2467-9184-1-pb

Upload: leonardoleo

Post on 16-Mar-2016

218 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

w

TRANSCRIPT

  • . . . . .Espao Plural Ano X N 20 1 Semestre 2009 (149-154) ISSN 1518-4196

    149

    Ensino de Histria e concepes historiogrficas

    *

    Luis Fernando Cerri

    Resumo: Esse ensaio prope e discute uma tipologia das

    relaes entre o ensino de Histria e as concepes

    historiogrficas. Inicia estabelecendo uma primeira

    grande diviso entre as concepes historiogrficas, para

    as quais o ensino de histria ou educao histrica no

    so um problema da histria, e as concepes que

    consideram que o problema do ensino imanente

    produo e utilizao social do conhecimento histrico.

    A seguir, sugere que as concepes historiogrficas, na

    sua relao com o ensino de Histria, dividem-se em

    concepes tradicionais, crticas e genticas, conforme

    as linhas gerais da teoria do conhecimento que praticam.

    Palavras-chave: Ensino de Histria. Historiografia.

    Teoria da Histria

    Abstract: This essay proposes and discusses a typology of

    the relationships between history teaching and

    historiographical conceptions. It begins by establishing

    one first big division between historiographical

    conceptions that assume the history teaching or history

    education are not a problem to the history, and those

    which assume that the teaching problem is immanent to

    production and social usage of historical knowledge.

    Following, it suggests that the historiographical

    conceptions, in their relationship with history teaching

    are divided into traditional, critical and genetic

    conceptions, concurring to the lines of the knowledge

    theory that they practice.

    Key words: History Teaching. Historiography. History

    Theory

    1 Introduo

    Para discutir o tema proposto, o melhor

    caminho comear pelas definies dos termos

    colocados em relao. Assim, ser possvel equacionar o

    desenvolvimento do raciocnio que nos interessa, ou

    seja, a relao entre o ensino de histria e as concepes

    historiogrficas.

    No o caso de nos estendermos aqui na

    definio de concepo historiogrfica, que j foi objeto 1

    de discusses variadas ao longo desse evento. Apenas

    para consumo imediato e sem maiores pretenses,

    podemos definir uma concepo historiogrfica como

    uma vertente terica e metodolgica de um corpo

    formalizado de estudos a Histria e portanto um

    fenmeno disciplinar. A concepo historiogrfica se

    identifica, ento, como um fenmeno inerente a uma

    forma especfica de conhecimento, quer o chamemos de

    cincia, disciplina, arte, saber. O fato que se trata de

    uma forma de conhecimento institucionalizada e

    profissionalizada (ainda que no Brasil no esteja ainda

    regulamentada a profisso de historiador), originada na

    Europa do sculo XIX e da difundida a quase todo o

    mundo.

    Ensino de histria um fenmeno social, e no

    somente um fenmeno da educao formal. integrado

    por todos os esforos por estabelecer sentidos para o

    tempo experienciado pela coletividade. Assim definido,

    parece um objeto excessivamente amplo para a nossa

    reflexo. Independe da historiografia, at. De fato

    *

    Doutor em Educao pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa. Email:

    [email protected] 1

    Esse texto foi apresentado como conferncia durante a Semana Acadmica de Histria da UNIOESTE - Campus de Mal. Cndido Rondon, em junho de 2008.2

    HELLER, Agnes. Uma Teoria da Histria. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1993.

    ampla a definio de Histria como tempo significado,

    mas ela tem o condo de nos permitir entender que o

    ensino de Histria cuja definio restringiremos adiante

    pode ser encarado como um processo de constituio

    de identidade que uma constante antropolgica. Com

    Agnes Heller, podemos entender que esse ensino de

    Histria amplamente entendido (no escolar, no

    formal) comea com a identificao rudimentar do

    tempo, da finitude do indivduo e da sobrevivncia da

    comunidade, e se modifica ao longo da aventura humana

    at formulaes atuais, como o reconhecimento da

    humanidade como grupo de pertencimento, e as idias 2

    de responsabilidade planetria .

    mais mapeado e menos ameaador o campo

    do ensino de Histria como um fenmeno da educao

    formal. Mas como todo objeto das Cincias Sociais

    no existe apenas no recorte definido no trabalho do

    pesquisador, que o retira da complexidade integrante do

    real para cerc-lo a partir de alguns critrios e viabilizar

    um plano de anlise. Por enquanto no h outra forma de

    estudar o real seno definindo recortes, mas isso no nos

    livra de considerar o objeto em suas relaes com o

    complexo real de onde ele imaginariamente retirado.

    Assim evitamos uma viso esttica e equivocada do

    objeto, pois aquelas relaes que no esto sob anlise

    direta, permanecem nos cantos da tela, lembrando a

    provisoriedade e condicionalidade da anlise em curso.

    Trocando em midos, ao no perder de vista que o

    ensino formal e escolar da Histria vinculado ao

    fenmeno social do ensino de Histria, temos mais

  • Histria no uma tarefa que caiba ou que esteja ao

    alcance do historiador. Trata-se de uma questo para o

    pedagogo, para o didata, que pode ou no ter formao

    na Histria, mas no mais um praticante dessa

    profisso. Ele passou para um outro lugar epistemolgico

    e profissional, o lugar do professor. Dentro dessa

    categoria, cabem todas as concepes historiogrficas.

    No portanto, uma concepo historiogrfica em

    relao ao ensino de Histria, mas uma postura didtica,

    ou melhor, a ausncia dela. Daqui vm todas as

    dificuldades de relacionar a pesquisa e o ensino, a teoria

    e a prtica da Histria. (e o ensino a prtica da histria,

    porque a historiografia uma prtica terica).

    Essa primeira grande vertente na teoria da

    Histria entende que o ensino no um problema. No

    est em seu horizonte, pois j est resolvido em outra

    instncia, ou seus problemas esto em outra instncia.

    Essa posio no ter facilidade em aceitar pesquisas ou

    linhas de pesquisa em ensino de Histria dentro de

    Programas de Ps-Graduao em Histria, ou disciplinas

    de estgio ou prtica de ensino de Histria dentro dos

    Departamentos de Histria, a no ser por corporativismo

    ou oportunismo. Afinal, para essa vertente de

    pensamento, o ensino s pode ser um problema da

    Histria na forma de Histria da Educao. Ignora-se

    todavia que a Histria no apenas historia: a teoria da

    Histria, que estuda os fundamentos, procedimentos e 9

    resultados do historiar, integra a disciplina, e dentro dela

    cabe a disciplina Didtica da Histria, no como

    educao historiada, mas como parte da reflexo sobre

    procedimentos, fundamentos, resultados e usos e

    relaes do conhecimento histrico em sociedade,

    Tenho estado entre os que, pelo outro lado,

    defendem a posio terica de que historiografia

    resultado de uma reflexo didtica, entendendo aqui

    tambm a didtica em sentido amplo, como dialogante

    com o espao externo profisso ou pesquisa

    especializada. Esse dilogo pode ser ativo ou passivo,

    extenso ou restrito, mas sempre est na base da criao

    profissional de conhecimento histrico, dentro da matriz 10

    disciplinar da Histria proposta por Rsen. Produzir

    conhecimento ato de ensino e aprendizagem.

    Aprender histria ato de construo e reconstruo. A

    constituio de um tema, ato bsico e fundador de toda e

    qualquer investigao historiogrfica, resulta da

    idiossincrasia de um ou um conjunto de sujeitos. E essa

    idiossincrasia resulta de determinados aprendizados do

    conhecimento histrico ento disponvel, mediados por

    determinadas leituras de mundo, por sua vez

    condicionadas por conceitos e pr-conceitos aprendidos

    ao longo das respectivas histrias de vida.

