#42 memória

32
1 memória revista nu #42 abril 2014 3,5 euros

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1

memóriarevista nu #42 abril 2014

3,5 euros

Morada

Revista NU, Dep. de Arquitectura,

Faculdade de Ciências e Tecnologia,

Universidade de Coimbra, Colégio das

Artes – Largo D. Dinis 3000 Coimbra

Telefone/fax (darq)

+351 239 851 350

+351 239 829 220

E-mail

[email protected]

Arquivo digital

arquivonu.blogspot.com

Impressão

Nozzle Lda

Distribuição

Coimbra Editora

Tiragem

300 exemplares

#1 encruzilhadas#2 lugares#3 cidades#4 mecanismos #5 áreas de contaminação#6 imagem#7 desvios#8 tempo#9 sexo #10 ismos #11 tecnologias #12 onde está coimbra? #13 pecado#14 oposições#15 viagens#16 oriente#17 revolução digital#18 revistas#19 colagens#20 onde está portugal?#21 marginalidades#22 game design#23 brasil

A Revista NU surge no ano lectivo de 2001/2002, integrada no programa de

objectivos do NUDA, o Núcleo de Estudantes do Departamento de Arquitectura

da Universidade de Coimbra (DARQ-FCTUC). O primeiro número, #1

Encruzilhadas, é lançado em Maio de 2002, e a NU torna-se aí uma revista

periódica de reflexão e debate sobre temas relacionados com a arquitectura, que se

propõe essencialmente como um pretexto de discussão e como uma ferramenta de

aprendizagem para quem a faz e para quem a lê. Desde então, já foram publicados

40 números da Revista NU, assumindo-se como uma publicação de teoria e

crítica focada em temas de interesse à produção arquitectónica mas também extra-

disciplinar. Assim, aos textos de crítica produzidos pelos estudantes, acrescentam-

se inúmeras colaborações de nomes nacionais e internacionais ao longo dos anos.

Em 2003, surge o número #12 Onde está Coimbra? no âmbito de Coimbra

Capital Nacional da Cultura comissariada por Jorge Figueira. No ano seguinte, a

convite do Instituto das Artes, a Bienal Internacional de Arquitectura de Veneza

conta com a presença da NU, com o número #20 Onde está Portugal?, integrado

na representação portuguesa comissariada por Pedro Gadanho.

Em 2007, o programa Gau:di, de apoio a publicações sobre arquitectura de vários

países europeus, faz uma recolha a ser apresentada em feiras internacionais e

inclusa numa antologia e distingue a NU para representar a crítica portuguesa de

arquitectura. Em 2012, é lançado o número #40 Entrevistas – Antologia Crítica

2002-2012 em parceria com a Trienal de Arquitectura de Lisboa, como uma

reflexão sobre os temas debatidos durante os primeiros dez anos da revista.

#24 espectáculo#25 utopia#26 identidade#27 habitar #28 velocidade #29 modus operandi #30 poder#31 chão #32 ocupa #33 consumo #34 feio#35 XXL#36 sul#37 mito #38 ideia #39 matéria #40 entrevistas - antologia crítica#41 gordura #42 memória

Abril 2014

ISSN

1645-3891

3

revista nu #42 Abril 2014Memória

editorial

entrevista

à conversa com

artigo gráfico

enviados nu

a nu

Isto não é uma adega (é um templo) Pedro Treno

68

E agora? Lembra-me Pedro Treno e João Miranda

4

O ADN da arquitecturaRui Agnelo

6

Ruína, questões do Imaginário Miguel Mesquita

50

Fala atelierJoana Alarcão e Rui Agnelo

14

Toda a Europa à ProaAna Gomes, Vicente Nequinha e Duarte Miranda

32

Chamem-me o que quiseremJoão Miranda

30

Vetor Diego Rayck

42

Vivência, Ausência e Confronto Pedro Caiado

44

O passado (não) é um país distante Tiago Gil

74

Daniel Blaufuks Pedro Caiado e Pedro Treno

56

Eratosthenes Tânia Neves Correia

24

La Charcuterie Mécanique Mafalda Miranda

10

20/03/201480

Director Luis Madeira Sub-director Pedro Treno Editores Pedro Treno e João Miranda Editor gráfico Duarte Pereira Redacção Ana Gomes, António Moreno, Duarte Miranda, Duarte Pereira, Henrique Pimentel, João Miranda, Joana Alarcão, José Almeida, Luis Madeira, Luis Macedo, Mafalda Miranda, Miguel Mesquita, Pedro Caiado, Pedro Lopes, Pedro Treno, Rui Agnelo, Tânia Neves Correia, Vicente Nequinha Colaborações Diego Rayck, Tiago GilCapa Sem título #5, Série Tijolo

4

editorial

E agora? Lembra-me1

Pedro Treno e João MirandaAlunos de dissertação e do 3.ºano do dARQ

‘O tempo não tem importância para o assunto. Surpreende-me sempre que os meus contemporâneos, que julgam haver conquistado e transformado o espaço, ignorem que se pode reduzir à vontade a distância dos séculos.’ 2

Este número é uma colecção das nossas

memórias. Começa-se inevitavelmente pelo lado

pessoal, havendo depois um seguimento para um

determinado contexto e para a colectividade.

As primeiras leituras espaciais são

particularmente marcantes. Essa experiência

molda-nos, define-nos enquanto exploramos.

Visão, audição, tacto, olfacto: todos os sentidos

representam o primeiro contacto para a recepção

de algo e desse despertar de sentidos.

As primeiras recordações perseguem-nos, talvez

até nos possam assombrar.

Por outro lado, a memória pode representar uma

espécie de entrave, um desafio à continuidade.

Quem conseguir trabalhar com o passado

de forma pragmática, poderá estabelecer e

possibilitar novas linguagens.

Contudo, memória é diferente de percepção.

A construção de imagens e identidades está

associada à criação e acumulação, ao baralhar da

história e, consequentemente, da arquitectura.

E assim, o arquitecto viaja, recolhe.

A concentração de memórias é um processo lento,

e mais ainda a filtragem dessa recolha. A memória

é uma sobreposição de layers, de história e de

mudança, desta é possível obter diversos pontos de

observação. A evolução está associada a ideias de

transformação, de reminiscência, de períodos de

perca e restituição, de crescimento e de reciclagem,

5

assim como a arquitectura. Presenciamos amnésia

no quotidiano, sendo que a automatização das

nossas acções originam um estranho reencontro

com eventos passados.

De como se esquece e como se lembra. Não há

ordem nem consenso na memória porque também

não os temos no mundo. E deste modo, o sonho e o

imaginário acabam por confundir ainda mais e por

fragmentar toda a lógica que se queira instaurar.

Na mesma ideia de fragmentação, está também

presente a idiossincrasia do indivíduo face à sua

relação com espaço e lugar.

Impreterivelmente dessas relações, a partir de algumas

memórias embrionárias é possível caracterizar o ser

humano. Mais tarde, esta espécie de herança poderá

confrontar algumas decisões e escolhas do mesmo.

Correndo o perigo de se confundir com nostalgia,

a ordem do presente deverá ser entendida

enquanto uma progressão natural, onde nada

poderá ficar comprometido. Aqui e agora, não há

memória que nos salve inteiramente, podendo

apenas fazer uso de alguns dos seus contornos.

Com a inquietação e incerteza permanente em

relação ao futuro, esta é essencial para a criação

e para a tomada de decisões. A arquitectura

dificilmente se transformará em língua morta

enquanto houver pretensão de desafiar o tempo e

o modus operandi.

1 A partir do filme de Joaquim Pinto, estreado em 20132 Marguerite Yourcenar. Memorias de Adriano: seguido de apontamentos sobre as Memorias de Adriano. Lisboa: Editora Ulisseia, 1986, p.257

6

O ADN da arquitectura

Rui AgneloAluno de dissertação do dARQ

artigo

Sabemos que alguns antepassados nossos

comunicavam entre si muito à semelhança dos

outros animais e que a evolução da fala para o que

conhecemos hoje foi um processo bem moroso.

