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  • 7/25/2019 24 Artigo Lourival Camoes

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    [revista dEsEnrEdoS- ISSN 2175-3903 - ano VII - nmero 24 - teresina - piau - outubro de 2015]

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    O DECORO E A CONSTRUO DO REALISMONO CANTO V DE OS LUSADAS

    Lourival da Silva Burlamaqui Neto1

    RESUMO

    Este artigo defende a tese de que o realismo do canto V de Os Lusadaspossui umamotivao social. Inserido em um contexto monrquico, Cames no poderiaapresentar a viagem de Vasco da Gama s ndias segundo os alvitres de suaimaginao, sob o risco de, ao expor personagens histricos em peripcias

    fantasiosas, ser considerado incongruente ou inverossmil. Dessa forma, era precisoque o poeta endossasse as opinies j aceitas sobre essa incurso, impondo apenasvariaes formais e algumas modificaes de contedo. Como as obrashistoriogrficas que lhe serviam de fonte possuam longas exposies de povos eplagas orientais, o canto V do poema acabou reverberando esse descritivismogeogrfico. Demonstra-se, ento, que o vnculo entre Os Lusadase as crnicas doshistoriadores no fruto apenas do desgnio consciente de um poeta que hauretemas para seu poema em um texto matriz, mas uma imposio da potica coevaprevista na definio de decoro. Recorre-se, para a comprovao dessa ideia, teorizao de Antnio Jos Saraiva (1972) sobre o poema pico, exposio eexemplificao do conceito de decoro, relacionando-o com o reduzido espao deproduo, circulao e consumo das belas letras em sociedade monrquica, e anlise de algumas estrofes desse canto.

    PALAVRAS-CHAVE: Realismo. Decoro. Os Lusadas.

    ABSTRACT

    This article defends the thesis that the realism of fifth canto of The Lusiadshas asocial motivation. Inserted in a monarchic context, Cames couldnt presents theVasco da Gamas travel to the ndiaaccording to his imagination, under the risk of,exposing historical characters at fanciful adventures, be considered incongruous orunlikely. In this way, was necessary that the poet endorse the accepted opinionsabout this incursion, imposing just formal variations and some changes of contents.How the historical works that served him as his source had expositions of orientalnations and countries, the fifth canto of the poem reverberated this geographicdescriptivism. We demonstrated that the link between The Lusiads and thechronicles of historians doesnt come from the conscientious desire of a poet that

    1Graduado em Licenciatura Plena em Letras/Portugus pela Universidade Estadual do Piau (2012).

    Mestre em Estudos Literrios pela Universidade Federal do Piau (2015).

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    seeks themes to his poem in another text, but its an imposition of coeval poeticexpected at the definition of Decorum. We resort, to prove this idea, to thetheorization of Antnio Jos Saraiva (1972) about epics poem, to the expositionand exemplification of decoros concept, relating him with the diminished space ofproduction, circulation and consumption of the texts in a monarchic society, and tothe analysis of some stanzas.

    KEYWORDS: Realism. Decorum. The Lusiads.

    1 O poema pico e a ambincia renascentista

    Antnio Jos Saraiva (1972, p. 147-154), tendo em vista fins didticos,props a diviso das epopeias em dois grandes grupos. O crtico portugus

    nomeou o primeiro grupo de epopeias primitivase o segundo, epopeias de imitao. Na

    primeira categoria estariam inclusos os textos que foram compostos quando um

    povo ainda no se enxergava como estado, encontrando-se em processo de

    conquista e definio do prprio territrio. Outras caractersticas marcantes nesse

    conjunto de obras eram a personificao das foras da natureza e a crena de que avida era uma grande teia urdida em cada ao humana. Nessa classe estariam

    inclusos os poemas homricos e as canes de gesta medivicas.

    Na segunda categoria, por sua vez, se fariam presentes os poemas que foram

    escritos quando uma noo de estado, no necessariamente a concepo moderna,

    j estava em vigor. Segundo Saraiva, para essas sociedades, a guerra era uma

    atividade dentre varias outras que existiam na vida civil. Assim, os homens que

    decidiam segui-la no o faziam por uma questo de sobrevivncia prpria, mas pela

    sensao de pertencimento a um estado que, por vezes, estava sublimada no

    pressentimento de um destino grandioso para o mesmo. O crtico portugus

    pondera que tais indcios scio histricos reverberariam nas epopeias de imitao.

