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O Livro descreve uma pesquisa de doutorado explorando a poesia

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  • NO AR, UM POETA

  • Presidente da RepblicaDilma Vana Rousse

    Ministro da EducaoAloizio Mercadante

    Universidade Federal do CearREITOR

    Prof. Jesualdo Pereira FariasVICE-REITOR

    Prof. Henry de Holanda Campos

    Conselho EditorialPRESIDENTE

    Prof. Antnio Cludio Lima GuimaresCONSELHEIROS

    Profa Adelaide Maria Gonalves PereiraProfa ngela Maria Mota Rossas de Gutirrez

    Prof. Gil de Aquino FariasProf. Italo Gurgel

    Prof. Jos Edmar da Silva Ribeiro

    Diretora da Faculdade de EducaoMaria Isabel Filgueiras Lima Ciasca

    Coordenador do Programa de Ps-Graduao em Educao BrasileiraEnas de Arajo Arrais Neto

    Chefe do Departamento de Fundamentos da EducaoAdriana Eufrsio Braga Sobral

    Srie Dilogos IntempestivosCOORDENAO EDITORIAL

    Jos Gerardo VasconceloS (EDITOR-CHEFE)Kelma Socorro Alves Lopes de Matos

    Wagner Bandeira Andriola

    DRa ANA MARIA IRIO DIAS (UFC)DRa NGELA ARRUDA (UFRJ)DRa NGELA T. SOUSA (UFC)DR. ANTONIO GERMANO M. JUNIOR (UECE)DRa ANTNIA DILAMAR ARAJO (UECE)DR. ANTONIO PAULINO DE SOUSA (UFMA)DRa CARLA VIANA COSCARELLI (UFMG)DRa CELLINA RODRIGUES MUNIZ (UFRN)DRa DORA LEAL ROSA (UFBA)DRa ELIANE DOS S. CAVALLEIRO (UNB)DR. ELIZEU CLEMENTINO DE SOUZA (UNEB)DR. EMANUEL LUS ROQUE SOARES (UFRB)DR. ENAS DE ARAJO ARRAIS NETO (UFC)DRa FRANCIMAR DUARTE ARRUDA (UFF)DR. HERMNIO BORGES NETO (UFC)DRa ILMA VIEIRA DO NASCIMENTO (UFMA)DRa JAILEILA MENEZES (UFPE)DR. JORGE CARVALHO (UFS)DR. JOS AIRES DE CASTRO FILHO (UFC)DR. JOS GERARDO VASCONCELOS (UFC)DR. JOS LEVI FURTADO SAMPAIO (UFC)DR. JUAREZ DAYRELL (UFMG)DR. JLIO CESAR R. DE ARAJO (UFC)

    DR. JUSTINO DE SOUSA JNIOR (UFC)DRa KELMA SOCORRO ALVES LOPES DE MATOS (UFC)DRa LIA MACHADO FIUZA FIALHO (UECE)DRa LUCIANA LOBO (UFC)DRa MARIA DE FTIMA V. DA COSTA (UFC)DRa MARIA DO CARMO ALVES DO BOMFIM (UFPI)DRa MARIA IZABEL PEDROSA (UFPE)DRa MARIA JURACI MAIA CAVALCANTE (UFC)DRa MARIA NOBRE DAMASCENO (UFC)DRa MARLY AMARILHA (UFRN)DRa MARTA ARAJO (UFRN)DR. MESSIAS HOLANDA DIEB (UERN)DR. NELSON BARROS DA COSTA (UFC)DR. OZIR TESSER (UFC)DR. PAULO SRGIO TUMOLO (UFSC)DRa RAQUEL S. GONALVES (UFMT)DR. RAIMUNDO ELMO DE PAULA V. JNIOR (UECE)DRa SANDRA H. PETIT (UFC)DRa SHARA JANE HOLANDA COSTA ADAD (UFPI)DRa SILVIA ROBERTA DA M. ROCHA (UFCG)DRa VALESKA FORTES DE OLIVEIRA (UFSM)DRa VERIANA DE FTIMA R. COLAO (UFC)DR. WAGNER BANDEIRA ANDRIOLA (UFC)

    CONSELHO EDITORIAL

  • Fortaleza2014

    Henrique Beltro

    NO AR, UM POETA

  • No Ar, um Poeta 2014 Henrique Srgio Beltro de CastroImpresso no Brasil / Printed in BrazilEfetuado depsito legal na Biblioteca Nacional

    TODOS OS DIREITOS RESERVADOS

    Edies UFCAv. da Universidade, 2932, Benfi ca, Fortaleza-CearCEP: 60020-181 Livraria: (85) 3366.7439 Diretoria: (85) 3366.7766 Administrao: Tel./Fax (85) 3366.7499Site: www.editora.ufc.br E-mail: [email protected]

    Faculdade de EducaoRua Waldery Uchoa, 1, Benfi ca CEP: 60020-110Telefones: (85) 3366.7663/3366.7665/3366.7667 Fax: (85) 3366.7666Distribuio: Tel.: (85) 3214.5129 E-mail: [email protected]

    Normalizao Bibliogrfi caPerptua Socorro Tavares Guimares

    Projeto Grfi co e CapaCarlos Alberto A. Dantas ([email protected])

    Reviso de TextoFrancisca de S Benevides

    Dados Internacionais de Catalogao na PublicaoUniversidade Federal do Cear Edies UFC

    C355n Castro, Henrique Srgio Beltro de No ar, um poeta / Henrique Srgio Beltro de Castro. Fortaleza: Edies UFC, 2014.

    361p. : il. Isbn: 978-85-7282-615-0 (Coleo Dilogos Intempestivos, n. 163)

    1. Autobiografi a 2. Narrativa 3. Poesia 4. Rdio 5. Afetividade 6. Letras 7. Educao I. ttulo

    CDD: 839

  • SOBRE O AUTOR

    Henrique Beltro (HENRIQUE SRGIO BELTRO DE CASTRO)Poeta, radialista, pesquisador e professor universitrio.

    POESIA E MSICAAutor de Vermelho (2006; 2007) e Simples (2009), livros de poemas e canes. Parcerias com Rogrio Franco, Jord Guedes, Vlademir Rocha, Marcelo Kaczan, Fernando Rosa, Alex Costa, Dumar, Wil-ton Matos, Pedro Rogrio, Rodrigo BZ, Rafael Lima, Marcos Paulo Leo, Isaac Cndido, Paulo Branco, Pingo de Fortaleza, Lu e Mrcio Resende, e algumas dessas canes gravadas por Pingo de Fortaleza, Joana Anglica, Marcelo Kaczan, Aparecida Silvino, Lorena Nunes, Wilton Matos e Lia Veras, Cal Alencar, Jord Guedes, Edmar Gon-alves, Simone Guimares e Fagner.

    RADIOFONIAProdutor e apresentador dos programas Sem Fronteiras: Plural pela Paz (desde 1998) e Todos os Sentidos (desde 2003) da Rdio Universitria FM 107,9 projetos de extenso da UFC. www.radiouniversitariafm.com.br

    DOCNCIAProfessor do curso de Letras: Portugus-Francs da Universidade Federal do Cear (UFC) desde 1994. Formador nas reas de rdio e de ensino de francs.

    FORMAOGraduado em Letras: Portugus-Francs pela UFC (1988). Mestre em Lingustica Aplicada: Ensino/Aprendizagem de Lnguas Es-trangeiras pela Universidade Estadual do Cear (2002). Doutor em Educao Brasileira pela Faculdade de Educao da UFC (8/2008 12/2011), com doutorado sanduche na Universit de Nantes, Frana. Tese: No ar, um poeta: do singular ao plural experincias afetivas (trans)formadoras em um percurso autobiogrfi co potico--radiofnico (2011).

  • CONTATOS PESSOAISE-mail: [email protected] www.henriquebeltrao.blogspot.com(85) 9101.1820 (Tim) (85) 8527.5708 (Oi)

    Contatos dos programas radiofnicosTODOS OS SENTIDOSE-mail: [email protected] Facebook: www.facebook.com/sentidostodosBlogue: http://todosossentidosuniversitariafm.wordpress.com/

    SEM FRONTEIRAS: PLURAL PELA PAZE-mail: [email protected] Facebook: www.facebook.com/pluralpelapazBlogue: http://semfronteirasplural.wordpress.com/

  • APRESENTAO

    Nesta altura da vida posso dizer que os livros e a msica foram minhas paixes mais constantes. Os livros esto em mi-nha vida desde sempre e, no que depender de mim, jamais nos separaremos. Por onde andei vi com prazer bibliotecas e livrarias. De livros me agradam o perfume, a textura, o peso, o manuseio e muitas vezes at o contedo. a partir dessa posio de amante e leitor voraz que contemplo o trabalho de Henrique Beltro que ora se publica.

    Todo livro tem uma histria. Apresent-lo tambm refl e-tir sobre o processo de criao (incluindo aquelas fl utuaes de contexto) do qual ele resultou.

    Dentre os mltiplos aspectos que podem ser arrolados nes-ta gnese, quero destacar que, em primeiro lugar, este livro fru-to de um curso de doutorado realizado parte no Brasil e parte na Frana; em segundo lugar, resultado de ponderaes muito per-tinentes a respeito da experincia do autor enquanto profi ssional do rdio, educador e militante da poesia; e em terceiro mas no em ltimo lugar, emerge do fl orescimento de toda uma vida, que tem razes remotas na vida familiar do menino que se via es-critor e que se completa no Henrique hoje adulto, pai, escritor, artista e operador da palavra.

    Este livro , assim, o refl exo de uma histria de vida e for-mao, que tem como eixo uma relao privilegiada com a pala-vra poeticamente situada, e iluminada com uma relao muito especial com o outro, na qual o rdio oferece o suporte que gene-raliza, abre, amplifi ca as fronteiras da amorosidade.

    Organizando suas 360 pginas em 7 captulos, opera com rara felicidade a integrao da teoria ao relato especfi co, o que resulta em ganhos signifi cativos de poder explicativo, e permite

    VII

  • ao leitor tanto acompanhar o dilogo com a literatura quanto a construo do signifi cado social do conjunto da experincia, e o sentido que ele, autor, retirou dela.

    No conjunto do trabalho, a experincia internacional do autor desponta como um momento notavelmente enriquecedor. Ele dialoga com o grupo de Nantes a partir da perspectiva cea-rense, fato possibilitado pelo seu habitus francfono, construdo ao longo de uma socializao primria marcada pela literatura e msica francesas. Mas ele tambm sofre o impacto formador de uma experincia com leitores privilegiados da cultura acadmica. Juntas, essas trocas culturais do um sabor especial ao texto: algo evidentemente local, mas que rompe as fronteiras do paroquialis-mo e se constitui num excelente documento acadmico e, assim, universal.

    Professor Luiz Botelho Albuquerque, Ph. D.Msico e pesquisador

    Docente do Programa de Ps-Graduao em Educao da UFC

    VIII

  • Para minha me, DIRLENE MARLY BELTRO DE CASTRO, a sanfoneira e pianista virtuose

    que comps a melodia da minha vida.

    Para meu pai, JOS FRANCIO DE CASTRO,o poliglota silencioso que escreveu

    a poesia da minha vida.

    Para meu fi lho, RAVI MOREIRA LIMA DE CASTRO,o viajante com quem compartilho

    nossos csmicos caminhos.

    Para minha fi lha, FLORA MARTINS BELTRO,a Abelhinha, com quem fao

    mel e cano no jardim do corao.

    Para minha amada, KARLA PATRCIA MARTINS FERREIRA,a musa que me ilumina

    e me faz cantar meus poemas.

