que me falham na memória. A polícia apertava o cerco e já sabia o local onde nos reuníamos. Eduardo tinha dormido lá em casa nos dois dias anteriores. Mas desta vez estava difícil arranjar um lugar para alojá-lo. Levei-o então para casa de um colega de escola, e ele não fazia idéia de quem era o cara. O problema era que o pai dele era o sargento que o estava caçando. Depois que ele ficou sabendo nunca mais conversou comigo. Na manhã seguinte, alguém levou Eduardo até a serra para pegar o ônibus. Era assim, ele descia em Bocaiúva e alguém ia buscá-lo, sendo que na hora de irmos embora tínhamos que levá-lo para pegar o ônibus na estrada, ocasião em que à polícia ficava de olho na rodoviária. Na noite seguinte a casa caiu (tantas vezes vai o pote à fonte que um dia ele quebra), nem bem a reunião havia começado a polícia fechou a rua, o nosso olheiro deu linha. O delegado Miguel Abdo entrou bravo. Quem é o filho da putinha do Eduardo Demétrius? - Quem é o líder aqui? Nenzão Maurício respondeu na bucha. Aqui não tem líder, ai do povo que precisa de líder. Eduardo já bateu as asas. Cala a boca, asas suas é que eu vou cortar tá todo mundo preso e vamos “pra” delegacia. E toma nome, toma endereço, ficha todo mundo, chama os pais, bronqueia com os pais, ameaça, grita e acaba mandando a gente embora, éramos todos menores. Eduardo nunca mais voltou a Montes Claros e ninguém daqui jamais teve qualquer notícia dele, o movimento estudantil definhou e resolvemos partir para outras atividades menos perigosas. A turma rachou, Armeninho, Deocleciano, Haroldinho, Miguel de Ducho, Patão, Luciano Tanajura, Rogério, Yuri Popov armaram suas barracas na Praça da Matriz, Conservatório, Grupo Banzé. Eram os Mauricinhos do pedaço, queriam ser cineasta, músico, maestro. Na Rua Simeão Ribeiro, Yuri tocava violão na calçada e bebia cachaça pura, sonhando com Patrícia Ribeiro e terminando a noite com uma serenata na porta da casa dela; os dois se gostavam para desgosto de Dona Jacy, que preferia ver o diabo a ver Yuri Popov. Luciano Vasconcellos, por sua vez, armou sua barraca na Praça Coronel Ribeiro e arrumou nova turma. Hélio Milard, Ricardo Oliveira, Zé Felipe, Walter Ribeiro (Franga), Vicente Chaves de Fenda,

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Hermano, Zé Guela e Jota Batista eram a turma dos bandidos e, quase que por acaso, resolveram partir para o Teatro. Na época apenas Diógenes Vasconcelos fazia teatro em Montes Claros, todo ano apresentava a mesma peça. Era um monólogo: “As mãos de Eurídice”. Foi quando o Hélio Milard convidou a turma para assistir a um ensaio de uma peça que ele e o Rafael Reis estavam tentando realizar. Rafael tinha sido meu colega no Colégio Marista São José e era meu amigo. Meu primo Tone Pires tinha sido namorado de uma irmã dele e eu gostava do Rafa. Estava curioso. Na minha casa e na minha família meu pai gostava de nos fazer declamar para ele. Minhas irmãs participavam de concursos de declamação nas suas escolas. O tio do meu pai, Dr. Plínio, pai de Iede Cristoff, traduzia pequenas peças teatrais do francês para o português e eu acabava de ler um livro sobre a tragédia grega. Vamos nessa. Eles estavam ensaiando na casa paroquial, da Catedral (nossa velha conhecida). Chegamos à abertura do ensaio, a radiola portátil tocava uma música de circo. O Hélio Milard e o Rafael Reis ensaiavam uma coreografia de saltimbancos, era a abertura da peça. O nome desta era “Auto da Compadecida”, de autoria do Ariano Suassuna. Fomos convidados a participar. Eu seria o bispo; Hermano, o frade; Jota, o Capeta; Zé Guela, o cabra; depois apareceu a Beth Mesquita como a mulher do Padeiro, o Eustáquio David como padeiro e o Agnaldo Dentista como Severino Cangaceiro. Rafael, além de fazer o palhaço, encarnava o personagem Coronel Antônio Brito. Hélio Milard, o Chicó, e aí deu problema. Precisávamos no elenco de uma Nossa Senhora. Hélio foi atrás de minha prima Beatriz Pires. O problema era que a mãe de Beatriz estava brigada com o pai de Beth, briga de família deles. As duas não poderiam contracenar, dona Maria Pires não consentiria. Milard foi procurar de Dona Iede e Dona Jacy Ribeiro, que iam dirigir a peça, e elas contornaram o problema com Maria Pires. O elenco consolidou-se, os ensaios eram exaustivos, repetíamos cenas vezes sem conta, os problemas iam sendo contornados. Eu me lembro que o Eustáquio David tinha asma e não podia nem ver gato e na peça, logo ele que tinha de segurar um gato que “descomia” dinheiro. A equipe técnica quebrava a cabeça para acertar. O som, a iluminação, os efeitos especiais. As diretoras, depois de longas negociações com o bispo e as freiras do Colégio Imaculada, nos cediam o salão, único espaço nos Montes Claros, daquela época, onde se poderia encenar uma peça daquela magnitude – inclusive a criação já era uma crítica aos pastores da Santa Madre Igreja, o que não foi óbice a que o tão desejado espaço nos fosse cedido. A estréia enfim aconteceu... E, acreditem, foi um sucesso. Durante 15 dias os cinemas esvaziaram. Às 20h00min horas as filas já eram enormes na porta do colégio. Houve alguns contratempos. Jota

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estava encarregado de fazer as balas de festim, todavia, na primeira noite, as fez forte demais, o som do disparo explodiu um globo de luz no meio da platéia. A bala atingiu Eustáquio e fez um corte na orelha dele, o cabra empolgou demais e cortou a testa de Hélio com uma coronhada. Daí foram apresentar a peça em Pirapora. Fizemos três apresentações por lá. Voltamos para Montes Claros e, quando chegamos, ficamos sabendo que ia haver um festival estudantil de música popular. As inscrições estavam para ser abertas. Isto iria servir para nos unir e nos separar novamente. 1º Festival Estudantil de Música Popular de Montes Claros. Telefonei para o Armeninho Graça. Naquela ocasião ele estava namorando a Antonieta, filha de dona Marina Fernandez do Conservatório. O rapaz revelou que também estaria concorrendo, porém não quis dar detalhes. Não fiquei sabendo quem iria compor a letra, a música tinha que ser do Beto Guedes ou do Patão. O instrumentista seria o Yuri, mas ele deixou escapar que quem iria defender era a Aline Mendonça. Aquilo quase me desanimou. Aline já era uma profissional, Patão e Beto eram letristas de mão cheia, Yuri era o maior instrumentista de violão de Montes Claros. No outro dia convoquei Lois Ruas e Zé Felipe Oliveira. Lois era um senhor instrumentista, gostava de imitar Roberto Carlos, mas tocava muito bem. Aí eu disse para o Lois: - Olha, o Zé me falou que você tem uma prima que compõe música, será que ela não compõe uma para nós? Nós precisamos ganhar esse festival. O Lois me levou na casa dela e me apresentou; ela topou na hora. Chamava-se Magvone Damascena. - Pode preparar a letra - ela disse. Eu, ela e Zé Felipe gastamos uma semana na composição da letra. Eu compunha e eles riscavam e corrigiam. Devo ter composto mais de trinta letras para chegar à original, que realmente ficou linda. Zé Felipe guarda os originais dessa letra e a partitura que Mag compôs em cima dela até hoje. Com a letra e a partitura pronta, fui procurar meu primo, Tone Pires. Ele se sentou à frente do piano, afirmando: - Quero ver como fica no piano primeiro. O Felipe começou a solfejar a música. Tone falou: - Esta música é para guitarra. Eu discordei, tem que ser violão, senão eles tiram ponto. Tone retorquiu: - Deixa-me conversar com a menina que vai defender o negócio agora é entre nós. Eu batizei a música de “Rosa dos Ventos”, por causa do estribilho, e Mag concordou com Tone Pires sobre a questão da guitarra. Fomos para a disputa no Ginásio Darcy Ribeiro. Havia mais 16 músicas disputando com a da gente. Na primeira fase foram classificadas quatro músicas, a nossa mais a do Armênio Graça estavam entre elas. Fomos para a final no Colégio Imaculada. Pela ordem de sorteio, Aline cantou primeiro e Mag em terceiro. Demos azar. Na segunda estrofe o microfone pifou, Tone Pires parou de tocar e

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recomeçou do início, mas já não era a mesma coisa. Armênio ganhou o festival, eu fiquei com o terceiro lugar. Mais um ano e mais um festival, desta vez na Escola Normal. Armênio, sabendo que não iria haver prêmio em dinheiro, saiu fora. Melhor para mim. Entrei com o Zé Felipe e o Lois Damasceno, irmão da Magvone. Gastei quinze noites trabalhando a letra. Foi à poesia mais linda que criei até hoje e só depois procurei o Felipe para compor a música em cima dela. Decidimos que o Damasceno iria defender a música para nós, e eu propus um coro de vozes femininas para acompanhá-lo. Fomos atrás da irmã de Tino Gomes, a Mariza. Ela topou e arranjou mais duas outras colegas. Lola Chaves fez os arranjos. Partimos para disputa, fomos classificados e na final ganhamos o 2º Festival Estudantil de Música Popular de Montes Claros. Aí nos dispersamos. E a festa do cabide? Fica para uma outra oportunidade, deixo para o Haroldinho Cabaret contar. Foi um tempo mágico, nenhum outro adolescente viveu Montes Claros como nós.

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Virgínia Abreu de Paula Nascida e criada em Montes Claros, filha do médico, modinheiro, historiador , folclorista e defensor do serrado Hermes de Paula e da seresteira Josefina de Abreu Paula. Herdou dos pais o gosto pelas tradições de sua terra e pela natureza. Enamorada pelo Cinema, tornou-se presidente do Cine Clube de Montes Claros nos anos 60. Foi também colaboradora do Jornal do Norte como crítica cinematográfica. Participou em alguns filmes de curta metragem e do longa “Cabaré Mineiro”. Formou-se em inglês pelo Centro Cultural Brasil-Estados Unidos. Adepta do trabalho voluntário , fundou nos anos 80, juntamente com o jornalista João Carlos Queiróz , o ambientalista Eduardo Gomes e os veterinários Dr. Lenir de Abreu de Dra Ana Paulina de Abreu, a Sociedade Norte Mineira Protetora dos Animais. É ativista independente, memorialista e ocupa a cadeira 21 da Academia Feminina de Letras de Montes Claros. No início deste ano de 2013, teve seu pedido de ingresso no Instituto Histórico e Geográfico aprovado com posse ainda sem data definida. É Preciso Cantar. Virgínia de Paula Pergunta feita a mim sobre meu grupo de amigos da juventude. -Já sei como tudo começou. E como acabou? Muitos sabiam do início porque tinha escrito uma crônica a respeito de uma visita à casa de Geraldo Maurício, o Nenzão, numa tarde de 66 regada a Whisky e ao som de Jazz, saindo de lá eleita secretária do CEC. Com isso, passei

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a conviver com uma turma genial. Eu conhecia todos eles do grupo escolar, da missa na Igreja Matriz, dos clubes, mas, de certa forma, era à distância. No máximo um “hei” ao passar por eles nas ruas. Naquela estranha tarde, onde previ tudo o que aconteceria em sequência, algo novo aconteceu. Veio à descoberta de afinidades trazendo uma sensação de não estar só. Dali em diante passaram a fazer parte de uma tribo que viveu alegremente e perigosamente, naqueles revolucionários, criativos e psicodélicos anos sessenta e setenta. Minha memória recorda o inicio. Mas, e quanto ao fim? Houve mesmo um fim? Não. Apenas um distanciamento. Porém, a pergunta da amiga deixou-me pensativa, querendo lembrar. E lembrei. Chega de volta o momento quando senti que a nossa convivência terminaria, causando aperto no peito. Resolvi contar para vocês.

Com a cantora Aline Mendonça Carnaval de 72. Local: Automóvel Clube. Turma reunida à beira da piscina ao redor de Nenzão, bebendo do Whisky que ele tinha levado, disfarçadamente, dentro de um container. Da pista, vem o som do carnaval, mas, de folião mesmo, só Waltinho, dançando com duas garotas recém chegadas na cidade, sendo uma delas, diretamente da França: Silvie. Nós outros estamos comodamente sentados. Revejo cineasta Alberto Graça cochichando ao ouvido de Nenzão. E lá vem Geraldo Carne Preta, oferecendo bolinha. Que decepção quando notam que são simples bolinhas de plástico. Começam a tocar Máscara Negra. Vou dançar com Luiz Milton. Vejo Walmor cantando, desafinadamente, mas com paixão, um samba de Noel. Nenzão percebe que está sem cigarros, (naquele tempo todos fumavam, mas poucos os compravam), e sigo com ele até a Rodoviária, único lugar perto que vendia cigarros na madrugada. Vejo uma velhinha muito magra, deitada num banco, dormindo, pés descalços. Por alguma razão a cena comove-me até a medula. E

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apesar de Nenzão, na volta, me conduzir em outra direção, sua imagem segue comigo. Até hoje. Sem atrapalhar minha diversão até o raiar do dia, quando então descemos para um cafezinho na Padaria Globo. Waltinho na frente, abraçado às meninas, cantando Bandeira Branca. Na Padaria, Alberto Graça aperta, por engano, um botão da máquina de moer café. O pó se espalha no balcão. Nenzão compra tudo. Segunda noite. Mesmo local. Fecho os olhos para ver melhor. Lá está Raphael Reys, contando uma história escabrosa envolvendo certa dama da noite. Roberto Tourinho, a meu lado, ainda quer uma explicação para o filme Teorema. Tuquinha conta da emoção sentida ao ver Encouraçado Potemkin. Mas, esquece o nome do diretor. Pede ajuda e, incrível, ninguém se lembra. Maria reclama: Agora vão passar o resto da noite querendo lembrar... Isso acontecia sempre. O assunto não mudava enquanto o nome esquecido não fosse lembrado. Ela começa a cantar, com uma voz altíssima, lembrando Tetê Espínola. E Virgílio de Paula, que parecia cochilar, abre os olhos e informa em alta voz: Ensenstein. Resolvido o problema. Armênio Graça, que estava na folia, reaparece com uma mocinha nunca vista antes, nem depois. A noite termina como a outra noite: na Padaria Globo. Terça. Como nas anteriores, mas, com algo novo ao nascer do sol. Fomos impedidos de sair devido a uma briga. Envolvidos no nosso mundo, não ouvimos barulho algum. Mas, veio a polícia, que fez como na gafieira da música: Quem está fora não entra, quem está dentro não sai. O jeito é esperar. Na grama um casal se abraça apaixonadamente. Splendor in the Grass, penso eu. Ângela cochila na cadeira e Armênio, dorme no gramado. Virgílio surge com uma porção de fritas consumida em questão de minutos. Silvana entra na piscina. Levanto cansada. Caminho até ao saguão e noto a porta aberta. Liberados, enfim. Lá vamos nós para a Padaria Globo. Após o cafezinho a turma se divide. Uns decidem-se pela casa de Silvie. Outros preferem continuar na padaria. Nenzão, Maria, Armênio e eu, vamos embora. Seguimos pela Rua Lafetá, lentamente. Armênio Graça canta: Acabou-se o nosso carnaval, ninguém mais vai cantar canções... Pausa na Rua Dr. Veloso quase em frente ao endereço de Armênio. Nenzão pergunta: Ainda vamos te ver antes da partida? Hoje á noite, responde entrando em casa. Ai! Verdade! Estava de malas prontas para Salvador. Mais um que vai embora, penso entristecida. Vamos seguindo na tranquilidade das primeiras horas da manhã, ouvindo o coral de pardais saudando o novo dia. Então, como fica? - Hoje à noite, onde? Decisão: dormir e decidir mais tarde. Nenzão Maurício e Maria pegam a Avenida Afonso Pena. Vou para o passeio da avenida. Por algum tempo acompanho os passos dos amigos com meu olhar, até que desaparecem atrás da capela do Rosário. Sigo sozinha. E de repente, a certeza: Nossa turma vai se

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desfazer. Claro, o que fariam aqui? Abro o portão. Uai, mas eles voltam!, tranquilizo-me. Alberto está aqui. Abro um sorriso. Desço pelo jardim, cantando a Marcha da Quarta Feira de Cinzas, pegando do ponto em que Armênio tinha parado. E, no entanto é preciso cantar, mais que nunca é preciso cantar, é preciso cantar, e alegrar a cidade.

Reflexões Sobre Minha Vida... em Londres Ou “Querem acabar comigo, isso eu não vou deixar...” Virgínia Abreu de Paula Recebo, via internet, a música “Reflections of My Life”, velho sucesso do Marmelade, com uma carinhosa dedicatória a mim e a meu amigo Haroldo Tourinho. Um vídeo que me leva até a International House, Shaftesbury Avenue, Londres. Foi lá que fiz um curso de inglês em 1970. Eles tinham “vitrolas mágicas”. Uma moeda e vem a música escolhida. Essa era das mais tocadas. Eu a ouvia sentindo o que a letra dizia. "O mundo é um lugar terrível para se viver, mas eu não quero morrer." E o que eu queria? Ora, mudar o mundo! Essa era a meta de muitos jovens de minha geração. Sonhávamos com isso. Grande parte de nós, apenas sonhava... nada fazia. Outros faziam e metiam os pés pelas mãos. E, é claro, houve aqueles que realmente fizeram, que protestaram, “caminhando e cantando e seguindo a canção”.

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“I’m lonely in London, London it’s lovely so” Em Londres ando sozinha pelas ruas, como na música de Caetano. Marco um ponto no mapa e sigo até Hyde Park, ou até Savile Row, para visitar a Apple Records. Uma vez , vejo a porta aberta. Entro, sento numa das poltronas olhando em volta. Na parede há um pôster gigantesco de John e Yoko completamente nus. Logo a sala se enche de gente: na verdade, grande parte do cast da peça Hair. O inesperado encontro muito me alegra. Os Beatles? Ausentes. Paul, em sua fazenda na Escócia. Mesmo assim faço várias visitas até sua residência em Saint John's Wood, onde recolho folhas da árvore do seu jardim. De lá, sigo para Abbey Road, exatamente para os estúdios da EMI. George Harrison, lá dentro, grava “ My Sweet Lord” trazendo a novidade da procura da espiritualidade para jovens, até então, céticos. Certa tarde passa por mim o Roger Waters do Pink Floyd, também gravando no mesmo estúdio. Nesses momentos penso nos amigos que eu gostaria que estivessem comigo, que sentiriam as mesmas emoções. A prima Raquel, o Haroldo Tourinho...Londres é a cara dele. Espanto a saudade e sigo de volta para a estação de metrô, "atravessando as ruas sem medo, enquanto meus olhos procuram por discos voadores no céu". Caetano morando lá, exilado. Ele e Gilberto Gil.

