hermenêutica da fronteira

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Este livro resulta da aplicação de uma proposta metodológica fundamentada na hermenêutica filosófica, de Hans-Georg Gadamer, na interface com a invenção do cotidiano, de Michel de Certeau. Ao longo do texto, pensamos a fronteira como um espaço praticado, um terceiro lugar, na medida em que ela se situa entre dois fragmentos de uma totalidade formada, no caso aqui investigado, pelo Brasil e pelo Paraguai. Isso implica partir do pressuposto hermenêutico de que, na época pré-cabraliana, não existia tal divisão. A América podia ser considerada como uma totalidade não fragmentada pelas fronteiras nacionais. A investigação desse tema conduz ao TEKOAGUAÇU dos Guarani, território que abrange toda a área não andina da América do sul, desde a Argentina até as Guianas. Opondo-se à constituição desse terceiro lugar, havia um pretenso território ancestral dos tupis PINDORAMAque compreendia, aproximadamente, a região das palmeiras. A fronteira entre o Brasil e o Paraguai foi constituída a partir de

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Editora UNICENTRORua Salvatore Renna, 875, Santa Cruz, CEP 85015-430 - Guarapuava - PR. Fone: (42) [email protected]/editora

Publicação aprovada pelo Conselho Editorial

da UNICENTRO

José Adilçon Campigoto

Page 4: Hermenêutica da fronteira

Copyright © 2016 Editora UNICENTRONota: O conteúdo desta obra é de exclusiva responsabilidade de seu autor.

Ficha catalográficaCatalogação na publicação

Fabiano Queiroz Jucá - CRB 9/1249Biblioteca Central da Unicentro, Campus Santa Cruz

Universidade estadUal do Centro-oeste

Reitor: Aldo Nelson BonaVice-Reitor: Osmar Ambrosio de SouzaEditora UNICENTRODireção: Denise Gabriel WitzelAssessoria Técnica: Beatriz Anselmo Olinto, Ruth Rieth Leonhardt, Suelem Andressa de Oliveira Lopes, Victor Mateus Gubert Teo, Waldemar FellerDivisão de Editoração: Renata DaleteseCorreção: Níncia Cecília Ribas Borges TeixeiraDiagramadores: Helana Wichinoski, Roger Ongaratto Nunes, Thomas Alex Volski, Victor Mateus Gubert TeoDiagramação: Roger Ongaratto NunesCapa: Victor Mateus Gubert TeoGráfica UNICENTROLourival Gonschorowski, Marlene dos Santos Gonschorowski, Agnaldo Dzioch

À minha companheira Rejane e ao meu filho Giovanni pela paciência com que me acompanharam durante a elaboração deste trabalho.

Campigoto, José Adilçon

C196h Hermenêutica da fronteira: a fronteira entre o Brasil e o Paraguai

/ José Adilçon Campigoto. - - Guarapuava, 2016.346 p. : il.

ISBN 978-85-7891-168-3

Bibliografia

1. Brasil - História. 2. Paraguai - História. 3. Brasil - Paraguai - Fronteira. I. Título.

CDD 981

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Agradecimentos

Ao meu orientador Dr. Élio Cantalício Serpa, pela confiança no meu trabalho o que proporcionou a liberdade fundamental para as tentativas de invenção.

À Profa. Dra. Maria Bernadete Flores, por apostar no meu esforço e por ter-me encorajado a entrar no curso de doutorado.

À Profa Dra. Joana Pedro, por tudo que me ensinou sobre a escrita da História.

Ao Prof. Dr. Artur Cezar Isaia, por haver apostado nesta pesquisa.

Ao Programa de Pós-Graduação em História, pelo ambiente rico e comprometido com o saber, sem o qual esta pesquisa não teria sido possível.

Aos colegas de curso do Departamento de História da UNIOESTE e UNICENTRO, pelo incentivo e compreensão.

Ao Centro de Pesquisa da América Latina (CEPEDAL), por haver-me fornecido a acesso às fontes de pesquisa.

Ao CAPES e CNPq.A todos os que torceram por mim.