  • Graas a DEUS,

    aos parceiros de rdio, msica e poesia,aos mestres e estudantes, leitores e ouvintes,amigas e amigos meus.

    Graas

    a Luiz Botelho Albuquerque e Martine Lani-Bayle, orientadores e amigos meus, pesquisadores e artis-tas de luz,

    a Ana Irio, Elvis Matos, Elzanir dos Santos, Gis-neide Ervedosa e Sofi a Lerche, que compuseram a banca da defesa potico-musical da tese,

    mestra da palavra, que me sagrou poeta, Maria da Graa de Andrade Teixeira,

    mestra da msica, que me chamou a viver o sagra-do palco, Maria Izara Silvino Moraes,

    queles que compartilharam comigo os caminhos para a publicao deste livro: Francisco de Assis Melo Lima, Gerardo Vasconcelos, Carlos A. Dantas, Mauro Gurgel, Nonato Lima e Francisca Benevides

    e a todos que fazem a nossa RDIO UNIVERSITRIA FM.

  • Seu dot, me d licenaPra minha histria cont PATATIVA DO ASSAR

    O homem tem a obrigao de semear belezas. JOS FRANCIO DE CASTRO

    E melhor se poderia dizer dos poetas o que disse dos ventos Machado de Assis:A disperso no lhes tira a unidade, nem a inquietude a constncia. MARIO QUINTANA

    Fora da poesia no h salvao. MARIO QUINTANA

  • NADA

    Nada lamento.Leve, passo como o vento.Planto e rego e espero,aguardo colher o que bem quero.

    Nada desprezo.Medito sobre o pequeno. Rezo.Considero as coisas mais midas:a folha seca ao p da planta desnuda.

    Nada, quase nada sei.Por isso os meus versos simples.

    Nada de todo bvio e garantido.Nada j est decidido.

    Nada lamento, nada desprezo, quase nada sei.Caminhando ao teu lado, sou reluzente rei.

    HENRIQUE BELTRO (Vermelho, 2007) Com msica de VLADEMIR ROCHA

  • S U M R I O: um potico roteiro

    APRESENTAOLuiz Botelho Albuquerque ...............................................................................................................VII

    ABERTURA: PRIMEIROS VERSOS NO AR .................................................................................................. 19Vinheta de Abertura .................................................................................................................................. 19O Radialista Apresenta o Potico Programa: Versos no Ar .................................................................. 22Um poeta no rdio: um caminho de (trans)formao .....................................................................25A poesia de ser professor e a arte de aprender juntos ......................................................................27Sem fronteiras em todos os sentidos ...............................................................................................29Afetividade: sentindo muito ...........................................................................................................32A poesia vermelha e simples, uma maneira de ser .........................................................................33

    A POESIA: LINHAS E ENTRELINHAS DE UM PERCURSO DE (TRANS)FORMAO................................ 39O Abrao da Graa ou a Sagrao do Poeta ............................................................................................. 40Ser Poeta: de acordo com os Poetas ....................................................................................................... 80A poesia, os poemas: amor palavra ..............................................................................................85O poeta: amante da palavra ............................................................................................................96Eu Fao Versos como Quem Faz Perguntas ........................................................................................... 123

    NO TEMPO DO RDIO: SEMPRE............................................................................................................... 133De um Radinho Vermelho Sintonia da Terra .................................................................................... 139No Ar, Sem Fronteiras: Plural pela Paz e Todos os Sentidos ............................................................... 150No Ar, pela Rdio Universitria FM, a Extenso Universitria ........................................................... 158

    INTERVALO ................................................................................................................................................ 177

    ITINERRIOS EM EDUCAO E PESQUISA ............................................................................................. 181Um Formador em (Trans)Formao ....................................................................................................... 182Os mestres.....................................................................................................................................184O professor entra em cena .............................................................................................................192De volta ao Bosque de Letras da UFC .............................................................................................200Os estudantes e a arte de aprender juntos.....................................................................................211O mestrado: um poeta no reino da pesquisa .................................................................................220O doutorado e o doutorado sanduche ..........................................................................................223A Poesia das Experincias Afetivas (Trans)Formadoras: uma Maneira de Ler o Mundo ................ 243

  • PARA CONTEMPLAR O CAMINHO OU O CAMINHO DA CONTEMPLAO ............................................ 263Afetividade: as Emoes e os Sentimentos o Corao do Percurso de Formao ....................... 264Histrias de Vida e Formao: sobre uma Narrativa Autobiogrfi ca Potica ................................. 288

    ENCERRAMENTO: A (RE)LEITURA DA AUTOBIOGRAFIA DE UM POETA A (TRANS)FORMAO NA POESIA DOS ENCONTROS NO AR, NO PALCO, NA SALA DE AULA .......... 303

    VINHETA DE ENCERRAMENTO: LETRAS E MSICAS AS REFERNCIAS .......................................... 327Pginas Consultadas ................................................................................................................................ 335

    A N E X O S

    ANEXO A ..................................................................................................................................................... 339Charte de lAssociation internationale des histoires de vie en formation et de recherche biographique en ducation (ASIHVIF)

    ANEXO B ..................................................................................................................................................... 343The slow science manifesto

    ANEXO C ..................................................................................................................................................... 344Capas dos livros Simples e Vermelho

    ANEXO D ..................................................................................................................................................... 344Logomarcas dos programas de rdio

    ANEXO E ..................................................................................................................................................... 345Fotogra as

  • 19

    ABERTURA: PRIMEIROS VERSOS NO AR

    Vinheta de Abertura

    Je compose le tout premier pas qui dploie ce chemin inventer. Les premiers vers dans lair hsitent poser sur les lignes.Ils aiment les ondes de la radio qui fl ottent en toute libert

    jusqu quelque part dans le cosmos que personne ne dsigne.

    Eu componho o primeiro passo que inaugura este caminho a criar. Os primeiros versos no ar hesitam em pousar sobre as linhas.

    Eles amam as ondas do rdio que fl utuam livres a voar,at algum lugar no cosmos que nenhum de ns adivinha.

    A poesia anima meus dias e minhas noites. Semeio ver-sos no ar, colho encontros com meus pares: os leitores, os es-tudantes, os artistas, os professores e os ouvintes com os que amam ler e escrever, com os que escutam (n)o silncio e falam desde si, com os que buscam em plena sinceridade e com os que verdadeiramente se encontram. Formando e me (trans)formando, duvidando e procurando, eu me junto a quem me l aqui e agora, ao fi o destas pginas cujas entreli-nhas se regozijam por estarem grvidas de eloquncia.

    Porque este percurso de (trans)formao como poeta me inquieta e entusiasma, me desafi a e seduz, bem como por-que espero contribuir, embora modestamente nas reas envol-vidas, precisei me encorajar a fazer esta busca autobiogrfi ca sobre este caminho de potica (trans)formao, considerando o papel que nele tem a afetividade, ou seja, senti necessidade de ousar fazer esta pesquisa autobiogrfi ca sobre as experin-cias afetivas (trans)formadoras que fi zeram e fazem de mim poeta, radialista e professor, contemplando minha histria de outrora, de agora e o porvir, ao longo desta aprendizagem que

  • HENRIQUE BELTRO 20

    atravessa geraes at mim e continua no cotidiano, a cada verso vermelho ou simples1, a cada emisso Sem Fronteiras: Plural pela Paz e Todos os Sentidos2, a cada poema musicado, a cada espetculo feito com parceiros e amigos dos reinos da msica e da literatura, a cada aula como professor ou estu-dante, em todos os momentos, eterno aprendiz.

    A Poesia a minha companhia. A Poesia meu modo de ser. (BELTRO, 2007, p.24)

    A ela cabe animar cada verso que eu desenho, cada pa-lavra que canto, cada gesto que fao como radialista, pesqui-sador, professor, formador de professores de francs e de jor-nalistas e publicitrios encantados com o rdio.

    As emisses radiofnicas que fao na Universitria FM constituem parte essencial do estudo a que ora me consagro: No ar, um poeta. No toa que o ncleo do ttulo poeta e que a circunstncia, ou melhor, o lugar deste poeta no ar. A poesia me anima e conduz e abriga e orienta e apazigua. A poesia me inspira. na qualidade de poeta que atuo no rdio, no palco, na sala de aula. E se destaco a radiofonia que no ar tenho vivido parte fundamental da minha contnua formao e constante atuao social, inclusive como educador.

    Espero sempre caminhar rumo ao autoconhecimento e ao aperfeioamento do poeta, educador e comunicador que sou para melhor colaborar com as pessoas com quem convivo.

    1 Aluso a meus dois primeiros livros de poemas e canes: Vermelho (2006; 2007) e Simples (2009). 2 Esses programas radiofnicos, que apresento e produzo, so aes de ex-tenso universitria por mim coordenadas como professor da Universidade Federal do Cear (UFC). O Sem Fronteiras: Plural pela Paz vai ao ar aos sbados e o Todos os Sentidos, s quartas-feiras, ambos ao vivo, a partir de 14 horas, pela Rdio Universitria FM 107,9: .

  • NO AR, UM POETA 21

    Espero ir sempre rumo abertura para a poesia no quotidiano, na educao e (trans)formao humana, nos contextos de for-mao docente e radiofnica, nas Histrias de Vida e Forma-o (HIVIF), semeando poesia na academia e na radiofonia.

    A busca de conhecimento principia com perguntas. Nes-te estudo, eu me coloquei as seguintes questes de pesquisa: Como me formei poeta luz dos poetas que me marcam afeti-vamente? Como ler os sentimentos e as emoes que marcam minha formao potica? Quais experincias afetivas (trans)formadoras se destacam neste percurso de formao poti-ca? O que quer dizer (ser) poeta e poesia para os poetas que compem a essncia de minha (trans)formao potica? Como posso contribuir com a abordagem Histrias de Vida e Formao com um estudo sobre minha (trans)formao como poeta que atua em rdio e na educao?

    A mim resta doravante inventar bssola e ampulheta que me orientem no tempo e espao poticos, buscando compreen-der as experincias afetivas (trans)formadoras nesta pesquisa com Histrias de Vida, por meio desta narrativa autobiogrfi ca potica. E, por pouco ou arriscado que seja, procurar ser ape-nas a sincera expresso de mim mesmo. E assim ir do singular ao plural neste percurso de busca de mim e do outro.

    Potica Narrativa

    Escuta: vivo o que te digo.Toca de leve a linha.Tu vs? OlhaDegusta a entrelinha.A pele da pgina. Silncio PalavraSilncio PalavraRespiraSente o quanto vive em ti do tanto que te digo de mim.