    Nesses textos, a imagem do heri presente nos poemas homricos, ou seja, o

    homem que a cada atitude expunha o mago de seu ser, era apagada. Em seu lugar,

    surgia um protagonista de individualidade arrefecida, mas que parecia carregar oanncio de uma glria vindoura. Nessa segunda classe estariam presentes a Eneida

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    de Virglio e a grande maioria das epopeias renascentistas que a tomavam por

    modelo, inclusive Os Lusadas.

    Essa categorizao de Saraiva tem o mrito de, perquirindo o reflexo do

    contexto poltico no interior da obra, apresentar o mago desses textos e ressaltar

    os influxos lanados por essas circunstncias sociais construo dos personagens.

    O cotejo entre as proposies da Ilada e da Eneida coaduna a posio do autor

    portugus. Os versos que sucedem a invocao no texto grego2apresentam como

    tema central a menin, a fria de Aquiles, enquanto no pico de Virglio a chegada

    dos troianos e das imagens de seus deuses ao Lcio e a subsequente fundao de

    Lavnio o assunto principal3. A assero homrica enfoca um trao prprio do

    personagem, antecipando a glria e as contradies de seu comportamento. Esse

    realce da conduta guerreira estava associado finalidade da batalha, ou seja, no

    mundo homrico no se lutava pela conquista de riquezas, se isso ocorria era uma

    consequncia, no um fim em si prprio, mas para se contrapor s aes

    desmedidas de um outro guerreiro. Essa postura era tpica das sociedades em que a

    atividade blica no era expediente para fins expansionistas, mas pretexto para sedemonstrar honra e valor prprio. Assim, o campo de batalha se tornava o local em

    que, no cruzamento das aes, as caractersticas de cada homem eram delineadas.

    O enunciado do poema latino, por sua vez, sugeria que a guerra era apenas um

    meio para se alcanar determinado fim. No se lutava para reparar a honra, mas

    para, cumprindo certo desgnio, se fundar ou expandir um imprio ou religio.

    No curso dos sculos XVI, XVII e XVIII, o poema pico passou a ocupar otopo dos cnones literrios nacionais. A relevncia que o texto pico ou, adotando-

    se a taxonomia de Saraiva, a epopeia de imitao lograva nesse nterim, em tais

    sociedades, ultrapassava o fator esttico, relacionando-se tambm com um

    conjunto de circunstncias sociopolticas, culturais e tcnicas. Por exemplo, os

    2Canta-me a Clera deusa! funesta de Aquiles Pelida, causa que foi de os Aquivos sofrerem

    trabalhos sem conta [...] (HOMERO, 2010, p. 57, grifo nosso).3As armascanto e o varo que, fugindo das plagas de Troia por injunes do destino, instalou-se na

    Itlia primeiroe de Lavnio nas praias [...] guerras sem fim sustentou para as bases lanar da cidadee ao Lcio os deuses trazer[...] (VIRGLIO, 2014, p. 73, grifo nosso).

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    letrados do perodo, ao entrarem em contato com a preceptiva grega e latina,

    adotaram suas classificaes e reflexes acerca dos gneros. Essas predicavam a

    harmonia entre a matria e a forma de um texto. Assim, Manuel Pires de Almeida

    (2006, p. 9), dissertando sobre os estilos que deveriam ser empregues em cada

    gnero, estabelecia uma analogia entre esses e os tipos humanos que retratavam:

    H trs gneros de estilos, que correspondem aos trs estados da repblica. Um

    grandloco, que dos prncipes e heris, medocre e meo, que dos nobres;

    nfimo que da plebe. Essa associao rgida entre a posio social do

    personagem apresentado e a linguagem utilizada para represent-lo ilustra o vnculo

    entre as epopeias de imitao e o contexto poltico em que eram produzidas,

    justificando, em parte, o prestgio dessa forma potica.

    Outro dado que auxilia na compreenso dessa estima pelo texto pico diz

    respeito s estncias de produo e recepo das belas letras nas sociedades de

    corte. Nessas monarquias, o acesso a uma formao que desenvolvesse as

    habilidades necessrias composio e compreenso de um texto escrito era

    privilgio das classes eclesisticas, de cortesos e de membros do corpoadministrativo do reino. Por conta dessa rgida demarcao social e das limitaes

    culturais que ela implicava populaa, a circulao das produes textuais

    permanecia restrita aos membros da corte e do clero.