    Com a mudana paradigmtica da didtica da

    histria nos anos 70, ela passa de apenas metodologia do

    ensino a reflexo sobre produo, circulao e consumo

    de conhecimento histrico, do ponto de partida da teoria

    da Histria, e no somente do ponto de partida do

    conhecimento didtico ou pedaggico. Na medida em

    que o foco da Didtica da Histria passa do ensino para a

    aprendizagem, os fenmenos pelos quais se interpreta o

    tempo e se produzem representaes e discursos sobre a

    identidade pessoal e social no tempo so englobadas no

    seu campo de estudos. Por conseguinte, considerando

    que a cincia da Histria uma dessas formas de

    produo de discursos e representaes, que tem na

    Teoria da Histria seu esforo de auto-avaliao e auto-

    conscincia, ela torna-se tambm objeto de parte da

    reflexo da Didtica da Histria. No campo da Histria, a

    Didtica participa da Teoria da Histria. Como essa

    definio de parte do que a Didtica da Histria,

    preciso relembrar que ela, campo fronteirio, tambm

    tem participao em outro campo disciplinar, que o da

    Educao e, a sim, da Metodologia do Ensino e das

    teorias da aprendizagem.

    2 Concepes historiogrficas tradicionais e ensino

    de Histria

    Podemos demarcar concepes tradicionais

    como aquelas que entendem que a verdade est nas

    coisas. Mas no so transparentes, e faz parte da

    concepo tradicional identificar que a verdade vira

    conhecimento ao ser extrada das coisas atravs da

    interpretao dos sbios autorizados a emitir o discurso 11

    competente (na expresso de Marilena Chau ).

    Quando se pensa em ensino e aprendizagem, a questo

    como internalizar aquilo que os especialistas

    produziram: o ensino um problema de concentrao e 12

    dosagem do remdio.

    O sujeito aprendente, como se percebe, no

    ocupa o centro do processo. Professor o centro, pois

    detm o conhecimento. Aluno objeto, aprendiz

    passivo. A relao de transmisso. So tpicas dessa

    concepo as expresses passar o contedo, ou

    vencer o contedo. Evidentemente, em nenhum caso

    se admite um professor de histria com erudio

    insuficiente, mas a centralidade do contedo o

    conteudismo priva professor e aluno da reflexo

    epistemolgica, j que os contedos so tomados como

    universalmente vlidos. Essa perspectiva histrico

    didtica no se resume a uma posio direitista no

    espectro poltico, j que h perspectivas de esquerda que

    advogam esse entendimento .

    9

    o que defende, por exemplo, BERGMANN, Klaus. A histria na reflexo didtica. Revista Brasileira de Histria. So Paulo, v.9, n. 19, p. 29 42, set 89/fev. 9010

    RSEN, Jrn. Razo Histrica. Braslia: EdUNb, 2001.11

    CHAU, Marilena. Cultura e Democracia: O discurso competente e outras falas. So Paulo: Cortez, 1990.12

    Defendemos que o caso, por exemplo, da pedagogia histrico-crtica, conforme registramos no artigo PACIEVITCH, Caroline; CERRI, L. F. Professores

    progressistas de Histria e a Pedagogia Histrico-Crtica nos anos 80: aproximaes e distanciamentos. Histria Hoje. So Paulo, v. 3, n. 9, p. 1-20, 2006.

    Disponvel em http://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=74, acessado em 31 jul. 2008.

    Luis Fernando Cerri

    151

    chance de compreender conseqncias das relaes

    esses dois pedaos da relao nica do ser humano com

    o tempo significado e representado. Toda formulao

    que tenta isolar o ensino da Histria nas escolas das

    relaes com o seu entorno fracassa em entender porque

    os objetivos educacionais subjugam facilmente as

    dificuldades e limitaes do ensino e da aprendizagem.

    O que , ento, o ensino de Histria?

    Na definio inicial desse texto, o ensino de

    Histria um conjunto de muitas possibilidades, tantas

    quantas so as concepes e os usos sociais de Histria

    possveis. Quando lemos, com Rsen, a Histria como 3

    tempo significado, podemos inferir que o ensino escolar

    da Histria apenas uma das formas criadas por uma

    cultura especfica a ocidental moderna para

    equacionar o problema de constituio de um passado

    capaz de unificar essencialmente os grupos sociais em

    um corpo poltico nico na grande maioria dos casos, a

    nao apesar de suas diferenas.

    Na definio a partir do critrio formal e

    institucionalizado, uma ao intencional educativa

    (entre geraes) para formar uma determinada

    identidade ou conjunto de identidades aceitveis ou

    desejveis socialmente, associada formao de um

    pensamento histrico. Para Pozo, Asensio e Carretero

    envolve a formao de habilidades metdicas e de um 4

    entramado conceitual, ou seja, o domnio de algumas

    regras particulares de inferncia e deciso e de um

    posicionamento terico que permita ordenar e explicar

    os fatos histricos de modo compreensvel.

    Considerando o ponto de vista de que o ensino e

    a aprendizagem de Histria, em sua verso escolar

    moderna, resultam de um aspecto poltico e de um

    aspecto cognitivo - cientfico, temos que a histria do

    ensino de Histria o movimento mais ou menos

    ordenado de verses de um passado comum e de

    concepes de histria que se associam e se sucedem.

    Qual identidade e qual passado comum, mais qual

    concepo de cincia, definem qual o pensamento

    histrico de que se trata em cada momento, e essa a

    chave para elaborar e compreender a historicidade do

    ensino de histria. O ensino de Histria, ento, a sntese

    mvel entre as demandas polticas e sociais por

    identidade coletiva e orientao no tempo, as

    concepes do que seja a teoria e o mtodo histricos, e

    ainda as vises sobre qual conhecimento do passado

    essencial para ser conhecido e assimilado pelas novas

    geraes.

    preciso dizer ainda a ttulo introdutrio, que a

    relao entre as concepes historiogrficas e as

    concepes e prticas do ensino escolar de histria no

    tm uma relao direta. Para sustentar esse ponto de

    vista, podemos tanto recorrer discusso da transposio 5

    didtica (Chevallard e outros) quanto ao ponto de vista

    de que as sociedades tm mltiplos focos de conscincia 6

    histrica (Marc Ferro), ou seja, que o conhecimento

    histrico produzido em vrias instncias, sendo que a

    cincia apenas uma delas. Para todas as instncias, o

    conhecimento histrico tem funes e usos distintos, e

    essas produes relacionam-se entre si. Em ambas as

    perspectivas, temos esferas distintas que se comunicam

    de modos desiguais, e, portanto o ensino de histria no

    pode ser entendido como correia de transmisso da

    concepo historiogrfica.

    Por fim, ainda no campo preliminar, e como

    advertncia, esse um texto com base em paradigmas,

    em tipos-ideais. O leitor no os encontrar em forma

    pura no mundo concreto. O que outra forma de dizer

    que simplificar falsificar, em alguma medida, e que

    traduzir trair. Mas nunca se aprendeu sem simplificar ou

    traduzir, desde que fique no horizonte prximo a

    necessidade de refazer esses vnculos e suturar os

    recortes. Alm disso, no s o mundo das relaes

    concretas entrelaado, como tambm o o mundo da

    teoria. Como j indiquei em um artigo anterior, as

    "fronteiras" entre as concepes historiogrficas no so 7

    totalmente definidas. A crtica histrica que d origem

    aos Annales est embasada em nada menos que as idias

    oriundas do positivismo francs, numa corrente de

    pensadores que vai de Comte, passando por Durkheim

    at Franois Simiand, este influenciando mais

    diretamente as crticas que instigam os fundadores da 8

    escola, M. Bloch e L. Febvre .