  • HENRIQUE BELTRO 22

    O Radialista Apresenta o Potico Programa: Versos no Ar3

    No se inquietem pela minha aparncia, minha imagem vai pouco a pouco se impor pela vontade das palavras. [...] A

    nica soluo para ir at l me parece ser tomar a pluma e me recostar no poder criativo da escrita, sem ideia prvia do que

    ela vai fazer de mim.4

    MARTINE LANI-BAYLE (2000, p.14, traduo minha) Este livro revela alguns passos e passagens de meu per-

    curso de pesquisa autobiogrfi ca5, ao longo do qual compartilho minhas dvidas e refl exes sobre minha formao como poeta, destacando minha atuao e aprendizagem como homem de rdio e educador, bem como o papel de minhas experincias afetivas (trans)formadoras. Para isso, vivo o desafi o de (re)ler e escrever sobre essas experincias, nas quais a palavra evidentemente essencial. Considero que uma narrativa autobio-grfi ca potica permite melhor me conhecer e me dar a conhe-cer, bem como penso e sinto que atravs dela mais vivel e belo

    3 A verso primeira deste tpico e seus subtpicos (BELTRO-DE-CASTRO, 2011), originalmente escrita em francs, foi publicada como ensaio intitulado Un pote lantenne : la ectivit dans un parcours de recherche autobiogra-phique, na revista Chemins de formation au fi l du temps, n 16 (Paris: Tradre, octobre, 2011), sob a direo cientfi ca de Martine Lani-Bayle.4 Ne vous inquitez pas pour mon apparence, mon image va peu peu simposer au gr des mots. [...] La seule solution pour y aller me semble de prendre la plume et madosser au pouvoir cratif de lcriture, sans ide pralable de ce quelle va faire de moi (LANI-BAYLE, 2000, p.14).5 Doutorando em Educao a partir de agosto de 2008 na Universidade Fe-deral do Cear (UFC), Brasil, com a orientao do professor Luiz Botelho Albuquerque, fi z um doutorado sanduche de maro de 2010 a fevereiro de 2011 na Universit de Nantes, Frana, com a orientao da professora Marti-ne Lani-Bayle, e defendi a tese em 3 de dezembro de 2011, Dia Internacional das Pessoas com Defi cincia, adotado pela ONU e pelo Movimento Interna-cional das Pessoas com Defi cincia (PcD). Destaco a data por trabalhar com as PcD no programa radiofnico Todos os Sentidos.

  • NO AR, UM POETA 23

    fazer emergirem as experincias afetivas (trans)formadoras mais marcantes aquelas em que se evidencia a infl uncia dos sentimentos e das emoes envolvidos nesta formao de mim.

    A narrativa autobiogrfi ca potica busca captar fragmentos que ela possa traduzir da vida deste autor em pa-lavras escritas em uma prosa potica sobre as (minhas) ex-perincias afetivas (trans)formadoras, revelando a leitura por mim feita do outro, de mim e do mundo, em uma dimenso racional-afetiva, em que construo a formao e transformao de mim na interao com o outro contextualizada no mundo.

    Sendo poeta e estudando o caminho que me levou a s--lo, no posso excluir a poesia destas linhas, essa habitue que frequenta minha pluma bem antes deste teclado quando eu ainda nem sequer suspeitava que me tornaria professor e pes-quisador, produtor e locutor de rdio, formador de professo-res de francs e de comunicadores apaixonados pela radiofo-nia. Eu contemplo ainda e sempre o albatroz de Baudelaire6, cujas asas imensas o levam s alturas, mas o impedem de ca-minhar no cho do comum, enquanto minhas palavras alam voos de uma estante outra, embaralhando as divises dos diferentes setores de minha biblioteca.

    Neste captulo de abertura, busco apresentar o tema e delimit-lo em cinco breves passagens que anunciam o que estudei. Tecerei inicialmente algumas linhas sobre minha formao como poeta, retomando brevemente ideias, em es-pecial de Paulo Freire (2008), que esto na base de minha atitude no mundo e no exerccio de meus mtiers.

    Logo aps, farei alguns comentrios sobre minha for-mao e meu fazer docente, do estudante que admira(va) seus

    6 Voltarei ao poema O Albatroz, de Baudelaire, no item Ser Poeta: de acordo com os Poetas.

  • HENRIQUE BELTRO 24

    mestres ao professor que estima os estudantes, em meio ao encanto do Bosque de Letras da UFC e aonde for.

    Em seguida, apresentarei sucintamente os programas To-dos os Sentidos e Sem Fronteiras: Plural pela Paz, irradiados sob minha responsabilidade na Universitria FM, um com as pes soas com defi cincia (PcD), o outro sobre a diversidade lingustica, cultural, espiritual, geracional, biolgica de nosso planeta.

    Depois, situarei a refl exo sobre a afetividade na for-mao humana, a partir da concepo espinosiana de Sawaia (2000) e Damsio (2004) que veem os afetos como todos os sentimentos e emoes.

    Enfi m, encerrarei este captulo com algumas considera-es sobre o poeta e a poesia. Acredito ser consensual o que dizem os dicionrios quando conceituam a poesia como a arte da linguagem, capaz de exprimir ou sugerir algo pelo ritmo, pela harmonia, pelas imagens ou como aquilo que h de ele-vado ou tocante nas pessoas e no mundo, bem como quando defi nem o poeta como o artista que faz versos, que tem a ma-estria dessa arte da linguagem, como aquele que vivencia e desperta em outrem a emoo potica, o sentimento do belo. Cito essas defi nies no incio como de hbito nos textos aca-dmicos, mas esclareo que ao longo destas pginas caber aos prprios poetas falar da poesia e do poeta. Nesta seara, poderia adotar as valiosas contribuies de grandes estudio-sos da Literatura, como Snzio de Azevedo, Alfredo Bosi, An-tnio Cndido, Afrnio Coutinho, Horcio Ddimo e Massaud Moiss, mas escolho adotar as prprias palavras dos poetas como guias para procurar conhecer o ser poeta e o fazer poe-sia7. Voltarei a abordar esses assuntos de maneira mais deta-lhada nos captulos a eles consagrados.

    7 Entre as obras de referncia, destaco A criao potica, de Massaud Moiss (1977), e Para uma teoria do verso, de Snzio de Azevedo (1997).

  • NO AR, UM POETA 25

    Um poeta no rdio: um caminho de (trans)formao

    Polylogue

    Un pote se compose comment ? Un pome ne vient pas que de lui. Un pome, a ne va pas de soi. Chaque vers est n de partout. Chaque pome va et vient de vous.

    Un pote est un prsent compos de ses lectures et de ses lecteurssaisi au vol entre souvenirs et avenirs si peut-tre seulement si

    lcoute et le silence tissent dans le labyrinthe de leurs atoutsles lignes et les cordes de vos voix nous.(BELTRO, Nantes, 2010, notas de aula)

    Pollogo

    Um poeta se compe como? Um poema no vem dele somente. Um poema no vem por si. Cada verso nasce de todo canto. Cada poema vai e vem de vs.

    Um poeta um presente composto de suas leituras e seus leitoresapanhado no voo entre recordar e porvir se talvez somente se

    a escuta e o silncio tecem no labirinto de seus trunfosas linhas e as cordas de vossas vozes de ns.

    (BELTRO)

    A voz do poeta habitada por vrias vozes. O poeta feito da sua gente. Suas linhas so povoadas pelas pessoas que ele encontrou e pela leitura do mundo (FREIRE, 2008) que ele fez e continua a fazer, posto que a leitura do mundo pre-cede sempre a leitura da palavra e a leitura desta implica a continuidade da leitura daquele (FREIRE, 2008, p.20).

    Meu pai, o poliglota silencioso que escuto desde semen-te, minha me, a pianista e sanfoneira virtuose que cultivava

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    nosso jardim, os familiares e os antepassados nossos, os ami-gos de sempre e os amores bem vividos, meus mestres e pro-fessores, os estudantes e ouvintes meus, os artistas que admi-ro, aqueles com quem convivi ou convivo, todos eles cantam no coral da formao ainda compartilhada medida que eu vivo com eles ou quando recordo os belos dias colhidos juntos antes de sua partida.

    Quando a criana que foi meu pai girava a manivela do gramofone para que meu av estudasse francs no princpio do sculo XX numa cidadezinha cearense chamada Cascavel, ele no imaginava que esta se tornaria minha lngua pater-na, graas a seu acompanhamento de meus estudos franc-fonos desde a idade de 10 anos. Quando minha me passava horas a ensaiar no piano msicas de Bach, Mozart, Chopin, Villa-Lobos, Chiquinha Gonzaga e a interpretar na sanfona as de Ary Barroso, Assis Valente, Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga, ela no supunha que um dia eu subiria ao palco para cantar meus poemas musicados em sua maioria por amigos compositores e alguns por mim. As emoes e os sentimentos desde sempre to intensos em mim encontraram na poesia e mais tarde no rdio e no palco as vias que lhes deram voz para se manifestar, me aliviar, me formar e me transformar.

    A expresso da afetividade essencial na emancipao do sujeito encontra na poesia e no rdio campos frteis em que pode se espraiar. Em versos, o sujeito toca uma dimen-so que a prosa no atinge; no ar, o sujeito toma a palavra sem intermedirios entre ele e aquele que escuta sua voz na audincia, compondo essa multido dispersa (TARDIEU, 1969), cada ouvinte capta as ondas ao seu gosto e sua ma-neira, rimando-as com sua leitura do mundo, pronunciando a palavramundo (FREIRE, 2008).

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    Desde a poca em que minha formao radiofnica co-meava no Brasil, sem que eu estivesse dela consciente, quan-do era um dos jovens ouvintes de uma nova rdio pblica! que plantava sua antena no Benfi ca, bairro universitrio de Fortaleza, capital do Cear, na regio Nordeste, o outro que eu escutava me convidava ao encontro. Hoje em dia, do lado dos microfones, o outro continua a ser o porto na direo do qual partem o que sinto e o que penso. Pensar no plural e sen-tir no coletivo so a bssola e a ampulheta que orientam mi-nha prxis na arte radiofnica e em tudo que fao.

    A poesia de ser professor e a arte de aprender juntos

    Lendo ou escrevendo poemas, colhendo a poesia de uma obra de arte ou de um momento quotidiano de beleza ou de dor, a gente passa os dias diferentemente de quem permanece agar-rado aos limites do prosaico e do racional. De acordo com Edgar Morin (1997, p.41, traduo minha), o homem habita a Terra potica e prosaicamente ao mesmo tempo. A respeito disso, inspirado por Morin, Bachelard e outros autores, Severino An-tnio (2009) prope uma nova escuta potica da educao e do conhecimento e nos fala de uma razo potica, uma ra-zo criativa capaz de dialogar com os mistrios do mundo, de ir alm da lgica linear e cartesiana, necessria mas insufi ciente. Para ele,

    essa razo, que se repensa e se recria, inseparvel de uma educao da sensibilidade, tanto da percepo como dos sentimentos, sobretudo uma educao para a empatia: sentir com o outro, pensar com o outro, viver com o outro (ANTNIO, 2009, p.23-24, grifos do autor).

    O outro. Eu retorno essncia da educao dialgica de Paulo Freire: Ningum educa ningum, ningum se educa

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    sozinho. Os homens se educam em comunho, mediatizados pelo mundo (FREIRE, 2005, p.78). Em sala de aula, os afetos sempre falaram alto. Diversas vezes me aproximei dos profes-sores que admirei e que me inspiraram a trilhar a carreira do-cente. Com os estudantes, tenho vivenciado a ciranda dos dias compartilhando saberes e sentires. Em meus mestres e nos es-tudantes, encontrei e encontro a inspirao para ser educador. Poemas e canes compem no somente os programas e as apresentaes em cena, mas do vozes e asas ao que trago para a sala de aula. No ensino de francs, na formao de professo-res, o prprio contexto que, pelos contedos envolvidos, leva a falar de si (apresentar-se, narrar, dar opinio, recordar, plane-jar...) e as atividades artsticas8 tm favorecido a expresso da afetividade e o compartilhamento do que sentimos ao nos en-volvermos uns com os outros e com o que juntos aprendemos.

