33 pag1 - bibliotecadigital.fgv.br

16
mai 2009 working papers ESTE É UM ARTIGO EM ELABORAÇÃO. PROIBIDO CITAR SEM AUTORIZAÇÃO DO AUTOR / WORKING PAPER. PLEASE DO NOT QUOTE INVERTER O ESPELHO: O DIREITO OCIDENTAL EM NORMATIVIDADES PLURAIS José Rodrigo Rodriguez

Upload: others

Post on 11-Feb-2022

8 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

mai 2009

working papers

ESTE

É U

M A

RTI

GO

EM

ELA

BO

RA

ÇÃ

O. P

RO

IBID

O C

ITA

R S

EM A

UTO

RIZ

ÃO

DO

AU

TOR

/ W

OR

KIN

G P

AP

ER. P

LEA

SE D

O N

OT

QU

OTE

INVERTER O ESPELHO:O DIREITO OCIDENTAL EM NORMATIVIDADES PLURAIS

José Rodrigo Rodriguez

working papers

ESTE

É U

M A

RTI

GO

EM

ELA

BO

RAÇ

ÃO. P

RO

IBID

O C

ITAR

SEM

AU

TOR

IZAÇ

ÃO D

O A

UTO

R /

WO

RK

ING

PAP

ER. P

LEAS

E D

O N

OT

QU

OTE

mai 2009

INVERTER O ESPELHO:O DIREITO OCIDENTAL EM NORMATIVIDADES PLURAIS

José Rodrigo Rodriguez

COLEÇÃO DE ARTIGOS DIREITO GV (WORKING PAPERS)A Coleção de Artigos Direito GV (Working Papers) divulga textos em elaboração para debate, pois acredita que a discussão pública de produtos parciais e inacabados, ainda durante o processo de pesquisa e escrita, contribui para aumentar a qualidade do trabalho acadêmico.A discussão nesta fase cria a oportunidade para a crítica e eventual alteração da abordagem adotada, além de permitir a incorporação de dados e teorias das quais o autor não teve notícia. Considerando-se que, cada vez mais, o trabalho de pesquisa é coletivo diante da amplitude da bibliografia, da proliferação de fontes de informação e da complexidade dos temas, o debate torna-se condição necessária para a alta qualidade de um trabalho acadêmico.O desenvolvimento e a consolidação de uma rede de interlocutores nacionais e internacionais é imprescindível para evitar a repetição de fórmulas de pesquisa e o confinamento do pesquisador a apenas um conjunto de teorias e fontes. Por isso, a publicação na Internet destes trabalhos é importante para facilitar o acesso público ao trabalho da Direito GV, contribuindo para ampliar o círculo de interlocutores de nossos professores e pesquisadores.Convidamos todos os interessados a lerem os textos aqui publicados e a enviarem seus comentários aos autores. Lembramos a todos que, por se tratarem de textos inacabados, é proibido citá-los, exceto com a autorização expressa do autor.

Artigo DIREITO GV (Working Paper) 33 José Rodrigo Rodriguez

Não citar/Please do not quote

1

Inverter o espelho: o direito ocidental em normatividades plurais

José Rodrigo Rodriguez1

Envie seus comentários para [email protected].

Sumário

1 Para além da teoria da modernização e de sua crítica......................................................................1

2 Um caso-limite e os modelos de regulação.....................................................................................6

3 Qual modelo escolher? Princípio democrático e institucionalização................................................10

Referências bibliográficas................................................................................................................11

1 Para além da teoria da modernização e de sua crítica

O capítulo final de As raízes e o labirinto da América Latina de Silviano Santiago fornece um bom ponto de partida para as questões abordadas neste texto. Neste livro, Silviano lê em conjunto Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Hollanda e O Labirinto de América Latina de Octavio Paz, em suas próprias palavras, à La Derrida, e um dos bons resultados deste empreendimento desconstrucionista é identificar, a partir da obra de Paz, a oscilação de Sérgio entre a valorização e a superação das características ibéricas

de nossa modernização.2 Sérgio, segundo Silviano, mostra que a maior contribuição do

Brasil para a civilização mundial, a cordialidade, forma de socialização em que o amor que nasce de laços de sangue ocupa papel central em todos os domínios, estaria sendo ameaçada pela modernização, marcada por padrões exógenos de impessoalidade burocrática.

A defesa por Sérgio do funcionário patrimonial, solução de compromisso que visava manter o que havia de positivo tanto no amor iberista quanto nos princípios modernizantes, manifesta-se também em sua oposição ao projeto impessoal e burocratizante do Estado de Direito defendido pelos juristas de sua época e em suas críticas ao Manifesto por uma Escola Nova, que seguia os preceitos pragmatistas de

1 Doutor pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (IFCH-Unicamp). Coordenador de publicações da DIREITO GV. Editor da Revista DIREITO GV. Pesquisador do Núcleo Direito e Democracia do Cebrap. Agradeço a leitura e as sugestões de Flávia Portella Püschel, Marta Rodriguez de Assis Machado, Maíra Rocha Machado e Ana Carolina Alfinito Vieira, que são responsáveis pelas eventuais qualidades do texto e não por seus defeitos. 2 Silviano Santiago, As raízes e o labirinto da América Latina, Rio de Janeiro, Rocco, 2005, especialmente os capítulos 12 e 13.

