5. a situação sociolingüística da fronteira franco

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5. A Situação Sociolingüística da Fronteira Franco-Brasileira: Oiapoque & Saint-Georges A dinâmica das línguas e dos povos nas regiões que partilham fronteiras políticas entre diferentes comunidades lingüísticas é certamente, em muitos aspectos, diferenciada das regiões onde o contato entre povos de línguas distintas é esporádico e sazonal. Como poderemos confirmar nos dados coletados pela pesquisa, o bilingüismo nestas regiões, longe de ser uma questão de status social ou de necessidade momentânea (como é o caso das pessoas que se tornam bilíngües para desenvolver habilidades de leitura e escrita em determinados domínios científicos ou culturais) mostra-se intimamente ligado às necessidades cotidianas de comunicação interpessoal em diferentes setores da vida pública ou privada, sendo portanto um dos resultados mais evidentes do contato lingüístico na fronteira. A fronteira franco –brasileira, apropriada que é por excelência para a eclosão do bilingüismo individual e social, conta hoje com pelo menos quatro línguas que compartilham entre si muito mais do que divisões espaciais. Usos compartimentalizados, status diferenciados das línguas em presença e comunidades distintas se dividem e se mesclam no composto multilingüístico, multi-étnico e multicultural que é a fronteira Oiapoque / Saint Georges. Diferente da fronteira de Santana do Livramento e Riviera no sul do país que dividem uma fronteira seca, Oiapoque e Saint Georges compartilham de uma fronteira natural representada pelo rio Oiapoque. À primeira vista poderíamos imaginar que fronteira política e lingüística ali seriam absolutamente coincidentes, no entanto, a presença do rio não impede em absoluto o contato e a mesclagem das comunidades que vivem de um lado e de outro. Essa coincidência só seria possível, durante algum tempo, e não todo o tempo, se ambas as comunidades não tivessem consciência da presença uma da outra, se franceses e brasileiros não atravessassem diariamente a fronteira, se não tivesse havido um longo processo de disputa e exploração mineral naquela área, atraindo para ali os diferentes grupos que hoje habitam a região. Ainda assim, cedo ou tarde, as comunidades que ali se formassem estariam inexoravelmente

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Page 1: 5. A Situação Sociolingüística da Fronteira Franco

5. A Situação Sociolingüística da Fronteira Franco-Brasileira: Oiapoque & Saint-Georges

A dinâmica das línguas e dos povos nas regiões que partilham fronteiras

políticas entre diferentes comunidades lingüísticas é certamente, em muitos

aspectos, diferenciada das regiões onde o contato entre povos de línguas distintas

é esporádico e sazonal.

Como poderemos confirmar nos dados coletados pela pesquisa, o

bilingüismo nestas regiões, longe de ser uma questão de status social ou de

necessidade momentânea (como é o caso das pessoas que se tornam bilíngües para

desenvolver habilidades de leitura e escrita em determinados domínios científicos

ou culturais) mostra-se intimamente ligado às necessidades cotidianas de

comunicação interpessoal em diferentes setores da vida pública ou privada, sendo

portanto um dos resultados mais evidentes do contato lingüístico na fronteira.

A fronteira franco –brasileira, apropriada que é por excelência para a

eclosão do bilingüismo individual e social, conta hoje com pelo menos quatro

línguas que compartilham entre si muito mais do que divisões espaciais. Usos

compartimentalizados, status diferenciados das línguas em presença e

comunidades distintas se dividem e se mesclam no composto multilingüístico,

multi-étnico e multicultural que é a fronteira Oiapoque / Saint Georges.

Diferente da fronteira de Santana do Livramento e Riviera no sul do país

que dividem uma fronteira seca, Oiapoque e Saint Georges compartilham de uma

fronteira natural representada pelo rio Oiapoque. À primeira vista poderíamos

imaginar que fronteira política e lingüística ali seriam absolutamente coincidentes,

no entanto, a presença do rio não impede em absoluto o contato e a mesclagem

das comunidades que vivem de um lado e de outro.

Essa coincidência só seria possível, durante algum tempo, e não todo o

tempo, se ambas as comunidades não tivessem consciência da presença uma da

outra, se franceses e brasileiros não atravessassem diariamente a fronteira, se não

tivesse havido um longo processo de disputa e exploração mineral naquela área,

atraindo para ali os diferentes grupos que hoje habitam a região. Ainda assim,

cedo ou tarde, as comunidades que ali se formassem estariam inexoravelmente

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destinadas a cedo ou tarde estabelecer contato, sendo elas mesmas uma só

comunidade lingüística ou comunidades diferentes partilhando um território

contíguo, como acontece atualmente.

A presença de diferentes grupos lingüísticos naquela fronteira está também

relacionada ao processo histórico de disputa da área por brasileiros e franceses.

Ainda hoje, os resquícios dessa disputa se fazem presentes no discurso, ora

nacionalista ora regionalista, dos moradores mais antigos. “A Guiana deveria ser

nossa” afirmam alguns; em contrapartida, do outro lado, outros defendem que “ o

platô das Guianas deveria ser um país livre, e a língua do platô seria o crioulo”,

colocando em questão não somente um espaço territorial mas, também uma

reivindicação lingüística local.

Diferenças lingüísticas à parte, as comunidades superam as barreiras

naturais e se encontram nas praças, no comércio, nos bares, nos barcos, nos

restaurantes, nas ruas etc. e celebram entre si, em cada encontro, em cada contato

lingüístico e cultural um contrato tácito de reciprocidade e respeito às línguas

próprias de cada grupo. Não quero dizer com isso que as línguas da fronteira

guardam irmanamente o mesmo valor e prestígio nas diferentes comunidades

lingüísticas, tampouco que não há preconceito lingüístico ou pouca valorização

das línguas das minorias, apenas que há espaço para o uso de cada uma delas e

que, em maior ou menor grau, todas estão em contato na fronteira.

5.1 Status das línguas em questão: português, francês, crioulo e patuá.

5.1.1 Oficialidade

A situação oficial do português no Oiapoque e do francês em Saint Georges é

bastante clara, pelo menos do ponto de vista jurídico e no que diz respeito ao

prestígio das “línguas oficiais” em relação às demais línguas utilizadas nos

referidos territórios, a saber, o francês e o patuá no Oiapoque e o brésilien (como

é conhecido o português na Guiana), o crioulo e o patuá em Saint Georges.

O português é constitucionalmente a língua oficial brasileira. O artigo 13

da constituição de 1988 decreta:

“A língua portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil”

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Contudo, os artigos 215/216 da constituição brasileira já admitem que o

Brasil é um país pluricultural e multilíngüe. Embora nem todas as línguas

envolvidas em situações de bilingüismo e multilingüísmo no Brasil tenham algum

grau de oficialidade reconhecido, algumas línguas como as indígenas, e ai

incluímos o patuá, já lograram obter algum reconhecimento.

De acordo com os dados da pesquisa, como veremos posteriormente, o

francês em Oiapoque se caracteriza principalmente como língua de trabalho para

grande parte da população brasileira ali residente, porém nenhum reconhecimento

oficial, nem mesmo com relação ao ensino de línguas estrangeiras lhe é

claramente atribuído, como veremos a seguir nos dados relativos a educação.

Do lado francês, tal qual ocorre no Brasil há uma política clara de

monolingüísmo contrastando com a realidade multilíngüe da região. A Guiana na

qualidade de departamento francês segue a mesma orientação político lingüística

da metrópole. De acordo com o artigo 2º da lei constitucional nº 92-554 de 1992

que modifica a constituição francesa de 1958 “A língua da República é o

francês4”. Portanto o francês é por extensão a língua oficial do departamento e o

crioulo de base francesa, embora se apresente como língua materna de

significativa parte da população de Saint Georges, não tem status de língua oficial,

da mesma forma que o patuá empregado pelos índios, também daquele lado da

fronteira.

