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2815 HISTÓRIA DE PORTUGAL PARA ESTUDANTES BRASILEIROS: A BIBLIOTECA DO POVO E DAS ESCOLAS Jorge Carvalho do Nascimento Universidade Federal de Sergipe RESUMO As dificuldades do mercado brasileiro do livro didático possibilitaram que durante toda a segunda metade do século XIX e pelo menos durante as duas primeiras décadas do século XX muitos editores portugueses continuassem a produzir livros escolares destinados a estudantes portugueses e brasileiros. História de Portugal foi o livro com o qual a Biblioteca do Povo e das Escolas começou a circular em 1881. A coleção de 237 livros, publicados durante 42 anos, entre 1881 e 1913, pela Editora David Corazzi, de Lisboa, circulou em Portugal e no Brasil. O autor do primeiro livro da coleção apresentou aos estudantes brasileiros uma história portuguesa na qual desfilam os feitos das quatro dinastias: Borgonha, Aviz, Filipina e Bragança, enfatizando, principalmente, os feitos de D. Sancho I, D. Diniz, D. Duarte, D. Manuel, D.João III, D. Sebastião, D. João V, D. Maria I e D. Pedro V. Este trabalho analisa a circulação da História de Portugal no contexto da coleção, entre 1881 e 1913, bem como a trajetória portuguesa apresentada aos estudantes brasileiros. Com esta finalidade foram analisados os 237 volumes da coleção e os comentários que a Imprensa do Brasil e de Portugal fizeram acerca do trabalho e do seu autor. A análise busca compreender o discurso do autor e também as estratégias da Casa Editora David Corazzi. Os livros da coleção se propunham a ser propaganda de instrução para portugueses e brasileiros. O editor dava à série de livros a natureza de um empreendimento civilizador que buscava inocular gradualmente o espírito das pessoas com o germe de noções indispensáveis à modernidade do final do século XIX. O discurso civilizador valorizava a escola como sendo a agência destinada, por excelência, ao cultivo das grandes virtudes, ao fortalecimento dos espíritos, à formação do homem do futuro, o homem consciente. O baixo preço dos livros criava a possibilidade de superação daquilo que se entendia ser uma das maiores dificuldades ao desenvolvimento da instrução popular: a má seleção e a carestia dos livros adotados nas escolas. A História de Portugal era o livro de estréia em função do projeto inicial da coleção. Era pretensão abranger sete grandes áreas do conhecimento: Educação Corporal, Zoologia, Física, História, Literatura, Jurisprudência e Lingüística. Não obstante a sua enorme importância, os títulos da Biblioteca do Povo e das Escolas têm sido praticamente desconhecidos pela maioria dos estudos a respeito do livro e do mercado editorial no Brasil. A História de Portugal ajuda a compreender o quadro de mentalidades existentes à época e o projeto que se punha à escola como centro de formação em Portugal e no Brasil das últimas décadas do século XIX e das primeiras décadas do século XX. O livro foi publicado um ano depois da celebração do tri-centenário de nascimento do poeta Luis de Camões. O texto busca estabelecer para Portugal o mesmo caráter épico que a história do país ganhou em Os Lusíadas, exaltando a nacionalidade portuguesa. O discurso épico do livro, contudo, apresenta um caráter melancólico, lamentando que Portugal, ao final do século XIX, já não mais apresente a mesma importância política de outrora, inerente aos grandes Estados. Contudo, busca produzir em Portugal a marca distintiva de ser uma sociedade liberal na qual são evidentes as marcas das liberdades e garantias individuais. Da mesma maneira o texto procura valorizar as relações entre Portugal e o Brasil, após a proclamação da independência brasileira em 1822, ressaltando o equilíbrio do herdeiro do trono de Portugal, o Duque de Bragança, no Brasil, o imperador D. Pedro II. Sublinha o seu espírito democrático e o seu desprendimento ao abdicar à coroa do Brasil em 1831, para lutar pela reconquista da coroa portuguesa.

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HISTÓRIA DE PORTUGAL PARA ESTUDANTES BRASILEIROS: A BIBLIOTECA DO POVO E DAS ESCOLAS

