4.tpd 003 - kasahra - qual democracia
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"Qual democracia? O uso de referenciais normativos em estudos comparativos"
Yuri Kasahara Introduo
A utilizao da comparao no campo da cincia poltica filia-se a uma tradio
iniciada, para muitos, pelos estudos de Aristteles sobre as constituies das diversas
Cidades-Estado gregas, tendo continuidade com textos clssicos de autores como
Montesquieu, no sculo XVIII, e John Stuart Mill, no sculo XIX. Com a pretenso de dar
seguimento a essa tradio, a cincia poltica norte-americana, a partir da segunda metade
do sculo XX, passou a empreender um esforo sistemtico no sentido de institucionalizar
os estudos de poltica comparada, seja por meio da criao de departamentos universitrios
ou pela obteno de generosos financiamentos pblicos e privados para pesquisas. O
sucesso desse esforo pode ser visto, por exemplo, no espao adquirido pela chamada
comparative politics na produo acadmica norte-americana nas ltimas dcadas.
Em relao aos aspectos tericos que sustentam essa ascenso, a comparao pode
ser considerada como um mtodo indispensvel para a produo de teorias e a confirmao
ou refutao de hipteses. Por meio dela, podemos encontrar caractersticas recorrentes ou
contrastes que nos ajudem a explicar semelhanas ou diferenas. No caso da poltica
comparada, podemos descobrir recorrncias ou singularidades que nos possam explicar
melhor a dinmica de fenmenos polticos em diferentes pases, produzindo teorias mais
slidas e confiveis. Foi com a utilizao de argumentos como esses destacando a
importncia cientfica dos estudos comparados que muitos dos defensores da poltica
comparada conseguiram consolidar seu campo de estudo. Nesse sentido, a defesa da
comparao como recurso legtimo para a produo do conhecimento na cincia poltica
prevalece at hoje, mesmo que sua excessiva institucionalizao gere discusses sobre a
validade de se considerar a poltica comparada como um ramo autnomo de conhecimento
ou apenas como uma frutfera metodologia de pesquisa1.
Professor da Escola de Direito da FGV-Rio. E-mail p/ contato: [email protected] 1 Para esse debate ver Collier (1993) e Lijphart (1971).
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Sem entrar no mrito desta discusso, muito menos nos debates sobre as novas
possibilidades abertas pela introduo de modernas tcnicas estatsticas nessa rea de
estudo, parece importante destacar como alguns paradigmas tericos influenciaram e tm
influenciado de forma decisiva a produo acadmica de um vasto universo de estudos
comparativos. Dessa forma, o objetivo deste trabalho discutir a relao existente entre o
surgimento desses paradigmas e o contexto poltico e econmico experimentado pelos EUA
a partir do ps-guerra, a fim de traar uma breve trajetria dos conceitos-chave utilizados
pela cincia poltica contempornea, tais como democracia e estabilidade poltica.
Analisando esses paradigmas, esperamos tornar mais claros os aspectos normativos
implcitos nas teorias que nortearam a produo da poltica comparada na segunda metade
do sculo XX e sua influncia recente sobre estudos ligados ao desenvolvimento
econmico de naes perifricas. Para tanto analisaremos alguns dos principais estudos
realizados nesse mbito, referentes aos pases em desenvolvimento ou do antigo
Terceiro Mundo. Assim pretendemos dar nfase aos trabalhos ancorados na chamada
teoria da modernizao e queles dedicados a analisar os processos de transio
democrtica e de reformas econmicas, em particular, na Amrica Latina.
Comparao, Valores e Contexto
Com essa pretenso cabe-nos, antes de tudo, estabelecer as particularidades do uso
da comparao no contexto das cincias sociais. Nesse domnio, a comparao assume
caractersticas bem distintas daquelas apresentadas quando utilizada nas cincias ditas
exatas ou naturais (hard sciences). Se podemos estabelecer formas razoavelmente objetivas
e universais para mensurar, por exemplo, a velocidade ou a temperatura de dois fenmenos
naturais a fim de determinar qual o mais rpido ou qual o mais quente, nas cincias
sociais esta mensurao depender de parmetros arbitrariamente escolhidos e construdos
pelo pesquisador. Nessa escolha, passam a atuar elementos ligados subjetividade do
pesquisador ou ao contexto histrico em que est inserido, tornando importante uma
constante crtica dos prprios critrios utilizados na atividade comparativa. Nas cincias
sociais, a antropologia e a economia talvez tenham sido os ramos que mais levaram a srio
a existncia dessa subjetividade. No primeiro caso, a antropologia passa a encarar a prpria
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subjetividade como um dos principais parmetros da produo do conhecimento, enquanto
a economia evoluiu na direo de tentar abolir qualquer brecha para a subjetividade por
meio da adoo de critrios como eficincia e racionalidade instrumental como base para
seus modelos tericos.
A despeito desta caracterstica das cincias sociais, no foram poucos os esforos e
debates para se encontrar formas de validar o conhecimento produzido a partir da
comparao. Entre os intelectuais que merecem destaque nesse debate encontra-se a figura
de Max Weber (2003). Seu esforo em delimitar o campo e o mtodo de atuao das
cincias sociais exemplar na medida em que assume os conceitos que nos servem para
estabelecer uma comparao no campo das cincias sociais como termos repletos de
valores contingentes. Valores, esses, fornecidos a partir do contexto poltico e cultural de
cada poca histrica, que nos ditariam o que e como comparar. Nesse sentido as cincias
sociais, enquanto cincias morais, ou seja, voltadas para o estudo dos valores e sentidos
experimentados e vivenciados pelos seres humanos, estariam inelutavelmente ligadas aos
fenmenos advindos do fluxo histrico.
Mesmo no processo de elaborao de seus tipos ideais conceitos arquetpicos
retirados a partir da observao de fenmenos histricos, construdos a fim de servir como
parmetros para a comparao Weber no ignorava a possvel influncia de valores da
poca ou de modismos acadmicos, pregando uma ateno redobrada para a elaborao de
conceitos e critrios a serem utilizados pelas cincias sociais.
No campo do conhecimento poltico em particular, os critrios desenvolvidos para
o exerccio comparativo poderiam ser considerados como aqueles que sofrem uma
influncia considervel do contexto de relaes de fora em que so produzidos. Em grande
medida, essa afirmao pode ser sustentada pelo fato de que, historicamente, os critrios
utilizados para comparar os objetos do mundo poltico como, por exemplo, regimes de
governo, encontram-se em ntima ligao com as tenses e relaes de fora estabelecidas
entre grupos que apiam este ou aquele regime.
Richter (2002), por exemplo, nos mostra como durante o sculo XVIII, a
comparao era utilizada por diferentes intelectuais europeus como recurso retrico para a
sustentao de posies particulares sobre os regimes polticos sob os quais viviam,
extrapolando nitidamente interesses exclusivamente tericos:
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Comparisons and contrasts became crucial weapons in all major eighteenth
century disagreements dividing Europeans among themselves, as well as in
theories of where they stood in relation to the rest of the world. However
cosmopolitan political theorists might be in theory, they lived within nations
divided by different estates, parties, factions, classes, interests, churches and
sects. Comparisons were used by some writers to state and justify those
arrangements they preferred at home, or else to criticize or condemn them.
(p.200)
A comparao, alm de servir como recurso retrico na arena de debates
domsticos, tambm era utilizada de forma recorrente para a caracterizao e a
diferenciao das identidades nacionais dentre os diferentes Estados europeus. Eram
comuns, por exemplo, ao longo do sc. XVII comparaes entre o parlamentarismo ingls
em vias de consolidao e a monarquia absolutista francesa, sendo considerada tirnica por
grande parte da classe poltica inglesa. Em outro plano, a comparao, no raramente, era
utilizada como forma de definio de uma identidade europia apresentada, na maioria dos
casos, como superior em termos civilizatrios a culturas ou povos estrangeiros3. Nesses
dois nveis de debate, o destaque dado a diferenas e semelhanas entre povos era uma
prtica que se mesclava aos debates domsticos travados entre os arautos dos ideais
iluministas e seus opositores, defensores do ancien rgime:
This comparative mode of analysis was not and could not be disinterested
and non-partisan. It became an indispensable weapon in conflicts between
champions of enlightment and its enemies; in attacks on and defenses of
established churches; in the sharp disagreements separating defenders of
absolutism from those opposed to it; in the disputes separating advocates of
mercantilism and physiocracy from those favoring the market and free trade.
(Richter 2002, p.200)
3 Exemplos clssicos desta utilizao seriam a caracterizao da forma de governo desptica ou oriental feita por Montesquieu em sua obra O Esprito das Leis ou o mito do bom selvagem imortalizado por Rousseau.
