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3º Encontro da Região da Norte da Sociedade Brasileira de Sociologia: Amazônia e Sociologia: fronteiras do século XXI GT 10 – Mercados Interculturais na Amazônia: Práticas, Linguagens e Identidades em Contexto. “No Ver-o-Peso tudo tem: fruta, peixe, carne... e vela de feitiço também!” Alessandro Ricardo Pinto Campos, UFPA [email protected] Manaus, 26,27 e 28 de setembro de 2012

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3º Encontro da Região da Norte da Sociedade Brasileira de Sociologia: Amazônia e Sociologia: fronteiras do século XXI

GT 10 – Mercados Interculturais na Amazônia: Práticas, Linguagens e Identidades em Contexto.

“No Ver-o-Peso tudo tem: fruta, peixe, carne... e vela de feitiço também!”

Alessandro Ricardo Pinto Campos, UFPA [email protected]

Manaus, 26,27 e 28 de setembro de 2012

No Ver-o-Peso tudo tem: fruta, peixe, carne... e vela de feitiço também!1

Alessandro Ricardo Pinto Campos2

Resumo:

Com o desenvolvimento das religiões afro-brasileiras em Belém do Pará nas últimas

décadas, vem movimentando grande quantidade de utensílios e materiais para abastecer estes

terreiros. Este estudo mostra como as casas que comercializam estes materiais estão inseridas

no Mercado mais importante da cidade, o Complexo Ver-o-Peso. Neste lugar de pujança

simbólica e cultural, entre paneiros de açaí, sacos de farinha, peixes e frutas aparecem,

também, as lojas que comercializam os artefatos da religiosidade afro-brasileira, que

requerem mercadorias diversas, objetos e bens simbólicos das mais variadas espécies, para a

realização dos rituais, onde esse consumo é necessário para expandir e atualizar sua cultura

espiritual. E é no espaço do Complexo do Ver-o-Peso que encontramos as mais antigas casas

especializadas na venda destes produtos que são utilizados nos terreiros da cidade.

Palavras-chave: Complexo do Ver-o-Peso; mercado; cultura material dos terreiros; religiosidade afro-brasileira.

1. O Mercado

O Complexo do Ver-o-Peso está situado às margens da Baía do Guajará em uma área

de 35 mil metros quadrados, sua origem data da segunda metade do século XVII. Foi

inaugurado em 21 de março de 1688, quando resolveram estabelecer um rígido controle

alfandegário na Amazônia, cobrando impostos de tudo que entrava e saia, os portugueses

criaram um posto de fiscalização e tributos - a casa do Haver-o-Peso. Uma balança e um

funcionário público mediavam as transações comerciais da época.. Este Complexo

compreende uma série de construções, entre elas o Mercado de Ferro, o Mercado da Carne, a

Praça do Relógio, a Doca, a Feira do Açaí, a Ladeira do Castelo e o Solar da Beira (edificação

de dois pavimentos construída por volta de 1780).

1 O presente artigo utiliza dados de minha monografia de conclusão de curso, Ciências Sociais UFPA, defendida em 2005. 2 Aluno do programa de pós graduação em ciências sociais em nível de mestrado com área de concentração em antropologia. UFPA.

A área do Complexo Ver-o-Peso do jeito que conhecemos hoje, foi concluída somente

em 1913 quando construída a partir do porto de Belém, para tal obra aterraram uma extensa

orla, da antiga doca (igarapé do Pirí) até a doca do Reduto. Ele é muito mais do que um

complexo arquitetônico, é considerado um lugar humanístico, havendo ainda hoje relações de

troca, esta uma característica de cidades portuárias. Este Complexo é considerado o símbolo

de Belém, é fonte de inspiração para romances, textos literários, crônicas de jornais. Também

desempenha papel de articulador de eventos, festas e construção de identidades e demarcação

de território como patrimônio cultural, provocando diferentes concepções que fazem assumir

significados peculiares, de acordo com os interesses das diferentes classes existentes na

cidade (CAMPELO, 2002).

O mercado tem uma importância, também, pela qualidade dos produtos em

contrapondo ao industrializado (um exemplo são as polpas de frutas que são feitas na hora,

“na frente do freguês”) e suas características populares ou típicas que não se resumem aos

produtos em si, se estendem as formas de relacionamento e reconhecimento do outro: a

conversa e a associação do mercado com o meio rural, com as “coisas da roça”, do campo, da

colônia, um recorte, um pedaço dessas relações pessoais e territoriais dentro da capital, da

metrópole (FILGUEIRAS, 2006). Em nenhum outro lugar da cidade isso acontece de um jeito

tão efervescente e declarado, como em um “mundo a parte da cidade”:

(...) existiria “um mundo” dentro do Mercado e a cidade “lá fora”.