Jorge Carvalho do Nascimento

Universidade Federal de Sergipe

RESUMO

As dificuldades do mercado brasileiro do livro didático possibilitaram que durante toda a segunda metade do século XIX e pelo menos durante as duas primeiras décadas do século XX muitos editores portugueses continuassem a produzir livros escolares destinados a estudantes portugueses e brasileiros. História de Portugal foi o livro com o qual a Biblioteca do Povo e das Escolas começou a circular em 1881. A coleção de 237 livros, publicados durante 42 anos, entre 1881 e 1913, pela Editora David Corazzi, de Lisboa, circulou em Portugal e no Brasil. O autor do primeiro livro da coleção apresentou aos estudantes brasileiros uma história portuguesa na qual desfilam os feitos das quatro dinastias: Borgonha, Aviz, Filipina e Bragança, enfatizando, principalmente, os feitos de D. Sancho I, D. Diniz, D. Duarte, D. Manuel, D.João III, D. Sebastião, D. João V, D. Maria I e D. Pedro V. Este trabalho analisa a circulação da História de Portugal no contexto da coleção, entre 1881 e 1913, bem como a trajetória portuguesa apresentada aos estudantes brasileiros. Com esta finalidade foram analisados os 237 volumes da coleção e os comentários que a Imprensa do Brasil e de Portugal fizeram acerca do trabalho e do seu autor. A análise busca compreender o discurso do autor e também as estratégias da Casa Editora David Corazzi. Os livros da coleção se propunham a ser propaganda de instrução para portugueses e brasileiros. O editor dava à série de livros a natureza de um empreendimento civilizador que buscava inocular gradualmente o espírito das pessoas com o germe de noções indispensáveis à modernidade do final do século XIX. O discurso civilizador valorizava a escola como sendo a agência destinada, por excelência, ao cultivo das grandes virtudes, ao fortalecimento dos espíritos, à formação do homem do futuro, o homem consciente. O baixo preço dos livros criava a possibilidade de superação daquilo que se entendia ser uma das maiores dificuldades ao desenvolvimento da instrução popular: a má seleção e a carestia dos livros adotados nas escolas. A História de Portugal era o livro de estréia em função do projeto inicial da coleção. Era pretensão abranger sete grandes áreas do conhecimento: Educação Corporal, Zoologia, Física, História, Literatura, Jurisprudência e Lingüística. Não obstante a sua enorme importância, os títulos da Biblioteca do Povo e das Escolas têm sido praticamente desconhecidos pela maioria dos estudos a respeito do livro e do mercado editorial no Brasil. A História de Portugal ajuda a compreender o quadro de mentalidades existentes à época e o projeto que se punha à escola como centro de formação em Portugal e no Brasil das últimas décadas do século XIX e das primeiras décadas do século XX. O livro foi publicado um ano depois da celebração do tri-centenário de nascimento do poeta Luis de Camões. O texto busca estabelecer para Portugal o mesmo caráter épico que a história do país ganhou em Os Lusíadas, exaltando a nacionalidade portuguesa. O discurso épico do livro, contudo, apresenta um caráter melancólico, lamentando que Portugal, ao final do século XIX, já não mais apresente a mesma importância política de outrora, inerente aos grandes Estados. Contudo, busca produzir em Portugal a marca distintiva de ser uma sociedade liberal na qual são evidentes as marcas das liberdades e garantias individuais. Da mesma maneira o texto procura valorizar as relações entre Portugal e o Brasil, após a proclamação da independência brasileira em 1822, ressaltando o equilíbrio do herdeiro do trono de Portugal, o Duque de Bragança, no Brasil, o imperador D. Pedro II. Sublinha o seu espírito democrático e o seu desprendimento ao abdicar à coroa do Brasil em 1831, para lutar pela reconquista da coroa portuguesa.

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TRABALHO COMPLETO

As dificuldades do mercado brasileiro do livro didático possibilitaram que durante toda a segunda metade do século XIX e pelo menos durante as duas primeiras décadas do século XX muitos editores portugueses continuassem a produzir livros escolares destinados a estudantes portugueses e brasileiros.

História de Portugal foi o livro com o qual a Biblioteca do Povo e das Escolas começou a circular em 1881. A coleção de 237 livros, publicados durante 42 anos, entre 1881 e 1913, pela Editora David Corazzi, de Lisboa, circulou em Portugal e no Brasil. O autor do primeiro livro da coleção apresentou aos estudantes brasileiros uma história portuguesa na qual desfilam os feitos das quatro dinastias daquele país: Borgonha, Aviz, Filipina e Bragança, enfatizando, principalmente, os feitos de D. Sancho I, D. Diniz, D. Duarte, D. Manuel, D.João III, D. Sebastião, D. João V, D. Maria I e D. Pedro V.

Este trabalho analisa a circulação da História de Portugal no contexto da coleção, entre 1881 e 1913, bem como a trajetória portuguesa apresentada aos estudantes brasileiros. A análise buscou compreender o discurso do autor e também as estratégias da Casa Editora David Corazzi. A COLEÇÃO

Os meus primeiros contatos com a Biblioteca do Povo e das Escolas aconteceram na cidade de Aracaju. Trinta e oito exemplares da coleção foram encontrados em um casarão de Salvador e vendidos a um colecionador aracajuano, em 1996. Segundo o vendedor, os livros pertenciam aos seus familiares, desde o início do século XX. Ao examiná-los, pude perceber a importância do material com o qual havia entrado em contato1. Desde então iniciei minhas buscas para entender melhor aqueles livrinhos. No ano de 1997, em Portugal, percorrendo sebos, recuperei vinte e quatro das vinte e nove séries que constituem a coleção. A Biblioteca do Povo e das Escolas se propunha a ser “propaganda de instrução para portugueses e brasileiros” – como aparecia no frontispício de cada um dos volumes -, uma vez que seus editores entendiam haver “na sociedade moderna uma incontestável tendência para a vulgarização dos conhecimentos humanos em todos os seus ramos variadíssimos”2. O propósito da coleção era claramente iluminista e o seu caráter eminentemente enciclopédico: “A Biblioteca do Povo e das

Escolas vem acudir a uma falta que já, desde tempos, outros países tais como a Inglaterra, a França, a Itália, a Alemanha e os Estados Unidos têm tratado de remediar dando a público, por módico preço, coleções no gênero da que ora sai a lume”3.

O editor dava assim à série de livros a natureza de um empreendimento civilizador que buscava inocular gradualmente o espírito das pessoas com o germe de noções indispensáveis à modernidade do final do século XIX. E comparava: “as suas monografias alcançarão a importância dos Manuais Roret, lidos e estudados em todo o mundo”4. Indiscutivelmente, o modelo da coleção era inspirado em muitos similares que circularam desde o século XVIII em países como Inglaterra, França, Itália, Alemanha e Estados Unidos – considerados à época como sendo a vanguarda da civilização. A indústria era vista como uma das mais fortes características do século, enquanto a máquina a vapor era vista como a mais importante expressão da indústria: “A máquina de vapor representa o brilhante predomínio da intelectualidade humana sobre as forças brutas da natureza inconsciente. Na máquina a vapor se consubstancia verdadeiramente a civilização do século XIX”5. 1 Fui atraído particularmente pelos seguintes volumes: Corografia do Brasil, Costumes Angolenses, Deveres do Homem, Civilidade, Copa e Cozinha, O Feminismo na Indústria Portuguesa, A Peste, O Descobrimento do Brasil, Arte Para Todos, Higiene da Beleza. A partir deles pude perceber o esforço que faziam os intelectuais brasileiros e portugueses investindo, através da escola, para a formação do homem civilizado. 2 Cf. “Quatro páginas de prólogo” (texto de abertura da Sexta série da coleção, publicada em 1883). 3 Idem. 4 Cf. A Época, nº 132. Ponta Delgada, Portugal, 12 de Julho de 1884. 5 Cf. “Valha como Prefácio” (texto de abertura da Décima série, publicada em 1884).