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Na International House estudava uma garota da Bahia, Almodiz, de posse do endereço dos célebres e injustiçados baianos. O plano era visitá-los. Mas, tiraram férias exatamente naquele mês de julho. Teria eu ido a Londres na data errada? Parecia que todos estavam em outro lugar. E olha que Caetano era aluno da na mesma escola que eu. Teríamos sido colegas, tivesse eu ido em outro mês? Desencontros. E encontros. The Moody Blues numa mesa junto à minha na Revolution, boite apadrinhada por John Lennon. Stevie Wonder cantando no restaurante onde estou jantando: o Talk of the Town. E o memorável encontro com Miguel Carlos, ou melhor, Michael Ould, apresentador do programa Iê, Iê, Iê, na BBC, ouvido pelos fãs da música pop inglesa, em Montes Claros. Miguel era amado por todos nós e viajei pensando em procurar por ele, sem saber que seria tão fácil, e que ele parecia amigo de velha data. Participo, por duas vezes, do seu programa onde sou até fotografada para o calendário do Serviço Brasileiro. A seu lado, no clube da BBC, passo meu vigésimo segundo aniversário. Raros momentos ao lado de pessoas. Virgínia em Londres, anda quase sempre, só. Olha tudo, procura alguma coisa, não sabe bem o quê. E ama tudo que vê. Desde o verde da natureza, o céu nublado, o friozinho mesmo quando há sol, a maneira despojada e original dos jovens se vestirem. Parecem dizer: somos contestadores, criativos, somos lindos! “I came around to say Yes and I say”.

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Pego um ônibus, faço um passeio no segundo andar, ouço as badaladas do Big Ben, desço em Sharing Cross, vou até ao Tâmisa, ando ao longo do rio, sigo pelas perfumadas ruas londrinas. Ruas musicais. Sempre música, muita música, vindas nem sei de onde... “In the Summertime”, “Yellow River”, “Let it Be”… E os mantras indianos cantados pelos monges, vestidos de amarelo e tranças nos cabelos. Sons da Londres do verão de 70. Uma Londres que, como Miguel Carlos, parece amigo de velha data. Pessoas desconhecidas me abordam pedindo informações e, geralmente, eu as forneço! No meu quarto no Montoba House, não me sinto hóspede. Estou em casa. Amo Montes Claros, amo Londres. O que fazer? Respiro fundo e levanto-me para mais uma caminhada pelas ruas londrinas, feliz pela chance de ver de perto a sede dos Anos Sessenta, no ultimo ano da década. É, Haroldo, os sessenta estavam no fim, a guerra do Vietnam continuava, os hippies estavam se destruindo ou mudando de vida. Porém, as mulheres se liberavam, os homens usavam cabelos longos e a lei, que considerava os gays como criminosos, na terra da Rainha, tinha sido abolida. Sim, nossa geração revolucionou. Incomodou. Talvez por isso preferem ignorá-la fazendo com que os mais novos pensem que você usava brilhantina nos cabelos, que eu usava óculos gatinho e que dançávamos boleros de rosto colado. O charme daquele tempo é inegável. Mas,

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os anos seguintes são outros. Diferentes. Negá-los é negar nossa existência. Eu teria apenas sonhado? Não. Por que querem apagá-los? De que sentem medo? Deviam ser gratos, pois aqueles de cabelos soltos e ouriçados, que se vestiam e dançavam como bem entendiam, revolucionaram costumes, derrubaram preconceitos e semearam idéias tão avançadas que talvez ainda estejam por germinar. Esperemos que sim.

Em 1970, a peça “Hair” ( que não seja confundida com o filme do mesmo nome) leva-,me ao teatro duas vezes para uma imersão na filosofia do Flower Power, onde éramos convidados para um Be In, isto é para nos envolver no movimento contra a guerra. Todo o elenco se livra das roupas entoando Hare Krisha enquanto queimam as convocações para lutar, matar e morrer. Perguntam cantando “Why do I live and die?” A platéia pode participar. E participa, sonhando com a Era de Aquarius que estaria por vir. Enquanto esperamos, deixamos a luz do sol nos aquecer cantando em oração: “Let the Sushine, let the sunshine in, the sunshine in”. O clima da peça permanece fora do teatro, claro, pois retrata o que vivíamos, os nossos questionamentos, nossas revoltas e aspirações. “Só precisamos de Amor”, diziam os Beatles. No entanto, eles se separam. Choque. A revelação se dá naquele ano. Eu estava lá! Entro numa loja, compro o primeiro disco solo de Paul McCartney, com uma explicação sobre a mais sentida

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separação do mundo musical. Meses depois, John declara que o sonho tinha acabado. Mas, naquele verão de 70, a montes-clarense Virgínia, a baiana Almodiz, a fluminense Walkyria, o francês Claude, e o inglês Colin ainda sonham, naquela salinha da escola internacional , dançando de rostos separados e corações unidos. Cantando ao som do Marmelade. Acreditando: “ I am changing, arranging, everything...” Obs. As folhas do jardim de P. McCartney, vieram comigo e continuam lindas, provando que aquele tempo não foi apenas sonho.

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Ligia Maria Ribeiro Martins – Cantora, compositora e poetisa, neta do Maestro Jeronimo Guedes fundador da Banda Carlos Gomes de Abaetetuba-PA, canta, escreve e compõe desde a década de 80. A FUGA Lígia Saavedra Pular a janela era a única maneira de me ver livre de minha mãe. Como? Se minha janela ficava em cima da janela dela. Ah! Mas, eu precisava fugir. Ia ser a Miss da minha sala de aula e a festa da escola seria numa boate. Eu nunca estivera em uma boate e, em 1970, isso nem era permitido para as “filhas de família” como eu. O vestido branco decotado e emprestado de Júlia, minha prima e cúmplice, me fizera uma mulher escondendo os meus 15 anos e mostrando uma sensualidade que eu nem sabia que tinha. Estava deslumbrante como jamais me imaginara. O tempo passando numa angústia sem fim, pois às dez horas estariam me esperando na esquina e a coragem que me faltava, assombrava-me em dúvidas. O que fazer? Decidi-me por descer e encarar os dois maiores desafios que vivenciaria até aquele momento. Mentir para minha Mãe, que ao saber da festa entoara um discurso daqueles: “Imagine se iria permitir minha filha, nessa idade, desfilando a noite numa boate...”, e desfilar para toda a escola.

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Pé ante pé fui escalando a grade da janela pedindo a ajuda de todos os santos que conhecia e que, infelizmente naquele momento, não me reconheceram pelo pensamento. Estabaquei-me no chão sujando quase todo o vestido. Morta de medo que minha mãe aparecesse fui me esgueirando até o portão e de lá correndo até a esquina me encontrei com a patota ansiosa pela Miss. Limpa daqui, passa um lenço ali e lá estava eu indo ao e do não sei o quê. Era uma sensação estranha, um frio na barriga, uma euforia sem controle, um, um... Chegamos bem na hora do desfile. A luz negra que me fazia mais brilhante e o nervosismo que dava vida ao meu vestido decotado me ajudaram a encarar aquela aventura. E, lá fui eu. “Primeiro lugar, Lígia!” Dissera o apresentador do desfile. "Era eu, ganhei!" Foi quando uma imensa alegria e a bolacha de minha mãe esquentou o meu rosto todo maquilado de Helena Rubinstein, fazendo-me ver a maior constelação de estrelas novas de minha vida. Risada, gritaria, pega e puxa e um castigo severo fez de mim a estrela dos comentários de todo o semestre e a melhor aluna da Terceira 3ª. A lição que tirei dessa fuga, foi a minha melhor aventura, você não acha?

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Noélio Arantes de Mello, nasceu em Belém do Pará. Quando cursava Engenharia Civil na Universidade Federal do Pará, abandonou o curso para trabalhar como repórter jornalístico e com suas experiências nas ruas se tornou um estudioso da alma humana. Cronista, escritor, empresário de informática e palestrante motivacional. É chamado por seus leitores em todo o Brasil de o Mago do Esperança. Livro: ENTRE O RISO E O PRANTO- crônicas e o segundo a ser lançado no segundo semestre de 2013- ONDE ESTÃO OS VAGA-LUMES? Uma história sobre a Vida e o Tempo NO TEMPO DAS SERENATAS Noélio A. de Mello A noite já ia alta quando encerramos a faina diária no jornal. Silenciaram as máquinas de escrever. Missão cumprida, todos os jovens companheiros de trabalho saíram apressadamente. De repente estava só na sala da redação. Apaguei as luzes. Abri uma janela que tinha como horizonte a Baía do Guajará com suas águas encrespadas e brilhantes, que de vez em quando vêm lamber com suas línguas doces o asfalto quente das ruas de Belém. Senti na face cansada os seus ventos úmidos que traziam os perfumes do longe, do desconhecido. Olhava uma Belém remoçada pelo cimento e cal e, estranhamente, senti uma sensação de vazio, de saudades. O céu, todavia, era um convite ao deslumbramento. Parecia que um noturno jardineiro do tempo resolvera contornar o esplendor da lua cheia com uma continua multiplicação de estrelas. “CINCO MORTOS ESPICHADOS”

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Com uma xícara de café fervente nas mãos, repousei os braços no parapeito enluarado e fiquei pensando num pedaço recente da vida quando iniciei a minha vida de repórter e que o tempo, inexorável, já levou para os seus insípidos labirintos, para os seus obscuros e tristes esconderijos. As ruas desertas polidas pela tinta da lua fizeram-me recordar de saudosos poetas das ruas que fantasiavam as madrugadas serenas de antigamente. Lembrei dos sons gementes e românticos saídos de seus violões feiticeiros, no andar de uma caravana sentimental que findava seus passos e o dedilhar de suas cordas somente quando explodia os primeiros clarões da alvorada. “CINCO VIVOS PASSEANDO” Na sua passagem esses caravaneiros faziam com que se acendessem muitas janelas de onde muitas mulheres ávidas de amor, sedentas de emoções, passavam a sonhar com seus olhos abertos, ariscos faróis bisbilhoteiros de suas paixões que mesmo sufocadas nos travesseiros macios, nos lençóis alvos, no pulsar acelerado dos seus corações escreviam em suas finas paredes tantos desejos adolescentes e suas histórias de amores escondidos que ainda não podiam saborear. “OS VIVOS NÃO DIZEM NADA” É lógico que a modernidade, a violência das ruas, a liberdade do presente, não mais permite que o fantástico tempo das serenatas da nossa juventude ande hoje pelas calçadas onde ainda adormece a lua e se refletem as estrelas, plantando no chão da vida o veludo da noite bordado de encantos, de magias. Os olhares ardentes de agora não mais se espreguiçam das janelas. Caminham pelas ruas nos carros reluzentes, adormecem com o sol forte. A noite que passou já vira hoje um passado distante. Amanhã já teremos outros braços a nos abraçarem, outras bocas cheias de beijos confidenciando desejos, outros mãos acariciando nossas carnes. : “OS MORTOS ESTÃO FALANDO” Sem qualquer pieguismo romântico, confesso que sinto saudades dos sons saídos das cordas espichadas dos violões apaixonados, gementes e sentimentais, que durante um tempo que nossos jovens e quase inocentes corações ficavam a romancear as ruas de uma Belém, que o danado do tempo para sempre emudeceu e guardou em suas entranhas. Hoje restam apenas saudades de um ontem mágico, sedutor, atraente, que tatuou para sempre em nossos olhos e ouvidos. adolescentes a fascinação de um inesquecível e apaixonante pedaço das nossas vidas. Hoje meu olhar é um olhar de apenas lembrar. Infelizmente

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Rosilene Lima Neves Advogada formada pela FADIR (UNIMONTES), em 1985, especialista em Direito Previdenciário, atua na Comarca de Montes Claros-MG.

SIMPLES ASSIM... Rosilene Lima Neves Em meados da década de 70, no trecho final da Rua Doutor Veloso, em nossa querida Montes Claros, um grupo de jovens moradores, de forma mágica, se aventurou em viver a vida de um jeito ímpar. Reuniam-se num pequeno barracão, onde vivam dois irmãos encantados, pessoas já mais velhas, vindos do Rio de Janeiro. Ele, funcionário do Banco do Brasil e artesão por lazer, ela, uma cuidadora, de tudo e de todos, mais velha que ele, e que ocupou o lugar e a missão de mãe, que perderam ainda jovens. Nós, da Dr. Veloso, adotamos os irmãos, o barraco e a vida dos dois. Invariavelmente, todos os dias, nos encontrávamos lá, no barraco, onde fomos acolhidos pelos corações dos donos. Ali, trocávamos as descobertas, as angústias juvenis, os sonhos, os risos, as lágrimas, as essências. Cada um com uma particularidade, um jeito, uma história, mas todos com o mesmo e único desejo de estar feliz, de fazer feliz. Promovíamos e celebrávamos a vida, em todas as suas nuances. Fazíamos festas, ruas de lazer, serenatas, encontros de orações...

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Cultivamos a amizade na sua totalidade, na sua intensidade e na sua cumplicidade. Ficávamos horas, sentados nos trilhos da linha férrea, observando a lua cheia. Passávamos o dia no Parque. Fazíamos serenatas até o sol raiar. Acampávamos nos clubes campestres. Íamos ao cinema, barzinhos... Tudo acontecia com todos juntos. Em uma de nossas férias, fomos acampar no Pentáurea, Clube Campestre, quando as barracas ainda eram cobertas de palha de bananeira e todas abertas nas laterais. Os meninos ficavam em uma barraca e As meninas em outra. Passávamos o dia juntos e só nos separávamos na hora de dormir, depois de banhos de ducha fria, piscina, jogos e muuuitas brincadeiras sadias, alegres, sem nenhuma maldade, sem drogas, repletos de amor. Quando saíamos das barracas, à noite, para irmos nadar ou jogar, deixávamos as “camas” arrumadas, já pra chegarmos e nos enfiarmos debaixo das cobertas. As camas eram os colchões esparramados pelo chão da barraca. Ficávamos acordados até tarde, contando piadas, jogando, cantando e farreando. Em uma dessas noites, como de costume, deixamos as “camas” arrumadas e fomos pra piscina, bem afastada das barracas. Ficamos um tempão nadando e depois fomos tomar banho e já nos prepararmos para chegarmos à barraca e nos enfiarmos dentro dos cobertores. Para nossa surpresa, quando chegamos à nossa barraca, os nossos amigos, Os meninos, haviam aproveitado o tempo em que estávamos no banheiro nos aprontando para dormir, pegaram os nossos cobertores, os nossos lençóis e com eles formaram letras e as colocaram no chão, formando a frase: AMAMOS VOCÊS. Foi um momento mágico, lindo demais, emocionante, uma surpresa linda para os nossos corações adolescentes e repletos de sentimentos puros e sinceros. Emocionamo-nos muito, nos abraçamos e cantamos as músicas que trazíamos como nossos hinos. Ficamos ali, por um bom tempo, reafirmando os nossos sentimentos, externando a sinceridade e a beleza da nossa amizade; Depois disso, Os meninos foram para a barraca em que eles dormiam. Fomos dormir maravilhadas, encantadas... isso depois de, com grande pesar, desfazermos a escrita com os cobertores, pois, precisávamos deles para nos cobrir e nos protegermos do frio pentaureano. Eis que, logo ao amanhecer, fomos surpreendidas pela presença do então presidente do clube, nos agredindo com palavras, nos ofendendo e nos acusando de termos praticado orgia na noite anterior.

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Ficamos estarrecidas, estáticas... Parecia que não era com a gente que ele falava aquele monte de asneiras. Acordamos ainda encantadas e logo fomos arrancadas do nosso encantamento. Tentamos de todas as formas explicarmos o que realmente aconteceu, o porquê de termos feito barulho, de termos ficado acordados até tarde... Mas ele simplesmente ignorou as nossas explicações e determinou que nos retirássemos imediatamente do clube. Iríamos ficar mais uns dois dias, mas não tivemos estrutura emocional para encarar uma situação que nos parecia surreal, absurda, ridícula e totalmente descabida. Arrumamos as nossas traias e viemos embora, ainda pela manhã. No trajeto combinamos que iríamos ao cinema, na sessão das quatro, no Cine São Luiz. A turma era grande, moças e rapazes cheios de energia, de alegria, de vontade de estar juntos e aproveitar tudo que a vida lhes permitisse. Fomos ao cinema. No caminho, a pé, trocávamos as nossas indignações com o ocorrido pela manhã. Ao chegar, na entrada do Cine São Luiz, me encontrei com outra amiga, que não era do grupo e fiquei ali, conversando com ela, enquanto o restante da turma entrou para a sala de cinema. Demoramos um pouquinho na conversa, tanto que, ao entrarmos, já havia começado a exibição dos trailers. No escuro, eu não conseguia enxergar onde estavam os meus amigos, então, inocentemente, “gritei” o nome de um deles. Foi a conta do “lanterninha” do cinema me pegar pelo braço e me levar pra fora da sala, para me identificar. Nisso o meu amigo, que eu havia “gritado” o nome, veio ao meu socorro, resolveu a situação e nos foi permitida a entrada para assistirmos ao filme. Ao final, quando saíamos do cinema, a turma caiu de gozação para cima dessa pessoa. Diziam que eu havia conseguido o feito inédito de “levar” 02(dois) “cartões vermelho” no mesmo dia. Somos amigos, até hoje... Cada um seguiu o seu rumo, mas cada um levando o mesmo sentimento amigo no coração.

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Fabiano de Freitas Amaral 21/12/1963 - Montes Claros. Filho de Tutica e Cleonice Amaral. Curso superior em Gestão Ambiental. (Unopar) - Curso de Direito incompleto, abandonado no final do quarto ano. (Unimontes). - Curso de Economia incompleto, abandonado no segundo ano. (Newton Paiva). - Curso de Administração incompleto, abandonado no terceiro ano. Estou tendo a imensa oportunidade de viver muitas vidas em uma só, profissionalmente falando já trabalhei como: Contínuo, Balconista Vendedor de loja comercial, Gerente Comercial, Diretor Comercial, Produtor Rural, Vendedor de consórcio e financiamento de veículos, Gerente Administrativo do consórcio fiscalizador do Projeto Jaíba, Supervisor Administrativo de Laticínios, Representante Comercial, Diretor de Produção de programa de TV, Diretor Presidente da ESURB, Coordenador em Gestão de Parques e Praças da cidade de Montes Claros. .