Não o conseguimos apreender e sentir da mesma

forma que uma memória trivial, como uma

lembrança de festa, mas é difícil acreditar que este

dado não esteja de alguma forma presente e activo

no nosso ADN, como um antigo registo, porque

mesmo apesar do processo de aprendizagem da fala

pelo qual passamos na infância, conseguimos atingir

em poucos anos o mesmo nível que em tempos

precisou de milhares.

Podemos assim encontrar na memória duas

vertentes. A adquirida, porque parte do seu

conteúdo resulta de uma selecção de informação

que se provou útil, que desbloqueia e assegura

a possibilidade de progresso e que se transmite

inevitavelmente através da reprodução, e a

construída, pela nossa capacidade de produção de

conhecimento, de registo e recordação. Contudo,

nenhuma das duas é controlável. Não podemos

intervir na escolha da informação genética que

adquirimos, diga-se antes herdamos, e também não

seleccionamos que memórias conservar ou apagar,

pelo menos conscientemente.

Pode dizer-se, por exemplo, que os pilares de betão

são descendentes das colunas dóricas. Separam-

se por milhares de anos e muitas mudanças de

forma, técnica e gramática, mas essencialmente em

nada se distinguem. A memória da coluna dórica

existe no pilar de betão apenas no sentido em que

o seu desígnio primário foi herdado e se mantém

inalterado, embora esta observação seja uma

consequência da pesquisa e construção da história,

e não algo explicitamente visível ou palpável

na matéria da coluna. Podemos imaginar e

conceber variações infinitamente mas dificilmente

poderemos reinventar a ideia de coluna, pelo que

ela surge na arquitectura como os dados genéticos

de base dos pais chegam aos filhos. E apesar de

conservar os vestígios da sua evolução, a memória

da arquitectura existe menos enquanto coisa

autónoma e mais como desdobramento da própria

memória humana.

Mas há um factor que opera dos dois lados

com o mesmo peso na moldagem da evolução,

o contexto. O ambiente molda o Homem tal

como molda a arquitectura. Só que os princípios

de evolução da biologia são, por enquanto,

exclusivamente condicionados pelo contexto,

enquanto que os da arquitectura são sempre

duplamente condicionados seja pelo contexto,

enquanto ambiente físico, como pelo Homem e

sua cultura. A gravura, que mostra o que parece

ser um símio e um homem lado a lado, suscita

curiosidade por representar um com características

do outro e vice-versa, numa possível alusão ao

processo de evolução, cuja direcção não consta

que tenha sido escolha de um ou do outro. Por

outro lado, observe-se como as quatro colunas de

mármore na frente principal da Looshaus nada

suportam, cabendo a um pórtico, que define o

plano inferior da fachada, a função estrutural.

Adolf Loos sujeita a linguagem clássica ao mero

simbolismo, ainda que as colunas persistam,

mas agora escondidas e em betão, formando o

pórtico. Para o Homem, construir o espaço que

torna possível habitar e vencer os fenómenos

naturais não é suficiente, ele precisa de lhe dar

interpretação e significado.

7

Este livre-arbítrio da cultura humana vai encontrar

na engenharia genética um campo de experiências,

que constitui uma mudança de paradigma, e que

põe em causa a evolução biológica exclusivamente

condicionada pelo contexto.

A insulina ou os alimentos transgénicos, a

título de exemplo, revelam como se tornou

prática corrente e a opção de recorrer a este

método está sempre, por norma, relacionada

com a intenção de reproduzir sinteticamente

determinados comportamentos biológicos,

retardar a deterioração (ou resistir-lhe), e

consequentemente aumentar as taxas de

produção. Simplificadamente, poderá dizer-se

que a engenharia genética procura aperfeiçoar os

organismos objecto da sua acção por meio de um

autêntico jogo de corte e colagem de atributos,

transferências de genes de organismo A para B,

ultrapassando - ignorando mesmo - desta forma,

uma evolução natural que apesar de tudo existe

sempre, mas em que cujas tendências, neste caso,

conseguem ser mais ou menos previstas, seguidas

de outras tantas completamente imprevistas,

tornando possível condicioná-la e de alguma

forma orientá-la por outros caminhos alternativos.

A vontade de experimentar torna-se irresistível.

Imagina-se um super-produto, um super-organismo,

a ambição de criar algo que vai buscar o melhor

de todos os lados, deixando naturalmente o pior

pelo caminho.

Num ensaio feito em Taiwan, genes de medusa

foram introduzidos em embriões de porcos, cujas

patas e focinhos nasceram amarelos, brilhando

quando sob luz ultravioleta. A visão do resultado

pode repugnar num primeiro instante, pela

estranheza e pela aparência alienígena dos bichos,

mas para além deste efeito também se pode

sentir um certo fascínio, a imaginação desperta

e começa a perceber a possibilidade das mais

obscuras fantasias.

Não se poderá afirmar que aqui a memória

adquirida desaparece ou que é violada mas

certamente que se transfigura, que há um

cruzamento de memórias e embora o processo

natural, no sentido de ser livre de interferências

terceiras, não deixe de o estar e passa também a

ser, em parte, sintético.

Pág. 7(de cima para baixo)Autor desconhecido, An ape of Java / Ora=OotanAdolf Loos, Looshaus (Viena) - sobreposição da malha estrutural em fotografia de época (montagem do autor);A experiência com os porcos de Taiwan

10

artigo

La Charcuterie Mécanique

Mafalda MirandaAluna do 4.ºano do dARQ

Um dos assuntos que assombram a arquitectura é

o entendimento do que distingue uma boa cidade.

Para melhor analisar este paradigma, estabelecem-

se comparações entre as cidades que consideramos

atractivas e as que consideramos disfuncionais,

tendo em conta os factores inerentes à sua génese

e desenvolvimento e os agentes externos que a

restringem - casuística das cidades.

No entanto, a resposta que se procura resulta

numa arbitrariedade de preferências peculiares

provenientes de vivências triviais. Ainda assim, esta

demanda de definição ideal deve ser precedida

por introspecções vigorosas. Veja-se a cidade

personificada: ruas como artérias, parques como

pulmões, esgotos como cólon, escritórios como

cérebro e o centro como coração. Na verdade, é

isto que Lynch afirma ao longo de “A Boa Forma

da Cidade”1, não desfazendo a oponência entre

cidade-organismo ou cidade-máquina:

‘As cidades não são organismos e ainda menos máquinas. Não se desenvolvem ou modificam por si proprias, nem se reparam ou reproduzem sozinhas. (...) Mas é mais difícil, e mais importante, analisar a inépcia fundamental da metáfora e como ela nos leva irreflectidamente a eliminar os bairros miseráveis para evitar a sua “disseminação sem forma”, e por aí adiante.’ 2

Ao longo da história, não há garantias que

sustentem a veracidade das descrições existentes

relativamente à forma e funcionamento das

cidades antigas. Ainda que se tratem de relatos na

primeira pessoa, a dimensão interpretativa varia

em função do sujeito.

Ainda assim, somos habituados, desde cedo,

a observar a tradição clássica, pelo legado

que os antigos nos deixaram, comparando-

os com as sociedades actuais, indagando

frequentemente semelhanças a nós mesmos.

Observamos o Parténon da Acrópole de

Atenas e o Panteão de Roma e admiramos

estes povos pioneiros, cometendo o lapso de

converter estas aprendizagens em desejos

pessoais. Consequentemente, esta ingenuidade

ilude-nos e damos por nós a imaginar um

reviver da cidade antiga nas leis da actualidade.