Num misto de consenso e mito, o cotidiano e a dinâmica social do Mercado

são contrastados com a realidade urbana contemporânea, representado-o

como um microcosmo que reproduz, em seu espaço, valores e

sociabilidades extintos em outros lugares da cidade.(FILGUEIRAS, 2006)

Muitas mudanças ocorreram trazendo grandes transformações ao Ver-o-Peso em seu

aspecto cultural e geográfico, modificando a paisagem natural em nome do desenvolvimento

industrial e tecnológico. A exemplo da ultima reforma realizada pela Prefeitura Municipal de

Belém em 2001 e ainda continua passando com a reforma iniciada recentemente no Mercado

de Ferro.

O Ver-o-Peso ainda é passagem obrigatória para quem passa por Belém, é um

importante cartão postal e é a porta de entrada para a Amazônia. Ali, encontram-se ervas

medicinais para banhos recomendados pelas "mandingueiras3", frutas regionais dos mais

3 É como são popularmente chamadas as mulheres que trabalham nas barracas que comercializam ervas, óleos, ingüentos e outros produtos em barracas no Complexo do Ver-o-Peso.

diversos sabores, artesanatos, utilidades domésticas, carnes, peixes e temperos que abastecem

boa parte da cidade. Também se encontra algumas das casas mais antigas da cidade que

comercializam produtos de terreiros, como as velas de feitiço.

É no espaço do Complexo do Ver-o-Peso que encontramos as mais antigas casas

especializadas na venda destes produtos utilizados nos rituais dos terreiros da cidade e do

interior do Estado. E será neste lugar que nos restringiremos a catalogar as lojas que

comercializam tais produtos, mais especificamente as velas de feitiço da Umbanda.

Considerando o crescimento das religiões afro-brasileiras tem ocorrido em todo o

Brasil no decorrer dos anos, e em Belém não foi diferente, fez surgir um novo elemento no

cenário urbano, as lojas de artigos para estes cultos, que vendem uma infinidade de produtos

(Amaral, 2004).

As religiões de matriz africana requerem a presença de mercadorias diversas, objetos e

bens simbólicos das mais variadas espécies, para a realização dos rituais, onde esse consumo

é necessário para expandir e atualizar sua cultura espiritual (Oro, 1999).

Neste vai e vem de pessoas e mercadorias nos Mercados, adapta-se, incorpora-se e

resignifica-se produtos, trocando informações, abalando ou consolidando reputações

sacerdotais. Ali, não encontramos apenas mercadorias destinadas a estas religiões, mas todo

um processo complexo de divulgação e legitimação. Funcionando como uma “verdadeira

caixa de ressonância da comunidade” destas religiões (Vogel, Melo e Barros, 1993).

Justamente por isso, em todas as principais capitais brasileiras, o Mercado representa

um importantíssimo lugar para que os praticantes das religiões afro-brasileiras possam

encontrar os bens necessários para seus rituais e “obrigações”.

Nestes mercados acontecem várias trocas. Elas não são meramente econômicas, isto

é, além dos seguidores das religiões afro-brasileiras se abastecerem dos bens simbólicos tão

necessários à pratica religiosa, eles obtém informações importantes sobre a religião, terreiros

e seus rituais, relações entre seus lideres e discussão sobre ocorrência de eventos.

As fábricas dos produtos direcionados as religiões afro-brasileiras se espalham por

todo país e hoje o Brasil é um grande exportador destes produtos, principalmente para a

América Latina e Portugal. Os produtos principais são imagens de exus e pombas-giras,

pretos-velhos e caboclos, objetos em metal, livros, azeite de dendê, banhos, e, os mais

vendidos, defumadores e fluídos. Estes objetos são considerados superiores por razoes

práticas (por exemplo, os defumadores queimam até o final) e simbólicas (os importadores

atribuem aos produtos brasileiros como o de maior eficácia, por serem produzidos onde a

religião se estruturou). Este comércio vem gerando renda e divisas ao país (Oro, 1999).

Nesta relação, entre comércio e religião, podemos aplicar uma observação citada por

Ari Pedro Oro (1999), ele diz que há uma lógica para dentro do balcão e outra do balcão para

fora. A lógica do balcão pra dentro quer dizer que os produtos religiosos comercializados são

redutíveis a quantificações financeiras, e a outra lógica, a do balcão para fora é onde a

mercadoria possui um significado para aqueles que os compram, isto é, um significado regido

por outras prioridades, outros valores. Esta é a lógica do mercado, onde prevalece a

perspectiva dos vendedores e não a dos fregueses, para estes últimos obedecem a outro

sistema ordenador.