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Sumario

Introdução ............................... 11

Capítulo IO nome sem rio ........................27

Nomeação e reconhecimento .. 31

A linguagem: lugar dodiscurso na fronteira ................ 50

Fronteiras e tradições ............... 57

A fronteira nas narrativas ......... 74

Narrativas do mar,fronteiras de letras ................ 104

Capítulo IIAs sete quedas deHércules ...............................139

A etimologia da fronteira ..... 141

O rio fronteira comolinguagem pedagógica .......... 164

A língua separante, a árvoree o acidente geográfico ........ 185

Hércules: união e separaçãodos mundos..... .................... 200

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Introdução

Capítulo III

O rio, o machado e a aranha monstruosa..... ..................227

A hidrofronteira ................. 229

Deuses e rios ..................... 250

El mar de água dulce: o abraçodos anciãos ........................ 264

A esfinge do Prata ..............282

O Goiobang – Rio Paraná...301

Conclusão .........................321

Referências .....................333

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Um grupo de militares marchava pelo interior do Bra-sil, no mês de agosto de 1867. O destacamento fora deslocado por causa da guerra com o Paraguai, sendo comandado pelo capitão da guarda nacional do Rio Grande, Delfino Rodrigues Pereira. Conforme a descrição de Taunay “[...] de repente, um grito partiu simultaneamente de vários lugares: ‘a fronteira’. Da altura onde se encontrava o destacamento, via-se efetivamente a mata sombria do Rio Apa”.1

Qualquer leitor ou ouvinte desse relato, encontrável em A Retirada de Laguna,2 poderá ser induzido a crer que o grupo encontrava-se, de fato, diante da fronteira. Taunay explicita que, no entanto, “[...] via-se efetivamente a mata sombria do Apa”. O autor e narrador encontrava-se na qualidade de testemunha ocular; exprimia o que, de fato, podia ser visto: a paisagem, a mata fechada, existente, à época, nas margens do Rio Apa.

O brado descrito, porém, proclamava alguma coisa efetivamente distinta da paisagem que se dava ao olhar: a fronteira. Parece que a linguagem operava, naquele acontecimento, pelo modo da equivalência, mas Taunay, como que tentando eliminar qualquer dúvida posterior, acrescentou ao texto tratar-se do “[...] limite dos dois países”.3 A colocação do complemento funciona, aqui, como uma denúncia de que não se está falando uma linguagem qualquer. Enunciava-se qualquer coisa invisível aos

1 TAUNAY, Alfredo d’Escragnole. A retirada de Laguna. São Paulo: Cia das Letras, 1997, p. 82.

2 Este fragmento de narrativa escrito por Taunay ilustra a peculiar relação que se estabelece entre a fronteira de dois países e a linguagem e, por consequência, com a escrita da história. Os primeiros seis capítulos da obra de Taunay versam sobre o plano de ataque do exército brasileiro à República do Paraguai. Tratava-se de atingir o Rio Paraguai e “[...] desce-lo pelo lado brasileiro, a partir da capital do Mato Grosso, Cuiabá, que os paraguaios não haviam ocupado”.

3 TAUNAY, Alfredo d’Escragnole. A retirada de Laguna, op. cit., p. 82.

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olhares daquele agrupamento bélico, ali detido, por um instante, em estado de contemplação.

O autor narra, mais detalhadamente, o encontro com o invisível:

foi um momento solene, uma emoção a que ninguém escapou; oficiais e soldados. Ver o aspecto da fronteira que demandáva-mos representou para todos uma surpresa. Ninguém estivera ali antes. Alguns poderiam já tê-la visto, mas apenas com os olhos de caçador ou andarilho, para quem o chão é indiferen-te. A maioria de nós ouvira falar vagamente da fronteira, mas agora ali estava ela à nossa frente, como ponto de encontro de duas nações armadas, como campo de batalha [...].4

Com efeito, o significado da linha da fronteira depende dos “olhos do observador”, como aponta Taunay. Um grupo de transeuntes, empenhado numa caçada ou em outra andança qual-quer, certamente, não estancaria, emocionado e comovido, por um brado denunciando a presença da fronteira. Contemplar a mata, o rio ou a paisagem poderia ser bem mais interessante. Aquele des-tacamento em guerra, no entanto, investiu o lugar de um sentido particular, qual seja, “[...] o ponto de encontro de duas nações ar-madas, como campo de batalha”, mas podemos vislumbrar algo além do significado contextual atribuído à fronteira.