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O discurso civilizador valorizava a escola como sendo a agência destinada, por excelência, ao cultivo das grandes virtudes, ao fortalecimento dos espíritos, à formação do homem do futuro, o homem consciente. O homem civilizado, escolarizado, seria capaz de organizar a família em bases sólidas, simpáticas e justas, de acordo com as aspirações do progresso, em consonância com as normas científicas. O imaginário da intelectualidade do século XIX contrapunha a inconsciência das máquinas à inteligência humana. Havia uma busca, tanto em Portugal quanto no Brasil, pelo ideário civilizador, pelo refinamento dos padrões sociais gerais. E isso impunha a necessidade de incorporação de um patamar mínimo de conhecimento que estava nos livros. Era necessário, sob todas as formas, incitar ao estudo os grupos sociais que as elites da época denominavam de classes populares. O caráter popular da Biblioteca do Povo e da Escola é muito transparente. “O operário, o estudante, o chefe de família ou o professor, não hesitarão em formar a sua biblioteca econômica com estes livrinhos que lhe explicam tudo quanto poderiam aprender em outros de preços elevadíssimos relativamente aos haveres da maior parte das pessoas”6. O baixo preço dos livros7 criava a possibilidade de superação daquilo que se entendia ser uma das maiores dificuldades ao desenvolvimento da instrução popular: a má seleção e a carestia dos livros adotados nas escolas. Estava claramente posta a intenção de combater “a imposição odiosa dos detestáveis compêndios de ensino, eivados de erros grosseiros e vendidos por preços absolutamente incompatível com a exigüidade de recursos das classes trabalhadoras e pobres”8. Aparece, portanto, com muita força, a natureza didática da coleção, aquilo que o discurso do final do século XIX chamava de propaganda instrutiva. “Não é fundando escolas superiores e cursos de preparatórios difíceis que se ilustra um povo, mas fazendo propaganda, e tornando acessíveis a todos as artes, as ciências e as letras”9 – afirmavam os editores. Vanguardista, em algumas ocasiões a coleção teve de advertir os seus leitores acerca da incompatibilidade entre o conteúdo científico dos volumes e o padrão moral vigente à época. O volume 128, que tem como título O macho e a fêmea no reino animal, previne os pais de família e os pedagogos que o texto “não constitui leitura adequada a pessoas de menor idade” (FURTADO, 1886). O plano original da obra foi cumprido com a publicação das oito primeiras séries. A previsão do projeto inicial era de que a coleção deveria abranger sete grandes áreas do conhecimento, a saber: Educação Corporal, Zoologia, Física, História, Literatura, Jurisprudência e Lingüística. O enorme sucesso comercial, contudo, levou a que se publicassem mais vinte e uma séries além das oito inicialmente previstas. Os livros publicados foram produzidos por noventa e um pesquisadores. Destes, não foi possível identificar as profissões de quatorze autores. Dos setenta e sete restantes, dois eram engenheiros agrônomos, dois tipógrafos, cinco médicos, vinte e dois oficiais militares do exército e da marinha, um comerciário, três estudantes de direito, um farmacêutico, um estudante de letras, dezoito professores, um telegrafista, um ator, quatro funcionários públicos, três escritores, um naturalista, um advogado, três estudantes de artes industriais e comerciais, um poeta, um botânico, dois sacerdotes, um cenógrafo, um estudante de agronomia, dois jornalistas e um estudante de medicina. Dentre os noventa e um autores foi possível identificar a presença de apenas dois brasileiros10. Os demais eram portugueses.

O editor não esclarece os nomes dos responsáveis pelos volumes 6211 e 6912. Dentre os autores, João Maria Jalles é responsável pela maior quantidade de textos publicados – 13 deles. Tenente da Artilharia do Exército de Portugal, ele escreveu os volumes versando sobre Mineralogia, Geologia, Gravidade, Ótica e Mecânica e Magnetismo. Já promovido Capitão de Artilharia, escreveu Fotografia, Equitação, Metalurgia, Trigonometria, Os Balões em Portugal, Artilharia, Aerostação e Problemas de Aritmética. Depois de Jalles, é de João Cesário de Lacerda a segunda mais volumosa contribuição. O médico e jornalista português escreveu os textos de 11 volumes:

6 Cf. Prefácio da Oitava série da coleção, publicada em 1883. 7 Cada volume custava 50 réis. 8 Cf. “Quatro páginas de prólogo” (texto de abertura da Sexta série da coleção, publicada em 1883). 9 Cf. Diário de Notícias, nº 7.149. Lisboa, 13 de Dezembro de 1885. 10 José de Mello e Viriato Silva. 11 Fabulas e Apólogos. 12 Livro do Natal.

