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MODERNIDADE , p O S - M -O D E R N I D A O E E EDUCAÇÃO EMANCIPATÓRIA MARCO ANTÔNIO DA SILIA f ; i t r >

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MODERNIDADE
, p O S - M -O D E R N I D A O E
E
MODERNIDADE
PÓS-MODERNIDADE
E
tre em Educação.
Fundação Getúlio Vargas
Rio de Janeiro
tanta vitalidade, liberdade e
tra querida. Orientação valen­
SINOPSE
A partir do debate que relaciona o moderno e o
pós-moderno, o texto trata das transformações sócio-cultura
is da atualidade e do potencial emancipatório da educação.
A concepçao emancipatória da educação perde sua
força ã medida que não se compatibiliza com as novas gera­
çoes que vivem sob o signo do consumismo, do relativismo das
idéias e costumes, da fragmentação audiovisual e da espetac~
larização cotidiana. Defendendo a "formação da cidadania"
ou a "construção da consciência crítica", as pedagogias mais
parecem gritos no deserto onde a tendência é o enfraqueci -
mento das narrativas emancipatórias, o esvaziamento das ins
tituições sociais e o afrouxamento de laços sociais.
o texto aborda o pensamento (J-F. Lyotard, J. Bau
drillard, M. Maffesoli, G. Vattimo, E. Laclau, S. Aronowitz,
P. McLaren, H. Giroux, F. Nietzsche, J. Habermas, etc) que
contribui para a redescoberta e revalorização da dimensão
emancipatória da educação, bem como para revisar a fundamen
tação filosófica e sociológica da educação.
ExposE
la pensee moderne et la post-moderne, le texte traite des
transformations socio-culturelles de l'actualité et du po­
tentiel émancipateur de l'éducation.
La conception émancipatrice de l'éducation perd
de sa force dans la mesure ou elle ne s'accorde pas avec
les nouvelles générations qui vivent sous le signe de la
consommation du superflu, du relativisme des idées et des
mreurs, de la fragmentation audio-visuelle et de la recher
che du spectaculaire dans le quotidien. En défendant la
"formation d'une citoyenneté" ou la "construction de la
conscience critique", les pédagogies ressemblent plutôt ~
a
des cris dans le désert, d'ou la tendance ã l'affaiblisse-
ment des narrations émancipatrices, l'appauvrissement des
institutions sociales et le relâchement des liens sociaux.
Enfin, le texte aborde la pensée (J7Fi Lyotard,
J. Baudrillard, M. Maffesoli, G. Vattimo, E. Laclau, S.
Aronowitz, P. McLaren, H. Giroux, F. Nietzsche, J. Haber­
mas, etc) qui contribuent ã la redécouverte et ã la revalo
risation de la dimension émancipatrice de l'éducation au­
tant qu'ã rêviser le fondement philosophique et sociologi­
que de l'éducation.
- - PARTE l:A CULTURA NO REDEMOINHO SEMIOTICO CAOTICO 12
MAL-ESTAR 15 DECOMPOSIÇÃO 25 GERAÇAO 80/90 35
P A R T E 2: UMA SOC I OLOG IA PÓS-MODERNA 52
"VIVEMOS UM MOMENTO DOS MAIS INTERESSANTES •.. " 56 O RETORNO DE DIONÍSIO E O FIM DA MODERNIDADE 64 SOCIOLOGIA DA ORGIA COTIDIANA 77 NEOTRIBALISMO 85
PARTE 3:0 PROJETO MODERNO E O ACASO TOTAL 103
DESCARTES NA FLORESTA: A CERTEZA E O ACASO 107 NIETZSCHE E A -CRISE DA MODERNIDADE 111 REAÇAO À "TEORIA SOCIAL PÓS-MODERNA" 120 A TEORIA DA AÇÃO COMUNICATIVA _ 129 HABERMAS X MAFFESOLI: O ILUMINISTA E O NIETZSCHIANO 140
PA R TE' : EDUCAÇÃO, MODERNO E PÓS-MODERNO
O FUNDAMENTO EMANCIPATÓRIO DA EDUCAÇÃO QUE ~ "EDUCAR PARA A MODERNIDADE"?
O SONHO VANGUARDISTA DA PEDAGOGIA
DESAFIO AOS EDUCADORES NIILISMO: O MAIOR DESAFIO
EDUCAR EM NOSSO TEMPO
184
INTRODUÇÃO
E FAUSTO FAWCETT
o que há de comum e incomun entre o poeta francês
e o performático carioca? Andarilhos visuais fizeram das
bancas de jornais sua biblioteca e dos fatos cotidianos sua
moradia. Cada olhar penetrando urna época: Baudelaire na Pa . ~ ~
rIS pre Torre Eiffel, Fawcett na Copacabana pos biscoito
waffer. Do anonimato das ruas, galerias e becos da cidade
grande, os dois conquistaram a fama. Para um a duração do
século, para outro o segundo do clip.
Duas mulheres marcaram especialmente as vidas des
ses cavaleiros andantes das modernidades. Cada um teve sua
louca paixão fugaz. Urna tem pernas de estátua é alta e su
til. A outra é louraça, gostosona e provocante. Arrebata-
dos pela sedução efêmera, Baudelaire e Fawcett nos contam
sua paixão. Cada narrativa desvenda ..
urna epoca e em cada
época encontramos urna modernidade.
A UMA PASSANTE 1
A rua em torno era um frenetico alarido. Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa, Uma mulher passou, com sua mão suntuosa Erguendo e sacudindo a barra" do vestido.
Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina. Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia No olhar, ceu livido onde aflora a ventania, A doçura que envolve e o prazer que assassina.
Que luz •.• e a noite após! - Efêmera beldade Cujos olhos me fazem nascer outra vez, Não mais hei de te ver senão na eternidade?
********
A UNE PASSANTE
La rue assourdissante autour de moi hurlait. Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueus~ Une femme passa, d'une main fastueuse Soulevant, balançant le feston el l'ourlet;
Agile et noble, avec sa jambe de statue. Moi, je buvais, crispe comme un extravagant, Dans son oeil, ciel livide ou germe l'ouragan, La douceur qui fascine et le plaisir qui tue.
Un ec1air .•• puis la nuit! - Fugitive beaute Dont le regard m'a fait soudainement renaitre, Ne te verrai-je plus que dans l'eternite?
Ailleurs, bien loin d'ici ~ trop tard! jamais peut-être! Car j'ignore ou tu fuis, tu ne sais ou je vais, O toi que j'eusse aimee, ô toi qui le savais!
2
lATIA FlÁVIA 2
Itália Flâvia é uma louraça Bebebu Ptovocante Uma louraça Lucilar Ptovocante Uma louraça SaIalW GostOlOna e provocante Oue só UJa calcinhas comestíwis e calcinhas bélicas Dessas com uinamentos bordados Calcinha framboesa Calcinha anti-aérea Calcinha de moranqo Calcinha Emcet h-mias FEBEM Encarnaçio do mundo-ciO Casada com um figurAo-contrawnçio Ficou !amOla por andar num cavalo branco pelas noites suburbanas Toda nua Louraça Belzebu Louraça Luciler Louraça Satan.ts Matou o figurA0 Foi pra COpacabana Robou uma joanilIha Pelo rádio da polícia ela manda o seu recado GETOUT Pelo rádio pelo rádio pelo rádio Rádio da policia ela manda o seu recado Alô policia Eu t6UJando Umhocet Calcinha Umhocet Calcinha Alô policia Eu tê UJando Umhocet Calcinha Umhocet Calcinha Meu nome é Kátia Flavia Godiva do Irajá Me escondi aqui em Copa poLiCIA Policia Bellort Roxo de Duque de Caxias policia Madureira policia Deodoro São Cristóvão Bonsucesso de Benlica da Pavuna da Tijuca de Oumlino do Catete Grajaú Policia pode vir PORQUE Meu nome é Kátia Flávia Godiva do Irajá Me escondi aqui em Copa poLiCIA Policia do Flamengo policia Botafoqo da Bana da Tijuca policia policia Alô policia Eu tõ UJando Umhocet Umhocet Alô licia EutrUJando Umhocet UmEmcet CALCINHA Louraça Belzebu Louraça Luciler Louraça Satan.ts LouraçaBelzebu Calcinha framboesa Louraça Luciler Calcinha anti-aérea Louraça Satan.ts Calcinha de morango ~raça Belzebu Calcinha Emcet Alô1lOlicia Eu t6UJando UmEmcet Calcinha UmEmcet Calcinha Calcinha bordadinha de rendinha calcinha C]8ladinha Alô policia ... Meu nome , Utia Flávia Godiva do Irajá Me eecondi aqui em Copa
3
A Passante passa e Kátia Flávia é uma colagem .
Uma sacode a barra do vestido de luto, a outra, quando não
está toda nua, mostra o bordado da calcinha. A cada moder­
nidade uma sedução. A Passante é uma imagem de mulher que
foge ao poeta perdendo-se na multidão. Kátia Flávia é uma
mulher de mil imagens que se mostra ã multidão, um delírio
semiótico, uma combinação de fragmentos da rua e da mídia.
Kátia Flávia é simulacro. Uma montagem endiabrada que mis
tura calcinha sabor framboeza com míssil Exocet; Belzebu
com Lucifer e Satanás. Uma louraça mais real que o real .