TORMENTA

Fabiano Amaral

Era feito aquele dia de um tempo nublado, frio e chuvoso, o céu cinza teimava em me tripudiar pela total ausência de cores vivas, o que trazia uma inquietação para o meu combalido humor, em especial para minha cabeça, como que fazendo dela um estranho tipo de palco circense, onde uma dança de caricatos palhaços se avolumava em gargalhadas retumbantes e estridentes, repicando nos meus ouvidos o som dos pingos daquela chuva insistente e torrencial. O vento soprava forte e renitente; e aparentemente distante, a porta do quarto que eu me encontrava, como se fosse à porta da minha vida rebelava-se e se debatia num barulho rangido de total sofridão, meu coração palpitava fora do ritmo da vida, o desespero era total e se apossou rapidamente de mim. Ondas de suores frios jorravam abundantes como se fossem porosas bicas, deixando o meu corpo mais gelado do que a temperatura retrincante que se apresentava

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fora daquele quarto escuro e opressor, encharcando de delírios e de sal a cama que eu estava deitado. Eu tremia. Em pânico, meu peito sobressaltado apenas mantinha o coração sobrevivendo, enquanto este era reanimado por fortes soluços marcados por um trôpego sentimento de pleno desespero. Beirando a morte, vi minha insignificância refletida nos clarões emitidos por aqueles malditos relâmpagos, eram luzes abismais que vieram iluminar minhas agonias e trazer à tona, todas as sombras que se acumularam ao longo dos anos teimosamente sobrevividos. Minha vida, aflitivamente tentava se expressar aos berros e em gritos estrondosos, ecoando-se com os fétidos arrotos dos trovões que se apresentavam repetidas e repetidas vezes. Sem comunicação com o resto do mundo, eu só escutava a mim mesmo. Naquele dia que se arrastou sem fim, me agarrei em “Para-raios”, não tive nenhum tipo de defesa, não tive ajuda de ninguém, eu não tinha para onde ir, eu não tinha como correr. Encolhido e com as mãos envoltas em minha cabeça, em posição fetal, permaneci paralisado. Acabrunhado pude conhecer o verdadeiro significado do terror. Aquela chuva era minha própria tormenta interior, ela era infernal, mas estranhamente percebi que ela era necessária também, talvez até mesmo tardia em cair assim sobre mim. Ironicamente pude compreender então, que de certa forma ela se dispunha a lavar meus medos e desenganos; estes que não cicatrizavam nunca, ficando sempre como feridas abertas e que viviam profundamente arraigadas na minha alma. Quem sabe talvez! Fossem heranças herdadas de outras vidas passadas. Nunca fui tido como certo, mas como louco sempre. Num instante seguinte, em um paralelo atemporal, um raio celestial rasgou o céu me atingindo direto, destruindo e fulminando os restos dos meus sonhos fragmentados que ainda me sobravam; em ato contínuo, se foram também minhas patéticas ilusões. Tudo que era encanto se findou, afastando-se instantaneamente de mim; assim como são levados para longe, os lamacentos barrancos que se desmoronam fragilmente nas encostas dos rios, quando cavados e erodidos pela força das águas correntes. Em forma de Pororocas desdobrei-me em lamas diversas; e nesta lama, soterrado bem fundo, finalmente desterrado das minhas antigas vidas, eu me vi nascendo e encontrei-me feito de barro puro novamente. Depois da chuva finda... Com o raiar de um novo dia, nunca mais me furtei a sorrir sem ter uma naturalidade cristalina, inclusive em dias de novas tormentas interiores, afinal elas estão sempre rondando por ai, mas estas já não me assustam mais; e hoje escancaradamente me permito a fazer deboche de tudo que não se pode levar desta vida.

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Ana Cláudia Rodrigues Bacchi, nascimento, 07.10.1962 - Natural de Botucatu – SP, Solteira, 1 filho Leandro Rodrigues Bacchi, Funcionária pública desde 1990. PÓS-GRADUAÇÕES: Gestão Microrregional de Saúde ( Faculdade SENAC- BH. – Saúde Pública ( Fundação Oswaldo Cruz-BH) – Planejamento Orçamento e Financeiro do SUS Municipal (PUC-BH). FALAR DE NÓS EM BOTUCATU... E de como tudo era lindo. Cláudia Bacchi Tudo começou no dia 07 de outubro de 1962, em Botucatu-SP, quando nasceu uma linda garotinha loira de olhos verdes, Ana Cláudia Rodrigues Bacchi, filha de Cary Bacchi e Maria Terezinha Rodrigues Bacchi. A rua da minha casa, a João Passos, foi marcante pra contar a minha história, pois ali morei quase toda minha juventude. Sinto-me muito feliz ao lembrar das pessoas que fizeram parte dela. Vou contar como a minha juventude foi muito linda, muito colorida como um arco Íris, radiante. Saudades dos momentos incríveis, de que eu amava e amo tanto, uma jovenzinha que encontrava nas pessoas sempre o que tinham de bom, fazia o bem sem a olhar a quem, momentos de inocência, de alegria, quantas saudades, quantos lindos exemplos, quanto amor! Minha família era conhecida e tinha fama de união; aprendi com meus pais a mágica legítima, definitiva: de que a educação, honestidade e a humildade eram essenciais para viver com a

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consciência tranquila, ouvir os ensinamentos e aprender a ser jovem com dignidade. Uma jovem moleca com cara de menina, que nos meus 16 anos ainda andava de skate e carrinho de rolimã com minha amiga americana Pandora, brincava de pique latinha, de esconde e esconde, patinava, dançava, cantava com tanta intensidade que tudo parecia ser realmente mágico. Lembro-me tanto que era eu a bonequinha da Marina Capurisse e da Luzia, de quem mereci tanto carinho e muita paciência. Sempre fui encantada pelos bichinhos, meu papagaio José, meu cachorro dobermann que chamava Capitão, os esquilinhos e meu cágado de nome Gigante. Ah!! Meu louro José passeava em cima da cabeça do Capitão. Falar do passado é recordar as lembranças gostosas e lembrar das pessoas que marcaram minha juventude. Nunca fui preconceituosa, tudo me encantava, nossas brincadeiras, nossos amores, nossa turminha, me lembro dos meus amigos (as) que marcaram minha juventude, como Carla Coimbra, Emerson Tenori, Rogério Rubi, este a minha primeira paixão, Marquinho Roncari meu amigo inesquecível, nossa turminha da Igreja Nossa Senhora de Lourdes, do encontro divino em Piracicaba, comandado pelo nosso querido Frei Oscar, inesquecível... Muito emocionante... Chorei muito relembrando de tudo, lembranças gostosas, lembrar dos meus tios e das minhas tias que eu mais me identificava na minha juventude, tia Minda e Tia Ester, dos meus primos(as) casa do avô Augusto e dos meus avôs Sidraco e Theodomira, as férias em Avaré, Ourinhos, São Manuel, do Colégio Santa Marcelina, IECA e Objetivo, da pracinha da Catedral, do lanche Sardinha, dos nossos passeios no Lageado, de Rubião Junior, dos ensaios da escola de samba, quando a mamãe sempre inventava uma fantasia criativa para participar dos concursos a fantasias e delas me lembro quando fui premiada com a fantasia “Ambulante”, o carnaval de rua, o carnaval de salão, me lembro quando a mamãe costurou o meu primeiro vestido do baile do Hawai no AABB, dos biquínis de fim de semanas nas piscinas no Tênis Clube, fui garota propaganda da primeira pista de patinação com o patins de 4 rodas, os bailes eram cheios de brilhos e purpurinas, meu irmão amado Cary, o mais velho, era muito ciumento, muito cuidadoso comigo, sempre ficava de olho nos bailes, sempre chamava a minha atenção com os horários pra chegar em casa, sempre me vigiando, mas eu sabia que era tudo numa boa, por amor. Lembro-me que em Botucatu não tinha muito que fazer, uma cidade com o clima frio, então ficávamos passeando de carro na avenida, subíamos e descíamos a mesma avenida e era muito engraçado. Corinthians é meu time de coração, magia de ser jovem, alegria e encanto da minha juventude. Falar do meu passado é buscar em meu coração lembranças que lá permanecerão eternamente.

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Rubião Júnior era o local das nossas sessões de fotos, dos nossos rachas com os Chevetes, me lembro que nos carros do Rogério e do Emerson tinha o toca fitas Roadstar que virava sozinho a fita cassete, os bobs nos cabelos para ficar com os cabelos parecidos aos das Panteras, as festinhas em casa que chamávamos de Brincadeira, das rebeldias, das roupas, das gírias e do momento triste quando recebi a noticia da minha mãe que iríamos nos mudar deixar Botucatu! Isso em 1983, deixar amigos (as) e enfrentar cidade diferente, Estado diferente, sotaques diferentes, gente diferente, escola diferente, cultura diferente, comidas típicas da região do norte de minas... Mas, as saudades e a tristeza de deixar a minha história, minha vida, minha primeira paixão, que na época namorávamos, amigos(as) e meus parentes. O dia a dia fez com que eu me confortasse e me libertasse do meu passado para seguir minha vida com um novo caminho em Montes Claros. Trabalhei no Banco, um dos clientes que mais me marcou foi o Godofredo Guedes um velhinho muito simpático e um artista incrível, guardo com muito carinho um quadro com uma dedicatória linda que confeccionou especialmente pra mim, desfilei, namorei, paquerei, mas sempre com a inocência de ser jovem. Lembro-me muito da Roda Viva, boliche e da Boate, onde encontrávamos com toda a juventude de Moc. Esses dias encontrei com o meu amigo Ricardo Júnior, famoso colunista dessa terrinha e nos lembramos do Bloco Amorecana... Em 1986 mudamos para Eunápolis – Bahia, o maior povoado do mundo e mais uma vez começou tudo de novo, encontrei um novo caminho e tudo começou a ser diferente novamente, cidade diferente, Estado diferente, gente diferente, sotaque diferente, gírias diferentes, culturas diferentes, comidas típicas camarão na abóbora, acarajés e ali na Bahia eu consegui transformar a minha vida. Seguir um novo caminho, crescer, ser mulher, recebi a benção e a dádiva de ser mãe aos 25 anos dia 20 de outubro de 1987 nasceu a razão do meu sorriso: Leandro Rodrigues Bacchi – Léo, meu filho tão amado. A vida me ensinou que viver é a maior bênção que recebemos de Deus, e, por isso, hoje sou feliz. Voltei para Montes Claros, saudosa da a terra do arroz com pequi e carne de sol, terra boa do tremor, do trem e do UAI e aqui estou até hoje. Todos me conhecem como Cláudia Bacchi. Funcionária pública desde 1989. Depois de muitos anos meus sotaques, minhas gírias se misturaram, um pouco de paulista, de baiano e de mineiro, o coração aprendeu a gostar das novas experiências, trazendo sempre as saudades dos meus amores eternos que se foram Cary e Teresa, meus pais. A modernização da comunicação me deixou deslumbrada, passei anos sem contato com as pessoas da minha juventude, ai fui encontrando os meus amigos (as) e meus primos (as). Suely, uma prima tão querida, sempre me dizendo que me ama, ela não imagina o quanto isso me conforta para diminuir as saudades de tantos

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outros primos (as) a família é grande, acabei conhecendo novos parentes. Através da minha amiga Carla recebi a noticia que a minha primeira paixão morreu de acidente de moto muito jovem, as pessoas seguiram caminhos diferentes, formaram famílias, são pais, mães, alguns já são avós. Fantástico!!! Novas gerações, novos jovens, novos pensamentos. Fiquei emocionada, espero encontrá-los um dia e ver o quanto nós continuamos Jovens. Obrigada, meu amigo Raphael Reys, por esse momento surpreendente, pela oportunidade de poder contar um pouquinho das lembranças da minha vida e fazer parte dessas 50 Crônicas de Juventude. Um dia acordei e percebi que a minha juventude estava se distanciando, esmaecidas num corpo de mulher! Se as transformações são inegáveis, embora o coração permanece jovem, nestes meus 50 anos. A vida da gente começa sempre no dia seguinte, um novo olhar, um novo caminho e uma nova história com sabor de juventude.

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Sou Denise Lima uma moça do sertão de minas, como tantas outras destas terras secas de meu Deus. Tenho gosto simples, como chuva, sol ao pino de meio dia, flores do mato, margaridas. Gosto de fazer as pessoas rir, gosto da sonoridade das gargalhadas daqueles que me rodeiam. Sou amiga de quem sabe ter amigos, sou fechada e tímida, terrivelmente tímida. Sou valente, mesmo morta de medo encaro a vida de frente e seus perigos. Não gosto de bate bocas, acho que por mais que se diga a verdade o desgaste de ficar discutindo não te leva a nada. Carinhosa, romântica, cheia de defeitos e limitações, uma delas e não saber esconder a cara de espanto diante daquilo que não entendo. Carrego bandeiras, até aquelas que não são minhas. Pois acredito no direito/dever de carregá-las. Se fosse para me definir: Elemento da natureza seria a chuva mansa, Se fosse flor = margarida, Se fosse bicho = cachorro, Se fosse para nascer de novo, eu mesma com menos defeitos e mais acertos.

BREJO DAS ALMAS

Denise Lima

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Brejo das Almas ficava depois de muitas curvas de uma estrada poeirenta e para lá chegar tinha de passar por duas ou mais horas de tormentas dentro do ônibus, pois muitas e muitas vezes o motor parava. E até chegar ajuda, levavam muitas horas. No meio do caminho tinha o bar e restaurante do Onofre, que era a festa da criançada. Descíamos, comíamos biscoito frito e tomávamos café com leite.

Logo depois vinha a entrada para os Mangues, terra de Seu Gonçalo. Era um homem imenso da cor do carvão. Pessoa de confiança de minha mãe de criação. Só ele podia me levar para passear nas férias. Seu Gonçalo fazia gosto e tinha cor de liberdade.

As férias antigamente demoravam um ano inteiro para chegar. Mas, também, parecia demorar um ano inteiro para acabar. Em dezembro, quem fosse bom aluno desde novembro já encerrara o ano letivo. Dezembro era tempo de ir à escola só para os esquetes (para quem não sabe, são peças teatrais), amigos ocultos, festinhas nas salas. E esperar a boa vontade dos professores em passarem as notas. Para os alguns, aqueles que tomavam recuperação, eram tempos de tristeza e humilhação, até ser novamente avaliados ou entrarem para a turma dos adiantados. Ou ainda esconder-se no meio dos meninos menores e esperar voltar para a mesma série no ano seguinte, no mês de fevereiro. De preferência depois do carnaval.

As férias de julho, para os bons alunos começavam antes das Festas de Junho. Passava Santo Antônio e antes de São João e São Pedro, já estávamos na roça de Seu Justino.

No sábado pela madrugada chegava Seu Justino e a tropa. Normalmente sua filha Gonçala vinha junto e mais uma meia dúzia de seus filhos que era pra bem mais de dúzia e meia. À tardinha, depois de ele fazer as compras no comércio do Brejo e vender a colheita no mercado pela manhã, subia na garupa do cavalo de Gonçala e lá íamos para os Mangues.

O trote dos cavalos nos paralelepípedos ensejava uma música bonita, chamando a atenção dos passantes. A tropa saia junta. Filhos, vizinhos e todo o pessoal que morava pras bandas dos Mangues, chegavam e saiam juntos. A dor nos quartos não era nada comparada com aquela sensação de estar longe dos olhos de pai e mãe por tanto tempo. À medida que embreávamos no mato, enfileirados, com as folhas batendo no rosto, crescia no peito aquela emoção e a sensação de estarmos soltas.

Guardávamos o sorriso e as palavras, por puro medo de quebrar o encanto. E, ainda, que alguém percebesse que ali já não estava mais eu - e sim uma pessoa imensamente feliz. Aquele era o meu sonho,

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um sonho que me sustentava todo o semestre. E tínhamos um medo imenso ao perceber que estar na roça não era um castigo, mas o maior premio do mundo.

De quando em quando, alguém se emparelhava com o nosso cavalo e oferecia algo para comer. Não havia pressa na cavalgadura. Cada cavalo sabia bem o seu tempo de marcha, sabia bem onde despedir da tropa e qual caminho seguir. Não havia parada para despedidas. Apenas um grito longo e forte de quem partia. E uma resposta em coro dos que seguia em frente.

Acho que a casa de seu Gonçalo era a última dos Mangues. Normalmente chegávamos tarde da noite, com o céu forrado de estrelas. Era chegar e cair na cama de couro, feita em forquilhas enterradas no chão de terra. Um chão tão limpo, tão bem varrido com vassoura de macela, que até se podia jogar farinha e comer.

No dia seguinte, a esposa franzina e sempre embuchada de Seu Gonçalo servia o café na mesa de fora. Era um amuntueiro de meninos e meninas, quase todos muitas vezes da mesma idade. Pois Seu Gonçalo era pai de muitos filhos gêmeos. Disputavam os copos feitos de lata de salsicha, a garapa, o biscoito espremido e o bolo de fubá.

A casa de uma ordem e limpeza tal, contratava com tanta gente e tinha na sala, em lugar de destaque, um imenso oratório, com a imagem de Santa Rita de Cássia em evidência. E uma profusão de santos e santos, decorados com bandeirolas desbotadas das festas anteriores e flores de plástico.

À tardinha, toda a família se reunia e rezava o terço. A essa altura o sono fazia com que a maioria dos meninos dormisse por ali mesmo, no chão de terra encerado.

Mais pra dentro vinha à cozinha, com um fogão branco nunca usado. Demonstração de riqueza e status daquela família. E nos fundos da casa, o lugar mais agitado: a imensa cozinha de fogão à lenha, com sua mesa imensa, cercada de dois bancos de madeira, onde todos sentavam e regalavam o bofe, com aquela comida com gosto de picumã recheada de temperos verdes. Feijão com caldo grosso, arroz socado no pilão, verdura do quintal, carne de animais criados e abatidos ali mesmo.

Lembro-me do gosto da abóbora cozida com cebolinha verde. Do pirão que fazíamos no prato com o caldo do frango e farinha - também ali produzida. Em cima desse pirão derramava-se o feijão, arroz, a verdura e coroava tudo com um pedaço de carne. Que todo

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mundo escondia no meio da comida e deixava para comer por último.

Na imensa dispensa da casa, com a chave muito bem guardada, ficavam as latas de banha de porco, onde eram imersas e conservadas as carnes de porco e boi, pré-cozidas. Os barris de pinga, os tambores de biscoito, os sacos de açúcar, arroz e feijão. As abóboras e verduras colhidas. Os quartos, e esses eram muitos, ladeavam a sala e a cozinha. De um lado o das meninas e do outro os quartos dos meninos.

E ao redor da casa de adobe e capim, o curral, os cochos das galinhas, patos e marrecos, as árvores. Mais distante, o rio.

E ali, mergulhada nesse maravilhoso cenário, longe de tudo e de todos eu podia finalmente entrar no meu mundo particular e ser feliz!

Muito feliz!

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Silvania Oliveira da Cruz - Naturalidade: Aracaju - Sergipe Curso Médio: Colégio Estadual Atheneu Sergipense - Aracaju (SE) Formação atual: Pedagoga especialista em Pedagogia Empresarial Filha única de Maria Cruz e Jayme O. da Cruz Gosta de literatura, Música, História da Igreja e Sagradas Escrituras, Canto Lírico, Girassol e Borboletas. Toca Clarineta, estuda Canto, faz Arte Cerâmica, escreve Poesia (especialmente erótica), faz Terapia, observa o mundo e o seu viver. Emociona-se com a sensibilidade humana e a crueldade desumana. Ama seus amigos, mesmo aqueles que lhe estão indiferentes ou que se encontram distantes. O meu relato aconteceu em uma fase da adolescência repleta de descobertas, surpresas, medos, desilusões, encontros e desencontros principalmente interiores. Ainda hoje me surpreendo com a individualidade e o individualismo, os meus e das outras pessoas.