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Admitindo a existncia dessa relao entre contexto histrico e os critrios
utilizados para o exerccio da comparao no campo poltico, podemos considerar esses
prprios critrios como objetos histricos, passveis de anlise. Um meio de historicizar
esses critrios consider-los como formulaes lingsticas resultantes de conflitos de
interesses e disputas circunscritos a determinados contextos histricos. Desta forma a
anlise dessas tenses pode nos ajudar a compreender melhor a ascenso e delimitao
semntica desses mesmos critrios (Richter 2002, p.202).
Se autores como Montesquieu, Hume, Voltaire, Herder, Rousseau e tantos outros
manejavam referncias e informaes sobre outros povos e naes a fim de elaborar
categorias comparativas capazes de sustentar suas posies em relao aos regimes
polticos e ao contexto social nos quais viviam, no absurdo admitir a hiptese de que a
produo da cincia poltica norte-americana em particular no ramo da poltica
comparada tambm permeada por posturas prprias ao momento histrico no qual
produzida. Passemos, ento, a um estudo das condies de estabelecimento institucional da
cincia poltica norte-americana no ps-guerra.
A Inveno da Cincia Poltica
O envolvimento dos EUA na Segunda Guerra Mundial pode ser considerado como
o episdio que definir a identidade da cincia poltica produzida neste pas nas dcadas
subsequentes. A despeito de episdios como a Grande Depresso e as polticas promovidas
pelo New Deal terem promovido uma certa valorizao da atuao de cientistas sociais e
cientistas polticos em geral, somente a partir da participao desses profissionais nos
projetos voltados para as atividades de guerra teramos sua entrada definitiva no mundo
pblico como formadores de opinio.
A participao de cientistas sociais na formulao das polticas de guerra
promovidas pelo governo americano sustentava-se em argumentos que defendiam a
capacidade destes profissionais em preverem o comportamento humano. Dessa forma,
segundo Terence Ball, na hierarquia do conhecimento cientfico, as cincias sociais no
ocupariam um lugar de desprezo: Physicists might say how atoms behaved and engineers
how weapons worked, but social scientists could explain, predict, and, possibly, help to
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control the behavior of those who pulled the triggers and dropped the bombs (2002,
p.209). Com essa misso, cientistas sociais foram convocados para empreender pesquisas
com temticas variadas tais como estudar o comportamento de soldados, o efeito da
propaganda de guerra sobre a populao civil ou as polticas de subsdios do governo a
agricultores americanos.
Segundo Ball (2002), o engajamento em atividades burocrticas e a necessidade de
apresentao de resultados concretos teriam feito com que muitos cientistas sociais e, em
particular, cientistas polticos tomassem contato com uma realidade diferente da
experimentada, at ento, nas universidades. Demandava-se agora que cientistas sociais
formulassem teorias capazes de predizer o comportamento humano e formas de melhor
control-lo. As discusses de carter moral ou filosfico sobre conceitos e formas de
governo j no eram capazes de oferecer respostas razoveis a essas novas demandas.
Por isso, com o intuito de lanar bases cientficas para novas pesquisas, no incio
dos anos 50 a cincia poltica norte-americana tomada de assalto por um movimento
conhecido como revoluo behaviorista. Seu projeto era tornar o estudo do fenmeno
poltico mais objetivo, voltando-se para a anlise do comportamento dos atores polticos e
de sua interao com realidade que os envolve. A discusso tradicional sobre modelos
institucionais legtimos passaria a ser encarada como tarefa a ser realizada pela filosofia
poltica. A cincia poltica, dessa forma, deveria antes de qualquer coisa se constituir em
uma cincia do comportamento humano real.
A nfase na cientificidade dos estudos sobre o comportamento poltico poderia ser
vista como um movimento interno da prpria disciplina, onde a mudana de paradigma
decorreria de limitaes do aparato conceitual anterior, entretanto no podemos
desconsiderar certos incentivos externos fornecidos pelo contexto scio-poltico dos anos
50. Como Ball (2002) nos sugere, o esforo institucional da cincia poltica americana em
se mostrar um conhecimento com utilidade prtica no ocorre num vazio histrico. A esse
respeito, dois episdios merecem destaque: 1) a crtica de setores da sociedade norte-
americana s cincias sociais e 2) o contexto de disputa ideolgica experimentado ao longo
da Guerra Fria.
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A Luta por Reconhecimento
Mesmo conquistando um espao at ento inexistente em projetos governamentais
norte-americanos, os cientistas sociais ainda no possuam a confiana generalizada de
polticos e de diversos setores da sociedade. Uma confiana que se mostraria indispensvel
para a obteno posterior de recursos e financiamentos para a consolidao e expanso de
pesquisas na rea. Dessa forma, vistos como subversivos ou pedantes, os cientistas sociais
da poca despertavam a desconfiana de polticos em relao eficcia de seus mtodos e a
validade dos resultados que encontravam. Alm disso, a idia de controle social derivada da
defesa da capacidade de previso das cincias sociais despertava em diversos congressistas
americanos o fantasma de uma sociedade planificada e controlada como a sovitica. Todas
essas desconfianas eram vistas pelos cientistas sociais como um desafio, estimulando-os a
elaborarem um discurso capaz de sustentar a neutralidade cientfica e tcnica de seus
mtodos, assim como a utilidade prtica dos resultados encontrados. Nesse sentido, Ball
nos resume a lgica do argumento apresentado por cientistas sociais em sua tentativa de
convencer congressistas americanos sobre a validade cientfica de suas pesquisas:
The social scientists testifying before congressional committees stressed the
scientific character of their disciplines. All the sciences, natural and social,
were said to subscribe to a single method the scientific method of objective
observation and controlled inquiry. The only differences between the natural
and social sciences were one of degrees of probability; otherwise they were
essentially identical (2002, p.212).
No obstante a nfase no carter cientfico da rea e do apoio de setores militares, as
cincias sociais demoraram alguns anos para obter uma diviso prpria na National Science
Foundation instituio governamental de fomento atividade cientfica nos EUA, criada
em 1950. Somente em 1954, os cientistas sociais passaram a contar com uma diviso
dedicada exclusivamente a financiar seus projetos4.
Essa vitria poltica pode ser atribuda menos eficincia do lobby promovido
insistentemente por cientistas sociais do que ao ambiente proporcionado pela Guerra Fria
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que se instala definitivamente a partir da dcada de 50. A percepo cada vez mais
dominante de que a Guerra Fria was above all a war of ideas and ideologies, of
psychology and propaganda5 criou o ambiente propcio para que as perspectivas de
conhecimento apresentadas por cientistas sociais fossem vistas como armas promissoras
por polticos e militares. Em grande parte essa percepo ganhou fora no mbito
domstico com o macartismo e, no mbito externo, com a revoluo cubana e o processo de
descolonizao de pases na frica e na sia. A possibilidade de que pases vizinhos ou
recm-independentes cassem sob a esfera de influncia sovitica e a atuao do inimigo
interno eram ameaas que deveriam ser enfrentadas com armas apropriadas. Assim, em
um cenrio onde a batalha tem por objetivo conquistar coraes e mentes, ser capaz de
prever o comportamento dos seres humanos configura-se em um recurso preventivo
indispensvel.
Diante das condies apresentadas, as condies que proporcionaram a legitimidade
obtida por cientistas sociais americanos frente a agncias de financiamento governamentais
e privadas tiveram efeitos diretos sobre sua produo terica posterior. Se no podemos ser
taxativos e dizer que os financiamentos concedidos por tais agncias passaram a determinar
diretamente o andamento e resultados das pesquisas que patrocinavam, pelo menos uma
forte influncia nas temticas e formas de abordagem inegvel. No caso da cincia
poltica, essa influncia melhor percebida quando observamos as temticas de estudos
financiadas de forma recorrente nos anos posteriores: o comunismo e suas bases de
sustentao social, estabilidade poltica ou comportamento eleitoral.
Alm do direcionamento nas temticas a serem estudadas, a produo posterior da
cincia poltica norte-americana passou gradativamente a perder seu carter crtico e de
reforma social. Em parte essa postura se deve nfase na neutralidade cientfica promovida
pela revoluo behavioralista. Segundo Raymond Seidelman, essa postura significou uma
ruptura com uma tradio da cincia poltica norte-americana de interveno poltica e de
crtica social: Behavioral scientists of the 1950s and 1960s might have been the first
generation of social scientists to consider democratic publics and American institutions as
mere objects of inquiry rather than as subjects of political change .6
4 BALL, T. (2002), p.215 5 Ibid, p.210 6 Seidelman (2002), p.317
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Outro fator importante capaz de explicar a domesticao do potencial contestador de
cientistas polticos o crescente envolvimento que estes passaram a ter com projetos
relacionados elaborao da poltica externa e de defesa norte-americanas. Financiados
com o intuito de ajudar na batalha ideolgica contra o comunismo, muitos cientistas
polticos norte-americanos passaram a enxergar que o momento no era favorvel para a
verbalizao de crticas contra o sistema que os sustentava (Gendzier 1985).