Espetacularização do real.
- diz Marshall Berman -, Baudelaire seria sem dúvida o es­
colhido".3 Um andarilho voyeur que captou em seus poemas a
aparência e o sentimento de sua época. Seus temas sao pr~
gresso, multidão, paixão, tédio, haxixe e solidão. Fala de
les com originalidade épica. A Passante é apenas uma entre
suas "Flores do Mal". Com ela expressa nostalgia de tempos
perdidos e resignação com um amor ã primeira e última vis­
ta.
A revista Playboy perguntou: "Fausto Fawcett
qual é a sua?" Fausto: "A minha é recriar a realidade
ficcionar as coisas, inventar personagens, climas, trans -
formar a realidade em espetáculo. O meu senso crítico nun­
ca passou pelo campo da reflexão ideológica. A minha tran­
sa é o efeito estético. Eu gosto de emocionar as pessoas".4
Seu universo é espetacular! Um amontoado de signos aluci -
nantes com poder infalível de animar até as tardes de do
4
mingo. Baudelaire não tinha Kátia Flávia em suas tardes de
domingo. Quando a cidade perdia seu constante movimento e
caía no torpor, a experiência do poeta era o tédio. Sentia
falta do espetáculo da multidão que lhe acalentava a soli~
dão.
5
Corno Bob Cuspe, Baudelaire ocupou seu ócio com
a "cidade de lama". Amaldiçoou o progresso e abominou a in
dústria que embrutecia a multidão de homens e mulheres no
trabalho duro e imundo das fábricas. Alguns autores consi­
deram o poeta um excelente crítico da modernidade. M. Ber­
man diz que ele "fez mais do que ninguém, no século XIX ,
para dotar seus contemporâneos de urna consciência de si
mesmos enquanto modernos. ,,6 Wal ter Benj amin, mesmo sentin
do falta de um pouco de materialismo hist6rico na inspira­
ção do poeta, torna-o corno modelo básico para seus escritos
sobre a "modernidade".7 Esses autores reconhecem em Baude­
laire um pensador da rua que n~o se perdeu na multidão. O
espetáculo da rua e da multidão nâo lh.e trouxe o esqueci­
mento de si mesmo e de sua existência. Fez do lixo de sua
época, substrato para indagaç8es que se entrelaçam ao mais
denso pensamento do seu século como Proust, Wagner, Marx
e Nietzsche.
sociedade do espetáculo estamos todos nos tornando animais
visuais.8 Há uma presença crescente da imagem e da adesão
lúdica ao simulacro. Um bombardeio massivo e aleatório de
signos a visão nunca tão solicitada a serviço da simulação
Na modernidade de Fawcett, de verdade mesmo só o
hamburguer. O pão que Proust molhava no chá lembrando-se
de tempos perdidos, hoje é bromato. As batatas que susten­
taram Marx na Biblioteca de Londres e nas portas das fábri
cas, hoje sao agrotóxico. Vivemos no conformismo e seduzi-
dos com o pao e a batata que temos. A Paris de Baudelaire
quis Torre Eiffel e se deparou com seu Bob Cuspe. A Copac~
bana de Fawcett quer biscoito waffer com tv e se encontra
em Kãtia Flávia.
aI. A derrota do pensamento parece anunciar a revanche da
barbárie. W. Benjamin acreditava que ficamos pobres porque
abandonamos as peças do patrimônio humano e que a perda da
. -. f . d . ... 9 experIencIa nos az VIver e experImentaçoes. Somos gera-
çao de broncos perdida no estoque flutuante de significan-
tes sem sentido, que desvalorizou o discurso coletivo e
obstruiu a luta sobre o significado da vida e de como ela
6
O sociólogo Michel Maffesoli 10 do Centro de Estu
dos do Atual e do Cotidiano (na França), propõe a metáfora
da tribo para se referir às sociedades atuais. Concebe a
vida em sociedade como grupo de pessoas que se associam
mas sem o esquema tradicional dos partidos políticos, dos
sindicatos ou das organizações racionais. O que esse obse~
vador está vendo agora é a intervenção de elementos como a
paixão, o sentimento e o imaginário. Parâmetros que fogem
dos moldes da racionalidade predominante na modernidade de
Baudelaire.
Pós-Final
Os animais audiovisuais em tribos participam to­
dos da aventura do acaso. Nas tardes de domingo eles têm
Kátia Flavia para animar seus sentimentos, imaginários e
paixões. Ela evoca o riso desconstrutivista e sem compro -
misso com a verdade. A vida não é mais um problema a ser
resolvido. Todos querem satisfação imediata, individual e
tribal. O ambiente não está para a melancolia e dor de Bau
delaire. Hoje é dia de indiferença e humor, 'ideologia, quem
ainda quer uma prá viver~
7
ção teórica curiosa. Diversos autores ocupam seu tempo e
olhar com as intensas transformações sócio-culturais desta
segunda metade do século. A partir dos anos 80 um clima de
fim-de-modernidade virou moda na mídia. Uma Torre de Babel
de opiniões sacudindo opiniões. No clichê banal ou na den­
sa elucubração brilham lampejos de interpretações épicas •
Muita eloqUência em torno do nosso tempo pós-moderno ou
neomoderno. Muita divergência quanto ao enfraquecimento ou
fim da modernidade de Baudelaire.
Se a modernidade está enfraquecida ou morta, a
resposta aqui não parece mais urgente do que a constatação
de que algo não vai bem ao meu redor. Como sociólôgo e ed~
cador fico pensando a relação educação e sociedade em tem­
po de animalidade audiovisual. Que destino terá o projeto
educacional moderno que inventou a escola com a função so­
cial de elevar o animal humano i cidadania? Nosso tem
po pós-moderno ou neomoderno traz um impedimento a esse
projeto que se destaca entre os tradicionais impedimentos
burocráticos, políticos e econômicos. Trata-se do cotidia­
no regido pela sedução dos sentidos, pelo efêmero espetac~
lar e fragmentário. O poder educador desse cotidiano alea­
tório tornou-se mais contundente que a educação escolar. O
dia-a-dia da tv , do walkman, do divertimento, do estar-a­
toa se apresentam com linguagens mais sedutoras para as
mentes em formação.
formada em hiper-realidade para a sedução dos sentidos. O
Citoyen - habitante do Estado e sujeito de direitos polítl
8
cos que intervém no governo do país e na história
sendo substituído pelo delinquente audiovisual. O
vai
senso
como Baudelaire, a consciência de si no mundo, vai sucum -
bindo no ambiente de fascinação cosmética onde vale mais
o apelo ao sensorial, ao instintivo. Envolto em tecnologi-
as espetacularizadas com detalhes de aparelhagens, e atur-
dido em meio ao excesso de imagens e informações, o ser
humano rola do centro para a periferia dos valores moder -
nos. E a autoconsciência emancipatória vale menos que uma
capa de disco, ou imagem de filme, ou acessório para o
corpo.
meiro a introduzir o tema pós-modernidade no campo da filo
sofia - é autor de um trecho que virou pedra angular na
construção deste estudo sobre o moderno, o pós-moderno e
a educação emancipatória. Numa carta de 1985 Lyotard escre
veu:
e XX são governados pela Idéia de
emancipação da humanidade. Esta Ideia
elabora-se no final do secu10 XVIII
na filosofia das luzes e na Revolução
Francesa. O progresso das ciências
das tecnicas, das artes e das 1iberda
des políticas emancipará a humanidade
inteira da ignorância, da pobreza, da
incu1tura, do despotismo, e não fará
apenas homens felizes, mas nomeadame~
te graças ã Escola, cidadãos esclare­
cidos, senhores do seu próprio desti­
no,,12
9
Aí está a explicitação perfeita da concepçao mo
derna de educação. Ela diz bem claro que a função so-
cial da educação é realizar a finalidade emancipatória ~e
fundou a modernidade. Entretanto, o que pensar da educa­
ção escolar na época em que se admite o "enfraquecimento
do projeto moderno"? Que pensar da pedagogia que insiste
em transformar o animal humano em cidadão através da esco
la, quando, o cotidiano em que está imersa a própria esco
la é mais poderoso em educar para o acaso.
É preciso atentar para a hiperatividade frenéti
ca dos alunos que picharam nas paredes da escola o maior
desafio à conquista da cidadania. O atual debate sobre a
relação entre o pensamento moderno e o pós-moderno pode
fertilizar o pensamento educacional. Pode fornecer ele -
mentos para a reavaliação daqueles fundamentos com os quais
uns defendem a "politicidade da prática educativa", e ou­
tros a "veiculação crítica dos conteúdos historicamente a
cumulados".
educação vem do iluminismo. Se é verdade que vivemos o
"fim do iluminismo", que implicações tem isto para o pe!!
sarnento educacional? Para desdobrar esta questão deverei
estar atento ao debate sobre o moderno e o pós-moderno.
Percorrerei portanto o mais possível sua pluralidade de
vozes. Isto se estenderá até o terceiro capítulo deste
estudo. Durante o trajeto acumularei contribuições que,
no quarto capítulo, favorecerão a análise que visa a re­
descoberta e revalorização do fundamento emancipatório
da educação.
1. Charles Baudelaire. Flores do Mal. Tradução de Ivan Junquel
ra. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985, p. 345-6.