Artigo DIREITO GV (Working Paper) 33 José Rodrigo Rodriguez

Não citar/Please do not quote

2

John Dewey. Na economia interna do livro de Silviano, este momento mostra que a oposição entre Sérgio e Octávio, em certo nível muito radical, tem pontos de contato. Raízes do Brasil não é a valorização do pensamento mitológico de raiz indígena contra o colonizador como O Labirinto da América Latina e por isso não investe na linguagem poética para mimetizar a cosmogonia das populações nativas e falar da posição dos excluídos (ou foracluídos?). A despeito disso, a solução de compromisso entre modernização e iberismo de Sérgio também não abre mão de uma posição crítica diante da modernização ao inverter, ao menos em parte, o espelho da análise para pensar o colonizador a partir do colonizado, procedimento que, muito tempo depois, será

radicalizado por Richard Morse em O Espelho de Próspero3, uma espécie de paródia dos

ensaios de interpretação do Brasil e da América Latina. Escrito por um estrangeiro, norte-americano, com o fim de divisar a face de seu país no espelho do Terceiro Mundo, o livro inverte não apenas o espelho, mas o ponto de vista, para interpretar seu país à luz do que ele poderia ter sido num mundo livre de sua hegemonia.

O tema é delicado e mereceria mais espaço. No entanto, é importante gastar ao menos algumas linhas com ele, pois o movimento de inversão do espelho é caracterizado por uma perigosa ambigüidade e o projeto deste texto não deixa, em certa medida, de tentar realiza-lo. A ambigüidade deste procedimento está no fato de, ao permitir que se veja o colonizador a partir do ponto de vista do colonizado, abrir espaço para criticar o primeiro em nome do que ele destruiu, revelando a face perversa da modernização capitalista, marcada por objetivos essencialmente mercantis. No entanto, de outro lado, tal procedimento pode abrir espaço para a defesa da manutenção de características culturais essencializadas, por exemplo, na forma de uma “nação” brasileira, alemã, norte americana etc; expediente favorito de grupos fascistas ao redor

do globo4. Nesse registro, será possível condenar a influência de potências estrangeiras

que, supostamente, ameaçariam a preservação das características da nação e, além disso, promover a repressão de indivíduos e grupos dissidentes que destoem desta “essência” brasileira, alemã etc. Desta forma, a inversão ficaria incompleta com a substituição do padrão ocidental por um anti-padrão colonizado que ocuparia seu lugar como instrumento ideológico.

É importante manter estas questões no horizonte, pois meu objetivo, inspirado no motivo da inversão do espelho, é colocar a seguinte questão: O direito ocidental pode ser um instrumento de promoção e defesa da diversidade cultural? Quais são as possibilidades e limites da gramática do Direito ocidental para figurar, reconhecer e proteger a existência e a reprodução da diversidade de culturas, inclusive culturas tradicionais, marcadas por cosmogonias de características mitológicas? Ao realizar a inversão do espelho no campo de pesquisas que tem pensado o papel do direito no

3 Richard M. Morse. O Espelho de Próspero: cultura e idéias nas Américas, São Paulo: Cia das Letras, 1988. 4 Ver Franz Neumann, The Rule of Law, Londres: Berg, 1986, livro que demonstra como os regimes fascistas substituíram o estado de direito pela idéia de nação como princípio de legitimação. No mesmo sentido, sem citar Neumann, ver Michael Mann, Fascistas, Rio de Janeiro: Record, 2008 e idem, The Dark Side of Democracy: Explaining Ethnic Cleansing, New York: Cambridge University Press, 2004.

Artigo DIREITO GV (Working Paper) 33 José Rodrigo Rodriguez

Não citar/Please do not quote

3

desenvolvimento dos diversos países, deixa-se de lado o modelo ocidental como padrão a ser seguido por todo o globo e, mais do que isso, é levantada contra ele uma grave suspeita. Trata-se de questionar sua capacidade de respeitar a diversidade de culturas e suas respectivas normatividades; capacidade esta fundamental para a legitimidade do direito ocidental no contexto de sociedades multiculturais.

A possibilidade de colocar o problema desta forma resulta da crítica ao etnocentrismo ocidental que atingiu a reflexão sobre as relações entre direito e desenvolvimento, uma crítica interna à cultura ocidental, diga-se. Quando ao direito, seu

alvo é a postulação de que o direito racional-formal5 deva ser um padrão a ser seguido

por todo o mundo. No contexto das teorias da modernização em que a diversidade cultural era um valor secundário e desimportante diante da necessidade de emancipar os povos em nome de um padrão de civilização que lhes seria superior, as questões que trato aqui não fariam sentido algum. Apenas depois das críticas ao modelo de direito ocidental e a abertura do campo do Direito e Desenvolvimento à diversidade de culturas e ordens jurídicas é que questões como as que me interessam podem ser legitimamente tratadas.

O debate sobre estes problemas data de algumas décadas. O centro do debate é a teoria da modernização e seu esquema de desenvolvimento em etapas, supostamente

capaz de ser replicado em qualquer lugar do mundo.6 Segundo este modo de pensar, há

uma fórmula geral capaz de promover o desenvolvimento de todos os países e, por isso, é importante reproduzir por todo o mundo modelos de direito padronizado à imagem do

direito ocidental. Este modo de pensar, que transforma a afinidade eletiva7 entre direito

formal-racional e capitalismo8 identificada por Max Weber, em uma relação de

causalidade simplista, tem sido objeto de críticas demolidoras9, além de desmentidos

empíricos evidentes, especialmente com as análises do capitalismo na Ásia10

, a despeito da sobrevida que ganhou no campo do debate ideológico. Quando falamos no registro da ciência, qualquer das ciências humanas, a defesa da modernização torna-se cada vez mais problemática, especialmente diante da ampliação dos horizontes epistêmicos

5 O direito ocidental é formal porque permite decidir conflitos a partir de critérios intrínsecos ao direito e não com base em valores morais, éticos, políticos, econômicos etc. É um direito racional porque remete a justificativas que transcendem o caso concreto e se baseiam em regras claramente definidas. Para uma explicação mais completa, ver, Max Weber, Economia e Sociedade, Brasília, Vol. 2, Editora da Unb, 1999 e David Trubek, “O direito e a ascensão do capitalismo”, Revista Direito GV, Vol. 3, n. 1, 2007. 6 Chantal Thomas, “Max Weber, Talcot Parsons and the Sociology of Legal Reform: A Reassessment with Implications for Law and Development”, 15 Minnesota Journal of International Law 383, 2006. 7 Max Weber, A Objetividade nas Ciências Sociais. São Paulo: Ática, 2007. 8 Idem, ob. Cit. 9 David Trubek, ob. Cit.; Laura Nader, “Promise or Plunder? A Past and Future Look at Law and Development”. In: Global Jurist, Vol. 7, Issue 2 (Frontiers), Article 1, 2007; Chantal Thomas, ob. Cit. 10 Kanishka Jayasuriya, “Franz Neumann on the Rule of Law and Capitalism: The East Asian Case”, 2(3) J. Asia Pacific Econ. 357, 1997; Albert H. Y. Chen, “Rational Law, Economic Development and the Case of China”, 8 Social & Legal Studies 97, 1999.