O português em Saint Georges por sua vez também não desfruta de

nenhum status de oficialidade, embora já conste como uma das línguas mais

usadas no meio social e ensinadas nas escolas do lado francês.

5.1.2 Uso institucional e privado

Embora somente o português tenha status de língua oficial em Oiapoque e

o francês em Saint Georges essa “oficialidade” não representa necessariamente a

realidade do uso institucional destas línguas nas referidas comunidades

lingüísticas. Em Oiapoque, ao lado da língua pátria, devido principalmente ao

grande fluxo de estrangeiros que aumenta dia a dia, é muito comum encontrar nas 4 La langue de la République est le français.

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vias públicas e nas instituições oficiais como correios e no tribunal de justiça,

comunicações redigidas na língua oficial do país vizinho, o francês,. Assim, a

prefeitura de Oiapoque comunica em francês e português que “il est interdit de

jetter des ordures sur le fleuve”, e, “qu’il faut préserver la nature5”. Do mesmo

modo, as entidades sanitárias previnem que “le vaccin contre la fièvre jaune est

obligatoire à la frontière6”.

O tribunal de justiça por sua vez avisa aos requerentes que “il faut

apporter tous les documents de naissance, livrés à l’hôpital de Saint Georges

pour enregistrer les enfants brésiliens nés à Saint Georges de l’Oyapock7»

instituindo em seus procedimentos o uso de uma língua não oficial mas que é

comumente utilizada por brasileiros e franceses em ambos os lados da fronteira.

Em contrapartida, o patuá, língua de contato entre etnias indígenas da

região, só é co-oficialmente encontrado nas dependências da Funai em Oiapoque,

onde é comumente empregado pelos indígenas, pelos funcionários índios e nas

escolas da área indígena.

Do lado francês, uma vez que tanto o patuá quanto o crioulo não têm

nenhum reconhecimento oficial, o uso institucional destas línguas é

desaconselhado nas repartições públicas. Todas as comunicações oficiais

destinadas aos moradores de origem“francesa” são redigidos no francês oficial.

Porém, quando se trata de falantes lusófonos o português é comumente aplicado.

A alfândega local, por exemplo, informa aos transeüntes da fronteira que “há

fiscalização regular na estrada Saint Georges – Regina”, e que “é proibido

transportar pessoas sem documentação8”.

Cabe registrar por outro lado que, paralelo ao uso institucional, existem

também as práticas não institucionalizadas porém correntes, que é o que ocorre

com freqüência no setor privado. O comércio de Oiapoque registrou um

crescimento de 100% nos últimos quatro anos conforme dados do Sebrae-Ap.

Esse crescimento se deve basicamente ao aumento do fluxo do turismo de

compras na região que foi impulsionado pelo incentivo governamental - de ambos

5 È proibido jogar lixo no rio; é preciso proteger a natureza. 6 A vacina contra a febre amarela é obrigatória na fronteira. 7 É necessário apresentar todos os documentos expedidos no hospital de Saint Georges para fazer o registro de nascimento das crianças brasileiras nascidas em Saint Georges de l’Oyapoque. 8 Do original « Il y a du contrôle régulier sur la route Saint Georges – Regina. Il est interdit de transporter des personnes sans documents’.

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os lados da fronteira - a uma maior integração fronteiriça e pela abertura da

rodovia que liga a Capital da Guiana, Caiena, a Macapá no Amapá. Oiapoque e

Saint George estão no epicentro das relações transfronteiriças. Em Oiapoque,

compra-se um pouco de tudo; os clientes, em sua grande maioria provenientes do

outro lado da fronteira, já não se restringem mais àqueles que atravessavam de

Saint Georges, mas agora de toda a Guiana. Desse modo, o francês sobretudo e o

crioulo em menor escala, são as línguas estrangeiras obrigatórias para quem quer

disputar uma vaga no mercado de trabalho da região, principalmente em

Oiapoque.

De pequenas lanchas de passeio à carne bovina, do shampoo a passagens

aéreas, o maior consumidor é o turista de final de semana que lota os hotéis e

restaurantes. A língua preferencial destes estabelecimentos é a francesa. Uma vez

que 80% da clientela, segundo os donos de hotéis locais, é de vizinhos fronteiriços

que não falam português, “uma das formas mais seguras de agradar o cliente é

colocar à disposição funcionários que falem a língua deles”declara um

proprietário de hotel. O mesmo raciocínio se estende para o comércio como um

todo. O francês está presente no nome dos estabelecimentos, no cardápio dos

restaurantes, nas expressões locais, na oferta de produtos etc. Proprietários e

funcionários atribuem à língua um valor que está relacionado com o poder

econômico do país cujos nativos falam aquela língua e do poder aquisitivo de sua

população.

Oiapoque, enquanto fronteira natural de Saint Georges, entrou para a era

do euro e aprendeu a converter a moeda ao mesmo tempo que os europeus. Nas

primeiras horas do dia de seu lançamento na comunidade européia, o euro também

já circulava em território brasileiro como se fosse uma extensão do território

francês. No lado brasileiro da fronteira como também do lado francês o comércio

aceita real e euro indistintamente.

As lojas de câmbio são as que mais se esforçam para empregar falantes

francófonos. Os cambistas disputam o visitante desde a chegada ao porto,

buscando maiores lucros e menores taxas. Existem no entanto aqueles que não

falam francês, e na palavra de um deles “os que falam a língua dos clientes

normalmente chegam primeiro e quem não fala precisa dar sorte ou pegar um

brasileiro”. É importante lembrar que uma significativa parcela de brasileiros

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mora na Guiana e também atravessa a fronteira periodicamente em busca tanto de

produtos com custos mais atrativos quanto do reencontro com as raízes, com a

cultura, com a identidade que parece renascer, para alguns, no atravessar do rio

Oiapoque. Estes brasileiros que habitam, principalmente, na zona urbana de

Caiena e Kourou também contribuem com a movimentação do mercado no Brasil.

Muitos deles, falantes hábeis do francês e do crioulo, têm optado por voltar para o

lado brasileiro e ali abrir seu negócio próprio.

Quando questionados sobre a importância do domínio dos idiomas francês,

crioulo e patuá, os informantes de Oiapoque atribuíram uma grande importância

ao aprendizado sobretudo da língua francesa como podemos conferir no quadro

abaixo:

Quadro 1: Importância das línguas no mercado de trabalho em Oiapoque.

Importância do domínio das

Línguas no mercado de trabalho.

Francês Crioulo Patuá

Muito importante 82,7% 15,3% 2%

Pouco importante 13,3% 29,5% 6%

Irrelevante 4% 56,2% 92%

O domínio da língua francesa é visto como muito importante no mercado

de trabalho para 82,7 % dos entrevistados, contra 15,3% que atribuem maior

importância ao crioulo. O patuá, como língua minoritária e de baixa valoração no

mercado de trabalho, foi colocada no extremo oposto, considerada irrelevante no

mercado por 92% dos informantes.

No lado oposto da fronteira, a recíproca é verdadeira no que diz respeito

ao português com relação ao francês. Ali o português ocupa lugar de destaque ao

lado do crioulo porém, por razões muito mais institucionais que de mercado.

Embora o real seja aceito no comércio local, os brasileiros não são vistos como

clientes em potencial. A desvalorização do real frente ao euro não estimula o

mercado em Saint Georges ao contrário do que acontece em Oiapoque, porém, o

grande fluxo de migração e de famílias mistas exige um contato constante com

falantes de português em todos os setores da administração pública

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Quadro 2: Importância das línguas no mercado de trabalho em Saint Georges.