Estas lojas estão localizadas muito próximas uma das outras, o que nos leva a supor

que, de fato, se trata se um centro comercial de produtos para terreiro, elas são um total de

oito lojas (CAMPOS, 2005). São casas de muito respeito e tradição, onde cada um dos

responsáveis adquiriu um grande conhecimento a cerca dos produtos comercializados no

decorrer do tempo. Sim, assim podemos concluir, pois nenhum deles confirma fazer parte de

algum terreiro ou praticante de alguma religião de matriz africana, mesmo que haja certa

intriga interna entre eles, onde um acusa o outro de “macumbeiro”, mostrando a concorrência

acirrada como em qualquer outro ramo comercial, mas isso é outra questão.

1.2 As Lojas

O complexo do Ver-o-Peso passa por mais uma reforma. Desta vez apenas o Mercado

de Ferro - ou de Peixe - do Complexo, que fica a beira-mar, passa por restaurações (mas

nada na sua estrutura, pois é patrimônio tombado4, ela começou efetivamente em fevereiro

deste ano (a data de início na placa da reforma marca dia 01/11/2011 como mostra a figura 1).

A demora do início, segundo alguns informantes, se deu a negativa dos comerciantes

que ali trabalhavam em abandonar o prédio. Somente com a última ameaça do poder público é

que desocuparam a tão estimada construção. Eles disseram que sabiam que ”depois que a

gente sair, vai demorar pra voltar... essas obras demoram muito, nunca acabam no prazo certo.

A gente vai pra um local menor e mais “escondido”. E nossa clientela?” A data prevista pra

final das obras é dia 25 de dezembro deste ano, realmente difícil de acreditar dado o lento

andamento da obra (figuras 2,3 e 4).

4 Em 1977, todo o conjunto arquitetônico e paisagístico do Ver-o-Peso foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

Neste Mercado de Ferro, antes da referida reforma começar, encontravam-se quatro

lojas: a casa “Iemanjá” que ocupa a loja 15, a casa “Rompe-Mato” na loja 19, a casa “A

Milagrosa” na loja 20 e a loja “Toiá Jarina” na loja 22. Destas, apenas a loja “Toiá Jarina”

permanece no Mercado de Ferro, pois a obra da reforma acontecerá em dois momentos, onde

apenas uma primeira metade será reformada de imediato e posteriormente a outra metade,

ainda sem previsão de acontecer. As outras lojas foram remanejadas temporariamente para o

prédio “Solar da Beira”, em frente ao Mercado de Ferro (figura 11).

O Sr. Valdemir é o proprietário da loja “Iemanjá”, ele afirma que já está “no ramo” há

quase 40 anos. Não reclama do “movimento” e diz que possui uma grande clientela

acumulada no decorrer dos anos.

A loja “Rompe-Mato”, do Sr. Reginaldo, ocupou um importante referencial na venda

destes produtos no complexo, mas, conforme havia prenunciado anos atrás no inicio de minha

pesquisa: “... em breve estarei mudando minha área para a venda de descartáveis... sacos,

sacolas, essas coisas”, mudou de ramo de atividade, permanecendo no mesmo endereço.

Antes do inicio da venda de produtos religiosos, ele disse que era um simples mercadinho e

trabalhava com produtos alimentícios, mas com o tempo viu que era um bom negócio a venda

de velas e outros produtos relacionados religiosidade afro-brasileira. Mas hoje já não trabalha

com esses produtos, implementou também serviços como “jogo do bicho”, venda de água

mineral e recarga de telefones celulares. Mesmo assim, nos parece relevante mante-lo em

nossa pesquisa.

A loja “A milagrosa” é considerada a mais antiga do Ver-o-Peso, ela foi fundada há

mais de 40 anos e há 37 anos comercializa produtos para a Umbanda (antes era um bazar

chamado “Bazar Fantasia”). O responsável pela loja é o Sr. Colombiano, figura muito

conhecida do meio afro-religioso, é sempre a ele quem a imprensa da cidade recorre quando

precisa de alguma informação acerca do comércio destes materiais, saindo inclusive algumas

vezes em jornais escritos.

A casa “Toiá Jarina” está no ramo há 32 anos, segundo seu proprietário Sr. Ângelo

Barleta e sempre foi comercializado ali produtos para Umbanda e outras religiões de matriz

africana. Esta também é uma casa de referência tanto para a clientela como para os

comerciantes da área.