Contudo, o momento no foi somente de esvaziamento do esprito crtico de boa
parte da cincia poltica norte-americana. No s as crticas ao establishment e propostas
reformistas foram abandonadas como diversos estudos passaram a apresentar teoricamente
as instituies polticas norte-americanas como o pice do desenvolvimento democrtico.
Ignorando por completo as tenses e contradies experimentadas pela sociedade norte-
americana, os trabalhos dos cientistas polticos mais renomados dessa gerao passaram a
eleger seu arranjo institucional domstico como modelo emprico a inspirar formulaes
tericas ufanistas. A realidade norte-americana vista por esses trabalhos passa a ser
encarada como o melhor dos mundos possveis. Consequentemente, essa transformao da
sociedade norte-americana e de suas instituies em modelo terico possibilitou-lhe ocupar
o posto de referncia normativa para a realizao de anlises comparadas. Em outras
palavras, quanto mais distante da configurao apresentada pela sociedade norte-americana
uma outra sociedade se mostrasse, menos moderna ou desenvolvida ela seria.
Veremos a seguir, como a cincia poltica operou esse processo de transformao da
realidade em teoria, passando a encarar antigos vcios da vida poltica norte-americana
como novas virtudes indispensveis para a manuteno da democracia moderna.
Estabelecendo os Critrios da Comparao
No campo terico, um dos principais debates travados por cientistas polticos,
antes mesmo da guerra, dizia respeito definio conceitual da democracia e de quais
seriam os mecanismos responsveis pelo seu bom funcionamento. No centro desse debate
destacavam-se duas abordagens: a primeira era representada pelo esforo em tentar
estabelecer uma definio conceitual de democracia capaz de proporcionar parmetros para
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mensurar quo realmente democrtico seria um governo7; a segunda, em relao direta com
a primeira, dizia respeito delimitao das condies sociais responsveis pela manuteno
da ordem democrtica. Nessa discusso despontavam as tenses entre correntes liberais,
afeitas s questes ligadas conteno das prerrogativas do governo sobre os indivduos, e
tericos preocupados com a baixa representatividade ou engajamento dos cidados na vida
poltica norte-americana. Esse debate, inspirado diretamente na tradio constitucionalista
norte-americana e na anlise tocquevilleana sobre a organizao scio-poltica desse pas,
pecaria, no entanto, como seria acusado posteriormente, por ser um debate moral ou
idealista despreocupado com a anlise emprica da realidade.
Em relao primeira temtica, a obra de Joseph Schumpeter, Capitalismo,
Socialismo e Democracia, pode ser considerada como a principal referncia terica para os
trabalhos de cientistas polticos no ps-guerra. Neste livro, Schumpeter esfora-se por
afastar idias que alinhem a superioridade do sistema democrtico com valores ticos ou
morais. A democracia no deveria ser analisada pelo que as pessoas esperam ou acham
dela, mas deveria ser tratada pelo que realmente seria: um sistema de formao de
governos. Um sistema que, segundo Schumpeter, seria definido nos seguintes termos: (...)
o mtodo democrtico aquele acordo institucional para se chegar a decises polticas em
que os indivduos adquirem o poder de deciso atravs de uma luta competitiva pelos votos
da populao.8 Dessa forma, a superioridade da democracia enquanto sistema de governo
restringir-se-ia ao carter formal de permitir que os governados pudessem escolher seus
governantes por meio de eleies peridicas. Apesar de seu ntido vis elitista, visto que a
atividade cvica passa a ser encarada exclusivamente como participao eleitoral, a
delimitao da democracia como um processo de formao de governos por meio de
eleies fornecia um referencial simples para sua distino de regimes ditatoriais.
Essa definio conceitual do regime democrtico, dada a sua alta aplicabilidade
prtica, passou a alimentar diretamente os estudos de cientistas e tericos polticos sobre o
comportamento eleitoral, o funcionamento institucional, a organizao partidria e a
organizao de interesses na sociedade americana. A hiptese principal de muitos desses
7 No debate norte-americano, a definio corrente de democracia como governo para o povo e pelo povo, imortalizada por Abraham Lincoln, mostrava-se difcil de ser operacionalizada, apesar de seu grande apelo retrico. 8 Schumpeter (1961), p.336
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estudos era assumir que a perenidade da democracia norte-americana s poderia ser
sustentada por meio de uma vida cvica vibrante refletindo o interesse dos cidados pelo
bom funcionamento das instituies polticas.
Os resultados de muitos desses estudos, entretanto, apresentavam uma realidade que
colocava em xeque o entendimento clssico sobre quais seriam as condies necessrias
para o bom funcionamento das instituies democrticas. Parecendo confirmar as previses
feitas por Tocqueville sobre o despotismo consentido para o qual a sociedade norte-
americana tinha srios riscos de se encaminhar as anlises sobre o processo de escolha
eleitoral dos cidados apresentaram um comportamento poltico marcado pela apatia, falta
de informao qualificada sobre o mundo pblico e, em casos extremos, pela completa
irracionalidade da escolha feita por eleitores (Berelson, 1954).
Esse quadro, para a perplexidade de muitos cientistas polticos, apresentava um
paradoxo notvel: como uma democracia pode funcionar de maneira satisfatria com um
nvel to baixo de engajamento poltico? Afinal, se a participao e o engajamento cvicos,
tradicionalmente considerados como as virtudes motoras do sistema democrtico, estavam
ausentes, como explicar a boa sade poltica da sociedade americana pela apatia e pela
completa ignorncia de boa parte dos eleitores sobre o que se passa na esfera pblica? A
resposta para esse paradoxo, segundo Bernard Berelson e seus colegas, parecia residir em
uma reformulao da prpria teoria democrtica, a partir do abandono de sua nfase
excessiva no engajamento poltico dos indivduos:
That is the paradox. Individual voters today seem unable to satisfy the
requirements for a democratic system of government outlined by political
theorists. But the system of democracy does meet certain requirements for a
going political organization. The individual members may not meet all the
standards, but the whole nevertheless survives and grows. This suggests that
where the classic theory is defective is in its concentration on the individual
citizen. What are undervalued are certain collective properties that reside in the
electorate as a whole and in the political and social system in which it
functions.9
9 Berelson et al. (1954), p.312
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Segundo essa interpretao, o sucesso da democracia norte-americana no seria
compreendido pelas qualidades individuais de seus cidados, mas sim em caractersticas
mais gerais de seu sistema poltico, no qual o vcio da apatia torna-se uma virtude til ao
bom funcionamento das instituies. Tendo como referncia o modelo sistmico
desenvolvido por David Easton (1953), a falta de interesse dos cidados pela esfera pblica
seria benfica, pois diminuiriam as chances de haver um excesso de demandas (inputs) que
poderia vir a sobrecarregar o sistema poltico (as instituies democrticas) em sua
capacidade de atend-las satisfatoriamente (outputs). A sobrecarga do sistema poltico
representaria uma instabilidade que, a longo prazo, poderia gerar descrena crescente na
capacidade da prpria democracia em responder eficazmente a demandas da populao.
Segundo essa lgica, quanto mais continuado fosse o ativismo poltico dos cidados, maior
seria o risco de surgirem conflitos e tenses entre diferentes grupos e interesses,
prejudicando em termo que seria cunhado mais tarde a governabilidade da elite
poltica eleita.
Alm da ausncia de interesse no jogo eleitoral, outras caractersticas da sociedade
norte-americana passaram a ser consideradas como benficas ao funcionamento das
instituies democrticas, tais como: a ausncia de clivagens polticas profundas
(religiosas, tnicas, ideolgicas ou de classe), a diversidade da vida associativa capaz de
garantir uma representao ampla de interesses individuais e a existncia de uma trajetria
histrica que soube superar as contradies das sociedades industriais por meio da adoo
de um sistema meritocrtico. Segundo essa perspectiva, o baixo interesse na poltica formal
seria compensada pelo dinamismo da vida associativa americana que, de tempos em
tempos, mobilizaria interesses de grupos descontentes a fim de pressionar decises das
diferentes esferas do governo. O sistema poltico norte-americano no seria sustentado pela
fora mobilizadora de seus partidos, mas sim pela capacidade de lobby da sociedade civil.