    Essa hierarquia, caracterstica das monarquias absolutistas, tambm interferia

    no modo de leitura e no contedo dos textos lidos. Segundo Chartier (1999, p. 21),

    a leitura, nessas sociedades de corte, ocorria sempre em voz alta. Essa vocalizaodo que se lia procedia de dois fatores: A) A necessidade de comprovar em pblico

    uma boa capacidade de leitura, apresentando uma pronuncia correta e um domnio

    satisfatrio do idioma. B) Em contextos estratificados, como as monarquias

    absolutistas, mesmo aps a inveno da imprensa, produtores e receptores estavam

    nas mesmas classes, ou em esteios sociais prximos, subordinados a normas de

    conduta que, pautadas pela etiqueta e cerimonialismo, pressupunham a declamao

    e avaliao do que se escrevera em ocasies pblicas. Parte integrante do corpo

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    mstico, ou administrativo dos estados monrquicos, o corteso que compunha um

    texto deveria endossar em seus escritos opinies que vigoravam na corte. Essa

    adequao aos discursos vigentes concedia a sua obra uma dimenso epidctica, ou

    seja, esta se convertia em um encmio memria de um grande feito. Dessa forma,

    a Prosopopeia, poema pico de Bento Teixeira, por exemplo, era um panegrico s

    peripcias de Jorge de Albuquerque Coelho, capito e governador da capitania de

    Pernambuco e Vila Rica de Claudio Manuel da Costa, um elogio a Antnio

    Albuquerque Coelho de Carvalho que apaziguou a guerra dos Emboabas e fundou

    a cidade homnima.

    Esse teor convencional da produo cortes ultrapassava o campo do

    contedo, instaurando-se tambm no plano da forma, visto que o homem de letras

    renascentista, ao entronizar a cultura clssica, colheu, nos escritores antigos, lies

    que, destinadas a composio exitosa de uma obra, acabaram adquirindo um veio

    normativo. Por exemplo, a invocao das musas e a subsequente apresentao do

    tema, presentes nos poema homricos e associados natureza oral desses textos,

    foram deslocados e retrabalhados com liberdade por Virglio que, ao invs depostular uma matria para sua obra, apresentou, nos versos iniciais da Eneida, dois

    assuntos para o poema e que, mesmo contrapondo-se a aura popular da Ilada,

    decidiu manter, por razes estticas, as invocaes. Esta liberdade criadora que o

    poeta latino possua seria regulada no renascimento por retores e preceptores que,

    educados na leitura dos clssicos, passariam a normatizar essas partes da epopeia e

    seus demais aspectos.Desse modo, Cndido Lusitano, padre e preceptor neoclssico portugus,

    tomando a Eneidapor regra, apontava a linguagem direta, o teor encomistico e a

    ausncia de referncias claras aos episdios do poema, como princpios

    imprescindveis a uma boa proposio. Apoiado sobre essa ltima caracterstica, o

    letrado teceu crticas a Cames: A terceira condio he, que na Proposio se no

    de notcia de Episodio algum, como bem inadvertidamente fez Cames, propondo

    as memrias gloriosas dos nossos reys, e de outros, as quaes s entro no Poema

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    como Episodios (1759, p. 190-191). Alm desta censura, o autor condenava a

    presena na invocao dos deuses pagos: A respeito desta tal divindade tenho de

    advertir ao poeta, que como Catholico cuide muito em honrar a poesia, no

    invocando Deuses gentlicos, porque so huma chimera; mas sim a Deos nosso

    senhor [...] (1759, p. 200-201). Tais excertos exemplificam como nos estados

    monrquicos um seleto grupo de letrados normatizava a grandeza dos antigos,

    transformando os artifcios inovadores de suas obras em padres ideais para o

    decalque.

    2 O decoro

    Este amoldamento de formas e contedos estava associado com a necessria

    adequao discursiva entre as produes simblicas coevas e as opinies vigentes

    nas sociedades de corte. Essa consonncia, por sua vez, advinha do limitado espao

    de circulao de uma obra em um sistema monrquico que pressupunha a avaliao

    do texto por pessoas que, alm de possurem uma formao semelhante de seucriador, estavam inseridas, ou nas mesmas, ou em classes sociais prximas,

    compartilhando valores e dependentes, em qualquer atividade diria, da anuncia de

    um superior.

    Norbert Elias (2001, p. 125) intitulou racionalismo de corteessa postura de um

    indivduo, pertencente a uma monarquia, que, mirando algum privilgio, sopesava

    cada ao e media cada palavra. Segundo o socilogo alemo, essa norma deconduta estava estruturada sobre dois valores basilares: a prudncia e a

    dissimulao. O nobre, ou o corteso, interessado em obter algum favor de seu

    soberano, deveria reprimir impulsos, camuflar interesses e aparentar emoes para

    suscitar uma boa impresso em seu superior. Rodeado por outros nobres que

    aspiravam aos mesmos interesses, esse permanecia em vigilncia constante,

    discernindo a indiscrio, ou a mesura dos demais, fatores que poderiam

    determinar, respectivamente, seu sucesso ou fracasso. Este clculo da prpria

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    conduta no se aplicava apenas s emoes, estando presente tambm nos itens

    materiais. Segundo Elias, as palavras utilizadas para se dirigir a um suserano, a

    maneira de se vestir e o modo como se ornava uma casa eram indcios das

    qualidades de um corteso.