    Em relao ao ensino de Histria, h duas

    grandes categorias ainda no historiogrficas, mas

    tericas nas quais podemos organizar praticamente

    todas as vertentes historiogrficas contemporneas. A

    primeira e mais comum aquela que entende e pratica

    que o ensino uma daquelas tantas coisas que se pode

    fazer com o conhecimento produzido pela Histria;

    como todas as outras, o ato do ensino no participaria do

    ato da produo do conhecimento, mas seria posterior e

    distinto. A partir da podemos encontrar diversas posturas

    na historiografia que pensam diversamente o problema

    do ensino de Histria, ou melhor, que no pensam o

    problema, afinal, deste ponto de vista, pensar o ensino de

    3

    RSEN, J. What is Historical Consciousness? - A Theoretical Approach to Empirical Evidence. Paper presented at Canadian Historical Consciousness in an

    International Context: Theoretical Frameworks, University of British Columbia, Vancouver, BC, 2001. Disponvel em

    http://www.cshc.ubc.ca/pwias/viewabstract.php?84

    POZO, J.I., ASENSIO, M. e CARRETERO, M. Modelos de aprendizaje-enseanza de la Historia. In: CARRETERO, M. La Enseanza de las Ciencias Sociales. Madrid:

    Visor, 1993.5

    CHEVALLARD, Yves. La transposicin didctica. Del saber sabio al saber enseado. Buenos Aires: Aique, 1991.6

    FERRO, Marc. A histria vigiada. So Paulo: Martins Fontes, 1989.7

    CERRI, Luis Fernando. Ensino de Histria: Fronteiras interdisciplinares, avanos e problemas. Cadernos de histria. Uberlndia, v. 12/12, n. 1, p. 07-21, 2005.8

    BURKE, Peter. A Escola dos Annales: A Revoluo Francesa na Historiografia - 1929-1989. So Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1991, p. 21.

    Ensino de Histria e concepes historiogrficas

    150 . . . . .Espao Plural Ano X N 20 1 Semestre 2009 (149-154) ISSN 1518-4196

    . . . . .Espao Plural Ano X N 20 1 Semestre 2009 (149-154) ISSN 1518-4196

    Seo Artigos

  • Histria no uma tarefa que caiba ou que esteja ao

    alcance do historiador. Trata-se de uma questo para o

    pedagogo, para o didata, que pode ou no ter formao

    na Histria, mas no mais um praticante dessa

    profisso. Ele passou para um outro lugar epistemolgico

    e profissional, o lugar do professor. Dentro dessa

    categoria, cabem todas as concepes historiogrficas.

    No portanto, uma concepo historiogrfica em

    relao ao ensino de Histria, mas uma postura didtica,

    ou melhor, a ausncia dela. Daqui vm todas as

    dificuldades de relacionar a pesquisa e o ensino, a teoria

    e a prtica da Histria. (e o ensino a prtica da histria,

    porque a historiografia uma prtica terica).

    Essa primeira grande vertente na teoria da

    Histria entende que o ensino no um problema. No

    est em seu horizonte, pois j est resolvido em outra

    instncia, ou seus problemas esto em outra instncia.

    Essa posio no ter facilidade em aceitar pesquisas ou

    linhas de pesquisa em ensino de Histria dentro de

    Programas de Ps-Graduao em Histria, ou disciplinas

    de estgio ou prtica de ensino de Histria dentro dos

    Departamentos de Histria, a no ser por corporativismo

    ou oportunismo. Afinal, para essa vertente de

    pensamento, o ensino s pode ser um problema da

    Histria na forma de Histria da Educao. Ignora-se

    todavia que a Histria no apenas historia: a teoria da

    Histria, que estuda os fundamentos, procedimentos e 9

    resultados do historiar, integra a disciplina, e dentro dela

    cabe a disciplina Didtica da Histria, no como

    educao historiada, mas como parte da reflexo sobre

    procedimentos, fundamentos, resultados e usos e

    relaes do conhecimento histrico em sociedade,

    Tenho estado entre os que, pelo outro lado,

    defendem a posio terica de que historiografia

    resultado de uma reflexo didtica, entendendo aqui

    tambm a didtica em sentido amplo, como dialogante

    com o espao externo profisso ou pesquisa

    especializada. Esse dilogo pode ser ativo ou passivo,

    extenso ou restrito, mas sempre est na base da criao

    profissional de conhecimento histrico, dentro da matriz 10

    disciplinar da Histria proposta por Rsen. Produzir

    conhecimento ato de ensino e aprendizagem.

    Aprender histria ato de construo e reconstruo. A

    constituio de um tema, ato bsico e fundador de toda e

    qualquer investigao historiogrfica, resulta da

    idiossincrasia de um ou um conjunto de sujeitos. E essa

    idiossincrasia resulta de determinados aprendizados do

    conhecimento histrico ento disponvel, mediados por

    determinadas leituras de mundo, por sua vez

    condicionadas por conceitos e pr-conceitos aprendidos

    ao longo das respectivas histrias de vida.

    Com a mudana paradigmtica da didtica da

    histria nos anos 70, ela passa de apenas metodologia do

    ensino a reflexo sobre produo, circulao e consumo

    de conhecimento histrico, do ponto de partida da teoria

    da Histria, e no somente do ponto de partida do

    conhecimento didtico ou pedaggico. Na medida em

    que o foco da Didtica da Histria passa do ensino para a

    aprendizagem, os fenmenos pelos quais se interpreta o

    tempo e se produzem representaes e discursos sobre a

    identidade pessoal e social no tempo so englobadas no

    seu campo de estudos. Por conseguinte, considerando

    que a cincia da Histria uma dessas formas de

    produo de discursos e representaes, que tem na

    Teoria da Histria seu esforo de auto-avaliao e auto-

    conscincia, ela torna-se tambm objeto de parte da

    reflexo da Didtica da Histria. No campo da Histria, a

    Didtica participa da Teoria da Histria. Como essa

    definio de parte do que a Didtica da Histria,

    preciso relembrar que ela, campo fronteirio, tambm

    tem participao em outro campo disciplinar, que o da

    Educao e, a sim, da Metodologia do Ensino e das

    teorias da aprendizagem.

    2 Concepes historiogrficas tradicionais e ensino

    de Histria

    Podemos demarcar concepes tradicionais

    como aquelas que entendem que a verdade est nas

    coisas. Mas no so transparentes, e faz parte da

    concepo tradicional identificar que a verdade vira

    conhecimento ao ser extrada das coisas atravs da

    interpretao dos sbios autorizados a emitir o discurso 11

    competente (na expresso de Marilena Chau ).

    Quando se pensa em ensino e aprendizagem, a questo

    como internalizar aquilo que os especialistas

    produziram: o ensino um problema de concentrao e 12

    dosagem do remdio.

    O sujeito aprendente, como se percebe, no

    ocupa o centro do processo. Professor o centro, pois

    detm o conhecimento. Aluno objeto, aprendiz

    passivo. A relao de transmisso. So tpicas dessa

    concepo as expresses passar o contedo, ou

    vencer o contedo. Evidentemente, em nenhum caso

    se admite um professor de histria com erudio

    insuficiente, mas a centralidade do contedo o

    conteudismo priva professor e aluno da reflexo

    epistemolgica, j que os contedos so tomados como

    universalmente vlidos. Essa perspectiva histrico

    didtica no se resume a uma posio direitista no

    espectro poltico, j que h perspectivas de esquerda que

    advogam esse entendimento .

    9

    o que defende, por exemplo, BERGMANN, Klaus. A histria na reflexo didtica. Revista Brasileira de Histria. So Paulo, v.9, n. 19, p. 29 42, set 89/fev. 9010

    RSEN, Jrn. Razo Histrica. Braslia: EdUNb, 2001.11

    CHAU, Marilena. Cultura e Democracia: O discurso competente e outras falas. So Paulo: Cortez, 1990.12

    Defendemos que o caso, por exemplo, da pedagogia histrico-crtica, conforme registramos no artigo PACIEVITCH, Caroline; CERRI, L. F. Professores

    progressistas de Histria e a Pedagogia Histrico-Crtica nos anos 80: aproximaes e distanciamentos. Histria Hoje. So Paulo, v. 3, n. 9, p. 1-20, 2006.