    A meu ver, a afetividade no devidamente destacada na formao humana. guisa de exemplo, poderia citar o contex-to de formao de professores de lnguas estrangeiras dos cur-sos de Letras da UFC e da UECE, em que tive a oportunidade de constatar (CASTRO, 2002) que somente a dimenso cogni-tiva enfocada: falar e escrever bem o idioma, conhecer-lhe a gramtica, dominar conceitos pedaggicos e abordagens me-todolgicas. Tudo isso fundamental, indubitavelmente, mas passa ao largo do que sentem os estudantes e os professores. A dimenso afetiva precisa ser levada em conta na formao dos professores, e no somente de lnguas. A despeito de estudos que indicam a relevncia do papel das emoes e sentimentos

    8 Leitura, audio, compreenso e criao de poemas e outros textos; au-dio e interpretao de msicas e de emisses radiofnicas; encenao de dilogos criados pelos estudantes, simulando situaes reais; exibio e discusso de fi lmes; apreciao de fotografi as; uso de desenho para ilustrar explicaes ou narrativas...

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    na interao humana, no processo de desenvolvimento e apren-dizagem, tudo se passa como se nada sentssemos enquanto pensamos, estudamos, descobrimos, conhecemos mudamos. So negados ou desprezados os fatos gritantes de que a gente sente medo de errar ou de no saber responder s perguntas dos alunos, de que a gente se depara com a vergonha e com a alegria de se expressar, com os afetos que se manifestam entre as pessoas que se encontram em sala de aula.

    Se atuar em rdio requer a arte radiofnica (TARDIEU, 1969), a meu ver o exerccio da docncia exige a arte de apren-der juntos: a poesia de compartilhar dialogicamente os saberes e os afetos. Eu busco fazer cada aula, cada programa e cada espetculo potico-musical como se crissemos um poema co-letivo os estudantes e eu ou os ouvintes, os convidados e a equipe ou o pblico e os artistas. Essa atitude de cultivar os vnculos entre as palavras, as relaes entre as pessoas em sala de aula, no estdio e em meio ao pblico, as descobertas dos mistrios sedutores de minha lngua materna e de minha ln-gua paterna me faz questionar cotidianamente minha prxis.

    Sem fronteiras em todos os sentidos

    No mbito da Rdio Universitria FM 107,9, sou pro-dutor e locutor do Todos os Sentidos e do Sem Fronteiras: Plural pela Paz, programas semanais temticos, difundidos ao vivo, compostos por uma conversa-entrevista9 com o(a)(s)

    9 Procuro fazer com que as entrevistas sejam descontradas, que se asseme-lhem a uma conversa (quase) informal, em que os afetos e o percurso biogr-fi co do convidado so geralmente valorizados. Tento estabelecer um clima de intimidade com convidados e ouvintes atravs de uma atitude sincera e de escuta do outro, pontuada por convites para interao com a audincia por telefone ou Internet. Diversas tipologias de entrevista foram propostas, entre

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    convidado(a)(s), por notcias, divulgaes de eventos culturais e por poemas e canes. O Todos os Sentidos compartilha-do desde 8 de janeiro de 2003 com as pessoas com defi cincia (PcD), com as que as amam e com as que vivem em contato com elas em diversos contextos sociais. O Sem Fronteiras: Plu-ral pela Paz irradiado desde 28 de junho de 1998, pautado na reverncia diversidade terrestre, isto , diversidade biol-gica (de seres vivos no planeta) e diversidade da humanidade, em sua pluralidade lingustica, cultural, geracional e espiritual. Mergulhado no universo da radiofonia, artstico e educativo a um s tempo, eu vivo durante a produo e no ar o prazer e o desafi o de compartilhar caminhos de formao com diversos cidados, sejam membros da equipe, ouvintes ou convidados: artistas, cientistas, estudantes, educadores, lderes comunit-rios, radialistas, jornalistas...

    Em ambas as emisses, o trabalho de produo e pesqui-sa feito com a participao de dois estudantes de Jornalismo e dois de Publicidade e Propaganda da UFC como bolsistas de extenso. Eles fazem nesse contexto sua atuao em extenso universitria, mas tambm parte de sua formao acadmica, de suas pesquisas e de sua prtica no mbito radiofnico. Os ouvintes participam por telefone, por correio eletrnico ou pes-soalmente, sugerindo temas a serem abordados, enviando po-emas, pedindo canes e propondo perguntas aos convidados. A Rdio Universitria FM10 uma emissora pblica, diferen-

    elas Tardieu (1969) cita a elaborada por Edgar Morin que inclui a entrevista--dilogo que um busca em comum. O entrevistado e o entrevistador co-laboram para pr em evidncia uma verdade que concerne seja a pessoa do entrevistado, seja um problema (TARDIEU, 1969, p.133, traduo minha). 10 A Rdio Universitria FM 107,9, inaugurada em 15 de outubro de 1981, emissora pblica vinculada Fundao Cearense de Pesquisa e Cultura (FCPC), busca levar a educao no formal e a produo cultural da UFC comunidade. Situa-se em Fortaleza, no bairro do Benfi ca, na avenida da

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    te das emissoras comerciais que se pautam em uma lgica de mercado e nos interesses dos proprietrios e seus anunciantes. Encontram-se ali liberdade editorial e compromisso tico com os ouvintes e a sociedade, cumprindo um papel cultural, edu-cativo e de imprensa independente. Isso permite fazer de cada uma dessas aes de extenso um espao potico-radiofnico em que a palavra livre, em que os poemas e canes rimam com o assunto em pauta, em que as emoes e os sentimentos podem ser expressos.

    No Todos os Sentidos, por exemplo, a palavra dos sur-dos, dos autistas, dos esquizofrnicos, dos cegos, das pessoas com sndrome de Down, em suma, a gente busca dar voz aos cidados que tm uma defi cincia motora, sensorial ou inte-lectual eis o caminho que os colegas de minha equipe e eu partilhamos com os ouvintes a cada encontro que nos inquie-ta e transforma, com dvidas e questes que nos despertam, enfrentando preconceitos que nos desafi am, inspirados pela indignao, pela tica e pela esttica, pois se trata de falar no somente de seus direitos, mas tambm de sua sensibilidade, de seus talentos artsticos ou de outra natureza, de seus praze-res e dores, de suas crises e derrotas, de seus sonhos e realiza-es, de suas emoes e sentimentos... A gente busca, nesse espao potico-radiofnico de encontro com voc, fazer o que alcanamos na construo de num mundo mais justo, mais belo e mais sensvel beleza, em que todos ns pessoas com defi cincia ou supostamente normais tenhamos lugar para estudar, trabalhar e para sentir prazer, sonhar e se realizar.11

    Universidade, 2910. www.radiouniversitariafm.com.br11 Transcrio feita por Iara Moura (2010) de um trecho caracterstico de falas minhas como locutor, neste caso da emisso difundida ao vivo em 13 de janeiro de 2010, s 14 horas, na Rdio Universitria FM 107,9.

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    Afetividade: sentindo muito

    Sendo a afetividade to importante quanto a cognio do sujeito, teramos de superar no campo cientfi co a ciso entre esses componentes do ser humano, que pensa, sente e se emo-ciona ao mesmo tempo: o que em mim sente st pensando diz o poeta portugus Fernando Pessoa (1977, p.144). A afetivi-dade12, na concepo espinosiana de Sawaia (2000) e Damsio (2004), concerne todos os sentimentos e todas as emoes: o amor, a esperana, a admirao, a vergonha, a alegria, a triste-za, a raiva, o medo... Para Damsio (2004), a afetividade um aspecto essencial da humanidade e no h dicotomia entre ela e a razo. Segundo Sawaia (2000, p.2), a afetividade a tona-lidade, a cor emocional que impregna o ser humano e vivida como emoes ou sentimentos. Por outro lado, a propsito do que Paulo Freire nomeou amorosidade, um dos sentimentos essenciais no fazer docente e neste livro, ele afi rma que ensi-nar exige querer bem aos estudantes (FREIRE, 1996, p.141). Para meus estudos, considero a amorosidade de Freire como um dos sentimentos essenciais e a afetividade defi nida como todos os sentimentos e todas as emoes que constituem as-pecto essencial do ser humano e marcam nossas vidas.

    As experincias afetivas (trans)formadoras so aqui en-tendidas como os momentos vividos por uma pessoa, contextua-lizados social e historicamente, nos quais sua leitura do mundo e de si constri ou construiu um sentido para si tanto racional quanto afetivamente, de maneira amalgamada, ou seja um sen-tido feito do que se pensa e sente neste instante de vida que

    12 Entre outros grandes nomes que se interessaram pela afetividade e des-tacaram sua relevncia, sugiro a leitura de Carl Gustav Jung, Jacob Levy Moreno e Henri Paul Wallon.

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    constitui formao e transformao do sujeito. (Embora nem toda formao seja transformadora, neste livro encontram--se frequentemente relacionadas e mesmo reunidas na grafi a (trans)formadora, porque neste percurso autobiogrfi co so essas as experincias afetivas que interessam ao estudo.)

    As pesquisas j realizadas sobre afetividade reafi rmam sua importncia na vida humana, mas penso que devem contradizer estas duas vises: a que sugere que ela perturba a razo, mas tambm a que a apresenta como uma soluo extraordinria para a busca humana, como um paliativo ou uma panaceia nesta sociedade que exclui uns e desumaniza os outros. No basta estudar as emoes e os sentimentos: preciso superar a dicotomia razo/afetividade.

    Assim como a arte de aprender juntos, a arte radiof-nica continua a me inspirar neste caminho de aprendizagem, quando eu canto a diversidade da vida ou fao coro com as pessoas com defi cincia (PcD); a cada encontro tecido com os ouvintes ou com um colaborador, um entrevistado, um colega de rdio; a cada vez que a gente passa uma cano ou que eu digo um poema que fl utuam livremente at no sei onde gra-as s ondas hertzianas...

    A poesia vermelha e simples, uma maneira de ser

    Eu volto poesia que anima cada um de meus gestos e de minhas slabas; ela que faz viverem as entrelinhas do que me atrevo a publicar; ela que faz amizades entre silncios e palavras. Este trecho comeou com as palavras de Martine La-ni-Bayle. Citei uma passagem de seu primeiro romance, L le (2000, em portugus: A ilha). Ao fi o destas linhas introdut-rias ao livro (e ao longo dele), deixei minha imagem se impor

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    pela vontade das palavras, como ali dizia Lani-Bayle (2000, p.14). Sem ideia prvia, me confi ando ao poder criativo da escrita (LANI-BAYLE, 2000, p.14), deixei as palavras segui-rem seu curso.

    Isso queria dizer sucumbir s sedues da escrita, cair em suas redes, mas tambm arriscar a lembrana, pre-cipitar-me nos meandros da existncia e, talvez, drenar a histria. Em uma palavra, tornar-se autor. Fcil de falar...13 (LANI-BAYLE, 2000, p.12, traduo minha).

    Sempre foi mais simples para mim buscar os pontos de referncia de minha formao como homem de rdio, como educador, talvez porque a essncia de mim no esteja a, mas no poeta que precede e anima esses papis; talvez porque a formao como poeta acontea fora de qualquer grade, em uma trajetria curricular singular e irrepetvel, de apreen-so (ironicamente) difcil em palavras; talvez porque chego a encontrar explicaes mais plausveis para minha formao profi ssional e para a educao da sensibilidade de que fala Severino Antnio (2009) quando se trata da sala de aula ou do estdio de rdio. Mas um sujeito no se restringe a papis sociais. Ento, como compreender e desafi o! como tra-duzir os recnditos meandros da existncia (LANI-BAYLE, 2000, p.12) que me fi zeram poeta?

    Desde minha infncia, preciso de escrever, de brincar no jardim da linguagem. A janela da imaginao d para a inquietude, a intensidade do que sinto me afeta, a realidade me conturba, o sonho me anima, a msica me faz sonhar e a poesia a poesia minha maneira de ser.