Importância das Línguas no

mercado de trabalho.

Português Crioulo Patuá

Muito importante 86,7% 14,3% 0%

Pouco importante 12,2% 23,3% 6%

Irrelevante 2,1% 63,4% 94%

Assim, seguido ao domínio da língua oficial, 86,7 % consideram o português

como a língua regional mais importante no contexto local, ao lado de 14,3 % que

consideram o crioulo como mais importante. Semelhante aos dados apresentados

em Oiapoque a língua da minoria indígena e de baixo prestígio não aparece como

relevante para o mercado de trabalho.

5.1.3 Educação

No que concerne ao aspecto educacional avaliamos as línguas de ensino e

as línguas ensinadas como línguas étnicas ou estrangeiras. Em Oiapoque, tratando

das línguas de ensino correlacionamos o português e o patuá, e quanto ao ensino

de línguas estrangeiras avaliamos o ensino do francês e do inglês. Em Saint

Georges como línguas de ensino contrapomos o francês, o crioulo e o patuá e

como línguas estrangeiras o português, o inglês e as demais línguas ofertadas.

O português em Oiapoque e o francês em Saint Georges, como não

poderia deixar de ser, face à política de monolingüísmo que prevalece, são, com

exceção das línguas indígenas, as línguas de ensino em toda a rede pública e

privada. Embora em Oiapoque já haja uma significativa parcela de famílias

indígenas9 morando na cidade e de famílias mistas, só a língua portuguesa é

utilizada na alfabetização.

Quanto ao ensino nas comunidades indígenas, uma recente política de

respeito aos direitos lingüísticos destas comunidades tem sido observada.

Conforme dados do administrador da Funai Amapá, Domingos Santa Rosa,

morador de Oiapoque, a alfabetização nas aldeias tem sido feita primeiramente na 9 A Prefeitura Municipal de Oiapoque estima em cerca de 60, as famílias indígenas que habitam o perímetro urbano de Oiapoque e cujos filhos freqüentam regularmente o ensino médio e fundamental.

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língua materna predominante das famílias, ou seja, na língua original, em patuá ou

mesmo em português. A permissão para o ensino bilíngüe nas comunidades

indígenas prevista na Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1996 que decreta no

artigo 210, parágrafo 2 que “o ensino fundamental regular será ministrado em

língua portuguesa, assegurando às comunidades indígenas também a utilização

de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem”, veio conceder

finalmente as línguas indígenas algum reconhecimento pelo menos no setor

educacional.

Na zona urbana da cidade, no entanto, não existe nenhuma política

instituída para o recebimento de crianças provenientes das aldeias nas escolas

públicas. Ali elas são alfabetizadas, obrigatoriamente, em português.

Quanto ao crioulo e ao patuá no lado francês e as demais línguas regionais

dos departamentos franceses ultramarinos, a lei daquele país assegura que “Um

ensino das línguas e culturas regionais pode ser efetuado ao longo do processo de

escolarização”10, bem como reforça que

« As línguas regionais em uso nos departamentos ultra marinos fazem parte do patrimônio lingüístico da nação e beneficiam –se de um reforço nas políticas em favor das línguas regionais afim de facilitar-lhes o uso»11 (Artigo 34 da lei de orientação para os DOM-TOM) Tradução nossa

Todavia nenhuma das línguas consideradas regionais tem efetivamente

representatividade na ordem escolar. A educação primária e secundária

assegurada é realizada somente na língua oficial. Filhos de imigrantes em idade

escolar que não tenham sido alfabetizados na língua francesa normalmente

passam por um período de adaptação à língua e logo em seguida são integrados ao

ensino em língua francesa. O francês é a língua de escolarização para todos:

índios, franceses, haitianos, brasileiros etc.

Com relação ao ensino das línguas oficiais da região como línguas

estrangeiras no espaço vizinho, em 1996 foi assinado o acordo de cooperação

10 Un enseignement des langues et cultures régionales peut être dispensé tout au long de la scolarité. 11.Les langues régionales en usage dans les départements d'outre-mer font partie du patrimoine linguistique de la Nation» et qu’elles «bénéficient du renforcement des politiques en faveur des langues régionales afin d'en faciliter l'usage

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transfronteiriça entre o governo brasileiro e o governo francês que previa, entre

outras ações conjuntas, a implementação do ensino do francês no Amapá,

particularmente no Oiapoque, e do português na Guiana. Porém, o quadro do

ensino de línguas não mudou muito, sobretudo no lado brasileiro.

Na fronteira brasileira, ainda hoje, sete anos após a assinatura do protocolo

de intenções, é possível constatar que o governo brasileiro, representado pelo

Ministério da Educação – MEC, continua a enviar material escolar de língua

estrangeira somente em inglês e espanhol para as duas únicas escolas públicas de

ensino fundamental e médio de Oiapoque. Seja por desconhecimento, desatenção

ou por uma política deliberada que pretende ignorar a realidade geolingüística

regional, o ensino do francês em Oiapoque caminha a passos lentos.

De acordo com informações da diretoria da Escola Joaquim Nabuco, a

instituição oferece desde o ano de 2000 o francês como opção de língua

estrangeira de 5ª a 8ª séries, mas conta com apenas dois professores, eles mesmos

encarregados de definir e construir o programa de ensino da língua, a metodologia

e o material didático a ser empregado em sala de aula. Não nos surpreende,

portanto, que apenas pouco mais de 10% dos informantes de Oiapoque declarem

ter estudado francês na escola do lado brasileiro, uma vez que a instituição não

tem condições humanas e materiais para oferecer o ensino da língua para todo o

grupo escolar.

Quadro 3: Línguas estrangeiras estudadas na fronteira franco-brasileira.

Línguas estrangeiras

estudadas na escola.

Oiapoque Saint Georges

Português - 33%

Francês 14%

Inglês 79% 35%

Espanhol 7% 24%

Outra língua. 0% 8%

Embora a fronteira com um território de língua francesa seja uma realidade

incontestável, 79% dos informantes em Oiapoque declaram ter estudado inglês

como língua estrangeira, 7% espanhol e apenas 14% francês, dados bastante

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diferenciados daqueles encontrados na fronteira oposta, onde o português foi

escolhido por 33% dos informantes como língua estrangeira na escola, perdendo

apenas para o inglês com 35% e ficando a frente do espanhol com 24% e das

demais línguas ofertadas como italiano e holandês que reuniram juntas 8% .

É importante registrar ainda que os índices constatados em Saint Georges

correspondem a níveis de escolha em meio a um leque de ofertas, indicando não

apenas um elemento numérico, mas também um valor positivo da língua

portuguesa naquela região. Em Oiapoque, em contrapartida, o baixo índice de

estudo do francês não pode ser diretamente vinculado a um valor negativo da

língua na comunidade, uma vez que ali não há escolhas a fazer. O inglês, até

1999, foi a língua imposta como idioma estrangeiro na região, ainda que para a

grande maioria não fizesse sentido estudar aquela língua, como indicou o

depoimento de muitos entrevistados.

O quadro acima, não só informa sobre a importância atribuída aos

diferentes idiomas no quadro institucional de um lado e de outro da fronteira

como igualmente deixa claro que políticas lingüísticas díspares estão sendo

implementadas naquela região a despeito do acordo quadro assinado a nível

oficial.

5.1.4 Meios de comunicação de massa.

Tanto Oiapoque quanto Saint Georges possuem meios limitados de

comunicação de massa. Em Oiapoque não existe imprensa local, a programação

de televisão é nacional e mesmo as rádios só emitem programas originados na

capital do Estado, Macapá. Existe apenas uma rádio local que se ocupa da

propaganda de lojas, hotéis, bares e restaurantes.