2. Do LP "Fausto Fawcett e os Robos Efêmeros". Letra no en -
carte e co-autoria de Laufer.
3. Marshall Berman. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura
da Modernidade. são Paulo, Companhia das Letras, 1986,
p.130.
5. Folha de são Paulo (Ilustrada), 21/01/1988.
6. M.Berman: op.cit., p.129.
R. Kothe. são Paulo, Ãtica, 1985. Trecho: "Os estereó­
tipos na experiência de Baudelaire, a falta de catego­
rias mediadoras em suas idéias, a inquietação imobili- -zada em seus traços, tudo isso indica que ele nao dis
punha das reservas que abrem o homem ao conhecimento
profundo e a uma visão histórica ampla", p. 95-6.
8. O Estado de são Paulo (Cultura), 09/04/1988: "Estamos nos
tornando animais visuais" e título da entrevista de
M. Esslin ã Munira Mutram e Teresa M. Otondo.
9. W.Benjamin.Walter Benjamin. Obras Escolhidas, vol. 1, 3a.
ed. trad. S.P.Rouanet. são Paulo, Brasiliense, 1987
Trecho; "Ficamos pobres. Abandonamos uma depois outra
todas as peças do patrimônio humano, tivemos que empe­
nhá-las muitas vezes a um centesimo do seu valor para
recebermos em troca a moeda miGda do 'atual''', p. 119.
11
tambor das novas tribos", Wilson Coutinho cita depoi­
mento de M.Maffesoli que comenta seu livro O tempo das
tribos - o declínio do individualismo nas sociedades de massa
Rio de Janeiro. Forence-Universitãria, 1987.
11. Folha de são Paulo (I1istrada), 14/04/1988
12. J.F. Lyotard. O pós-moderno explicado
xote, Lisboa, 1987, p. 101.
, as crianças. Dom Qui
nossa amnésia é a das imagens".
Jean BaudTillaTd
tidos na viv~ncia hist6rica e cotidiana. Isto é, trata-se
de orientações e atitudes socialmente estabelecidas que su~
tentam as realizações características dos seres humanos em
grupos ou sociedades. Decerto, esta é a noção de cultura
que está presente nas opiniões a respeito do "esgotamento
da cultura moderna".
A partir do século das Luzes, modernidade é o no­
vo tempo marcado pela superação dos fundamentos e práticas
medievais e estabelecimento de novas orientações e atitudes
que devermm sustentar uma longevidade muito maior do que o
milênio feudal. No entanto, passam apenas dois séculos, e
os fundamentos, orientações e atitudes produzidos e cultiva
13
ta gente atenta às transformações sócio-culturais insiste que,
em nosso tempo, a "cultura moderna" encontra-se num acelera-
do processo de esgotamento.
PEISO QUE A CILTIIIA ATIAIESSA liA CRI SEI.. CEITDS ELElnUS ESTÃO lIOIlOIFICAODSI ..
Sobre o "esgotamento da cultura moderna", muitas
sao as opiniões que excitam os debates acadêmicos ou jorna -
lÍsticos. Nesta PARTE 1 trato da parcela dessas opiniões que
contribui para a percepção de que é no turbilhão audiovisual
que a tradição moderna se esgota. Elas sugerem a idéia de
que o cotidiano dominado pelo excesso de imagens, tecnolo
gias e informações, tem grande poder de decomposição sobre os
mais altos valores conquistados pelo homem moderno. Hoje o
indivíduo encontra-se aturdido num redemoinho audiovisual e
tem sua vida diluída em apelos imagéticos e sensoriais num
fluxo alucinado. Nesta condição ele perde de vista valores
14
que o impulsionavam ao combate pela emancipação da humanida­
de inteira da ignorância, da pobreza, da incultura e da sub­
serviência.
A modernidade criou a utopia do homem novo que se
realizaria com o progresso das ciências, das técnicas, das ar
tes e das liberdades políticas. No redemoinho semiótico caó
tico, estes elementos que sustentariam a construção do cida­
dão esclarecido, senhor do próprio destino, estariam sendo
substituídos por algo vazio de tradição e destituído de fina
lidade. Enfim, se há uma inquietação diante da cristaliza -
ção daquilo que vem sendo chamado de pós-modernidade, é por­
que, de fato, algo não vai bem com o ideal progressista e li
bertador que é o fundamento supremo da "cultura moderna".
15
MAL-ESTAR
o indivíduo está perdido num labirinto de imagens
onde tudo lhe escapa. Essa sensação de perda ou de estar
perdido tem sido insistentemente denunciada na
sobre o panorama cultural do nosso tempo. Essa
discussão
discussão
tornou-se intensa nos anos 80 que passam para a história
como década de lamentos e mal-estar em relação às transfor
mações sócio-culturais. ~ o tempo em que torna-se explíci­
to o sentimento de perda, empobrecimento, enfraquecimento
e até de morte da cultura.
Denúncias e lamentações aparecem vinculadas de
alguma forma a um tema mais amplo que parece conter a ori -
gem teórica do mal-estar: o moderno e o pós-moderno. Há
uma declarada unanimidade quanto à avaliação de que a mo­
dernidade, entendida como a era inaugurada pelas revolu
ções Industrial e Frances~ perde seus valores/colunas de
sustentação. Esse debate vem expondo o descrédito no pro
gresso das ciências, das técnicas, das artes e das liberda­
des políticas como emancipadores da humanidade. E gera um
certo pessimismo quanto à possibilidade da vitória humana
sobre a ignorância, violência, pobreza e incultura. Esse
pessimismo como sentimento de perda ou mal-estar aparece en
tão ligado ao fato de que sucumbe a era moderna com seus va
lores de sustentação, dando lugar ao tempo pós-moderno de
valores incertos, aleatórios e efêmeros. Um tempo de indif~
rença frente à relatividade de tantos valores e desvalores.
No ambiente de empobrecimento ou morte da cultura
16
o indivíduo é visto como mero consumidor de mensagens fra­
gmentárias (estilhaçadas e estilhaçantes) da mídia, da mo -
da, do lazer e da publicidade. Há muita informação, mas -e
pouco o esclarecimento. Os jovens acumulam durante a vida
imensa massa de dados a respeito de inúmeras facetas da
realidade. Contudo, a maior parte deles é incapaz de articu
lar esses dados de forma a obter um quadro razoavelmente a!
ticulado dessa mesma realidade. E nesse contexto que se tor-
na esquecida a crença de que o cultivo do bom gosto e da
inteligência faz as pessoas melhores, mais humanas.
No tempo e na história a barbárie, as piores atro
cidades sempre coexistiram com as manifestações da mais aI
ta expressão humana. Tendências ã destruição ou elevação
sempre coexistindo no ser humano num equilíbrio frágil que
volta e meia é rompido. Porém o atual sentimento de mal-
estar faz acreditar que há mesmo um rompimento profundo
desse equilíbrio, com vantagens para o menos humano da in­
cultura, da miséria cultural.
gimento de um tempo pós-moderno aparece associada ã crença
num rompimento profundo que afetou todas as dimensões da
. existência humana. Em particular, os valores culturais sao
denunciados como tendo se tornado iguais aos valores publi-
citários, onde tudo é manipulável, mercantilizável e nada
-e puro, tudo artificial.
formações sócio-culturais que não escondem o lamento e me -
lancolia. Suas opiniões exercem certa influência imediata
porque têm veiculação instantânea nos jornais e nos deba
17
bates em tv. O jornalista José Castello, por exemplo, ref~
re-se ao "mundo pós-moderno da feiúra, da bobagem, do vazio
e da traição" 1. Esse tipo de opinião tornou-se frequente
referindo-se à cultura perdida num labirinto de imagens e
sons que visam exclusivamente manter aquecida a mente desin
tegrada do ser humano.
nivelamento superficial da cultura mais arrasadora, veloz
e contagiante. O ambiente em que nio hi mais lugar para o
cultivo da cultura feita de interiorizaçio de normas e
crenças estiveis. Isto porque predomina o instivel, o in­
constante onde nio hi tempo para a sedimentação de expe­
riências socialmente valoriziveis. Tudo perde-se no rede­
moinho semiótico caótico onde o que importa é facilitar e
inovar para o consumo. Acima de tudo o que conta é o espe­
ticulo. E os meios de comunicaçio de massa produzem naçoes
de adoradores de imagem. Imagens de imagens que se torna­
rammais valorizadas do que os maiores problemas humanos.
"Todos experimentamos alguma vez essa sensaçao de
vazio ou insubstancialidade ao desligar a televisio depois
de um noticiirio, assistindo uma cena da vida pública ... "
Com estas palavras o ensaísta Eduardo Subirats expressa se~
timento de perda naquilo que chama de "cultura do espeticu­
lo", a cultura do efeito estético onde se vê "o valor das
imagens como configuradoras da realidade contemporânea".2
Com certeza, por ji estarem acostumados, nem to -
dos experimentam vazio ou insubstancialidade na "cultura do
espeticulo". Subirats sabe disso! Sua expressio lamentosa
quer, no entanto, chamar a atençio para o mal-estar da cul-
18
blemas humanos. Melancólico, ele constata a perda de
realidade na produção desenfreada do artificial
espetacularizado para seduzir. Eis a "cultura do espetácu -
10" que converte a vida em show contínuo e as pessoas em e~
pectadores permanentes que esperam novas e mais imagens a -
traentes para consumir. E a era do vazio de substancialida­
de em que vale mais a sensação do mais saudável encontrada,
por exemplo, na cenoura mais robusta e mais corada que os
incrementos químicos puderem produzir.
espetáculo preserva a capacidade de anunciar grandes propó­
sitos altruístas, mas privilegiando o show e, no fundo nao
dando muita bola para a verdadeira natureza dos problemas.