Artigo DIREITO GV (Working Paper) 33 José Rodrigo Rodriguez

Não citar/Please do not quote

4

ocidentais em contatos cada vez mais profundos com outras culturas.11

Mas as marcas da teoria da modernização ainda são bastante profundas na cultura ocidental, especialmente quando nos referimos a questões que envolvam a relação entre direito e desenvolvimento. A idéia de que possa existir um padrão para as instituições de todo o mundo, capaz de promover o desenvolvimento econômico, marca o debate contemporâneo sobre o tema, ao lado de posições mais críticas ao modelo ocidental, que também permanecem atuantes. Como mostra David Trubek em texto recente sobre o assunto, após os anos 70 e 80, um tempo de críticas e de ceticismo em relação a programas de ajuda aos países em desenvolvimento, assistimos a seu

ressurgimento irrefletido.12

Não iremos especular aqui sobre as razões desta sobrevivência, tema que merece em si estudo separado. Há autores que vêem neste movimento apenas e tão-somente uma ofensiva ideológica voltada a impor um modelo

de desenvolvimento neoliberal aos países da periferia.13

Outros ligam-no a mudanças no capitalismo mundial, marcado por uma fase de predomínio da lógica financeira acompanhada da desregulamentalção do mercado, entregue a sua própria lógica.14 Seja como for, não resta dúvidas de que é preciso continuar a criticar este modo de pensar que parece ter ressurgido das cinzas com toda a força sob a forma de programas

voltados para a implantação do rule of law nos países em desenvolvimento.15

A despeito da atual vivacidade desta discussão no campo do direito, especialmente nos Estados Unidos, o debate sobre a modernização e as questões a ele correlatas já está consolidado, ou seja, possui um conjunto significativo de teorias e argumentos organizados em pólos que disputam a melhor solução, sempre girando em torno das hipóteses weberianas. Podemos organizar as posições existentes em duas contraposições básicas. A primeira parte do pressuposto de que o desenvolvimento econômico é um objetivo a se perseguir para perguntar: O direito racional-formal

favorece o desenvolvimento?16

A segunda contraposição desatrela o desenvolvimento econômico do conceito de desenvolvimento ocidental e característico dos países

11 Além dos textos já citados, veja-se Stuart Hall, A identidade cultural na pós-modernidade, Rio de Janeiro: DP&A, 2003; Sérgio Costa, Dois Atlânticos: Teoria social, anti-racismo e cosmopolitismo, Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2006 e a coletânea Manuela Ribeiro Sanches (org.) Deslocalizar a Europa: Antropologia, Arte, Literatura e História na Pós-Colonialidade, Lisboa: Edições Cotovia, 2005 com textos de Edward W. Said, Hayden White, Johannes Fabian, James Clifford, Homi K. Bhabha, Nicholas Thomas, Dipesh Chakrabarty, Mary Louise Pratt e Hal Foster. 12 David M. Trubek, “The Rule of Law” in “Development Assistance: present, past and future.” In: David M. Trubek; Álvaro Santos, The new law and economic development: a critical appraisal, Cambridge: Cambridge University Press, 2006 (tradução em: José Rodrigo Rodriguez (org.), O Novo Direito e Desenvolvimento: Presente, Passado e Futuro. Textos selecionados de David M. Trubek. São Paulo: Saraiva, 2009). 13 P. ex.: João Paulo de Almeida Magalhães, Nova estratégia de Desenvolvimento para o Brasil. Um Enfoque de Longo Prazo, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005. 14 P. ex.: Lídia Goldenstein, Repensando a Dependência, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994 e Colin Leys, The Rise and Fall of Development Theory, Bloomington: Indiana University Press, 1996. 15 Álvaro Santos, “The world bank’s uses of the “rule of law” promise in economic development”, In: David M. Trubek; Álvaro Santos, ob. Cit. 16 Recentemente, Kevin E. Davis e Michael J. Trebilcock organizaram tal contraposição nos pólos “otimistas” e “céticos”. V. Kevin E. Davis e Michael J. Trebilcock, “The Relationship Between Law and Development: Optimists versus Skeptics”, American Journal of Comparative Law, Vol. 57, No. 1, 2009.

Artigo DIREITO GV (Working Paper) 33 José Rodrigo Rodriguez

Não citar/Please do not quote

5

centrais para ampliar sentido e incluir, por exemplo, a possibilidade de escolha livre de

sua forma de vida e dos rumos que ela deve tomar.17

Como conseqüência, as perguntas ligadas a esta posição são mais complexas, pois necessariamente ligadas ao contexto e a realidade concreta dos diversos povos, regiões, nações etc. Nesse registro, de um lado temos a visão padronizante do “one size fits all” e, de outro, por assim dizer, uma racionalidade de alfaiate, direcionada ao singular.