Paralelamente, à narrativa sobre o encontro entre o destacamento militar e a paisagem fronteiriça ao Rio Apa e, também, à descrição da comoção grupal vivida por uma parte do exército imperial brasileiro num período de guerra, há uma explicação sobre o comportamento daquelas pessoas diante da fronteira enunciada.

O grupo demandava-a, num tempo de guerra e Taunay, que fazia parte da comitiva, interpretou o caso, sob a forma

4 TAUNAY, Alfredo d’Escragnole. A retirada de Laguna, op. cit., p. 82.

de um texto dado a ler. Então, a intenção dos membros do destacamento militar (encontrar algo) completa o sentido do seu comportamento diante das matas fronteiriças. O desejo de alcançar a linha imaginária dos limites aparece no texto, por exemplo, no relato sobre o dia vinte e cinco de março, quando o grupo recebeu notícias sobre a vulnerabilidade das fortificações inimigas. Houve um brado geral, segundo Taunay, ‘ao Apa’, que excitou até os mais prudentes. A emoção geral sentida em dezessete de maio, diante do rio almejado era a de encontrar-se diante do inesperado, mas também, de haver encontrado o objeto do anseio, isto é: satisfação, contentamento. A intenção do grupo de militares é a totalidade a completar o sentido da comoção geral ocorrida às margens do rio-fronteira. O autor recorreu, portanto, à interpretação psicológica, ou seja, a intenção dos sujeitos dá sentido à narrativa; mas há um complemento.

O episódio exposto torna-se ainda mais compreensível; seu sentido completa-se devido à recorrência ao contexto da guerra em defesa do território. A fronteira encontra-se ameaçada por causa da guerra. Ocupá-la é motivo de contentamento. O sentido se completa devido ao contexto.

Esboçam-se, assim, duas formas de interpretação do acontecimento: a psicológica e a contextual. Contudo, ocorre certo desvio da narrativa pois, da fronteira, o foco de atenção desliza para o comportamento das pessoas que se encontra-vam ali e, das pessoas, para as suas intenções e o contexto. Trata-se de um deslocamento básico porque o autor se coloca, no texto, como participante do acontecimento e como perso-nagem contextualizada.

Sabemos que o autor falava da fronteira por meio de e no interior da linguagem existente na ocasião do encontro com o Apa e também, no momento da escrita. Naquele horizonte

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de compreensão, a fronteira se dava a conhecer, mas podemos modificar o contexto e a intenção e ver o que acontece.

No final de novembro de 1983, um grupo de estudantes secundaristas deslocou-se da cidade de Brusque, em Santa Cata-rina, numa excursão com destino à fronteira do Brasil com o Para-guai. Os formandos do Educandário Nossa Senhora de Lourdes percorreram cerca de mil quilômetros de estradas numa “perua” branca para ver a fronteira. Eu estava entre os oito rapazes que compunham a “expedição”.

No início dos anos oitenta, os meios de comunicação veiculavam intensa campanha propagandística no sentido de atrair turistas para a região Oeste do Paraná. A construção da usina hidrelétrica de Itaipu, o fechamento das comportas e a submersão dos saltos de Sete Quedas emergiram como atrativos turísticos internacionais.

Na época em que foi realizada a viagem pelos estudan-tes catarinenses, o lago já estava formado, algumas comportas haviam sido abertas e a usina de Itaipu gerava energia em fase experimental. Um dos primeiros pontos visitados foi o mar-co das três fronteiras, o ‘ponto de encontro’ entre as frontei-ras do Brasil, Argentina e Paraguai. Basicamente, um poste de concreto, no formato triangular, colocado às margens de um rio. Fizemos algumas poses para fotografia e pôde-se notar o comportamento bem característico de um grupo de jovens ex-cursionistas. Se houvesse que se escutar algum grito, provavel-mente seria: “vamos embora. Aqui não há mais nada para ver”.

Do que posso recordar, a reação do nosso grupo foi bastante diversa daquela descrita por Taunay. O contexto era diferente, por certo. A intenção das pessoas, igualmente; mas, também é certo que os dois grupos tinham mais coisas em comum

do que se pode facilmente pensar: ambos encontravam-se diante de algo que não podiam ver e, ainda assim, ninguém manifestava qualquer dúvida sobre a sua existência.