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PARA MIM... Silvania Cruz Na década de 80, o Atheneu Sergipense era um dos melhores colégios da rede estadual. Historicamente, passaram por ali alunos que se tornaram grandes personalidades no Estado de Sergipe. Meu encantamento era pelo Teatro Atheneu, anexo ao colégio, e decidi que terminaria meu segundo grau nessa Instituição, apesar de não haver mais nenhuma vaga disponível naquele ano. Costumava ser paciente na busca da realização dos meus sonhos, emboramente muito tímida em minhas estratégias. Certa vez, o secretário da Escola que me negara a vaga para o segundo ano, encontrava-se sobrecarregado com fichas e pastas para organizar as matrículas e turmas para o ano letivo. Fiquei observando seu sufoco por algum tempo e resolvi aproximar-me, oferecendo uma ajuda voluntária. Ele sorriu ao perceber a iniciativa de uma garota de quinze anos, carregada de expectativas e esperança por uma retribuição tão nobre. Logo, em meio à organização das turmas, surgiu uma vaga. Penso que foi minha primeira luta vencida graças à simpatia, simplicidade e ao trabalho. No colégio, era tudo mágico para mim, aulas de teatro, dança cinema, artes marciais, música... Mas eu amava mesmo era o professor de teatro, música e poesia. Ah, que homem jovem e lindo! Sensível, competente, sabia aproximar-se tão bem dos seus alunos, identificando e incentivando seus talentos. Nessa época, eu fazia parte do Conservatório de Música através da banda da Secretaria de Educação e Cultura do Estado e tocava alguns instrumentos de sopro. Mas, sem dúvida, preferia agradar meu professor; recitava, cantava e tocava para ele. Era um ator e dançarino conhecido no meio artístico e eu me considerava a menina-mulher mais apaixonada do mundo, por um ídolo tão presente, e que me dava atenção. O que eu não enxergava era o seu idêntico interesse e dedicação por todos os seus alunos, sendo eu apenas mais um, entre tantos. Mas aquele foi um ano maravilhoso! Sabia-me muito tímida e encabulada, e não olhava para mais ninguém na hora de me apresentar na sala de aula ou no teatro, apenas para a minha paixão secreta, com meus singelos atributos artísticos. É claro que o professor jamais percebeu o sentimento que tinha por ele, pois apenas descobrira uma maneira de amar, permitindo, assim, compreender o poder da poesia, da música e das diversas artes e expressões que nos levam a revelar os nossos sentimentos e sensações, aflorando-os.

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Certo dia, ele, o professor, organizara uma festa em sua casa para comemorar seu aniversário e convidara seus alunos, com a autorização dos pais. Enfim, surgira uma feliz oportunidade de tocá-lo, abraçá-lo e lhe dizer as coisas guardadas no meu coração. Eu sempre imaginava, concluindo o segundo grau, com meus dezessete anos poder assumir essa paixão sem nenhum impedimento ético. Ah, quantas fantasias românticas, tão próprias dos adolescentes... O meu despertar para a realidade aconteceu de uma maneira inesperada, inusitada, até mesmo cruel para um coraçãozinho juvenil. Nós, alunos, nunca soubemos de nenhum envolvimento do professor em termos de namoro e isso sustentava minha ilusão. No dia da festa, eu estava lá, feliz por poder conhecer seu jeito de viver, suas coisas... No fundo da casa havia um jardim, tão romântico e tão florido... Enquanto a festa acontecia, fui visitar aquele recanto... E, sem esperar e sem que alguém me visse, flagrei meu amado, meu ídolo, abraçado e trocando beijos com um rapaz, totalmente desconhecido, um intruso na minha férvida paixão! Mesmo terrivelmente chocada, recebi ao vivo e a cores a dura lição das contradições humanas, dos enganos a que nos levam as aparências, da secreta índole e individualidade de cada um, em suas tantas vezes surpreendentes opções de vida, tão presentes na diversidade deste mundo.

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Raphael Reys. Jornalista, Memorialista “Full life”. Escreve nos jornais O Norte de Minas, www.onorte.net, Jornal de Notícias, www.geraisnews.com, e Gazeta do Norte. Em virtude dos estudos em escolas iniciáticas, redige escrita filosófica e refletiva do cotidiano. Quando está apaixonado faz prosa poética. Viandante, gregário, aglutinador, sensitivo. Solitário pensante. F.R.C. da Ordem Rosacruz, milita na Legião de Benefactor. Membro da Grande Fraternidade Branca. Cavaleiro do 7º. Raio no Vale do Amanhecer. ANJOS DE BARRO (trilogia) Raphael Reys A urbe campesina da minha juventude era dotada de tipos simples, portadores da sabedora nativa e sentimentos puros. São almas enviadas a esse mundo doido, em missão para nos trazer a sustentabilidade.

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Eles trazem no forno alquímico dos seus corações um natural método de depuração de sentimentos e emoções. O Artífice os criou no seu Nicho de Nodim o fez com suas mágicas mãos e sabedoria. Vendo a trajetória dos mesmos chego a pensar na reflexão poética de Calderon de La Barca: Es La vida sueno, solo? Em minha narrativa, trarei três deles, personagens da minha alegre juventude: GAU, O SIMPLES. Estatura alta, tez mulata, corpulento, musculoso, carrancudo e generoso, um galalau. De nome, Olegário Maciel, este era Gau. Amigo do peito e empregado da fazenda Lagoinha de propriedade de Biô Maia. Derrubava uma rês no muque. Alpercatas de couro, canivete Corneta, palha macia e fumo de rolo goiano, um boque com acendedor de pedra e ferro, calças de Triunfador amarelo, camisas de riscadinho. Vestia-se sem cuidado, igual aos lírios do campo. Na bainha uma lambedeira 12. No peito um patuá dependurado em um cordão de algodão com sete nós. Coisas de sua origem campesina e ligadas a ritos afros. Presente que recebeu quando menino de sua avó Belmira cadomblezeira. Meio desligado das coisas deste mundo bobo, meio desatento. Seu espírito passeava no etéreo e ele caminhava na realidade opressora desse mundo doido. Sancho Pança do Dom Quixote Biô (Gabriel da Silva Maia), proprietário das terras, assim era o nosso herói. Nos anos 50 ele vinha à cidade buscar a menina Quita Maia (irmã mais nova de Biô) para passar uns dias na fazenda no Cedro. Imitando Ford Bigode, ele botava a cunhã pendurada na sua costa e saia com as mãos suspensas segurando um guidom imaginário e guiando feito carro pelas trilhas da Malhada, até a propriedade. Pisava tão macio que a menina chegava dormindo no destino. Em 1967 com a venda das terras, seu único rincão, veio com o seu amigo e patrão, morar no apartamento de Quita Maia, já adulta e casada, na Rua Dom Pedro II, no centro de Montes Claros. Não ficou embora tivesse cama, mesa e banho. Detestava modernidades, não misturava o seu barro humano as gentes da cidade. Chegou a comprar uma alpercata Roda para passear a noite com Biô no footing da Praça Coronel Ribeiro. Assustou-se com a mistura de aromas dos perfumes usados pelas meninas moças. Nuit de Noel, Lorigan, Chashemere Bouquet. Estava acostumado ao cheiro de suor e brilhantina Glostora. Na morada nova havia escadas e os botões do elevador para apertar. Ele não sabia mexer nessas modernidades. A solidão da urbe agregou à sua alma o peso da saudade. Quando se botava a beber a cachaça, sorvida na meiota, aliviava. Às vezes, duas meiotas. Era difícil subir todos aqueles degraus variando o guengo com os parietais pegando fogo e as pernas bambas.

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O bom mesmo era morar no plano, no chão de Meu Deus, lá na beirada da serra, onde tinha canário cantador sob a amplidão dos céus, as lagartixas comendo inseto nas palhas. A modernidade trouxe a telefonia e, com ela, o aparelho de baquelita preta da Siemens. Chamado para receber um comunicado do patrão, vindo em espirais metálicas pelo telefone e como o berço não lhe embalara a retórica, exclamou no dialeto pé-quebrado, estando espavorecido. Ué! Como é que cabe seu Biô aqui dentro desse trem preto! Ato seguinte arrancou os tentáculos e artérias daquele monstro grudado na parede. E com sua violência em nome do pudor, quebrou tudo visando libertar o patrão, possivelmente espremido ali na barriga daquela instrumenga. Voltou para a fazenda e foi morar numa palhoça de taipa. Um pau-a-pique com telhado de sapé e chão de barro batido no pé do morro Dois Irmãos, figura símbolo da nossa cidade. Debaixo da ramada, uma rede feita de palha de tucum, um toco servindo de banco, um pilão velho e umas cabaças ocas. Morada de pequenos viventes da chapada. Dizem que criou uma pendenga com o novo dono das terras! Não tinha mais Biô para dois dedos de prosa, agora conversava com os duendes, com o espírito da serra e com o caipora das florestas. Assoviava para os fogo-pagô que pulavam no capim nativo e usando um apito de madeira imitava canário-pardo, sabiá, bicudo, e galo de campina, esse foragido da gaiola do vizinho. Pássaro trazido de Campo Maior no Piauí. A noite se botava no sereno a escutar o choro da mata no anoitecer e o chiado do chocalho da cascavel marcando presença. Nos serrotes de pedra, uma lapa, morada de um gato maracajá que urrava imitando onça. Pura técnica de sobrevivência. Assistia o sol nascer, via as sombras do lusco-fusco e as assombrações da chapada. Dizem que chegou a ver um Saci-Pererê de gorro vermelho pitando um cachimbo cotó. Vento de agosto, o mês do desgosto. Uma lufada de ar atiçou uma faísca do fogão de barro e a Salamandra do pé da serra pôs fogo na palha do casebre. Naquela noite, Gau, tinha tombado no chão de terra batida, vencido pela cachaça branquinha, saída da cabeça do alambique e ingerida sob a égide da tristeza. Há controvérsias! E aí, foi fogo no lombo. Ficou que nem tição. Virou cinza! Retornou às cinzas de que viera e como uma Fênix, sua alma alçou vôo com as asas de Piteros. Gigantes, efebos e homens-menino, quando morrem vão para o Oráculo de Oxalá.

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Gregorino Deitado. Foto aos 90 anos de vida. GREGORINHO DEITADO Nasceu Gregório Pereira da Silva na campesina Brasília de Minas (MG) em 1910, era em que a providência divina mandou a esse mundo de manifestações, uma plêiade de grandes almas. Neninote ainda, o destino o levou para a Fazenda Brejeira, município de Santa Rosa de Lima, terra da boa cachaça. Como uma cantiga de grilo, viveu ali com a família de Sebastião Souto, por oitenta longos anos. De biótipo pequeno, morenado, ossudo e por ser careca, usava sempre um boné. Com o peso da idade, aos setenta anos, andava bastante encurvado e Marilene Souto, que assumira a direção da fazenda de criação, o chamava de Gregorinho Deitado. Era um libertário, viveu como um ermitão em sua choupana limitada por cerca de pau a pique entremeado com vasta folhagem, o que garantia a sua privacidade, necessária as suas artes mágicas, rezas e mandingas. Acordava as quatro da matina, fazia e degustava a sua feijoada curraleira com umas boas talagadas de pinga corada. Carpinteiro dos bons confeccionava como ninguém uma roda de carroça, um escurraçador. Sabia manejar o gado, curava bicheira e acalmava a boiada quando em descontrole. Relatam os locais, que ele conversava com os bichos e a criação. Gostava de viajar com a comitiva do patrão conduzindo a manada para os frigoríficos e compradores. Quando idoso, o senhor se

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recusava a levá-lo na jornada, ocasião e que batia os pés na cancela do curral e fincava uma pequena vara de madeira no chão. O gado ficava estático. Não se movia nem a ferrão! Aí Tião Souto liberava a sua ida, ele selava o seu alazão, seguia na cabeceira da peãozada e a trupe rompia mansa. Nosso herói sabia fazer reza para afastar cobras e onças da propriedade. Tinha sua própria plantação de verduras e hortaliças, assim como ervas das quais prepara chás, infusões e garrafagens curativas. Criava pequenos capados, cocas, galinhas. Em pequenas cabaças no seu oculto quintal, moravam lagartixas, coelhos, gambás e outros entes da mata. Dado a sua idade já avançada, a nova patroa cuidou da sua aposentadoria e o desobrigou de prestar serviço à propriedade, mantendo a sua morada e a convivência íntima com a família. Em suas constantes idas e vindas, a Serra da Cruz Alta, Gregorinho relatou ter visto o pouso de um OVNI. Levou pessoas para constatar as marcas redondas, deixadas supostamente pelo trem de pouso da nave, da qual, consta ter decido ou desembarcado “cinco hominhos orelhudos”. Aos noventa anos, idade da luz carecia de internamento hospitalar e quando ia ser trazido a Santa Casa da nossa urbe, perguntou a sua patroa: Marilene! O que é esse tal de hospital que eu vou? Recebidas as explicações convincentes veio receber socorro médico. Foi sua última posada. O Pai carecia dele nos mundos Súperos e o levou de volta ao seu oráculo. No Sétimo Céu de Beatrice! DENÇO. Batizado Lourenço, Denço nasceu nas águas de março, abençoado por São José e sob a proteção das almas ciganas. Um king curraleiro, filho do gênio da humanidade. Cedo ainda, recebeu de sua avó, a velha Belmira Rezadeira, benzeções, contra-mandingas e as artes do catimbó. A matriarca era filha de escravos livres, nascida no final da era dos oito, na Cachoeira do Jaguar. Bahia de todos os Orixás. Intuitivo, logo percebeu que os animais domésticos falavam a sua própria maneira. Bastava para isso, assuntar a sua linguagem corporal e a expressão dos olhos, janelas da alma. Tinha o Amarelão, um cão mestiço de estimação que vivia na larga, a rolar na beira de currais e a lambuzar-se de lama nos córregos. Passava horas deitado no chão de terra batida da cozinha, na casa do patrão, a escutar o pipoco das brasas e as chamas da madeira que queimava no fogão de lenha. Vivia espreitando o gato manhoso que se aquecia nas cinzas do borralho e a escutar os dois dedos de prosa das comadres e compadres, sempre de caneca esmaltada na mão esperando um gole

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de café moído no pilão e adoçado com rapadura. Amarelão aprendera a sentir as intenções dos humanos pelo vitrô dos seus olhos. O menino Lourenço era alma liberta das coisas e peias do mundo. Vivia mergulhado em seu universo interior. O barro do qual foi constituído, fora avivado pelo vento doce do Astro Taunay. Sabia fazer reza catimbozeira, ficar oculto de alguém, passar em chuva sem se molhar. Afugentava cobras, escorpiões e marimbondos. Quando desafiado por algum infante desafeto rezava no pisadô. O dito tropicava e batia as fuças no chão! Assobiava notas de um mantra e cachorro bravo vinha de mansinho lamber o couro das suas alpercatas campesinas. Rouxinol, seu burrico branco, quase albino, mais parecia um unicórnio tupiniquim. Aos onze anos, viajando pelas escarpas da Serra da Jaguatirica, em noite de chuva pesada, caiu em uma enorme fenda entre os paredões das rochas. O Cavaleiro da Lança Negra viera buscá-lo. Ele havia terminado a sua missão na terra. Com ele caíram Rouxinol e Amarelão, que também estava na garupa. Bem que no dia anterior tivera um presságio. Perdera a sua medalha de São José e o coração pediu-lhe que adiasse a viagem. Denço, Rouxinol e Amarelão foram-se ajuntar à boa alma da Belmira Rezadeira que cantava ponto na Roda de Aruanda, no Oráculo de Oxalá.

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A SEMÂNTICA LIBIDINOSA

(trilogia) Raphael Reys PINGUELO. Branca, meio azeda, sarará, cabelo esticado que nem vassoura de piaçava, 1 metro e 80, mais parecendo um lutador de sumô, pele pintada qual surubim, olhos de espantada, pés tipo sapata, pescoço taurino, ombros de atleta halterofilista, nariz achatado, denotando uma grande capacidade basal. Sinal claro de uma libido intensa. Seu nome, Mariona. Dentes graúdos, busto pequeno, pontiagudo e firme. Boca grande, lábios carnudos, com sinais de vitiligo, olhar malicioso. O jeito de andar era pesadão, ajumentado. Dava parada súbita e volvia o pescoço olhando e encarando quem a observasse, com um surpreendente sorriso infantil, meio sem jeito. A sexualidade, entretanto era adulta. Veio da roça para trabalhar no apartamento de Calisto, morador no primeiro andar do Banco Comércio, do qual era gerente. Lá residia o menino Bardo, codinome Bardinho, um enfant terrible, com orelhas de burro e tridente de capeta. O rebento era a mais pura assombração pueril. Numa placa de alumínio em baixo relevo na entrada do prédio, havia as iniciais: B.C.I.M.G.S.A. (Banco Comércio Indústria de Minas Gerais Sociedade Anônima). Zé Amorim, o filósofo de Figueira, ao ver os dizeres da placa, decodificava as letras: “Brigadeiro Comeu Irmã Mulher Getúlio Sem Autorização. Em seguida, de trás prá frente: Assim Sendo Getúlio Mandou Imediatamente Capar Brigadeiro”... Eu tinha quatorze anos e como outros meninos espertos e já iniciados na vida sexual, ficava no passeio ao lado da Loja Acaiaca, para vê-la aparecer na janela e mandar beijinhos sensuais. Como eram correspondidos, logo na seguinte tarde de domingo marcávamos a atividade de alcova num quarto alugado em uma casa de encontros na Rua Risério Leite, no Bairro Morrinhos. Embora fosse de origem roceira gostava de dançar um belisquete e tomar um campari, de leve... Meia de fogo ficava estabanada. Aí a coisa pegava mo tranco e no barranco. Ela tinha fisique du role de lenhador canadense, mãos enormes, dedos idem, braços musculosos, pescoço suado como de um vaqueiro no campo. Na

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alcova levava mais de duas horas nos jogos de amor, no exercício das preliminares (meio abrutalhadas), antes de entrar definitivamente no platô, aquele período que antecede ao orgasmo feminino, propriamente dito. Tomava postura ativa por cima do feliz parceiro e cavalgava ao bom estilo californiano. Era preciso ter fôlego e disciplina, pois ela assumia o controle dos trabalhos e das emoções. Próximo ao seu apogeu genésico, suas mãos grossas levantava a colcha com o feliz e assustado parceiro dentro, mantendo-o suspenso e acompanhando, num erótico balanço, a cavalgada final. Aí, com os dentes cerrados, dava a sentença final: se você terminar antes de mim, eu te mato! Era a mais pura inquisição de alcova, caro leitor! Uma tarde me queixei a ela de que toda vez que ficávamos juntos eu saia da relação com a genitália riscada por alguma coisa perfuro incisiva. Para meu espanto de pequeno homem, ela acendeu a luz e, pela primeira vez, mostrou-me o seu clitóris intumescido, do tamanho de um dedo mínimo de adulto, duro como um espeto. Aí, fiquei muito grilado e saltei fora dos encontros. Não dava para botar a minha radiola na jogada e encarar tanta defasagem genital, sabendo do suposto perigo... Bardim informou-me que a nossa heróina veio a falecer aos trinta e cinco anos de idade, com complicações cardiovasculares. Não era para menos, pois seu esquentado coração de filha de Vênus não resistiu ao enorme desgaste provocado pelas flechadas de cupido... MARIA BOCAIUVA Embora ainda nos seus vinte e cinco anos de vida ele era chamado de Velho, pelas suas barbas longas e de cor louro claro. Denotava senilidade. Tez clara, aliada ainda a seu jeito recluso e arredio com o tórax curvado. Um caladão! Oriundo de uma família de mecânicos, todos os membros masculinos tinham o mesmo apelido de Velho, precedido pelo nome de batismo, usavam a mesma barba longa e alva. Destemidos e temidos, dado aos seus temperamentos coléricos e explosivos. Uns valentes. Não levavam desaforo para casa! O nosso mecânico tornou-se um dos clientes preferidos da Maria Bocaiuva, uma profissional do sexo que fazia ponto cativo no cabaré de Zé Côco. Ela, como era muito requisitada, tinha status, o que lhe permitia usar um quarto com porta privativa voltada para o Beco dos Carijós, ao lado. Embora já quarentona, não demonstrava ter tal idade, dado ao seu biótipo mignon e a sua afra-descendência. Tinha a cor morena-índia e os cabelos pretos e longos. Charmosa, suave, insinuante embora calada, escolhia seus parceiros a dedo. Só ficava com quem lhe