Em Saint Georges, o quadro não é muito diferente. Porém, naquele lado as

famílias mistas e mesmo aquelas não mistas que têm interesse, facilmente têm

acesso à programação da televisão brasileira e por conseguinte à língua veiculada,

o que não acontece no lado brasileiro, uma vez que o sinal da televisão estatal

francesa não é acessível do outro lado da fronteira. Quando muito, é possível ler

os jornais produzidos em Caiena.

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As rádios compõem o diferencial neste quadro. A música brasileira, do

“brega” ao “axé music” passando pela MPB, toca nas rádios guianenses da mesma

forma que o Zouk, estilo musical característico da Guiana, entra na maioria dos

lares em Oiapoque. O sinal das rádios da Guiana normalmente é captado na

fronteira brasileira. Elas invariavelmente transmitem em crioulo e em francês.

Não é difícil constatar que os franceses estão através da mídia mais

expostos ao português-brasileiro do que o contrário. Foi o que se verificou no

quadro abaixo. Se grande parte dos guianenses tem acesso à mídia em português,

francês e crioulo, o mesmo não acontece, em igual proporção, com a comunidade

brasileira.

Quadro 4: Índice de acesso à mídia nas línguas em questão

Acesso a jornais, revistas e

programas de rádio e tv. em Oiapoque em Saint Georges

Só em português 80% 0%

Só em francês 0% 25%

Em português e francês 15% 55%

Em português, francês e

crioulo.

5% 20%

Apenas 15% de brasileiros têm acesso à imprensa francesa, obviamente

aqueles que foram alfabetizados em francês que podem ler os jornais ou que têm

acesso à rádio local, contra 55% de franceses que têm acesso à mídia em

português. A grande maioria, 80% dos informantes de Oiapoque possui acesso à

mídia só em português, enquanto que para os franceses o percentual daqueles que

a têm só em francês se reduz para 25%. O crioulo vem ao longo das últimas

décadas ocupando um espaço cada vez maior na imprensa francesa. Já existem

jornais televisados e rádio transmitidos na Guiana, porém o acesso para o

brasileiro é limitado.

O patuá por sua vez não possui representatividade na mídia local em

nenhum dos lados da fronteira.

5.2 Corpus das línguas em contato: português, francês, crioulo e patuá

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A situação das línguas, instaurada pela proximidade geográfica, influencia

diretamente os indivíduos que ali interagem. O status das línguas, as relações

sociais e comerciais estabelecidas entre as comunidades, o contato com os dialetos

aos quais os moradores estão expostos se refletem na compartimentalização dos

usos lingüísticos em ambas as comunidades e no nível de

bilingüismo/multilingüísmo que cada grupo pode apresentar.

Como bem afirma Mackey (1976) a proximidade lingüística é um dos

fatores que podem ser decisivos na formação de comunidades multilíngües e

Oiapoque e Saint Georges, além do quadro fronteiriço, apresentam também outros

elementos que deram vazão ao multilingüísmo na região.

A Guiana Francesa como um todo apresenta uma situação de

multilingüísmo bastante complexa, com pelo menos dois crioulos diferentes, além

da língua oficial, das línguas indígenas e das línguas de comunidades oriundas de

outros países com grande representatividade tal qual a de surinamenses, chineses e

mesmo a de brasileiros. É nesse quadro que se configura a situação multilíngüe de

Saint Georges. Dos informantes da cidade, 100% declararam usar mais de uma

língua, seja francês e crioulo, francês e português, francês e patuá, crioulo e patuá,

ou mesmo todas elas, em situações diversas de uso.

Em Saint Georges o bilingüismo é fruto da histórica colonização francesa

na região, cujo contato entre as línguas dos escravos e o francês deu origem ao

crioulo e posteriormente ao patuá. Em Oiapoque, o histórico de bilingüismo na

comunidade é um pouco diferenciado. Os primeiros multilíngües da região foram

os índios que habitavam aquelas terras, que, catequizados por portugueses e

brasileiros, aprenderam o português e do contato de suas línguas com o crioulo

nasceu o patuá vindo a tornar-se língua de contato entre as diversas etnias locais.

Dado o distanciamento entre as aldeias indígenas e o vilarejo de Oiapoque

as comunidades pouco conviveram. Assim poucos são os indivíduos não índios

que falam a língua indígena original ou o patuá. O contato com os franceses,

intensificado a partir dos anos 40 com a criação da base espacial de kourou foi

decisivo no estabelecimento de uma situação social de multilingüísmo,

movimentando uma significativa parcela da população para o lado esquerdo da

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fronteira. Famílias oriundas de várias partes do país estabeleciam suas bases em

Oiapoque, e os homens, na maioria das vezes, partiam em busca de trabalho.

Por outro lado, freqüentemente as zonas de fronteiras não são consideradas

como verdadeiramente um outro país. Elas constituem, muitas vezes, simples

zonas de passagem, o que faz com que o interesse pela região vizinha seja

limitado, o que por sua vez limita também o contato com parte do grupo. Desta

feita, se em Oiapoque a pesquisa mostrou que 58 % dos informantes usam mais de

uma língua em diferentes domínios, mostrou também que há uma significativa

parcela de monolíngües na cidade, cerca de 42% da população urbana local.

Outro fator importante é a duração do contato entre as comunidades

lingüísticas. Em Saint Georges 72% dos informantes moram na cidade há mais de

10 anos, enquanto que em Oiapoque apenas 10% dos informantes bilíngües

declaram estar há mais de 10 anos na cidade. Com um índice migratório crescente,

grande parte da população de Oiapoque é oriunda de outras partes do país. A

maioria como indica a tabela abaixo, reside ali há menos de 5 anos ou entre 5 e 10

anos.

Quadro 5: Tempo médio de moradia dos falantes bilíngües da fronteira.

Tempo de

moradia / cidades

Menos de 5 anos Entre 5 e 10 anos Mais de 10 anos

Oiapoque 42,8% 46,2% 10%

Saint Georges 12,7% 15% 72,3%

Vale ressaltar no entanto que dentre os bilíngües que residem em

Oiapoque há menos de 5 anos, 100% deles estão ligados a um trabalho que exige

o contato diário com a língua francesa, a saber, o setor de vendas ou serviços . A

proximidade geográfica sozinha não basta para fazer com que sujeitos de duas

comunidades lingüísticas diferentes se tornem bilíngües, nem tampouco a duração

do contato. Aquele que embora habitando a zona fronteiriça por toda a vida sem

nunca ter estado em contato com a outra comunidade - e isso é uma realidade para

muitos de Oiapoque - e que tampouco tenha estudado a língua do país vizinho,

raramente se torna um falante bilíngüe. Por outro lado, aquele que embora recém-

chegado, está constantemente em contato com falantes de outra língua, não raro

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adquire habilidades lingüísticas naquela língua, ainda que sejam bastante

específicas.

Ao relacionarmos atividade profissional e bilingüismo nas duas áreas,

pudemos constatar que os falantes bilíngües em Oiapoque estão mais fortemente

presentes no setor comercial e na área de serviços. Recepcionistas, garçons,

vendedores, cambistas, agentes de viagem e catraieiros compõem a parcela

majoritária no percentual de bilíngües em contraste com os profissionais ligados à

administração e a serviços públicos como saúde, educação, transportes locais etc.

Ainda dentro do campo profissional, pudemos observar que há mais

bilíngües entre os funcionários homens com baixo nível de escolaridade do que

entre os proprietários de estabelecimentos comerciais com um nível de

escolaridade maior. Estes dados só reforçam a tese de que o bilingüismo na região

não está ligado à questão educacional, à aprendizagem de línguas na escola, antes,

ele se desenvolve pela pressão social que exercem as línguas na população local.