Uma advertência importante: excluo de minha reflexão liminarmente a hipótese de que preservar culturas em sua singularidade e originalidade seja um objetivo possível de se cumprir no mundo de hoje. Não tenho espaço para discutir aqui as críticas filosóficas a uma idéia essencialista de cultura, que as concebe como entes isolados e estanques, passíveis de serem descritos em si mesmos, fora de um ambiente relacional, marcado por um processo constante de construção e reconstrução motivado pelo contato e pelo

diálogo.18

Meu pressuposto é que as culturas existentes podem se encontrar e se chocar, mesmo as mais isoladas e, por este motivo, é necessário construir instituições capazes de lidar com os problemas que decorrem desta realidade.

Podem-se imaginar situações em que pode ser necessário quebrar o isolamento de uma cultura com o fim de preservá-la, por exemplo, caso algum fenômeno social ou natural ameace a sobrevivência de seus membros e seja possível salvá-los, mesmo que

isso signifique questionar alguma regra que presida seu funcionamento.19

Do mesmo modo, a formação de uma nova cultura que reivindique ser reconhecida diante da esfera pública coloca problemas de natureza semelhante. Qual o limite para a criação de regras passíveis de serem respeitadas em sua singularidade? Seria possível, por exemplo, admitir que uma cultura nova discriminasse as mulheres e adotasse práticas sexuais consideradas pelo direito ocidental como ofensivas às crianças, em nome do

pluralismo jurídico?20

Não há espaço neste texto para tratar destes problemas. Meu objetivo aqui é apenas construir um instrumental conceitual que permita pensá-los em função do valor da diversidade cultural, compreendida a cultura como um processo dinâmico de construção e reconstrução de valores e instituições. Trata-se de pensá-los, como já dito, no campo do direito ocidental em função dos limites desta gramática. Para fazê-lo, é preciso examinar a relação entre direito e diversidade cultural, tanto no nível do

17 Amartya Sen, Desenvolvimento como Liberdade, São Paulo: Cia das Letras, 2000. 18 Iris Young, Inclusion and Democracy, Oxford: Oxford University Press, 2000; Fred Inglis, Culture, Cambridge: Polity Press, 2004. 19 Roberto Cardoso de Oliveira & Luis R. Cardoso de Oliveira. “Antropologia e Moralidade. Etnicidade e as Possibilidades de uma Ética Planetária”, In: Ensaios Antropológicos sobre Moral e Ética, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1996. 20 Veja-se o caso recente de uma religião, cujos membros vivem isolados em uma fazenda no interior dos EUA, que foi acusada de tais práticas. Em razão de tal suspeita, 464 crianças foram afastadas de seus pais pelo Poder Judiciário. Ver: “Texan sect inquiry find injuries”, BBC News, 1 May, 2008, http://news.bbc.co.uk/2/hi/americas/7377873.stm, consultado em 18 de Janeiro de 2009. Uma decisão posterior devolveu as crianças a seus pais. Ver: “Court win for Texas sect parents”, BBC News, 29 May, 2008, http://news.bbc.co.uk/2/hi/americas/7426814.stm, consultado em 18 de Janeiro de 2009.

Artigo DIREITO GV (Working Paper) 33 José Rodrigo Rodriguez

Não citar/Please do not quote

6

conceito abstrato de Estado de Direito quanto no nível dos diversos modelos de regulação compatíveis com o primeiro. A hipótese que levanto neste texto, resultado preliminar de um projeto mais longo, é justamente a necessidade de realizar estas duas operações.

Pretendo mostrar que o problema não se resolve no nível abstrato de conceitos como “estado de Direito”, “rule of law” ou “democracia”, mas que requer um trabalho suplementar, de avaliação de diversas possibilidades de concretização de tais conceitos em modelos institucionais. Uma segunda hipótese, de que não vou tratar aqui, mas que apresento para completar o argumento, é que esta avaliação dos diversos modelos institucionais exige a construção de um critério para avaliar quais seriam aqueles mais ou menos adequados à defesa da diversidade, critério este que deve estar relacionado com os conceitos de democracia e estado de direito, mas que não se resolve neles. Esclareço também que não vou relacionar exaustivamente os modelos abstratos que construirei com ordenamentos jurídicos reais, tarefa necessária para demonstrar cabalmente a utilidade de minha tipologia. Meu interesse maior, neste texto, é mostrar a desvinculação entre a reflexão abstrata sobre a democracia e o estado de direito do problema dos modelos institucionais.

2 Um caso-limite e os modelos de regulação

O caso-limite de uma cultura tradicional é particularmente interessante, pois coloca problemas para qualquer concepção ocidental de estado de direito. Partindo-se do pressuposto rousseauniano de que a legitimidade das normas jurídicas depende diretamente da concordância dos afetados por elas, ou seja, que os membros do corpo social devem ser ao mesmo tempo cidadãos e súditos, é de se perguntar se é possível conceber instituições capazes de promover a adesão às normas de humanos que

praticam formas de pensamento radicalmente diferentes.21

O radicalmente da frase anterior deve ser bem compreendido, afinal, pensadores como Lévi-Strauss e Viveiros de Castro têm demonstrado a complexidade do, por assim dizer, pensamento selvagem, e suas semelhanças com o que se pode denominar, na

falta de termo melhor, de pensamento ocidental.22

Não cabe aqui negar a possibilidade de encontrar um terreno comum em que a comunicação entre grupos humanos heterogêneos acorra e, como conseqüência, que esta experiência seja institucionalizada de forma não violenta e participativa. Apesar da complexidade deste problema, vou

21 Rousseau não acreditava em modelos representativos em que os indivíduos alienassem sua soberania a terceiros, portanto, seu modelo de sociedade não seria compatível com a reflexão que farei adiante. A atualização do modelo rousseauniano foi realizada por Jürgen Habermas, Direito e Democracia: entre facticidade e validade, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1991, a partir de sua reelaboração kantiana. 22 Claude Lévi-Strauss, O Pensamento Selvagem, Campinas: Papirus, 1990. Eduardo Viveiros de Castro, A Inconstância da Alma Selvagem, São Paulo: Cossac Naif, 2002.