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desse também prazer, e obedecesse aos seus desejos, além de ter habilidade nos jogos eróticos. Daí a sua potencialidade como profissional da noite. Era a estrela que mais brilhava no conjunto chamado Cabaré de Zé Coco! Conhecido soldado de polícia, que fazia patrulha preventiva no ambiente noturno era um dos seus fregueses e teimava em ser o absoluto. Vivia cercando os demais concorrentes, escorraçando-os, usando a sua distorcida autoridade até que topou com mecânico na sua reta. Aí a vaca foi pro brejo! O mecânico, como era um valentão e não despachava para o bispo, não cedeu ante a suposta autoridade, reagiu deu-lhe um coro. O homem ficou trinta dia fora de ação. Velho continuou a sua rotina, de quando chamado ir fazer amor com a morena tropicana. Uma delícia suculenta. Uma alcova de surpresas eróticas e exóticas. Uma filha de Vênus, ninfa encantada dos prazeres. Pura luxúria tropical. Ela agendava o feliz escolhido e o aguardava garantindo-lhe exclusividade por uma noite. Puro Romantismo curraleiro. Tinha apogeus múltiplos e fazia como ninguém uma espanhola completa. Por um ano, fui um dos privilegiados de agenda desta filha de Vênus. O escolhido para passar a noite tinha que ter fôlego, e preparo físico, pois, a cada hora ela atiçava a libido e começava tudo de novo. Era ninfomaníaca! Uma atriz de estúdio. Mestra de alcova, sacerdotisa dos pecados da carne. O colchão posto sobre a grande cama era recheado de capim de flor de Marcela, cheiroso, proporcionando um clima de natureza interiorana e para agüentar o tranco e o barranco das muitas noites de alcovas. O auge da maestrina era o orgasmo calda de chocolate. Ela por cima controlando a penetração, até que o seu líquido uterino descesse a calda que cobria a genitália do feliz parceiro. Um espasmo profundo! O militar em questão posto em dupla Cosme e Damião com um colega de patrulha, acertou praticar um hediondo crime. Permaneceram esperando que o herói, após o ato de amor com a cobiçada dama da noite, naquela noite fosse, conforme hábito, tomar várias cervejas e saísse do dancing de Zé Coco, cuja entrada ficava na rua Corrêa Machado. À porta, um poste de concreto da central fornecedora de energias dificultava a passagem de qualquer pessoa adulta, a entrar ou sair do salão do cabaré. Ao se retirar do ambiente, o mecânico, cliente da dama da noite foi cercado e covardemente atingido. Seis petardos de calibre 38 no tórax! Os criminosos fugiram imaginando ter matado a sua vítima, e os frequentadores do dancing e as damas da noite caíram no bengo. Velho, que estava bastante bêbado mesmo atingido por seis tiros montou na sua bicicleta e rumou para a garagem nos fundos da

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residência dos seus pais, a uns seis quilômetros do local do atentado aonde ao chegar, caiu desacordado. Amigos comuns sabedores do acontecido, saíram à sua procura e seguindo as marcas de sangue, o localizaram. Ato contínuo, o internou na Santa Casa. A vítima, antes de ser operado, fez sua família de valentes, que já fervia de ódio com o covarde atentado, jurar que não haveria a vindita. Pois acreditava ser aquele incidente um aviso divino para que mudasse de vida. Recuperou-se, se encontra vivo até hoje e tornou-se, desde aquela época, em 1967, um missionário religioso. Maria Bocaiúva veio a falecer num acidente automobilístico que vitimou em 1970, quarenta profissionais da noite suas colegas que, como ela, se dirigiam ao trabalho, buscando faturar alto nas festas juninas da Serra das Araras, no Norte de Minas, que duravam trinta dia. O local do sinistro, próximo à cidade de Mirabela (MG) ficou conhecido como “Curva das Raparigas”. MARIPOSA PELADA A loura era um mulherão sensual, verdadeira capa de revista. Uma modelo de encher os olhos e dar água na boca. Fora contratada por um dono de boate, um show inaugural de strip-tease. Viera de Belo Horizonte, onde se exibia como atração maior na antiga Sagitarius. O “sistema” composto por empresários da noite promoveu um jantar reservado e bastante concorrido, para homenageá-la e para se entrosarem com ela, com o objetivo de, por seu intermédio e conhecimento, contatar novas modelos, para o mercado local. Naquela noite, a casa estava lotada. Convidaram-na para que ela praticasse uma terapia campesina passando uns dias a descansar na terra de Figueira, tudo por conta dos anfitriões. E para que fosse feita a escolha do seu ‘cicerone, ’ estavam presentes os Don Juan, os galãs, e os garanhões. O monumento de mulher, expressão máxima da criação humana estava sentada no centro do salão como a rainha do pedaço. Iria apontar o “sortudo”. Não me encontrava ali para tal mister, circulava pelo ambiente como um amigo da casa, e com passagem livre na noite e que tomando o meu Chivas, fora para aplaudir, e morrer de inveja do “ganhão”. Ela apontando para mim disse: quero aquele gato de camisa de seda que parece Jean Paulo Belmondo. Só fico se ele aceitar! Foi o maior corre-corre! Rogaram que eu “aparasse o cavaco” representando a estirpe máscula dos montes-clarinos. Era o dia da caça. Dia de a guerreira amazona escolher a vítima. Era o meu tempo de glória. Hora de

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fazer valer a drumoniana “semântica libidinosa de homem da roça” aliada a ‘ mística romântica dos currais e dos comedores de pequi’. Quarta-feira 10h00min horas, após três dias de paixão, regrados a Jack Daniel, tudo à mão, na suíte de João Comodoro velho (que funcionava na boate de Zinha) e, como o telefone não funcionou para chamarmos um táxi, fui apanhar um lotação, num ponto em frente à entrada da Cerâmica Cowan, na avenida. Descemos escorregando pela escada irregular cavada no barranco de terra em frente da boate indo parar suados, sob as vistas do Zé Amorim, cuja mesa de gerente ficava na sala de entrada do prédio. Em posição frontal aos dois pombinhos de olhos inchados. O nosso Zé, por sobre os óculos, a tudo já reparara. Uma loura daquelas àquela hora do dia, com o sol a pino, trajando vestido de noite, negro transparente, despertava suspeita. Entramos sala adentro e pedimos a ele que já nos recebera em pé, para tomarmos água gelada no bebedouro. Amorim cavalheiro e formal como sempre e, supondo se tratar a visitante de uma “dama” em visita a city mandou trazer e serviu com toda ênfase, água gelada e cafezinho numa bandeja de prata 20. Informado de que iríamos para o centro, prontamente se dispôs a que o motorista nos conduzisse no carro da empresa, já que o ônibus costumeiramente “demoraria”, como observou elegantemente. Com toda finesse nos acompanhou até a porta. Ao embarcarmos, Zé chamou Wanderley e mostrou-lhe a cena dizendo: Veja que senhora maravilhosa e de braço dado com aquele animal sortudo! Conhecedor da noite, Wanderley respondeu: Aquilo não é uma senhora não, Zé, é uma dançarina que veio de BH, para ensinar as mariposas de Montes Claros a dançarem peladas. No dia seguinte, às 08h00min horas, chamaram-me à porta do meu escritório na Rua Visconde de Ouro Preto, centro ao lado do Hotel do Salvador. Era o Zé Amorim e o Wanderley, que me convidavam para tomar um cafezinho na lanchonete do Tonin. Ao ver-me, o Zé sentenciou: Cabloco! Você e aquela mariposa pelada tomaram café e água gelada servidos na bandeja de prata, dentro do meu gabinete! O dia que Walduck Wanderley, meu amigo do peito for eleito presidente da República e me nomear Ministro da Justiça; cidadão irresponsável do seu naipe será executado em praça pública, com seis disparos de trinta e oito, no centro da caixa torácica! Pá... Pá... Pá... Pá... Pá... Pá..! “Eu mesmo levarei a cabo a sua liquidação como exemplo para o mundo!” – Foi uma gargalhada geral.

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SORVETE COM COCA COLA. Raphael Reys O veículo fora emprestado sob mil recomendações. Viajaríamos a uma cidade próxima para uma festa típica da rapaziada e queríamos aparecer num carrão exótico. Demos um polimento na lataria, tornando-a mais brilhante e partimos para o ensejo. Uma estrelada noite de folia no ano de 1964, felizes, ainda sem a égide da Dita Dura. Passei uma pitada de colônia Lorigan no cangote, para ficar cheiroso e dançar com aquela garota canceriana trajando vestido de florzinhas, estilo Bangu. As cinco da matina, quando voltávamos no silêncio da madrugada, no calor do Chivas bebido, curtindo o barulhinho sincronizado do motor do Simca Chambord, com os feixes de molas bastante flexíveis que fazia o carro baixarem a traseira elegantemente, ao passarmos pelo temporizador que havia na Avenida Geraldo Athayde, Alto São João, Montes Claros (MG), falamos todos ao mesmo tempo, instruindo ao motorista, a esta altura já chateado pela cautela excessiva que tomávamos com o veículo emprestado: Vai devagar... Olha os trilhos... Cuidado com o feixe de molas... Curtíamos o balanço suave do automóvel francês e, ao diminuir a velocidade, já na baixa, ouvimos os gritos de um conhecido, que corria vestido somente de cuecas brancas, com botões de pressão, clamando desesperado, que abríssemos à porta do carro. Escancaramos uma entrada sem parar o veículo, e ele pulou para dentro de qualquer jeito, rogando para acelerarmos... Atônitos, pois não sabíamos o que estava acontecendo, ouvem os estampidos de arma de fogo em nossa direção. O marido traído chegara de viagem e surpreendera o nosso conhecido pé de pano com a esposa, e agora armado, o perseguia pela baixa do bairro. Encontrando o descampado, o portador dos apêndices córneos iniciara os disparos objetivando eliminar o feliz Ricardão do mundo dos vivos. Mais asilados do que primos de cachorro, imprimimos velocidade no veículo que parecia não sair do lugar. O nosso desespero aumentando, os disparos já perto, os gritos dos ocupantes, que a essa altura já estavam curados da ressaca. O motorista dirigia agachado sem olhar para frente, o paredão de concreto (de contenção e segurança) do posto de combustíveis à frente esperando-nos, a curva esquerda acentuada e escorregadia da avenida lateral do Montes Claros Tênis Clube (Praça de Esportes) se aproximando, com aquele poste do lado direito que já provocara a morte de muitos. Os tiros não paravam e o tempo não passava. Após escutarmos o sexto disparo e já concluída o recurvo fatídico, feita somente sob as graças do Divino e passado o perigo, paramos

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na esquina da Avenida Padre Chico. Botamos o Ricardão para fora, e demo-lhe uma bronca. Assustados, esvaziamos as bexigas, já para estourar e conferimos à lataria do carro, procurando marcas de perfurações. Para a nossa sorte, o marido traído como sempre, no calor da descoberta, não acertou uma. Respiramos aliviados, e ao entrarmos novamente na condução, só aí é que notamos os bancos recendendo à urina. Dois dos ocupantes haviam vertido nas calças. No dia seguinte, para entregar o empréstimo de volta, foi preciso uma comissão para fazer as justificativas ao proprietário atônito. O homem ficou fulo! Em represália, encomendou outro modelo da mesma marca importada, da concessionária em São Paulo. Para descarregar o seu ódio, o automóvel mijado foi dado de presente ao seu motorista de confiança, que havia se aposentado recentemente. Entre mortos e feridos, salvaram-se todos! Frequentávamos a Sorveteria Cubana, fincada na confluência das ruas doutor Santos e Pedro II, no centro comercial da urbe em minha adolescência, o prédio onde nos anos 60 o empresário Benício se instalou. Foi o point da galera que ali se relacionavam nas tardes e princípio de noites dos sábados, domingos e feriados, às vezes durante a semana na sortida lanchonete, sucessora das antigas leiterias, em que se inovou um aprimorado serviço de fast food. As vovós e vovôs de hoje, quando moçada ainda romântica, namoravam nas mesas da Sorveteria Cubana, comendo fatia de bolo com garfo e faca quando eram servidas suculentas Vacas Pretas, Vacas Amarelas ou tomando inocentes guaranás. Era o fim do romantismo! Alguns bebiam acanhadamente Cinzano Rossi, Martini e vodka Smirnoff, essa última na versão hi fi, embora a moda fosse Cuba Libre. ( rum com coca-cola) O proprietário, atarefado entre o serviço de balcão e o caixa, correndo para atender uma demanda sempre crescente de mocinhas e rapazes cabeludos, não notava o cano que alguns rapazes aplicavam. Reginauro Silva e outros inconfessos compravam dois sorvetes e davam no pé sem pagar, aproveitando a confusão. As inocentes namoradas aguardavam à porta do Cine Fátima, sem saberem que o namorado estava liso e aplicara um golpe no Cambuí, para agradá-las. Depois de lavar as mãos e a boca e ao som de Doucement Mon Amour, assistiam aos trailers e aos chorosos enlatados da moda. Ver trailer dos Beatles, mocinhas usando cabelo com coque e cheiro de laquê, resíduos das festas de gala da noite anterior. Os mais ousados, Felipe Gabrich, Fernando Gontijo, Deca Rocha e outros notívagos, iam à matinê levando alguma dama da noite, apanhada propositadamente nos românticos lupanares da época. Era só para mostrar serviço e provocar falatório.

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Esperar o filme 8 e meio de Felline, a obra prima da Cinecitá, de ver e se arrepiar de medo com o suspense de Hitchcok em Janela Indiscreta. Melosas fitas italianas ao som de Dio como Ti Amo. Da Cubana partíamos para os Bares Cristal, Restaurantes Intermezzo e Mangueira. Naquela esquina, marcávamos as festas dos clubes volantes, os piqueniques nas fazendas, as manhãs e tardes de picina no Montes Claros Tênis Clube, a hora dançante no Clube Montes Claros e o frison da boate da Praça de Esportes. Sabíamos em primeira mão dos novos amores, das broncas e das presepadas. Paz e de romantismo à porta da sorveteria, uma cidade interiorana e divertida, ainda inocente, servida por uma bem sortida rede de restaurantes e bares, com atendimento pessoal e a preços módicos. A Bossa Nova alegrava os nossos corações com a doce voz de Astrud Gilberto, o pistom de Stan Gats, e o dedilhar do mágico violão de Baden. Beijos com sabor de Milk Shake, drops Dulcora, balas Toffe, cigarros Colúmbia acesos com isqueiros Ronsom. Tempos de Nensão Maurício solando Garota de Ipanema e de Julião Prates datilografando com os dedos na mesa do bar, de maneira instintiva as conversas que rolavam de tempos que não voltam mais. Viche Uai e Virgínia de Paula, uma flor colhida no Jardim de Yemanjá com suas anotações, para o diário de frases ouvidas, nas rodadas de conversas jogadas fora, via nossos corações saudosistas...

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A INICIAÇÃO. Raphael Reys O cenário era a Fazenda Larga de propriedade da família Durães Oliveira, no alto do platô. E ao chegarmos, e após termos passado pelos caminhos que circundavam a serra, e abertos os vinte e sete mata-burros, numa verdadeira Via Crucis, desfrutamos o clima de montanha. Propício a um bom e reparador sono; dormido em um colchão recheado com flor de marcela. Era o puro e exótico cheiro dos sertões. Na nossa bagagem, uma caixa de Cachaça Viriatinha! A mais pura corada da urbe. Como na propriedade não havia a presença incômoda de muriçocas, a primeira que se desprendeu de uma peça de roupa dobrada, que levamos, e ao ser vista, provocou uma perseguição envolvendo todos. Só paramos após a captura e extermínio da vampira. Numa noite em que lá estávamos numa serenata ao luar, contemplando a vastidão dos céus, do alto da montanha, tomando umas e escutando o arrojo do acordeão de Dizim Barbosa; resolvemos para contrariar o clima reinante, abater um porco preto e magro que circulava por uma manga próxima a tiros. Dico Barbosa alegou para o seu pai Durval Durães, termos atirado em uma onça preta que rondava a sede na escuridão. Da carne, fizemos farra abastada por três dias. Como nas pedras no alto do platô havia uma manada de bodes e cabras, que voltaram à vida selvagem após fugas progressivas há mais de uma década, aproveitamos o ensejo e preparamos uma caçada, montados a cavalo e usando carabina Papo Amarelo e cartucheira mocha 16 como armas. Dico Barbosa me empurrou como montaria um cavalo já selado, de que não gostei á primeira vista; a intuição me fez refugar aquele animal, entretanto a turma forçou e acabei aceitando, e caí na armadilha do cavalo maniado, que era o ídolo da fazenda. Ao aproximarmos das pedras no alto da serra, me deixaram como o último da fila na exígua trilha, que ficava ao lado de um enorme precipício, do qual se avistava parte do Norte de Minas. Lá embaixo as mangas de colonião dos Gomes e as casas vistas daquela elevação, do tamanho de uma mosca. Eu estava com um mau pressentimento, já sentia um frio enorme, arrepios, quando o dito quadrúpede, deixando as patas dianteiras apoiadas na trilha, jogou a sua traseira no despenhadeiro. Impossibilitado de subir de volta, agarrei instintivamente na cabeça do cavalo e gritei por socorro aos demais companheiros; quando escutei a algazarra. Desceram das montarias e rolaram no chão de tanto rirem, todos por lá já conheciam o mau costume do cavalo para com os visitantes incautos.

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Depois de alguns segundos pendurados no precipício assustador, a montaria subiu de volta a trilha, e para completar o meu assombro, relinchou de contentamento, por haver feito o batismo de mais um trouxa. Passei o resto do dia com a moral à zero. Teve companheiro que foi acometido de cólicas de tanto rir. A caçada não deu em nada, os bodes e cabras eram muito ariscos e se escondiam entre os talhes das pedras altas; não se conseguia fixa-los facilmente, para corrigir a pontaria. Levei dois dias para me recuperar plenamente do trauma provocado pela iniciação. Os gozadores fizeram festa com o meu batismo da roça, e da minha cara de espanto.