Reviram-se delirantes os olhos e os sentidos num show de
rock contra a fome na África, mas é a sedução e o efêmero
corno princípios organizadores da vida coletiva que não dei­
xam alterar o rumo do conformismo jamais visto.
Para Wilson Coutinho "o conformismo tornou-se a
praga deste final de século".3 A opinião desse jornalista
também expressa sentimento de privação, principalmente qua~
do se refere ã "perda da visão crítica da cultura" que es­
taria produzindo conformismo generalizado. Essa constatação
de perda é repercussão de urna entrevista que Coutinho havia
realizado com o filósofo José Arthur Giannotti e publicou
com o título "Estamos vivendo na época da mediocridade".4
Giannotti deixa aí explícito seu lamento e mal-estar por
viver numa "era medíocre" em que se perde a concepção de
"cultura como combate". A cultura estaria, na visão desse
pensador, tornando-se um verdadeiro supermercado, onde se
19
vai passando e adquirindo os objetos tais como se encon
tram nas prateleiras, sem crítica, sem combate, no mais abso
luto conformismo.
de um certo caráter transcendente do homem. Isto estaria fa
zendo dele subserviente e covarde diante das misérias do
cotidiano. Para Giannotti "o que está se perdendo - ou
se perdeu - é o empuxo que levava o homem a transgredir o
que ele é. O homem buscaya o mundo das idéias, Deus, o Ilumi-
nismo ou a criação de um novo homem, mas ele fazia isto po~
que estar no mundo era um estar incomodado". Estas palavras
do filósofo apontam para o atual debate sobre o moderno e
pós-moderno. O homem de que aqui fala Giannotti é o homem
moderno e de aspirações modernas, portador da noção de de -
senvolvimento progressivo, da noção de superação de si
mesmo enquanto homem. Estas noções de progresso e superaçao
constituem aquilo que ficou conhecido na linguagem filosófi
ca como "a disposição metafísica do homem", isto é, a capa-
cidade de interrogar a vida, de examinar a vida, de perceber
a existência ao mesmo tempo problemática e inteligível. No
entanto, a constatação de que há, de fato, enfraquecimento
ou esgotamento da crença no progresso e superação do humano
enquanto humano, é o que permite a especulação a respeito do
"mundo pós-moderno da feiúra, da bobagem, do vazio e da
traição", de que falou José Castello.
Sente-se que foi traído o valor supremo da moder­
nidade com o advento da era do vazio consubstanciada na fei
úra e na bobagem. Que valor supremo será esse senão o hu-
manismo enquanto doutrina que atribui ao homem o papel de
20
homem. Imerso no ambiente caótico da técnica, da ciência e
do sistema de informação, ele estaria submetido ao acaso do
redemoinho semiótico, onde o excesso de imagens, de sons e
de todos os apelos aos sentidos teriam abortado sua possibl
lidade de autoconsciência.
Todas estas opiniões nos fazem ver então que, se
quisermos entender o que se passa com a cultura hoje, acab~
mos, inevitavelmente, tendo que rever o projeto moderno pa­
ra os homens. Isto quer dizer que devemos rever o otimismo
iluminista como sustentáculo teórico de um novo tempo em
que a ignorância, as superstições. as crendices e as submis
soes seriam substituídas pela lúcida compreensao das coi
sas, pelo questionamento histórico e igualitário no que se
refere às relações entre os seres humanos. Devemos rever a­
quele otimismo que hoje se esvai em sentimento de perda, de
mal-estar e melancolia. Esta atitude de revisão pode ter
o papel de recuperar os valores/colunas do projeto moderno
ou, de enterrá-los para sempre. A primeira alternativa inventou
a expressão "neomoderno" e a segunda aposta num "pós". Mais
tarde voltaremos aos fundamentos dessa instigante divergên­
cia. Agora devemos nos manter nos limites do mal-estar da
cul tura em nosso tempo, fazendo uma espécie de etnografia da
lamentação que tem demonstrado maior poder como irradiadora
de opiniões.
Finkielkraut que escreveu "A derrota do Pensamento". Esse
21
livro teve repercussao bombástica na mídia e nos debates a­
cadêmicos não só de seu país. O autor tornou-se rapidamente
nome internacional requisitado e comentado ed nauseam.
Em suas falas e escritos, Finkielkraut critica du
ramente a decomposição de valores conquistados a duras pe­
nas pelo homem moderno. Critica os descaminhos da democra­
cia que, em lugar de implicar o acesso de todos ã cultura,
passou a corresponder ao direito de cada um ã cultura de sua
própria escolha. Daí também sua crítica ã noção atual de li
berdade que se limita a um 'deixar-me fazer de mim o que eu
quiser'. Nenhuma autoridade transcendente ou histórica pode
modificar as preferências do sujeito ou dirigir seus compo~
tamentos. Constata assim, que é o princípio do prazer-for­
ma atual do interesse particular - que rege a vida espir!
tual. Portanto, não se trata mais de fazer dos homens suje!
tos autônomos, trata-se de satisfazer seus desejos imedia­
tos, de diverti-los pelo menor custo. O indivíduo atual vi­
rou uma espécie de conglomerado desembaraçado de desejos pa~
ságeiros e aleatórios, esquecendo-se completamente que a li
berdade é diferente do poder de mudar de prisão, e que a ruI
tura é mais que um impulso saciado.
O ponto central da crítica de Finkielkraut é a
liquidação do ideal moderno de cultura. Ka palestra que
proferiu por ocasião do lançamento de seu livro na X Bienal
do Livro em São Paulo, 1988, deixou claro o seu lamento.Dis
se que a alvorada dos tempos modernos se definiu pela cultu
ra. A religião que predominava sobre o mundo medieval cedeu
seu lugar à cultura dando origem ã modernidade. Hoje, diz
ele, observamos um fato que não é tão espetacular como a
perda do lugar da religião para a cultura. Hoje a cultura
22
perde seu lugar para o cultural. Essa "dissolução da cultu­
ra no todo cul tural" 5 é que faz o francês acredi tar numa
inevitável "derrota do pensamento" e na pós-modernidade co­
mo tempo em que predomina não mais a cultura mas o cultu
ralo
cultural porque aqui parece estar a chave para a compreen -
são da sua crítica. Numa entrevista dada a um jornal a dife
rença aparece explícita: "Quando se decide que todas as
obras humanas são culturais, que todos os modos de expres -
são são da mesma forma culturais, abandona-se o povo à pró­
pria sorte. Abandona-se a massa à cultura de massa, à indú~
tria cUltural".6 Nestes termos Finkielkraut quer dizer que
vivemos no tempo em que tudo é cultura: fazer rock, mascar
chiclé, tricotar, ler gibi e ver tv. Ou seja, nao se distin
gue mais o que é moda, manifestação circunstancial, daquilo
que é eterno. No cultural não há lugar para a hierarquiza -
ção, já que todas as práticas humanas sao postas no mesmo
nível de igualdade. O resultado disso é a indiferença entre
os ideais da cultura e as manifestações culturais existen -
tes ou, a não distinção entre cultura e indústria cultural.
Para fundamentar sua definição de cultura, o au -
tor retoma o pensador Platão que concebeu a cultura como
questionamento do ser: o saber como questionamento do ser.
Aqui está a concepção humanista de cultura que opõe manife~
tações cotidianas para o prazer e entretenimento, a algo mais
grandioso que deve sustentar a aptidão ao questionamento da
vida, da existência. Colocar no mesmo plano o consumo e o
questionamento é para Finkielkraut a "chantagem que pesa
23
cultura a idéia de formação humanista. Essa concepção de
cultura espera gratificações mais duráveis do que o prazer
passageiro provocado pelos estímulos fáceis oferecidos pela
televisão, pelo rock ou qualquer instrumento feito para o
prazer imediato. Portanto, adquirir essa cultura resulta na
possibilidade de fazer escolhas, de afirmar a autoconsciên­
cia, de ampliar a reflexão, enfim, de desenvolver o ser hu-
mano.
fundou a modernidade tomando o lugar da religião, parece mes­
mo diluir-se no cultural. E o pensamento que está ameaçado.
Quando o autor constata a sua "derrota", ele o faz por per­
ceber que a cultura de massa transforma tudo em produtos
imediatamente consumíveis. Aqui a cultura é concebida sob
o modelo alimentar. Diverte-se hoje como se come, como o no
me sociedade de consumo. Nesse ambiente o pensamento nao
encontra mais aconchego na linguagem cotidiana para desta -
car sua especificidade, sua necessidade e superioridade na
hierarquia das atividades humanas. A cultura que se funda
na presença viva do pensamento dilui-se na multiplicidade
cultural para o consumo e divertimento.