Artigo DIREITO GV (Working Paper) 33 José Rodrigo Rodriguez

Não citar/Please do not quote

7

tomar esta possibilidade como um pressuposto.23

A questão aqui é outra e, talvez, mais difícil de perceber e delinear. O problema é: diante da necessidade de resolver conflitos por meio das instituições jurídicas ocidentais é possível conceber desenhos institucionais capazes de manter o respeito à diversidade cultural?24

O problema abstrato da possibilidade da institucionalização não violenta e participativa ao qual se liga mais diretamente a capacidade, também em abstrato, de compreensão mútua entre os seres humanos, não se confunde e não resolve, em absoluto, a questão da construção de regras e procedimentos jurídicos capazes de resolver conflitos concretos sob o imperativo dos princípios do Estado de Direito, capazes de respeitar a diversidade de culturas. É importante separar com clareza as duas questões para que seja possível seguir a análise. Para tanto, parece útil construir artificialmente um exemplo dos problemas que o direito tem que enfrentar nesse nível, o da decisão inescapável de conflitos apresentados ao aparelho jurisdicional, sempre sujeita a prazos limitados. Em seguida, construiremos, também artificialmente, alguns modelos de regulação que permitiriam dar conta do exemplo que construímos; o que nos permitirá evidenciar como as duas questões a que nos referimos situam-se em planos diversos. O argumento aqui é que a resposta à primeira pergunta não resolve os problemas relacionados à segunda. De um modelo abstrato de democracia não decorre uma conformação institucional específica, ao contrário, há sempre várias possibilidades de desenho institucional, possibilidade não são equivalentes seja lá qual valor seja tomado como referência para a análise.

Dito isto, passemos ao exemplo. Imagine-se que seja apresentado o problema seguinte a uma autoridade decisória qualquer: é válido um contrato celebrado entre um humano representante de uma cultura tradicional e um empresário ocidental do ramo farmacêutico por meio do qual foi trocado o conhecimento sobre ervas de valor medicinal por ferramentas como facas e arados, úteis para as atividades de caça e agricultura realizadas pelo primeiro? Sem levar em conta as regras atualmente presentes no direito brasileiro ou em qualquer outro ordenamento jurídico, pode-se imaginar diversas soluções para este problema. Cada uma delas terá como pressuposto uma determinada visão da relação entre as duas culturas e estará baseada em modelos institucionais diferentes; a maioria dele compatível com o pressuposto rousseauniando citado acima. Passemos a elas.

A primeira solução considera o representante da cultura tradicional como incapaz de compreender o significado da categoria contrato. Por conseguinte, a contratação em concreto não produziria efeitos. Nesta hipótese, haveria uma regra que afirmaria, por exemplo: “Os silvícolas são considerados incapazes”, portanto, uma das partes do contrato em exame não teria sido capaz de emitir sua vontade de forma juridicamente

23 Para este nível de análise é importante consultar: Charles Taylor & Amy Gutmann (org.), Multiculturalism, Princeton: Princeton University Press, 1994. 24 Esclareço que os modelos apresentados a seguir são uma primeira tentativa de organizar a discussão institucional sobre o tema e que se referem à configuração geral da legislação sobre diversidade sem descer aos detalhes de todos os institutos envolvidos na regulação da questão.

Artigo DIREITO GV (Working Paper) 33 José Rodrigo Rodriguez

Não citar/Please do not quote

8

relevante, sem prejuízo de seus direitos fundamentais. Este modelo pode ter duas variantes. Pode-se considerar que este o representante da cultura tradicional seja essencialmente incapaz de compreender o significado daquela transação. Nesse caso, ele seria incapaz de conviver com esta cultura e deveria ser isolado dela, seja em um estabelecimento destinado para este fim, seja nos limites de seu meio social.

Não é possível afastar esta variante, a que chamarei de modelo de exclusão, do elenco de possibilidades à disposição de uma sociedade democrática, afinal, este é o tratamento que dispensamos, por exemplo, aos doentes mentais graves. A despeito de manter o incapaz isolado ou sob o poder de alguém ele tem direitos que devem ser respeitados: é dever de todos respeitar seu direito à vida e dever dos responsáveis por ele (particulares ou estado) de manter seu bem estar material, sempre sob vigilância e poder de alguém. Claro, pode-se afastar essa possibilidade por meio de argumentos científicos capazes de mostrar que representantes de culturas tradicionais são capazes de compreender nossa cultura e os doentes mentais graves não. No entanto, nada garante que estes argumentos saiam vencedores no debate público e afastem, de fato, a criação de um modelo de exclusão. Mais ainda, não parece razoável classificar como antidemocrático um estado que considere incapazes os representantes de culturas tradicionais, desde que sejam respeitados seus direitos fundamentais.

A outra variante desta solução considera o indivíduo oriundo de uma cultura tradicional como dotado de potencial para compreender, ainda que no futuro, as regras de uma cultura diferente da sua, ou seja, considera que ele poderá fazer parte do universo cultural em que a suposta contratação é avaliada. O indivíduo pode ser incapaz em determinado momento e deixar de sê-lo no futuro. Além disso, sua incapacidade comporta graus que variam em função do desenvolvimento de seu potencial. Assim, para julgar casos concretos, será preciso considerar o indivíduo implicado em sua singularidade; não mais como o representante padronizado de uma cultura qualquer. Será necessário, portanto, avaliar, por meio de uma perícia ou outro meio admitido pelo direito, o desenvolvimento de suas capacidades no momento da prática do ato. Por isso mesmo, o indivíduo incapaz pode ser deixado solto, ou ficar isolado durante o tempo de aprendizado, sempre sob a tutela temporária de algum responsável por integrá-lo à cultura ocidental.