Por derivao lgica, esses atributos da sociedade norte-americana so
transformados em condies sine qua non para o bom funcionamento de qualquer
sociedade que se considere democrtica10. No causa espanto que a partir dessa teoria
10 Um exemplo dessa lgica so as anlises pessimistas que muitos cientistas polticos norte-americanos faziam nas dcadas de 50 e 60 sobre a viabilidade da democracia em pases europeus. O grande peso de partidos trabalhistas e socialistas na vida poltica europia era entendido como um reflexo de clivagens graves na estrutura social. A instabilidade das instituies democrticas nesses pases, portanto, seria um resultado altamente previsvel.
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consagrada posteriormente como pluralista alguns cientistas polticos renomados, como
Seymour Lipset, pudessem afirmar que a sociedade norte-americana seria o exemplo cabal
de boa sociedade em funcionamento11.
O modelo de sociedade perfeita que despontava a partir dessas formulaes tericas
poderia ser considerado, assim, como o primeiro resultado da aliana entre cientistas
polticos, policymakers e militares. Uma aliana cujo objetivo parecia bem claro: criar uma
fundamentao terica capaz de sustentar um consenso em torno da superioridade do
modelo poltico norte-americano no contexto da Guerra Fria.12
Expandindo os Horizontes da Anlise
Os anos que se seguiram ao fim da Segunda Guerra Mundial marcaram o incio de
um ativismo sem precedentes na poltica externa norte-americana. Diante de um contexto
em que a Europa estava destruda e com a declarao de independncia generalizada de
suas antigas possesses coloniais na frica e sia, uma srie de acordos, como o Plano
Marshall e outros planos de ajuda econmica, militar e tecnolgica, so realizados com
pases localizados em reas consideradas estratgicas para a geopoltica norte-americana.
Por trs dessa ajuda sistemtica aos povos do mundo, havia a clara percepo de que os
Estados Unidos deveriam ter um papel preponderante na conteno do avano sovitico.
Sustentando esse planejamento, havia a convico de que os EUA no deveriam permitir
que a conjuntura de instabilidade social e econmica experimentada por esses pases
ocasionasse a ascenso ao poder de governos simpticos ou alinhados diretamente aos
interesses soviticos. Para os principais formuladores da poltica externa norte-americana,
esse objetivo era claro: In their work in these countries (...) should be our objective to use
our assistance programs to shape and guide social and economic developments in these
countries in ways which will help us to attain our political goals.14
Em contraste com o pragmatismo de militares e policymakers, no plano terico,
cientistas sociais se deparavam com tarefas complexas. Uma de suas principais misses era
formular teorias capazes de prever os rumos do processo de modernizao enfrentado por
11 Ball (2002), p.219 12 Gendzier (1985), p.55 14 Gendzier (1985), p.27
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pases perifricos. A modernizao, no campo terico, era vista predominantemente como
um meta-processo social englobando fenmenos como urbanizao, industrializao,
desenvolvimento dos meios de comunicao, aumento da participao popular na vida
poltica e, consequentemente, a criao de instituies democrticas. Como resultado bem-
sucedido desse processo, deveramos esperar por sociedades nos moldes estabelecidos pela
teoria pluralista com sua viso particular sobre o funcionamento da sociedade norte-
americana.
Essa interpretao dominante sobre o fenmeno da modernizao encontra-se
sintetizada na teoria de estgios de desenvolvimento, idealizada pelo economista W. W.
Rostow. Segundo Rostow (1966), a passagem de uma sociedade tradicional para a
modernidade era marcada por estgios sucessivos e graduais de desenvolvimento social,
econmico e poltico. Na dinmica por ele imaginada, processos scio-econmicos de
urbanizao e industrializao levariam a uma crescente organizao de camadas populares
reivindicando melhores condies de vida. O desenvolvimento scio-econmico criaria as
condies de superao do tradicionalismo e da rgida hierarquia social presente em pases
perifricos com economias agrrias, favorecendo a implantao de instituies
democrticas como forma de organizao poltica.
As hipteses presentes nessa teoria sobre a modernizao rapidamente difundida
em diferentes ramos das cincias sociais foram apropriadas por cientistas polticos em
seus esforos para entender e poder controlar melhor os efeitos de processos como
urbanizao e industrializao nos pases perifricos. Seguindo os preceitos estabelecidos
pela revoluo behaviorista, os cientistas polticos tinham diante de si a tarefa de entender o
comportamento poltico praticado por habitantes desses pases e identificar aqueles mais
favorveis implantao de instituies democrticas. Nesse sentido, dentre os vrios
estilos de estudos desenvolvidos no campo da poltica comparada podemos destacar duas
formas predominantes de abordagem do problema: uma de carter psicolgica e
funcionalista, e outra de carter institucionalista. Apesar de algumas diferenas no enfoque,
como veremos a seguir ambas, se apiam sobre a referncia comum das teorias elitistas-
pluralistas em relao democracia e aos resultados encontrados a partir da interpretao
do caso norte-americano.
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A primeira abordagem, representada pelos trabalhos de Gabriel Almond e seus
colaboradores, pode ser encarada como um apanhado terico que mescla premissas da
teoria sobre a modernizao de Rostow, da teoria sistmica de Easton e de estudos sobre
comportamento eleitoral. Segundo essa abordagem, a modernizao encarada como um
processo de crescente complexidade que se d paulatinamente ao longo da histria das
sociedades. O gradualismo dessas transformaes, como apresentadas pelo caso norte-
americano e ingls, amenizaria seus impactos disruptivos sobre a estrutura social. Em um
ritmo acelerado, no entanto, a modernizao poderia afetar negativamente a capacidade do
sistema poltico dessas sociedades em processar os conflitos de interesses, ao mesmo tempo
em que deveria integrar de modo satisfatrio novos grupos emergentes da diversificao da
ordem social. A velocidade do processo de modernizao, dessa forma, seria contrria a
uma expanso e consolidao sucessiva de direitos civis, polticos e sociais, consagrada por
T.H. Marshall (1950) em sua descrio evolutiva sobre a construo da cidadania moderna.
Em The Politics of the Developing Areas, Almond apresenta sua definio de
sistema poltico como sendo that system of interactions to be found in all independent
societies wich performs the functions of integration and adaptation (...) by means of the
employement, or threat of employment, of more or less, legitimate physical compulsion.
The political system is the legitimate, order maintaining or transforming system in the
society.14 Essa definio genrica permitiria cincia poltica estabelecer uma taxonomia
neutra de funcionamento dos diferentes sistemas polticos existentes no mundo, no
importando se fossem ocidentais ou no, democracias capitalistas ou ditaduras comunistas.
Resgatando a concepo weberiana sobre o Estado moderno, o sistema poltico seria
responsvel pela coordenao das interaes sociais valendo-se do uso monopolstico de
recursos de coero fsica.
Segundo Almond, o sistema poltico saudvel seria aquele que conseguiria
processar os fenmenos de complexificao social, integrando os interesses dos grupos
emergentes prpria dinmica do sistema, por meio da socializao poltica de suas
lideranas (elites). Rupturas, representadas por episdios revolucionrios, seriam
consideradas como sinais da fragilidade do sistema poltico pr-existente. Um exemplo
bem-sucedido desse processo, administrado de maneira lenta, gradual e controlada poderia
14 Almond e Coleman (1960), p.7
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ser percebido facilmente em pases como EUA e Inglaterra. A estabilidade e o
desenvolvimento alcanados historicamente por esses pases seriam demonstraes de
como sistemas polticos podem, no longo prazo, administrar as presses exercidas pelo
processo de modernizao de forma a favorecer a consolidao da democracia.
Na demonstrao do sucesso desse processo, fica claro o carter behaviorista deste
trabalho. Segundo Almond, o bom funcionamento de um sistema poltico poderia ser
apreendido como reflexo das atitudes e valores que os indivduos possuem em relao a ele.
Dessa forma, o equilbrio positivo alcanado pelos sistemas polticos de pases anglo-
saxes poderia ser identificado por meio de um conjunto de atitudes de seus cidados em
relao a seus sistemas polticos, constituindo aquilo que Almond chamaria posteriormente
de cultura cvica.
Em seu trabalho posterior The Civic Culture (1965), Almond apresenta um estudo
comparado entre cinco pases considerados democrticos, tentando delimitar quais seriam
as caractersticas de uma cultura cvica compatvel com o funcionamento pleno de
instituies democrticas. As culturas cvicas mais condizentes seriam aquelas apresentadas
por EUA e Inglaterra, pois suas caractersticas sobrepostas de passividade e participao,
adquiridas ao longo da histria, seriam as mais indicadas para manter o funcionamento
estvel do sistema democrtico por meio da atuao das elites eleitas. A cultura cvica
desses pases seria marcada pelo mito da participao, cuja funo seria a de incutir nos
indivduos a imagem de que poderiam participar do processo poltico no momento em que
lhes fosse mais conveniente: a cultura cvica democrtica seria, ento, um conjunto de
atitudes potenciais que poderiam vir a ser empreendidas pelos cidados. A utilidade
funcional dessa atitude aptica, obviamente, a de no sobrecarregar o sistema poltico
com um excesso de ativismo e demandas por parte dos cidados.