No tempo em que o cultural predomina sobre a cul-
tura "as fronteiras entre a cultura e o divertimento nao
são mais claras, não há lugar para acolhê-las e dar-lhes sen
tido".8 Para Finkielkraut esse é o tempo do "triunfo da im­
becilidade sobre o pensamento"g , é o tempo em que "a barb~
rie acabou por se apoderar da cUltura".lO Essa convicção de
decadência da cultura tão intrinsecamente vinculada ã certe
24
za de que desmorona a modernidade, embora instigante, tem
algo de duvidoso que provoca revolta e desconfiança. Há
quem diga que esse autor francês quer o retorno ... a fonte
iluminista, vendo nisso apologia da volta ã elitista hierar
quização cultural ou hegemonia da cultura onde predomina o
pensamento difícil e exigente. De fato o pessimismo de
Finkielkraut não é complacente com a "cultura do rock" onde
"o fee 1 ing supera as palavras" e "a sensaç ão (va 1 e ma i s que)
as abstrações da linguagem". Ele odeia as guitarras que
"abolem a memória, o calor da conversa e são mais dotados
de expressa0 que as palavras." 11
Que dizer do autor que não ve a menor eloquência
aprovei tável na "cul tura do rock"? Que di zer do pensador que
afirma: "considero ver televisão uma perda de tempo".1 2 Pode
ser chamado, no mínimo, de ranzinza, esclerosado ou de rea-
cionário elitista. Um pensador profundamente amargo que j~
mais relaxa a testa franzida a ponto de especular sobre "um
conceito novo e positivo de barbárie", corno o fez nos anos
30 o filósofo Walter Benjamin. Benjamin abandonou as formas
desprezíveis da cultura, soube olhar as novas gerações e dar
atenção "ao que está dentro, e não â interioridade" .13 MesTID
sabendo que a pobreza vem com a perda da experiência, com a
perda da ligação com a tradição, não menosprezou os novos
bárbaros. Essa postura seria para Finkielkraut um convite
ao abominável relativismo, doutrina do "qualquer urna é lDTlél"
que estaria diluindo a cultura no cultural. Para esse neo­
ilumimista o pós-moderno é o tempo da "enfermidade da vonta
de" e nada lhe tira da cabeça a convicção de que "não há li
berdade para o ignorante" .14 Isto, no mínimo, dã o que pen-
saro Mas como, se o próprio pensamento foi derrotado?!
25
DECOMPOSIÇÃO
Se quisermos insistir um pouco mais no clima de mal
estar e melancolia, basta tocar de leve no pessimismo incu
rável do filósofo Emile Cioran. Quando retoma o tema da de
cadência do Império Romano, Cioran nos faz intuir sobre o
declínio do Império Americano. "Imaginemos - ele nos convi
da - o legionário (militar romano) saturado de glória,de
riqueza e de devassidão depois de haver percorrido inúme -
ros países e perdido sua fé e seu vigor no contato de tan­
tos templos e vícios, imaginemo-lo i pé!'Q5 Esse trecho e
extraído de um texto em que o filósofo dedica-se especial­
mente i filosofia da decomposição. Ele fala de algo que
definhou ou se decompôs no legionário romano: suas motiva-
ções patrióticas, ambições coletivas e disposição para de­
fender o sistema. Nas andanças e conquistas pelo mundo es-
se romano empazinou-se no contato com a pluralidade de tan
tos valores, crenças e culturas: os "tantos templos e ,
Vl-
e a fruição do prazer como um fim em si.
Falemos em declínio dos impérios Romano e Ameri
cano, mas nao com a intenção de analisar a ascensao e que-
da das grandes potências. O que inter~ssa aqui é a decomp~
sição acelerada em nosso tempo do ideal moderno de cultu -
ra que se revela nas alterações profundas da vida so-
cial. A livre associação de idéias com relação a coincidên
cias na história permi te acredi tar que aquele legionário
26
empanturrado de "templos e vícios" tenha algo em comum com
o americano saturado de tecnologias, de imagens e de infor
maçoes. Ambos caíram na apatia social. Passaram ao desin -
teresse pelas coisas públicas e perderam a indignação e o
compromisso frente aos grandes problemas sociais e huma
nos. Nesse contexto o despojamento das motivações polÍti -
cas e ambições coletivas parece fulminante para a
concepção humanista de cultura. Isto porque ela é feita de
normas e crenças estáveis que priorizam o progresso e a su
peraçao do ser humano, destacando nele a capacidade deinter
rogar a vida e de tornar a existência inteligível. 4' Tal como no contato com "tantos templos e VI
cios", a atual convivência com o excesso de imagens, tecn~
logias e informações tem o maior poder de decomposição so­
bre os altos valores já conquistados pela humanidade. Essa
comparação pode ser feita se levarmos em conta a opiniao
dos autores sensibilizados com a cultura no tempo do rede-
moinho semiótico. Eles dizem que hoje o indivíduo lida
mais com sígnos do que com coisas, e têm sua vida diluída
em apelos imagéticos e sensoriais num fluxo alucinado.
Sígno é o sinal utilizado na comunicação para
representar indiretamente um referente (coisa). Pode ser
um gesto, número, símbolo, palavra, som, cor, etc. Semió
tica ou semiologia diz respeito aos sígnos e à ciência
que estuda os signos em comunicação. Na semiologia parece es
tar a chave para o entendimento do processo acelerado de
decomposição dos princípios, regras, valores e tradições
que sustentavam o ideal moderno de cultura. A semiologia
indica que a chave está na perda do vínculo fiel entre
27
signo e referente. O fato de, hoje, o indivíduo lidar mais
com signos do que com coisas (referentes) revela o fenômeno
da desvinculação signo-referente. Na publicidade, na propaga!!
da ou no universo informacionales~fenômeno acontece a ro-
do. Qualquer objeto apresentado na tv, nas revistas, no
outdoor recebe doses maciças de incrementos semióticos pa­
ra tornar-se mais colorido do que é, mais agradável e bon~
to do que é, mais eficaz na sua utilidade. O resultado
um distanciamento fraudulento entre a imagem veiculada
objeto e o próprio objeto a ser consumido.
SIGNO .... ----linguagem -----_ "- ----
A seta contínua mostra que signo e referência estão
interligados, o que nao ocorre com signo e referente. Este
esquema é chave para se compreender a espetacularização e ar
tificialização semiótica. Vejamos o exemplo da cenoura super
robusta e super corada: quanto mais incrementos químicos na
cenoura mais ela é maior, corada, sedutora aos olhos e ao
imaginário. Alguns aditivos dão a essa cenoura uma hiper-re~
lidade que a cenoura macrobiana não tem. Estes aditivos sao
incrementos semióticos, verdadeira signagem que nos faz vi­
ver mais da referência da cenoura do que do referente cenou-
28
ra. Na sociedade do espetáculo tudo é dado ã signagem e os
"papas" da publicidade e propaganda sao os alquimistas da
signagem. Da cenoura sedutora até o rosto "plastificado" pe­
lo excesso de cuidados e maquiagem, tudo é signagem. A força
dos incrementos semióticos é que faz esquecer a cenoura de
verdade e o rosto "nu e cru". Ela faz do artificial o parâm~
tro da realidade. A prevalência da interligação signo-refe -
rência produz o que se pode chamar de signagem ou "cultura
do simulacro", corno já se tornou usual a partir do autor Jean
Baudrillard que veremos mais adiante.
A proliferação desmedida dos artifícios semióti­
cos resulta num mundo meramente vazio e esquizofrênico
Um mundo que se torna imagem sem referente, onde a imagem
nao se refere ao objeto mas a outras imagens. Nele as ima­
gens proliferam infinitamente fazendo retornar Platão
com sua "alegoria da caverna" mais do que nunca atual. Afi
nal, vive-se no universo onde só é aquilo que é imagem, c~
pia, sombra. Isso faz concluir que não há mais lugar para
o original, para o real, para a coisa-em-si. Perde-se o
real na reprodução das imagens fazendo com que não haja
mais necessidade de distinguir o verdadeiro e o falso.
Submetido ao jogo aleatório dos sÍgnos, o indivi
duo torna-se conivente com o artificial até não mais dis -
tingui-lo do que é natural. Aqui se consuma a perda daque­
la habilidade fundamental a~ ideal moderno de cultura que
é saber diferenciar o que é do que deve ser. Dessa perda
surge a inconsequente cumplicidade alegre diante do arti -
ficial onde se processa a decomposição de princípios
valores, regras e tradições. Estes sâo parâmetros de sus -
29
tentação da existência que só valem no campo do pensamen -
to. Quanto ã sedução lúdica do artificial, pode ser vista
corno um vício que se movimenta cheio de viço no campo do
sensorial, dos sentidos. Finkielkraut parece ter motivo su
ficiente para lamentar "a derrota do pensamento" porque
hoje, o pensamento vai sendo substituído pelo imaginário.
O pensamento que deve estar vinculado a princípios e enca­
deamentos lógicos com valores e tradições, hoje, dá lugar
ao imaginário inteiramente comprometido com a sedução lúdl
ca .. Pudera! A mensagem imagética não dá tempo ã reflexão,
só a imag inação fu ga z .