Inconscientemente, filtram-se os valores positivos

e os mais inconvenientes são ignorados. Ou seja,

desprezamos as diferentes noções de liberdade

de períodos bastante distintos, não entendendo

(por)que as políticas outrora implementadas

jamais poderão voltar a governar o Homem.3 Se

as normas da antiguidade já não são as mesmas,

a razão reside no progresso da “matrix” da

inteligência humana.

Território, na sua etimologia, refere-se a uma

porção de área demarcada sob a posse de

alguém/algo. O sujeito que a possui torna-se

no personagem principal, temporariamente

responsável pela linguagem que esta ostentará,

até perder as competências necessárias para

a dirigir. Pode optar por manter a sua pré-

existência ou simplesmente quebrar com ela.

1 Kevin Lynch. A Boa Forma da Cidade. Porto: Edições 70, 19992 Kevin Lynch. Ibidem, pp.94-953 Italo Calvino. As Cidades Invisíveis. Lisboa: Editorial Teorema, 19994 Thomas Moore. A Utopia. Rio de Janeiro: Athena, 1937

11

Paralelamente, “cidade” define-se como zona

urbana, caracterizada por critérios populacionais,

densidade e estatuto legal, embora ainda em

estado inconclusivo. No ponto de vista comum, a

cidade é associada ao ritmo frenético automobilista

e a uma grande complexidade edificada. Pela sua

diversidade de recursos, mantém-se a expectativa

de que responda às constantes carências que vão

surgindo. No entanto, o construído não é efémero,

deixando consecutivas cicatrizes no território, à

mercê do responsável.

Thomas Moore escreveu “Utopia”, descrevendo

pioneiramente o conceito como algo que se

desenvolve muito para além do seu significado.

Definir geográfica e territorialmente a utopia

era o seu propósito, tendo como base a

condição autónoma da sociedade urbana,

cuja transcendência espiritual dependia dessa

autonomia.4 O caminho para o qual a sociedade

iria tender implicaria, inevitavelmente, o discurso

ideológico sobre como o poder se instala e a

relevância que detém.

No início do milénio, a massificação das produções

exponenciou os níveis de consumo, obrigando a

um aumento numérico de matéria substancial. No

terceiro lugar do ranking de exportações agrícolas,

a produção de carne suína na Holanda alcançou,

em 2000, o valor singelo de 19 milhões de porcos

por ano. No entanto, durante o processamento

não foram previstos equívocos que reverteram em

novas doenças, como a Gripe Suína e as Doenças

das Mãos/Pés. Estes prejuízos salientaram a

progressiva questão consumista, questionando

14

Os Fala são o Filipe (Porto, 1987) e a Ana Luisa (Porto, 1988), arquitectos recém-formados na FAUP, com breves paragens profissionais em Basileia e Toquio, mas já com um extenso corpo de trabalho. Como apresentação, na sua página online, referem que “cada projecto é o produto de um processo de desenho aberto a novas formações. Sendo precisamente limitado por fronteiras específicas e provocações, mas sem medo de se tornar utopia, esta abordagem retorica procura produzir uma insinuação disciplinada” 1.

A descontração e informalidade que transparece da entrevista deixa a impressão de que podiam ter falado durante horas. Apesar de a certa altura surpreenderem dizendo que foi de memoria que menos se falou, as respostas demonstram o contrário. Afinal, como eles proprios sugerem, quase no final da conversa, a memoria é o combustível da imaginação.

Parece haver uma influência japonesa que se manifesta sob a forma de uma aculturação, no vosso trabalho. O projecto de habitação social “Alvenaria” é um bom exemplo disto, e chamou a nossa atenção por conter referências bastante explícitas do trabalho recentemente feito neste país. Desta cultura e forma de fazer arquitectura, o que é que vos interessa e o que nos poderá interessar no contexto nacional?

Filipe: Quando estive a escrever a minha tese,

escrevi um capítulo inteiro sobre memória,

e estive a ler vários autores, a ver o que eles

diziam sobre isso, e falavam todos nesta espécie

de roubo inconsciente constante. Nós estamos

constantemente, quer queiramos quer não, desde o

dia em que nascemos até ao dia em que falecemos,

a tropeçar em imagens e a guardá-las, mas não

guardamos as imagens pelo que elas de facto são,

guardamos uma interpretação muito pessoal do

que vamos vendo nestes sítios. Quando fazemos

um projecto, e podemos pegar no exemplo do

“Alvenaria”, o que estamos a tentar dar é uma

espécie de magnificação, uma ampliação de um

determinado sentimento e de uma memória, de

uma imagem, uma sensação que nós queremos

amplificar naquele lugar. No caso do “Alvenaria”,

e o lado japonês que nele se reflecte - mas até nem

seria o exemplo mais “japonês”, diria eu, embora

seja um bom exemplo - passa muito por esta ideia

de que quando falamos em habitação social em

Portugal, começamos automaticamente a falar em

áreas, em custos, em tudo aquilo que representa

uma problemática social, mas a arquitectura em

si propriamente dita não tem assim muito peso.

Fala Atelier

Joana Alarcão e Rui AgneloAlunos do 3.º ano e de dissertação do dARQ

entrevista

15

Mesmo no caso do projecto “Alvenaria”, nós não

conseguimos consultar todos os projectos mas

tivemos acesso ao critério que originou o primeiro

lugar, e foi o que construíu a 300 euros/m2. Não

sei se vocês têm noção do que é isto, é zero, é

construir barracas.

A: Achámos que tínhamos um preço por m2

extremamente baixo.

F: O concurso define um regulamento de 600

euros por m2, é o valor máximo. Nós tínhamos 500

por m2. Partimos do princípio que temos quase

15% abaixo do preço de custo, pelo menos nesse

requisito ninguém vai tocar, quando na realidade

o critério de seriação foi apenas, e só, quanto

mais barato melhor. Portanto a habitação social

em Portugal está um pouco ligada à habitação

barata. Mas para responder à vossa pergunta

concretamente, o projecto é muito japonês, é

muito metabolista acima de tudo, tem muito de

gráfico, nas imagens inclusivamente somos muito

directos na referência, mas mais do que isso, a

construção do projecto é altamente metabolista,

portanto aquilo que não se vê nessas imagens é

o Kisho Kurokawa, é Nakagin, é o Kikutake, é

o Kenzo Tange, por trás desta geração nova que

vem muito nas revistas e que todos gostamos

de ver, mas tem muito mais a ver com esta ideia

de um espaço mínimo, adaptável, um espaço

transformável, uma modelação que está em

constante transformação, porque era isso que os

metabolistas queriam...

A: Um edifício que pudesse ser mutável. Todo o

projecto tinha de ser mutável e nunca perderia a

sua identidade.

F: E tanto que poderiam reciclar o espaço, ou

seja, num T3 há um idoso que falece e fica um

quarto vazio durante 20 anos até os filhos ficarem

idosos e falecerem também. E então, esse quarto

passa rapidamente para o T2 do lado, que tem

uma família jovem com um filho que precisa de

crescer, portanto esta ideia é muito mais social

do que arquitectónica. A sociedade tem X metros

quadrados, o que dá uma média de X sobre tal

m2 por pessoa, todos têm direito ao mesmo, e

naquele casal que falecia, alguém ia ficar com o

dobro e o que tem um filho ia ficar com metade,

ou seja havia uma diferença de quatro vezes a

área disponível. Socialmente, isso é altamente

desequilibrado, só que isto é um valor não muito

discutido. A referência japonesa aqui, para nós,

vem em duas camadas, na camada objectiva,

Pág. 15 Bairro social Alvenaria, Lisboa, 2013

1 “each project is the product of a design process open to new formations. while precisely limited by specific boundaries and provocations, but not afraid of becoming utopia, this rhetoric approach aims to produce a disciplined innuendo”, www.falaatelier.com

24

artigo

Eratosthenes1

Tânia Neves CorreiaAluna de dissertação do dARQ

A concepção de mapas vai ao encontro da

necessidade do homem em orientar-se, em

encontrar o seu rumo, mas também em expressar os

seus desejos e estratégias, sendo consequentemente

forçado a criar uma representação do território,

seja para procurar um objectivo ou a expressar-se

a outrem de forma rápida e eficiente. Até ao século

passado, a representação científica dos mapas

resultava numa obra de arte iconográfica, ainda

que tal classificação não fosse imediata. Muito para

além da reprodução espacial, estes documentos

apresentam-se eficientes, de interpretação clara e

hierarquizada, auxiliados pelos ornamentos que

formam uma narrativa. Este tipo de imagens,

que compõem o discurso urbano, sofreu um

forte impacto tecnológico no século XX, com

o surgimento das ferramentas informáticas, em

consonância com as mudanças na sociedade e no

pensar urbano. Hoje, os mapas de cariz geográfico

continuam a ser produzidos, ainda que seja com

outros meios, mas sempre com a mesma intenção: a

interpretação pragmática do espaço. Mas como são

encarados os mapas de agora?