    Disponvel em http://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=74, acessado em 31 jul. 2008.

    Luis Fernando Cerri

    151

    chance de compreender conseqncias das relaes

    esses dois pedaos da relao nica do ser humano com

    o tempo significado e representado. Toda formulao

    que tenta isolar o ensino da Histria nas escolas das

    relaes com o seu entorno fracassa em entender porque

    os objetivos educacionais subjugam facilmente as

    dificuldades e limitaes do ensino e da aprendizagem.

    O que , ento, o ensino de Histria?

    Na definio inicial desse texto, o ensino de

    Histria um conjunto de muitas possibilidades, tantas

    quantas so as concepes e os usos sociais de Histria

    possveis. Quando lemos, com Rsen, a Histria como 3

    tempo significado, podemos inferir que o ensino escolar

    da Histria apenas uma das formas criadas por uma

    cultura especfica a ocidental moderna para

    equacionar o problema de constituio de um passado

    capaz de unificar essencialmente os grupos sociais em

    um corpo poltico nico na grande maioria dos casos, a

    nao apesar de suas diferenas.

    Na definio a partir do critrio formal e

    institucionalizado, uma ao intencional educativa

    (entre geraes) para formar uma determinada

    identidade ou conjunto de identidades aceitveis ou

    desejveis socialmente, associada formao de um

    pensamento histrico. Para Pozo, Asensio e Carretero

    envolve a formao de habilidades metdicas e de um 4

    entramado conceitual, ou seja, o domnio de algumas

    regras particulares de inferncia e deciso e de um

    posicionamento terico que permita ordenar e explicar

    os fatos histricos de modo compreensvel.

    Considerando o ponto de vista de que o ensino e

    a aprendizagem de Histria, em sua verso escolar

    moderna, resultam de um aspecto poltico e de um

    aspecto cognitivo - cientfico, temos que a histria do

    ensino de Histria o movimento mais ou menos

    ordenado de verses de um passado comum e de

    concepes de histria que se associam e se sucedem.

    Qual identidade e qual passado comum, mais qual

    concepo de cincia, definem qual o pensamento

    histrico de que se trata em cada momento, e essa a

    chave para elaborar e compreender a historicidade do

    ensino de histria. O ensino de Histria, ento, a sntese

    mvel entre as demandas polticas e sociais por

    identidade coletiva e orientao no tempo, as

    concepes do que seja a teoria e o mtodo histricos, e

    ainda as vises sobre qual conhecimento do passado

    essencial para ser conhecido e assimilado pelas novas

    geraes.

    preciso dizer ainda a ttulo introdutrio, que a

    relao entre as concepes historiogrficas e as

    concepes e prticas do ensino escolar de histria no

    tm uma relao direta. Para sustentar esse ponto de

    vista, podemos tanto recorrer discusso da transposio 5

    didtica (Chevallard e outros) quanto ao ponto de vista

    de que as sociedades tm mltiplos focos de conscincia 6

    histrica (Marc Ferro), ou seja, que o conhecimento

    histrico produzido em vrias instncias, sendo que a

    cincia apenas uma delas. Para todas as instncias, o

    conhecimento histrico tem funes e usos distintos, e

    essas produes relacionam-se entre si. Em ambas as

    perspectivas, temos esferas distintas que se comunicam

    de modos desiguais, e, portanto o ensino de histria no

    pode ser entendido como correia de transmisso da

    concepo historiogrfica.

    Por fim, ainda no campo preliminar, e como

    advertncia, esse um texto com base em paradigmas,

    em tipos-ideais. O leitor no os encontrar em forma

    pura no mundo concreto. O que outra forma de dizer

    que simplificar falsificar, em alguma medida, e que

    traduzir trair. Mas nunca se aprendeu sem simplificar ou

    traduzir, desde que fique no horizonte prximo a

    necessidade de refazer esses vnculos e suturar os

    recortes. Alm disso, no s o mundo das relaes

    concretas entrelaado, como tambm o o mundo da

    teoria. Como j indiquei em um artigo anterior, as

    "fronteiras" entre as concepes historiogrficas no so 7

    totalmente definidas. A crtica histrica que d origem

    aos Annales est embasada em nada menos que as idias

    oriundas do positivismo francs, numa corrente de

    pensadores que vai de Comte, passando por Durkheim

    at Franois Simiand, este influenciando mais

    diretamente as crticas que instigam os fundadores da 8

    escola, M. Bloch e L. Febvre .

    Em relao ao ensino de Histria, h duas

    grandes categorias ainda no historiogrficas, mas

    tericas nas quais podemos organizar praticamente

    todas as vertentes historiogrficas contemporneas. A

    primeira e mais comum aquela que entende e pratica

    que o ensino uma daquelas tantas coisas que se pode

    fazer com o conhecimento produzido pela Histria;

    como todas as outras, o ato do ensino no participaria do

    ato da produo do conhecimento, mas seria posterior e

    distinto. A partir da podemos encontrar diversas posturas

    na historiografia que pensam diversamente o problema

    do ensino de Histria, ou melhor, que no pensam o

    problema, afinal, deste ponto de vista, pensar o ensino de

    3

    RSEN, J. What is Historical Consciousness? - A Theoretical Approach to Empirical Evidence. Paper presented at Canadian Historical Consciousness in an

    International Context: Theoretical Frameworks, University of British Columbia, Vancouver, BC, 2001. Disponvel em

    http://www.cshc.ubc.ca/pwias/viewabstract.php?84

    POZO, J.I., ASENSIO, M. e CARRETERO, M. Modelos de aprendizaje-enseanza de la Historia. In: CARRETERO, M. La Enseanza de las Ciencias Sociales. Madrid:

    Visor, 1993.5

    CHEVALLARD, Yves. La transposicin didctica. Del saber sabio al saber enseado. Buenos Aires: Aique, 1991.6

    FERRO, Marc. A histria vigiada. So Paulo: Martins Fontes, 1989.7

    CERRI, Luis Fernando. Ensino de Histria: Fronteiras interdisciplinares, avanos e problemas. Cadernos de histria. Uberlndia, v. 12/12, n. 1, p. 07-21, 2005.8

    BURKE, Peter. A Escola dos Annales: A Revoluo Francesa na Historiografia - 1929-1989. So Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1991, p. 21.

    Ensino de Histria e concepes historiogrficas

    150 . . . . .Espao Plural Ano X N 20 1 Semestre 2009 (149-154) ISSN 1518-4196

    . . . . .Espao Plural Ano X N 20 1 Semestre 2009 (149-154) ISSN 1518-4196

    Seo Artigos

  • 15

    FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 25. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.16

    Trata-se aqui de um conceito ampliado de razo, e no da definio moderna, cartesiana, de razo.17

    FREITAG, Brbara. Piaget: encontros e desencontros. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985, p. 103 - 150.

    4 Concepes genticas ou dialgicas

    Nessa concepo geral, a verdade est nos olhos

    de quem v ... ou melhor, a verdade est na produo

    coletiva do dilogo. intersubjetiva. No relativa, como

    nas perspectivas ps-histricas mais arraigadas, mas

    relacional. Mtodos construtivistas ou reconstrutivistas

    ainda no garantem isso, porque partem de objetivos que

    so prvios e exteriores aos sujeitos que aprendem. Mas

    j se associam perspectiva de que o conhecimento no

    dado, mas resultado de um trabalho, uma construo.

    No absoluto ou definitivo, mas dependente do estgio

    do conhecimento e do confronto das argumentaes,

    bem como dos consensos possveis a cada momento.