Denomino esta hipótese de regulação como modelo de tutela que pode ter duas variantes, uma integracionista e outra não-integracionista. Para a primeira, integrar os incapazes será um dever da sociedade e, nesse registro, as regras da cultura tradicional serão vistas como primitivas, sendo necessário erradica-las para desenvolver plenamente as capacidades dos indivíduos. Para a segunda variante, a despeito da possibilidade real de integrar os membros de culturas tradicionais, este não é um objetivo a ser perseguido no nível das políticas públicas. Note-se que também neste modelo temos garantidos os direitos fundamentais dos representantes de culturas tradicionais.

Um terceiro modelo, que chamarei de modelo da regra especial, ao contrário, permite que uma cultura alternativa funcione conforme suas próprias regras ao lado da

Artigo DIREITO GV (Working Paper) 33 José Rodrigo Rodriguez

Não citar/Please do not quote

9

cultura ocidental desde que as mesmas sejam vistas como especiais em relação às normas estatais, gerais e abstratas.25 Evidentemente, nesta hipótese, será preciso estabelecer regras para os casos em que houver conflitos de normas da cultura tradicional com normas da cultura ocidental, especialmente se houver conflitos que envolvam representantes de duas culturas diferentes. Ficou famoso no Brasil o caso de Paulinho Paiakan, índio caiapó acusado de estupro, que se declarou inocente, pois seu comportamento não seria punível pelas regras de sua tribo. No caso concreto que estamos discutindo, a autoridade decisória deveria examinar as regras das duas culturas antes de decidir se o contrato tem validade, verificando se há incompatibilidades entre as regras especiais e as regras gerais do direito ocidental. Tradicionalmente, o direito ocidental faz prevalecer normas especiais sobre norma gerais, mas trata-se de um princípio interpretativo flexível, sem valor absoluto. Seja como for, é essencial para este modelo a existência de regras para solucionar este tipo de conflito.

Finalmente, o quarto modelo, que denomino modelo federativo, vê a cultura tradicional com uma nação dotada de soberania, ou seja, um ente capaz de gerar ordenamento jurídico próprio, como o qual é preciso estabelecer relações como se estabelecem relações entre países.26 Este modelo depende do reconhecimento, pela cultura ocidental, de um centro de poder independente, muito provavelmente, no interior de seu território; um centro de produção normativa com ampla competência e grande autonomia para gerir seus interesses. Para a decisão do caso que montamos, o representante da cultura tradicional será tratado como estrangeiro e ao contrato serão aplicáveis, entre outras, as regras de direito internacional privado.

Esta construção conceitual tentativa, que ainda precisa se testada à luz dos

modelos institucionais efetivamente existentes ao redor do globo27

, pressupõe a

25 Neste modelo, haveria o reconhecimento do que Kymlicka chama de “group-differentiated rights”, direitos especiais garantidos a certos grupos culturais, v. Will Kymlicka, Multicultural Citizenship. Oxford: Clarendon Press, 1996, p. 26. Mais especificamente, haveria o reconhecimento dos assim denominados “polyethnic rights”, direitos cujo objetivo é: “to help ethnic groups and religious minorities express their cultural particularity and pride without it hampering their success in the economic and political institutions of the dominant society.” Idem, ibidem, p. 31. 26 Neste modelo estariam garantidos todos os “polyethnic rights” segundo Kymlicka, a saber, “self-govenment rights”, “polyethinic rights” e “special representation rights”, v. idem, ibidem, pp.26 a 33. 27 Para uma descrição das características gerais da regulação brasileira sobre o tema ver: Carlos Frederico Marés de Souza Filho, O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito, Curitiba: Juruá, 2006; Antonio Armando Ulian do Lago Albuquerque, Multiculturalismo e Direito à Autodeterminação dos Povos Indígenas, Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008. Para uma discussão mais específica de todos os institutos e temas de que tratam as leis brasileiras sobre índios ver: Luiz Fernando Villares, Direito e Povos Indígenas, Curitiba: Juruá, 2009. Grosso modo, o Brasil começou por adotar um modelo de tutela integracionista e evoluiu para um modelo de tutela não-integracionista, até chegar, com a Constituição de 1988, a um modelo de regra especial combinado com o modelo de tutela não integracionista. Claro, é importante notar a diferença entre a letra da lei e a ação dos agentes públicos, que promoveram um amplo extermínio das nações indígenas, especialmente durante o império. Ver: David Treece, Exilados, Aliados, Rebeldes. O movimento indianista, a política indigenista e o estado-nação imperial, São Paulo: Nankin/Edusp, 2008. Um modelo que se aproxima do modelo federativo é o adotado nos EUA e na Colômbia que vêm as diversas etnias indígenas como nações. V: Christian W. MacMillen, Making of Indian Law. The Hualapai land case and the birth of Etnohistory, New Haven: Yale University Press, 2007; Rachel Sieder (ed.). Multiculturalism in Latin America: indigenous rights, diversity and democracy. Londres: Palgrave/ILAS, 2002; Cletus Gregor Barié. Pueblos indígenas y derechos constitucionales en América Latina: un panorama. Bolívia: Comisión Nacional para el Desarrollo

Artigo DIREITO GV (Working Paper) 33 José Rodrigo Rodriguez

Não citar/Please do not quote

10

possibilidade de combinação de modelos, no que eles forem compatíveis. Pode haver, por exemplo, um modelo que combine características, por exemplo, de tutela e regra especial e de tutela e federação: no último caso, será preciso haver uma regra que decida qual dos ordenamentos será competente para regular a capacidade dos envolvidos em conflitos. De qualquer maneira, meu objetivo com esta tipologia é apenas ressaltar a diversidade de possibilidade de regulação do problema que nos interessa; cada uma delas com implicações diversas sobre o respeito à diversidade cultural.