Guerras, ditaduras, consequentes reorganizações

económicas e conquistas políticas, de modo

geral, alteraram a vida em sociedade, tornando-a

mais flexível e facilmente adaptável a mudanças,

inclusivamente às tecnológicas e mecânicas.

As necessidades que estes factores evidenciam

contribuíram para o desenvolvimento das redes

de transportes, das tecnologias de comunicação

e do pensamento cosmopolita e consumista,

processos esses que mexeram com as massas e que

provocaram um forte impacto nas últimas décadas,

precisamente quando se começou a dar um novo

sentido ao nomadismo.

Os ciganos de Alba foram, involuntariamente,

impulsionadores da Nova Babilónia, um plano

que, embora utópico, entrelaça os temas do

urbano, do habitat e da mobilidade. “Constant

Nieuwenhuis” quebra fronteiras, num

desenfreado optimismo, em que o Homo Ludens2

não vê limites espaciais, nem de meios, numa

terra sem princípio, nem fim. Este Homo Ludens é

o ser urbano, o homem que cria uma nova relação

entre a sua individualidade e a comunidade e o

espaço urbano.

Neste contexto, as mentalidades abriram-se

para uma perspectiva mais global, onde se

pensa à escala planetária, com trajectos também

eles espontâneos e instintivos. É a liberdade

espacial, agora cronometrada, numa Babilónia de

quantidades infinitas de redes e de cruzamentos

de informações, que obrigam a uma organização

sistemática e, inevitavelmente, a uma memória

mais selectiva ou com carácter objectivo.

A tecnologia e a inteligência artificial tornaram-

nos numa espécie de Homo Ludens, errantes

virtuais e flâneurs pela imagética. Hoje,

facilmente viajamos e conhecemos qualquer

canto do mundo, através da variedade de mapas

que nos são disponíveis hoje em dia, e pelos

mais variados meios. O mapa deixou de ser

desenrolável ou desdobrável mas sim descartável.

Como orientação ou localização, o facto é que

estes se tornaram virtuais e de acesso tão rápido

quanto desfazer-se deles depois da sua utilização.

A nova cartografia revolucionou a forma como

as pessoas lidam com o território, mesmo sem

nunca o terem percorrido; não têm limites nas

distâncias, nem nas escalas.

Os mais recentes gadgets como os smartphones,

tablets, computadores ou GPS’s, com uma mera

1 (276 a.C – 194 a.C.) Intelectual da Grécia Antiga, foi responsável pelos primeiros estudos sobre geografia e cartografia, tendo feito o primeiro mapa do mundo até então conhecido.2 Expressão criada pelo professor e historiador holandês Johan Huizinga (1872 – 1945) em 1938.

25

30

João MirandaAluno do 3ºano do dARQ

artigo

Chamem-me o que quiserem

Tijolo a tijolo, ergue-se. O fio-de-prumo e o nível

organizam um espaço outrora vazio, delimitado por

um murete incompleto. Entretanto, este é refeito. Os

dias vão passando, os tijolos aumentam, a argamassa

seca. O tempo avança. De fora, é pintado, coloca-se

um rodapé com a pedra local. Começa por existir um

alpendre, surgindo depois um churrasco. No fumeiro,

há carne a secar. A horta deixa de fazer frente e

desloca-se para um plano mais recuado. O galinheiro

já tem cobertura. Os diospireiros, figueiras e pereiras

são repostos depois do trilho construído.

O lote lá está, claramente definido. A forma

aparenta estar resolvida. O tempo avança, nasce a

criança e com ela, um recreio exterior. A criança

cresce. A criança brinca. O recreio é destruído

porque esta já não brinca. Novamente um

espaço vazio. Como solução, coloca-se um banco

e o espaço muda. É aí que a criança se senta

sozinha. Junto ao banco, uma mesa apazigua o

local, e as refeições de Verão passam a ser aqui.

Tornam-se dois pisos completamente independentes.

Divididos por um grande armário e uma parede

falsa. Desta forma, ficam duas casas. O tempo

avança e um habitante sai, deixando uma livre. A

outra continua ocupada. A sala não é suficiente e

aparece então uma maior, num patamar superior.

Ainda nesta, a lareira é refeita. Duas portas fazem

a ligação para o exterior. As refeições de família

passam a ser aqui. A colocação de uma porta, o

aparecimento de uma salamandra e a recolocação

do bar, ao fundo, transformam a primeira sala.

Por cima, ergue-se um espaço com uma grande

vitrina. Havia servido enquanto lavandaria e sala

de estar. Por enquanto, é apenas sala mas mais

tarde não terá nada. No exterior, constrói-se uma

escadaria para ligar o espaço do piso superior

àquele onde está o banco e a mesa. O tempo

avança, o frio instala-se e a criança já brinca

no novo espaço, deixando para trás tudo isto.

0.73

0.69

0.63

0.22

5.69

4.76

0.16

2.02

2.10

1.02

4.35

3.820.

32

7.71

3.28

3.81

2.53

2.84

0.87

0.46

19.78

2.96

3.28

1.08

2.38

2.84

2.29

3.13

0.42

3.81

4.43

2.88

4.11

3.09

1.84

4.190.27

0.22

10.7

0

3.180.80 1.85

0.52

0.85

2.55

0.60

+ 3'-6"

9

10

11

12

13

8

1516

17 18 19

6

14

1234

5

7

31

Forma-se um percurso no anterior vazio. O fumeiro

aumentou. Acrescenta-se mais uma pequena divisão

para armazenar os enchidos. O poço é restaurado

e junto dele aparece a garagem. Mais acima, está o

depósito de lenha. A laranjeira fica. A frente ornamenta-

se com um pequeno lago, rodeado de ajardinados com

um banco de baloiço. No murete, a porta é coberta com

um floreado em coroa. Plantam-se roseiras. Aparecem

patamares, onde os canteiros ganham forma e dão cor.

A entrada muda. Aqui surge um telheiro com frontão. A

passagem passa a ser coberta. Graças ao pequeno avanço, a

varanda teve que ser destruída. Refaz-se depois mas agora mais

pequena. O tempo avança. Na sala, destrói-se a lareira e retira-

se o bar. A sala agora é quarto. O quarto muda (assim como o

outro também), a sala muda, uma das casas de banho muda mas

a cozinha permanece. As refeições continuam no mesmo sítio,

agora que a criança nasceu, assim como as refeições de família.

Mas desta vez com menos pessoas. O espaço restante vai-se

tornar numa sala de costura para a roupa do recém-nascido.

À primeira sala, anexa-se mais um quarto.

Cá fora, num patamar, recoloca-se a

mesa e o banco. O espaço volta a ficar

vazio. Destrói-se o pavimento ao lado do

quarto. Aparece uma cave. Mais tarde será

garrafeira e um espaço de arrumos - para

já, nada. Uma escada interior liga a cave ao

piso do novo quarto e da nova sala.