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Introdução às Ciências Físico-Naturais, Corografia de Portugal, Economia Política, Higiene, As Colônias Portuguesas, O Código Civil Português, Anatomia Humana, Fisiologia Humana, História Antiga, História da Idade Média e As Ilhas Adjacentes. Vale a pena registrar a ausência de mulheres dentre os autores, mesmo nos temas considerados à época como próprios do gênero, a exemplo do Livro das Mães, Higiene da Beleza, O Feminismo na Indústria Portuguesa, Receitas Úteis, A Mulher na Antiguidade, Higiene da Habitação, Copa e Cozinha, Higiene do Quarto da Cama e A Missão da Mulher. Tal ausência pode nos dizer um pouco acerca do papel social da mulher no final do século XIX. O EDITOR

Os volumes da coleção eram publicados quinzenalmente, nos dias 10 e 25 de cada mês, cada um com rigorosas 64 páginas, em formato de 15,5 X 10 centímetros13, de composição cheia. A edição dos dois primeiros volumes foi de seis mil exemplares cada. A partir do terceiro volume começaram a ser impressos 12 mil exemplares de cada vez. A tiragem subiu para 15 mil exemplares a partir do volume 10. A cada oito volumes, os livros recebiam uma única encadernação de capa dura, constituindo uma série. Ao longo dos 42 anos em que a coleção circulou, foram encadernadas 29 séries. O êxito da Biblioteca do Povo e das Escolas assemelha-se ao enorme sucesso conhecido por outros trabalhos com apelo popular, que circularam exaustivamente no Brasil a partir do século XVIII e ao longo de todo o século XIX, como A História de Carlos Magno e os 12 Pares de França, de Pepita de Leon. Também de muito sucesso editorial foi o Compêndio do Peregrino da América, de Nuno Marques Pereira, que começou a circular entre nós também nos anos setecentos. Idêntica afirmação pode ser feita em relação ao Lunário Perpétuo, de Jerônimo Cortez. Do mesmo modo, as edições do Corão e dos catecismos. Marcante e muito assemelhada à Biblioteca do Povo e das

Escolas, com fascículos vendidos periodicamente, foi a Coleção Quaresma, que também circulou ao longo do século XIX e obteve muita aceitação. Bem sucedida, a Biblioteca do Povo e das Escolas terminou recebendo vários prêmios. Ainda em 1881 foi homenageada com Medalha de Ouro, na Exposição do Rio de Janeiro. No ano de 1882, David Corazzi recebeu o Diploma Honorífico da Propaganda de Ciência Popular, conferido pela Associação Napolitana Propaganda de Ciência Popular Luz e Verdade – Guerra aos Mistificadores do Povo. Na mesma ocasião foi nomeado sócio-protetor daquela instituição. Em 1883 a coleção foi condecorada pela Sociedade Napolitana Giambattista Vico. Em 1888, o escritor Ramalho Ortigão publicou um longo artigo na Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, acerca da Exposição Industrial de Lisboa, fazendo uma série de referências à Biblioteca do Povo e das Escolas: “estes pequenos e obscuros livros, tão pouco mimosos de elogios, tão despercebidos da réclame, constituem já uma das mais completas e das mais perfeitas bibliotecasinhas escolares que eu conheço”. A casa editora David Corazzi conheceu um grande sucesso empresarial a partir da Biblioteca

do Povo e das Escolas, tornando-se uma indústria de porte: “...aos escritórios da casa editora propriamente ditos estão anexas todas as oficinas de um grande estabelecimento de tipografia, compreendendo composição, impressão a vapor, esteriotipia, alçado, brochuras, cartonagens e encadernação a máquina” – descreve Ramalho Ortigão. Além da Biblioteca do Povo e das Escolas, obtiveram grande êxito editorial o Grande Dicionário de Geografia Universal, o Novo Atlas de Geografia Moderna, os Dicionários do Povo, a Biblioteca Universal – uma coleção de obras primas da literatura de Portugal e do mundo -, as Biografias de Homens Célebres, as Grandes Viagens e os Grandes Viajantes. Foi justamente o êxito obtido com a primeira série da Biblioteca do Povo e das

Escolas que levou a editora ao lançamento, ainda em 1881, dos Dicionários do Povo. O ano de 1883

13 Hallewell esclarece que à época o formato corrente do livro em circulação no Brasil era o chamado formato francês, “ao qual a maioria dos livros brasileiros se ajustou durante 60 anos ou mais. Esse formato existia em dois tamanhos: in-oitavo (16,5 X 10,5 centímetros) e outro muito mais freqüente, o longo in-doze (17,5 X 11,0 centímetros)”. Cf. HALLEWEL, Laurence. O Livro no Brasil. São Paulo, T. A. Queiroz/Editora da Universidade de São Paulo, 1985. p. 146.

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foi particularmente movimentado para a Casa Editora David Corazzi que publicou a obra de Júlio Verne, em 39 volumes. Ainda no mesmo ano, publicou também uma Geografia Moderna. Outra edição importante do mesmo ano foi o Método Simultâneo de Leitura e Escrita, de Branco Rodrigues, que produziu também um volume com o título de A Higiene das Crianças; de igual modo, o Manual Teórico e Prático de Ginástica, de Paulo Lauret. Um outro trabalho da maior importância que a editora colocou à disposição do seu público nesse mesmo ano foi a História Alegre de Portugal, de Manuel Pinheiro Chagas; O Dicionário de Geografia Universal deu atenção especial a Portugal, ao Brasil e às demais províncias ultramarinas; um outro sucesso editorial foi A Química na Cozinha, traduzido para o português por Elysa de Noronha. O livro de Zeferino Brandão, Monumentos e Lendas de Santarem, era dedicado ao rei D. Luiz I e com suas 600 páginas teve uma grande circulação. Já o Almanaque do Horticultor, sob a direção de Duarte de Oliveira Junior, atraiu pelas suas 56 gravuras. Ainda no mesmo ano de 1883, a Casa Editora David Corazzi lançou a coleção Biografias de Homens Célebres dos Tempos Antigos e Modernos. Tal coleção trouxe biografias de Lavoisier, Stuart Mill, Cristóvão Colombo, Fernão de Magalhães, Padre Antônio Vieira, Micchelangelo, Beethoven, Camões e Dante, dentre outros. O primeiro volume foi dedicado a Cuvier e o segundo a Galileu Galilei. Cada volume, publicado quinzenalmente, tinha 32 páginas, em edição de luxo, com capa colorida, retratos e gravuras dos biografados.