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PISTOLEIROS NA NOITE... Raphael Reys Jacinto é o meu décimo quarto e último irmão, sob o mesmo teto. O sétimo adotado. Com ele, encerrou a quota, pois o tempo das vacas gordas já terminava para a minha família, nos ido de 1960. Dado a sua ancestralidade afro, ele era um cabo verde, da canela fina. Quando acocorava, o traseiro não tocava o chão. Era moroso, embromado, e cheio de treitas. O olho bem aberto, a tudo reparava. Era um calado perigoso. Dedurava todos aos meus pais, visando ficar bem colocado. Éramos companheiros de aventuras pelas matas. Um dia, após subir o Morro Vermelho, nos fundos da fazenda, onde tentávamos caçar coelhos, ele urinou numa moita, acertando a cabeça de uma jaguatirica que fazia a sesta ao sol da tarde. A pequena feroz reagiu o atacando e ele desceu o morro tão rápido que os seus pés pareciam não tocar o chão. Num sábado, o surpreendi relatando ao meu pai, uma traquinagem pesada que eu houvera cometido, daquelas ações imperdoáveis. Levei a maior bronca, perdi alguns privilégios, fiquei desmoralizado. Foi o suficiente para acionar a minha vingança e arquitetei alguma coisa bem expressiva em represália. Como o meu pai não dormia na fazenda, ele, Jacinto, estando impune, jogava baralho na casa do meeiro, até quase de manhã. Fiz uma cabeça de caveira numa abóbora oca tapei tudo, para esconder a luz de vela posta no interior, carreguei a espingarda polveira (socadeira), com pólvora e sem chumbo, e atarraquei o material com bucha de papel jornal. Preparei a sua cama. Naquela noite fria de junho, junto ao colchete da cerca de arame, montei a tocaia. Ele veio como esperado, gingando, assobiando, com o seu jeito debochado, balançando os braços. Descobri a caveira expondo as cavidades com a luz, para aumentar o seu pânico, já que ele era medroso das coisas de almas, esperei que e se abaixasse, para abrir os fios de arame e passar apontei o cano para baixo, entretanto, mirando o chão. Quase a queima roupa. Foi um baque doido no escuro naquela noite na chapada fria. Espantou bicho. Despertou a vegetação rasteira, e a vítima, aos gritos de Valha-me, meu bom Jesus da Lapa sumiu pelo brejo de arroz. Saiu fogo de a espingarda pôr todos os lados, foi um doce show, e de efeito plástico! Dava gosto ver a bucha de jornal pegando fogo, e os pedaços o encobrindo. Ele, só foi encontrado três dias após os fatos, escondido numa tapera próximo à venda do Camilo, na entrada do Clube Campestre Pentáurea.

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No seu relato assustado, disse ter sido alvejado pôr quatro pistoleiros, que na noite fizeram dezenas de disparos de carabina contra a sua pessoa; descreveu as balas acertando no chão, arrancando terra, eram os pistoleiros da noite disse. Para selar minha vendeta, ele nunca mais veio passar os fins de semana na fazenda; quando se falava em lá irmos, os seus olhos abriam largamente, sua voz empastava, as bochechas inflavam e ele balançava a cabeça dizendo não! Passado algum tempo, contei-lhe a verdade sobre os pistoleiros na noite, tirados do seu medo, sua imaginação e, do meu desejo de vingança, próprio de um infante.

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PURA ADRENALINA. Raphael Reys No bairro São José onde morávamos, vadiávamos em turmas de adolescentes em incomensuráveis festas as quais eram realizadas na maioria das vezes na laje da casa de Durval Durães e Margarida Barbosa. Os piqueniques nos fins de semana aconteciam em nossa fazenda no Rio de Peixe, às margens do São Lamberto. As pescarias que fizeram história eram sempre nos fins de semana e feriados prolongados tendo como palco a fazenda de Tião Souto e Onofre Espírito Santo, no município de Jaiba. Íamos os casais de namorados e éramos recebidos por Onofre, nosso vizinho de bairro aqui nos Montes Claros e companheiro de trecho, aventuras e dois dedos de prosa à beira das fogueiras. Tempos de fartura, de Jovem Guarda, de Beatles. As armas e a tralha de pescaria eram transportadas na caminhonete de Waltim Coutinho, um cabeceira sempre à frente nas aventuras. Companheiro de toda hora, Walter estava presente e a disposição para o que desse e viesse. Na viagem, passávamos pela fazenda de Mário do Umbigo, irmão do prefeito de São João da Ponte, onde curtíamos o dia com mesa farta boas cachaças, muita conversa jogada fora e exercício de tiro ao alvo com revólveres, atividade que o Mário adorava. Hoje o local é o povoado de Marilândia, em sua homenagem. À porta da fazenda de Tião Souto, duas lagoas com fartura com marrecos, ariris e patos. Mata fechada, pastagem de colonião para o gado de corte, um calor sufocante que propiciava até gestação de mula dentro dos alagados. O Rio Serraria é formado de três cursos secundários de águas e em estando o observador no alto do morro, dava para vislumbrar as margens do velho Chico, ao longe. Caudal de águas fortes com corredeiras, pescaria difícil usando redes e adequada com o uso do anzol, tendo como isca o caçote vivo, para a apanha dos dourados nas corredeiras. Grande quantidade de cobras venenosas descendo ao sabor da corrente fazia com que se tivesse um atirador de plantão posicionado em uma elevação. Uma cartucheira 16 mocha sempre pronta para o disparo certeiro de Onofre, exímio atirador. Certa tarde, um fazendeiro vizinho, que recebera a visita deda família mandou uma encomenda solicitando no abate de uma vaca, o fígado inteiro e uma banda da criação, pois estavam para receber, naquele feriado longo, os seus filhos e sobrinhos que residiam e estudavam em Belo Horizonte. As partes solicitadas foram postas em sacos de estopa e amarrados na garupa de um cavalo. O vaqueiro encarregado da entrega refugou a viagem já na boca da noite, alegando o perigo de se deparar com

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uma onça na campana, mas acabou indo, pois não havia outro peão disponível no momento. Não deu outra! Em certo trecho do trajeto beirando a cerca, como precaução, a pintada deu o pulo e arrancou os sacos com a manta de fígado bovino, deixando o traseiro da montaria que a carregava, rasgado pelo sulco das suas garras afiadas. O peão conhecedor do terreno saltou da montaria, pulou a cerca sob a luz da lua e se refugiou em uma pequena ilha, no centro do rio. Tarde da noite, como ele não havia chegado, apanhamos as carabinas Papo Amarelo e saímos montados a cavalo com uma patrulha organizada. Pela manhã o localizamos e o avistamos todo enregelado nas folhagens da pequena ilha. Deu trabalho para tirá-lo de lá. O homem estava em pânico e recusava-se a dispensar a segurança do local.

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A RESISTÊNCIA. Raphael Reys Éramos alunos do ginasial no Colégio Marista São José, em Montes Claros - MG e vivíamos sob intensa pressão exercida pelos professores religiosos, que ousavam forçar a frequência às missas dominicais. Quem não comparecesse levava zero em religião. O que afetava enormemente alguns alunos oriundos de famílias que professavam outros cultos, ou crenças. Alguns chegavam a ser submetidos a escracho público em frente a colegas de escola, covardemente sem terem como se defender. Nos subterrâneos do ginásio fundamos a Fraternidade dos Sete Mascarados. Além de outros faziam parte Milton Henrique, Fernando Gontijo e outros do mesmo quilate. Montamos a primeira operação frontal, com objetivo de quebrar a aura falsa e intolerante de que só nos sabemos a verdade sobre religião dos educadores. Enviamos um amigo adulto que fez a encomenda de doze petardos tipo bomba de parede vibrátil. Confeccionados em bom tamanho, pelo mestre Marciano Fogueteiro. Um tremendo artefato festivo, de efeito pirotécnico. No dia escolhido para a operação e, numa meia noite silenciosa, colocamos os dispositivos nas colunas do primeiro piso, próxima aos quartos de dormir dos religiosos e também nos corredores do térreo. Estopins com diferença em tamanhos, proporcionavam o sincronismo da sequência desejada. Uma bituca de cigarro na ponta do pavio concretizava o fator tempo requerido. Ao bom estilo dos Maquis na Resistência Francesa. O pau torou na casa de Noca! Foi um foguetório fantástico. Estampidos de foguete três tiros canhão ajudavam a animar a ação retaliadora. Pelos corredores, fujões de camisolões com motivos bordados, pijamas com listrados rococó e cuecões Torre brancas, refletiam no escuro o clarão dos papocos. Eles gritavam: Socorro polícia... Valha-me Bom Jesus da Lapa! Nós bradávamos: Viva os sete mascarados - Viva a Contra Resistência! - Abaixo a opressão! Fugimos num tropel de cavalaria. Os animais apanhados nas mangas de capim do Bairro São José e encabrestados com tiras de talo de bananeira, foram guardados previamente num quintal próximo, ao campo de futebol grande. Descemos a Rua Antonio Rodrigues em glória! No dia seguinte ao chegar ao colégio, constatamos o mau cheiro oriundo da urina e dos dejetos que escorreram pelos corredores. Foi um festival dantesco, grotesco e laxativo! Daí para frente, os homens amoleceram a carga preconceituosa e passaram um bom tempo de cabeça baixa.

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SÉTIMA ARTE Raphael Reys Pelas portas abertas do Cine Teatro Fátima á Rua D. Pedro II, entro sorrateiramente e sinto um frio no coração. Aqui, neste mesmo lugar onde construí grande parte das minhas emoções, encontro reformas e um novo espaço, agora comercial, de um empreendimento modernista, Reminiscências me falam na minha adolescência de uma época de glamour para a comunidade Norte Mineira que dessas poltronas assistíamos aos épicos do cinema mundial. Uma passarela de glamour e uma escola de arte cinematográfica. Corremos de biga romana com Bem Hur; singramos corajosamente os mares com os Vikings. Conquistamos continentes, na briga de Esparta com Atenas na guerra do Peloponeso. Assistimos os belos olhos de Elisabeth Taylor lacrimejar num telhado de zinco quente ao sol da tarde. Com os sentimentos inflados pela paixão de homem da roça a imaginação nos levou a amar as musas italianas e francesas. Construímos parte da nossa sexualidade dormindo e amando Brigite Bardot na Riviera, quando de joelhos lhe suplicamos um momento de luxúria, para então sugarmos os seus lábios sensuais. Gastamos bala em cima de bala em Sete homens e um Destino. Aprendemos arte cinematográfica em Blow Up e Modesty Blaise. Maravilhamo-nos ao assistir Steiger furar a mão interpretando O Homem do Prego. Vibramos com a perfeição em solo de bateria com Sinatra em O Homem do Braço de Ouro. Vimos Macunaíma, o épico da brasilidade. De malandragem tropical. Viajamos dançando nas óperas, Pog and Best, e West Side History. Adentramos o universo dantesco de Fellini e acompanhamos a Cinecittá, de onde ele projetou Oito e Meio, cujos rolos de fitas, levaram oito e meio anos para chegar aos Montes Claros de então. Sentimos vibrar a nossa roupa com o efeito rebound sound da MGM traduzindo no ar, o estrepitar dos corcéis no deserto em Lawrence da Arábia. Agora, vemos o progresso comercial, imposto pela falta de uma renda digna e sólida, feito sem a sensibilização da cultura, sem a preservação mantida pela devida vontade política, matar tudo o que apreendemos a amar. Destruir as doces recordações da nossa adolescência campesina e utópica. No escuro do cinema com adrenalina correndo em nosso corpo pela possibilidade de roçar a mão, ou mesmo beijar o pescoço de pecado, daquela garota do vestido Bangu. Tocar a sua epiderme com os lábios, e sentir os fios de seu cabelo no escuro do salão, produzindo eletricidade estática e emoções inusitadas. Puro fogo de paixão. O meu coração; pulsava em 1.6 na escala de Eros!

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Tornamo-nos escravos de qualquer emprego, cada loja que abre as suas portas na comunidade representa a sobrevivência de muitas famílias e o recolhimento de impostos. Violaram a nossa aldeia. Saudade é palavra que só existe no nosso dicionário e agora com a alma ferida, lembramos aquela época de altivez, de famílias desfilando impecavelmente trajadas pelos corredores deste cinema, nos domingos e feriados. Da mistura exótica de aromas de colônias e perfumes importados. Naquelas confortáveis poltronas, iniciaram-se muitos romances de amor, que, culminaram na formação de muitas de nossas famílias. Vimos também amores que se desfizeram, e aqui nessas mesmas poltronas trazíamos durante a semana e no discreto escurinho da tarde, as mariposas da noite. Filhas de Vênus, doces anjos do pecado tiradas das suas alcovas nos lupanares tropicais onde exerciam a arte do amor luxúria e, movidos pelo ânimo do amor, assistir os épicos, sob os olhares críticos da nossa sociedade rurícola (entretanto, necessária). Daqui desse mesmo saguão de entrada, vimos o empreendedor empresário Lezinho Lafetá que, solícito, respondia, ao telefone, aos que perguntavam se o filme do dia era bom: o filme é bom mesmo! É da Vinte têaga Centurí Fêoxis.

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OS CAÇADORES. Raphael Reys 1962 - Localizada na Praça Doutor Carlos, centro nervoso e comercial dos nossos Montes Claros, o antigo Bar do Edson era ponto de encontro de pecuaristas, clones de fazendeiros, compradores, vendedores e corretores de gado e de cavalos de raça, caçadores, agiotas, agamenons, “bera rancho profissional”, pinguços e mentirosos de plantão. Naquela tarde, Edgar Pereira conhecido político local, centro das atenções de uma roda, narrou uma recente caçada de onça suçuarana que fizera. Incentivado pelo relato teatralizado, um pequeno criador de gado que estava presente confidenciou, então, que uma pintada estava comendo os bezerros de sua propriedade. Propôs aos presentes organizarem uma ação com o objetivo de exterminar a predadora. Seis participantes da conversa, justamente os que não sabiam nada de caçadas se apresentaram para a empreitada. No dia marcado, lá estavam eles na sede da fazenda comendo lauta feijoada e tomando uma boa cachaça, a gozarem o maior 0800, enquanto um batedor profissional contratado buscava o rasto da fera pintalgada. Descobertas as pegadas, e a gruta onde o espécime dormia o batedor de trilhas, veio trazer a notícia alvissareira. O anfitrião incumbiu-o, então, ao chegarem próximo à gruta de jogar a estopa encharcada de óleo diesel pegando fogo, na loca, visando fazer a fera sair, se expondo como alvo. Feito o lançamento do artefato incandescente e mal apareceu à cabeça da felina, foi um festival de tiros de carabinas e cartucheiras. Ninguém queria ficar fora da história. Severamente atingida, a fêmea rolou ribanceira abaixo e no solo recebeu ainda vários disparos de revolver como misericórdia. Quase vira tábua de pirulito! Irrompeu-se então a maior algazarra dos caçadores de meia tijela e farristas, que jogaram as armas no solo e pulavam e gritavam como numa farândola de diabretes. Neste momento, sem que ninguém percebesse, o macho saiu da gruta e já a meio caminho, em direção ao grupo deu o maior esturro no rumo dos barulhentos. Foi o maior corre-corre! Urina pernas abaixo e dejetos líquidos borraram as calcas dos matadores de meia tigela. Uma cena grotesca e laxativa. Digna de um quadro cinematográfico de Fellini. O dono da casa, conhecedor do terreno, e do caminho mais curto até a sede correu em linha passando por uma cerca abandonada, no que o seu paletó de brim Triunfador amarelo, enganchou em um grampo de um fio de arame.

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Pensando se achar agarrado pela segunda onça, ele se ajoelhou e sem olhar para trás, disse para a suposta fera: Eu tenho três filhos estudando no Colégio São José, uma esposa doente, internada na Santa Casa e sustento duas irmãs pobres, de feira e tudo, vê se come o compadre Fidelis aqui presente, que é só cachaceiro e rapariguento! O batedor que acabara de descer do talhado ao ver a cena ridícula, disse: Compadre se desenganche do grampo da cerca e caia no bengo, que o macho está solto por aí. Com a chegada da notícia a nossa urbe, o dito fazendeiro e os falsos atiradores de elite que o acompanhavam passaram mais de um ano sem frequentar o Bar de Edson.

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TURQUINHO Raphael Reys Montes Claros, 1966, Rua Presidente Vargas (antiga rua XV), centro comercial, Sinucão do Augustão, pavimento superior da antiga loja de departamentos Ramos e Cia. Desde as 10 da matina no ambiente pululavam jogadores de baralho, sinuca, vida. Sapos, palpiteiros, apostadores, cáftens, coletores de aposta, ponteiros do jogo do bicho, informantes de polícia, pequenos agiotas, comerciantes, gente vinda dos lupanares onde passaram a noite, biriteiros, notívagos e outros componentes do baixo universo interiorano. Turquinho, conhecido e comentado bookmaker, como era de costume apostava até em corrida de mosquito e cuspe à distância! Cobra mais do que criada vindo das grandes metrópoles (de onde fora escorraçado) nesse mundo de meu Deus, mestre de agá e contra-agá. Certa tarde, dois ciganos transitavam pela Rua Simeão Ribeiro no Quarteirão do Povo, lado direito do prédio. Eram oriundos de um acampamento que ficava tradicionalmente instalado na Rua Ray Kristoff, próxima ao centro e eventualmente promoviam festas típicas. Vendiam tachos de cobre e praticavam a buena dicha. Da janela do salão de jogos o comerciante atacadista Fernando Jabbur notou-os circulando pelo logradouro e com sua natural verve desafiou o nosso herói da noite a provar a sua esperteza, enganando os gitanos. Era uma instigação considerável e o habilidoso Turquinho topou a parada na hora. Foram casadas as apostas e a grana depositada nas mãos de Geraldo Monte Azul, um malandro e gerente da casa. Juntou gente de todo lado para ver o desafio. O nosso herói das ruas abordou a dupla e contou uma história de sua mãe doente em São Paulo. Mostrou um grosso anel de ouro em um dos seus dedos e propôs a venda por preço reduzido. Os ciganos deram farol alto, fizeram o teste com a peça e compraram o anel. Enquanto juntavam a bufunfa para pagar o falso otário, esse trocou sorrateiramente o apresentado por um similar falso. Posto estrategicamente na sua algibeira. Ele sempre trazia vários anéis entocados nas vestes (entre verdadeiros e falsos), e os usava para enganar os loquis. Aplicava sempre o 171 quando estava sem grana. Dia seguinte, da janela do salão de sinuca a galera observava os dois enganados a procurar um turco do bigode, como diziam. Vieram para lavar a honra da família maculada por aquele espertalhão. Fernando Jabbur apostou cinco contra um desafiando o Turquinho a tapear pela segunda vez os mesmos andantes, já anteriormente enganados. Possivelmente contestava, com isso, o dito de Rosa que:

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dois ciganos juntos são capazes de adivinhar o que comeu um cavalo! Choveram ajustes de todos os lados. Turquinho topou todos. Ato contínuo instruiu ao Maçarico Marçal (outro 171 do pedaço), uma cobra criada da casa e o enviou a conversar com as vítimas, aplicando assim o agá de abertura. Maçarico, experto que nem coelho, disse aos loques que aquele cidadão enganador passaria por ali dentro de instantes, era só aguardar, pra cometerem a vingança. Em complemento, informou que o mesmo carregava na porta cédulas um anel de brilhante, surrupiado da mãe que morrera recentemente e que valia o equivalente hoje a 10 mil reais. Ao verem o trapaceiro, o sujigaram pelo pescoço e o apertaram contra a parede, lhe tomaram a porta notas com o falso anel de brilhante e, para não o deixar na pior, deram a ele dois mil reais de lambuja, mandando-o gramar o beco. Estava aplicado o Baque Seco, nos mesmos passivos! No dia seguinte, toda a família do acampamento de gitanos surgiu nas proximidades caçando o bookmaker, para lavar a honra da tribo ofendida, com o consequente derramamento de sangue. Jogarão ponto no ponto e praga! Da janela do salão de sinuca, a galera deitava e rolava de rir da situação vexatória, como uma farândola de diabretes e aplaudiam e brindavam com o aplicador de chavetas, que embolsou farta quantia em arame vivo. Emmanuel Pinto, outro 171 do pedaço que a tudo assistiu, confidenciou: esse turco não é cria desse mundo!