Chegando ao Mercado de Carne, tínhamos mais duas lojas, eram elas: a casa “Pena

Verde” e uma ‘filial’ da loja “Toiá Jarina”, hoje já desativada. . A filial da loja “Toiá Jarina”

ocupava os boxes 81 e 82 do Mercado de Carne, ficou ali por 14 anos, “com o passar do

tempo, houve necessidade de abrirmos outra loja, aqui mesmo no Ver-o-Peso, e aqui

estamos”, disse um informante em 2004.

A loja “Pena Verde” ocupa o Box 63, é de propriedade de D. Suely, já funciona

naquele lugar há mais de 40 anos, sua proprietária é uma profunda conhecedora dos artigos

que vende, inclusive a respeito das velas. Ela foi uma importante informante do decorrer

dessa pesquisa, principalmente quanto aos usos e especificidades de cada vela.

Saindo do Mercado de Carne, mas sem sair da área do Complexo do Ver-o-Peso

encontra-se a loja “Ponto do Preto-Velho”, localizada na Avenida sete de setembro n°202

(entre as travessas 13 de maio e Manoel Barata) de propriedade do Sr. Joaquim Pino. Esta

casa já funciona há mais de 45 anos comercializando os mais variados produtos utilizados nos

rituais das religiões afro-brasileiras, é portanto a segunda casa mais antiga da área e, sem

dúvida, de muito prestígio e respeito por toda comunidade.

Mais uma loja, esta se encontra na Avenida 15 de novembro, n°34 e se chama “Casa

dos Milagres”. Esta casa está estabelecida neste endereço há mais de 35 anos, mas está sob

responsabilidade de Maria da Conceição, atual proprietária, há 12 anos desde que seu marido5

faleceu.

Todas essas lojas fazem parte de uma espécie de corredor da cultura material dos

terreiros. São casas de tradição e respeito. Apesar de outros pontos da cidade possuírem lojas

que comercializam especificamente produtos destas religiões, é apenas no Complexo do Ver-

o-Peso que elas se encontram assim, aglomeradas, justapostas e organizadas e são, também,

as mais antigas de toda a cidade. Numa ordem estabelecida pelo tempo, pelo respeito e pela

tradição.

As velas de feitiço da Umbanda ocupam um lugar importante dentre os produtos

comercializados pelas lojas especializadas que ocupam o Complexo Ver-o-Peso. Durante

todo o tempo da pesquisa, enquanto nos encontrávamos dentro das lojas e em suas

imediações, uma grande quantidade de velas de feitiço sempre era pedida e negociada,

confirmando sua larga utilização nos terreiros da cidade. Todos os informantes disseram que

não há uma ou outra vela que seja mais procurada, o que há na verdade são os “tipos” de

velas que mais “saem”, estas seriam as velas especiais para o relacionamento amoroso (vai-e-

volta, chora-a-meus-pés, vira-pensamento, união, amantes, busca-longe, chega-te-a-mim,

etc.) e para os negócios (tomba-tudo, chave, castelo, mão-aberta, chama-dinheiro, abre-

caminho, espada, etc.), mas há também, segundo eles, muita saída daquelas usadas para o

5 Este era irmão do Sr. Ângelo Barleta que é proprietário da loja “Toiá Jarina”.

“mal”, para “derrubar os outros” (espoca-fora, chave, vela dos exus, etc.). Nenhuma das lojas

fabrica as velas e todas possuem os mesmos fornecedores, que podem ser artesanais ou “de

fundo de quintal” ou fábricas de médio porte como Fábrica de Velas Nazaré e Fábrica de

Velas São João.

2. As Velas

Apesar de não ser o foco central desse artigo - a análise de escolha e uso já foi tratado

em outra ocasião, considero necessário tratar da questão das velas de feitiço neste artigo.

Estas velas são muito importantes para a Umbanda, ocupam um lugar de destaque nesta

religião. Não foi encontrado, em ocasião alguma durante a pesquisa, uma só mãe ou pai-de-

santo que não as usasse ou indicasse largamente em seu dia a dia. Acontece que ocorre um

sistema de trocas entre divindades e fiéis, onde as oferendas, no caso as velas, constituem um

eixo central da relação com o sagrado, um sistema que funciona no princípio da troca com o

“santo” (CAMPOS, 2006). É o que Mauss (1974) chama de dádiva. O devoto age no sentido

de homenagear a entidade oferecendo-lhe velas especiais para que este em retribuição garanta

o pedido que foi feito, caracterizando a aliança.

O uso destas velas é muito variado e de certa forma complexo, pois seu uso é indicado

para casos específicos, variando em sua forma, sua cor e na frase que é escrita ou falada

diferenciando de caso para caso, de problema para problema. São dessas peculiaridades que

trataremos neste capítulo.