A editora David Corazzi deixou de funcionar em 1889, a partir da criação da Companhia Nacional Editora de Lisboa, que também encampou na mesma oportunidade a editora Justino Guedes. Todavia, após a fusão, a Companhia Nacional Editora de Lisboa continuou publicando os volumes da Biblioteca do Povo e das Escolas, até 1902, quando foi substituída pela empresa A Editora – que também prosseguiu com a coleção. O sucesso editorial da Biblioteca do Povo e das Escolas e dos Dicionários do Povo no Brasil levou o editor David Corazzi a abrir uma filial no Rio de Janeiro, no início do ano de 1882, à rua da Quitanda, 40. A Companhia Nacional Editora manteve escritórios no Rio de Janeiro, à rua da Quitanda, 38. Já A Editora instalou os seus escritórios naquela cidade à rua São Pedro, 33. Em 1909, passou a funcionar em novo endereço, à rua do Ouvidor, 166. No mesmo ano, foram abertos os escritórios de São Paulo e Belo Horizonte. O primeiro à rua São Bento, 65. O mineiro, à rua Bahia. A partir do ano de 1913, a comercialização da Biblioteca do Povo e das Escolas no Brasil passou a ser feito pela Livraria Francisco Alves14. A colocação dos livros no mercado e a sua circulação estavam garantidos não apenas nas lojas da editora, mas também através dos correios. A editora fazia assinaturas e vendia também os livros de maneira avulsa, por via postal, desde que o interessado enviasse uma carta e a importância correspondente ao preço em estampilhas ou vales postais. PORTUGAL PARA BRASILEIROS A História de Portugal era o livro de estréia em função do projeto inicial da coleção. Era pretensão abranger sete grandes áreas do conhecimento: Educação Corporal, Zoologia, Física, História, Literatura, Jurisprudência e Lingüística. Não obstante a sua enorme importância, os títulos da Biblioteca do Povo e das Escolas têm sido praticamente desconhecidos pela maioria dos estudos a respeito do livro e do mercado editorial no Brasil. A História de Portugal, de João Cesário de Lacerda, ajuda a compreender o quadro de mentalidades existentes à época e o projeto que se punha à escola como centro de formação em Portugal e no Brasil das últimas décadas do século XIX e das primeiras décadas do século XX. O livro foi publicado um ano depois da celebração do tri-centenário de nascimento do poeta Luis de Camões. O texto busca estabelecer para Portugal o mesmo caráter épico que a história do país ganhou em Os Lusíadas, exaltando a nacionalidade portuguesa.

A História de Portugal, o primeiro volume da Biblioteca do Povo e das Escolas, era ilustrado com 10 gravuras. O livro publicou retratos de D. Afonso Henriques, D. Diniz, D. João I, D. João II,

14 Hallewell oferece a seguinte explicação: “Francisco Alves crescera rapidamente desde meados da década de 1890, e logo chegou a ter quase o monopólio no campo do livro didático brasileiro. Isso foi conseguido, em parte, suplantando com preços mais baixos os seus concorrentes, o que ele conseguia com tiragens maiores, mas principalmente comprando os concorrentes”. (1985, p. 210).

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Vasco da Gama, D. Sebastião, Luiz de Camões, D. João IV, Márquez de Pombal e D. Pedro V. O canto III, 17 e 20 de Os Lusíadas que serviu de epígrafe para a primeira página da História de Portugal é revelador do caráter épico da história portuguesa que se apresentava aos estudantes daquele país e aos brasileiros:

Eis aqui, quase cume da cabeça

Da Europa toda, o reino Lusitano, Onde a terra se acaba e o mar começa, E onde Phebo repousa no Oceano.

Assim, o livro começa explicitando e oferecendo grandeza à origem dos portugueses nos povos Iberos e na sua fusão com os célticos, dando origem a cinco grupos principais: Cantabros, Asturos, Vascônios, Calaicos e Lusitanos. A isto, o autor somou uma posterior chegada dos Fenícios às costas meridionais da península, à qual atribuiu o germe da tradição portuguesa de navegação comercial. O épico de Camões foi a base que sustentou o discurso do autor da História de Portugal em todo o período no qual o reino ainda não estava constituído e o condado espanhol de Portucale lentamente construía uma identidade nacional. O ano de 1128 marcou efetivamente o estabelecimento do novo reino, principalmente após a batalha de São Mamede, da qual despontou D. Afonso Henriques, herói da luta com apenas 17 anos de idade, filho do conde borgonhês e fundador da Dinastia de Borgonha. Nascido em Guimarães, D. Afonso Henriques rompeu com a vassalagem importa pelo rei espanhol Afonso VII, iniciando o processo que lhe permitiu colocar sobre a cabeça a coroa do Reino de Portugal. Em tal processo teve também necessidade de vencer os Mouros que ocuparam o norte da Extremadura, chegando às cercanias de Coimbra. Tomando o título de Rei a partir de 1140, D. Afonso Henriques buscou garantias junto ao Papa, colocando a coroa portuguesa à disposição do pontífice e declarando o seu reino tributário da Santa Sé. D. Afonso Henriques teve como sucessor o seu filho, D. Sancho I, que lutou contra a “prepotência do clero representada pelos bispos do Porto e de Coimbra, que se recusavam em suas dioceses a reconhecer a supremacia temporal do monarca, e na tenaz defesa das prerrogativas régias não hesitou mesmo em afrontar as iras do pontífice” (LACERDA, 1881, p. 17). Já o terceiro rei português, D. Afonso II, foi apresentado pelo autor da História de Portugal como um monarca que

foi nas lutas políticas que prosseguiu e sustentou, como legado paterno, contra as pretensões do clero e contra as tentativas de invasão manifestadas pelos papas em relação à pública administração; o arcebispo de Braga e o bispo de Lisboa, encontrando no monarca um rude adversário, foram sempre vigorosamente reprimidos pelo braço potente de D. Afonso (LACERDA, 1881, p. 17).