Isto quer dizer que, tanto Taunay e seu grupo, como meus colegas formandos e eu pertencemos à mesma tradição linguística, ao mesmo horizonte de compreensão da fronteira. Relacionávamo-nos com um objeto invisível e falávamos de um ausente, presentificado no poste de concreto e nas matas do Rio Apa. O relacionamento com a linha invisível, assim como a linguagem na qual esses eventos acontecem, não foi inventada pelo grupo de estudantes, nem por Taunay e seu grupo.

A linguagem da fronteira pode ser considerada como caso especial porque opera num campo de abstração. Talvez possa ser metaforizada por meio da figura de uma criança iniciando a dominar a fala e que, encontrando certo objeto (os óculos, por exemplo) pertencente ao pai, pronuncia a palavra “papai” e não o nome da peça encontrada. O enunciado expressa, então, uma relação de pertencimento ou que tal artefato está, de alguma forma, relacionado à figura do pai. O rio e o poste são expressos, igualmente, em relações de invisibilidade e pertencimento. Materializam algumas formas pelas quais a fronteira se dá a conhecer na tradição ocidental.

Neste livro, investigamos os modos sob os quais ocorre que um determinado rio, uma montanha, uma rocha ou um marco qualquer venham a tornar-se sinônimos de fronteira. Ou seja, como ocorre que alguém, apontando para o Rio Paraná, diga que ali passa a linha da fronteira entre o Brasil e o Paraguai. E como é possível que, as pessoas, olhando na direção indicada, vendo o rio, respondam: “realmente, ali está a fronteira”. Nossa hipótese é de que entre o signo e o ausente, a pertença e a impertinência, ocorre a compreensão da fronteira.

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O sentido de pertencimento atribuído às fronteiras entre países tem gerado ampla gama de estudos sobre o território e a construção das identidades nacionais. A tarefa que logo se impõe parece estar bem expressa, por exemplo, no texto de Antônio Carlos R. Moraes, a respeito das ideologias presentes na geografia e na história, na política e na cultura, relacionadas à “formação do território brasileiro”. O autor assinala que

[...] é necessária a realização de análises substanciais para avan-çar o seu conhecimento; rastrear tais ideologias em autores e conjunturas específicas; retomar discursos variados, identifican-do suas matrizes, seus formuladores, seus canais de divulgação, suas projeções na política do Estado, dos partidos, e na opinião pública. Enfim, aferir sua eficácia no movimento da sociedade.5

Neste livro, não negamos a validade dessa proposta, admitimos alguns pressupostos, tal como o de que “as formas espaciais são produtos históricos”.6 Em outras palavras, elas são representações que os seres humanos constroem sobre o espaço. Também se acata a ideia de que “a leitura da paisagem é comum a qualquer sociedade, em qualquer época”.7 Dessa forma, pressupõem-se sujeitos de leitura de espaço relacionados ao tempo, ou seja, à história. Concorda-se, igualmente, que “a dimensão espacial recorta uma determinação fundamental da história brasileira”.8 A espacialidade, aqui, é entendida sob a forma de construção e, a determinação, como explicação.

Esse viés de pesquisa parece ter adquirido relativa força no âmbito das discussões sobre fronteira e globalização. Héctor Eduardo Jaquet, por exemplo, escreveu que

5 MORAES, Antônio Carlos R. Ideologias geográficas. 3. ed. São Paulo: Hucitec, 1996. p. 108.

6 Idem, p. 15.7 MORAES, Antônio Carlos R. Op. cit., p. 27.8 Idem, p. 96.

los cada vez más frecuentes encuentros cientificos a los que concurrem intelectuales de varias disciplinas de los paises integrantes del Mercosur, expresan la necessidad de la formulación de nuevos criterios de producción académica y de circulación de información.9

O autor justifica o destaque conferido à produção historiográfica no caso por ele estudado, pois,

Misiones, provincia argentina ubicada historicamente entre Paraguay e Brasil, tiene la mayor parte de su territorio lindando com fronteras internacionales. Esta situación hace que las fronteras pasen a formar parte del proceso de los esquemas de clasificación y representación de la realidad social, transformándose así en una categoría identitaria que permea, como hemos dicho, el contenido de la producción histórica sino también el modo en que los historiadores de Misiones construyen su espacio como intelectuales.10

A fronteira aparece como objeto construído. Os his-toriadores locais emergem como sujeitos construtores da linha de limites. Nesses textos sobre a historiografia de Misiones, a narrativa versa sobre a transformação do marco fronteiriço em “una categoria identitária”. Trata, portanto, de escrever uma história da ideia desse objeto.