    Pedagogicamente, essa concepo corresponde

    em linhas gerais ao pensamento de Paulo Freire (que os

    desinformados pensam resumir-se a um mtodo de

    alfabetizao) e perspectiva da pedagogia crtica norte-15

    americana. A idia de pedagogia do oprimido

    significativa: no se trata de pedagogia para o oprimido,

    mas uma pedagogia que o tem como sujeito. Os temas da

    conscientizao e do medo da liberdade introduzem o

    tema do dilogo, que o verdadeiro fio condutor nesse

    momento. Para descrev-lo, Freire aponta o seu extremo

    oposto, que nega politicamente o dilogo: o sectarismo.

    Este estril, porque fechado numa postura de "dono da

    verdade", incapaz de se relacionar de modo produtivo e

    colaborativo com quem no partilha dos mesmos pontos

    de vista (embora muitas vezes partilhe dos objetivos e

    princpios).

    Aqui temos um fundamento importante para

    uma pedagogia crtica, que a negao de uma postura

    que, por ser to inflexvel em sua postura, diagnsticos

    idias e perspectivas de ao, e por exigir essa mesma

    inflexibilidade e purismo de seus colaboradores, na

    verdade incua, e acaba por contribuir com a situao

    de opresso. Isso ocorre porque se imagina que nenhum

    avano ttico interessante, e que s pode haver uma

    nica mudana, completa e profunda, num futuro

    marcado por algum evento que se espera quase que de

    modo messinico, como a Revoluo ou o ruir

    espontneo do sistema opressor. o que ocorrer, nos

    anos 70, em educao, com as teses reprodutivistas

    crticas, que terminam por produzir um pensamento de

    imobilismo entre os interessados em mudar a educao,

    e, em termos de resultados, so conservadores.

    Por outro lado, Freire aponta o radicalismo

    como uma postura frtil, capaz de ater-se raiz de seus

    princpios e objetivos, mas sem perder a capacidade de

    dilogo, de permuta, de negociao, desde que isso no

    desfaa seus princpios e objetivos, ou seja, sua

    radicalidade. A pergunta aqui : a quem Freire est

    dirigindo essa mensagem? Ele indica que se trata

    daqueles que considerariam a sua proposta uma perda

    de tempo idealista; uma crtica aos marxistas

    dogmticos e sectrios, cuja desastrosa - embora herica

    e valorosa - resposta ao regime militar, a luta armada, no

    conseguiu mais do que acirrar a represso que atingiu a

    toda esquerda brasileira, independente de ser ou no

    adepta da luta armada, bem como deu mais legitimidade

    ao recrudescimento das restries democracia e aos

    direitos humanos no Brasil. Essa postura refratria ao

    dilogo que Freire v na esquerda que o critica, ele

    encontra tambm na direita reacionria. Valendo-se de

    uma expresso de Mrcio Moreira Alves (poltico de

    oposio ditadura), conclui que ambas as posies

    sofrem de carncia de dvida e, portanto, de

    dogmatismo em suas posies, que esteriliza no s seus

    respectivos pensamentos, mas tambm sua anlise da

    realidade e, por conseqncia, sua ao sobre ela.

    A concepo de histria em foco agora inclui

    vertentes que consideram que a histria no uma

    cincia (por compreender cincia em sua formatao

    moderna, absoluta e arrogante diante de outras formas

    de conhecimento, ou por compreender que a produo

    de verdades absolutas impossvel, ao menos em

    cincias humanas) quanto as que mantm a perspectiva 16

    de que a histria como conhecimento racional /

    baseado e gerador de enunciados razoveis cincia,

    mas, como cincia, no um saber-fazer isolado de

    outras formas de conhecer existentes na sociedade. Pelo

    contrrio, o que est fora da cincia da Histria que a

    motiva e move, e o que a motiva e move tambm

    influenciado pelos resultados, divulgados, do trabalho da

    Histria.

    Essa perspectiva tem base em diversos

    pensadores, mas um dos mais destacados Jrgen 17

    Habermas, e a teoria da ao comunicativa, que traz em

    si o conceito de razo comunicativa. Aqui, a

    racionalidade produzida processualmente, envolvendo

    falantes e ouvintes que busquem entender-se sobre o

    mundo objetivo, social e subjetivo: uma posio no

    subjuga a outra, s substituindo-a se logra convencer,

    negociadamente, a outra posio. As proposies

    racionais deixam de ser aquelas que correspondam a

    uma pretensa e ilusria verdade objetiva, e passam a ser

    aquelas que sejam capazes de atender aos requisitos

    racionais da argumentao e da contra-argumentao,

    da prova e da contraprova, na busca dos dialogantes por

    entendimento mtuo. interessante notar como a

    argumentao de Habermas converge com Paulo Freire,

    de modo que podemos dizer que ambas participam da

    construo de um paradigma emergente na teoria do

    conhecimento. Da mesma forma que Rsen, no

    desistem da razo nem se aferram a uma razo objetivista

    e cartesiana que s sobrevive se no for discutida e

    Luis Fernando Cerri

    153

    A essa concepo associam-se mtodos e

    tcnicas mais ou menos especficos e disseminados. Se o

    especialista extrai dos fatos a verdade, a relao com o

    conhecimento no ensino de internalizar. Temos aqui

    todo o ensino diretivo, transmissivo, da catequese s

    prticas memoristas de eventos, personagens e datas, at

    o tecnicismo e o neotecnismo e seu ensino por objetivos

    (pois diagnostica que o problema do ensino a forma). A

    renovao, nesse campo, vem na tcnica, na tecnologia e

    nos recursos de ensino. Por isso, utilizar filmes em sala de

    aula no , em si, superao das concepes tradicionais,

    se o objetivo dourar a plula e fazer o aluno engolir o

    amargo remdio que, mais cedo ou mais tarde, vai ter

    que tomar.

    Essa concepo, associada a tais mtodos

    tcnicas, constituiu o padro fundador e cdigo gentico

    da reproduo do ensino escolar de histria. Ao surgir

    como disciplina escolar no sculo XIX, a Histria surge

    dentro dessa perspectiva, e com isso se forma uma

    tradio arraigada nas expectativas da prpria sociedade,

    muito difcil de romper pelas propostas inovadoras. Essa

    situao independe da parte do mundo que

    enfoquemos, no um problema de riqueza ou de

    escassez no sistema educacional, mas de exigncia social

    e poltica sobre os resultados do ensino escolar da

    Histria. Isso comprovado pelos resultados, por

    exemplo, do projeto europeu Youth and History, 13

    desenvolvido em meados dos anos 70 .

    O que caracteriza uma concepo tradicional ,

    entre outras caractersticas:

    - O privilegiamento da ordem cronolgica dos

    contedos, da sua linearidade.

    - Seleo de contedos sintonizada a uma viso

    de mundo europeu, inclusive a parte nacional (...

    !) desse ensino em cada pas no europeu, uma

    vez que a prpria idia de nao tem origem na

    Europa e a partir da se dissemina.

    - Perspectiva memorista, no sentido de afetiva,

    identificadora, que aparece aos sujeitos como se

    fosse natural, decorrente do viver, em vez de

    aparecer como construo.

    - Histria a partir das elites ou do que elas

    reconhecem como histrico.

    As foras de mudana que intervieram sobre essa

    concepo a partir do final do sculo XIX so de ordem

    social (uma vez que as demandas sociais e polticas que

    originaram tanto os temas de pesquisa quanto os

    currculos para o ensino escolar) e de ordem

    epistemolgica:

    - democracia, sufrgio universal, movimentos

    sociais, direitos das minorias (ampliao de

    sujeitos);

    - hermenutica da produo histrica

    nascimento da teoria da histria;

    - psicologia gentica, psicologia sovitica,

    estudos de processamento da informao;

    - marxismo;

    - desenvolvimento contnuo das abordagens

    interdisciplinares;

    - vertentes de estudo do cotidiano, histria vista

    de baixo, mentalidades.

