camoes e pessoa-dois poetas no palco

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Page 1: CAMOES E PESSOA-DOIS POETAS NO PALCO

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este aviso.

Camões e Pessoa: dois poetas no palco

Autor(es): Ribeiro, Maria Aparecida

Publicado por: Universidade Católica Portuguesa, Departamento de Letras

URLpersistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/24042

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CATÓLICA PORTUGUESA CENTRO REGIONAL DE VISEU

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MÁ T H E S 1 S 1 1992.109-152

CAMOES E PESSOA-DOIS POETAS NO PALCO *

MARIA APARECIDA RIBEIRO

ABERTURA

Uma das características da dramaturgia portuguesa dos anos 70/ 80 é a releitura da História. Este olhar pousa sobre grandes personali­dades, individuos excepcionais, modelos, artistas consagrados, episódios célebres, mitos.

Como já tivemos ocasião de mostrar anteriormente 1, o texto dramático após o 25 de Abril, mostra uma preferência não só por Camões e por Gil Vicente - desde muito, «pratos» para todas as ocasiões - mas também por Bocage e, o que é novo, por Fernão Mendes Pinto, ambos marcados pelo anti-heroismo.

Se, entretanto, estas pelsonagens replesentam um passado e uma história a ser relida e reescrita e vêm ao encontro do surto de uma linha épica que se inicia no teatro português dos anos 60 e explode em tomo do 25 de Abril, há uma outra personagem, contemporânea, que também só recentemente foi descoberta pela dramaturgia: Fernando Pessoa.

* o presente trabalho reúne, revê e completa artigos anteriores que, embora entregues para publicação, ainda não vieram a lume; que, em função de limitações de quantidade e de divulgação não estão facilmente accessíveis; ou ainda que, pela própria dinâmica do tema, se encontram desactualizados. Entre eles: «Camões passado a limpo?», comunicação apresentada no V Congresso Internacional de Camonistas, São Paulo, 1987; «Erros meus, má fortuna, amor ardente ou erros lusos/luso amor», Revista Camoniana, Publicação do Centro de Estudos Portugueses da Universidade de São Paulo, 2.8 série, v. VIII, 1989, p. 49-60; «Pessoa enfim no palco», Actas, IV Congresso Internacional de Estudos Pessoanos, Secção Brasileira /Porto/ Fundação Engenheiro António de Almeida, s.d., v. II, p. 89-98.

1 Maria Aparecida Ribeiro, «O texto dramático pós-25 de Abril- principais . tendências», Temas de Educação - Revista do Mestrado de Educação da UERJ (2):

3/4, Rio de Janeiro, Maio-Dez, 1987.

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PESSOA, PERSONAGEM EM VIAGEM

o interesse por Fernando Pessoa tem possivelmente intima relação com a divulgação da obra do poeta e parecem datar dos anos 70 as pri­meitas encenações cliadas a partir de seus poemas liricos. Lembro-me, por exemplo de um espectáculo brasileiro, no Teatro Teresa Raquel (Rio de Janeiro): Cláudio Cavalcanti, Maria Cláudia, Tamara Taxman entre os actOles. Era uma colagem de textos da lirica pessoana: «Não, não quero nada! / Já disse que não quero nada! / Não me venham com conclusões. / A única conclusão é morrer!» cantado em ritmo de tango e «Pierrot Bêbado» dito numa cena de iluminação e coreografia belissi­mas. Nem faltou ao espectáculo a mesa do Café Irmãos Unidos, do célebre óleo de Almada, como cenário para «Autopsicografia». O espectáculo, entretanto, como tantos outros que se lhe seguiram, mesmo em Portugal, limitou-se a teatralizar os textos mais conhecidos da lirica pessoana, pondo-os em diálogo, sem a preocupação de eviden­ciar para o espectador a heteronimia.