2.2 Escolhendo as velas

Não há velas especiais para este ou aquele “guia” (salvo algumas raras exceções,

como as velas dos Exus, pomba-gira e Iemanjá), a escolha de uma vela especial é determinada

por algumas especificidades:

1. Cada pai ou mãe-de-santo tem seus próprios “guias” e são estes que irão

aconselhar o uso das velas, pois são eles, os “guias”, que têm suas velas,

digamos, “favoritas”. São profundos conhecedores do uso de cada uma

delas;

2. Dependendo do problema ou desejo da pessoa que o procura (amor, doença,

feitura de feitiços malignos ou desmanche destes, etc.) é que os “guias” irão

indicar uma vela especial para cada situação;

3. Uma vez escolhida a vela específica, tem-se agora que determinar as suas

cores. A escolha das cores das velas também varia muito, mas podemos

afirmar que ela segue três principais parâmetros: o “povo” 6 que será

requisitado para resolver o problema ou que será homenageado, a gravidade

ou pressa na resolução do problema e o problema em si. Na tentativa de

melhor ilustrar este aspecto, montamos uma tabela, baseada nas

informações dos informantes:

Tabela 1: A relação das cores das velas com a utilidade e “povo” solicitado.

“Povo” que será requisitado ou homenageado

Cor da vela

Povo da Mata Verde Povo do Mar Azul ou branco Povo da Rua Vermelho, preto, lilás ou amarelo.

Gravidade ou pressa na resolução do problema

Cor da vela

Desespero Amarela Urgente Vermelha Quase resolvido Branco ou azul

Tipo de problema Cor da vela Saúde Branca, verde ou vermelha. Amoroso Rósea, lilás ou branca Feitura de feitiço “maligno”. Preta Desmanche de feitiço “maligno” Branca

Fonte: CAMPOS, 2005.

2.2. Os usos das velas de feitiço – uma análise preliminar.

Escolhida a vela e sua cor pelo “guia”, veremos agora como ela é utilizada. Cada vela

possui uma frase que é escrita nela mesma, momentos antes de ser acesa. Esta é uma marca

que caracteriza cada uma delas, pois a grande maioria das velas possui uma frase especial que

é escrita, falada ou escrita e falada ao mesmo tempo. Caso a vela seja usada para fazer um

6 Neste caso, o “povo” que será escolhido varia de terreiro para terreiro, pois cada um possui seus “guias” específicos, como já foi dito anteriormente.

feitiço “maligno”, a frase é escrita com um punhal, mas se ela for usada com outra finalidade,

a frase será escrita com uma caneta comum7.

Há ainda outro ponto importante neste processo de escrita, que podemos chamar de

individualização da vela8, que se não for feito com atenção, corre-se o risco do trabalho não

dar certo e talvez ocorra o contrário do desejado. Estas frases, ao serem escritas, devem seguir

uma direção, um sentido (da base para a extremidade ou da extremidade para a base) que será

determinado pela intenção pedido, conforme é mostrado no quadro abaixo:

Quando o trabalho é feito com o

intuito de “ir buscar”, trazer de

volta algo, alguém ou de proteção.

Quando o trabalho é para

“desmanchar”, “levar embora”

ou é um feitiço para o “mal”.

Da base para a extremidade

Da extremidade para a base

As velas de feitiço são usadas frequentemente em conjunto, isto é, várias ao mesmo

tempo, pois há velas que completam e/ou reforçam umas as outras. Tomemos como exemplo,

o caso das velas “União” e “Desunião, quando alguém procura um terreiro com a intenção de

“agarrar” a pessoa amada, mas esta está comprometida com outro (a), usa-se então primeiro a

vela “desunião” para separar-lo (a) do (a) rival) e a vela “união” agora pra juntar-se a ele (a).

Ou quando é feito um trabalho maligno para uma pessoa, neste caso, usa-se a vela “Vence

demanda” para derrubar o feitiço e ao mesmo tempo para que este volte para quem o fez, já a

vela “Força”, é usada para dar força espiritual durante o processo de cura e a vela “Tranca-

rua” para pedir ajuda a este Exu. Todas as velas são usadas ao mesmo tempo, no mesmo

trabalho. 7 Não há necessidade de ficar escrita a frase com a tinta da caneta (o que seria muito difícil), o importante é que fique a marca das letras na vela, de forma visível. 8 Chamaremos assim, pois acreditamos que antes da escrita na vela, ela não possui “alvo”, não está endereçada a ninguém, não passando de um objeto, sem maiores utilidades. Mas a partir do momento em que as inscrições são feitas na vela, esta já possui uma “missão”, um trabalho a ser executado.

Podemos dividir as velas de feitiço em seis grandes grupos, segundo seu uso:

• Para fim Amoroso;

• Para Oferenda ou Agradecimento;

• Para Feitiço Maligno ou anulação deste;

• Para fins Monetários;

• Para Proteção;

• Para Cura ou Saúde.