Os pases em vias de modernizao, sobretudo os recm-independentes,
enfrentariam, por sua vez, um excesso de presses sobre seus sistemas polticos. A
modernizao, com seu conflito de interesses, e a necessidade de construir uma identidade
nacional colocar-se-iam como srios obstculos para lidar de forma gradual e controlada
com as demandas e os novos atores oriundos desses fenmenos. A estabilidade do sistema
poltico nesses pases estaria, portanto, ameaada pela velocidade e sobreposio de
transformaes e suas conseqncias:
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The problem in the new nations of the world is that such gradualness is not
possible. (...) Tremendous problems of social change must be faced all at once.
And what may be most crucial: the very acts of creating national boundaries
and national identity must go on at the same time. A slow political development
may foster a civic culture, but what the new nations of the world lack is the time
for this gradual development.15
O resultado dessa falta de tempo, inevitavelmente, poderia fazer com que pases
menos desenvolvidos optassem por solues autoritrias e, no pior dos casos, optassem por
modelos socialistas como forma de resolver as instabilidades experimentadas por seus
sistemas polticos. Seguindo uma lgica funcionalista, essas opes seriam feitas, pois o
prprio sistema poltico desses pases, guiado por seu instinto de sobrevivncia e
preservao, optaria por bloquear o acesso de novos atores com suas demandas
inexeqveis. O processo de modernizao, sob esse prisma, no se mostrava to
compatvel assim com a consolidao da democracia no curto e mdio prazo em pases
perifricos, contrariando as premissas da teoria de Rostow.
A tenso existente entre modernizao e democracia, apresentada por essa
abordagem funcionalista, passou a ser enfatizada tambm por anlises posteriores de cunho
institucionalista. Corroborando o cenrio de incerteza apresentado pela abordagem
funcionalista para pases perifricos, os institucionalistas passam a identificar o processo de
modernizao como um fenmeno que, longe de criar condies para o estabelecimento de
instituies democrticas, traz ameaas graves para a prpria manuteno do sistema
poltico, podendo levar a srios retrocessos institucionais ou ao caos social. Para tanto, a
cincia poltica deveria isolar a anlise das instituies polticas de outros efeitos
produzidos pela modernizao.
Nas palavras de um dos principais representantes dessa abordagem, Samuel P.
Huntington, seria necessrio
distinguish political development from modernization and to identify political
development with institutionalization of political orgnizations and procedures.
15 Almond e Verba (1965), p.369-370.
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Rapid increases in mobilization and participation, the principal political aspects
of modernization, undermine political institutions. Rapid modernization, in
brief, produces not political development, but political decay.16
O ponto de partida de Huntington criticar os estudos comparativos realizados
anteriormente por seu excesso de otimismo e preocupaes interdisciplinares. Segundo o
autor, o apego ao pressuposto de que a modernizao seria um processo intrinsecamente
positivo para o desenvolvimento poltico das naes do Terceiro Mundo, teria feito com
que suas anlises ignorassem ou minimizassem a instabilidade poltica produzida por
golpes de Estado, revoltas e levantes populares, conflitos tnicos e guerras civis que se
propagavam ao redor do mundo. A idia de que esses pases estariam sofrendo, ao invs de
desenvolvimento, um retrocesso poltico, dessa forma, no poderia ser uma realidade
ignorada pela teoria.
A despeito dessa divergncia, as premissas tericas da abordagem institucionalista
no se diferenciam tanto das que fundamentam a abordagem funcionalista. Mesmo com sua
nfase na organizao e articulao das instituies polticas, Huntington continua a se
valer de termos semelhantes aos utilizados pela abordagem funcionalista. Pares de
oposies como simplicidade-complexidade, adaptao/rigidez, autonomia/subordinao,
coerncia/fragmentao so reaproveitados de teorias funcionalistas e utilizados em sua
anlise sobre instituies. Alm disso, Huntington opera segundo a mesma lgica sistmica
de Easton, valendo-se da premissa de que a mobilizao social promovida pela
modernizao aumenta as demandas (inputs) sobre as instituies polticas,
impossibilitando que respondam eficazmente (outputs), produzindo, portanto, uma crise de
governabilidade.
O que aparentemente inovador na abordagem institucionalista sua radicalizao
do carter elitista e conservador presente na abordagem funcionalista: qualquer forma de
mobilizao social, a despeito de seu carter legtimo ou no, passa a ser vista como
ameaa potencial ordem institucional vigente. Nesse sentido, esta abordagem no mostra
receios em prescrever uma agenda de aes governamentais cujo objetivo seria controlar os
efeitos nocivos do processo de modernizao sobre a ordem institucional. Ao que parece,
16 Huntington (1965), p.386)
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seguindo essa lgica, diante de uma modernidade que traz inexoravelmente consigo
instabilidade aos sistemas polticos, restaria aos cientistas polticos estabelecer uma agenda
capaz de preservar as instituies polticas de pases perifricos.
Com esse intuito, Huntington apresenta duas linhas de ao conjugadas para
garantir um desenvolvimento institucional slido. A primeira gama de aes seria composta
por medidas capazes de diminuir a mobilizao social e a organizao extensiva de
interesses contrrios ao sistema. Esse objetivo poderia ser alcanado por meio da adoo de
trs estratgias distintas: 1) o aumento da complexidade da estrutura social, gerando uma
diversidade de interesses que impedisse a concentrao e fortalecimento de posies
radicalmente contrrias ao governo; 2) a limitao ou reduo dos meios-de-comunicao
de uma sociedade, diminuindo a possibilidade de disseminao de opinies que incitem o
descontentamento dos cidados; ou 3) a diminuio da competio entre segmentos da elite
poltica por meio da cooptao e domesticao de seus interesses. Dessa forma, a
possibilidade de uma crise de governabilidade gerada por excesso de demandas seria
minimizada.
A segunda linha de ao seria o processo de criao institucional. Em paralelo a
esses modos de controle social deveria ser empreendida a construo de um aparato
institucional capaz de, a longo prazo, garantir a limitao do poder das diferentes elites e
uma competio poltica estvel. A liberao da competio em larga escala s poderia
ocorrer num momento posterior construo de instituies fortes sobretudo em termos
coercitivos capazes de responder eficazmente s presses e demandas emergentes.
Por motivos bvios, para o sucesso desse empreendimento, Huntington prescreve
medidas de carter extremamente autoritrio e repressor. Se os pases do Terceiro Mundo
no possuem tempo para garantir o surgimento de uma cultura cvica democrtica, a cincia
poltica, ao menos, pode fornecer os instrumentos maquiavlicos para que no caiam em
uma completa anarquia social. Dessa forma, para os pases perifricos o ideal da
democracia s poderia ser alcanado no longo prazo, aps inevitveis momentos de
autoritarismo poltico.
Em relao poltica externa norte-americana, Huntington apresenta de forma clara
como sua teoria deveria ser adotada por policy makers para evitar que pases instveis
institucionalmente cassem nas mos de foras alinhadas aos interesses soviticos.
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Respeitando sua premissa de fortalecimento e estabilizao da ordem poltica, a maior
preocupao norte-americana deveria ser em apoiar grupos capazes de centralizar a
autoridade, proporcionado a preservao das instituies existentes:
American policy should be directed to the creation within modernizing
countries of at least one strong non-Communist political party. If such a party
already exists and is in a dominant position, support of that party should be the
keystone of policy. Where political life is fragmented and many small parties
exist, American backing should go to the strongest of the parties whose goals
are compatible with ours.(...) Where no parties exist and the government (wheter
traditional, military, or charismatic) is reasonaly cooperative with the U.S.,
american military, economic, and technical assistance should be conditioned
upon the governments making efforts to develop a strong supporting party
organization.17
Essa declarao assertiva pode ser encarada apenas como uma radicalizao
pessimista de uma possibilidade j apontada pela abordagem sistmica. A instabilidade
poltica inerente ao processo de modernizao deveria, portanto, ser enfrentada e controlada
da melhor maneira possvel. A validade dessa afirmao se daria, a partir do momento em
que, apesar de veredictos um pouco diferentes, os princpios heursticos que movem essas
abordagens se mostram os mesmos. Esses princpios comuns, segundo Mark Kesselman,
seriam melhor percebidos se vislumbrssemos que(...) political development and order
refer to a particular vision of the nation-state highly organized, centralized, stratified, and
controlled (penetrated) by large instititutions (both public and private).18 Na medida em
que sociedades perifricas no seriam agraciadas com o mito da participao presente em
pases democrticos, nem com instituies polticas e associaes civis capazes de produzir
esse mito, o caminho mais propcio parecia ser a adoo de uma trajetria inversa. A
construo da autoridade poltica deveria preceder a organizao da sociedade.