Numa análise preliminar, os modelos da exclusão e da tutela, tomados em sua forma pura, implicam na desvalorização da diversidade e, de outra parte, os modelos da regra especial e o federativo abrem espaço para normatividades plurais em convivência com as regras do direito ocidental. Importante dizer que nenhum desses modelos, em si, garantiria o respeito à diversidade cultural, pois, mesmo num modelo federativo, seria possível imaginar que regras nacionais proibissem determinadas práticas a membros da federação. Quando dizemos que o modelo da regra especial e o modelo federativo favorecem a diversidade, estamos nos referindo apenas a um potencial. Em primeiro lugar, será importante examinar detalhadamente a tutela do problema nos pelos diversos institutos jurídicos específicos e a atuação do Poder Judiciário para verificar sua capacidade de concretizar os grandes princípios que orientam a regulação.

3 Qual modelo escolher? Princípio democrático e institucionalização

Neste ponto da análise, podemos abordar diretamente o problema que esbocei acima: A opção por qualquer um destes modelos pode ser afastada a priori pelo princípio democrático rousseauniano? À luz do valor da diversidade, a escolha parece ser mais ou menos simples. Do mesmo modo, a lei positiva pode resolver, ainda que aparentemente, o problema: basta criar uma regra que afaste determinadas soluções e adote outra, ponto final. Mas ponto final até quando? Sabemos, as leis podem mudar a qualquer momento. Ademais, se ficarmos apenas com o critério do direito positivo, não termos elementos para criticar nenhuma solução institucional, desde que ela tenha sido positivada. Pois nada impede que as instâncias democráticas existentes venham a optar, por exemplo, pelo modelo da exclusão ou pelo modelo da tutela.

Como já dito, o modelo da exclusão encontra paralelo no tratamento dos doentes mentais graves que não têm direito de votar ou de serem votados e, portanto, não participam da sociedade na condição de cidadãos, a despeito de terem seus direitos defendidos e respeitados em função de sua condição de seres humanos. O modelo da tutela, da mesma forma, encontra paralelo no tratamento de doentes mentais e crianças e também

de los Pueblos Indígenas/Gobierno de México/Abya Yala/Banco Mundial, 2003; COMISSÃO ECONÔMICA PARA A AMÉRICA LATINA. CEPAL. Pueblos indígenas y afrodescendientes de América Latina y el Caribe: información sociodemográfica para políticas y programas. Santiago: ONU, 2006. A Declaração de Direitos dos Povos Indígenas da ONU, assinada em 2007, aponta na direção deste modelo. Ela garante o direito à autonomia e ao autogoverno dos povos em questões relacionadas com seus assuntos internos e locais, destacando o direito a dispor dos meios para financiar suas funções autônomas. Além disso, ela afirma o direito destas populações a decidir, junto com o Estado, sobre os recursos naturais nos seus territórios, e sobre o exercício da justiça comunitária, de acordo com seus valores e tradições ancestrais, legitimando assim suas autoridades locais.

Artigo DIREITO GV (Working Paper) 33 José Rodrigo Rodriguez

Não citar/Please do not quote

11

mantém a preocupação com a proteção e com o aperfeiçoamento dos indivíduos, visto aqui como a possibilidade e o dever de integrá-los na cultura ocidental. O modelo da regra especial e modelo federativo abandonam a crença na inferioridade da cultura tradicional e, independentemente disso, também são compatíveis com o princípio rousseauniano. Fica claro que, sem aduzir a este debate um critério adicional que permita estabelecer distinções e preferências entre os quatro modelos que delineamos acima, a teoria do direito permanecerá meramente descritiva e a reflexão filosófica, no nível abstrato da democracia como modelo, inútil diante de escolhas institucionais concretas.

Mas que critério seria este? A matéria deve ser deixada à pura disputa política; ou seja, a decisão tomada pelos dos cidadãos, movimentos sociais e outros entes deve ficar acima da crítica? Ou trata-se de uma decisão ligada a imperativos de adequação e eficiência: aquele modelo que produzir melhores efeitos ou que funcionar melhor deve ser adotado? Mas como avaliar estes supostos efeitos? Com base em que critério? De que ponto de vista, como desenvolver um instrumental teórico para avaliar qual o

melhor modelo institucional para regular a diversidade cultural?28

Não vou realizar esta tarefa aqui. Meu objetivo foi apenas o de apresentar a questão sem resolve-la. Em trabalho posterior, pretendo examinar os diversos conceitos de diversidade em circulação no debate filosófico a partir dos modelos de regulação que montei aqui. Mesmo sem ter realizado este trabalho, é possível afirmar, tentativamente, que parece difícil resolver esta questão sem fazer referência a uma concepção normativa de diversidade cultural e de sua relação com o estado de direito e com a democracia. Sem partir de um conceito de diversidade, o estudioso se limitará a reconstruir o direito positivo e as demandas sociais sem poder avaliá-las. De outro lado, como fugir da mera opinião, de posições meramente subjetivas? Outro problema, relacionado com esse, é imaginar novos modelos que podem ser capazes de realizar de forma mais efetiva o ideal do respeito à diversidade cultural. Para esta tarefa propositiva, também seria necessário um conceito normativo de diversidade cultural que permitisse fazer a mediação entre a teoria de democracia e os modelos institucionais,

além de uma teoria da imaginação instituinte.29

Referências bibliográficas

ALBUQUERQUE, Antonio Armando Ulian do Lago. Multiculturalismo e direito à autodeterminação dos povos indígenas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008.

BARIÉ, Cletus Gregor. Pueblos indígenas y derechos constitucionales en América Latina: un panorama. Bolívia: Comisión Nacional para el Desarrollo de los Pueblos Indígenas/Gobierno de México/Abya Yala/Banco Mundial, 2003.