    Hansen (2005, p. 164) afirma que as complexas relaes interpessoais entre

    soberanos e seus dependentes criava, na sociedade monrquica, uma teia social em

    que os interesses de cada um norteava as aes tomadas. O crtico, entretanto,

    pondera que, se cada membro desses estados desse vazo s vantagens que

    buscava, o corpo social se desintegraria em diversos conflitos. Cabia assim, a cada

    um, administrar os prprios arroubos, esperando pacientemente o benefcio

    pretendido. A concesso desse favor era uma via de mo dupla, ou seja, o vassalo o

    recebia aps demonstrar possuir conduta e competncia para possu-lo e, em

    hiptese alguma, esta condescendncia, ou a tentativa para obt-la, poderia ameaar

    o bem comum, ou seja, a estratificao social com um rei a ocupar seu topo.

    Subordinado a essa ordem e consciente de que seu texto seria lido, ou por

    seus pares, ou por superiores, um autor do perodo compunha seu escrito de modoa espelhar os valores e as opinies oficiais. Essa adequao discursiva intitulava-se

    decoroe se dividia em dois tipos: externo e interno. O decoro externoera a modelao

    do contedo textual aos princpios tidos por verossmeis4 na corte. Essa sintonia

    com os preceitos polticos e religiosos fundamentais das sociedades monrquicas

    tornava o escrito um repositrio de doutrinas. Estas, entretanto, ao invs de

    estarem dispostas de modo pragmtico, se encontravam diludas na fbulapoemtica, ou na ornamentao do texto. Assim, o leitor, compartilhando os traos

    culturais do autor, ao entrar em contato com o enredo ou aspectos formais da obra,

    4Justifica-se o uso do termo verossmilao invs do vocbulo verdadepelo carter mutvel que cinge

    o primeiro, mas no o segundo, ou seja, muitas das opinies tidas por verdadeiras pelos homens dossculos XVI, XVII e XVIII, j no o so aos homens do sculo XX. Embora no possam ser tidascomo verdades, pode-se dizer que, adequando-se ao sistema de pensamento vigente naqueleperodo, esses enunciados eram, para aqueles homens, crveis e por isso verossmeis. Os juzos que

    no se adequavam s convices daquele nterim, por sua vez, mesmo que posteriormente tenhamse tornado verdadeiros, naquele instante foram rechaados por no se amoldarem percepo demundo e de realidade coeva, podendo-se afirmar que, embora verdadeiros, quela poca eraminverossmeis.

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    vislumbrava, simultaneamente fruio esttica, a afirmao de seu mundo e de

    seus prprios valores.

    Um exemplo de adequao discursiva na obra camoniana a apologia

    proferida por Vnus divina providncia. Esse discurso visava sanar a

    incongruente coabitao de divindades pags com o Deus cristo na trama de Os

    Lusadas. No curso de toda a obra so potestades latinas que viabilizam ou

    impedem a chegada da frota lusitana ao oriente e em situaes penosas, mesmo que

    os portugueses peam o auxlio e posteriormente agradeam o amparo da deidade

    catlica, Vnus quem os socorre. Em passagens mais discretas, como as perfrases

    e na invocao do poema, os numes romanos tambm so mencionados. Essas

    mltiplas referncias chamaram a ateno do Frei Bartolomeu Ferreira que em seu

    parecer de avaliador do santo ofcio ponderou: [...] me pareceu que era necessrio

    advertir os leitores que o Autor, para encarecer a dificuldade da navegao [...] usa

    de uma fico dos deuses dos gentios [...] (OC, 2008, p. 5). Essa larga apario do

    maravilhoso latino , entretanto, contrabalanceada no prprio enredo pelas palavras

    de Vnus que, ao apresentar a mquina do mundo para Vasco da Gama, diz:

    LXXX

    Quem cerca em derredor este rotundoGlobo e sua superfcie to limada, Deus: mas o que Deus, ningum o entende,Que a tanto o engenho humano no se estende.