A História do reino de Portugal exposta pela Biblioteca do Povo e das Escolas teria sido assim, ao menos em seu primeiro século, uma luta tenaz dos seus governantes contra os domínio espanhol, contra os Mouros e contra o clero, com o objetivo de assegurar a legitimidade da coroa e da nacionalidade portuguesa. Neste conflito, D Sancho II fora um rei que perdeu prerrogativas e terminou deposto pelo papa Inocêncio IV durante o Concílio de Leão, em 1245. O seu irmão, D Afonso III, assumiu definitivamente o trono após a morte de D. Sancho II. Com o novo rei, Portugal conheceu a prosperidade do seu povo, desenvolvendo tanto quanto foi possível a atividade agrícola, industrial e comercial,

já concorrendo para que os municípios fossem pouco a pouco adquirindo importância na grande tarefa da pública administração. Assim, não só concedeu numerosíssimos forais, mas inclusivamente inaugurou nas cortes de Leiria celebradas em 1254 a praxe de convocar os procuradores dos municípios dando-lhes assento nessas assembléias onde até então só figurava a nobreza e o clero (LACERDA, 1881, p. 22).

Na epopéia portuguesa narrada por João Cesário também aparece de modo destacado a figura de D. Diniz, criador, em 1290, da primeira Universidade de Portugal, transferida para Coimbra em

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1307. Esta iniciativa juntamente com o estímulo que ele ofereceu sempre às atividades intelectuais deram a D. Diniz a fama de mecenas e a reputação de haver sido responsável por importantes mudanças nas relações culturais vigentes na sociedade portuguesa. Hábil diplomata, D. Diniz teria também contribuído para estabilizar as relações entre Portugal e a Igreja Católica.

Enquanto o papa Clemente V, abolindo a ordem dos cavaleiros do Templo, se propunha lançar mão dos bens que estes possuíam em Portugal, o ilustre monarca tinha artes de iludir diplomaticamente o ambicioso intento do pontífice instituindo em 1319 a ordem de Cristo e transferindo para ela os próprios Templários com seus antigos bens e rendimentos (LACERDA, 1881, p. 22).

A Dinastia de Borgonha, com a qual se inaugurou o reino de Portugal teve em D. Fernando I o seu último rei. Ao discutir a Dinastia de Aviz, João Cesário de Lacerda coloca em grande destaque o período do reinado de D. Duarte, sublinhando as suas qualidades de político e a sua condição de letrado. Membro da mesma Dinastia, o rei D. Manoel, que governava Portugal quando da chegada de Cabral às terras do Brasil, foi apresentado pelo autor que aqui se estuda como um monarca intolerante:

A expulsão dos judeus decretada em 1497, e a carnificina atroz dos cristãos novos que Lisboa presenciou em 1506 promovida pelo influxo do intolerantismo fradesco sobre o fanatismo estúpido da plebe inepta (carnificina cujos promotores aliás el-rei mandou depois severamente castigar), são dois fatos calamitosos que deslustram as pompas deste reinado, - tão glorioso, todavia , se o encararmos exclusivamente no campo dos descobrimentos e das conquistas (LACERDA, 1881, p. 39).

Mesmo chamando a atenção para a intolerância do governo manoelino, a Biblioteca do Povo e

das Escolas outra vez não perde a oportunidade de rememorar insistentemente a epopéia lusitana na conquista dos mares, apoiando-se novamente em Luiz de Camões: Manuel, que a João sucedeu No reino e nos altivos pensamentos, Logo como tomou do reino cargo Tomou mais a conquista do mar largo (Lus. IV, 66). Farta nos elogios ao rei D. Manoel, que faleceu aos 52 anos de idade, a História de Portugal afirma que

durante o reinado deste monarca Portugal havia assumido o Zenith de magnificência; sentia-se o sopro vivificante da Renascença nas artes e nas letras. A língua vazava-se definitivamente nos moldes corretos e puros do classicismo; a literatura inaugurava em Gil Vicente e Bernardino Ribeiro a fase áurea, em que breve tinham de surgir, quais meteoros luminosos, os nomes de Sá Miranda e de Antonio Ferreira, de João de Barros e de Luiz de Camões o primeiro dentre todos, o imortal poeta dos Lusíadas (LACERDA, 1881, p. 39).

São da mesma natureza os elogios que o autor dirige a D. Pedro V, que governo Portugal na

segunda metade do século XIX, chamando a atenção para a sua condição de erudito e para a recusa deste em aplicar a pena de morte. Na História que apresenta aos estudantes brasileiros, o autor português canta os feitos do ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, presidente do Conselho Ultramarino, intelectual cuja educação política se completou nas missões diplomáticas que este cumpriu em Londres e em Viena. Para o historiador João Cesário Lacerda, Pombal era um homem de pulso firme e personalidade forte, capaz de defender o Estado, a sociedade e as instituições portuguesas, como o fizera quando mandou executar o Duque de Aveiro, o Conde de Athouguia e os marqueses de Távora, acusados de atentar contra a vida do rei na noite de três de setembro de 1758 e