28 Trato da relação entre modelos institucionais e estado de direito no capítulo final e na conclusão de: José Rodrigo Rodriguez, Fuga do Direito. Um estudo sobre o direito contemporâneo a partir de Franz Neumann, São Paulo: Saraiva, 2009. 29 Cornelius Castoriadis, A Instituição Imaginária da Sociedade, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995; Roberto Mangabeira Unger, What Should Legal Analisys Become?, London: Verso 1996 e Hans Jonas, The Creativity of Action, Cambridge: Cambridge University Press, 1996.

Artigo DIREITO GV (Working Paper) 33 José Rodrigo Rodriguez

Não citar/Please do not quote

12

CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cossac Naif, 2002.

CHEN, Albert H. Y. Rational law, economic development and the case of China. Social and Legal Studies. Thousand Oaks: Sage Journals Online, v. 8, n. 1, p. 97-120, 1999.

COMISSÃO ECONÔMICA PARA A AMÉRICA LATINA. CEPAL. Pueblos indígenas y afrodescendientes de América Latina y el Caribe: información sociodemográfica para políticas y programas. Santiago: ONU, 2006

COSTA, Sérgio. Dois atlânticos: teoria social, anti-racismo e cosmopolitismo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.

COURT win for Texas sect parents. BBC News. 29 maio 2008. Disponível em: http://news.bbc.co.uk/2/hi/americas/7426814.stm. Acesso em: 18 jan 2009.

DAVIS, Kevin E.; TREBILCOCK, Michael J. The Relationship Between Law and Development: Optimists versus Skeptics. American Journal of Comparative Law, v. 57, n. 1, 2009.

GOLDENSTEIN, Lídia. Repensando a Dependência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1991.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

INGLIS, Fred. Culture. Cambridge: Polity Press, 2004.

JAYASURIYA, Kanishka. Franz Neumann on the Rule of Law and Capitalism: The East Asian Case. Journal of Asia Pacific Economy. Abingdon: Routledge ,v. 2, n. 3, p. 357, 1997.

JONAS, Hans. The Creativity of Action. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.

KYMLICKA, Will. Multicultural citizenship. Oxford: Clarendon Press, 1996.

LÉVI-STRAUSS, Claude. O Pensamento Selvagem. Campinas: Papirus, 1990.

LEYS, Colin. The Rise and Fall of Development Theory. Bloomington: Indiana University Press, 1996.

MACMILLEN, Christian W. Making of indian law: the Hualapai land case and the birth of etnohistory. New Haven: Yale University Press, 2007.

MAGALHÃES, João Paulo de Almeida. Nova estratégia de desenvolvimento para o Brasil: um enfoque de longo prazo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.

MANN, Michael. Fascistas. Rio de Janeiro: Record, 2008.

______. The Dark Side of Democracy: Explaining Ethnic Cleansing. New York: Cambridge University Press, 2004.

MORSE, Richard M.. O Espelho de Próspero: cultura e idéias nas Américas. São Paulo: Cia das Letras, 1988.

NADER, Laura. Promise or Plunder? A Past and Future Look at Law and Development. Global Jurist. Berkeley: The Berkeley Eletronic Press, v. 7, n. 2 (Frontiers), artigo 1, 2007.

Artigo DIREITO GV (Working Paper) 33 José Rodrigo Rodriguez

Não citar/Please do not quote

13

NEUMANN, Franz. The Rule of Law. Londres: Berg, 1986.

OLIVEIRA, Roberto Cardoso de; OLIVEIRA, Luis R. Cardoso de. Ensaios Antropológicos sobre Moral e Ética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996.

RODRIGUEZ, José Rodrigo (org.). O novo direito e desenvolvimento: presente, passado e futuro. Textos selecionados de David M. Trubek. São Paulo: Saraiva, 2009.

RODRIGUEZ, José Rodrigo. Fuga do direito: um estudo sobre o direito contemporâneo a partir de Franz Neumann. São Paulo: Saraiva, 2009.

SANCHES, Manuela Ribeiro (org.). Deslocalizar a Europa: antropologia, arte, literatura e história na pós-colonialidade. Lisboa: Edições Cotovia, 2005.

SANTIAGO, Silviano. As raízes e o labirinto da América Latina. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.

SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Cia das Letras, 2000.

SIEDER, Rachel (ed.). Multiculturalism in Latin America: indigenous rights, diversity and democracy. Londres: Palgrave/ILAS, 2002.

SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O renascer dos povos indígenas para o direito. Curitiba: Juruá, 2006.

TAYLOR, Charles; GUTMANN, Amy (org.). Multiculturalism. Princeton: Princeton University Press, 1994.

TEXAN sect inquiry find injuries. BBC News. 1 maio 2008. Disponível em: http://news.bbc.co.uk/2/hi/americas/7377873.stm. Acesso em: 18 jan 2009.

THOMAS, Chantal. Max Weber, Talcot Parsons and the Sociology of Legal Reform: A Reassessment with Implications for Law and Development. Minnesota Journal of International Law. Minneapolis: Minnesota Journal of Global Trade, v. 15, n. 2, p. 383-424, 2006.

TREECE, David. Exilados, aliados, rebeldes: o movimento indianista, a política indigenista e o estado-nação imperial. São Paulo: Nankin/Edusp, 2008.

TRUBEK, David M. Max Weber sobre direito e ascensão do capitalismo. Revista DIREITO GV. São Paulo: DIREITO GV, v. 3, n. 1, p. 151-186, 2007.

______; SANTOS, Álvaro. The new law and economic development: a critical appraisal. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.

WEBER, Max. Economia e Sociedade. Vol. 2. Brasília: Editora Unb,

______. A objetividade nas ciências sociais. São Paulo: Ática, 2007.

YOUNG, Iris. Inclusion and Democracy. Oxford: Oxford University Press, 2000.

UNGER, Roberto Mangabeira. What Should Legal Analisys Become? London: Verso 1996.

VILLARES, Luiz Fernando. Direito e Povos Indígenas. Curitiba: Juruá, 2009.