    3 Concepes crticas

    Para as concepes crticas, o problema de

    ensino no a forma, mas o contedo excludente. A

    rediscusso dos contedos passa a ser o centro das

    reformas, com o objetivo de, mudando o que se ensina,

    mudar como os alunos entendem o passado e o presente

    e projetam o futuro. A tarefa do ensino dar conscincia

    crtica a quem no tem. O aluno no sai da condio de

    objeto, mas agora de outro sujeito e outro conhecimento.

    A verdade est nas coisas, mas a interpretao

    dela at hoje esteve errada ou falsificada por algum

    motivo, e a verdade efetiva agora est com quem critica.

    Mas ainda h uma verdade e transmisso da mesma. Um

    exemplo a perspectiva educacional involucrada na

    relao vanguarda / massa, no leninismo: a verdade o

    conhecimento e a interpretao do mundo do ponto de

    vista e de acordo com os interesses do proletariado: a

    funo da vanguarda conscientizar a massa para que

    saiba o seu prprio ponto de vista e os seus prprios

    interesses, dissipando o vu da ideologia dominante. A

    verdade contrape-se ideologia e aos desvios

    doutrinrios.

    Outro exemplo foi o esforo educativo de

    superao dos saberes embasados na Doutrina de

    Segurana Nacional, durante e aps o regime militar. A

    verdade aqui a histria ao contrrio do que a classe

    dominante, os militares e seus intelectuais nos contaram.

    o caso, por exemplo, de desfazer o herosmo do Grito

    do Ipiranga e toda a gala representada arquetipicamente

    no quadro de Pedro Amrico, trocando-a pela clica

    intestinal de D. Pedro I. Evidentemente, h algo da

    mitologia poltica da conspirao na idia de que os

    poderosos nos esconderam a verdadeira histria, e por

    isso a nao to cheia de mazelas.

    Nessa concepo geral, h avanos no mtodo

    pela busca do aluno sujeito e do sujeito da histria. O

    limite a perspectiva dialtica que, quando efetivamente

    assumida, dobra-se sobre si mesma e relativiza o prprio

    ponto de vista. Mas colocar-se em dvida dissolve a

    militncia, e com ela a histria militante (de acordo 14

    com Marc Ferro ).

    13

    ANGVIK, Magne e BORRIES, Bodo von (eds.) Youth and History. A comparative european survey on historical consciousness and political attitudes among

    adolescents. Hambourg: Edition Krber-Stiftung, 1997. Vol. A.14

    FERRO, Marc. A manipulao da histria no ensino e nos meios de comunicao. So Paulo: Ibrasa, 1983.

    Ensino de Histria e concepes historiogrficas

    152 . . . . .Espao Plural Ano X N 20 1 Semestre 2009 (149-154) ISSN 1518-4196

    . . . . .Espao Plural Ano X N 20 1 Semestre 2009 (149-154) ISSN 1518-4196

    Seo Artigos

  • 15

    FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 25. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.16

    Trata-se aqui de um conceito ampliado de razo, e no da definio moderna, cartesiana, de razo.17

    FREITAG, Brbara. Piaget: encontros e desencontros. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985, p. 103 - 150.

    4 Concepes genticas ou dialgicas

    Nessa concepo geral, a verdade est nos olhos

    de quem v ... ou melhor, a verdade est na produo

    coletiva do dilogo. intersubjetiva. No relativa, como

    nas perspectivas ps-histricas mais arraigadas, mas

    relacional. Mtodos construtivistas ou reconstrutivistas

    ainda no garantem isso, porque partem de objetivos que

    so prvios e exteriores aos sujeitos que aprendem. Mas

    j se associam perspectiva de que o conhecimento no

    dado, mas resultado de um trabalho, uma construo.

    No absoluto ou definitivo, mas dependente do estgio

    do conhecimento e do confronto das argumentaes,

    bem como dos consensos possveis a cada momento.

    Pedagogicamente, essa concepo corresponde

    em linhas gerais ao pensamento de Paulo Freire (que os

    desinformados pensam resumir-se a um mtodo de

    alfabetizao) e perspectiva da pedagogia crtica norte-15

    americana. A idia de pedagogia do oprimido

    significativa: no se trata de pedagogia para o oprimido,

    mas uma pedagogia que o tem como sujeito. Os temas da

    conscientizao e do medo da liberdade introduzem o

    tema do dilogo, que o verdadeiro fio condutor nesse

    momento. Para descrev-lo, Freire aponta o seu extremo

    oposto, que nega politicamente o dilogo: o sectarismo.

    Este estril, porque fechado numa postura de "dono da

    verdade", incapaz de se relacionar de modo produtivo e

    colaborativo com quem no partilha dos mesmos pontos

    de vista (embora muitas vezes partilhe dos objetivos e

    princpios).

    Aqui temos um fundamento importante para

    uma pedagogia crtica, que a negao de uma postura

    que, por ser to inflexvel em sua postura, diagnsticos

    idias e perspectivas de ao, e por exigir essa mesma

    inflexibilidade e purismo de seus colaboradores, na

    verdade incua, e acaba por contribuir com a situao

    de opresso. Isso ocorre porque se imagina que nenhum

    avano ttico interessante, e que s pode haver uma

    nica mudana, completa e profunda, num futuro

    marcado por algum evento que se espera quase que de

    modo messinico, como a Revoluo ou o ruir

    espontneo do sistema opressor. o que ocorrer, nos

    anos 70, em educao, com as teses reprodutivistas

    crticas, que terminam por produzir um pensamento de

    imobilismo entre os interessados em mudar a educao,

    e, em termos de resultados, so conservadores.

    Por outro lado, Freire aponta o radicalismo

    como uma postura frtil, capaz de ater-se raiz de seus

    princpios e objetivos, mas sem perder a capacidade de

    dilogo, de permuta, de negociao, desde que isso no

    desfaa seus princpios e objetivos, ou seja, sua

    radicalidade. A pergunta aqui : a quem Freire est

    dirigindo essa mensagem? Ele indica que se trata

    daqueles que considerariam a sua proposta uma perda

    de tempo idealista; uma crtica aos marxistas

    dogmticos e sectrios, cuja desastrosa - embora herica

    e valorosa - resposta ao regime militar, a luta armada, no

    conseguiu mais do que acirrar a represso que atingiu a

    toda esquerda brasileira, independente de ser ou no

    adepta da luta armada, bem como deu mais legitimidade

    ao recrudescimento das restries democracia e aos

    direitos humanos no Brasil. Essa postura refratria ao

    dilogo que Freire v na esquerda que o critica, ele

    encontra tambm na direita reacionria. Valendo-se de

    uma expresso de Mrcio Moreira Alves (poltico de

    oposio ditadura), conclui que ambas as posies

    sofrem de carncia de dvida e, portanto, de

    dogmatismo em suas posies, que esteriliza no s seus

    respectivos pensamentos, mas tambm sua anlise da

    realidade e, por conseqncia, sua ao sobre ela.

    A concepo de histria em foco agora inclui

    vertentes que consideram que a histria no uma

    cincia (por compreender cincia em sua formatao

    moderna, absoluta e arrogante diante de outras formas

    de conhecimento, ou por compreender que a produo

    de verdades absolutas impossvel, ao menos em

    cincias humanas) quanto as que mantm a perspectiva 16

    de que a histria como conhecimento racional /

    baseado e gerador de enunciados razoveis cincia,

    mas, como cincia, no um saber-fazer isolado de

    outras formas de conhecer existentes na sociedade. Pelo

    contrrio, o que est fora da cincia da Histria que a

    motiva e move, e o que a motiva e move tambm

    influenciado pelos resultados, divulgados, do trabalho da

    Histria.