Em Portugal, o percurso foi mais ou menos o mesmo. O poeta, muito antes de pisar o palco nas suas personae, foi chamado ao diálogo por e com variados dramaturgos. É o caso de Luzia Maria Martins, que traduz, algumas vezes, o sentido de Jogo do Sonho, de Strindberg, na palavra de Pessoa. Ou de Jorge de Sena, que o associa a Eugene O'Neil, em Jornada para a Noite. E até mesmo o de Natália Correia, que, em Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente, faz do Mostrengo fantasmas camoniano. Nos anos 80, como documenta Carlos Porto 2,

vários espectáculos com textos de Pessoa foram apresentados, tanto em Portugal como em outros paises. Se o interesse continuará nesta década ainda é cedo para dizer.

YVETTE CENTENO COMPANHEIRA DE VIAGEM

Em 1978-1979, Yvette K. Centeno lança ao mar o marinheiro Pessoa, numa viagem que ainda não teve porto: Quem Dorme sob os

2 Carlos Porto, «Pessoa no Palco: um Teatro Improvável», Actas, IV Con­gresso Internacional de Estudos Pessoanos, Secção Brasleira /Porto/ Fundação Engenheiro António de Almeida, s.d., v. I, p. 93-109. Cf. também Carlos Porto e José Sasport :s, 10 Anos de Teatro e Cinema em Portugal, 1974-1984, Lisboa, Caminho, 1985, p. 103.

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Ciprestes? é o texto ainda não encenado, que a autora inclui em Peças Bem Comportadas. Como personagens, Fernando Pessoa, a Voz de Alberto Caeiro, a Voz do Autor, as Três Donzelas de O Marinheiro, o Marinheiro e «uma criança que não tinha entrado na história». Por cenário, uma paisagem de palmeiras - recortada, aliás, do sonho da Segunda Veladora 3 - e o caixão da Morta de O Marinheiro. O texto, no sentido restrito, uma colagem de fragmentos das falas das Veladoras, do poema XXV de «O Guardador de Rebanhos» e de «Iniciação)). Na aparência, totalmente a letra de Pessoa; da autora, só dez linhas em todo o texto, sob a máscara da Voz do Autor. Mas, como citar é mascarar e mascarar-se, a peça é um «convite ao exercício mais delirante. E quanto mais delirante melhof)) 4. Pessoana ela própria, Yvette transgride tudo quanto se possa imaginar de Pessoa: sob as vestes das Veladoras, coloca «três rapazes robustos)); deita o poeta no caixão da Morta, fá-lo apanhar das Veladoras e, depois, põe-no a estrangulá-las uma a uma; o Marinheiro vem num carro que lembra o de bois, toma Fernando ao colo e leva-o embora. A criança desaparece como apareceu, depois de «limpar cuidadosa­mente os pés, dedo por dedo, unha por unha, cheirando de vez em quando os dedos da mão para se reconhecer no cheiro, como é pró­prio» 5 e «tirar 'macacos' do nariz, comendo-os, como do mesmo modo é próprio)) 9. O texto de Quem Dorme sob os Ciprestes? vale-se da ironia no sentido socrático do termo - a arte de questionar-, dado que, aliás, caracteriza o texto pessoano.

Assim, seja pela introdução de personagens, seja pelo comporta­mento por elas assumido, seja ainda pela leitura «ao pé da letra)) que faz do texto base, como, por exemplo, no passo em que a Terceira Veladora pega Fernando Pessoa ao colo (desmaiado no caixão) e o põe nos braços da Segunda, que acaba de dizer: «Tenho uma vontade lacrimosa de o ter nos braços para o embalar como a um filho ... )) 7,

Yvette Centeno viaja - e faz viajar -, via paródia, não propriamente para falar de forma directa da heteronímia pessoana, mas da palavra

3 Cf. Fernando Pessoa, «0 Marinheiro», Obra Poética, Rio de Janeiro, AguiJar, 19652, p. 441-452.

4 Y. K. Centeno, «Quem Dorme sob os Ciprestes?», Peças bem Comportadas, Lisboa, & etc., 1982, p. 7.

s Ibidem, p. 57. 6 Ibidem. 7 Ibidem, p. 56.