O bilingüismo da fronteira é impulsionado muito menos pelo desejo de

aprender uma segunda língua do que pela necessidade de falar uma língua que

ofereça maiores oportunidades de trabalho e de progresso econômico.

Quadro 6: Relação bilingüismo, escolaridade e sexo

Sexo Comunidades Escolaridade dos bilíngües

M F

1ª a 4ª 28,2% 78,5% 21,5%

5ª a 8ª 28,5% 85,5% 14,5%

Ens. Médio 41,3% 35% 65%

Oiapoque

Ens. Supérior 2% 0% 2 %

Primaire 25% 67,2% 32,8%

Secondaire 45% 47,7% 52,3%

Saint Georges

Supérieur 30% 42,7% 53,3%

Bilíngües com nível básico de escolaridade, ou seja, de 1ª a 4ª séries

representam 29% dos informantes de Oiapoque, sendo que deste percentual , os

homens representam a maioria (78%). No outro pólo estão os bilíngües com

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ensino médio, 41,3% dos entrevistados, porém com a maioria de mulheres (65%),

o que significa dizer que os homens bilíngües, ainda que sejam numericamente

superiores, têm menor nível de escolaridade que as mulheres. Elas ligadas

preferencialmente ao comércio formal (lojas, restaurantes e hotéis) e eles ao

comércio informal e/ou autônomo.

Em Saint Georges, em contrapartida, não parece existir significativa

diferença entre nível de escolaridade, atividade profissional e maior ou menor

grau de bilingüísmo. O português e o crioulo são falados por ampla maioria,

independente da profissão. De agentes federais a vendedores chineses, de

“boulangers à marchands” todos falam em alguma medida o “brasileiro”. Dessa

forma, também a relação bilingüismo, escolaridade e sexo parece estar mais

equilibrada. A maioria entre homens e mulheres tem nível médio e superior e as

mulheres ainda aparecem com ligeira vantagem numérica.

5.2.1 Modo de apropriação lingüística / contexto de aquisição

Quanto ao modo de apropriação lingüística consideramos, conforme a

grade proposta por Chaudenson (2001), a aquisição, como relativa à língua

adquirida como língua materna ou primeira língua , aprendizagem relacionada à

aquisição da língua como 2ª língua ou língua estrangeira e apropriação como

fenômeno geral englobando os dois processos.

Quanto à aquisição das línguas em Oiapoque e Saint Georges, analisamos

as quatro línguas em questão, português, francês, crioulo e patuá, em termos de

proporcionalidade. Embora a pesquisa tenha se concentrado no centro urbano da

cidade, a população que ali se encontra, obviamente em níveis proporcionalmente

diferenciados, é proveniente tanto de famílias exclusivamente brasileiras, nas

quais se presume que a língua materna seja o português, quanto de famílias

mistas, que por sua vez podem ser de: brasileiros e franceses, brasileiros e

guianenses, ou ainda entre brasileiros índios e não índios. Conseqüentemente a

determinação da língua materna de cada indivíduo varia em função da

especificidade de cada caso, podendo prevalecer tanto a língua da mãe quanto a

do pai, ou mesmo a língua da comunidade.

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Em Saint Georges, do mesmo modo, podemos encontrar tanto famílias

exclusivamente formadas de franceses, como só de guianenses, ou mistas de

guianenses com brasileiros ou franco-brasileiras. Um dado que consideramos

importante nesse contexto é que raramente se encontram casais mistos de

franceses com guianenses em toda a região da Guiana, casos em que o francês e o

criuolo poderiam se confrontar quando da aquisição da língua materna.

Analisados os dados, conforme tabela a seguir, pudemos então constatar

através da pesquisa que:

Quadro 7: Índice de aquisição das línguas como L1/la

Cidades/Língua

materna

Português Francês Crioulo Patuá

Oiapoque 82% 6% 3% 9%

Saint Georges 25% 24,4% 28,6% 22,%

Percentual global na

fronteira

53,5% 15,2% 15,8% 15,5%

Como considerávamos previsível, o português configura-se como língua

materna da maioria não apenas no lado brasileiro, mas também no contexto geral,

impulsionada portanto pela densidade demográfica largamente superior no lado

brasileiro. O percentual de falantes que adquiriram o português como língua

materna no outro lado da fronteira, portanto no território francês, é também

bastante elevado, chegando ao patamar de 25% superando mesmo o francês que

aparece ali como língua materna para 24,4% dos entrevistados, fenômeno este que

pode estar relacionado com a composição de casais mistos. Ora, se considerarmos

que 2/3 das crianças nascidas em Saint Georges, filhos de brasileiras com

guianenses ou franceses (Léglise 2004:113-114) são considerados franceses, e,

que a língua da mãe prevalece em 42% dos casos, temos configurada a situação

social que faz com que o português seja língua materna de 53,5% da população

fronteiriça.

Ainda em Oiapoque, as outras línguas da região também aparecem no

contexto de aquisição. Constatamos que 6% dos entrevistados declaram ter o

francês como língua materna, 3% dizem ser o criuolo de base francesa a primeira

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língua e 9% informam ser o patuá, nestes casos, todos são oriundos de famílias

mistas ou indígenas.

Em Saint Georges, a língua materna da maioria é o crioulo que registra

28,6%, seguido do português com 25%; do francês com 24,4% e do patuá que

registra 22%. É válido considerar que em toda a Guiana, o francês configura uma

situação de diglossia com o crioulo, sendo esta a variedade baixa e aquela a

variedade alta. Em Saint Georges não é diferente. Enquanto variedade alta, o

francês está presente nos organismos oficiais, nas instituições públicas e na escola,

mas a primeira língua das famílias guianenses é o crioulo de base francesa, daí o

resultado encontrado.

O patuá, língua materna da minoria indígena, aparece com 9% dos falantes

em Oiapoque e 22% em Saint Georges. Embora a população indígena do lado

brasileiro seja mais numerosa, ela ainda reside em grande parte nas aldeias

indígenas, portanto mais difícil de estar representada na enquete realizada em

Oiapoque. Já em Saint Georges, os índios vivem na cidade e portanto aparecem

em percentual maior.

Em relação à aprendizagem, aquisição formal ou não de uma segunda

língua pudemos perceber uma inversão na posição do francês. Ele passa então do

último lugar em termos de L1 no contexto global fronteiriço para o 1º lugar no

ranking da aprendizagem (L2), ou seja, o status e a veiculação local da língua

influem consideravelmente quando se trata da aquisição da segunda língua. Dentre

os 58 % que se declaram falantes de uma 2ª língua na região, os índices de

aprendizagem informal demonstram um forte contraste com o quadro de ensino.

Quadro 8: Índice das L2 mais utilizadas na região.

2ª língua /

comunidades

Português Francês

Inglês

Crioulo

Patuá

Oiapoque 12% 82% 0% 6% 0%

Saint

Georges

33% 47% 0% 17% 3%

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Se na escola a 2ª língua mais ensinada é o inglês, a realidade da 2ª língua

mais falada e aprendida, tanto pela comunidade de Oiapoque quanto de Saint

Georges é bem diferente. Em ambas as cidades o francês se configura como a 2ª

língua da maior parte da população fronteiriça, seguida do português. O que

equivale dizer, em comparação com o quadro de ensino institucional, que, se

dentre aqueles que declaram falar o francês em Oiapoque apenas 14% aprenderam

em condições formais, ou seja, na escola, os 86% restantes adquiriram o francês

no convívio social, na família ou no trabalho. O mesmo é válido para a situação

do inglês em Saint Georges. Escolhido como língua estrangeira pela maioria na

escola, ele não aparece nas pesquisas como 2ª língua no dia a dia dos falantes.