    13 Cela voulait dire succomber aux sductions de lcriture, tomber dans ses fi lets, mais aussi risquer le souvenir, basculer dans les mandres de lexistence et, peut-tre, vidanger lhistoire. En un mot, devenir auteur. Facile dire (LANI-BAYLE, 2000, p.12).

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    Versos Avulsos

    Sempre tive o gosto de escrever versos avulsosem guardanapos, papis de cigarro, extratos bancrios...Quase sempre eles se do por felizes com seu improviso,desafi ando a desordem e o esquecimento de to perecveis.So to passveis de se perderem, de to improvvel

    [publicaoque lhes caem bem guardanapos, letras escritas a giz,poemas na areia beira-mar.Estes meus versos tm o gosto de ser toa,sem cuidado com o tempo, com glria, com traas.(BELTRO, 2009, p.66, com msica de Rodrigo Bezerra)

    Les mites ne rongent pas les mythes autour des potes: As traas no roem os mitos em torno dos poetas. Podem, quando muito, engolir as pginas em que aprendemos de cor seus versos inacessveis aos vermes que borboleteiam as es-tantes de nossas bibliotecas.

    Eu contemplo ainda e sempre o albatroz de Baudelaire14.

    O Poeta semelhante ao prncipe da altura Que busca a tempestade e ri da fl echa no ar; Exilado no cho, em meio corja impura, As asas de gigante impedem-no de andar.(ALMEIDA, sem data, p.28-31)

    Intil tentar compreender a recusa de poesia na vaidosa melancolia da academia. Quero assim mesmo abraar o ris-co de ler e pronunciar a palavramundo (FREIRE, 2008) ao meu gosto e minha maneira: com poesia.

    Silncio muito me acompanhou. Sobretudo quando menino, tmido, imerso no desenho, na leitura e na escrita. Desde ento escrevinhava versos. No entanto, vim a publicar

    14 Conforme foi dito, falarei do poema O Albatroz, de Baudelaire, em Ser Poeta: de acordo com os Poetas.

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    Vermelho (BELTRO, 2006) somente aos 39 anos, e, esgota-da a primeira edio, uma segunda, com os crditos dos par-ceiros que musicaram poemas, em 2007. Dois anos depois, vim a lanar o Simples (BELTRO, 2009). At ento, somente vira de meu em letra impressa um conto em prosa potica: Os cisnes15. Cada qual com seu ritmo...

    A vida do poeta tem um ritmo diferente. um contnuo de dor angustiante.O poeta o destinado do sofrimentoDo sofrimento que lhe clareia a viso de belezaE a sua alma uma parcela do infi nito distanteO infi nito que ningum sonda e ningum compreende.

    [...]O poeta tem o corao claro das avesE a sensibilidade das crianas.[...]A sua poesia a razo da sua existnciaEla o faz puro e grande e nobreE o consola da dor e o consola da angstia.

    A vida do poeta tem um ritmo diferenteEla o conduz errante pelos caminhos, pisando a terra e

    [olhando o cuPreso, eternamente preso pelos extremos intangveis.(MORAES, O Poeta, 1980, p.73)16

    Com o que rima ser poeta? Por que buscar, graas abordagem Histria de Vida e Formao, as frgeis respostas

    15 A publicao desse texto e os acontecimentos que a precedem constituem uma das experincias afetivas formadoras essenciais, que comentarei adiante, o momento em que me sinto reconhecido como poeta pela professora Graa Teixeira. O conto foi o propulsor, a causa que desencadeou o processo, o motivo que me levou a vivenciar o momento experiencial afetivamente formador. 16 Voltarei a esse poema de Vinicius no tpico Ser Poeta: de acordo com os Poetas.

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    s questes que me habitam? Para compartilh-las, penso eu. Para rimar arte com cincia, talvez. Grande risco!

    Nas palavras de Josso (2004, p.58): ir ao encontro de si visa a descoberta e a compreenso de que viagem e viajante so apenas um. A busca de mim me conduz ao encontro com o outro, do singular ao plural, ao fi o das linhas deste livro, ao longo deste percurso de pesquisa autobiogrfi ca. A poesia de aprender juntos anima o corpalma17 de quem vive sua forma-o em uma relao dialgica com o outro. Quem sabe o que h de vir, ainda que de dentro de si? Trago versos de Drum-mond de cor me animando a seguir:

    Se procurar bem, voc acaba encontrando,no a explicao (duvidosa) da vida,mas a poesia (inexplicvel) da vida.

    17 Concebi esse neologismo como maneira de expressar que, enquanto estamos encarnados, entendo corpo e alma amalgamados, sem os cindir. Adoto-o no bordo com que inicio os programas de rdio: com o corao em serena festa, de corpalma cheio de gratido, que eu, Henrique Beltro, uma vez mais trago ao ar o Todos os Sentidos/Sem Fronteiras: Plural pela Paz.

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    A POESIA: LINHAS E ENTRELINHAS DE UM PERCURSO DE (TRANS)FORMAO

    Para que t me oigasmis palabras

    se adelgazan a vecescomo las huellas de las gaviotas en las playas.

    [...] Y las miro lejanas mis palabras.

    Ms que mas son tuyas.PABLO NERUDA (1967)

    Para que tu me escutesminhas palavras

    se adelgaam s vezescomo os rastros das gaivotas nas praias.

    [...]E eu as olho longnquas minhas palavras.

    Mais que minhas so tuas.PABLO NERUDA (traduo minha)

    Com as linhas e entrelinhas da poesia, palpita o tear de

    minha formao. O tecido ganha texturas, se esgara, torna a se fazer em outras tessituras na espiral do tempo e do apren-der de si e do mundo.

    Ao longo deste captulo, tecerei o percurso autobiogr-fi co de (trans)formao como poeta no primeiro tpico, em seguida buscarei o que ser poeta e poesia nas palavras dos mestres da palavra que me (trans)formaram, enfi m tecerei breves comentrios sobre a percepo que tenho acerca de como meu povo v e vive a poesia.

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    O Abrao da Graa ou a Sagrao do Poeta

    Se o poeta o que sonha o que vai ser real,Bom sonhar coisas boas que o homem faz

    E esperar pelos frutos no quintal.Milton Nascimento e Fernando Brant (1982)

    Era uma vez eu menino. Um jardim em torno de casa abrigava minhas aventuras. Mais longe eu ia dentro de mim, desenhando, lendo e escrevendo. Na nossa morada ou na es-cola, linhas e palavras me acompanhavam, me abrigavam, me embalavam, me fascinavam.

    Eu criava historinhas, inventava e desenhava os per-sonagens, os veculos, as cenas na Terra, no espao, antiga-mente, nos tempos ento atuais e no futuro, com heris, seus superpoderes, seus adversrios e aventuras. Criava barcos e carros, dos quais fazia a planta baixa, detalhando por dentro todos os equipamentos para ali morar durante a infi nita jor-nada da imaginao. Os desenhos no se contentavam com as folhas em branco e me acompanhavam nas margens dos livros e cadernos...

    Eu escrevia em verso, s vezes em prosa. A poesia de ser me animava desde ento. Fazia poemas sobre o que sentia, ou melhor dizendo, com o que sentia. Meus prazeres e dile-mas. Lembro de vrios deles sobre o pr do sol, hora em que nasci. Lamento ter-me desfeito deles durante a elaborao do Vermelho (BELTRO, 2006), meu livro primeiro. Rasguei tanta coisa... Eram incipientes, textos de um menino, certo, mas que vontade de os reler agora para compor esta narrati-va autobiogrfi ca, deles extraindo talvez sementes ou sinais de experincias afetivas formadoras como aprendiz de poeta, como no caso dos que sobreviveram alguns deles comenta-

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    rei ainda ao longo deste livro: A criana (1976), Ecos de voz cansada (1981), Os cisnes (1984).

    Recordo que escrevia (como ainda escrevo) sempre inspirado pelos sentimentos, emoes, sensaes e relaes com as pessoas, as plantas, os bichos e o imaginrio. Menino, cantei o Carolino, meu cachorrinho e grande companheiro, de carinhos e brincadeiras; cantei tambm o Cajueiro, meu nico amigo de infncia que sobreviveu destruio daquele jardim em que vivi sonhos e verdades. Hoje aquele jaz ao p deste, com que ainda me abrao, ambos enternecidos e cmplices. De seus galhos, contemplava a rua, galgava o teto da varanda para chegar ao telhado, ou saltava para a cacimba e dali para a grama, onde fazia rolamentos de jud. As plantas pequenas viravam fl orestas para meus bonequinhos e carrinhos, as r-vores eram minha ptria amaznica. Subia na Mangueira, no Jasmineiro, na mida Sirigueleira; na Cajaraneira no conse-guia, mas subia na Goiabeira-do-lado-de-casa e na Goiabeira--do-quintal. Esta tinha mais frutos, mas aquela, como Dom Cajueiro, dava acesso ao telhado, meu mirante. E mais: aberta em v, de versos, me convidava a subir por um lado e jogar--me para o outro, agarrando-me aos galhos que me acolhiam, fl exveis e resistentes, mas escorregadios.

    Amizade

    Quando o silncio a dois no se torna incmodo.(QUINTANA, 2005, p.260)

    As amigas, os amigos quantos poemas fi z por eles inspirado! De nossas conversas e silncios brotavam linhas. Descrevia-os, contava episdios, transformava em palavra os confl itos, as alegrias, os desgostos, as promessas de leal companheirismo, as desiluses e, claro, os novos encontros.

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    A amizade j era sagrada para mim. A amizade e o jardim epicuristamente. Enquanto escrevo estas linhas, em minha memria revejo as pginas dos cadernos em que colecionava meus textos, passados a limpo, por sugesto de minha prima Gigi Castro, tambm escritora. Infelizmente, me desfi z de quase todos eles, mas este gesto naquele momento me foi ne-cessrio, para expurgar o que eu no queria publicar e fi nal-mente trazer luz algo do que vinha desde pequeno fazendo. Enfi m! Ecoava em mim a pergunta de minha me: Para que escrever tanto e guardar tudo isso numa gaveta?.

    Amor

    Quando o silncio a dois se torna cmodo. (QUINTANA, 2005, p.260)

    Cantei os amores em meus versos, das platnicas paixes s namoradas. Com nossos silncios e palavras compunha-se a sinfonia dos dias. Minha ampulheta interior gira e a memria me leva de volta uma vez mais s folhas amareladas dos ca-dernos com dorso de arame. Desta vez, vejo poemas de amor mo cheia! Quantos amores, quantas paixes, quanto desejo! Tudo virado em versos. As mulheres sempre me fascinaram. Hoje muitas das musas de outrora so amigas minhas, aladas e benquistas. Eu escrevia porque precisava, cabe dizer, lem-brando o verso que abre o Vermelho: Escrevo porque preciso (BELTRO, 2007, p.15). Assim foi e assim . Por ser de poe-sia feito, precisava ousar fazer a tese-poema, agora publicada como livro.

    A propsito, posto que me propus a fazer uma narrativa autobiogrfi ca potica, oportuno trazer a refl exo de Philippe Lejeune (2008), feita no captulo Autobiografi a e Poesia da obra aqui citada, em que faz a autocrtica defi nio de auto-

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    biografi a por ele anteriormente proposta, em 1975: narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua prpria existncia, quando focaliza sua histria individual, em parti-cular a histria de sua personalidade (Lejeune, 2008, p.14).