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como máscara 8. O texto de Quem Dorme sob os Ciprestes? enfatiza aquilo que Maria de Fátima Marinho viu em O Marinheiro:

O drama estático de Pessoa se, por um lado, tenta demons­trar que não há nenhuma verdade anterior à palavra e que é esta que cria o universo, por outro, nas últimas duas réplicas, desfaz tudo o que tinha construido, ressaltando bem a incapacidade da palavra, toda a sua natureza ficticia 9.

OS IMPERFEITOS DIÁLOGOS DE SALAZAR SAMPAIO

Quase da mesma época que o texto de Yvette é Fernando (talvez) Pessoa, de Jaime Salazar Sampaio. Escrito entre 1978 e 1979, e ence­nado por Artur Ramos em 1983, é o primeiro diálogo de Jaime com a poesia portuguesa. Ao dizer primeiro, é possivel que se esteja incor­rendo num erro, pois outras duas peças produzidas por este drama­turgo em 1980 - O Sobrinho e O Desconcerto - estabelecem também relações intertextuais com Fernando Pessoa, e pode ter havido simulta­neidade de criação. A primeira liga-se directamente a «Tabacaria». A segunda tem como subtexto Camões - e são versos de Camões que a personagem Mendigo diz ao final do primeiro e único acto -, mas podem-se perceber nela ecos pessoanos. Estabelece-se um constante jogo de máscaras: Helena-porto, Alexandre-viagem; Helena-no-palco, Alexandre-noticia; a interior viagem de Helena e a viagem pelo mundo de Alexandre-Ulisses. Há Alexandre/Groom/Soldado/Mendigo na chuva obliqua do sonho dentro-fora de Helena. Há Alexandre/ Camões, Helena/Pessoa, Alexandre/ Pessoa, Alexandre/Camões/Pes­soa... E há, sobretudo, Camões/Pessoa/Salazar Sampaio.

A segunda peça é também uma viagem. Uma viagem dentro de outra viagem. Porque Fernando (talvez) Pessoa está e não está com­pleta, o que leva Luis Francico Rebello 10, a falar em Pirandello, no posfácio à edição do texto de Salazar Sampaio.

8 A cena final com o Marinheiro que chega no carro de bois e o diálogo entre a Voz do Autor e a Voz de Caeiro ilustra bem este sentido.

9 Maria de Fátima Marinho, «o Marinheiro e o Teatro do Absurdo», Actas . do 1.° Congresso Internacional de Estudos Pessoanos (Porto, 1978), Porto, Brasília Editora, 1979, p. 495-508.

10 Luiz Francisco Rebello, «De Pessoa às Personagens Via Salazar Sampaio, e Vice-Versa», Jaime Salazar Sampaio, Duas Peças: Fernando (talvez) Pessoa, O Sobrinho, Lisboa, Plátano, s.d., p. 193-196.

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Para o autor de O Mundo Começou às 5 e 45, a heteronímia pes­spana, «foi uma inesperada antecipação» do «drama por escrever do autor italiano», que ele próprio reconhece decorrente de uma evolução natural, pois, como diz, «a obra romanesca de Joyce e Proust / ... /, o cubismo e o expressionismo, o atonalismo de Schoenberg e Webern, a teoria da relatividade de Einstein e a Psicopat%gia da Vida Quoti­d(ana, de Freud» já lhe haviam desbravado o caminho para o surgi­ITtento de Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Alberto Caeiro, Bernardo Soares, António Mora e «outras personagens menores, também eles à. procura de um autor» 11.