A construção avança. Os pilares são

erguidos. A viga é retirada. A estrutura

de madeira é retirada e opta-se por uma

metálica. Algumas telhas são renovadas.

Entre estas, constroem--se clarabóias

com janelas rebatíveis. Há assim mais um

espaço para ser utilizado que, para já, está

estagnado. Os parafusos, os montantes, a lã

de rocha, o polistireno extrudido e o gesso

cartonado continuam espalhados. O espaço

está a ser controlado arbitrariamente. As

cartas em cima da mesa.

Quem sou eu?

Duas paredes vão formar mais quatro

espaços: dois quartos, uma casa de

banho e uma pequena sala de brincar

(pena que a criança já não viva aqui). Os

novos elementos já não se distinguem. A

paisagem muda. A vivência é adaptada. O

tempo avançou e os elementos integraram-

se. Já não são novos e submeteram-se ao

espaço apenas definido pelo murete, que

entretanto se tornou portão. O Sol raia

quente. Volta o calor e a criança vem com

ele. A criança senta-se no banco, observa.

0.91

0.79

4.96

0.64

1.11 1.19

0.91 0.60

1.68

3.82 3.872.

87

3.16

0.45

2.84

2.42

0.71

2.22

1.09

1.09

1.68

0.66

1.15

2.84

2.57

3.53

3.67

3.36

12.3

9

2.32

0.84

4.33 5.08

3.43

4.62

3.25

3.48 0.28 3.88

0.35

3.58

4.18

1.75

0.30

2.45

2.36

0.56

0.30

0.35

1.03

0.83

UP+ 3'-6"

DN

22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32

21 20 19 18 17 16 15 14 13 12

1716

15141312111098765

43

21

32

33

Toda a Europa à Proa

‘Não vale a pena andar de bloco na mão e lápis afiado se o coração não vê o que lhe pertence em qualquer lugar do mundo.’ 1

A viagem sempre esteve presente no percurso

dos arquitectos de forma ininterrupta. De Le

Corbusier a Fernando Távora, a aprendizagem e

descoberta de novos caminhos e a desmitificação

de academismos é prova viva de que este handicap

é fundamental para a evolução de pensamento

crítico do arquitecto.

Para o estudante de arquitectura, esta evolução

tem vindo a iniciar-se cada vez mais cedo graças

aos protocolos entre universidades. Dentro dos

cursos de arquitectura na Europa, o Programa

Erasmus torna possível a deslocação de um grande

número de estudantes em cada ano lectivo.

Assim, é inevitável que a mudança de panorama dê

origem a um confronto para a pessoa que embarca

na viagem, alterando rotinas e proporcionando

oportunidades de conhecer (e reconhecer) uma

cidade e o espaço, lugar e história que nele subsistem.

Desta forma, foi dada aos três membros da

redacção que prosseguiram no programa Erasmus

a tarefa - algo arriscada - de relatar uma memória

recente da cidade-destino e, de certa forma,

confiar num instinto e perspicácia necessários

para conseguir comunicar uma observação que é

simultaneamente tão rigorosa quanto naif.

enviados nu

1 Agustina Bessa-Luís. Breviário do Brasil. Porto: ASA, 1991, pag.38 in Ana Raquel da Costa Mesquita. O melhor de dois mundos: a viagem do arquitecto Távora aos EUA e Japão - Diário 1960. Coimbra, 2007, p.7

42

artigo gráfico

Diego Rayck, Vetor

43

44

artigo

Vivência, Ausênciae ConfrontoPedro CaiadoAluno do 4.ºano do dARQ

No que diz respeito à memória, interesso-me

particularmente pelo seu processo de formação

e selecção. Embora o cérebro humano tenha a

possibilidade de registar todos os acontecimentos

de uma vida, para a esmagadora maioria de nós,

as recordações de um determinado acontecimento

são agrupadas em pontos de convergência e

divergência. Isto é, a nossa memória capta vários

fragmentos sensoriais dispersos no tempo que são

mais tarde assemblados, reconstituindo parcialmente

o momento1. Neste aspecto, a memória é oposta

à fotografia, uma vez que esta última capta com o

mesmo rigor numa única imagem o que a primeira

capta em várias e com intensidades diferentes.

São antagónicas na sua génese mas extremamente

próximas no resultado: se tomarmos cada fracção

de segundo como uma unidade, nada se aproxima

mais do registo visual humano do que o registo

fotográfico, apenas o medium é diferente.

Assim, poderemos dizer que a vivência encontra

o seu equivalente no registo fotográfico que

pretende apenas gravar uma imagem, sem qualquer

interpretação implícita ou explícita. A título de

exemplo, a obra de Bernd e Hilla Becher vive da

imagem pela imagem. Em cada fotografia dos seus

painéis de torres de arrefecimento, maquinaria

de indústria mineira ou depósitos de água, vemos

uma imagem inflexível a associações ou segundas

interpretações, a imagem diz-nos tudo o que há para

se dizer sobre ela, se estivermos dispostos a escutar

em silêncio. Todas as suas obras deixam bem claro

que não há mais nada inscrito nas fotografias senão

a pura documentação para que se possa apreender

claramente a forma e função, como se fossem

material de estudo científico.

O mesmo se poderá dizer da obra de Karl Blossfeldt.

Destinado ao ensino das artes, o “Urformen der

Kunst” é um livro com um objectivo extremamente

claro: mostrar a pintores, escultores e arquitectos

as formas geométricas (expressão visual das regras

matemáticas) por detrás dos organismos naturais

para que, por sua vez e da mesma forma, a arte possa

ser uma extensão da natureza. Para o conseguir é

preciso estar limpo de qualquer referência que não

advenha de fontes directas, não pode existir nada

que nos perturbe na apreensão de um conhecimento

em primeira mão. Da mesma forma que os Becher,

Blossfeldt fotografa com o fim de criar documentos

que mostrem claramente e sem conotações o objecto

em questão.

Se este conjunto de obras se aproxima da memória

humana no sentido em que são compostas por

vários momentos que criam uma continuidade sem

perturbações, Henri Cartier-Bresson aproxima-se

pelo pólo oposto: se a obra dos primeiros constitui

uma base homogénea para a memória, a do segundo

é o que sobressai. A sua obra prende-se igualmente

pelo registo de momentos singulares e que, à partida

nada contêm de extraordinário mas que revelam o

seu verdadeiro poder enquanto imagem de gestos

simples e despreocupados como uma ligeira torção

do braço ou um pequeno salto. Bresson capta estes

fragmentos de forma exímia e o seu próprio método

incita à fugacidade: a escolha do local certo, a espera

de que algo aconteça, investidas e hesitações. E, no

final do dia, o que interessa é se obtivemos uma boa

imagem para depois se passar à próxima fotografia.

Assim, não há narrativa, não deve haver tempo para

nos debruçarmos demasiadamente sobre as imagens,

devemos apenas observar, apreciar a composição e

virar a página.

(esquerda para a direita)Bernd & Hilla Becher, Coal Mines, 1976-87; Karl Blossfeldt, Dipsacus Laciniatus, 1929(baixo)Henri Carter-Bresson, Madrid 1933

1 António Damásio. How Memory Works [ficheiro em vídeo], Big Think: 2010

45

50

artigo

Ruína, questões do Imaginário

Miguel MesquitaAluno de dissertação do dARQ

Uma coluna aparece no ecrã. Talvez não fosse uma coluna, mas é. Sabemos que o é pelo conhecimento prévio que adquirimos sobre este tipo de objecto. Primeiro as estrias, depois um plano sem base nem capitel e logo se confirma: aparece o templo. Coluna e templo, pedras e montanha. O filme desenrola-se e o objecto não perdura, é o fantasma do que foi que nos consome, que nos envolve. Aqui a ruína é protagonista, é ela que nos intriga e nos puxa a imaginação, é a personagem principal.