    [...]LXXXII

    Aqui, s verdadeiros, gloriososDivos esto, porque eu, Saturno e Jano,

    Jpiter, Juno, fomos fabulosos,Fingidos de mortal e cego engano.S pera fazer versos deleitososServimos [...]

    (OC, 2008, p. 248)

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    Antnio Jos Saraiva (1972; 1996) pondera que este discurso representa um

    desenlace para a contradio, mas afirma que a incoerncia bem menor do que

    aparenta ser. Segundo o crtico, Cames comps seu poema, concedendo s

    divindades latinas um lugar relevante na trama poemtica, entretanto, em termos

    encomisticos o Deus cristo que louvado em toda a obra. A intriga entre

    Vnus e Baco, o auxlio prestado primeira por Jpiter e ao segundo por Netuno e

    as reiteradas tentativas de ambos para concederem, respectivamente, a glria e a

    infmia aos portugueses do trama textual unidade e tornam coesa uma srie de

    outros episdios (a tempestade martima, a ilha dos amores) que, apresentados de outra

    forma, pareceriam desconexos. So esses deuses que movem a fico poemtica e

    que, possuindo uma funcionalidade no enredo, logram uma existncia objetiva na

    estrutura de Os Lusadas.

    Esse ponto de vista acerca do emprego da maquina mitolgica foi discernido

    pelos leitores coevos de Cames, inclusive pelo j referido censor dominicano que

    em sua advertncia o tangenciou: [...] isto Poesia e fingimento, e o autor, como

    poeta, no pretenda mais que ornar o estilo potico [...](OC, 2008, p. 5). Saraiva(1996, p. 115-116) afirma que, embora as intervenes deficas tenham um papel

    decisivo em todo o poema, essas divindades, excetuando-se o episdio da maquina

    do mundo, no so visveis aos cristos ocidentais que, indiferentes s peripcias

    desses numes, mantm firme suas crenas no auxlio divino. Desta forma, a religio

    crist em momento algum maculada. Trata-se de um trao subjetivo dos nautas e

    do sujeito ilocutrio que sempre endossado. Os deuses pagos, assim, no so ospenates de uma crena, mas indcios da lei esttica da objetividade, ou seja, entidades

    fictcias que possuem um objetivo no interior do poema: mover a fbula.

    Saraiva (1996, p. 44) afirma que s possvel falar de uma contradio entre

    a divindade crist e os numes romanos em um episdio como a maquina do mundo,

    passvel de interpretao alegrica. Nesse passo, as divindades j pararam de influir

    no curso da narrativa, no possuem uma finalidade estrutural e, ao contrrio do que

    ocorre no restante do texto, so discernidas pelos nautas. Por sarem de um plano

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    em Melinde, cidade localizada na frica oriental. Esse canto, assim, bem mais

    dinmico, expondo a passagem dos portugueses por plagas diversas e a

    apresentao de fenmenos naturais desconhecidos aos ocidentais. Sena (1970, p.

    146), analisando a refrao temporal dessa passagem, afirma que 285 dias de

    travessia martima esto condensados em 85 estrofes, ou seja, cada oitava-rima

    delineia o contedo de trs dias empricos.

    Essa nfase na expedio marinha que o canto V apresenta o aproxima dos

    canto IX a XII da Odisseia e do livro III da Eneida. Ambos apresentam,

    respectivamente, o perambular de Odisseu por regies diversas e a partida de

    Eneias de Troia at sua chegada na pennsula itlica. Outra convergncia entre essas

    trs passagens sua dimenso metadiegtica (GENETTE, 1995, p. 230), ou seja,

    nesses trechos so os personagens das obras que contam a uma plateia histrias que

    ocorreram a si prprios. Assim, Odisseu narra aos Fecios, Eneias a Dido e Vasco

    da Gama ao rei melindano. Saraiva (1996, p. 24-27) afirma que como o nauta

    portugus conta ao rei africano acontecimentos que ocorreram a si prprio desde a

    sada de Portugal at a chegada frica oriental essa apresentao minuciosa domundo fenomenolgico levada a cabo. Ou seja, era preciso que o capito-mor

    mencionasse as particularidades dessa travessia para tornar seu relato verossmil e

    crvel. A seguir, se analisa algumas estrofes do canto V com o intuito de apresentar

    o realismo do trecho como trao proveniente do tratamento decoroso para a

    matria histrica que fonte dessa seo:

    VII

    Passamos o limite aonde chegaO sol, que pera o Norte os carros guia;Onde jazem os povos a quem negaO filho de Climene a cor do dia.