Além da cultura do artificial, ternos também a
cultura da fragmentação que vem acelerar ainda mais o pro­
cesso de decomposição. "O mundo se pulveriza em sígnos, o
planeta é urna rede pensante, enquanto o sujeito fica num
nó de células nervosas a processar mensagens fragmentá
rias".1 6 Esta é a opinião do comunicólogo Jair Ferreira dos
Santos que abordamos aqui porque parece ser a melhor sÍnte
se do que tem sido escrito a respeito dos efeitos do semió
tico caótico sobre o social. "O indivíduo na condição pós­
moderna - diz ele - é um sujeito blip, alguém submetido a
um bombardeio maciço e aleatório de informações parcela
res, que nunca formam um todo, e com importantes efeitos
cul turais, sociais e políticos. Pois a vida no ambiente' ... po~
moderno é um show constante de estímulos desconexos onde
as vedetes são o design, a moda, a publicidade, os meios
de comunicação")7 Por que "blip"? Esta é uma expressão té~
nica referente a "pontos, retalhos, fragmentos de informa
ção", ele explica. Pelo que diz, a ênfase está nos "estÍmu
30
los desconexos" ou "informações parcelares". Com isso J.F.
dos Santos nos faz ver que na informação desconexa e frag­
mentfirin o poder da decomposição ~ capaz de enterrar urna
~poca e gerar outra. A pós-modernidade seria então o tempo
da fragmentação intensa no qual se perde a totalidade das
coisas. O indivíduo não lida apenas com sígnos em vez de
coisas, mas com cacos, pedaços desconexos que nunca dão
a ele a id~ia de um todo. As informações na mídia não ofe­
recem a totalidade do fato. Daí não se ter a visão global
e abrangente de coisa alguma. Essa visão não faz falta no
cotidiano estilhaçado em partículas que bastam para a sa -
tisfação dos desejos e curiosidades imediatas.
Vivendo de sígnos, acostumado ao artificial em
cacos desconexos, o indivíduo tamb~m está submetido à velo
cidade. Tudo passa rápido pelos seus sentidos. A vida em
ritmo apressado expõe sua visão ao cinetismo desenfreado.
O resultado dessa experiência diante da tv, por exemplo
é a satisfação com a superfície, a valorização da fachada,
da tela em si mesma. O ideal tradicional do olhar que pre~
supunha um significado intrínseco às coisas, nao parece
mais possível. Perde-se o ideal iluminista da visibilidade
universal que pressupunha descobrir o sentido contido nas
imagens, nas paisagens, nas coisas e relações. Era preciso
educar o olhar para ver tudo, a globalidade, o que está por
trás da superfície. Essa tradição se decompõe na satisfa -
ção descontraída diante do artifício, da cultura feita de
fiapos e vivências em ritmo acelerado.
Na velocidade, nos fiapos e no artifício perde -
se tamb~m a constância das coisas. O indivíduo não só per-
31
completamente. Daí não encontrar mais apoio nas institui­
ções tradicionais como Deus, família, Estado, política
educação, ciência, etc. A decomposição desses grandes ref~
rentes, guardiões de valores permanentes, faz o inàivíduo
voltar-se para si mesmo como auto-referente. Voltado para
si mesmo, ele encontra-se, finalmente, na supervalorização
da sua própria aparência. Torna-se o narcisista que desin­
teressou-se pelas últimas significações e sustentáculos da
existência, para apoiar-se na sua própria auto-imagem. Des
preocupa-se com os valores ou hierarquização de valores que
estão fora dele, tornando-se também o hedonista que faz
do seu prazer pessoal a referência das referências. Narci­
sista e hedonista ele dispõe somente daquilo que a avalan­
che informacional e tecnológica lhe propõe. O excesso de
ofertas que lhe arrebatam o dese j o, u t i I i zando para isso o in­
cremento estético, faz dele o consumista insaciável.
Estamos falando do "sujeito blip" feito de "in -
formações parcelares" e "estímulos desconexos" que tornou­
se um delinquente audiovisual. Perdeu a ligação direta com
a tradição no liquidificador consensual da mídia. E conta­
minado pela comunicação de massa, pela indústria cultural,
tornou-se veículo multiplicador da banalidade e diversão
superficial com fim em si mesma. Tudo isso vai configura~
do sua semelhança com o legionário que perdeu a fé e a cren
ça nos grandes projetos e ideais romanos. A perda do sen­
tido de continuidade histórica e a supervalorização do
presente destroem a tradição que se prolonga no compromis­
so com a herança recebida. O resultado disso é a satisfa -
32
çao plena com o presente e o desinteresse absoluto pelos
grandes projetos históricos, socialismo, democracia, etc
- tarefas a longo prazo.
A vida deixou de ser um problema a ser resolvido
e tornou-se pluralidade de experiências a serem vividas com
todo prazer. Tal como ocorreu com o legionário romano,hoje
ocorre com o americano. Neles nao há lugar para a valoriza
çao do conflito ou da indignação como fundamento para a vi
da, como compromisso acima do prazer individual. Não há
compromisso com o progresso e com a superaçao no âmbito in
dividual e coletivo na história, ou compromisso com a a­
tualização dos valores herdados e com a construção do futu
ro melhor.
Tudo faz crer que o ideal moderno de cultura nao
tem lugar no ambiente dominado pela "cultura blip - cultu
ra do fragmento informacional, cintilações no vídeo" .18 Va-
lorizando a continuidade, a profundidade e a teleologia que
é o ver-ao-Ionge como estudo da finalidade ou dos fins hu-
manos, aquele ideal moderno tornou-se vazio no ambiente em
que predomina o fragmento e a fragmentação do mundo em ins
tantes.
mas continuam apontando a tv como .. paralso da "cultu-
ra blip". "Nela, o contexto é irrelevante e a espetacular!
zação, obrigatória. Sua avalanche de imagens não permite
que o raciocínio metabolize criticamente as emoções que
ela estimula. Sua vorticosa fragmentação dificulta, qua~
do não impede, qualquer 'approach' reflexivo, reafirmando
cada vez mais a suspeita de que a tv foi de fato aperfei -
33
çoada para, subliminarmente, estimular o consumo, e nada
mais. Quem a definiu como 'o chiclete dos olhos' não disse
toda a verdade. A tv não distrai apenas, ela hiponotiza."l9
Isto faz crer que a tv fez da vida um clip e um clip vale
mais que um discurso. Enfim passamos todos da teleologia ... a
televisão.
./,. '/, .. ,f·,.···
20
que chamamos de pós-moderno, creio, um dos
fenômenos mais importantes e mais problemá­
ticos e o aparecimento da tv. A televisão
contribui para uma condição humana total
mente fora dos sentidos. Para uma pessoa
que assiste oito horas de tv por dia, como
fazem os americanos medios, a noção de tem­
po e de espaço se desliga da experiência
concreta." 21
so
ficialidade das imagens cintilantes: pelo redemoinho semió-
34
cisista e consumista não é um fenômeno exclusivo da corte
imperial capitalista. Aquele circunspecto professor de fi-
losofia Alan Bloom, que resolveu investigar "o estreitame~
to da mente americana", acabou fazendo concluir em termos
de declínio da cultura ocidental. Imperialismo ou não, a
globalização da "cultura blip" é - hoje um fato. Esti pre-
sente não só na tv, mas no mais barato walkman de camelô
no terceiro mundo. Uma legião de sujeitos blip povoa o
planeta que virou aldeia pulverizada em signos. E sobre
eles se poderia dizer com o professor Bloon: "enquanto ti-
verem o walkman ligado, não conseguirão ouvir o que a gra~
de tradição tem a dizer. De resto, quando retirarem, ~
apos
tão demorado uso, os fones dos ouvidos, vão descobrir que
estão surdos".Z2 Só que talvez nada descubram, tão compro­
metidos que estão pelos efeitos irreversIveis da decompo-
sição! Imaginemos então os sujeitos blip saturados de sedu
çoes, de artifícios e de consumismos depois de haverem pe~
corrido a trajetória caótica do redemoinho semiótico que
os fez perder a tradição humanista, imaginemo-los à pé.
35
res inabaláveis e nos hábitos enraizados vira pó ou fumaça
e desaparece no ar. Ternos visto que essa decomposição gene­
ralizada é bastante divulgada corno fenômeno fundador e defi
nidor da pós-modernidade. No entanto, entre aqueles que nao
admitem o fim da modernidade, está Marshall Berman que ve
no fenômeno decomposição a mais típica experiência moderna.
Para provar sua tese, ele toma do Manifesto Comunista de
1848 a frase "tudo que é sólido desmancha no ar", mostrando
com ela que Marx, no século passado, já havia se dado conta
do fenômeno.