    Essa perspectiva tem base em diversos

    pensadores, mas um dos mais destacados Jrgen 17

    Habermas, e a teoria da ao comunicativa, que traz em

    si o conceito de razo comunicativa. Aqui, a

    racionalidade produzida processualmente, envolvendo

    falantes e ouvintes que busquem entender-se sobre o

    mundo objetivo, social e subjetivo: uma posio no

    subjuga a outra, s substituindo-a se logra convencer,

    negociadamente, a outra posio. As proposies

    racionais deixam de ser aquelas que correspondam a

    uma pretensa e ilusria verdade objetiva, e passam a ser

    aquelas que sejam capazes de atender aos requisitos

    racionais da argumentao e da contra-argumentao,

    da prova e da contraprova, na busca dos dialogantes por

    entendimento mtuo. interessante notar como a

    argumentao de Habermas converge com Paulo Freire,

    de modo que podemos dizer que ambas participam da

    construo de um paradigma emergente na teoria do

    conhecimento. Da mesma forma que Rsen, no

    desistem da razo nem se aferram a uma razo objetivista

    e cartesiana que s sobrevive se no for discutida e

    Luis Fernando Cerri

    153

    A essa concepo associam-se mtodos e

    tcnicas mais ou menos especficos e disseminados. Se o

    especialista extrai dos fatos a verdade, a relao com o

    conhecimento no ensino de internalizar. Temos aqui

    todo o ensino diretivo, transmissivo, da catequese s

    prticas memoristas de eventos, personagens e datas, at

    o tecnicismo e o neotecnismo e seu ensino por objetivos

    (pois diagnostica que o problema do ensino a forma). A

    renovao, nesse campo, vem na tcnica, na tecnologia e

    nos recursos de ensino. Por isso, utilizar filmes em sala de

    aula no , em si, superao das concepes tradicionais,

    se o objetivo dourar a plula e fazer o aluno engolir o

    amargo remdio que, mais cedo ou mais tarde, vai ter

    que tomar.

    Essa concepo, associada a tais mtodos

    tcnicas, constituiu o padro fundador e cdigo gentico

    da reproduo do ensino escolar de histria. Ao surgir

    como disciplina escolar no sculo XIX, a Histria surge

    dentro dessa perspectiva, e com isso se forma uma

    tradio arraigada nas expectativas da prpria sociedade,

    muito difcil de romper pelas propostas inovadoras. Essa

    situao independe da parte do mundo que

    enfoquemos, no um problema de riqueza ou de

    escassez no sistema educacional, mas de exigncia social

    e poltica sobre os resultados do ensino escolar da

    Histria. Isso comprovado pelos resultados, por

    exemplo, do projeto europeu Youth and History, 13

    desenvolvido em meados dos anos 70 .

    O que caracteriza uma concepo tradicional ,

    entre outras caractersticas:

    - O privilegiamento da ordem cronolgica dos

    contedos, da sua linearidade.

    - Seleo de contedos sintonizada a uma viso

    de mundo europeu, inclusive a parte nacional (...

    !) desse ensino em cada pas no europeu, uma

    vez que a prpria idia de nao tem origem na

    Europa e a partir da se dissemina.

    - Perspectiva memorista, no sentido de afetiva,

    identificadora, que aparece aos sujeitos como se

    fosse natural, decorrente do viver, em vez de

    aparecer como construo.

    - Histria a partir das elites ou do que elas

    reconhecem como histrico.

    As foras de mudana que intervieram sobre essa

    concepo a partir do final do sculo XIX so de ordem

    social (uma vez que as demandas sociais e polticas que

    originaram tanto os temas de pesquisa quanto os

    currculos para o ensino escolar) e de ordem

    epistemolgica:

    - democracia, sufrgio universal, movimentos

    sociais, direitos das minorias (ampliao de

    sujeitos);

    - hermenutica da produo histrica

    nascimento da teoria da histria;

    - psicologia gentica, psicologia sovitica,

    estudos de processamento da informao;

    - marxismo;

    - desenvolvimento contnuo das abordagens

    interdisciplinares;

    - vertentes de estudo do cotidiano, histria vista

    de baixo, mentalidades.

    3 Concepes crticas

    Para as concepes crticas, o problema de

    ensino no a forma, mas o contedo excludente. A

    rediscusso dos contedos passa a ser o centro das

    reformas, com o objetivo de, mudando o que se ensina,

    mudar como os alunos entendem o passado e o presente

    e projetam o futuro. A tarefa do ensino dar conscincia

    crtica a quem no tem. O aluno no sai da condio de

    objeto, mas agora de outro sujeito e outro conhecimento.

    A verdade est nas coisas, mas a interpretao

    dela at hoje esteve errada ou falsificada por algum

    motivo, e a verdade efetiva agora est com quem critica.

    Mas ainda h uma verdade e transmisso da mesma. Um

    exemplo a perspectiva educacional involucrada na

    relao vanguarda / massa, no leninismo: a verdade o

    conhecimento e a interpretao do mundo do ponto de

    vista e de acordo com os interesses do proletariado: a

    funo da vanguarda conscientizar a massa para que

    saiba o seu prprio ponto de vista e os seus prprios

    interesses, dissipando o vu da ideologia dominante. A

    verdade contrape-se ideologia e aos desvios

    doutrinrios.

    Outro exemplo foi o esforo educativo de

    superao dos saberes embasados na Doutrina de

    Segurana Nacional, durante e aps o regime militar. A

    verdade aqui a histria ao contrrio do que a classe

    dominante, os militares e seus intelectuais nos contaram.

    o caso, por exemplo, de desfazer o herosmo do Grito

    do Ipiranga e toda a gala representada arquetipicamente

    no quadro de Pedro Amrico, trocando-a pela clica

    intestinal de D. Pedro I. Evidentemente, h algo da

    mitologia poltica da conspirao na idia de que os

    poderosos nos esconderam a verdadeira histria, e por

    isso a nao to cheia de mazelas.

    Nessa concepo geral, h avanos no mtodo

    pela busca do aluno sujeito e do sujeito da histria. O

    limite a perspectiva dialtica que, quando efetivamente

    assumida, dobra-se sobre si mesma e relativiza o prprio

    ponto de vista. Mas colocar-se em dvida dissolve a

    militncia, e com ela a histria militante (de acordo 14

    com Marc Ferro ).

    13

    ANGVIK, Magne e BORRIES, Bodo von (eds.) Youth and History. A comparative european survey on historical consciousness and political attitudes among

    adolescents. Hambourg: Edition Krber-Stiftung, 1997. Vol. A.14

    FERRO, Marc. A manipulao da histria no ensino e nos meios de comunicao. So Paulo: Ibrasa, 1983.

    Ensino de Histria e concepes historiogrficas

    152 . . . . .Espao Plural Ano X N 20 1 Semestre 2009 (149-154) ISSN 1518-4196

    . . . . .Espao Plural Ano X N 20 1 Semestre 2009 (149-154) ISSN 1518-4196

    Seo Artigos

  • . . . . .Espao Plural Ano X N 20 1 Semestre 2009 (155-164) ISSN 1518-4196

    155

    Esboo para a Histria da Esquerda no Brasil

    *

    Antnio Oza da Silva

    Resumo: O que esquerda? a partir dessa questo que

    analisamos, de maneira sinttica, a trajetria da esquerda

    brasileira, das origens formao do Partido dos

    Trabalhadores. A era petista inaugura uma nova fase

    para a militncia dos movimentos sociais e da esquerda

    brasileira. Assim, na parte final, enfatizamos, sem a

    preocupao de concluir ou dar a palavra final, os

    dilemas e desafios do tempo presente. O objetivo

    contribuir para o estudo e a reflexo sobre a histria da

    esquerda brasileira e sua prxis na contemporaneidade.

    Nesta perspectiva, nos concentramos sobre a esquerda

    que se reivindica marxista e vinculada a esta tradio

    poltica e ideolgica.