    Aqui gentes estranhas lava e regaDo negro Sanag a corrente fria,

    Onde o Cabo Arsinrio o nome perde,Chamando-se dos nossos Cabo Verde.(OC, 2008, p. 116)

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    Nesse passo, o relato de Vasco da Gama expe a passagem da frota lusitana

    pelo trpico de Cncer. Essa linha imaginria apresentada pelo capito como a

    fronteira entre o norte da frica, regio habitada pelos africanos mouros e brancos,

    e a frica subsaariana povoada pelos negros. O nauta, narrando sua insero pelo

    territrio austral, utiliza um mito presente nasMetamorfosesde Ovdio para justificar

    a tez escura dos habitantes dessas plagas. Segundo o relato ovidiano, Faetonte, filho

    de Climene e de Hlio (sol), ao tentar dirigir o carro do pai, perdeu o controle do

    mesmo, incendiando vastas extenses terrestres. Aps serem queimados, os povos

    vitimados por esse acidente teriam adquirido a ctis negra. Ao termino dessa

    explicao de cunho mitolgico, o capito-mor continua sua exposio, relatando a

    passagem da esquadra pelo rio Senegal e a chegada ao Cabo Verde. Por fim, Vasco

    da Gama observa que os portugueses renomearam essa ltima regio que, antes de

    suas chegadas, possua uma denominao ptolomaica. As semelhanas entre essa

    estrofe e uma passagem das Dcadas, obra do historiador portugus Joo de Barros,

    so flagrantes:

    A terra, que jaz entre estes dous rios, faz hum notvel cabo, a queos nossos chamam Verde, e Ptholomeu Arsinario promontrio; eposto que ele o situe em largura de dez gros, e dous teros, eper ns seja verificado em quatorze e hum tero [...] no podeser outro. E tambem por ficar entre dous notaveis rios, a queelle chama Darago, que he anag, e Stachires Gambea [...] E

    esse rio anagper a diviso nossa he o que aparta a terra dosMouros dos Negros, posto que ao longo de suas aguas todos somestios, em cor, vida, e costumes [...] (BARROS, 1778, p. 217 219, grifo nosso)

    A utilizao desse texto histrico como fonte para a oitava-rima possui os

    seguintes objetivos: A) Informar; B) O manuseio engenhoso de uma matria

    coletiva.

    Matos (2011, p. 506), examinando o carter bilateral das navegaesportuguesas, afirma que esses empreendimentos provinham de um conhecimento

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    acumulado. Em contrapartida, segundo a autora, acabavam originando novos

    saberes. As informaes sobre povos e regies desconhecidas obtidas durante as

    viagens eram registradas pelos cronistas. Assim, Cames, ao utilizar esses textos

    histricos para compor passagens de seu pico, concedeu realismo a Os Lusadase

    uma dimenso cognitiva proveniente desse teor livresco.

    Quanto ao segundo propsito importante observar nessa estrofe como

    Cames manuseia o material histrico que tem a sua disposio. O poeta o ajusta

    aos moldes da oitava-rima, do decasslabo heroico e ao esquema rmico abababcc. A

    passagem dos trechos colhidos em Joo de Barros para a meno mitolgica

    tambm engenhosa, ocorrendo sem cortes abruptos. Essa transio realiza a

    fuso entre res ficta e res facta, ou seja, entre traos fictcios e fatos histricos,

    permitindo a variao das narrativas que serviram de fonte para o escritor

    portugus. O amoldamento formal e esse desvio de contedo, ao promoverem uma

    reorganizao de matrias coletivas, descortinavam a percia verbal do poeta,

    permitindo a avaliao de seu texto pelos receptores coevos. Hansen (2008b, p. 41),

    a respeito dessa flexibilidade, afirma:

    Como toda verossimilhana, o verossmil pico um efeito deadequao produzido pelo destinatrio quando relaciona odiscurso do poema com discursos de gnero histrico. Aforma da poesia pica fico em estilo sublime de fbulacomposta de aes valorosas de personagens heroicosdeveser semelhante matria da histriaguerras histricas, feitos

    de homens histricosmas no idntica. Se o fosse, o poemano seria poesia, nem causaria prazer com a engenhosidade doartifcio verossmil.