    Em Le pacte autobiographique, afi rmei heresia! que a autobiografi a era em prosa, o que, em 99% dos casos ela de fato, mas no certamente de direito. Foi intil, depois disso, tentar me explicar longamente no mesmo volume (no captulo intitulado Michel Leiris. Autobiographie et posie) ou voltar ao tema para apa-ziguar as coisas em 1986, em Moi Aussi: as pessoas nos mandam calar o bico usando nossa prpria defi nio (LEJEUNE, 2008, p.86).

    Aps comentar o fato de uma poetisa, Marguerite Gr-pon, agradecer a outro poeta, Jean Follain, o prefcio por ele feito para sua obra, mas pedir que suprimisse a palavra au-tobiogrfi co com a qual caracterizara um aspecto de seu tra-balho (o que ele no fez), o autor cita a crtica a ele feita no colquio Autobiografi a e Poesia, realizado em 17 e 18 de no-vembro de 2000, em Marselha, por Dominique Rabat, que principiou o debate sobre O autobiogrfi co na poesia con-tempornea com a seguinte colocao: Curiosamente exclu-da da defi nio proposta por Philippe Lejeune em Le pacte autobiographique (1975), a poesia de nosso sculo obriga, en-tretanto, a pensar nos laos que unem o sujeito da escrita e o sujeito real. Em seguida, Lejeune (2008, p.88) se interroga: Eis que de repente a poesia bate porta da autobiografi a e parece se queixar da sua excluso... O que aconteceu? Ser que essa palavra feia [refere-se a autobiografi a] tornou-se uma senha?. Ele prprio responde que no, uma vez que os escritores franceses, mesmo os que contam suas vidas, refu-tam o termo autobiografi a. E cita autobiografi as feitas em

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    versos, entre elas, Autobiographie, de William Cli , publica-da em 1993, e Une vie ordinaire (Uma vida comum), de 1967, da autoria de Georges Perros.

    Penso que nosso sculo convida a repensar, no somen-te os laos entre o sujeito da escrita e o sujeito real, mas en-tre sua cognio e afetividade, a meu ver amalgamadas, entre prosa e poesia, entre autobiografi a e pesquisa, entre arte e cincia. Na leitura que fao e nesta escrita que gero, transi-to entre esses territrios que ora tm ntidas fronteiras, ora dialogam intimamente, ou seja, interagem, ou melhor, agem conjuntamente. De acordo com o que disse desde as palavras introdutrias, esta narrativa autobiogrfi ca potica se faz em uma prosa potica, em alguns momentos mais prosaica, em outros literalmente em versos. Alis, muitas vezes me pergun-taram se faria tudo em versos. A liberdade de ir e vir uma das ddivas maiores da ptria da linguagem. Preciso do que aprendi com o movimento das ondas do mar e com a lumi-nosidade esplndida de minha terra que me inspiram na pro-cura da cadncia e das luzes para fazer este estudo. E admito honestamente que muito nos escapa em meio ao que se nar-ra, ou porque a memria negou, ou as palavras no bastaram para dizer, ou porque no mesmo passvel de ser captado ou dito18. Incorporo a poesia em toda a minha formao e ela no afeita a se explicitar. Qualquer descuido, ela escapole de fi ninho...

    Lejeune (2008) censura nos seguintes termos os pr-prios crticos de literatura ao proporem entrevistas aos cria-dores e os que fazem a crtica gentica, ou seja, a anlise de

    18 Tornarei ao que no passvel de ser dito ao comentar o antiracontage (antinarrativa) e o insu (insciente), conceitos de Lani-Bayle (2008 e notas de aula).

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    rascunhos dos autores com fi nalidade de investigar o processo de criao:

    Muita gente ronda em torno da poesia para que ela conte sua histria e seja obrigada a confessar-se: o prprio poeta por vezes, seus leitores, exegetas frequentemente. Mas a poesia escapa da autobiografi a e foge na ponta dos ps (LEJEUNE, 2008, p.99).

    Antes que elas poesia e autobiografi a me escorre-guem entre as linhas, uma vez tendo entremeado essa refl exo terica, retornemos ao fi o da narrativa... Como disse antes, sempre fi z versos avulsos, em qualquer papel ao alcance da mo. Volto a folhear relembranas. Nos papis ao lu e nos cadernos em que os passava a limpo, alm dos ttulos (se ha-via), ao p dos poemas anotava a quem o dedicara, a cidade e a data, s vezes algum comentrio citando o que se passava (a lua cheia, o sol poente, um aniversrio, um feriado, uma tra-gdia noticiada, um fato inusitado...) e, em alguns casos, o(s) nome(s) de quem mais estava por ali. No sei para que tan-to detalhe no reino da poesia, mas bem me teriam sido teis neste percurso autobiogrfi co de formao e busca de autoco-nhecimento. Pela terceira vez tendo lamentado pelos textos perdidos, reaprumo meu leme e velame recordando Martine Lani-Bayle (1997, p.16, grifos da autora, traduo minha):

    Eu lembro e nunca o farei o sufi ciente rechacem suas estreis nostalgias: trata-se de remontar o (e ao) passado, certamente, mas como uma mola, para melhor se impulsionar para adiante.19

    19 Acrescentei na traduo uma dupla regncia ao verbo remontar na ten-tativa de resgatar dois dos sentidos possveis em remonter: retornar a (em especial algo acima) e montar de novo (o que estava desmontado). Je rappelle et ne le ferai jamais assez chassez vos striles nostalgies: il sagit de remonter le pass, certes, mais comme un ressort, pour mieux se propulser vers lavant.

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    Desde eu mido, a poesia foi minha companheira, meu modo de ser, meu jeito de ler o mundo. Costumo falar o que aqui repito: a primeira coisa que soube de mim foi que sou poeta. O mais me foi dado por acrscimo, poderia talvez di-zer. Foi o chamado das palavras que me levaria mais tarde s letras e radiofonia. Escrevia e lia poesia como quem entra em si, porque l fora o mundo era desafi o, era desatino, era destino que eu queria cavalgar. Mais tarde um pouco, na pu-berdade, leria Rainer Maria Rilke (1993) e responderia sua clssica pergunta para algum saber se poeta:

    No existe seno um nico meio: mergulhe em si mes-mo, busque a razo que lhe ordena que escreva; examine se essa razo estende suas razes at as mais extremas profundezas de seu corao; responda francamente questo de saber se estaria condenado a morrer no caso de lhe ser recusado escrever. Antes de qualquer coisa, pergunte-se, na hora mais tranquila de sua noite: ne-cessrio que eu escreva? Cave em si prprio em busca de uma resposta profunda. E se ela for positiva, se voc for impelido a responder a essa questo com um possante e simples eu no posso fazer de outro maneira, construa ento sua existncia em funo dessa necessidade; at nos mnimos instantes menos signifi cativos, sua vida deve ser o signo e a testemunha dessa impulso (RILKE, 1993, p.27, traduo minha).20

    20 Il nexiste quun seul moyen : plongez en vous mme, recherchez la raison qui vous enjoint dcrire ; examinez si cette raison tend ses racines jusquaux plus extrmes profondeurs de votre coeur ; rpondez franchement la question de savoir si vous seriez condamn mourir au cas o il vous serait refus dcrire. Avant toute chose, demandez-vous, lheure la plus tranquille de votre nuit : est-il ncessaire que jcrive ? Creusez en vous mme en qute dune rponse profonde. Et si elle devait tre positive, si vous tiez fond rpondre cette question grave par un puissant et simple je ne peux pas faire autrement, construisez alors votre existence en fonction de cette ncessit ; jusque dans ses moindres instants les plus insignifi ants, votre vie doit tre le signe et le tmoin de cette impulsion.

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    Eu no podia, nem posso fazer de outra maneira; eu precisava, sim, e continuo precisando escrever para viver. A cada instante de desespero; a cada lume da esperana. A cada momento de ansiedade e angstia; a cada movimento de al-vio, fl uidez, fl exibilidade e leveza. Minhas emoes to inten-sas, meus sentimentos to poderosos transbordam os limites de meu corao, transcendem as fronteiras de meu corpo, querem sair pela boca em aladas palavras ditas, querem pou-sar no papel em benditas palavras escritas.

    Quando rememoro essa descoberta primeira acerca de minha natureza e de minha vida, tenho tambm o hbito de comentar que, como desde cedo entendi que difi cilmente ganharia a vida como poeta, quis fazer Letras. Bilngue e en-cantado com o reino da palavra, queria escolher algo que me levasse a passar o resto da vida a estudar o que mais gosto de estudar: lnguas e literatura. E que me conduzisse a uma profi sso em que convivesse com gente. De perto, de alguma maneira quase, digamos, cotidiana.

    Na sala de aula ou estudando em casa, bem lembro, os cantos de meus cadernos e as folhas derradeiras eram sem-pre consagrados aos poemas e desenhos. Enquanto o profes-sor ou a professora falava, nas tradicionais aulas magistrais, eu o desenhava ou fazia versos vindos de vrgulas, parnte-ses, aspas que em sua fala eu ouvia. Colecionava tambm nas mgicas margens das pginas citaes, provrbios e poemas que me encantavam, uns aprendidos de cor, alguns deles ci-tados neste livro (s vezes com a peleja de encontrar de novo a fonte). Lembro um dos primeiros que decorei, um provr-bio rabe:

    Aquele que nada sabe e no sabe que nada sabe tolo evita-o.

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    Aquele que nada sabe, mas sabe que nada sabe sim-ples ensina-lhe.Aquele que sabe e no sabe que sabe dorme desperta-o.Aquele que sabe e sabe que sabe sbio segue-o.

    A aula de redao, que para a maioria dos meus colegas virava tormento, era farra para mim. A despeito da repetio dos temas (o dia disso e daquilo, minhas frias, os temas clssicos da mdia...), eu me espraiava nas linhas, estendendo em palavras o que vestiam meus pensamentos e sentimentos. Lembro que por volta do 2o ou 3o ano do ensino primrio, hoje fundamental (mas adotei a terminologia da poca), com algo entre 7 e 8 anos, fi z um texto falando justamente das tais f-rias, em parte passadas na casa de praia de meu primo Srgio Beltro Mafra, bem mais velho que eu, com Slvia e Gabriela, suas fi lhas, imerso em aventuras nas dunas e nas histrias em quadrinhos. Consigo lembrar do desenho que fi z de um banho bem tomado, de bichos que havia ali, da carreira que um bode me deu, fazendo-me atravessar uma moita de urtigas. Ai! Mas o que marca mais a boa lembrana dos comentrios elogio-sos de meus pais sobre o texto: a linguagem e os detalhes. Mame queria mostrar a todo o mundo e eu, pasmem!, era tmido quando garoto. Dizendo isso hoje, no ar ou no palco, acho que custa crer.

    Outro marco, este fundamental, no sentido mesmo de plantar os fundamentos da minha relao com a palavra, posto que um dos mais antigos de que me recordo e o primeiro de que tenho o registro, uma redao em forma de poesia, A criana, resposta proposta de escrever sobre o dia a ela dedi-cado, feita no 4o ano, datada de 4 de outubro de 1976, at ento com 9 anos de idade. (Fao aniversrio em novembro, ento, se feitas as contas, passo a maior parte do ano ainda com um

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    ano a menos, enganando os nmeros com minhas letras). Se-ria Amlia o nome da professora? No estou seguro, mas at hoje posso sentir a emoo de encontrar, afi xado no fl anel-grafo da entrada do colgio, meu texto. Professora, agradeo senhora, seja quem for, esteja onde esteja, pelo deleite de ter me deparado com o meu poema exposto e pelo prazeroso desa-fi o de eu ter naquele dia lido aquelas palavras diante de todos. O tmido descobria o outro lado, o do contato com o pblico.