    Palavras-chave: Histria, Poltica, Esquerda, Marxismo

    no Brasil, Partido dos Trabalhadores

    Abstract: What is left? Based on this question we analyze,

    in a succinct way, the trajectory of the Brazilian left, from

    their origins to the beginning of the Workers' Party. The

    "Petista age" inaugurates a new phase for the militancy of

    social movements and the Brazilian left. Thus, in the end,

    we emphasize, without concerning to conclude or give

    the final word, the dilemmas and challenges of the

    present time. The objective is to contribute to the study

    and reflection about the history of Brazilians left and its

    practice in contemporaneity. From this perspective, we

    focus on the left that is claimed marxist and linked to this

    political and ideological tradition.

    Key words: History, Politics, Left, Marxism in Brazil, the

    Workers' Party

    1. O que esquerda?

    No de hoje que a esquerda se divide em

    vrias faces, tendncias, ideologias, estratgias e tticas

    polticas. A rigor um equvoco referir-se a a esquerda

    no singular, pois no existe uma nica esquerda, mas

    vrias, no plural. Por outro lado, o conceito tambm no

    pode ser tomado de uma maneira esttica e permanente.

    As foras polticas no existem em abstrato, enquanto

    ideologias suspensas no ar, mas interagem com os

    contextos histricos, sociais, polticos, econmicos e

    culturais de cada poca. As palavras, enquanto conceitos

    que identificam ideologias e prticas polticas, tambm

    possuem contedo histrico e expressam significados

    diferentes com a evoluo do tempo.

    Assim, o termo social-democrata, at incios

    do sculo XX, era sinnimo de revolucionrio, isto , dos

    que, pelo menos na retrica, tinham por objetivo fazer a

    revoluo, extinguir a propriedade privada dos meios de

    produo e instaurar o socialismo. No por acaso, os

    partidos operrios da poca, como o alemo e o russo, se

    denominavam social-democratas. Quando o Partido

    Operrio Social-Democrata Russo, em seu segundo

    congresso, realizado em 1903, dividiu-se entre o grupo

    majoritrio (bolchevique) e o minoritrio (menchevique),

    ambos se consideravam social-democratas. Porm, na

    medida em que as divergncias no interior da social-

    democracia se aprofundaram e formaram-se grupos

    internos irreconciliveis, o termo social-democrata

    passou a ser questionado. Dessa forma, especialmente a

    partir da Revoluo Russa de 1917, os revolucionrios

    fizerem questo de se distinguir da social-democracia,

    agora identificada com o reformismo, e passaram a se

    autodenominar comunistas. Os partidos e organizaes

    polticas que se constituram em ruptura com a II

    Internacional seguiram o exemplo dos bolcheviques e

    adotaram o nome de Partido Comunista. Assim, tambm

    procuravam se distinguir dos partidos socialistas, os quais

    eram identificados com a social-democracia. No foi

    coincidncia, portanto, que uma das 21 exigncias para

    o ingresso na III Internacional, a Internacional Comunista

    fundada em 1919, era que os partidos membros 2

    adotassem o termo comunista. Desde ento, como

    escreveu Arnaldo Spindel, socialismo e comunismo

    passam a significar, na prtica, coisas bastante diferentes.

    Ainda que possuindo as mesmas bases tericas, os

    movimentos socialista e comunista possuem vises de

    mundo divergentes e propostas de soluo para os

    problemas da sociedade com poucos pontos em 3

    comum.

    Se a esquerda plural considerada em sua

    integralidade, tambm o em campos ideolgicos

    especficos como o marxismo. A obra original de Marx e

    Engels, assumida por seus seguidores, sofre as

    *

    Doutor em Educao pela Universidade de So Paulo. Docente do Departamento de Cincias Sociais da Universidade Estadual de Maring. Emails:

    [email protected] e [email protected]

    Esse texto foi apresentado como conferncia durante a Semana Acadmica de Histria da UNIOESTE - Campus de Mal. Cndido Rondon, em junho de 2008.2

    A 17 condio afirma: todos os partidos aderentes IC devem modificar o nome e se intitular Partido Comunista. A mudana no simples formalidade e, sim, de

    uma importncia poltica considervel, para distingui-los dos partidos socialdemocratas ou socialistas, que venderam a bandeira da classe operria. Ver CARONE, Edgar,

    A Internacional Comunista e as 21 condies, in Gramsci e o Brasil, disponvel em http://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=109, acesso em 09 de junho

    de 2008. 3

    SPINDEL, Arnaldo. O que Comunismo. So Paulo, Brasiliense, 1982, p.121.

    questionada em seus fundamentos. Procuram alargar a

    dimenso da razo e suas fontes, e com isso no

    estabelecem um universo prprio no campo das cincias,

    mas ajudam a responder, no campo das Cincias

    Humanas, aos desafios epistemolgicos cruciais postos

    pela Teoria da Relatividade e a Mecnica Quntica.

    Esse paradigma emergente estudado por 18

    Boaventura Souza Santos, que sintetiza a interessante

    idia de que a cincia o senso comum organizado. Essa

    perspectiva casa-se perfeitamente com a matriz 19

    disciplinar da histria, tal como proposta por Rsen: a

    Histria existe no ciclo em que suas motivaes e aes

    mergulham do campo cientfico para a dimenso da vida

    prtica, e vice-versa.

    Neste quadro, o ensino de Histria no tem

    como ser enunciao, mas dilogo. No cabe a idia de

    que a Histria cincia produz e a Histria ensinada

    reproduz, divulga ou didatiza para o mundo dos no-

    iniciados. Em seu nascedouro, o conhecimento histrico

    cientfico encontra-se encharcado das razes da vida

    prtica, visto que os sujeitos desse conhecimento so

    seres humanos envolvidos com o cotidiano: a relao de

    aprendizagem histrica (objeto, entre outros, da Didtica

    da Histria) precede e projeta-se aps o ato da produo

    do conhecimento. O aprendizado, por sua vez, um ato

    de colocar saberes novos em relao com saberes

    anteriores, j que viver implica alguma forma de

    aprendizado sobre alguma forma de histria (no sentido

    de tempo significado): nesse sentido, um ato de criao

    de conhecimento, tambm. O ensino escolar de Histria,

    portanto, no dar algo a quem no tem, no dar saber

    ao ignorante, mas gerenciar o fenmeno pelo qual

    saberes histricos so colocados em relao, ampliados,

    escolhidos, modificados. Nada pode ser mais prejudicial

    para isso do que uma tbua inflexvel de contedos

    selecionados previamente e fora da relao educativa.

    Em suma, defendeu-se aqui que o ensino de

    Histria, alm de um problema prtico e terico posto

    Educao, tambm um problema prtico e terico

    posto Histria. Em outras palavras, os problemas que

    identificamos hoje na Educao, e especificamente na

    parcela da disciplina de Histria, e suas correlatas, bem

    como em atividades curriculares e extra-curriculares que

    envolvem conhecimento histrico, no sero

    devidamente equacionados nem minimamente

    enfrentados enquanto os historiadores no s os

    institucional e academicamente envolvidos com o ensino

    no se responsabilizarem. E no se trata de meter o

    bedelho na rea e pontificar, olhando de cima, sobre o

    que deveria ser feito, mas estudar, saber o que j foi dito,

    pensado e escrito, argumentar e contra-argumentar com

    o que j se consensuou e com as perspectivas

    controversas, enfim, participar.

    Artigo recebido em 28/08/08

    Aprovado em 03/07/09.

    18

    SANTOS, Boaventura Souza. Um discurso sobre as cincias. So Paulo: Cortez, 2006.19

    Rsen, 2001 (op. cit.).

    Ensino de Histria e concepes historiogrficas

    154 . . . . .Espao Plural Ano X N 20 1 Semestre 2009 (149-154) ISSN 1518-4196