    Essas alteraes verossmeis do binmio assunto/forma e o teor cognitivo

    proveniente do vnculo entre poema pico e as crnicas de viagem tambm podem

    ser rastreados na estrofe 10:

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    X

    Por aqui rodeando a larga parteDe frica, que ficava ao oriente:

    A provncia Jalofo, que repartePor diversas naes a negra gente;

    A mui grande Mandinga, por cuja arteLogramos o metal rico e luzente,Que do curvo Gambeia as guas bebe,

    As quais o largo Atlntico recebe;(OC, 2008, p. 117)

    O outro rio Gambea [...] no tem tanta variao em nome,porque quasi todo elle t o resgate do ouro, onde vam os nossosnavios, que ser da barra, por razo das suas voltas, cento e oitentalguas, e per linha direita oitenta, chamam-lhe os Negros da terraGambbu, e ns Gambea. A maior parte do qual corre tortuosoem voltas midas, principalmente do resgate pera baixo, t semetter no mar [...] tem seu nascimento no serto da terrachamada Mandinga [...] Geralmente a terra, que jaz entre eles,estendendo-se contra o Oriente at cento e setenta lguas, se

    chamaJalof, e os seus povos jalofos, posto que em si compreendem muitomais geraesdas que Ptholomeu terminou [..] (BARROS, 1778,p. 215-218, grifo nosso)

    Convm observar que nesse passo o poeta faz uma seleo das informaes

    apresentadas por Joo de Barros. Os dados colhidos so, ou distendidos, ou

    refratados. A palavra ouro, por exemplo, distendida na expresso perifrstica metal

    rico e luzente. Essa dilatao no fortuita, pois, alm de apresentar esse objeto em

    uma locuo solene e adequada a seu valor, acentua a plasticidade da estrofe, ao

    mencionar o fulgor desse metal. Por outro lado, quando assinala as diferentes

    naes que iniciam na provncia de Jalofo, Cames opera uma refrao,

    substituindo a expresso em si compreendempelo verbo reparte. Esse vocbulo permite

    a adequao do material histrico medida do decasslabo e sugere as linhas gerais

    de uma carta geogrfica.

    Na estrofe tambm se atribui ao ouro, atravs de uma prosopopeia, ahabilidade para beber as guas do rio Gambeia. Assim como as demais

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    personificaes camonianas, essa possui uma funo. O verbo beber implica a

    absoro gradual e contnua de um liquido, insinuando o fluxo da correnteza fluvial

    que, ininterruptamente, passa pela pedra preciosa. Esse termo serve ainda para

    estabelecer um vnculo entre o metal e o rio. No ltimo verso surge nova

    associao: a chegada do Gambeia ao oceano atlntico. Essa passagem paulatina do

    metalao rioe do flume ao atlnticocria um movimento anlogo ao da cmara que,

    abrindo seu enquadramento, passa dos detalhes a uma viso panormica.

    Referindo-se ao intento metalista, Cames e Joo de Barros empregam

    vocbulos distintos para caracteriz-lo. Tanto lograrquanto resgatarso eufemismos

    que abrandam os mtodos empregues pelos lusitanos para conseguirem o ouro

    africano. Em seu texto, porm, Cames, alm de omitir caractersticas desse

    levante, utiliza a expresso por cuja arte. Segundo Moniz, Celeste Moniz & Paz

    (2001, p. 45), o vocbulo artepossui nesta passagem o significado [...] capacidade

    para realizar algo [...], sugerindo que os lusitanos possuam processos de

    garimpagem que os africanos desconheciam.

    Ovtcharenko (2012, p. 359-363) justifica essa larga utilizao que Cames fazda obra de Joo de Barros com o argumento de que esse cronista possua uma

    viso de histria adequada ao gnero pico. Para Barros, a crnica deveria possuir

    um carter nobilirquico, pondo em foco os episdios que tinham como

    protagonistas os vassalos do rei. Esse historiador olvidava, assim, os feitos movidos

    pela populaa e a participao do vulgo nos eventos de relevo. Essa mesma

    caracterstica foi rastreada por Saraiva (1972, p. 174) no pico camoniano: Aconcepo camoniana da histria transparece no s na seleco dos episdios, mas

    ainda na interpretao dos acontecimentos: o povo no tem neles papel algum,

    tudo obra de guerreiros. Dessa forma, embora as alteraes que Cames

    impunha matria historiogrfica fossem frequentes, essas mudanas tangenciavam

    a estrutura potica e algumas mincias semnticas, mantendo intactas as linhas

    gerais do relato. Essa manuteno de um mesmo ponto de vista sobre a histria

    portuguesa tornava o pico verossmil, realista e viabilizava a possibilidade de

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    conhecimento por meio de sua leitura, visto que se destoasse das opinies oficiais o

    texto logo seria considerado ilegvel.