    Pauta-se na repetio de Criana no comeo de cada trecho. A letra bem desenhada, embora ainda de menino isso graas cuidadosa orientao de minha me e aos exerc-cios de caligrafi a acompanhados por ela, que tinha uma letra belssima. Reconheo especialmente nas maisculas, sobretu-do no H, no F e no I, o esmero com que ela me motivou a me dedicar literalmente s letras.

    importante destacar que eu no havia ainda encon-trado este e outros textos meus quando comecei esta pesqui-sa autobiogrfi ca. Deparar-me com esta folhinha amarelada, perfurada para encaixar em um colecionador, perceber os de-talhes do cabealho e a letra que tinha foi uma emoo que me tomou por inteiro, uma outra espcie de transe potico, que no me levou escrita, mas leitura de mim. Lejeune (2008, p.101) diz que, segundo Michel Leiris, a nfase a ser dada na narrativa de si cabe no s prprias lembranas, mas sua busca. O que deve fi car em primeiro plano no a emoo an-tiga que busco reconstituir, mas a emoo presente que sinto ao empreender esta busca. Embora concorde com a priorida-de para o que agora sinto, permito-me considerar que em um estudo sobre as experincias afetivas formadoras a relevncia do que senti avizinha-se muitssimo da que atribuo ao que ora me emociona.

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    Ao reler vrias e muito diversas vezes essa redao, revi o que vivi, recordei o que pensava, repensei o que sentia. Ao mesmo tempo, deixei-me inundar pelo que nestes instantes veio fl or da pele e da alma. E esses sentimentos e emoes, de agora e de outrora, falariam alto ao reler ao longo deste es-tudo outros escritos meus e de meus pais, a maioria dos quais no alcancei colocar aqui.

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    Note-se o valor documental desse texto em que cons-tam a cidade, a data, meu nome, o ano que cursava. Para uma pesquisa autobiogrfi ca, essas precises so, por razes b-vias, proeminentes. A primeira informao o nome da es-cola. Estudava em um colgio catlico, cujo proselitismo me afastou dos rituais dessa igreja. Impor que algum se confesse ou assista missa so atitudes absurdas. Mas pior talvez seja condenar algum por atos, pensamentos, palavras e omisses. Ou seja, no h como no pecar. Ora, deviam acrescentar logo em seu Mea culpa os sentimentos, que alis so tambm mais que policiados no contexto eclesistico.

    Os outros detalhes, que merecem mais destaque, so o lugar, a data e o ano que fazia, uma vez que isso situa o texto, contextualizando a ele e a mim em minha busca. O nome tam-bm me desperta a ateno. Adotava Henrique Srgio, a ma-neira como minha me me chamava em geral na hora de dar um caro ou em ocasies solenes, para me apresentar s ami-gas, com todo orgulho, me pedindo para tirar os culos a fi m de mostrar os olhos expressivos e os longos clios. Eu fi cava to encabulado! Atendia para agrad-la. Hoje, seria um prazer lhe dar esse gosto. Mais tarde, ao entrar na Escola Tcnica, ado-tei Henrique Beltro. Identifi co-me ao ser chamado somente por esse nome ou somente pelo sobrenome, mas preferi no usar Srgio porque algum o poderia empregar isoladamente, o que me soa estranho. Na Frana, invariavelmente, exceo dos amigos, me chamam de Monsieur Castro (pronuncia-se Castr por l), o que me recorda os relatos de meu pai sobre sua vivncia naquele pas. Essa escolha se consolidou quan-do cheguei Rdio Universitria, em 1996, e ao publicar o Vermelho, assumindo uma atuao pblica como poeta, um poeta que canta. Tanto na radiofonia quanto na literatura, no

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    mais das vezes, usam-se dois nomes. Estava descartado es-colher o nome completo: Henrique Srgio Beltro de Castro.

    Cada pargrafo principia, como comentei, com Crian-a. No primeiro movimento, uma rima entre beleza e tris-tezas, dois substantivos, eu sequer sabia ainda que rimas ricas se do entre palavras de classes gramaticais distintas. Mas a presena dela ali anuncia a inteno do ritmo e da har-monia entre os sons. No segundo, uma repetio, a da palavra beleza justamente, me aponta a fl uidez descuidada do dizer o que vinha baila, sem muita reviso. Os diminutivos dialo-gam no terceiro movimento, entre boquinha e olhozinhos (mais alongado, em vez de olhinhos). A beleza volta ainda no fi nal, desde ento a esttica me ocupava linhas, olhares e ouvires, corao. O esquecimento de um acento, em v, me revela naquele momento to longe do perfeccionismo de de-pois. A forma, neste caso, no o que mais me interessa, mas a temtica, a idealizao, o desejo de passar uma bela mensa-gem, a perspectiva de mudana e crescimento nas perguntas sempre prontas a acontecer.

    E todo esse esforo de anlise me traz outras mem-rias, outras emoes de antes que reconstituo quase com a mesma relevncia da emoo que nesta busca sinto: isso me faz lembrar o avesso do marco! Se aquele momento me dizia da poesia que em mim havia, dois anos depois, na 6a srie, vencida a descoberta do 1o grau maior (a virada da 5a srie, que me levava para o outro lado do colgio, o lado dos gran-des), eu tive uma vez mais, devido tradio dos professores na proposio de temas, de escrever sobre o dia da criana. Catei na memria aquele texto e arremedei-o ali. E minhas palavrinhas fi zeram de novo sucesso aos olhos do professor ou seria professora? Desta feita, contudo, um desafi o abissal,

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    um abismo delirante: ao subir ao estrado (de meu quotidiano amanh), li com voz empostada: A Criana, Henrique Srgio Beltro de Castro. E ganhei a minha primeira estrondosa e desestabilizante vaia. Meus colegas capricharam no escrnio e vale acrescentar na inveja. Valei-me, Pndaro, o poeta que cedo me segredou em francs: mieux vaut faire envie que piti melhor fazer inveja do que pena. Valei-me, S-crates, o fi lsofo que depois me soprou: melhor sofrer uma injustia do que pratic-la! O suor veio em fi os pelo corpo inteiro. E sustentar cada slaba no palato, entre dentes e ln-gua, foi esforo de tit. Chorei um bocado depois disso, mas um choro confuso, entre gozo e dor. Sentia que a poesia me chamava; sabia que aquilo de fazer versos, falar francs, ser sensvel era para meus colegas intrigante, motivo de chacota, estranhamento, mas era e sou eu.

    Depois, em 1981, aos 14 anos ainda, outro texto marca-ria meu caminho de formao: Ecos de voz cansada, texto de uma potica engajada, com o qual ganhei o primeiro lugar em um concurso de poesia do colgio. Nele se encontra, em uma atmosfera de protesto e de apelo, o convite a ter a coragem de fazer ecoar a voz de quem se vai, uma voz que clama em nome do amor, da justia e da valorizao do ser humano. Em ver-sos livres e brancos, eu arriscava fazer coro com os desconten-tes, com os excludos e com os censurados. Sabia da ditadura militar, e precisava de expressar minha indignao, mesmo sem, quela altura, lhe compreender o alcance, sem saber a que extremos chegavam a censura liberdade de expresso, a perseguio e a tortura dos opositores, a represso aos movi-mentos populares.

    O texto principia com a morte do sujeito, expressa em primeira pessoa. Logo em seguida, vem a imagem de que o

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    eco (ou a ideia) sobrevive morte da voz (ou de quem a tinha). Segue-se a exortao para que, em vez de velar pelo corpo e chorar pela morte, se arrisquem a repetir o grito de protesto, a exigir que o ser humano se torne essencial, que a fome seja superada, que a luta seja perpetuada at que o eco da voz se torne eterno e ensine os meio-homens a dizerem que amam.

    Lembro do receio de haver proposto um tema assim em um colgio to conservador. Mas recordo tambm da alegria de ter recebido o prmio. Sempre fui e continuo avesso a com-petir, para mim era e continua sendo bizarro que se compa-rem obras artsticas para dizer qual a melhor. Mas reconheo que os concursos literrios, os festivais de msica e manifes-taes similares no mbito de outras artes motivam os artistas e do visibilidade e audincia ao que fazem.

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    A lpis, no rodap: Primeiro prmio notvel, em 1981: Colgio Santo Incio, Semana Inaciana. Cursava o 1o ano C, era aluno de Ana Clia e descobria a Vica. Primeiro lugar: uma mquina de escrever Remington.

    O prmio: uma mquina de escrever (Remington, con-forme anotao detalhista ao p do poema) com a qual viria

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    a ter signifi cativo convvio. Meus pais datilografavam bem, to bem que a cadncia das teclas, o tilintar do sinal de que se aproximava o fi m da linha e o som do deslocamento para a seguinte, acionado por uma manivela tudo isso era musical para mim. Bons datilgrafos tm ritmo. E senso esttico.

    Naquela poca, fazer datilografi a21 era essencial na for-mao no somente de quem queria continuar os estudos em nvel universitrio, mas para o exerccio de diversas profi sses. Em alguns casos, era prova de concurso. Pois comecei a apren-der com ris Arajo, com quem namorava aos 15 anos, fi lha de professora de datilografi a, o que ela mesma passara a lecionar, moda antiga, com uma espcie de tamborete de madeira im-pedindo o aprendiz de ver suas mos sobre o teclado. Era m-gico poder enfi m manusear com habilidade a imponente m-quina de escrever de meus pais, onde eles j tinham deixado me aventurar catando milho, ou seja, movendo as teclas com os indicadores somente exemplo da abertura deles a meu contato com tudo que pudesse enriquecer minha formao, da mquina de escrever radiola (aparelho em que se conjugam o rdio e o toca-disco), dos lpis de cor ao violo, passando pe-los discos (em vinil) e livros da famlia, alguns desses tesouros seriam depois presentes deles para mim. Quanto minha m-quina, porttil, me acompanharia em vrios estudos de equipe na casa de meus colegas, principalmente com Paulo Csar Silva Peixoto, o maior companheiro do colgio, exmio desenhista, que ilustrava a capa e o miolo dos trabalhos enquanto eu elabo-

    21 Outras tecnologias, com o vertiginoso avano dos anos mais recentes, ga-nharam o cotidiano de muita gente, o ambiente educacional escolar e diver-sos contextos formativos, ampliando inclusive o leque de possibilidades de aprendizagem e interao distncia ou de formao autodidtica. Confesso que saber digitar com os dez dedos para mim at hoje habilidade que me d prazer e noto que as novas geraes usam os indicadores somente.

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    rava os textos, e me ensinava a arte de desenhar, as mincias e mistrios do crayon: perspectiva, luz e sombra, a diversidade de lpis e dimenses do grafi te, na arte de desenhar. Nesta li-nha pousa minha saudosa lembrana, amigo.

    Escolher a grafi a crayon em vez de creiom me remete minha lngua paterna (porque com meu pai aprendida), cabe dizer das minhas primeiras e fundamentais francfonas horas. Elas tambm so essncia deste poeta em constante mutao. Mais tarde, ser francfono me abriria outros tesouros: leria no original os mestres Molire, Ronsard, Prvert... Entre a divulga-o pblica da primeira redao e a vaia dada perante a leitura da segunda, comecei a estudar francs. Na 5a srie, aos 10 anos meus, na aula de estreia, a primeira no lado dos grandes, o professor Csar, com seu volumoso bigode e o cabelo em desali-nho, acabara de entrar em sala para distribuir em meio gente, de um em um: Bonjour, Monsieur!. E todos foram responden-do: Bonjour, Monsieur!. Ao chegar a uma colega minha, dis-se: Bonjour, Mademoiselle!. E em resposta ouviu: Bonjour, Mademoiselle!. Risadaria geral! H tanto fato simples que fi ca; com tudo preciso cuidado quando a gente se arrisca a recom-por sua histria de vida. Comecei a falar francs rindo!