Em “Bassae”1, Jean-Daniel Pollet filma o

Templo de Apolo. Contudo, o facto de o objecto

caracterizado ser este templo em particular, é de

tal maneira secundário para o desenrolar da acção

que o discurso não se preocupa em contextualizar

a imagem que acompanha. O assunto que se

pretende expor nada tem que ver com as origens

do objecto, já vastamente estudado e devidamente

catalogado. Este templo poderia ter sido qualquer

outro templo que acolhesse em si a mesma

característica predominante que concede ao

objecto a razão de ser cenário. A Pollet, interessa-

lhe a ruína. A ruína enquanto sujeito e o tempo

enquanto verbo. O Dieu Temps2 que impõe a acção

desta enquanto estado incontornável sobre o

objecto criado.

Reconheço a ruína como estágio primitivo da

memória. Reconheço-o, em primeiro lugar, por ser

coisa que não era, por existir enquanto resquício

do que foi, enquanto algo que não tinha como

propósito desempenhar a função a que se cinge.

A ruína evoca, ela própria, não só a nostalgia e

a curiosidade da história por detrás do estado

ruinoso e do processo de decadência, mas também

da natureza da construção do objecto original.

Em segundo, porque a qualquer ruína se associa o

medo da ignorância do facto3 que, de acordo com

a noção de valores de história e de antiguidade

instaurados por Alois Riegl4, a eleva ao estatuto

de monumento. A relação entre ruína e memória

é preciosa pela sua simbiose de forças onde o

objecto depende necessariamente do seu estado

dormente para sobreviver, quer enquanto objecto,

quer enquanto memória.

Entendo, portanto, a ruína como este catalisador

da memória à qual, pela presença histórica e

cognitiva, é atribuído um carácter monumental.

Mas, acima de tudo, reconheço na ruína o valor

primário da memória por se ligar instintivamente

ao principio mais básico da mesma, o Imaginário.

Refiro esta noção enquanto base da memória

consciente de que está, em grande parte,

dependente de conhecimentos adquiridos. Isto

é, só conseguimos imaginar porque subvertemos

1 Documentário (1964) realizado por Jean-Daniel Pollet e escrito por Alexandre Astruc2 Dieu Temps - tradução francês para “Deus Tempo.” Expressão utilizada no filme “Bassae” e mencionada no artigo para enfatizar a característica imperativa do tempo, que se impõe com o peso de uma divindade.3 Riegl defende em “O Culto Moderno dos Monumentos” que um objecto que é o único do seu tipo assume estatuto de monumento pela eminência do desaparecimento do conhecimento que dele advém. Neste sentido, o termo “ignorância do facto” é empregue para enfatizar esse estado que promove um objecto histórico a monumento.4 Alois Riegl. O Culto Moderno dos Monumentos. Lisboa: Edições 70, 2013

51

5 Gonçalo M. Tavares. Atlas do Corpo e da Imaginação. Lisboa: Caminho, 2013, p.3756 Sigmund Freud. A interpretação dos Sonhos. Lisboa : Relógio d’Água, 2009

e recontextualizamos informação, previamente

arquivada e catalogada, na criação de uma

imagem. Estas imagens são elas mesmas razão

da formatação de pensamento e responsáveis

pela construção de novos dados. A propósito do

termo memoria-imaginação avançado por Gaston

Bachelard, em “A poética do Devaneio”, escreve

Gonçalo M. Tavares o seguinte:

‘Esta memoria-imaginação põe de lado a Historia, mesmo que pessoal, enquanto conjunto de factos fixos e incontestáveis. (...) O que se fala aqui é do louvor a uma memoria baralhada, a uma memoria imprevisível. (...) Na memoria que trabalha directamente com o imaginário o que importa não é tanto a veracidade, mas a intensidade.’ 5

Se o Imaginário corresponde a um conjunto de

imagens derivadas de um grupo especifico de

conhecimentos, podemos então afirmar que,

determinada ruína nos leva a um conjunto de

assunções. Podemos encontrar paralelo a este

pensamento em Freud6, no que diz respeito aos

seus estudos sobre a natureza do inconsciente e

suas manifestações. Segundo o filósofo alemão,

a origem do sonho (e as suas interpretações)

reflecte pois o efeito da percepção de um conjunto

de experiências a que determinado individuo

se expõe. Essas percepções são manipuladas

para determinar um cenário que é o “ideal”

sobre esses acontecimentos. Assim, tal como

o sonho corresponde a uma representação de

vários estímulos sobre um episódio específico,

também o Imaginário existe mediante um misto

de referências perante determinada matéria.

Entenda-se, ainda assim, que estes fenómenos

não têm que ser necessariamente fantásticos, mas

são claramente sempre de natureza fantasiosa - a

qualquer experiência prática ou cognitiva a que

o Homem é exposto, segue-se uma reprodução

fictícia da realidade que corresponde à sua

interpretação individual. Assim o explica M.

Tavares, ainda no mesmo livro, a propósito de

“escutar, ver, criar”:

56

à conversa com

Daniel Blaufuks

Pedro Caiado e Pedro TrenoAlunos do 4.ºano e de dissertação do dARQ

Para si, o processo analógico é essencial para a compreensão de cada projecto, para facilitar a associação das memórias dentro deste?

Não, porque grande parte do meu trabalho é digital.

Acho que cada processo tem, de certa forma, a sua

linguagem e a fotografia é uma das artes que está

bastante ligada ao processo tecnológico. A fotografia

e o cinema estão muito mais ligados, de certa

forma, à indústria do que a pintura, por exemplo:

a evolução das tintas tem menos influência do que

a evolução tecnológica na fotografia (digo eu mas

se calhar algum pintor o dirá de outra forma). E

dessa maneira, a apreensão da fotografia é diferente

hoje do que era há vinte anos atrás quando era

exclusivamente analógica e por isso interessa-me às

vezes trabalhar com esses processos mas, em grande

parte, o meu trabalho é em suporte digital. Também

penso que corremos muito o risco de, ao usar um

método tecnicamente ultrapassado, cairmos logo

numa determinada nostalgia muito óbvia. É um

pouco como: se eu receber uma carta escrita à mão,

a minha apreensão será sempre diferente de uma

carta escrita no computador, no entanto as palavras

se calhar são exactamente as mesmas. Portanto,

acho que há essa importância: de pensar no

processo que se está a utilizar e porque é que se está

a utilizá-lo. Muitas das vezes, os fotógrafos dizem

que o digital não tem a capacidade que o analógico

tinha e sim, até certo ponto é verdade mas acho que

também é perigoso ficarmos a bater nestas questões

que estão felizmente ultrapassadas.

Visto que o seu trabalho percorre vários formatos (p. ex. filme, slide, polaroid, cianótipo na fotografia e super 8mm e 8 mm no vídeo), o processo que os reúne é a montagem cinematográfica?

Uma exposição é um grupo de trabalhos que têm

de ter uma coerência entre eles e esta consegue-se

através da montagem. Quer dizer que trabalhos

muito diferentes podem ser, no entanto, coerentes.

Uma fotografia a cores pode ser coerente com

uma fotografia a preto e branco, uma fotografia

de uma paisagem com a fotografia de uma pessoa,

está tudo relacionado com essa estrutura de

montagem. Uma pessoa tem de pensar e depois

criar, se isso tem que ver com a montagem

cinematográfica já tenho mais dúvidas porque esta

tem muito que ver com a cronologia, precisa de ter

um tempo atrás do tempo, determinada acção vem

depois de outra acção. E na fotografia, isso não

existe e posso baralhar completamente as coisas:

ao mostrar o campo, também estou a assumir

que está muita coisa fora de campo e isso num

A conversa com Daniel Blaufuks teve lugar no café Flor das Avenidas em Lisboa. Falou-se do processo e técnicas dentro da sua obra, abrindo caminho para uma discussão em torno da memoria.