Berman quer provar que a decomposição de "tudo que
é sólido" nao é coisa de hoje, mas característica da "moder
nidade ontem, hoje e amanhã".23Querendo ampliar a fundamen­
tação da sua tese, ele retrocede mais um século e vaI até
Rousseau. Apropria-se com habilidade de um valioso texto de
1761 onde o filósofo das Luzes fala de um jovem aturdido e
embriagado, porque experimenta a decomposição acelerada de
seus valores e convicções. Para quem quer tratar da geração
80/90 este texto é oportuno. Deve ser citado na Íntegra,tal
como foi apropriado por Berman:
"Na sua (de Rousseau) romântica novela
A Nova Heloísa, o jovem herói, Saint­
Preux, realiza um movimento exploratõ- . . ",. .
r10 - um mOV1mento arquet1p1co para
milhões de jovens nas epocas seguin
tes - do campo para a cidade. Saint-
Preux .... escreve a sua amada, Julie, das
36
-soes.
mo uma permanente colisão de grupos e
conluios, um contínuo fluxo e refluxo
de opiniões conflitivas. ( ••• ) Todos se
colocam frequentemente em contradição
nada é chocante, porque todos se acostu
maram a tudo'. Este é um mundo em que
'o bom, o mau, o belo, o feio, a verda­
de, a virtude, têm uma existência ape -
nas local e limitada'.
oferecem, mas quem quer que pretenda des
fruti~as 'precisa ser mais flexível que
Alcibíades, pronto a mudar seus princí­
pios diante da platéia, a fim de reaju~
tar seu espírito a cada passo'. Após a!
guns meses nesse melo, 'eu começo a se~
tir a embriaguez a que essa vida agita­
da e tumultuosa me condena. Com talqua~
tidade de objetos desfilando diante de
meus olhos, eu vou ficando aturdido. De
todas as coisas que me atraem, nenhuma
toca o meu coraçao, embora todas juntas
perturbem meus sentimentos, de modo a
fazer que eu esqueça o que eu sou e
qual o meu lugar'.
receie, como ele mesmo o diz: 'Eu não
sei, a cada dia, o que vou amar no dia
seguinte'. Sonha desesperadamente com
vejo apenas fantasmas que rondam
'eu
meus
agarrar'''.
37
A partir deste texto a tese de Berman fica ex­
plícita. A experiência fundadora da modernidade não é 50
mente a experiência da destruição de "tudo que é sóli -
do". Há algo mais. O personagem Saint-Preux criado por
Rousseau experimenta a "destruição", mas, simultaneamen -
te, "sonha desesperadamente com algo sólido a que se ape­
gar". O que há é uma mesma experiência feita de dois movi
mentos: destruição e resistência. A destruição que ameaça
as convicções do jovem, e sua resistência a essa destrui­
ção. Esta é, de acordo com Berman, a experiência fundado­
ra da modernidade de ontem, de hoje e de amanhã. Ele diz
de "hoje e amanhã" porque discorda daqueles que acreditam
no fim de modernidade. No entanto, se ~ perguntarmos a ge~a
ção 80/90 se sonha - mesmo que não desesperadamente - com
algo sólido a que se apegar, a resposta pode
essa sólida convicção de Berman.
desmanchar
Rousseau e Berman falam de um jovem que, mesmo
aturdido e embriagado com a quantidade de objetos desfi - ~
lando diante dos seus olhos, ainda se lembra quem e e qual
o seu lugar. Neste aspecto Saint-Preux se parece com
Baudelaire: não se perdeu na multidão, e o espetáculo da
rua e da multidão não lhe trouxe o esquecimento de si mes
mo e de sua existência. Mesmo com os sentimentos perturb~
dos, nao se acostumou ao "absurdo" nem ao "chocante" po!.
que tem referências sólidas que ainda perduram em seu co­
ração. Vivendo as duas dimensões da experiência moderna é
como se experimentasse a sensaçao de viver em dois mundo~
Vive sua interioridade sustentada por tradições, valores
e hábitos trazidos da vida no campo onde ficara Julie sua
38
amada. E vive também o turbilhão destruidor que torna tu­
do volátil na cidade grande, a ponto de não saber o que
vai durar no dia seguinte.
Hoje a experiência vivida por Saint-Preux nao
é mais possível. Esta opinião seria seguramente sustenta­
da por aqueles que insistem na pós-modernidade. Sobre o
nosso tempo, eles dizem que a cada dia menos gente "sonha
desesperadamente com algo sólido a que se apegar". Sólido
aqui tem o sentido de Rousseau, Marx e Berman: que nao ... e
vazio ou oco e tem valor humanista. Hoje, submetidos aos
excessivos fantasmas que rondam seus olhos, os indivíduos
estariam privados daquele duplo movimento da experiência
moderna que é viver dialeticamente a interior idade comba-
tiva e a exterioridade avassaladora, o turbilhão que tudo
desmacha no ar.
Fantasmas que rondam os olhos. Essa parece ser
a experiência fundadora do pós-moderno. Há urna generaliz~
da sensação de fantasmas no ar. Deve ser por isso que J.
F. dos Santos inicia seu livro dizendo: "Há qualquer coi­
sa no ar. Um fantasma circula entre nós nestes anos 80: o
- d· 2S ... d'" ... pos-mo ernlsmo". Fantasma e, sem uvida, a melhor meta-
fora para o cotidiano em que predomina o redemoinho semió
tico caótico. Fantasmas é o que o indivíduo submetido ao
jogo aleatório dos signos excessivos experimenta.
No jogo caótico dos signos ficou difícil viver
a experiência moderna. No estoque flutuante de significa~
tes sem sentido não há lugar para a interioridade comb~
tiva de Saint-Preux. Naquela época era possível acreditar
em cultura do combate. Hoje o "sujeito blip" feito de re-
39
reservas e a mobilização para aquele tipo de combate. Rous­
seau e Berman traçaram o perfil de um jovem que deveria vi
ver uma experiência arquetípica para "milhões de jovens nas
épocas seguintes". No entanto acredita-se que a força des­
se arquétipo esgotou-se. Se há alguma semelhança entre a ge
ração de Saint-Preux e a geração 80/90, deve ser apenas os
fantasmas nos olhos. Isto sem levar em conta o grau de ex -
cessividade hoje acrescido pela mídia e tecnociência. A úl­
tima geração que se identificou com Saint-Preux foi a gera­
çao 68. De lá para cá os fantasmas seriam a única experiên­
cia em comum. Daquela interioridade combativa, contestató -
ria teria ficado apenas a nostalgia.
A geração 68 ficou assim conhecida pelo seu movi­
mento contestatório e combativo que explodiu mundialmente
naquele ano. Promovido e executado pela juventude, aquele
movimento foi tão espontâneo quanto bombástico. Estudantes
secundáristas e universitários contestavam o governo, a so­
ciedade e a cultura. Recusavam as formas tradicionais de en
sino, sua elitização, a ciência e cultura como meios de do
minação, a sociedade de consumo, a cultura da competição, o
autoritarismo, etc. O jornalista Zuenir Ventura estava lá
e viu tudo. Ele diz que "os jovens não se contentavam mais
em se apossar do futuro. Com igual paixão,e gestos mais de­
cididos do que os dos seus predecessores do pós-guerra,eles
queriam dominar o pr~sente, e não só a França (onde tudo co
meçou). Movida por uma até hoje misteriosa sintonia de in
quietação e anseios, a juventude de todo o mundo parecia
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Rebelde, ousada, politizada e loquaz, a geraçã068
queria derrubar e reconstruir o mundo. Hoje, para espanto dos
comentaristas das novas tendências, os filhos daquela gera­
çao não querem derrubar nada, e aceitam o mundo mais ou me
nos como é. A sólida interioridade combativa daquela geraçao
ousada desmanchou no ar dando origem ã geração 80/90. Esta
geraçao que parece não acreditar na SOlUÇa0 política e soci­
al, mas que ocupa-se consigo mesma, com sua aparência, sua
profissão e seu prazer. Aquela mobilizaçao geral e planetá -
ria era coesa na negação do mundo existente. Havia um espír!
to comunitário ofensivo, ideológico, despojado e contundente
que hoje parece estar diluído no individualismo defensivo
calado, passivo, hedonista, consumista e narcisista.
Tudo parece confirmar o fim daquela irreverência
Até o rock que nasceu maldito sob o sígno de todas as irrev~
rências, enquadrou-se nos padrões de vendagem da indústria
cultural. Alguma rebeldia e inconformismo que se mantém nas
letras nada infantilóides é destroçada no consumo desenfre~
do, silenciada no volume exagerado do walkman e estilhaçada
nas luzes estroboscópicas das danceterias. Hoje ,até esse rock
está convencido de que "o pop nao poupa ninguém" e que
"todo mundo tá comprando os mais vendidos.,,27
A cultura pop veio para fazer tudo mais facilmente
assimilável pela massa. Ela é contra o hermetismo e a densi-
dade dos grandes ideais e explicações humanos. Tudo deve es
tar bem mastigado ••• só engolir. A avalanche cotidiana dos
heróis, dos gibis, dos rótulos, das estrelas de cinema, da
mídia e da publicidade dao o tom que alimenta o consumo des-
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cartável. Contudo, há os que veem no pop possibilidade de in
teligência, de interioridade combativa e ousadia. Eles conse
guem enxergar potencialidade e invenção no senso comum, no
banal. Por outro lado, muitos, desiludidos, vêem no pop o
terreno apocalíptico onde nada se mostra além da superfície,
dos instintos, do deserto de lmagens e sons e do jogo impla­
cável das técnicas de venda. r como se nada houvesse abaixo
de tudo aquilo que se mostra tão explícito.
o pop também é visto como terreno da animalidade
onde predomina o sensorial. e o mundo das cores, odores, im!
gens e sons. Nele o animal sacia sua fome e pronto. O indivI
duo consome a cultura de consumo e pronto. Tudo levando ao
fastio e à perda da curiosidade. No pop não há lugar para a­
quela utopia idealizada que mobilizou a geração 68. Não há
lugar para aquela experiência moderna yivida por Saint-Preux.