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QUEM DIRIA. Raphael Reys 1964. O representante comercial trabalhava em regime de Del credere, para conhecida marca de dentifrício, cobrindo a região Norte de Minas. Hospedava-se quando em Montes Claros no Hotel São José, capitaneado pelo empresário Antonio Português. O estabelecimento era frequentado por vendedores, viajantes, representantes comerciais, pracistas. O proprietário e a esposa eram queridos por todos. Competente como dono da casa, alvissareiro, sério, respeitado como cidadão. Era um irmão e conselheiro para os seus hóspedes. Ajudava a resolver problemas comerciais dos seus clientes junto a comerciantes locais. O caixeiro viajante, ou representante comercial, personagem desta história, viera fora da sua rotina, visando receber triplicatas em carteira de conhecido atacadista “picão” (termo regional usado para designar o malandro que casa com uma noiva rica entrado só com a sua genitália. Os bens e a despesa correm por conta da família da noiva otária), que havia dado o golpe do baú numa família rica, da qual recebera a empresa de mão beijada e vinha dando o cano nos seus fornecedores, alem de debochar dos mesmos. O viajante estava sem receber os seus rendimentos há noventa dias, dado a não liquidez desse cliente e por isso, ameaçado de perder o seu contrato como representante com a fábrica. Este, após tentativas infrutíferas voltou ao hotel e, num gesto de desespero se armou. Tencionava matar o comerciante debochado, que a arrasara os seus nervos e a sua vida profissional. Seu Antonio Português, conhecedor da psicologia dos seus clientes habituais prevendo a reação do hóspede e usando a sua força moral respeitada como sempre, desarmou o zangão e prometeu receber a conta junto ao atacadista caloteiro. Ato seguinte trancou o fusca do seu hóspede na garagem do hotel e lhe sugeriu que voltasse a capital de ônibus ou de carona com colegas, evitando um acidente, dado ao seu descontrole emocional. Seu Antonio reteve as triplicatas, telefonando em seguida à fábrica que o viajante representava, informando a sua intervenção a favor do seu hóspede. Altas horas da noite e acometido de ódio, o caixeiro viajante arrombou o cadeado e retirou escondido o seu veículo da garagem e retornou à sua origem atormentado pelo ódio e pelo desejo de matar. Na subida da serra da BR 135, próximo ao Clube Campestre Pentáurea, saída de Montes Claros um pneu furou. O raivoso motorista desceu portando uma grande e pesada chave de rodas, tipo cruz, própria para uso em carreta (todo viajante usava este tipo de ferramenta na época) e chutando a lataria do seu fusca dava gritos de raiva.

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Logo que agachou, para a troca do pneu, percebeu mesmo na penumbra, um grande e provável cachorro escuro que se aproximava. Tocado pelo ódio que lhe queimava, levantou, inclinou-se e projetando o peso do seu corpo para frente, bateu com toda a força muscular, a parte espatulada da chave na cabeça do animal já próximo. Um profundo gemido, um estrebuchar, mais umas dez pancadas com violência, fragmentos do crânio, couro, pêlos, sangue e a raiva fora descarregada no inocente animal. Feita a substituição do pneu e, ao dar a partida no seu fusca, após embreá-lo, o mesmo desceu um pouco, dado ao aclive e com a luz dos faróis já acesa o sortudo pode ver esticado no acostamento, uma suçuarana preta que ele havia matado, sem o saber. Desmaiou de tanta emoção. Foi socorrido por outro viajante que passava rumo a Montes Claros, que amarrou a onça morta no para choques do seu carro, esperou amanhecer e deu entrada triunfal na cidade, parando com grande estardalhaço e buzinaço na porta do hotel de seu Antonio Português, no centro da cidade. O irado matador de onças apresentou problemas de descontrole nervoso e ainda emocionalmente muito descompensado e dando piripaques. Foi internado na Santa Casa local. O hoteleiro conseguiu receber grande parte do débito, o viajante, depois de recuperado voltou para a capital e continuou representando a empresa em outra região e o Picão foi abandonado pela mulher e faliu. Fugiu da cidade passando alguns anos escondido em outra localidade. Logo voltou. Hoje, explora um pequeno hotel onde aluga quartos para encontro de casais. Ainda mantém a pose de rico e de petulante. Pau que nasce torto morre torto!

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OS BEM LANÇADOS Raphael Reys No tempo da linha dura, nos idos de 1964 o point noturno da sociedade jovem montes-clarense era o footing da Praça Coronel Ribeiro. Os rapazes socialmente considerados Bem Lançados tinham o fã clube feminino, que era composto pelas Bem Lançadas moças da época. Eles, fugindo ao sedentarismo, iam jogar futebol de salão diariamente no Montes Claros Tênis Clube, a nossa Praça de Esportes. Como a quadra era frequentada por outros jovens e equipes de bancários e comerciários, logo se estabeleceram rivalidades. O fã clube formado pelas garotas dava sempre o ar de sua graça, quando dos treinos, para aplaudir os rapazes, componentes do time Showciete, apelidado de Os Bem Lançados. Dentre muitas daquelas moças, hoje já avós, recordo-me das irmãs Marly e Marci, que foram misses Montes Claros, Teté Santa Maria, Valéria, Zione Drumonnd e outras beldades. Moças usavam a fragrância de Chashemere Bouquet, e os rapazes, o romântico perfume Gardênia. Elas vestiam saia, anágua, blusa buclê, ou ban lon, diadema na cabeça. Eles, calças jeans Roebuck, camisas Prist, ou Mac Gregor, sapatos Clark, Samello, relógios Mido, cabelos cheios, isqueiros Ronsons Typon e cigarro Capri. As bebidas então comumente consumidas eram Martini Dry, Cinzano, Cuba Libre, hi-fi, vodka Smirnoff e gim tônica, acompanhadas com tira-gosto de canapés. Comia-se baião de dois no Restaurante Mangueirão, tomava-se vaca preta e vaca amarela no Bar do Cambuí. Todos dançavam no Juventude em Brasa, do Automóvel Clube, nas horas dançantes do Clube Montes Claros e da boate da Praça de Esportes, além dos clubes volantes e a festa junina da Fazenda Quebradas, de Pedro Veloso. Formavam a equipe do Showciete os disputadíssimos José Eustáquio, Pindoba (que fechava o gol), Geraldo Renan, Fernando Etiene, Mimi, Márcio Milo (o galã do bairro São José) e outros mais, todos atraindo a atenção da moçada da jovem guarda. Alguns passeavam pelas ruas com modernos carrões Aero Willys, Simca Chamborde e Dauphine. A tragédia levou alguns jovens da época, como Tony Boy, no acidente da ponte da Cowan, e Paulinho, de dona Emília, no seu Chevette 74. Lá pelas tantas da noite, a galera masculina caía na gandaia farreando nos lupanares, que pululavam nas nossas noites tupiniquins. Românticos cabarés de luxo, onde se podia apreciar a beleza das mulheres das taquaras públicas.

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Eram elas verdadeiras deusas da noite, muitas com traços de beleza, como Aurora e seu sex appeal estonteante, Etelvina, Eliana e Maria da Lapa, esta com um desempenho brilhante na alcova, uma potranca curraleira de longo fôlego, que pulava tanto a ponto de jogar seu parceiro fora da cama. Para encerrar a farra, e já no lusco-fusco da manhã, era hábito ir degustar um bom baião de dois no Restaurante Mangueirinha, acompanhado de uma cerveja, para produzir o efeito descarborizante.

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O EXORCISTA.

Raphael Reys Transcorria o ano de 1966 e, em todas as festas que frequentava no Bairro São José de então, me divertia contando estórias de endemoniados, de rituais afros e casos de terreiro e de santos. O assunto sempre provocava frisson, principalmente às moças de antanho, suscetíveis ao desconhecido. Era muito intensa a vida festiva do bairro: encontros, piqueniques, viagens, serenatas e muito forró. Os acontecimentos eram constantes e todo mundo se conhecia. Era um ir e vir de casa em casa, almoçando, jantando, jogando buraco. Fins de semana e feriados nas fazendas. Íamos os cassais de namorados. Havia os clubes volantes, as turmas de outros bairros que se entrosavam. Bebíamos Hi-Fi, Cuba Libre, Gim-tônica e, nas fazendas, cachaça pura. As grandes festividades eram nas Cabeceiras, sob os auspícios de Tiãozinho de Oliveira. As pescarias e caçadas no Rio Serraria de Tião Souto, as festividades na laje dos Durães Barbosa. Era a Montes Claros dos tempos de fartura. O café as cinco da matina na Padaria Globo, na maior ressaca. Mudara-se para a Rua Gregório Veloso, a família de Mauro Fazendeiro. Compraram a casa do farmacêutico Wilson Peres, onde fica hoje fica a residência dos Muniz. Num sábado à tarde, dormia a curtir uma ressaca da boa cachaça Santa Rosa, de súbito, o Mauro me acordou, pediu-me que corresse à sua casa, pois algo grave estava acontecendo. Saí a toda com o calção caindo, por estar sem elástico. Ao entrar na residência do vizinho, deparei-me com toda a família na sala, juntamente com os hóspedes, gritando e se lamentando. Ao me verem, deram um suspiro de alívio. Só então me informaram que uma moradora da fazenda, que acabara de chegar, estava endemoniada. Já quebrara vários objetos e havia espancado três vaqueiros, que tentavam amarrá-los com uma corda de couro. A moça estava incorporada por um obsessor, roupa rasgada, o cabelo virado uma arapuá. Pela sua boca corria uma baba amarela, a pupila dilatada. Um pavor! Esperavam que eu fizesse o exorcismo, já que entendia do assunto. Quase entrei em pânico! O calção ameaçando cair, os vaqueiros tentando pegar a ponta da corda de couro, amarrada ao pé direita dela, ela gritando com uma voz de trovão: chegou mais um para levar uma taca! Agarrei os seus cabelos compridos, e em tranças, rodopiei-a e soltei. Girou feito pião e meteu a cabeça na parede, caindo prostrada ao solo e em convulsão. Mandei acender sete velas detrás da porta da entrada. Sete senhoras rezarem sete salve Rainha, e conclui:- O

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espírito ruim já saiu, agora, vamos cuidar da parte medicinal terrena e levá-la para o hospital para socorro. Na quarta-feira seguinte fui convidado para uma festa de quinze anos, na mesma residência onde ocorreu o atendimento, e em lá chegando, à noite, paguei o maior mico. Todas as gentes da festa pararam para ver um exorcista e os convidados, temerosos, sorriam amarelos. Pedi para ir ao banheiro, saí pelos fundos, e gramei o beco. Durante muito tempo tive que me esquivar de pessoas que me procuravam para outras seções de exorcismo. Paguei caro por conversar balelas...

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O CACHORRO DO PENTÁUREA. Raphael Reys Constância era uma espécie de madrinha das lavadeiras, no pequeno povoado de Santo Antônio, município de Montes Claros, próximo ao Clube Campestre Pentáurea na região Norte Mineira. Todas as terças e sextas-feiras reuniam-se bem cedo na praça da igrejinha e pelos caminhos que conduziam até o Poço Bonito e à medida que elas passavam, companheiras do ofício iam engrossando a fila indiana. Era um festival de trouxas de roupas de todos os tipos e tamanhos enroladas em lençóis de todos os matizes e usos. Tinha roupas de rico e de pobre, destes últimos com peças remendadas, originalmente compradas nas cercanias dos mercados, e em dias de feira e festa de santo. Algumas foram mesmo presentes dos patrões. Costume do povo da nossa região. No poço, um ambiente exótico, cheio de pedras e flores silvestres de múltiplas colorações e tipos, uma pinguela feita de um tronco de árvore, completavam o cenário. A confraternização entre elas, já havia rendido um repertório de músicas rurais de rara beleza, muitas das quais, vararam fronteiras e eram cantadas nos estados vizinhos. Esta harmonia estava prestes a ser quebrada. No dia do fato, Constância como as demais lavadeiras, já se aproximavam do poço. Tinquin um pequeno cachorro mestiço que sempre as acompanhava, ia á frente. Era o guardião das comadres lavadeiras, diziam. De repente, Antera parou estupefata e chamando a atenção das demais, apontou para a pinguela dizendo: comadres olhem aquele cachorro bonito no tronco tão preto e tão bonito, como o poço. Tinquin o pequeno guardião, já tremia, dando gemidos de cortar coração enrolado às pernas da Marialva. Logo repararam que ele havia se mijado todo. Constância replicou: vejam este cachorro na pinguela tem os dentes muito grandes! E completou: olhe que pêlo brilhante. Antera, já entendendo tudo, gritou: Isto é uma onça preta gente! É uma suçuarana preta, eu já vi uma foto na revista. Foi um tremendo corre-corre e as trouxas ficaram para trás! Posteriormente, se deduziu que a espécie não sendo natural na região estava de passagem e parara para beber das águas cristalinas do poço. Este incidente marcou para sempre a rotina daquelas campesinas. Perderam os clientes locais a disponibilidade da lavagem e a mística aura do pego, jamais foi à mesma, sem as canções que encantavam as participantes e tornavam vibrante aquele sítio.

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As amigas nunca mais ali lavaram quaisquer outras roupas. Afinal, seguro morreu de velho... Em 1957 aos nove anos de idade aqui nas cercanias desse poço embriaguei comendo cagaita, um fruto nativo das chapadas. Ele é tão inebriante que até o gado dorme após se alimentar do fruto maduro. Passei dois dias na chapada em estado letárgico. Só fui encontrado por minha mãe com a ajuda de um vaqueiro da região. Nesse desligamento vaguei com o perispírito por dois mundos metafísicos. Um na crosta, onde fui iniciado e outro no intramundo. Esse, um mundo sem a abóboda celeste e um animado por um sol químico. Quando acordei a minha memória repetia uma cantiga de roda que as crianças cantam por aqui: “Nós comemô cagaita, comemô cagaita, comemô cagaita e caimô no sono... Você sabe como é cagaita! Dá um sono danado... Aí acordemô!... Aí comemô cagaita, comemô cagaita, comemô cagaita e caimô no sono...”

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NOTÍVAGOS DILETANTES.

Raphael Reys Rememorando reminiscências da minha juventude anos 60, lembro-me quando Aurora, com o seu olhar ingênuo, entrou pisando forte e estrepitando o seu tamanco Carmem Miranda, assentou-se numa mesa nos fundos do salão do lupanar. Aí, bateu o aço a chorar magoada pelo excesso de prazeres movido às pamparras. O rádio na cozinha tocava baixo Cauby Peixoto, cantando a música da moda, O Nono Mandamento... Senhor, aqui me tens de joelho... Trazendo os olhos vermelhos... De chorar, porque pequei... Senhor... Por um erro de momento... Não cumpri o mandamento... O nono da vossa lei... Geraldo Barata, um montes-clarense que há vários anos fora morar em Belo Horizonte, retorna para rever amigos e, após tomar um porre de scoth, entra distraidamente numa casa de família ao lado do cassino. Dado o hábito de antanho, presume estar em ambiente noturno. Traz para si uma morena vestida de camisola que passa toda faceira. Foi abatido com um disparo de 38, efetuado pelo dono do imóvel e pai da donzela. Um novo morador que ele não conhecia. Dançando gafieira no salão da pensão de Casimira, Chiquinho Pé-pro-mato, dias antes de ser abatido por uma lâmina fria, e todo chique, num terno azeitonado e com os seus pés dez para as duas, bailava com Maria Viola. Ela, que não era candelária, trajava um vestido de seda com as laterais lascadas, à moda havaiana. Pelos cortes, apareciam as suas divinas pernas em nácar. Profissionalmente, só ficava com os idle rich. Braulina, com seus olhos de garapa, tomava sorvete de creme no bar Sibéria fazendo-se acompanhar de Crioulo Sinuqueiro, irmão de Anália. Ana Rosa, calçando uma leve sapatilha de lona china-pau, e gingando os seus quadris tentadores, mostrando o seu sorriso de rasgar a alma, entra no bar do Cambuí, acompanhada de um fazendeiro rico. Foram tomar refresco moreninho feito com anis e cascas de laranja. Os beijos eram em sabor tropical, e o prazer sorvido num tom de Dias de Ira. Vivia-se como se a vida durasse apenas um dia. Otelina, Amélia - a morena melada - e Mariinha compravam do Mário Veloso, na Pharmácia Versiani, pacotinhos de permanganato de potássio. O poeta boêmio Vinicius de Moraes, bem por certo teria dito: - vão dar banho de assento no vértice supremo da paixão! No encanto molengo da madrugada, a boemia era a trincheira de habitués que circulavam pela rota do pecado, num universo de dolce far niente. Após uma noite de orgias com turistas argentinos, quando homens e mulheres atormentam-se, Margarida, Alice e Wanda dirigiram-se ao Minas Bar. Saboream uma carne assada, escutando Nelson Gonçalves cantar como se fosse morrer de amor.

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Ururaí Filpi, o barão, assim como no dito do poeta Manuel Bandeira, quem mora no beco só aspira ao beco, andava como o homem que encheu o século. Todo posudo. Com sua calça de casimira inglesa combinando com o chapéu Panamá e a gravata de seda, botava-se a dançar tango no lupanar da Roxa. Jogava-se e jogava a Rochilda para lá e para cá. A luz violeta do abajur tremeluzia no seu paletó de linho branco Oxford. O líder político Neco Santa Maria tentava manter o equilíbrio do corpo andando pelo passeio, depois de tomar uma garrafa de Estrela made in Januária, na casa de Amanda. Atravessado na sua cintura e aparecendo de forma explícita, o cabo do pau de fogo Schmidt e West 38. Quem chegava quando Deus era servido, e muito bebia, começava a noite com alegria e terminava sempre em brumas e travesseiros com perfume de organdi. Virgílio Preto, exótico comprador de gado para a empresa Anglo, passava pela zona boêmia montado no seu cavalo Pampa, com sela de luxo e arreios com presilhas em prata 20. Acenava para Bile, Maria de Levi e Ana Reis, com a sua mão descorada pelo vitiligo, e debochava à grande voz, citando a qualidade profissional de cada uma das damas ovacionadas. O mundo passava devagar, os preços eram fixos, a lua macia em sua quase pureza, o dinheiro abundante, a bebida ao Deus dará, a comida apetitosa, a política totalitária, os companheiros diletantes, as boates animadas, músicas emocionantes, as damas e princesas de Vênus. Noites desprovidas de porta e cancela. Era uma incomensurável larga! Os homens eram janotas e as mulheres da noite empetecavam-se com vestidos longos. Os distraídos, ao passarem embaixo de uma janela, arriscavam-se a receber uma baciada d’água. O que era considerado o cúmulo do azar, no abstrato da paisagem urbana. Zoca Gontijo, ainda menino, dava gargalhada na porta da boate Maracangalha. Contratava a Baixinha para uma tarde de amor com um infante seu amigo. Um neófito no reino de Afrodite. Um efebo tupiniquim! Tiano Nunes, no seu bar no Mercado Municipal, emprestava dinheiro a juros. Era o banqueiro dos pobres e das bonecas cobiçadas. Vendia pastéis fritos, sem azeitona e sem carne. Quem encontrasse recheio no produto, era premiado. Oscar Lage, sem a farda de militar e calçando sapato pampa com sola de crepe, fazendo-se acompanhar do escrivão Magalhães (Nariz de Tucano) outro bom de gole, tomava duas caixas de cerveja. Pela janela, as notas da sua voz de radialista cantando Besame... Besame mucho... O passeio da Rua Lafaiete enchia-se de admiradores. Juca de Chichico descia para o mercado pela Rua Grão Mogol. As camélias nas janelas perguntavam ao vê-lo passar: como vai, seu Juca? Ele acrescentava: que aperta e não machuca!