    Moura (2012, p. 513; 514; 520; 525) coaduna essa opinio, afirmando que a

    utilizao ostensiva dos trechos de alguns cronistas solucionava um entrave ao qual

    o poeta estava submetido. A composio de um poema pico, segundo o crtico

    portugus, pressupunha o ajustamento do contedo s convenes do gnero. Isso

    destruiria o realismo do canto V. Por outro lado, a representao emprica de toda

    uma viagem apresentaria passagens nada nobres como os levantes, a violncia

    contra os nativos e a monotonia de vrios dias em alto mar. O poeta ento resolve

    esse problema colhendo as linhas mestras do percurso nutico em trechos de Joo

    de Barros.

    Veja-se outro exemplo:

    XIII

    Ali o mui grande reino est de Congo,

    Por ns j convertido f de Cristo,Por onde o Zaire passa, claro e longo,Rio pelos antigos nunca visto.Por este largo mar, enfim, me alongoDo conhecido Plo de Calisto,

    Tendo o trmino ardente j passadoOnde o meio do Mundo limitado.(OC, 2008, p. 117)

    [...] muito tempo foi nomeado este rio do Padro, e ora lhechamavam de Congo por correr per hum Reyno assi chamado,que Diogo Cam esta viagem descubrio, posto que o seuproprio nome do rio entre os naturaes he Zaire, mais notvel,e ilustre per aguas que per nome [...] El Rey por causa dotempo, em que Diogo Cam limitou sua tornada, por os nossosno padecerem algum mal, mandou que tornasse logo,levando muitas cousas a El Rey de Congo, e com ellas lheencomendava que se quisesse converter F de Christo. [...]

    vindo Diogo Cam com este requerimento de converso de

    hum Principe senhor de to grande povo [...] (BARROS, 1778,p. 172-177)

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    A leitura das duas passagens mostra que o topnimo (congo) e o potamnimo

    (Zaire) presentes no poema foram colhidos na crnica de Barros. Convm observar

    que em um nico verso (Por ns j convertido f de Cristo) o autor sintetizou todo o

    episdio da converso de um rei africano ao cristianismo. Como est condensado,

    somente o conhecimento dessa faanha histrica, ou atravs do relato de Barros,

    ou por outros meios, descerra ao espectador a compreenso integral dessa linha

    potica. Por sua vez, a aluso vasta extenso do rio africano est resumida em

    dois adjetivos: claroe largo. Esse segundo qualificador, durante o Renascimento, era

    sinnimo de notvel (Moniz, Celeste Moniz & Paz, 2001, p. 97).

    Os versos subsequentes, assim como na estrofe 7, apresentam uma

    referncia mitolgica. Novamente, essa aluso visa comentar um dado emprico,

    tratando-o sob uma perspectiva mtica. Segundo Ovdio (2010), Calisto, aps ser

    estuprada por Jpiter, foi abandonada por Diana e metamorfoseada em urso por

    Juno. Um dia a ninfa reencontra seu filho Arcas que, por no reconhecer a me e

    assustado com o animal que lhe fita veementemente, decide trespass-la com umdardo. Jpiter, entretanto, impede o matricdio, transformando-os, respectivamente,

    nas constelaes de ursa maior (setentrional) e ursa menor (austral). Essa meno

    clssica ocorre logo aps a referncia ao texto de Barros, unindo-os. A fuso dessas

    duas espcies de obras no fortuita e, segundo Moura (1980, p. 50), demonstra

    que Cames no apenas traslada menes de um texto histrico para sua obra, mas

    que ele as aproveita em um constructo refletido. Ou seja, embora consciente daimportncia de recorrer a um historiador como Joo de Barros para legitimar seu

    relato, o poeta sabia que para sua condio de escritor engenhoso ser reconhecida

    era necessrio ajustar essas informaes com as peculiaridades formais do texto

    pico, unindo-as com dados da tradio.

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    4 Consideraes finais

    Aps a anlise dessas passagens do canto V possvel concluir que algumas

    nuances scio estticas das sociedades de corte influram no realismo desses

    trechos. O fato de a narrativa ser dirigida s estncias religiosa e poltica da

    monarquia lusitana obrigava o poeta a uma inventio (seleo) decorosa do material

    apresentado. Por ser vedada ao escritor a exposio de detalhes srdidos da

    colonizao e o emprego indiscriminado da imaginao, visto que a primeira

    destitua o herosmo dos protagonistas e a segunda deformava a nobreza dos

    cortesos em peripcias fantasiosas, restava a Cames a utilizao da cronstica ou

    dos discursos histricos coletivos. Ao recorrer a essas fontes, o poeta era avaliado

    pelas alteraes que impunha aos textos matrizes, podendo alterar suas formas, mas

    devendo manter os juzos oficiais.

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