Voltamos, portanto, s nossas origens: ordem, estabilidade, integrao, autoridade
institucional seriam, assim, caractersticas derivadas de uma viso que teorias pluralistas e
sistmicas teriam do processo de modernizao e construo institucional experimentada
17 Huntington (1965), p.429
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pelos EUA. Elementos que, por sua vez, encontrar-se-iam ausentes ou de maneira frgil na
maioria das sociedades perifricas. A trajetria da boa sociedade norte-americana
mostrava-se paradoxalmente um experimento difcil de ser replicado.
A transposio dessa concepo de mundo para anlises comparadas, naturalmente,
passou a encarar qualquer possibilidade de distrbio na ordem institucional e social como
uma espcie de patologia ou mal, ignorando-se a legitimidade daqueles que ousavam
perturbar a paz. O que temos, ento, so teorias que pregam abertamente a manuteno da
ordem a qualquer preo, mesmo que essa ordem tenha que ser mantida a fim de preservar
no governo elites mais preocupadas com seu prprio bem-estar do que com o de seus
governados.
Dizer que essas teorias guiaram de maneira decisiva a poltica externa norte-
americana talvez no seja exagero. Teorias conspiratrias parte, os diversos casos de
ditaduras e golpes promovidos ao redor do mundo com o auxlio direto ou respaldo dos
EUA so inegveis. Em relao a esse aspecto, os cientistas polticos parecem ter sido bem-
sucedidos em sua misso de construir um aparato terico capaz de guiar e justificar as
aes do governo norte-americano em seu esforo para ganhar a guerra ideolgica contra o
comunismo. Sua idealizao da realidade americana se mostra mais claramente se notarmos
a ausncia de qualquer meno, no trabalho desses autores, s lutas, muitas vezes violentas,
pelos direitos civis empreendidas por minorias negras ou a casos de corrupo oriundos da
oligopolizao da vida poltica norte-americana e ao predomnio dos interesses de grandes
corporaes na formulao da agenda pblica. As discriminaes scio-econmicas e
polticas sofridas por minorias tnicas, nesse momento, no pareciam abalar a confiana de
que o modelo norte-americano seria a melhor expresso dos ideais democrticos em uma
sociedade moderna.
Em defesa desta corrente da cincia poltica norte-americana, o que poderamos
dizer que sua preocupao no seria a de criar justificativas discursivas ou ideolgicas
para as aes de seu governo durante a Guerra Fria, mas apenas de tentar encontrar
respostas cientficas para que pases do terceiro mundo pudessem garantir a rota mais
segura para seu desenvolvimento poltico. Infelizmente, sobre esse aspecto, os custos
humanos e morais mostraram-se demasiadamente elevados.
18 Kesselman (1973), p.154
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Algumas Vozes Crticas
Vista como um todo, a academia norte-americana no aderiu integralmente s
premissas do mainstream terico do ps-guerra. Um exemplo de questionamento ao
otimismo da teoria pluralista e excessiva preocupao com a questo da estabilidade do
sistema poltico podem ser encontrados, respectivamente, nos trabalhos de E. E.
Schattschneider e Barrington Moore.
Schattschneider, em The Semisovereign People (1975 [1960]), procura demonstrar
como grupos de interesse e suas causas ganham relevncia na arena poltica institucional a
partir de duas variveis: 1) a capacidade de mobilizar diferentes segmentos da sociedade e
2) a capacidade de mobilizar o sistema partidrio. O principal problema da teoria pluralista,
segundo o autor, seria acreditar numa distribuio homognea dessas variveis entre os
grupos de presso, tendo estes igual capacidade de organizao para pressionar o governo e
de penetrao nas estruturas partidrias. A realidade da sociedade norte-americana,
entretanto, seria bem diversa por uma srie de fatores: 1) dados empricos mostrariam que
os grupos mais bem organizados esto fortemente correlacionados com os substratos mais
ricos e melhor educados da populao; 2) o sistema bipartidrio americano seria a principal
forma de coletivizao de conflitos, mas atuaria de maneira altamente seletiva na escolha
de quais pleitos seriam mais apropriados para adentrar o debate pblico da poltica
nacional.
A partir desses dois dados temos um quadro no qual grupos com maior poder scio-
econmico possuem melhor forma de organizao e maior capacidade de influncia sobre
os partidos, na medida em que podem contribuir de maneira decisiva para o financiamento
dos elevados custos da poltica partidria. Prevaleceria, na verdade, uma tendncia no
vislumbrada de privatizao dos conflitos polticos, marcada por acordos entre partidos e
organizaes com maiores recursos ou poder de barganha. Dessa forma, grupos de presso
com posies privilegiadas buscariam resolver suas questes em salas fechadas com
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lideranas partidrias a socializar seus interesses na arena pblica como forma de
pressionar o governo. O que temos, ento, o predomnio de lobbies bem organizados
comandando a pauta governamental em setores especficos, a despeito do melhor interesse
pblico a ser obtido pelo debate aberto.
O resultado prtico desse arranjo institucional, segundo Schattschneider, seria a
percepo de que o jogo democrtico visa somente aos objetivos de parte da sociedade
em particular aquela com maiores recursos econmicos. Os baixos ndices de participao
eleitoral e conhecimento poltico, ao contrrio, seriam indcios de que boa parte da
populao americana no se identificaria com a oferta poltica disponvel no cenrio
partidrio. A no-participao, contrariando o fundamento do mito da participao, seria,
na verdade, uma forma de protesto contra essa situao de baixa representatividade e oferta
escassa apresentada pelo sistema poltico. Nesse sentido, a denncia de Schattschneider
busca mostrar que os conflitos experimentados por boa parte da populao no tm
encontrado voz na competio eleitoral, tendo suas pretenses abortadas previamente por
interesses que j se encontram fortemente enraizados no jogo poltico democrtico.
Essa crtica seria corroborada por estudos posteriores que mostram a alta correlao
entre segmentos menos favorecidos da estrutura scio-econmica (com menor renda e
baixos graus de escolaridade) e baixa atividade associativa e poltica. A partir desses dados
j disponveis, por exemplo, na poca em que The Civic Culture escrito Carole
Pateman (1981) critica o fundamento plutocrtico/aristocrtico existente de forma implcita
na valorizao da apatia cvica pela teoria pluralista. Ao defenderem a funcionalidade de
um nmero considervel de cidados estarem fora do sistema poltico formal, os tericos
pluralistas engessariam a democracia em um perptuo jogo eleitoral cujo resultado j
estaria pr-estabelecido pelos interesses de elites econmicas e polticas.
A crtica de Moore, em The Social Origins of Dictatorship and Democracy (1993
[1966]), ressalta a importncia da articulao dos interesses materiais de elites econmicas
e polticas na implementao de modos capitalistas de produo. A partir dessa tica, o
processo de modernizao visto fundamentalmente como a introduo de formas
capitalistas de produo em uma sociedade. Um processo que envolve dinmicas de
alianas e conflitos entre interesses de elites agrrias tradicionais, burguesias comerciais e
industriais, trabalhadores urbanos e camponeses. Nessa perspectiva so enfatizados os
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recursos de poder efetivos existentes por cada um desses segmentos, fazendo com que, por
exemplo, o sucesso do sistema parlamentar ingls seja explicado pela aliana fortuita entre
setores comerciais da nobreza agrria e a burguesia comercial e financeira. A formao
dessa aliana, alimentada por desavenas religiosas e interesses econmicos contrariados,
teria produzido conflitos bem-sucedidos pela limitao do poder real, capazes de garantir,
de modo colateral, o respeito de direitos individuais, sobretudo de propriedade, e um
Parlamento forte capaz de representar os interesses vitoriosos. Mas o fato a ser destacado
por Moore a violncia com que demandas redistributivas exteriorizadas por camponeses
e artesos so fortemente reprimida ao longo desse processo. Da mesma forma, o sucesso
da democracia norte-americana residiria na capacidade de elites comerciais e industriais
conseguirem promover um arranjo institucional no qual a defesa dos seus interesses
produziu efeitos colaterais positivos para o restante da populao19.