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E fazia o gesto de puxar para si o interlocutor. No quarto número quinze daquele sobradinho cheio de mistérios, gemidos, espasmos, interjeições súbitas e inusitadas de corações que explodiam num ménage à trois. Eram Perolina e Nair, com um chofer de caminhão seis gaitas. Fulôzina e Capixaba, no exercício pleno da mais antiga profissão deste mundo de ilusões efêmeras, dançavam fantasiadas de colombina em uma conhecida boate. Cantavam... Chiquita bacana, lá da Martinica... Só veste uma casca de banana nanica... Não usa vestido... Não usa calção... Inverno pra ela, é pleno verão...

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INTUIÇÃO MATERNA Raphael Reys Na minha juventude, apaixonei por roupas estilos safári e botinhas. A aura reinante na moda jovem ainda era a do blue jeans. Blusões, jaquetas e calças de algodão prevaleciam. Tudo costurado com linha aparente, com zíper ou botões grandes. Adquiri um tecido de algodão seridó, ocre claro, um diagonal mesclado. Copiei o modelo de uma jaqueta francesa, extraída de uma revista internacional de modas. Para confeccioná-la, encomendei-a a minha mãe, uma libriana com apurado gosto estético. Muito habilidosa em tudo que fazia. Na ocasião, ela passava por um momento psicologicamente difícil de sua vida, uma fase que a deixou sensível e fina, suscetível a variações de humor. Exigiu ela mesma comprar os aviamentos e fazer, ao seu gosto, variações na estética do modelo. Como tenho um sexto sentido para o perigo, ocorreu-me o insight que algo fora do habitual aconteceria a partir daquele seu posicionamento. Pronta a confecção, fui experimentá-la. Foi quando notei que os botões postos eram de um pesado metal amarelo, modelo da Alpaca. As peças tinham um baixo relevo acentuado. Eram bastante grandes em tamanho para servir na função de abotoar, estando também dotadas de uma base pontiaguda disposta em cone rombudo. Essas peças eram habitualmente usadas em decoração e para fixação do couro em selas gaúchas. Impróprias, portanto, para uma peça de vestuário. No blusão, sem a sustentação correta, as partes ficavam com a face para baixo, dando à roupa confeccionada um tom ridículo, destituído de um sentido. Enfim, um peso ingente. Algo me disse para não reclamar - a intuição materna tem lá origens consistentes. Fiquei calado contra a minha vontade. No meu entender, o exemplar ficou bastante alterado, impróprio. Reservei-o para uso em atividades não urbanas. Num fim-de-semana prolongado ao lado da turma dos Durães Barbosa, companheiros de outras viagens, aventuras e pescarias, numa manhã em que caia uma garoa fina na fazenda onde estávamos. Sob a coordenação e os incentivos do amigo e vizinho Zizi Rocha, partem para um treinamento coletivo de tiro ao alvo. A plataforma de exercícios foi montada em uma velha cerca de curralama abandonada, feita de lascas de aroeira. Distribuímos as armas entre os atiradores, colocando ainda às latas velhas nas pontas das peças, e iniciamos a sessão. Tive uma sensação de peso nos parietais. Era a intuição do perigo. Ela sempre se me apresenta assim.

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O segundo tiro praticado partiu de uma carabina Winchester 44. O projétil, com a ponta achatada, atinou o corpo endurecido da aroeira e ricocheteou, acertando-me na altura do coração. A grande peça metálica colocada no referido casaco como botão partiu ao receber o impacto. A base da peça afundou-se na minha caixa torácica, dilacerando o tecido e terminando amparado numa costela, com o que, felizmente, o projétil foi desviado. Fui arremessado para trás. Fragmentos acertaram e transfixarão a aba de um rústico chapéu de couro crua que eu usava na ocasião. Lá estavam à serventia dos feios artefatos de metal, escolhidas por minha mãe para que abotoassem o meu casaco curto. O aparente desacerto feito por uma mãe - é sempre certo para um filho - é uma providência divina. A sua implicância em colocar os aviamentos - completamente contrários à minha escolha - foi uma dádiva que, com certeza, salvou a minha vida!

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O BIGODE DE ZUPERO. Raphael Reys Ele era uma lenda viva nos Montes Claros da minha juventude. Magro, alto, sisudo, cabelo branco pela idade avançada andava pisando alto, como um nobre petulante. Trajava calça de brim caqui, paletó de tropical listrado, cinturão de couro, fivela alpaca, botina testa de touro, chapéu abas larga. Tinha a cara de mau e a sua marca registrada era o bigode fino e comprido, retorcido, ressecado, exótico como o de um mandarim da Mandechúria. Destacava-se pelo visual único. E era reconhecido por onde transitava. Dele, contavam-se histórias de práticas criminosas, sempre a mando de coronéis da época. Casos relatados no aconchego das famílias, ao redor dos fogões de lenha, à beira das fogueiras, na prosa dos mais velhos. Falava-se da sua pontaria certeira disparava somente um tiro para cada vítima. Era os Montes Claros de antanho, com seu viver campesino e de aceitação subserviente. Relatos se sucediam, assim como o nome das vítimas e dos supostos mandantes; era a terra de Figueira, no ocaso da vivência do coronelismo, em fase das mudanças dos anos 70, trazidas pelo desenvolvimento industrial e de ensino que já chegavam. Zupéro Ferrador, como era conhecido no meio profissional dos que lidavam com montarias, ou Bigode de Arame, como era chamado pela meninada estando aposentado morava solitário em um quarto de fundos, na Rua Januária, nos costados do Cine Coronel Ribeiro. Lembro-me quando ainda jovem, o medo que o mesmo provocava, quando transitava pelas ruas, em sua lida, fazendo com que a garotada mudasse de passeio, evitando cruzar com o dito. A sua figura, provocava o nosso imaginário, vendo-o, presumíamos irromper a qualquer hora um tiroteio com qualquer opositor, vítima, ou mesmo uma vendeta. Retornando à nossa casa, relatávamos aos pais o perigo que passamos, em quase ter cruzado com o Bigode de Arame em pessoa. Numa tarde em 1958, assistia uma sua detenção feita pela polícia, e foi um verdadeiro corre-corre na via pública. Do seu arsenal, comentava-se o uso de um garrucha calibre 380, mas com a desativação dessa munição de tiro passou ele a usar um garrucha calibre 22 Rossi, a lendária "Rabo de Égua". A arma presa ao cinturão, sem coldre, o cabo aparecendo, quando o paletó levantava, acompanhando o movimento do corpo. No bolso de trás da calça, trazia uma faca curta, lâmina feita de mola de caminhão, com o cabo de madrepérola. Com a inauguração do Mercado Municipal novo, à Rua Coronel Joaquim Costa em 1970, os caminhões que transportavam emigrantes nordestinos, os Paus de Arara, que passavam pôr aqui, em direção a São Paulo, paravam em frente à Praça de Esportes. O objetivo era serem vistoriado pela fiscalização migratória muitos

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eram interceptados por transportarem passageiros clandestinamente, alguns dos quais portadores de moléstias graves e contagiosas. Os passantes desciam dirigindo-se ao logradouro público para fazerem compras de alimentos. Nessas ocasiões era comum a detenção de algum migrante pôr apresentar sintomas de loucura, resultado da insalubridade do percurso de até trinta dias de viagem Mal dormida e mal alimentada. Na manhã do episódio, um passageiro enlouquecido esfaqueou aleatoriamente alguns pedestres. Era uma cena dantesca, o agressor armado de uma faca peixeira 12’ 30 centímetros escorrendo sangue pela lâmina e pelos seus pulsos, dando gritos, verdadeiros urros, atacando a todos que encontrava. Chamado às pressas quando fazia feira, um oficial militar à paisana, tentou conter o agressor armado e enlouquecido, lhe apontando o revolver, recuando, buscando convencê-lo a se entregar. Tropeçou numa mola de caminhão caída ao solo, em frente a um ferro velho na esquina da Rua Belo Horizonte, despencando ao chão e largando a arma. O assassino louco o imobilizou com a mão esquerda pelo pescoço e levantou a destra armada, para o golpe fatal. Neste momento ouviu-se um estampido, quase um estralo e o agressor caiu para trás atingido com um furo de bala na testa. Salva a vida do oficial, verificou-se do outro lado da rua à frente do armazém atacadista de Chico Coutinho ainda com a garrucha à mão, Bigode de Arame, que num tiro único e certeiro, efetuado a vinte metros, abatera o agressor. Foi à última façanha do nosso personagem, que veio a falecer logo em seguida, já em idade avançada.

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FRAGMENTOS DA ADOLESCÊNCIA.

Raphael Reys 1960. Colégio Marista, o jumento Geminiano, o mascote da Fábrica de Óleos Mariflôr amarrado em um lote vago, próximo a nossa sala de aulas zurrava a cada trinta minutos e intumescia a genitália. Pedro Silveira, anotava na sua caderneta de apontamentos a periodicidade, visando provar que: jumento não tinha hora certa para zurrar. Ficou apelidado Pedro da Jega. O Malaquias Barbosa, oriundo de abastada família de pecuaristas era sempre apanhado no final da aula, por um jovem agregado da fazenda do seu pai que chegava montado em um cavalo Pampa. Barbosa subia na garupa, a galera com inveja aproveitava uma frase extraída de um conto infantil e repetia o refrão retaliando: Barbosa é ladrão de vaca! Quem encontrar Barbosa vai ganhar como recompensa duzentos tostões! Saiam no encalço dos colegas com a pirata em riste e os meninos corriam pelo pátio do colégio. Era diversão garantida diariamente. Havia dois Ed. O Edvard e o Edgar. Um era gordinho, alto, óculos fundo de garrafa tinha uma voz metálica. Um valente. Para gozá-lo reuníamos todo o efetivo vespertino do colégio e gritávamos: Princesa Isabel filha de Edgar meu mel! Ou batíamos os pés sincronizadamente no chão com grande estardalhaço e gritávamos Ró, Ró! Ró, Ró!... Ele saia na mão com a turba. Dava bordoada para todos os lados e em todos e a meninada gramava o beco... O outro era o Edvard o qual apelidamos de Defunto Banguela. Tinha a pele branco-amarelada, mãos gigantes, ajumentado no tamanho. Oriundo de uma família de carroceiros eram o próprio pai e mãe da ignorância. Qualquer coisa saia na mão. Terminada a aula descíamos pela Rua Padre Champagnat coberta por uma grossa camada de pó fino com cinco centímetros de espessura. No trajeto, se encontravam os desafetos para resolver na tapa a contenda. Dava briga de mais de cinquenta meninos de cada lado. Os valentes do pedaço eram o Duto Figueiredo, Dêma Mocó, Edvard, Magela, Taki Maia, Maurício Vilela. A maioria voltava para casa depois de rolar na poeira. Só apareciam as bolotas dos olhos... O nosso maior destemido, entretanto, era Pindoba Nilo. Raçudo, não corria de confronto e enfrentava qualquer parada. Em contrapartida, o verdureiro Gabilera, era o terror do Bairro São João e tinha o hábito de furar bola dos times que lá treinavam. Certa tarde, me encontrava sozinho no campo improvisado em um lote vazio com a minha bola de capota G18. Esperava a turma para a preparação contra o time de Zé Doido da Igrejinha. O valente estava na campana e foi chegando com o canivete aberto na mão.

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Apanhei um grosso galho de roseira seca que estava no lote vago ao lado do nosso campo na Rua Germano Gonçalves e encarei a fera. Ele vendo a minha disposição para o embate ficou rodeando, com conversa mole. Esperava o momento certo de agir. Pindoba, que era componente do nosso time estava no primeiro andar da sua casa, na Rua Silvio Teixeira próxima. De lá viu o meu sufoco numa briga desproporcional e partiu, na sua bicicleta sueca em desabalada carreira e em meu socorro. Aí rachou a casca do pequi! Voou bola, canivete, pau de roseira e lama para todo lado. Terminada a briga, selamos um tratado de paz juntas para as turmas frequentarem a Lagoa de dona Alice e jogar bola nos lotes vagos e na lama do bairro. Havia a turma do risco, enfrentamento e ânimo robusto; nossos amigos Milton Henrique, Fernando Gontijo, Tatá, Maurício Vilela, ninfas e duendes dos lagos do bairro, todos aliados à nossa imaginação. Incitavam-nos a aventura. Outros tantos companheiros de folguedos que agora a memória nos trai. Roubávamos os pôneis do mecânico Deusdeth Barroso os amarrávamos com tiras de tronco de bananeira e, montados sem a sela apostávamos corrida ate o topo da ladeira da Rua Sílvio Teixeira. Uma pista de cascalhos íngreme escorregadia e traiçoeira. Éramos índios Sioux, centuriões romanos, guerreiros de Esparta, ladeira acima e pasmem ladeira abaixo! Os animais botavam o coração para fora. Quando a noticia desses fatos chegou até o mecânico, ele ficou fulo e montou campana para nos pegar. Numa tarde quente, os animais encabrestados, nós já montados em pelo e feitas às apostas costumeiras, escutamos gritos pavorosos - porque vocês não vão montar na mãe de vocês, seus F.D.P.? Respondemos em coro: ela não deixa! O cabelo de Barreto ficou eriçado, sacou uma pirata longa e partiu em desabalada carreira em nosso encalço enquanto bradava - o primeiro que eu pegar vai morrer. Chegamos todos juntos no topo da ladeira, no pódio. Era a grande corrida do Circo Romano, era a Guerra de Touro Sentado, era a nossa iniciação, era o escambal. Tudo ao vivo, e em cores. Levamos um bom tempo sem beirar a casa de Deusdeth. Quando o fizemos, passávamos ao largo e perguntávamos - como vão os cavalos? Ele respondia - melhor do que a mãe de quem pergunta. Mudamos temporariamente a base de operações para as margens do Rio do Melo, onde tomávamos banho despidos, bebíamos Cinzano Rossi, fumávamos cigarro Columbia. Espiávamos as damas da noite, estrelas da Rua Lafaiete, que também tomavam banho no rio, nuas como ninfas selvagens. Construímos com oito fios de arame farpado, um corredor polonês para cavalos e cavaleiros. Em frente à casa de Danilo Dávila ( fundo do Colégio Marista), enfrentávamos o desafio de percorrer a trilha, posta em via pública urbana a ser aberta, cavalgando despidos, a

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pelo, e em disparada, o animal sendo chicoteado com garranchos verdes. Corpos nus ao Deus dará e excitados pelo vento-adrenalina! Era o máximo expoente da virilidade, da nossa infância de guerreiros da imaginação. Estávamos sendo iniciados na Fraternidade dos Sete Mascarados. Depois do teste, o menino estava liberado para fazer parte da turma. Era respeitado por todos. Ficamos tão conhecidos e temidos, que enfrentamos até a Trinca de Gabilera do Alto São João. O desafio maior da época. O esperado confronto ocorreu na Lagoa de Dona Alice, no matagal de tabuas do bairro São José. Quando as mães foram informadas dos ritos de nossa iniciação, deu juizado de Menores, polícia. O maior rebú!

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A BELA DA TARDE Raphael Reys Rua Tiradentes, centro da nossa urbe, cômodo comercial alugado para vidraceiro em prédio de esquina na confluência com a Rua São Francisco de propriedade dos meus avós paternos e sede do já extinto serviço Federal de Migração. Funcionava a oficina de um vidraceiro que havia se especializado em molduras para retratos, muito comuns na época. Instantâneos de casamento, batizado, família reunida. Como era habilidoso, tinha grande freguesia. Fabricava e comercializava espelhos com molduras de madeira e os vendia a rodo. Certo dia encontrava-me sentado num banco posto dentro do estabelecimento, lendo um almanaque, quando irrompeu no recinto nervoso cavalheiro, elegantemente trajado. Demonstrava grande agitação e exibia um porta-retratos com o vidro quebrado, que teria caído da parede e quebrado, em virtude da suposta má qualidade do produto fabricado. Não aceitou as explicações lógicas do vidraceiro e exigiu reposição sem ônus, no que foi atendido, tendo sido a peça entregue no dia seguinte. Uma senhora que presenciou a cena relatou ser vizinha do queixoso e que o espelho havia sido quebrado pela esposa do mesmo, em momento de fúria. Aqui cabe a observação abalizada do escritor João do Rio quando, em referência ao poder de algumas mulheres: agir sobre o homem como uma alucinação fazendo-os participar da própria desgraça. O profissional em seguida foi contratado para gerenciar uma indústria de molduras em São Bernardo do Campo, mudando-se e o queixoso voltou com a esposa nervosa para Belo Horizonte, sem, entretanto, que ambos os envolvidos no incidente, o soubessem. O homem, no fundo, é um ser carente de idéias sombrias! Numa tarde das muitas revelações, um ano após o incidente com o vidraceiro, o elegante e nervoso homem bem vestido apareceu novamente, exibindo a mesma moldura com o espelho quebrado. Estando trancadas as portas do cômodo e informado da mudança do artesão, atirou a peça com grande violência contra a parede do prédio. Eis que, em meio aos pedaços da porta retrato, aparece no chão uma carta, posta entre o espelho e o papelão de fundo. Fora colocado pelo comerciante de molduras e endereçado ao violento cidadão um ano atrás. A mesma relatava em detalhes a vida promíscua da esposa do agressor conhecida como a mulher do vestido Tomara-que-caia. A traidora, que desprezava o marido e que quebrara o vidro da porta retratos, era uma profissional do sexo. Debaixo do nariz do otário seu marido recebia clientes vindos de Belo Horizonte e saia, sempre de dia, usando para isso uma casa de encontros afastada do centro. Como dizem os franceses, era ela uma belle de jour, ou seja, a prostituta que faz programas durante o dia.

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Em toda a sua vida de casado, o marido traído não desconfiara de coisa alguma. O peruca de touro furioso voltou às Alterosas e armado de um Colt Cavalinho 38, cometeu um atentado contra a sua esposa. Por ironia do destino, não acertou um tiro, sequer. A vítima gritou por socorro e populares entraram em luta corporal com o marido traído, visando desarmá-lo. No engalfinhamento pelo chão ele torceu o gordo pescoço e passou dessa para outra melhor. Uma fantástica vingança bolada pela mente brilhante do fabricante de molduras e sorte da Mulher do Vestido tomara-que-caia que, para deleite dos seus admiradores, encheu as alcovas belo-horizontinas de luxúria. Correspondências. E-mail: [email protected] FIM.