Na escrita da história das ideias, impõe-se a recorrência ao sujeito instituinte, neste caso, os historiadores. Tal mecanis-mo deriva do fato de que o sujeito pode dialetizar o movimento do pensamento e, por meio da crítica às ideias estabelecidas, deter a capacidade de instituir um novo mundo de ideias, ao modo hegeliano. Assim, a fronteira é a concretização da ideia

9 JAQUET, Héctor Eduardo. Los historiadores y la producción de fronteras. El caso de la província de Misiones (Argentina). In: <www.unesco.org/most>

10 Idem, p. 2.

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que se tem sobre o assunto, em determinado tempo e lugar. Escrever a história dos limites territoriais, nessa perspectiva, implica a tentativa de capturar os movimentos pelos quais de-terminados sujeitos concretizam a ideia de fronteira.

A perspectiva adotada nesse livro, no entanto, funda-menta-se no pressuposto de que os objetos e fenômenos não se dão a conhecer no movimento dialético entre a ideia e o concreto e sim na e pela linguagem; mas conhecemos as difi-culdades de escapar ao hegelianismo. Como assegura Foucault,

[...] toda a nossa época, seja pela lógica ou pela epistemologia, seja por Marx ou por Nietzsche, procura escapar de Hegel [...] Mas escapar realmente de Hegel supõe saber exatamente o quanto custa separar-se dele; supõe saber até onde Hegel, insidiosamente, talvez, aproximou-se de nós; supõe saber, naquilo que nos permite pensar contra Hegel, o que ainda é hegeliano; e medir em que nosso recurso contra ele é ainda, talvez, um ardil que ele nos opõe, ao termo do qual nos espera, imóvel e em outro lugar.11

A perspectiva hermenêutica, aqui adotada, afasta-se de Hegel na medida em que a linguagem e a tradição, diferentemente dos conceitos e das ideias, são desvinculadas do procedimento dialético. Metodologicamente, significa considerar o princípio de que o historiador (assim como qualquer outro sujeito) não institui uma nova linguagem quando se refere à fronteira, o que também vale a qualquer outro objeto. Todos nós falamos a partir de tradições e, por isso, não haverá sentido em identificar os sujeitos instituintes das linhas fronteiriças. Significa, também, adotar o pressuposto gadameriano de que o único ser que podemos compreender é a linguagem e que somente ocorre

11 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 4. ed. São Paulo: Loyola, 1996, p. 72.

a compreensão quando o sentido se completa. Assim, toda compreensão ocorre, sempre, na e pela linguagem, constituindo a fusão de horizontes. O horizonte do presente

[...] está en un processo de constante formación en la medida en que estamos obligados a poner a prueba todos nuestros pre-juícios. Parte de esta prueba es el encuentro com el passado y la comprensión de la tradición de la que nosotros mismos proce-demos. El horizonte presente no se forma pues a la margem del passado. Ni existe un horizonte del passado en si mismo ni hay horizonte histórico que se hubiera ganar. Comprender es siem-pre el processo de fuzión de estes presuntos horizontes para si mismo. La fuerza de esta fuzión no es bien conocida por la rela-ción de los viejos tiempos com sigo mismo y com sus origens.12

O horizonte deste texto sobre a fronteira entre o Brasil e o Paraguai, portanto, caracteriza-se como um terreno móvel, sempre em formação, porque pretendemos colocar à prova nossos preconceitos sobre a história e a fronteira. Não se trata de eliminá-los, o que seria uma tarefa impossível. A linguagem não opera dialeticamente, ou seja, para os efeitos de compreensão, não é possível começar a falar palavreado totalmente novo e ser compreendido. Em outras palavras, encontra-se vetada a possibilidade de eliminar a linguagem até agora usada para falar de fronteira (momento da afirmação) e começar a usar elocuções totalmente novas (momento da negação) porque somente aquele que assim procede, saberia do que estaria falando (momento da síntese). A compreensão malograria como uma espécie de autismo linguístico.