Se Inglaterra e EUA, a despeito de seus conflitos e movimentos repressivos, foram
felizes na construo de uma trajetria capaz de combinar um processo de modernizao
capitalista consolidao gradativa de instituies democrticas graas fora de suas
elites burguesas, o problema residiria em pases nos quais essas foras fossem fracas ou
incipientes. Pases com economias industrializadas, mas marcados por governos de cunho
fascista ou autoritrio, como Alemanha e Japo, seriam exemplos nos quais a fraqueza da
burguesia comercial e industrial no cenrio poltico forou a realizao de uma aliana com
elites agrrias conservadoras. A partir dessa aliana, a idia de um regime democrtico
representaria uma ameaa manuteno do status quo. Regimes comunistas, por sua vez,
seriam marcados pela existncia de um grande contingente de camponeses a ser mobilizado
por hbeis vanguardas revolucionrias, inspiradas em ideais socialistas, para a
implementao de um processo de modernizao em larga escala. Entretanto, apesar de seu
discurso abertamente contrrio explorao capitalista e a favor da igualdade entre os
indivduos, esses modelos teriam se caracterizado por um autoritarismo excessivo
decorrente da centralizao do poder nas mos de elites burocrticas.
19 Moore ressalta, para o caso norte-americano, o papel preponderante da existncia de uma farta extenso de terras frteis a serem colonizadas. A existncia dessas terras foi fundamental para a criao nos EUA de uma classe de pequenos proprietrios rurais zelosa pela proteo de direitos individuais, em detrimento de uma classe camponesa nos moldes tradicionais. Alm disso, o mito da colonizao seria funcional para que as presses sociais existentes nos grandes centros urbanos fossem mitigadas.
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Essa anlise, apesar de mostrar mais claramente a dinmica de interesses por trs de
processos de modernizao, no apresentaria alternativas muito promissoras para pases
perifricos. Em certa medida, o trabalho de Moore serviu para corroborar a tese de que a
democracia liberal s pode ser bem-sucedida mediante a existncia de um consenso entre
elites polticas e econmicas que satisfizessem as demandas populares de modo gradual
dentro do marco capitalista. Moore, indiretamente, mostrava a mesma compatibilidade
entre fascismo e capitalismo defendida por Huntington.
Posies dissonantes como a de Schattschneider e Moore, no entanto, no
encontravam muita receptividade acadmica ou efetividade poltica, tornando, no
raramente, seus porta-vozes em prias que s receberiam alguma ateno dcadas mais
tarde20. A descoberta de que a democracia pluralista seria o modelo a inspirar o mundo
contra a ameaa socialista e que os cientistas polticos norte-americanos dispunham de um
caminho para os pases perifricos atingirem esse objetivo no abria muito espao para
auto-crticas.
Dessa forma, a despeito das crticas, a hegemonia de certas teorias responsveis por
explicar o bom funcionamento das instituies americanas permitiu que a cincia poltica
obtivesse um conjunto de premissas a serem utilizadas como referncia para estudos
comparativos. Estavam lanadas as bases para se entender quais as condies necessrias
para o desenvolvimento de um regime democrtico e capitalista nos pases do Terceiro
Mundo e a consequente conteno da ameaa sovitica.
Perpetuando Paradigmas
As generalizaes feitas pelas teorias da modernizao desenvolvidas por cientistas
polticos norte-americanos passaram a receber duras crticas a partir dos anos 70, em
relao tanto a sua consistncia interna e histrica (Tilly, 1975) quanto a sua subservincia
aos interesses geo-polticos americanos (Kesselman, 1973). Seus princpios, entretanto,
ainda continuavam claramente a predominar no senso comum ou no mundo acadmico.
Afinal, o processo de institucionalizao da prpria cincia poltica se deu na contnua
20 Para referncias a outros autores crticos teoria pluralista ver Gendzier (1985), p.113-115.
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formao de profissionais, no mbito domstico e internacional, que operassem com base
nesses paradigmas, reformulando-os em novos contextos histricos.
Um exemplo dessa continuidade so os estudos desenvolvidos em funo dos
processos de transio democrtica que ocorrem a partir da dcada de 80, com maior fora
na Amrica Latina. Fiis s preocupaes tericas do campo, a principal preocupao
desses trabalhos analisar as formas com que governos autoritrios permitem a instalao
de novos regimes democrticos e entender suas possibilidades de perpetuao. Os
principais trabalhos dessa literatura apiam-se em duas premissas bsicas: 1) a democracia
como sistema eleitoral competitivo; e 2) a democracia vista como um jogo reiterado entre
elites polticas. Esses dois pressupostos, por sua vez, relacionam-se diretamente
preocupao com a questo da manuteno da estabilidade do sistema poltico em um novo
contexto de hegemonia poltica e econmica dos EUA aps o fim da Guerra Fria. Com o
colapso do comunismo sovitico, a maior ameaa a essas democracias emergentes passa a
ser sua prpria capacidade de sobrevivncia em um sistema capitalista globalizado.
Em relao ao primeiro ponto, apesar da ntida influncia da obra de Schumpeter,
esses estudos parecem se apoiar na concepo desenvolvida posteriormente por Robert
Dahl (1971). Considerado um dos principais tericos revisionistas da democracia, Dahl
esfora-se em desenvolver um modelo no qual a democracia, chamada agora de poliarquia,
encarada como um processo crescente de institucionalizao de regras de competio
poltica associado expanso da participao eleitoral. A partir dessa concepo, a
preocupao com a estabilidade poltica em transies democrticas se traduziria nos
seguintes termos: como estabelecer um arranjo institucional que assegure a troca peridica
de elites polticas simultaneamente a um processo gradual de universalizao de direitos
civis e polticos?
A partir dessa pergunta temos a atuao do segundo foco de anlise, baseado na
percepo da democracia como um jogo de elites. A democracia, nessa perspectiva, s seria
possvel caso houvesse uma ruptura na cpula do governo autoritrio, fazendo com que
dissidentes buscassem apoio em outros segmentos da sociedade, sejam eles empresariais
ou, de forma restrita, populares. No caso desse ltimo, lideranas de movimentos populares
ou sindicais s poderiam ter uma participao significativa na transio caso agissem de
modo estratgico arrefecendo suas demandas em prol de um apoio amplo democracia
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emergente. Adotando essa postura, movimentos populares e sindicais integrar-se-iam ao
sistema poltico por meio da socializao de suas lideranas, procurando diminuir a
intensidade de suas reivindicaes.
Adam Przeworski (1986) apresenta de maneira desencantada o resultado dessa
combinao de premissas tericas: a instalao de um arranjo institucional democrtico
estvel s seria possvel em sociedades onde faces de governos autoritrios pudessem se
associar a setores moderados da sociedade, tanto empresariais quanto sindicais. Esse
contexto criaria expectativas de um processo de liberalizao gradual onde os interesses do
governo autoritrio no seriam contrariados at a sua sada da cena poltica. Como
resultado deveramos ter um acordo poltico que envolvesse an almost complete docility
and patience on the part of the organized workers (...) for a democratic transformation to
succeed.9 A perseguio intransigente de interesses associados a classes trabalhadoras
acarretaria em contrariar interesses de elites empresariais, fazendo com que essas retirassem
seu apoio ao processo de institucionalizao democrtica e fossem criadas instabilidades
econmicas e polticas que culminariam no retorno do autoritarismo. O preo, ento, para
se ter a liberdade poltica seria abrir mo de reivindicaes para a melhoria de condies de
vida dos segmentos populares. Reivindicaes que seriam postas de lado pelas presses da
integrao financeira e comercial das dcadas subsequentes.
A anlise realista, desiludida, de Przeworski tem o mrito de nos apresentar um dos
principais focos emergentes de preocupao da cincia poltica na dcada de 90: a relao
entre performance econmica e instituies democrticas, sobretudo aquelas recm-
estabelecidas. A decadncia e fim do modelo sovitico marcaram as bases da vitria do
modelo capitalista e da hegemonia poltica norte-americana a ser exercida a partir dos anos
90. Nesse novo contexto, as sociedades do antigo Terceiro Mundo no teriam mais como
ameaa o socialismo sovitico, mas sim suas prprias incapacidades institucionais em
promover um conjunto de reformas, vistas por organismos financeiros e investidores
internacionais, como as nicas capazes de modernizar suas economias e garantir sua
integrao no capitalismo global. Dessa forma, a necessidade de investimentos por parte
desses pases faria com que as reformas econmicas de carter liberalizante consagradas
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posteriormente como Consenso de Washington20 despontassem como a nica opo de
modernizao vivel. O capitalismo e a democracia, em sua verso liberal, teriam sido
alados condio de the only game in town.
A partir dessa premissa, The Political Economy of Democratic Transitions (1991)
escrito por Stephan Haggard e Robert Kaufman tem pretenses exemplares: descobrir quais
as caractersticas necessrias para que um sistema poltico em transio possa realizar com
sucesso reformas macro-econmicas que visem a liberalizao de mercados possibilitando
uma insero competitiva desses pases na economia global. A hiptese a ser demonstrada
seria a de que democracias sucessoras de regimes autoritrios incapazes de realizar
reformas e ajustes econmicos profundos herdariam a tarefa de implementar medidas
econmicas extremamente impopulares. Uma misso que traria insatisfao popular em
paralelo a um aumento de demandas impossveis de serem atendidas, levando essas jovens
democracias a uma instabilidade institucional crnica.