Aquele "movimento arquetípico" da interior idade combativa
frente ao cotidiano demolidor dá lugar ao conformismo, a me­
diocridade e ao vazio. O resultado disso é uma geração sem
obra, sem ~rojeto, quieta e apegada à passividade.
Ninguém sabe até quando vai durar o atual confor -
mismo e passividade. Poucos são os comentaristas das novas ten
dências que demonstram algum otimismo. Entre eles há quem
acredita que "uma era medíocre pode retirar suas forças de
sua própria mediocridade e alterá-la de modo criativo, trans
formando-se em um alimento para uma geração ousada." 28 Esta
crença mais parece uma esperança retórica em que o único in
dício da "geração ousada" é a própria mediocridade. Enfim o
que se vê ê apenas especulaçio, algo que nasce da vontade de
jamais aceitar a vitória dos fantasmas que rondam os olhos e
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~ preciso, caso se queira cultivar o otimismo, ha
ver indícios de ~ue o pássaro Fêmix vai mesmo renascer das
cinzas. E preciso comprovar com indicativos de que a gera­
ção 68 não foi o derradeiro grito da modernidade agonizante.
Quem quiser encontrar os sinais ou os indicadores
do perfil sócio-cultural, econômico, político e de consumo
da geração 80/90, deve recorrer às pesquisas realizadas pe­
las agências de propaganda. Elas estão aí muito mais acessÍ
veis e abundantes do que as tradicionais pesquisas acadêmi­
cas. Contratadas por empresas de quem detém as contas publi
citárias, essas agências de publicidade se prestam enfim a
definir o marketing e o mercado para os produtos a seremven
didos. Uma vez que o sucesso das vendas depende do melhor
conhecimento das novas tendências sociais, uma enxurrada 3e
pesquisas tem sido realizadas e suas conclusões são freque~
temente divulgadas via mídia. No entanto, essa divulgação de
conclusões, quando nao forja a própria realidade ditando m~
das ou criando expectativas, pode desvelar sinais e indica­
dores que contribuem para a percepçao dos novos traços que
fazem o perfil da juventude atual.
A conclusão de maior impacto que, via mídia, vem
sendo assimilada muito rapi~mente pela sociedade, é aquela
que faz distinção radical entre as décadas 80 e 90. O pred~
minio do estilo de vida que consagrou o egoísmo, o narcisi~
mo, o hedonismo, a valorização absoluta da profissão e o
consumo desenfreado, seriam as marcas registradas dos anos
80. Ao passo que nos anos 90, segundo pesquisas, estaria se
manifestando uma tendência ã consolidação de preocupações
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cismo e o respeito pelos direitos humanos. Isto aparece defi
nitivamente no quadro seguinte que mostra as conclusões da
agência Saldiva & Associados.
2. Educaçõo poro poucos
3· Individuoli.mo; luto por inter"'ft próprios
4- Amor pelo dinheiró e poder; trobalho escravo e co~dicionodo
$- Ambiç60, bodaloçao, OU!opr~60; profiHÕeS IIlomourizont ..
6- Desenvolvimento do tecnologia poro o progresso e o poder
7· Desiguoldode de direitos e cio""
, a. Descrl6dito no político; corrupçõo
,. Destruiçao do no1\Irelo e doa onimois -
10· Inseguranço, guerras, doenças
Anos 90
2· Educação obrigatório ~
4- Perseguir qualidade de vido;trobalho por realização e praze
$- Anonimoto; senso prático e de utilidade; profiu6es úteis
6- T ecnologio feito poro o homem e pelo homem
7. Luto e ~ poro iguoIdocIe de ~ei1oIe c,~. a. Senso politlco; causas justos
,. Pr.-.rvaç60 do /ICJtureIo; coutCII ecoI6gicoa
10. Mois seguranço, paz e ~i'ncio voltado poro curos
As indicações dessa I"esquisa provocam reaçoes contrárias
de otimismo e ceticismo. De otimismo porque indica a presença de
urna nova geração se revelando, embora a sociedade ainda não seja
capaz de identificá-la e adotá-la corno símbolo de -urna nova epoca.
Urna geração silenciosa que acumula observação. aprende com o
fracasso da geração anterior e filtra valores no cotidiano
semiótico caótico, para revelar-se publicamente mais madura
neste fim-de-século. Para aqueles que reagem com ceticismo ,
o presente não está grávido de nenhuma geraçao ousada capaz
de recuperar o caminho perdido do idealismo, da interiorida­
de combativa. Essa atitude pessimista nio se deixa engabelar
com manifestaç6es circunscritas que, is vezes, são vistas co
mo tendência geral. Se há uma tendência geral, estaria, para
eles, mais na direção de urna juventude dessensibilizada pe -
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A pesquisa "Rumo aos Anos 90" da agência Saldiva &
Associados Propaganda não garante, mesmo com todo o otmismo,
a emergência de urna nova tendência para os anos 90. Realiza­
da somente na cidade de são Paulo, com 330 jovens de 15 a 20
anos das classes A e B, essa pesquisa corre o risco de dilu­
ir-se no mundo das opiniões e especulaç5es. Corre o risco
de generalizar a partir da minoria jovem feita de pessoas
"que lêem jornal, vêem tv e têm poder de crítica", que foi a
população-alvo da pesquisa. Com base nessa populaç§o atípica
não é possível inferir que os jovens dos anos 80 "estavam re
almente parados", e que nos anos 90, "estão em recesso tam -
bém, mas prontos para agir".30 E preciso ir além da opinião
e especulação. E preciso penetrar amplamente em todos os
meandros do atual universo jovem e conferir se, de fato, es­
tá havendo superação do vácuo de ideais a ponto de estarem
os jovens preparados para agir. Só assim será possível cap -
tar tendências e não ditar modas.
Dois anos antes das conclusões da Saldiva, em
1986, outra agência, a MPM Propaganda SA realizou uma pes­
quisa mais abrangente. Abordou a população de 15 a 24 anos
de idade, pertencente a todas as camadas sócio-econômicas e
habitante dos dois maiores centros urbanos do País: São Pau-
10 e Rio de Janeiro. Com sua pesquisa "Geração 80", a agên-
cia MPM deparou-se com um quadro nada otimista. Depa-
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rou-se com uma juventude conformista que tende ao maior de­
sinteresse pela participação na vida politica.UmR juventu~
que supervaloriza a liberdade sexual, a moda, o corpo e a
experimentação aleatória no cotidiano. Fundamentada em uni­
verso mais abrangente, a MPM descobriu uma tendência que
nada tem de ousada. Pelo contririo, os jovens estão queren-
do mais liberdade inàividual para experimentar e descobrir
por si próprios oque é certo e o que é errado. Quanto ao f~
turo pessoal idealizado, a realização individual passa pelo
sucesso profissional no estilo "quero escolher alguma coisa
para ser grande em alguma coisa". Quanto ao futuro dos ho­
mens e das sociedades, o que aparece é "a falta de esperan-
ça ou a desconfiança no Mundo e nos valores ( ... ) E o con -
formismo é a atitude mais aconselhada: 'a gente 31
curtir a vida do jeito que ela vem'''.
tem que
Até numa conclusão semelhante as pesquisas "Gera-
çao 80" e "Rumo aos Anos 90" divergem no otimismo. As duas
concluem que os jovens tem estado imobilizados, mas nao
totalmente alienados. A Saldiva divulgou que o que hi com
os jovens é "uma imobilização. Não estão alienados - estão
quietos, observando, preparando-se para o que vem pela fre~
te".32 A MPM também acredi ta que os joyens do nosso tempo não
estão completamente alienados, mas faz questão de afirmar que'
"não se trata de jovens radicais que contestam as bases da
sociedade. Na verdade (conclui), revelando-se conscientes
de suas contradições, não questionam a determinação ou as 33
causas desse conflito". A semelhança das conclusões é cla-
ra: estão quietos mas não alienados ou, têm consciência de
suas contradições mas nao questionam o porquê delas. A di -
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vergência também é clara, Só a Saldiva ousa dizer que os
jovens estão "preparados para o que vem pela frente". Esta
é realmente uma afirmação arriscada, afinal, nem o moderno
Saint-Preux com seus valores sólidos, se sentia preparado
para o que vinha pela frente. Portanto, é prudente não achar
que o herói Saint-Preux vencerá o turbilhão pós-moderno.
E prudente não ser otimista quanào a maioria nao
está disposta a fazer da indignação e combate a melhor for­
ma de se manter vivo. E prudente não ser otimista quando a
última novidade da juventude é a estética do arroto, da vi~
lência, da idolatria, da histeria, da espetacular idade agre~
siva, da feiúra deliberada e do grotesco exacerbada no show
dos metaleiros. Os punks e sua derivaçao nazi-facista (os
skinheads ou carecas) são a única manifestação de rebeldia e
indignação juvenil que restou. Ninguém pode dizer que esse
resto seja a tendência geral. Por enquanto é uma tribo plan~
tária entre tantas outras. Mas é diferente das demais domina
das pela consciência quieta, porque nela sobra a vontade de
enfrentamento. Isto não faz acreditar na emergência de uma
geração ousada. Afinal, apenas uma tribo desembestada, pre -
se