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justiçados na praça de Belém, no dia 12 de fevereiro de 1759. Além disto, Pombal também recebeu elogios pela “energia com que expulsou do reino a Companhia de Jesus, acabando por conseguir que o papa Clemente XIV a abolisse definitivamente” (LACERDA, 1881, p. 54). Outras iniciativas de Pombal são igualmente vistas com muito entusiasmo pelo autor português: a reforma da Universidade de Coimbra; a criação do Colégio das Artes, em Mafra; a criação da Aula do Comércio, em Lisboa; a fundação do Colégio dos Nobres; a restrição dos abusivos poderes que a Inquisição usufruía; a proteção das indústrias; e, o desenvolvimento do comércio e da agricultura. O analista vê tamanha grandeza no trabalho de Sebastião José de Carvalho e Melo, que atribui a ele algumas poucas iniciativas positivas do governo de D. Maria I. O discurso épico do livro, contudo, apresenta alguns elementos de melancolia. Reclama do rei D. João III, que considera uma “figura torva e sombria” (LACERDA, 1881, p. 42), responsável pela entrada da Companhia de Jesus em Portugal e tido como um homem que minimizou a dinastia de Aviz. “Quando outra coisa não houvesse para tristemente assinalar-lhe o reinado, bastava o reflexo das fogueiras da Inquisição autorizadas a instâncias suas em Portugal por uma bula pontifícia no ano de 1537” (LACERDA, 1881, p. 42).

Da Dinastia de Bragança (a última que os portugueses conheceram) o autor considerou desastrado o governo de D. João V, afirmando ter sido este rei um homem muito vaidoso, que buscava prestígio artístico e não poupava o tesouro no intento de cultivar a sua vaidade.

Exageradamente propenso ao fausto e a magnificência, consumiu quanta riqueza lhe forneciam as minas do Brasil em obras que, embora de grande valor e merecimento, umas úteis, outras simplesmente aparatosas, assaz atestam a prodigalidade do monarca, tais são: o Aqueduto das Águas Livres, o Convento de Mafra e a Capela de São João Batista no templo de S. Roque (em Lisboa). Ao seu rinado pertencem igualmente a criação da Patriarcal, em que se esbanjaram grossos cabedais, e a instituição da Academia Real de História. A suntuosidade que revelou na realização destas fundações, algumas das quais denunciam mais que tudo a sua vaidade e o seu orgulho, deveu D. João o cognome de Magnífico – assim como deveu ao ouro, com que profusamente mimoseou o pontífice, o título de Fidelíssimo para si e para os subseqüentes reis de Portugal (LACERDA, 1881, p. 54).

A História de Portugal contada aos estudantes daquele país e do Brasil no final do século XIX não via nenhuma dignidade no governo de D. João VI, que transferiu a sede da corte portuguesa para o Rio de Janeiro. Segundo o autor, D. João era uma criatura pouco talhada para tão alto encargo. Afirmou que a ele Portugal deve apenas “o mais triste exemplo de egoísmo e covardia” (LACERDA, 1881, p. 54). Sobre o período em que a corte portuguesa permaneceu com sua sede no Brasil entendeu que D. João VI deixava-se ficar ociosamente no que considerava o doce remanso da sua corte brasileira, enquanto em Portugal “a regência dominada pelo inglês Beresford, general que viera em tempos disciplinar nossas tropas quando tratávamos de resistir às invasões francesas, pesava-nos com todos os vexames do seu egoísmo brutal sobre os negócios da administração pública” (LACERDA, 1881, p. 57).

João Cesário Lacerda também lamentou que Portugal, ao final do século XIX, já não mais apresentasse a mesma importância política de outrora, inerente aos grandes Estados. Contudo, buscou produzir em Portugal a marca distintiva de ser uma sociedade liberal na qual eram evidentes as marcas das liberdades e garantias individuais.

Da mesma maneira o texto procurou valorizar as relações entre Portugal e o Brasil, após a proclamação da independência brasileira em 1822, ressaltando o equilíbrio do herdeiro do trono de Portugal, o Duque de Bragança, no Brasil o imperador D. Pedro I. Sublinhou o seu espírito democrático e o seu desprendimento ao abdicar à coroa do Brasil em 1831, para lutar pela reconquista da coroa portuguesa.

Narrando apressadamente o episódio da emancipação brasileira, a História de Portugal coloca ênfase na figura de D. Pedro I, herdeiro do trono de Portugal, com a morte de D. João VI. E valoriza muito o episódio e as atitudes do Imperador do Brasil, analisando todo o processo inicial de abdicação da coroa portuguesa em favor de sua filha:

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abdicou-a na princesa D. Maria da Glória, a primogênita da numerosa prole havida em seu primeiro consórcio com D. Carolina Josepha Leopoldina (filha do imperador d’Áustria, Francisco I), outorgou aos portugueses uma Carta Constitucional, e cuidou de conciliar desinteligências futuras ajustando o consórcio da infantil rainha que apenas contava ora sete anos de idade com o infante D. Miguel, que então residia em Viena d’Áustria. Combinou-se mais que D. Miguel durante a menoridade da sua futura consorte assumisse a regência do reino sob o regime constitucional da Carta assinada por D. Pedro. D. Miguel, porém, quando regressou ao reino em 1828, acedendo aos conselhos de seus amigos e partidário, tratou de colocar sobre a própria cabeça a coroa da sobrinha, dissolveu as câmaras, e reuniu novas cortes adrede constituídas por gente de sua feição que o proclamaram rei absoluto (LACERDA, 1881, p. 58).