Respeitando a premissa da estabilidade poltica, os autores chegam concluso de
que as democracias mais estveis e bem-sucedidas na realizao das reformas so aquelas
resultantes de regimes autoritrios que mantiveram sua unidade poltica e sua capacidade de
retaliao concentradas durante o processo de transio. Essas condies garantiriam,
durante a transio, a execuo imediata de reformas econmicas extremamente
impopulares cujo objetivo seria debelar as crises da economia mundial experimentadas ao
longo da dcada de 80. Dessa forma, as democracias oriundas de tais contextos estariam
mais aptas a sobreviverem numa economia global extremamente competitiva e menos
propensas a sofrerem presses de setores insatisfeitos. Reeditando com outros termos a tese
de Huntington, os autores definem seus achados com as seguintes palavras:
Those best suited [institutions] for managing political and economic
crises were those in which authority was concentrated.(...) Those
[authoritarian] regimes that fell in the face of crisis were those in which
external pressures fragmented the ruling coalition. (...)Those [authoritarian]
20 O Consenso de Washington foi o termo associado a uma agenda de reformas macro-econmicas vistas como necessrias para que pases da Amrica Latina superassem seus processos inflacionrios e seus endividamentos externos crescentes. Composta por uma srie de medidas recomendando a diminuio dos gastos pblicos, liberalizao de mercados e privatizao de empresas estatais, essa agenda foi associada por
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regimes that survived had developed centralized organizational means for
controlling internal dissension, primarily by concentrating both political and
military authority in the hands of a single individual. We also found that
dominant-party authoritarian systems in middle-income countries proved more
adept than military regimes at managing conflicts within the government and
controlling and coopting broader political chalenges.21
Mesmo no negando as restries polticas que uma democracia pode ter ao resultar
de um governo autoritrio forte, os autores defendem a idia de que os arranjos
institucionais democrticos desenvolvidos nesses casos (como, por exemplo, no Chile e na
Coria do Sul) so os mais bem-sucedidos para a promoo de polticas macro-econmicas
estveis. Na medida em que o autoritarismo precedente desmobilizara setores organizados
da oposio, seria difcil encontrar vozes dissonantes ativas no novo contexto democrtico.
Por outro lado, pases onde essa concentrao do poder no existiu encontrariam srias
dificuldades em coordenar o carter extremamente impopular das reformas econmicas. A
necessidade simultnea de construir consensos polticos e sociais que as implementem e
legitimem lanaria incertezas sobre a possibilidade de consolidao institucional da
democracia. No horizonte destes pases estaria se configurando mais uma crise de
governabilidade, causada pelo excesso de demandas e expectativas reprimidas ao longo de
anos de governos autoritrios.
Sem exageros, talvez pudssemos dizer que essas anlises no se diferenciam em
sua lgica interna das teorias desenvolvidas ao longo das dcadas de 50 e 60. Na trilha para
o desenvolvimento econmico e a modernizao de pases perifricos coloca-se novamente
a questo de saber como a democracia pode se configurar no melhor arranjo institucional
para tal desafio. A diferena que, agora, ao lado da mera estabilidade poltica temos a
eficincia econmica como premissas meta-tericas. Se a democracia apenas um mtodo
de seleo de elites governantes, o desafio que a cincia poltica coloca agora para si o de
identificar quais os elementos institucionais capazes de lhes permitir condies para a
gesto eficiente da economia em um mundo dinmico e globalizado. Democracias que no
atendem a esses requisitos passam a ser consideradas lentas, ineficientes e instveis. Mais
segmentos polticos e populares aos interesses de credores internacionais quando implementadas. Para uma discusso sobre o termo ver Kuczynsky e Williamson (2003). 21 Haggard e Kaufman (1991), p.367
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uma vez, a democracia, sob a tica de um segmento considervel da cincia poltica, s se
mostraria vlida quando capaz de atender a certas vises hegemnicas sobre o mundo.
Neoliberalismo e Neopopulismo na Amrica Latina
O desenvolvimento de uma agenda de pesquisa com inspirao nesse novo
paradigma democrtico, tomando como objeto a trajetria recente de pases latino-
americanos, consolidou uma literatura que passaria a defender reformas institucionais
favorveis centralizao de poderes na figura do Poder Executivo nacional,
principalmente em seu corpo tcnico e alterao de regras eleitorais com o intuito de
favorecer a criao de maiorias legislativas por meio da diminuio do nmero de partidos
(Williamson & Haggard, 1994).22 Concedendo pouca importncia s crticas recorrentes ao
excesso de prerrogativas concedidas aos chefes do executivo de pases latino-americanos,
essas alteraes, como vimos, teriam o objetivo de viabilizar um lcus institucional slido
capaz de implementar de forma abrangente reformas econmicas liberalizantes.
Ao longo da dcada de 90, a hegemonia de facto de governos latino-americanos
alinhados s reformas liberalizantes23 criava um contexto poltico favorvel ao
desenvolvimento dessa percepo de que o fortalecimento do executivo poderia acelerar o
processo de reformas. No entanto, a eleio sucessiva de governos de esquerda na dcada
subseqente que passariam a adotar polticas destoantes, em graus variados, do receiturio
neo-liberal, explicitariam os aspectos teleolgicos desse modelo e a contradio de suas
propostas.
A eleio de governos com nfase em polticas redistributivas a partir dos anos
2000, colocaria em xeque as propostas de cientistas polticos e economistas que viam no
fortalecimento do executivo um recurso vlido para acelerar o ritmo de reformas
liberalizantes. Nas mos de governantes com concepes alternativas de desenvolvimento
econmico, um executivo fortalecido teria a capacidade de implementar mais facilmente
reformas no sentido oposto ao idealizado. Ironicamente, a reao mais recorrente do meio
22 Para uma atualizao desses argumentos ver Navia & Velasco, 2003. 23 Como Stokes (2001) demonstra, a Amrica Latina da dcada de 90 foi marcada por inmeros switches polticos no mbito do executivo nacional, ou seja, a existncia de fortes discrepncias entre a plataforma de governo apresentada ao longo das eleies e as polticas adotadas efetivamente aps a posse do cargo. Nesse contexto, destaca-se que todas essas mudanas favoreceram reformas econmicas liberalizantes ou ortodoxas.
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acadmico tem sido a de recuperar antigas classificaes em associao a esses governos,
com destaque para a idia de neo-populismo. Desse modo, governos que buscassem
propostas e polticas alternativas ao modelo neo-liberal seriam vistos como irresponsveis
economicamente, naturalmente propensos a flertar como o autoritarismo e promotores de
polticas sociais de carter assistencialista. exceo do Chile, nenhum dos governos de
esquerda eleitos nos ltimos anos da regio escapou de ser taxado nesses termos.
Castaeda (2006) em seu artigo Latin Americas Left Turn deixa clara essa
decepo com os rumos da Amrica Latina ao elaborar uma tipologia dicotmica dos
governos de esquerda da regio. Uma esquerda correta ou boa seria aquela que teria
incorporado s premissas de uma economia de mercado e da ortodoxia monetria e fiscal,
buscando polticas redistributivas nesse cenrio cujos exemplos seriam o Chile, o Uruguai e
em menor grau o Brasil. A esquerda errada ou ruim, segundo Castaeda, seria aquela
movida pelo fantasma do populismo latino-americano apresentando as caractersticas
descritas acima. Nesse caso, teramos a Venezuela de Chvez, a Argentina de Kirchner e a
Bolvia de Morales como tpicos representantes do retrocesso na regio.
A despeito dessa tipologia estabelecer uma classificao muito simplista da
realidade das esquerdas no continente, um aspecto interessante desse artigo, no entanto,
sua defesa de uma neutralidade norte-americana em relao s aes desses governos, uma
vez que possuem a seu favor a legitimidade democrtica. A retrica anti-americana e a
adoo de polticas econmicas heterodoxas deveriam ser respeitadas at o momento em
que esses governos tomassem atitudes que prejudicassem claramente a competio eleitoral
ou rompessem com o sistema democrtico. Dessa forma, a ausncia de respeito aos
resultados do processo democrtico em pases latino-americanos e da percepo de que a
dinmica democrtica diz respeito muito mais a regras do que a resultados especficos so,
provavelmente, as principais causas dos inmeros desacertos e equvocos da cincia
poltica em seu processo de institucionalizao desde o ps-guerra.
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