A densidade demográfica e o status das línguas nas comunidades,

sobretudo no aspecto de ensino obviamente se refletem nesse quadro. A

população de Oiapoque, de lusófonos, é três vezes maior que aquela de

francófonos em Saint Georges, o que faz com que os habitantes desta comunidade

estejam mais expostos ao português do que os brasileiros ao francês ou crioulo..

Considerando o contexto de aquisição lingüística e a classificação de

bilingüismo proposta por Heye (1999:93) pudemos observar que duas situações se

confrontam na fronteira. Uma que privilegia o bilingüismo do tipo La + Lb e outra

que privilegia o bilingüismo do tipo LA + Lb ou L1 + L2/LE

Em Saint Georges, a maioria dos entrevistados (52,7%) registra um

bilingüismo do tipo La+Lb, ou seja, a segunda língua (que no caso de Saint

Georges pode ser tanto o francês quanto o português ou o crioulo) é adquirida

após a primeira e antes que esta seja maturacionada. A condição diglóssica da

comunidade faz com uma primeira língua seja adquirida em casa com os pais e

família e uma outra seja adquirida no convívio social e freqüentemente no período

da alfabetização. Foram também constatados casos de bilingüismo do tipo Lab.

Em 33,2% dos casos, duas línguas foram consideradas L1’s, ou seja, foram

adquiridas em concomitância, sendo que estas línguas variam no grupo, elas tanto

podem ser francês e crioulo, crioulo e português, quanto português e francês. O

restante, 14,1%, são bilíngües do tipo L1+L2/LE. Neste caso os informantes são

invariavelmente franceses de origem européia.

Em Oiapoque a maioria dos bilíngües é do tipo L1 + L2/LE. Em geral o

bilingüismo nesta comunidade só se desenvolve após a maturação da primeira

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língua, visto que 82 % dos entrevistados bilíngües declararam ter aprendido a

segunda língua já em idade adulta, no convívio social ou no trabalho. Apenas 12%

informaram ter adquirido a segunda língua na infância e no convívio familiar, e

6% declararam ter aprendido na escola.

5.2.2 Produção e consumação na língua/ domínio funcional

Sabemos que o falante bilíngüe normalmente não possui domínio igual ou

equivalente nas suas línguas. Do mesmo modo elas não são, em geral, usadas nos

mesmos domínios funcionais. Na fronteira franco-brasileira o contexto de

aquisição/aprendizagem está bastante relacionado com a produção e consumação

linguageira do falante bi/multilíngüe. Analisamos os domínios lingüísticos dos

informantes de ambos os lados da fronteira e podemos constatar que:

a) Ambiente Familiar No contexto familiar as línguas utilizadas majoritariamente entre as

famílias são as línguas consideradas “maternas” La ou L1 ou seja, o português em

Oiapoque e o crioulo em Saint Georges. Se em Oiapoque o português é língua

materna da maioria, correlacionando língua materna e língua da mãe / família

parece natural constatar que esse é o idioma mais utilizado dentro de casa para

83% dos informantes, o que se confirma da mesma maneira nos dados de Saint

Georges.

Quadro 9: Uso das línguas fronteiriças no ambiente familiar

Ambiente familiar - Domínio de uso das línguas 1ªLíngua ou [+dominante]

Oiapoque Saint Georges

Português 83% 24% Francês 3% 26,3% Crioulo 0% 28,2% Patuá 8% 12,5% + de uma língua 6% 10%

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Em Saint Georges a divisão entre as línguas está mais equilibrada.O

crioulo é a língua mais falada no ambiente familiar do lado francês, representando

28,2% dos entrevistados. O francês com 26,3% e o português com 24% aparecem

logo em seguida. O patuá é usado na família por 12,5% dos entrevistados e 10%

declararam usar mais de uma língua no contexto familiar.

b) Convívio Social No convívio social a situação das duas comunidades é bastante

diferenciada. Como convívio social compreendemos ambientes como clubes,

igrejas, associações etc. Os dados foram analisados observando-se a 1ª e 2ª

línguas mais utilizadas nesses contextos.

Quadro 10: Uso das línguas fronteiriças no convívio social

Convívio Social - Domínio de uso das línguas 1ªLíngua ou 2ª língua

Oiapoque 1ª 2ª

Saint Georges 1ª 2ª

Português 77% 12,3% 25,7% 38,2% Francês 10% 65% 35% 33,4% Crioulo 9% 22,7% 28,2% 22,4% Patuá 4% 0% 11,1% 6%

O uso de diversas línguas nas relações interpessoais lança os primeiros

indícios do uso lingüístico multifuncional e diferenciado na região. Se a família

representa um ambiente restrito, as instituições socio-recreativas e religiosas

compõem a diversidade, ainda que com restrições. Em Oiapoque, 75% dos

informantes usa como língua principal no meio social o português. Como segunda

língua, o francês é a língua mais utilizada no convívio social, tendo sido apontada

nessa categoria por 65% dos informantes.

Em Saint Georges essa repartição é mais compartimentalizada e dinâmica.

O francês é apontado como primeira língua no convívio entre amigos e vizinhos

por 35% dos informantes; para 28,2% o crioulo é a língua mais utilizada; 23,7%

informam ser o português e 11,1%, o patuá. Como segunda língua mais utilizada,

o português aparece com 38,2% superando o francês com 33,4% e o crioulo que

aparece como 2ª língua mais utilizada para 22,4%. Com uma população três vezes

menor que a de Oiapoque, o contato entre os povos e suas respectivas línguas é

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consideradamente maior. Ali se segue a regra de uso das línguas daquela

comunidade bilíngüe, franceses metropolitanos e guianenses raramente

comunicam-se em crioulo. Índios e guianenses em contrapartida normalmente o

fazem. Entre brasileiros e guianenses ou franceses a língua é definida de acordo

com o interlocutor e a relação estabelecida entre eles. Um laço de amizade pode

definir o português ou o crioulo como língua de contato com um guianense. Em

uma relação comercial, o francês normalmente é a língua eleita. Assim, é possível

perceber que nem todos os bilíngües usam todas as suas línguas em todos os

ambientes nem com as mesmas pessoas.

c) Ambiente Escolar Quanto ao predomínio lingüístico na escola, duas realidades se

assemelham. Em Oiapoque a política de monolingüísmo, aliada às condições

físicas, materiais e humanas do ensino no Brasil, anula qualquer possibilidade de

desenvolvimento de um multilingüísmo escolar. No lado brasileiro da fronteira

86% dos informantes declararam ter utilizado somente o português no domínio

escolar. É de se questionar portanto a respeito dos outros 14% restantes que

declararam usar o francês também no domínio escolar. Ora, alguns brasileiros

filhos de franceses, embora morando em Oiapoque estudaram em Saint Georges

ou Caiena e responderam ao questionário a partir da nacionalidade declarada, ou

seja, como brasileiros. Na realidade, estes 14% não devem ser considerados em

sua totalidade como parte do âmbito escolar de Oiapoque, mas também de Saint

Georges.

Quadro 11: Predomínio lingüístico no ambiente escolar

Ambiente escolar - Domínio de uso das línguas 1ªLíngua [+ dominante]

Oiapoque Saint Georges

Português 86% - Francês 14% 74,4% Português e francês 0% 15,3% Crioulo 0% 10,3%

O crioulo e o patuá por sua vez não têm representatividade na área escolar

no lado brasileiro. O patuá, embora seja utilizado na alfabetização indígena, só é

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empregado nas aldeias. Nas escolas do perímetro urbano a língua não é utilizada.

nem como língua ensinada, tampouco como língua de ensino.