A decisão de D. Pedro em abdicar ao trono do Brasil e lutar pela sua coroa portuguesa, tomada em 1831, é vista elogiosamente pela historiografia oitocentista de Portugal. Após deixar seu filho D. Pedro de Alcântara como herdeiro do trono do Brasil, o Duque de Bragança lutou para reconquistar o direito de sua filha ao trono de Portugal, liderando a luta dos liberais portugueses contra D. Miguel, até conquistar a vitória e colocar a rainha D. Maria II no trono em 1834, falecendo logo depois, nesse mesmo ano. ALGUMAS POSSÍVEIS CONCLUSÕES No século XIX o Brasil começou a produzir os seus próprios livros didáticos, através da Impressão Régia. É sabido que isto ocorreu também em função das guerras napoleônicas e da interrupção do envio de livros produzidos na Europa para cá. Com o restabelecimento do fluxo comercial de livros da Europa para o Brasil, refluiu a experiência de produção de livros didáticos no novo Império. Afinal de contas, o mercado do livro didático por aqui era muito pequeno. Comercialmente não havia grande interesse por parte das casas editoras estabelecidas no país. É recorrente encontrar em documentos do século XIX queixas quanto a ausência de livros didáticos produzidos em território brasileiro ou, ao menos, adequados às condições locais. Tal problema era visto como impeditivo ao desenvolvimento da educação nacional. As dificuldades do mercado brasileiro do livro didático possibilitaram que durante toda a segunda metade do século XIX e pelo menos durante as duas primeiras décadas do século XX muitos editores portugueses continuassem a produzir livros escolares – didáticos e complementares do trabalho escolar – destinados a estudantes portugueses e brasileiros. Em certa medida, tal problema ajuda a compreender o êxito entre nós de uma coleção como a Biblioteca do Povo e das Escolas, concebida para estudantes dos dois países. Lançada no início dos anos oitenta, oito anos antes da proclamação da República por aqui, a coleção teve a possibilidade de prosperar. De fato, as duas últimas décadas de existência do Império apresentaram uma razoável melhora no quadro de indicadores da educação.

Talvez por todas essas razões, a Biblioteca do Povo e das Escolas seja uma grata surpresa, quando se observa atentamente e se percebe que em um país no qual a maioria dos livros não alcançava a casa dos 300 exemplares vendidos anualmente, tal coleção tenha vendido, nos seus dois primeiros volumes, 6000 exemplares a cada 15 dias, em Portugal e no Brasil. Mais surpreendente é quando nos damos conta de que já no terceiro volume a tiragem da edição crescera para 12 mil exemplares, posto que mesmo as edições mais bem sucedidas, de autores consagrados, jamais excediam o número de 1000 exemplares. No volume 11, a coleção já tirava 15 mil exemplares. Portanto, impressionam sobremodo as informações acerca da quantidade de exemplares que eram impressos a cada novo volume da coleção, mesmo considerando-se que Portugal certamente absorvia a porção mais significativa desses exemplares, posto que tais tiragens são muitas vezes superiores mesmo aos padrões europeus do período.

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Não obstante a sua enorme importância, a Biblioteca do Povo e das Escolas tem sido praticamente uma ilustre desconhecida da maioria dos estudos a respeito do livro e do mercado editorial no Brasil. Lauwrence Hallewel, autor que deu grande contribuição aos estudos da questão no Brasil, ao tratar do problema, em nenhum momento faz referências à Biblioteca do Povo e das

Escolas. Ao tratar da aquisição da firma portuguesa David Corazzi pela Livraria Francisco Alves, passa ao largo de tal coleção, fazendo referências apenas a outras coleções da empresa de Portugal, bem menos importantes, sob todos os aspectos que a Biblioteca do Povo e das Escolas. Se do ponto de vista dos problemas que envolviam o mercado de produção e circulação de livros naquele momento, a Biblioteca do Povo e das Escolas é um documento da maior importância, extremamente mais rica se apresenta tal coleção quando pensamos acerca das possibilidades de compreensão do quadro de mentalidades existentes à época e do projeto que se punha à escola como centro de formação no Brasil das últimas décadas do século XIX e das primeiras décadas do século XX. Do mesmo modo, é fértil a contribuição que tais livros podem nos dar quanto aos olhares que temos lançado sobre o nosso passado, principalmente no que diz respeito aos estudos acerca da História, ao examinarmos fenômenos como a educação e a cultura no Brasil.

A História de Portugal apresentada aos estudantes do Brasil pela Biblioteca do Povo e das

Escolas esquematizou o estudo da História daquele país, a partir de um passado glorioso, e apresentou os personagens e acontecimentos principais como representações de um modelo útil à jovem nação brasileira. Uma história que tinha seu início na narração de uma Geografia-histórica, dividida em uma série de períodos acompanhando os reis de cada uma das quatro dinastias de Portugal, resumindo em quadros representativos os costumes, a indústria, as instituições e, por fim, destacava em cada fase os homens mais importantes e os seus feitos heróicos, insistindo nas ações que correspondiam melhor ao espírito de cada época. O ensino da História de Portugal era, assim, um conjunto de feitos necessários à formação de um passado glorioso que servia às duas nações. Deste modo, o texto enfatizava apenas os fatos de maior interesse para o incentivo do louvor à pátria dos brasileiros e dos portugueses.

O discurso de João Cesário Lacerda sobre a História de Portugal constituiu um aspecto importante para o processo educativo ao apresentar muitos comportamentos, normas e valores, garantindo a estabilidade normativa do Estado português. As punições aplicadas aos que transgrediam eram mostradas como exemplares e justificadas como necessárias.

O trabalho se caracterizava pelo fato de fomentar sentimentos individuais de patriotismo e civilidade, buscando conduzir os leitores à prática de atos de bondade, de altruísmo, de justiça, de eqüidade, de patriotismo e de solidariedade. Aquele estudo buscava incutir nos brasileiros e nos portugueses o interesse pela organização política nacional, pelas liberdades públicas, pelos direitos e deveres do cidadão, ensinando-lhes o culto à pátria, com base nos grandes feitos e na biografia dos grandes homens.

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