Tendo esta enquanto fio condutor para percorrer os trabalhos do fotografo, falou-se de montagem, arquivo, revolução e da complexidade que se estabelece quando se associam vários aspectos desta temática.

Encarando a fotografia enquanto poesia e o passado como uma peça fundamental para a compreensão de muitas das questões que o ocupam, Daniel Blaufuks trabalha com e para a memoria.

57

trabalho fotográfico é muito importante. Há uma

margem da fotografia, uma limitação, no fundo é

a presença que chama a atenção para a ausência:

o que está lembra o que não está. E tudo isso

entra nessa montagem. Por exemplo, na exposição

“Utz” (2012), os cianótipos são cianótipos de

origem mas para os fazer daquela forma e daquele

tamanho, tive de recorrer ao digital. Trata-se de

uma transmissão de tecnologias: combino uma

tecnologia bastante ultrapassada – o cianótipo não

tem qualquer utilização prática, é uma técnica

básica do início da fotografia – onde a luz faz

sombra sobre um objecto e se consegue gravar

essa sombra noutro nível, utilizando depois a

alta digitalização com grandes scanners e com

papel fotográfico contemporâneo. No fundo, é

isso que me interessa, a transmissão ao longo dos

tempos que, no fundo, é a memória: utilizar vários

métodos fotográficos para combinar a memória

de todos esses tempos. Na mesma exposição,

havia aquele zeppelin representado em várias

polaroids que já tinha tirado há muitos anos,

algumas fotografias que o meu avô tinha tirado e

outras eram estereografias compradas. E portanto

foram vários métodos que formaram essa ideia de

transmissão. No fundo, a montagem para mim é

mais isso, uma ideia de transmissão: de mim para

quem vai ver e também geracional.

Começou o seu trabalho com uma forte ligação à literatura, citando como exemplo o trabalho com o escritor Paul Bowles no livro “My Tangier” (1991) e também a recente participação na edição portuguesa da revista

68

Esta é a história de um homem marcado por uma

imagem de infância.1

Assim começa “La Jetée”, filme pré-futurista,

pioneiro de uma ficção científica, tão frenética

quanto intimista, apocalipse desafiado pela relação

impossível entre um homem e uma mulher, mulher

essa que está presente na dita imagem perdida

na memória do primeiro. A noção de passado

representada por essa relação que presumivelmente

nunca existiu vai sendo distorcida à medida que

a figura masculina avança em direcção a várias

fases do futuro, acabando por recusar a eventual

permanência num mundo seguro, pacífico, onde

os problemas são inexistentes, para poder voltar à

sua imagem enigmática, onde nada é certo mas o

impulso de ficar é altamente desejável.

Insurgindo neste hipotético regresso ao passado,

numa aproximação à regressão, pode-se entender

a arquitectura - numa determinada percepção

espacial - de outra forma, fazendo uso das

memórias e dos vestígios que o tempo foi deixando,

possivelmente à espera que alguém lhes pegue de

novo, para que não seja em vão a sua passagem por

este mundo.

Qual é a dimensão temporal da memória? E como se

desdobra a mesma memória na arquitectura? Sendo

perguntas que podem ser tão complexas como

triviais, não se pode chegar perto de uma resposta ou

ensaio ultra-rigoroso sobre tal neste artigo, correndo

talvez o risco de se perder na timeline (La Jetée dixit),

à procura de metáforas e analogias que nem sempre

são consequentes. Contudo, é tangível afirmar que

a percepção do arquitecto em relação à memória

vai mudando frequentemente ao longo dos séculos,

década após década, revolução após revolução, com

ou sem vanguardas.

A interiorização da arquitectura dentro de um

território muitas das vezes pressupõe um olhar

benevolente e optimista em relação ao significado

e à importância de determinadas obras dentro da

cultura onde estão inseridas. É por isto que, quando

se entra em Paris, eis a Torre Eiffel que passou de

escultura aberrante odiada por metade da cidade

(incluindo artistas e arquitectos) a ícone amado por

habitantes e turistas.

Quando se fala em ícones, associa-se

automaticamente o turismo e a carga simbólica

presente nos ditos edifícios. Mas os acontecimentos

que aí tomaram lugar, registados e adaptados pela

literatura, pela arte, pela historiografia e por toda

uma cultura popular desenvolvida no século XX, são

frequentemente reduzidos a meia dúzia de factos e

dificilmente sobrevivem da melhor forma, tornando-

se associados a histórias e não a memórias.

A arquitectura enquanto ruína (e depois enquanto

monumento) é a prova física de um passado, onde a

história está presente por intermédio da percepção

que, aliada ao conhecimento, origina assim uma

experiência muito mais profunda de significado que

acontece entre visitante e lugar.

Pegando nesta lógica de visita e de contemplação

em jeito de uma homenagem instituída, tenta-se

compreender o fascínio dentro da noção recente

de memória e da sua expressão construída. É então

pertinente procurar o pensamento por detrás desta

consciência através de alguns exemplos do século

passado e de alguns registos de perdão e lembrança

assentes na moral contemporânea - a piedade

colectiva que tarda sempre a chegar sendo que,

na maioria dos casos, é instaurada depois de uma

catástrofe ou episódio traumático. Depois, para não

cair no esquecimento, as estratégias são várias.

Pedro TrenoAluno de dissertação

artigo

Isto não é uma adega (é um templo)

69

‘(...) porque todas as coisas estão constantemente a cair no esquecimento a cada vida que se extingue, o quanto o mundo como que se esvazia por a historia de incontáveis lugares e objectos, em si incapazes de memoria, nunca ser ouvida, nunca ser mostrada ou transmitida.’ 2

Em 1926, Mies van der Rohe desenha o memorial

para os militantes defuntos Rosa Luxemburg e Karl

Liebknecht, fundadores do grupo Spartakusbund

(que originou depois o Partido Comunista Alemão)

destinado a travar a permanência da Alemanha na

Primeira Guerra Mundial. Construído no Cemitério

Central Friedrichsfelde em Berlim, era um grande

bloco rectangular de betão armado com revestimento

de tijolo em toda a volta - tijolos esses que foram

fabricados a partir de vestígios sólidos de balas

provenientes de edifícios danificados ou destruídos

durante as revoltas do Spartakusbund.3 Tendo sido

demolido em 1933 pelo partido Nazi que havia

ascendido recentemente ao poder, o simbolismo

implícito no edifício acabou por ser derrubado pelo

mesmo poder contra qual o grupo havia lutado.

A Casa de Tijolo (1923), projecto não construído,

é um dos exemplos mais explícitos da exploração

formal e tectónica do arquitecto nesta altura,

experimentando conceitos provenientes da pintura

De Stijl aliados à construção em assemblagem.

As paredes de tijolo são então o suporte para

desenvolver a complexidade entre cheios e vazios,

entre espaços assimétricos e divisões. Esta ideia de

vários planos com paredes fixas teria sido explorada

anteriormente pelo arquitecto Hendrick Berlage -

‘Antes que ninguna otra cosa, la pared debe mostrarse desnuda en toda su sentida belleza.’ 4

E assim, as paredes rígidas do memorial são já uma

confirmação das experiências de Mies que culminam

mais tarde no projecto que será tido como um

exemplo máximo de clareza entre espaço e forma, o

Pavilhão de Barcelona (1929).

Porém, não se pode associar apenas argumentos de

ordem técnica a este objecto quando existem razões

que a própria arquitectura desconhece. Mies, numa

entrevista feita em 1926 pelo comentador comunista

Eduard Fuchs, explica o porquê de ter utilizado

a parede de tijolo enquanto solução digna para o

projecto: ‘As most of these people [Rosa Luxemburg, Karl Liebknecht, other fallen heroes of the revolution] were shot in front of a brick wall, a brick wall would be what I would build as a monument.’ 5

Aqui, a arquitectura cumpriu o papel de homenagear

uma dupla de revolucionários através de um

memorial que eleva a relevância política destes

a partir da sua escala e magnitude, associado-se

também ao simbolismo de resistência implícito na

mensagem deixada pelos mártires.