Em Saint Georges a situação não é diferente. Embora aquele seja

comprovadamente um espaço multilíngüe, a língua de escolarização é o francês.

Esta é a língua predominante na escola representando 75% de uso; o português

conta 15,3% e o crioulo 10,3%. Uma vez que o francês é a língua oficial da

escola, as demais línguas (as oficiais como inglês, português, espanhol, italiano

etc.) só figuram nas instituições de ensino como línguas estrangeiras. As línguas

consideradas étnicas ou regionais (crioulo e patuá), embora uma emenda à

constituição francesa garanta o ensino paralelo, são usadas somente entre colegas.

d) No trabalho

O ambiente lingüístico do trabalho é comprovadamente aquele que em

Oiapoque se apresenta como o mais multilíngüe e multifuncional. É nesse

contexto que é possível observar a representatividade das 4 línguas e comprovar

toda a riqueza lingüística da região fronteiriça.

Quadro 12: Uso das línguas fronteiriças no trabalho.

Ambiente de trabalho Domínio de uso das línguas 1ªLíngua ou dominante + 2ª língua.

Oiapoque 1ª 2ª

Saint Georges 1ª 2ª

Português 56% 35,5% 8% 37,1% Francês 40% 54,2% 72% 28,7% Crioulo 0% 10,3% 20% 20,2% Patuá 4% % 0% 0% Outras línguas 15%

De um modo geral, foi possível verificar que as línguas majoritárias são

também as línguas dominantes no ambiente de trabalho, seja como primeira ou

como segunda língua mais utilizada. Questionados sobre o uso de uma segunda

língua no ambiente de trabalho, 88% dos informantes declararam usar mais de

uma língua. Em Oiapoque, a primeira língua mais usada neste ambiente é o

português que registrou um índice de 56%, porém uma significativa parcela- 40%

dos entrevistados - indica usar o francês como primeira língua no trabalho. Essa

língua é também a L2 mais usada pela maioria, registrando 54,2% de uso, seguido

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do português com 35,5% e do crioulo com 8,3%. O patuá também aparece como

uma opção de língua mais usada no trabalho para 4% dos informantes. Embora ela

não seja a língua oficial de nenhuma instituição, na Funai onde a clientela é

majoritariamente indígena, o patuá se configura como a mais utilizada, daí ele

constar nos índices da pesquisa.

Curiosamente o crioulo e o patuá têm situações bem semelhantes de um

lado e de outro das fronteiras. O crioulo guianense não aparece nos índices como

primeira língua de trabalho nos dados de Oiapoque, mas somente em Saint

Georges, e o patuá no sentido contrário não registra índices de uso no trabalho em

Saint Georges, somente em Oiapoque. Vale lembrar neste caso que o patuá e as

demais línguas indígenas usadas nas dependências da Funai em Oiapoque se

restringem a esse ambiente e não se valem de nenhum respaldo oficial. O uso da

língua ocorre em função de a maioria dos funcionários serem de origem indígena

como o é o próprio administrador e de ser esta a língua materna da maioria dos

índios ali atendidos.

Em Saint Georges, por outro lado, os índios, alfabetizados que são em

francês, recorrem a esta língua para o trabalho e pouco ou nenhum uso fazem,

naquele contexto, da língua materna. O francês é a língua mais utilizada, até

mesmo por conta da política de monolingüismo institucional aplicada pelo país

como um todo. O crioulo que aparece como 1ª língua de trabalho para 20% e o

português para 8% são línguas que estão, não raro, sendo utilizadas por

profissionais liberais, autônomos e pelo setor informal.

Como 2ª língua mais utilizada no trabalho, o português ocupa a primeira

posição no lado francês. Fato é que , para grande parte da comunidade guianense,

formada por famílias mistas, o “brasileiro” é também língua corrente, tanto no

comércio local quanto nas repartições públicas. Desse modo a língua portuguesa

consta na pesquisa como segunda língua de maior uso no trabalho para 37,1% dos

entrevistados de Saint Georges.

É importante destacar ainda que do lado francês outras línguas também

aparecem como opção de segunda língua no trabalho. É o caso de uma variação

do chinês (o Hakka) falado pela população migrante daquele país, responsável por

90% do comércio de alimentos em Saint Georges e do “taki taki”, crioulo de base

inglesa originalmente utilizada no Suriname.

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5.2.3 Tipos de competência

Com relação aos tipos ou níveis de competência lingüística na segunda ou

terceira língua dos bilíngües da fronteira, consideramos a seguinte classificação:

L1/2 – São falantes com competência na 2ª língua semelhante ou

equivalente a da língua materna

L1 + L2 – são os falantes com dupla competência sendo que uma é

considerada [+ dominante] e a outra [– dominante].

L1 + Ln – são falantes com competência reduzida ou insuficiente.

Neste item os dados foram coletados de duas formas, pela declaração do

falante quanto ao seu grau de competência na L2 em resposta ao questionário, e

neste caso nem todas as respostas podem ser consideradas irrefutáveis ou

coerentes, e pelas observações realizadas no decorrer da entrevista feita tanto em

português quanto em francês, daí porque a maioria dos questionários foi também

gravada. Com relação ao crioulo e ao patuá só foram considerados os dados

recolhidos pelo questionário uma vez que o pesquisador não tem competência

lingüística nestas duas línguas. Foram considerados na análise tanto os dados

objetivos e interpretáveis quanto os dados subjetivos.

Em Oiapoque foi possível constatar através dos dados obtidos pelo

questionário que apenas 10% dos falantes bilíngües consideram ter uma

competência equivalente ou semelhante na L1 e L2. Outros 25% acreditam ter

uma dupla competência, porém funcional, ou seja, que são competentes na L2 mas

em domínios lingüísticos específicos, em geral no setor em que atuam

profissionalmente. A maioria, 65% dos informantes, acredita ter uma competência

insuficiente na L2, desta feita, o açougueiro pode não saber responder a todas as

perguntas do questionário em francês mas sabe cumprimentar os clientes, definir

os tipos de carne e vendê-la ao cliente francês. O mesmo acontecendo com o

recepcionista de hotel, os vendedores ambulantes, os vendedores de lojas e

supermercados etc. Destes, apenas 12% demonstraram ser do tipo Ln, ou seja, que

não têm verdadeiramente competência na 2ª língua.

O pressuposto de que falar bem uma segunda língua é dominá-la tal qual

se domina a língua materna está inconscientemente presente no discurso dos

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bilíngües de Oiapoque. Muitos foram os entrevistados que embora tenham

declarado ter uma competência limitada, foram capazes de responder a mais de

50% das perguntas em francês. Através da entrevista e do questionário foi

possível observar que nem todos que se demonstraram significativo domínio na

L2 foram capazes de se declarar competentes naquela língua. Acreditamos que

essa atitude se deva ao fato desta competência não ter sido construída

formalmente através do ensino e a crença de que é na escola que se aprende a

“falar bonito”.

Em Saint Georges em contrapartida, a maioria dos falantes 45% declara ter

uma dupla competência, sendo o francês a língua [+ dominante] e o português a

língua [– dominante], o que se confirmou também pela entrevista. Outros 24%

declaram ter uma competência equivalente à da língua materna, e outros 12%

consideram sua competência em português insuficiente. Foi registrada ainda na

pesquisa uma parcela de 19% que demonstraram não ter competência efetiva no

português, sendo bilíngües francês-crioulo ou francês patuá.