Como nos resta falar a partir da linguagem já conhecida, a fronteira se dá na e pela linguagem e os preconceitos, ao invés

12 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y metodo. 5. ed. Salamanca: Sígueme, 1992, p. 376.

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de serem eliminados, serão colocados em evidência; mas essa é apenas uma parte da proposta metodológica aqui empreendida. Será necessário que o intérprete descubra e evidencie seus pró-prios preconceitos sobre a fronteira. Ou seja, para além da his-toriografia e dos aparatos conceituais e metodológicos, tentamos entender como ocorre que a expressão fronteira torna-se com-preendida, assim que se tem contato auditivo ou visual com ela.

O brado ‘eis a fronteira’ ou o sentimento de que, diante de um marco de fronteira, pouco há para contemplar, indica a preexistência do objeto, isso é, que se trata de algo originário do passado. Pesquisar a história da fronteira implica, pois, levar-se em conta tal dimensão.

Para Michel de Certeau,

O discurso sobre o passado tem como estatuto ser o discurso do morto. O objeto que nele circula não é senão o ausente, enquanto que o seu sentido é o de ser uma linguagem entre o narrador e seus leitores, quer dizer, entre presentes.13

Escrever a história da fronteira implica ter como objeto uma ausência dupla: um passado que não podemos ver mais, e a linha da fronteira, que jamais podemos enxergar. Tomar estes dois ausentes sob a forma de presentes constitui a evidenciação do primeiro dos preconceitos com os quais teremos que nos de-bater. Outros serão: tratar, por vezes, alguma época do passado como uma etapa encerrada da qual podemos ter, hoje, uma com-preensão melhor, a partir do presente; tratar o rio-fronteira ape-nas como um acidente geográfico e torná-lo equivalente à linha da fronteira; pensar a fronteira como linha que separa os povos

13 DE CERTEAU, Michel. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 56.

e compreender a linguagem como instrumento que comunica a essência da fronteira, conforme a época, sem afetar o intérprete.

Todos esses prejuízos são investigados neste livro, mas seu peso não será eliminado de todo, porque uma tentativa de elimi-ná-los corresponderia ao retorno da doutrina iluminista que, con-forme Gadamer, resume-se no preconceito contra os preconceitos. Um procedimento desse formato resultaria na simples afirmação da ciência metódica como saber mais válido que outros. Quan-do escrevemos a história da fronteira, somos afetados por essas tradições porque, do contrário, não poderíamos compreendê-la.

Dessa forma, um passado frequenta este presente, pois, o trabalho da história “[...] consiste em criar ausentes, em fazer de signos dispersos na superfície de uma atualidade, vestígios de realidades ‘históricas’[...]”.14 Portanto, implica abandonar o preconceito contra os preconceitos.

Abdicar os prejuízos, porém, não significa conduzir a história ao grau zero da narrativa, levando-a à anulação de si mesma. De Certeau nos adverte que a história

[...] não é nem a lenda à qual foi reduzida por uma vulgarização, nem a criteriologia que faria dela a única crítica de seus procedimentos. Ela está entre estas duas coisas[...] ela funciona como o faziam ou fazem ainda, em civilizações estrangeiras, os relatos de lutas cosmogônicas, confrontando um presente e uma origem.15

Se a história permanece um relato, torna-se necessá-rio estabelecer os seus limites para efeito de compreensão da narrativa. O texto que segue delimita-se no tempo que vai do Brasil Império até a década de 1950. O objeto de estudo é o acontecer da fronteira na linguagem. Liga-se a um espaço que

14 Idem, p. 57.15 DE CERTEAU, Michel. Op. cit., p. 55.

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é intermediário entre o Brasil e o Paraguai na parte que com-porta o Estado do Paraná.