Mas há velas que passeiam livremente por vários destes grupos, servindo para várias

situações. O que determinaria a função específica neste caso, seria a cor. Tomemos por

exemplo a vela “Quebra barreira”, ela se enquadra nos grupos das velas especiais para a

anulação de feitiços malignos e no grupo das para a saúde.

Cura de doenças, anulação de feitiços, saldo de dívidas, pressa para casar, derrubar um

inimigo, garantir um bom negócio, essas são algumas das utilidades das velas de feitiço da

Umbanda largamente utilizadas nos terreiros da cidade. Estas velas são reflexos das mazelas e

desejos das pessoas, onde cada uma de suas aspirações, medos e frustrações são

correspondentes a uma vela.

Albuquerque (2001), em seu trabalho sobre “simpatias” populares, mostra que os

pedidos feitos pelas pessoas através das “simpatias” não tem mudado muito com o passar dos

anos, mantendo-se constantes assim como o uso e nome das velas de feitiço9. Há ainda um

outro ponto importante, é muito interessante notar neste trabalho uma tabela mostra como

fazer as “simpatias” e o uso de cada uma delas, onde podemos observar claramente que para

cada “simpatia” há uma ou mais velas correspondente. Podemos afirmar com isso que os

desejos das pessoas são os mesmos, o que varia é a forma de como se tenta realizá-los.

As velas estão carregadas de significados atribuídos pelos praticantes e freqüentadores

de terreiros de umbanda. Sentimentos se misturam, se fundem: medo, respeito e fé. Por várias

vezes durante esta pesquisa, ao perguntar por uma ou outra vela usada para feitiços malignos

como a vela “Espoca-fora” ou a vela “Caixão”, alguém sempre esboçava desconforto e

apreensão somente de ouvir o nome delas, tamanho a carga de significado que esta representa

e simboliza. Ficando claro que não são as propriedades intrínsecas aos símbolos que lhes

9 Alguns informantes disseram que os nomes e usos das velas sempre foram esses.

conferem um caráter sagrado, e sim uma atribuição de extremo valor por parte dos crentes.

Um símbolo sagrado só tem valor quando compartilhado por uma comunidade que identifica

nele as propriedades do sagrado (Durkheim, 1996).

O poder simbólico, conceito caro a Bourdieu (2002) que tem suas raízes na teoria

durkheimiana, pode ser definido como o poder de construção da realidade, ou seja, do sentido

imediato do mundo social. Os símbolos tornam possível o consenso acerca do mundo social e

contribuem, desta forma, para a reprodução da ordem social. Trata-se da forma transformada

de outras formas de poder, portanto, irreconhecível, ignorada como arbitrária. Em resumo,

para Bourdieu, os instrumentos de poder simbólico são essencialmente instrumentos de

conhecimento e de construção do mundo objetivo, que se manifestam através dos mais

diversos meios de comunicação (língua, cultura, discurso, conduta, etc.).

Ninguém procura um terreiro ou uma mãe-de-santo e expõe seus problemas, dores,

mágoas e frustrações se não acreditasse firmemente que ali encontrará, ao menos assim se tem

a esperança, a solução ou alívio para tais males. Durante uma sessão umbandista em que

estivemos presente, um casal acompanhado de uma amiga, procura a mãe-de-santo para

“descarregar” e fugir do olho-gordo, pois tinham trocado de automóvel recentemente (no

caso, o homem era motorista de táxi) e queriam saber se estava indo tudo bem. Mas para a

“não surpresa” da esposa, o “guia” alerta enquanto faz um “passe” 10 no homem, que agora

está sentado em um banquinho no centro do terreiro:

“Óia, meu filho, sabe aquela tua vizinha que fica olhando pra

tu? Pois é... ela ta é apaixonada por tu. Tu sabe, né? Mas tu não

deu bola pra ela, não... aí ela fez uns feitiço pra tu, viu? Ela jogou

terra de cemitério na frente da tua casa e ascendeu umas vela pra

tu enjoar da tua muié...ascendeu (as velas) “desunião”,”vira-

pensamento”... pra tu ficar doidinho por ela, foi sim! Mas nóis

resolve isso.. né meu fio?não te preocupa não, que a mamãe

resolve isso!”