5.3 Status e Corpus: Analisando a fronteira franco brasileira.

A fronteira franco-brasileira exige uma dupla análise de seus aspectos

sociais e lingüísticos. É preciso compreender que não se trata de uma única

comunidade com duas ou mais línguas, nem mesmo de dois grupos sociais

distintos que dividem, sem linha demarcatória um espaço territorial, mas de duas

comunidades, cada uma envolvendo uma situação diferenciada de bilingüismo

que se vê intensificada pelo convívio de dois povos e pelo respectivo confronto de

duas línguas nacionais. De um lado temos os brasileiros com suas peculiaridades,

seu modo de vida, sua visão de mundo e suas línguas. De outro os guianenses que

são ao mesmo tempo franceses (e onde a identidade étnica não caminha

necessariamente de mãos dadas com a identidade lingüística) guardando na

mesma proporção da fronteira oposta características identitárias particulares.

Ao longo de quase um século, Oiapoque e Saint Georges estiveram, e

continuam, subordinados política e economicamente às suas condições de

periferias nacionais. Saint Georges está para Paris como Oiapoque está para

Brasília. Distantes dos centros econômicos e de poder, a realidade tanto social

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quanto lingüística segue ignorada década após década. A situação sócio-

econômica semelhante e a convivência mútua das comunidades cedo ou tarde

instauraria uma realidade multilíngüe. Assim, “Se Maomé não vai à montanha, a

montanha vai a Maomé”, parece ter sido o lema de ambos os grupos para dar

início a um frutuoso processo de integração.

O multilingüísmo regional tem função múltipla e contempla diferentes

realidades. Nem todos na comunidade brasileira são bilíngües e quando bilíngües

não o são igualmente, nem no modo de apropriação das línguas, na competência

que desenvolveram, nem nas línguas que usam, tampouco nos domínios em que as

utilizam. A realidade social, econômica e o histórico de vida de cada indivíduo é

que compõem o multilingüísmo societal da fronteira.

À exceção da constituição de famílias mistas, que geralmente leva à

apropriação de duas ou mais línguas, é fundamentalmente o trabalho que tem

impulsionado o multilingüísmo em Oiapoque. A pressão que sofrem os indivíduos

do lado brasileiro para aprender o francês está relacionada às condições

econômicas das famílias e à proximidade geográfica com o país vizinho. O baixo

nível de escolaridade da população local aliado ao baixo desenvolvimento

industrial, ora conduz parte da população à busca de trabalho no mercado de

serviços e no comércio logístico ora leva os indivíduos a lançarem-se no mercado

informal. Qualquer uma das situações, envolvida que está no contexto de

atendimento ao público que vem do outro lado da fronteira, impulsiona a

necessidade do aprendizado e do uso de uma nova língua.

Em Saint Georges, o multilingüísmo está fundamentalmente ligado à

realidade social diglóssica. Diferente de Oiapoque onde o bilingüismo ocorre

preferencialmente na idade adulta, ali a maioria dos habitantes é bilíngüe desde a

infância. O português que se soma às duas línguas da comunidade não tem seu

aprendizado relacionado com a necessidade econômica das famílias, mas

sobretudo com a realidade social e geográfica. Saint Georges tampouco tem

indústrias ou um comércio local forte, porém, a maioria da comunidade é formada

de funcionários públicos cuja renda é três vezes maior que a renda dos brasileiros.

Falar português para eles tem como objetivo maior estabelecer uma convivência

social pacífica com a comunidade vizinha.

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Por outro lado, o status de uma língua em uma dada comunidade

lingüística em relação às outras línguas com as quais está em contato é

condicionado por vários fatores que se estendem desde o poder econômico até o

uso efetivo da língua pelos falantes.

O poder lingüístico de cada língua, o valor econômico e a função social

das línguas são diferentes de um lugar para outro. Tanto em termos de legalidade

quanto de poder e valor econômico, o português e o francês de um lado, e o

crioulo e o patuá de outro estão caracterizadamente dividindo de forma desigual o

espaço fronteiriço.

O uso institucionalizado juridicamente ou não do francês e do português

nas comunidades é altamente superior àquele registrado pelas línguas

minoritárias. A separação que diferencia o status e o prestígio de uma língua para

outra é clara, enquanto o francês é a língua do comércio, de trabalho, o crioulo e o

patuá são usados e percebidos como línguas da minoria, de grupos étnicos. O

português em contrapartida é a língua das relações interpessoais. É a língua do

“entre amigos”. O português é percebido como a língua de contato entre

diferentes. Daí ela figurar como uma das línguas de maior prestígio entre as

línguas estrangeiras aprendidas na fronteira francófona.

Em termos demográficos o português é a língua da maioria. Para cada

francófono há na fronteira três lusofalantes, muitos deles vivendo dentro do

espaço francês e ali também usando a língua portuguesa. Proporções essas que

ficam ainda maiores se comparadas ao crioulo e ao patuá. Porém, o fator

demográfico não basta para determinar o status de uma língua, ele só é um dos

elementos, podendo ser atenuado por outros fatores.

Um destes fatores é o poder econômico que se manifesta na importância

dos povos que utilizam uma determinada língua, e também nas suas riquezas e

produção econômica e cultural. Na fronteira franco-brasileira o francês é a língua

que ocupa maior importância econômica no mercado. Embora sejam os franceses

que, atualmente, se dirijam em maioria ao território brasileiro, em busca dos

produtos ali ofertados com preços atrativos, é a relação comercial entre o mais

forte e o mais fraco, economicamente falando, estabelecendo também uma relação

de oferta e procura, que conduz as relações de força entre as línguas da região.

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Page 28: 5. A Situação Sociolingüística da Fronteira Franco

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Dessa forma, a língua de prestígio do comércio local é o francês que se torna por

conseguinte um pré-requisito no mercado de trabalho.

Contraditoriamente, o ensino da língua na fronteira brasileira não parece

fazer jus à necessidade da população em aprender o francês nem ao poder

econômico que a língua representa na região, o que nos força a estabelecer uma

relação muito mais ampla, resgatando aqui o valor da língua de maior prestígio

econômico em nossos dias, não só no Brasil, mas no mundo, aquele da língua

inglesa. De ambos os lados da fronteira, o inglês é a língua estrangeira mais

estudada pelos habitantes da região, seja por escolha própria, como é o caso de

Saint Georges, seja por imposição como acontece em Oiapoque. Elementos que

denotam a ausência de ações político-lingüísticas concretas e apropriadas para o

lado brasileiro da fronteira.

A prática do monolingüismo instituída no Brasil e na França, baseada no

princípio da nacionalidade, desconsidera o fator fronteiriço sobretudo no que diz

respeito ao ensino de línguas estrangeiras e /ou segunda língua. Longe de ser só

mais uma disciplina da grade curricular, o francês em Oiapoque e o português em

Saint Georges são línguas em uso no grupo social que compõem brasileiros e

franceses.

A escola, vale lembrar, é um dos mais potentes meios de intervenção na

gestão das situações lingüísticas, guardando uma parte importante na avaliação do

status de uma língua na comunidade. Mais do que em lugares onde o contato com

estrangeiros é esporádico, a possibilidade de acesso ao aprendizado público de

uma língua estrangeira que está presente no dia a dia das pessoas é não só uma

necessidade socialmente comprovada, em contraponto com o aprendizado que

representa antes de tudo status social, mas sobretudo um direito e uma

oportunidade aberta para o desenvolvimento das comunidades de fronteira.

A ausência de ações pontuais relativas ao ensino de línguas em Oiapoque

vem mostrar em primeiro plano não somente a ausência de uma política

lingüística diferenciada e necessária para aquele espaço particular, mas também

um forte desconhecimento do composto social, econômico e lingüístico da

fronteira franco-brasileira.

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