É também curioso observar que, três décadas mais

tarde, na mesma cidade de Berlim, a ideia de muro

a partir de um plano único de tijolo acabaria por

se expandir para proporções grotescas, originando

assim o muro que separou a cidade em duas partes,

desde 1961 até 1989, quando foi deitado abaixo.

1 “La Jetée”, realizado por Chris Marker (1963)2 Winfried Georg Sebald. Austerlitz. Lisboa : Teorema, 2004, p.243 Ross Wolfe. Mies’ Memorial to Rosa Luxemburg and Karl Liebknecht (1926). Blogue “The Charnel House” (http://rosswolfe.wordpress.com/)4 Allan Greenberg, Ricardo Guasch Ceballos, Txatxo Sabater. Espacio fluido versus espacio sistemático: Lutyens, Wright, Loos, Mies, Le Corbusier. Sant Cugat: Escola Tècnica Superior d’Arquitectura del Vallès: UPC, 1995, p.565 Ross Wolfe. Ibidem

Pág. 69 Mies van der Rohe - Memorial para Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht (foto e alçados)

74

artigo

O passado (não) é um país distante

Tiago GilAluno do Mestrado em Arqueologia e Territorio da FLUC

‘The past is everywhere. All around us lie features which, like ourselves and our thoughts, have more or less recognizable antecedents. Relics, histories, memories suffuse human experience… Whether it is celebrated or rejected, attended to or ignored, the past is omnipresent.’ 1

A arqueologia é uma ciência multivocal e

multitemporal, humana e social. Ultrapassa

por isso o seu âmbito etimológico (do grego

‘Archaiologia’, referente ao discurso sobre as

coisas antigas, ao estudo da memória material do

passado que escapa à consciência da História2)

ocupando-se de todo o passado, e não apenas

do mais “antigo” ou “monumental”. Não se

trata de um passado único e imutável, mas de

múltiplos passados, variadas perspectivas que

podem ser igualmente válidas. Desta forma, o

arqueólogo lida directamente com a memória e

com a arquitectura, na medida em que através

dos vestígios materiais da última (na amplitude

máxima do termo) procura recuperar a primeira,

numa constante interacção entre o que resta das

sociedades pretéritas e os desígnios existenciais das

sociedades do presente.

‘(...) that Architecture is to be regarded by us with the most serious thought. We may live without her, and worship whitout her, but we cannot remember without her.’ 3

O passado é, por isso, omnipresente e permeia as

nossas relações quotidianas. Uma das formas de

evocação e até mesmo de eternização do mesmo

é a arquitectura, uma vez que os edifícios e mais

concretamente aqueles que pelo seu carácter

rememorativo e valor histórico4, funcionam como

mediadores entre o presente, o passado e o futuro,

instrumentos de salvaguarda que prolongam e

preservam a memória social das comunidades, bem

como constituem ferramentas fulcrais na organização

social das nossas experiências5. Os monumentos

assumem-se, neste sentido, como estruturas

duráveis, vestígios palpáveis de eventos passados,

marcas identitárias de uma comunidade que

transcendem o tempo da sua concepção e que, por

alguma razão, funcionam como poderosos símbolos

emotivos e evocativos. Mas toda a arquitectura,

na sua transversalidade intrínseca e pluralidade

formal, apresenta um carácter rememorativo. Ao

estruturar o nosso espaço vivencial, molda a natureza

à necessidade humana transformando a matéria

em significado6 e intervindo de maneira decisiva

na nossa relação com o meio e com os outros.

A temporalidade da arquitectura é fundamental

à preservação da memória pois constitui a

consubstanciação do passado, a sua projecção no

presente e a sua salvaguarda futura. Garante a

perpetuação e transmissão de valores culturais e

identitários, de memórias vividas, assumindo-se

1 David Lowenthal. The past is a foreign country. Cambridge: Cambridge University Press, 1985, p.XV2 Laurent Olivier. Le sombre abîme du temps. Mémoire et archéologie. Paris: Seuil, 2008 3 John Ruskin. The seven lamps of Architecture. New York: John Willey & Sons, 1849, p.1474 Aloïs Riegl. El Culto moderno a los monumentos : caracteres y origen. Madrid: Editorial Visor Distribuciones S.A., 19995 Maurice Halbwachs. The Collective Memory. New York: Harper & Row Colophon Books, 19806 Robert Pogue Harrison. The Dominion of the Dead. Chicago: University of Chicago Press, 20037 David Turnbull. “Performance and Narrative, Bodies and Movement in the Construction of Places and Objects, Spaces and Knowledges: the Case of the Maltese Megaliths”. Theory, Culture and Society vol.19, December 2002, p.125-143

75

80

a nu

Morada

Revista NU, Dep. de Arquitectura,

Faculdade de Ciências e Tecnologia,

Universidade de Coimbra, Colégio das

Artes – Largo D. Dinis 3000 Coimbra

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Arquivo digital

arquivonu.blogspot.com

Impressão

Nozzle Lda

Distribuição

Coimbra Editora

Tiragem

300 exemplares

#1 encruzilhadas#2 lugares#3 cidades#4 mecanismos #5 áreas de contaminação#6 imagem#7 desvios#8 tempo#9 sexo #10 ismos #11 tecnologias #12 onde está coimbra? #13 pecado#14 oposições#15 viagens#16 oriente#17 revolução digital#18 revistas#19 colagens#20 onde está portugal?#21 marginalidades#22 game design#23 brasil

A Revista NU surge no ano lectivo de 2001/2002, integrada no programa de

objectivos do NUDA, o Núcleo de Estudantes do Departamento de Arquitectura

da Universidade de Coimbra (DARQ-FCTUC). O primeiro número, #1

Encruzilhadas, é lançado em Maio de 2002, e a NU torna-se aí uma revista

periódica de reflexão e debate sobre temas relacionados com a arquitectura, que se

propõe essencialmente como um pretexto de discussão e como uma ferramenta de

aprendizagem para quem a faz e para quem a lê. Desde então, já foram publicados

40 números da Revista NU, assumindo-se como uma publicação de teoria e

crítica focada em temas de interesse à produção arquitectónica mas também extra-

disciplinar. Assim, aos textos de crítica produzidos pelos estudantes, acrescentam-

se inúmeras colaborações de nomes nacionais e internacionais ao longo dos anos.

Em 2003, surge o número #12 Onde está Coimbra? no âmbito de Coimbra

Capital Nacional da Cultura comissariada por Jorge Figueira. No ano seguinte, a

convite do Instituto das Artes, a Bienal Internacional de Arquitectura de Veneza

conta com a presença da NU, com o número #20 Onde está Portugal?, integrado

na representação portuguesa comissariada por Pedro Gadanho.

Em 2007, o programa Gau:di, de apoio a publicações sobre arquitectura de vários

países europeus, faz uma recolha a ser apresentada em feiras internacionais e

inclusa numa antologia e distingue a NU para representar a crítica portuguesa de

arquitectura. Em 2012, é lançado o número #40 Entrevistas – Antologia Crítica

2002-2012 em parceria com a Trienal de Arquitectura de Lisboa, como uma

reflexão sobre os temas debatidos durante os primeiros dez anos da revista.

#24 espectáculo#25 utopia#26 identidade#27 habitar #28 velocidade #29 modus operandi #30 poder#31 chão #32 ocupa #33 consumo #34 feio#35 XXL#36 sul#37 mito #38 ideia #39 matéria #40 entrevistas - antologia crítica#41 gordura #42 memória

Abril 2014

ISSN

1645-3891

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ISSN 1645-3891