Enquanto o “guia” dizia isso, a expressão da mulher não foi de espanto, era como se

ela já desconfiasse deste “romance” e o tempo todo olhava pra a amiga e dizia, enquanto

lágrimas inundavam seus olhos: “eu não te disse?... eu te disse! Eu já desconfiava daquela

bruxa... desgraçada! Quer levar meu marido... não deixe não, minha mãezinha! Me ajude,

10 Um tipo de prática mágica de origem espírita que tem por principal finalidade expulsar os maus fluidos do corpo das pessoas, uma espécie de benção.

pelo amor de Deus!” dirigindo-se agora a mãe-de-santo. Este exemplo nos mostra claramente

o grau de confiança e medo que é atribuída a essas velas de feitiço.

Um feitiço, uma magia que tenha sido feito contra ou por alguém não tem qualquer

efeito se este não tiver a mais absoluta certeza de sua eficácia. Podemos aplicar aqui neste

processo de uso das velas de feitiço, o que diz Lévi-Strauss (2003), onde ele afirma que a

eficácia da magia consiste na crença nela, onde esta crença se apresenta em três formas que se

completam, seriam elas: primeiro, a crença do feiticeiro em suas técnicas, na sua magia; em

seguida a crença do doente ou perseguido que o feiticeiro tem o poder de curar, resolver seus

problemas e/ou amaldiçoar e, finalmente, a confiança e exigência da comunidade que forma

“uma espécie de campo de gravitação” onde se definem as estreitas relações entre feiticeiro e

os que ele enfeitiça ou pode vir a enfeitiçar.

A seguir teremos uma iconografia com uma pequena amostra de apenas dez velas de

feitiço que retirei de uma pesquisa já mencionada (CAMPOS, 2006). O total de velas

existentes ainda é desconhecido. Alguns informantes dizem se tratar de mais de duzentas, mas

uma pesquisa mais aprofundada ainda será necessária.

Dimensão: Uso: Alt.: 27,5 cm Larg.: 6 cm

É usado para vencer algum tipo de

obstáculo, desafio de difícil êxito (como uma doença, um concurso...).

Frase: “Eu (nome) hei de vencer esta

batalha... (tipo de problema)”.

Nome:

Espada

Número: 011/01

Dimensão: Uso: Alt .: 9 cm Larg.: 6 cm

Esta vela é usada para fazer um feitiço

maligno, exclusivamente. Frase: “Destruindo esta pessoa (escreve-

se o nome do algoz)”.

Nome:

Destruição

Número: 060/01

Dimensão: Uso: Alt.: 18 cm Larg.: 8 cm

Esta é uma vela muito temida e poderosa. (espoca-fora quer dizer eliminar, excluir). Ela é usada para eliminar um problema, uma doença ou um inimigo, por ser uma vela oca, é colocado dentro o nome da pessoa e vários ingredientes como espinhas e pó de cemitério.

Frase: Espocando fora todo (a) (aborrecimento, doença, feitiçaria ou o nome do inimigo)”

Nome: Espoca Fora

Número:

012/01

Dimensão: Uso: Alt.: 17 cm Larg.: 7 cm

Esta vela é usada pra fazer união de um

casal (assim como a vela União) através dos Exus, pois, há dois Exus em um só corpo.

Frase: “Assim como os Exus estão

unidos num só corpo, quero que tu (nome) se uma a mim (nome)”.

Nome:

Exu duas Cabeças

Número: 013/01

Dimensão: Uso: Alt.: 16 cm Larg.: 6 cm

Esta vela é usada para virar um

pensamento, a atenção, o olhar. Usada tanto para problemas amorosos como profissionais.

Frase: “Virando o pensamento desta

pessoa (nome) sem sossego para mim (mim)”, depois de escrito esta frase, tem-se que girar muitas vezes a vela antes de acender, para um bom resultado.

Nome:

Vira pensamento

Número: 029/01

Dimensão: Uso: Alt.: 15 cm Larg.: 5 cm

Usada especificamente para fazer

pedidos diretamente a Zé Pelintra: arrumar emprego, “amarração” entre outros.

Frase: Escreve-se diretamente pedido.

Nome:

Zé Pelintra

Número: 030/01

Dimensão: Uso: Alt.: 12 cm Larg.: 6 cm

Esta vela é usada exclusivamente para

trabalho de “amarração”. Onde um homem deseja ficar ou ter uma mulher, mas também é usada para impor frigidez a uma mulher, acrescentando outros materiais, como “pó de abuso” 11, agulhas, etc.

Frase: “Que esta mulher (nome) me

deseje”ou “que esta mulher (nome) não tenha mais desejo por (nome)”.

Nome:

Sexo - Feminino

Número: 031/01

11 É um preparado muito utilizado, que quando usado impõe ao “alvo” que este pegue um “abuso”, isto é, deixe de amar ou de querer uma determinada pessoa.