    Lembro do livro adotado no colgio, dos exerccios, tudo to precariozinho, acho hoje, mas to fundamental, no sentido mesmo de ter lanado os fundamentos para que meu pai percebesse que o mesmo amor s lnguas (materna e es-trangeiras) que ele nutria (e antes dele, o meu av) me habita-va. No ano seguinte, em 1978, com 11 anos, ainda precisando de que ele me fosse buscar, ali estava eu na Aliana Francesa de Fortaleza22, em sua sede primeira, no centro da cidade,

    22 A Aliana Francesa, associao de utilidade pblica, criada em 1883 em Paris por um comit composto por pessoas como Louis Pasteur e Jules Ver-

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    atrs da Igreja do Carmo, na rua Major Facundo. (Em 1979, me iniciava tambm em ingls, mais tarde em espanhol.) No-vos amigos, novos amores, sim, mas sobretudo nova amante encontrara: a lngua francesa.

    Meu pai me acompanhando na volta, conversando em francs, me perguntando sobre o que aprendera, com leveza me levando mais longe muito mais eu teria a dizer sobre isso... Desde pequeno, infi nitas vezes meu pai me acompanhou at os dicionrios para pesquisarmos termos e expresses em lngua portuguesa ou francesa. Alguns desses dicionrios eram enciclopdicos, neles buscvamos juntos tambm deta-lhes sobre personagens ou fatos histricos. Essa intimidade com os livros e com meu pai propicia diversas experincias afetivas formadoras. Sentia prazer em sua companhia e em seu deleite com as descobertas compartilhadas. Ali plantara ele em mim o fascnio pela busca, pela descoberta; ele desper-tara o misterioso encanto de entrar no ventre das palavras, remexer-lhes as entranhas: etimologia, pronncia, ortografi a, morfologia, emprego, campo semntico... Merci, mon pre!

    Muito mais poderia tambm contar sobre o novo am-biente, do ptio s salas da Aliana Francesa, passando pela biblioteca, claro. Estava descobrindo outro mundo, outro idioma, outra cultura e pessoas de outras idades. No havia cursos para crianas. Eu estudava com adolescentes e adultos, surpreendendo-os pela fl uncia e pela acurada compreenso auditiva, pelo menos o que me disse meu primeiro professor

    ne, cujo objetivo primordial a difuso da lngua e da cultura francesa fora da Frana, chegou ao Brasil em 1885, dois anos apenas aps sua fundao, e estabeleceu sede em Fortaleza em 1943. As associaes locais gozam de au-tonomia, mas tm relao com a matriz. So responsveis pela realizao de exames de profi cincia reconhecidos pelo Ministrio da Educao da Frana (www.alliancefr.org e www.aliancafrancesabrasil.com.br).

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    na Aliana, Joo Sales, com quem conviveria depois como co-lega na Escola Tcnica Federal do Cear (hoje, Instituto Fede-ral de Educao, Cincia e Tecnologia do Cear IFCE).

    Era usado na poca o manual La France en direct, mais conhecido pelo nome do autor, Capelle, bem estruturalista. Mas eu sequer sabia o que era estruturalismo23, naquela idade pouco me importava suas contribuies e limitaes, eu mer-gulhava fundo. Ouvia e lia tudo. E sobretudo os corredores, o ptio, a biblioteca, os encontros com aquela gente esquisita, que me acolhia bem melhor que os meus perversos colegui-nhas da escola. O quase ex-tmido comeava a descobrir o prazer de ser o centro das atenes. Espcime raro, entendi rapidinho que conseguia compreender as gravaes e incor-porar no somente estruturas, mas tambm vocabulrio e pronncia coloquiais, gestos, expresses faciais, tudo que via e ouvia dos francfonos, com deleite e sem grande esforo, bem mais rpido que a maioria. Algumas regras me escapa-vam nas explicaes, a que assistia atento, mas bem funcio-navam nas aplicaes. Guiava-me pelo meu ouvido. Muito se fala de ouvido musical, o meu lingustico. Ou diria melhor, tenho ouvido potico: guiava-me e ainda hoje me guio pelo meu potico ouvir.

    Fiz ao todo sete anos de formao na Aliana Francesa. No terceiro ano, conheci Ticiana Telles Melo, que se torna-ria minha amiga-irm e que, com sua escolha por Letras, in-fl uenciaria a minha, sem o saber. Compartilhvamos dvidas e descobertas, medos e alegrias, assim como vrios commen-taires composs (exerccio muito adotado, boa lio de escrita 23 Estudos lingusticos do incio do sculo XX que se pautavam no pressupos-to metodolgico de que a cincia da linguagem (bem como as demais) deve se apoiar no exame rigoroso do maior nmero de fatos a fi m de fundamentar proposies e generalizaes que conduzam descoberta da estrutura.

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    bem cartesiana). Depois do curso bsico, de trs anos, de 1978 a 1980, em que j rabiscava versos en franais, fi z a prepara-o para o Certifi cat dtudes pratiques de lAlliance Franaise (Cepal) durante 1981, com 14 anos. Desde o curso bsico, me ocorrera estudar com professores franceses, o que continuaria durante o curso avanado Nancy, de 1982 a 1984, equivalente formao inicial em Letras na universidade francesa. Cursei o ltimo ano j como estudante de Letras: Portugus-Francs na UFC, onde tive outros grandes mestres da arte da palavra, tanto escritores, quanto linguistas: Moreira Campos, Rogrio Bessa, Graa Teixeira...

    No meu percurso de aprendizagem lingustica, rele-vante a contribuio dos educadores, franceses e brasileiros francfonos, que me motivaram a exercitar a organizao do pensamento e do discurso escrito e falado de maneira carte-sianamente clara, concatenada, coesa e coerente: Monsieur Olombel e Eneida Campos na Aliana Francesa, Conceio Moreira no curso de Letras da UFC. Esta uma das marcan-tes experincias afetivas formadoras deste poeta. Dominar as regras da gramtica no era ento sufi ciente, descobria eu. O desafi o e o deleite de conseguir me expressar bem, dentro daqueles parmetros to formais, me traziam medo e depois alegria. Quintana24 diz, em resposta a um poeta nefi to, que para bem fazer versos livres e brancos, preciso saber compor um perfeito soneto.

    24 Eu tive a vantagem de nascer numa poca em que s se podia poetar den-tro dos moldes clssicos. Era preciso ajustar as palavras naqueles moldes, obedecer quelas rimas. Uma bela ginstica, meu poeta, que muitos de hoje acham ingenuamente desnecessria. Mas, da mesma forma que a gente pri-meiro aprendia nos cadernos de caligrafi a para depois, com o tempo, adqui-rir uma letra prpria, espelho grafolgico da sua individualidade, eu na ver-dade te digo que s tem capacidade e moral para criar um ritmo livre quem for capaz de escrever um soneto clssico (QUINTANA, 1983, p.138-139).

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    Os desenhos e as palavras ali tambm me acompanha-vam to bem, nas salas e no ptio da Aliana e do curso de in-gls. As moas fi caram mais lindas, maiores que as que eu via no colgio, menos distantes, achando-me uma gracinha, eu achan-do engraado o jeito maroto de a vida mudar, ora pra pior, ora pra melhorar. No tardou o corao a me armar seu alapo: eu descobri que, se as meninas da escola no queriam aquele encabulado de culos, as mulheres mais velhas dos cursos de lnguas achavam to simplesmente engraado que me apaixo-nasse por elas. E de tudo isso versos se faziam, enfeitando meus dias, servindo de boia e at ilha em meio aos meus naufrgios e buscas de tesouros palpveis e impalpveis. De uma delas, levei um fora potico, que nunca esqueci, o nico, por sua in-slita e potica natureza, que foi belo. Ela que tanto me ouvia, com tanto carinho, fi zera inocentemente que eu confundisse aquela atitude acolhedora com uma recproca minha paixo. Daquela convivncia guardei a lembrana da sua beleza, da sua ternura, e do texto com que de mim se despedira, Ausncia, de Vinicius de Moraes (1980, p.99). A aprendizagem do amor essencial para o corao do poeta, que bem queria traduzir em palavras o que a essncia do amor nos faz, ns todos, aprender. E nesta aprendizagem, a ruptura virada em versos me ensinava preciosa lio: tudo pode se tornar poesia. So muitos os afetos que cantam no corao de um s peito.

    Ausncia

    Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus[olhos que so doces

    Porque nada te poderei dar seno a mgoa de me veres[eternamente exausto.

    No entanto a tua presena qualquer coisa como a luz [e a vida

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    E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em[minha voz a tua voz.

    No te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminadoQuero s que surjas em mim como a f nos desesperadosPara que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra

    [amaldioadaQue fi cou sobre a minha carne como uma ndoa do

    [passado.Eu deixarei... tu irs e encostars a tua face em outra faceTeus dedos enlaaro outros dedos e tu desabrochars

    [para a madrugadaMas tu no sabers que quem te colheu fui eu, porque

    [eu fui o grande ntimo da noitePorque eu encostei minha face na face da noite e ouvi

    [a tua fala amorosaPorque meus dedos enlaaram os dedos da nvoa

    [suspensos no espaoE eu trouxe at mim a misteriosa essncia do teu

    [abandono desordenado.Eu fi carei s como os veleiros nos portos silenciososMas eu te possuirei mais que ningum porque poderei

    [partirE todas as lamentaes do mar, do vento, do cu, das

    [aves, das estrelasSero a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz

    [serenizada. (MORAES,1980, p.99)

    So to longos quanto nfi mos passado e futuro... se pousa no presente a voz da poesia, fazendo serena festa.

    Nos primeiros anos meus de estudo na Aliana France-sa, no fi nal da dcada de 1970, Fortaleza era mais pacata. Os jovens se reuniam nas caladas para conversar, namorar, con-tar piadas, cantar, tocar violo, dizer seus poemas. O tempo parecia se dilatar e passar mais devagar. A gente caminhava at a Ponte Metlica, na Praia de Iracema, para ver o sol se

  • NO AR, UM POETA 63

    pr. noite, voltava da casa de meus familiares e amigos a p, s vezes com o violo, por exemplo do limiar do Centro at Aldeota, e preferia as ruas secundrias s avenidas, porque eram mais serenas. Digo isso porque a cidade (em) que vive-mos tambm nos forma.

    Podemos afi rmar que ns somos formados pelas experincias de vida nos lugares e na relao com estes, pelos contatos com as pessoas, pelos eventos e pela afetividade que marcam o vivido nas experin-cias (FERREIRA, 2011, p.75).

    Conforme esta autora e outros que estudam o tema, um espao ao ganhar signifi cado para quem com ele se relacio-na transforma-se em um lugar e tambm formador de nossa identidade.

    Naquela Fortaleza da delicadeza, mais tranquila, eu co-meava a frequentar a turma da Poranga, nome ento dado travessa Moiss Ferreira, onde fi ca a casa primeira da minha famlia paterna, vinda de Cascavel para Fortaleza: os Castro. Quando meu pai, Jos Francio de Castro, veio do interior aos 14 anos, pioneiramente, morou em uma penso. Depois foi comprada essa casa, pela qual todos ns, os Castro, passa-mos. Aos poucos, todos vieram para esta capital beira-mar, meus avs, meus tios e tias. Em seguida, muitos dos meus tios migraram pra So Paulo e Rio de Janeiro. Ainda hoje, ali residem minha querida tia Ins e minha prima e tia dile-tas: Laquinha