Parte-se do pressuposto de que o único ser que po-demos compreender é a linguagem, como sustenta Gadamer; ou, como aponta De Certeau, considera-se primeiramente que a espessura e a extensão do ‘real’ não se designam nem se lhe confere sentido senão em um discurso. Isto não nos obriga ne-gar que os sujeitos fazem leituras e inventam o que não está no texto. A compreensão é uma fusão de horizontes, comportando a necessária presença do leitor ou do intérprete. No entanto, aceitar as invenções efetuadas pelo leitor não conduz, necessa-riamente, à concordância de que a leitura seja uma ação diale-tizante. Ou seja, tomar como certo que, após a leitura, o texto antigo cessa para existir um novo. Pensamos que isso consistiria em ler De Certeau a partir da tradição hegeliana, o que parece bem comum. A leitura ocorre na linguagem e pela linguagem e, portanto, ocorre conforme as tradições.

Quando fazemos a leitura de um texto, podemos modi-ficar algumas coisas, mas isto já indica que outras permaneçam. Quando dizemos que a fronteira entre o Brasil e o Paraguai, na parte que comporta o Estado do Paraná, é representada por um rio, afirmamos a fronteira em nosso texto. Se nos posicionamos criticamente, afirmando que a linha dos limites é uma ação políti-ca e que o imperialismo português e depois brasileiro invadiram e destruíram os povos nativos para ocupar o território e estender a linha da fronteira até ali, ainda não “apagamos” a afirmação primei-ra, e repetimos novamente que “a fronteira é ali”. Consideramos a denúncia necessária, mas há sempre esse vazio porque lhe acom-panha o efeito da afirmação. A linguagem opera no modo formal.

A criticidade, aqui, significa não ignorar os efeitos da linguagem e desconsiderá-los, pois pode ser uma atitude nada

crítica. Não escrever textos sobre a fronteira pode significar uma forma de jamais afirmar a sua existência, mas o quietismo é uma atitude filosófica que não convém ao historiador. Escrever a história da fronteira evidenciando as tradições nas quais ocorre a nossa compreensão é tornar expostos os modos pelos quais a fronteira se dá a conhecer para nós. É conhecer a linguagem na qual e por meio da qual ela se afirma, passa a ter uma existência sempre reificada e até mesmo nos texto onde sua existência parece negada.

No primeiro capítulo trataremos de evidenciar uma an-tiga tradição que retoma as proposições de Gandavo. Nessa lin-guagem, o Brasil é representado como um território onde ha-bitava a raça tupi. As fronteiras daquele espaço se davam com outra raça indígena, chamada de raça tapuia, que quer dizer es-trangeiro. Logo, na fronteira com o Paraguai, o tapuio é o gua-rani. Na década de 40, no Estado do Paraná, os caingangues to-maram o lugar dos tupis no que se refere à narrativa da fronteira.

As narrativas de fundação ocupam um lugar de destaque na escrita da fronteira. Por meio dos estudos das línguas ances-trais do Brasil, ligam-se as narrativas dos indígenas às velhas tra-dições da Europa. Desse modo, Hércules foi transportado para a Cachoeira do Rio Paraná, um dos pontos de disputa no estabele-cimento das fronteiras entre o Brasil e o Paraguai. O herói grego tornava-se São Tomé, o santo fundador dos caminhos do Paraná, conforme se encontra no segundo capítulo deste texto.

No terceiro e último capítulo, trataremos mais especifi-camente das tradições referentes ao rio, uma vez que, conforme a linguagem da fronteira, o Rio Paraná representa a linha dos limites entre o Brasil e o Paraguai. O rio-homem, rio-deus, rio-começo de todas as coisas e fim das coisas todas. Começo e fim do território. O rio é um círculo onde começa e termina a história. É um círculo

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que contorna o território e define a fronteira como nos monumen-tos erguidos pelos imperadores do Brasil no século XIX.

Nesta pesquisa, considera-se fundamental o estudo da fronteira enquanto linguagem porque, se a escrita da fronteira constitui, em parte, a sua afirmação, faz-se necessário evidenciar as formas como isso acontece para que a linha dos limites seja percebida criticamente. A escrita da fronteira em uma perspecti-va a-crítica pode ser considerada uma produção alienada porque toma como dado aquilo que produzo no ato mesmo de produzir.

CAPITULO I

o nome sem rIo