Dimensão: Uso: Alt.: 10 cm Larg.: 3 cm

Basicamente, é o mesmo uso da vela

sexo - feminino, sendo que agora quem encomenda o trabalho é uma mulher (ou homossexual)

Frase: “Que este homem (nome) me

deseje” ou “que este homem (nome) não tenha mais desejo por (nome)”.

Nome:

Sexo-Masculino

Número: 032/01

Dimensão: Uso: Alt.: 23 cm Larg.: 2 cm

Esta vela é usada para melhorar,

resolver, “desatar” a vida ou problema de uma pessoa. É também usada para “atar”, prejudicar a vida de alguém.

Frase: “desatando (ou amarrando) a

vida, o problema (nome)”.

Nome:

Desata nó

Número: 033/01

Dimensão: Uso: Alt.: Larg.:

É usada especialmente para “amarração”, garantindo a união de duas pessoas. Frase: na imagem do homem escreve-se o nome da mulher e na imagem da mulher o nome do homem, após isso, despeja-se mel, açúcar, “água -de- chama” 12, etc.

Nome:

Amantes

Número: 034/01

12 Preparado especial muito vendido em lojas de artigos para umbanda, servindo para “chamar” alguma coisa, desde clientes, dinheiro até amor.

Referências ALBUQUERQUE. E. Encantando o cotidiano através de “simpatias”. Simpósio

Internacional de História das Religiões. Recife, 2001. AMARAL, R. Notas sobre o processo transformativo da cultura material dos cultos

afro-brasileiros. São Paulo: Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. http://www.naya.org/ar/congresso2002/ponencias/rita_amaral.htm. Texto capturado na internet em 05/04/2004.

BOURDIEU, P. O Poder Simbólico. 5ª Edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. CAMPELO, M. Feira do Ver-o-Peso : cartão postal da Amazônia ou patrimonio da

humanidade ? Cadernos do Centro de Filosofia e Ciências Humanas/UFPA. Vol. 18 n°2, 2002.

CAMPELO, M. Relatório de Pesquisa II: Candomblés de Belém – O povo de santo reconta a

sua historia. Mestrado em Antropologia, Departamento de Antropologia – CFCH-UFPA e

CAPES, janeiro de 2002, 86 pg.

CAMPOS, Alessandro Ricardo. Objetos de Fé: um estudo sobre as velas de feitiço utilizadas nos rituais afro-brasileiros em Belém-Pa. Trabalho de Conclusão de Curso em Ciências Sociais, UFPA,2005. DUKHEIM, E. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins fontes, 1996. FILGUEIRAS, Beatriz Silveira Castro. Do mercado popular ao espaço de vitalidade: o mercado central de Belo Horizonte. Dissertação de Mestrado em Planejamento Urbano e Regional, UFRJ, 2006.

LÉVI-STRAUSS, C. O feiticeiro e sua magia. In: Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

MAUSS, M. Ensaio sobre a dádiva. In: Sociologia e Antropologia. Vol. II. São Paulo:

EPU/EDUSP, 1974. ORO, A. P. Axé Mercosul – As religiões Afro-Brasileiras nos países do Prata. São Paulo:

Vozes, 1999. VOGEL, A., MELLO, M. A. S. e BARROS, J. F. P. A Galinha D´angola: iniciação e

identidade na cultura afro-brasileira. Rio de Janeiro: Pallas, 1993.

Ilustrações

Figura 1- Reforma do Mercado de Ferro ou de Peixe. Figura 2- Vista lateral do prédio em Reforma, Mercado de Ferro.

Figura 3- Mercado de Ferro em reforma visto de outro ângulo.

Figura 4- Mercado de Ferro visto do segundo andar do "Solar da Beira".

Figura 5- Entrada principal do Mercado de Carne, recém reformado. Figura 6- Parte interna do Mercado de Carne.

Figura 7- um dos pequenos portos fluviais que ficam no Complexo Ver-o-Peso.

Figura 8- Visão superior das barracas de frutas no Ver-o-Peso.

Figura 9- Embarcações a espera de passageiros num porto do Ver-o-Peso.

Figura 10- Passageiros aguardando a hora de embarcar, num pequeno porto no Complexo Ver-o-Peso.

Figura 11- Prédio do "Solar da Beira". Figura 12- Piso superior do "Solar da Beira".

Figura 13- Loja "A Milagrosa" Figura 14-Loja "Iemanjá"

Figura 15- Loja "Toiá Jarina" Figura 16- Loja "Rompe-Mato" quando ainda comercializava produtos religiosos.

Figura 17- Loja "Pena Verde". Figura 18- Filial da loja "Toiá Jarina", quando ainda funcionava no Mercado de

Carne.

Figura 19- Loja "Ponto do Preto Velho" Figura 20- Loja "Casa dos Milagres"