Entretanto, é possível ir mais longe, pois a relação Pessoa/Pirandello não pára aí. Ou porque Salazar Sampaio 12 é invadido por Pessoa à n:1edida que o estuda, ou porque, homem de teatro, sente as questões apordadas por Pirandello, cria uma situação dramática em que nada chega a ser definitivo; um grupo em organização - o Grupo Inde­pendente de Teatro - pretende montar um espectáculo sobre Fernando Pessoa. E o ensaia. Jorge, o encenador, tenta fazer valer suas certezas a Pedro e Ju, os dois únicos componentes do grupo;

... a peça não deve ser um recital de poemas de Fernando Pessoa. / ... / o espectáculo deve mostrar forma variada; harmónica e significativa, a obra do acima citado Fernando Pessoa / ... /. É uma peça de Teatro. Tem uma estrutura, as cenas sucedem-se por determinada ordem, formando um todo .. E os poemas, os fragmentos, enfim os factos surgem naturalmente integrados nas cenas. 13

Jorge funciona como uma espécie de Super-Ego de lu e de Pedro, manifestações por seu turno, de Id e Ego. Ju é mais criativa, mais livre e insolente, querendo sempre o que Jorge indefere. Pedro fica entre as reivindicações de um e os imperativos de outro. Daí talvez que Pedro e Ju se deixem penetrar mais facilmente por Pessoa.

Criança é outra personagem da peça. Sua caracterização física e discursiva é feita a partir de traços pessoanos; roupa a marinheiro,

11 Luís Francisco RebeJlo, op. cit., p. 194. 12 Salazar Sampaio estuda inclusivamente outras formas de divulgação de

Pessoa. É autor, com Isabel Pascoal de três volumes escolares sobre o poeta (Fer­nando Pessoa ao Vivo; Lisboa, Plátano, s.d.) o último dos quais apresenta propostas de teatralização de textos do Poeta.

13 Jaime Salazar Sampaio, Duas Peças: Fernando (talvez) Pessoa, O Sobrinho, Lisboa, Plátano, s.d., p. 193-196.

8

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puxa um carrinho de bois, faz pose de ibis, fala português e inglês, e diz que o pai lhe morreu quando tinha cinco anos e a mãe voltou a casar-se. Ela desmonta as certezas de Jorge e acaba com a rigidez do cenário que ele havia criado para o espectáculo: o «informe labi­rinto» 14, que de informe só tinha o nome, pois o escorregador não deixava escorregar, o papagaio não voava e a porta não abria nem fechava. A aparição de Criança marca uma mudança de sentido no espectáculo de Jorge. Como ele mesmo diz:

«Afinal, até agora, o que é que andávamos pràqui a fazer, a tentar fazer? Montar, num cenário rígido, um texto ... expli­cativo!. .. sobre Fernando Pessoa. Uma peça arrumada em actos. Cada acto, um certo número de cenas, arrumadinhas de certa

. 15 maneua ... »

Criança destrói com Jorge o que é fixo no «informe labirinto» e destrói em Jorge alguma ideia de absoluto, de inteiro, de completo, de univocidade: «Whether we write or speak or do but look / we have ever unapparent. What are cannot be transfused into word or book» 16

- diz ela, dizem os «Poemas Ingleses», no inglês que Criança fala, no sentimento/sentido expresso nessa lingua, intraduzivel para outra, como afirma a Jorge.

A multiplicidade de máscaras pessoanas é sublinhada por Salazar Sampaio não só pela concentração, em Criança, de signos do Poeta mas também pela fragmentação: à cena comparecem várias personagens que têm relacções factuais ou ficcionais com o Poeta (Álvalo de Campos, Ricardo Reis, Alberto Caeiro, Bernardo Soares, íbis, Ofélia, palhaços, apalhaçados, António Botto, Almada Negreiros, Sá-Carneiro). Elas aparecem como candidatas a actores do espectáculo que Jorge está a montar e seu discurso as caracteriza como fragmentos, partes de Pessoa. A personagem Sá-Carneiro, por exemplo, estabelece com Pedro, o actor que faz de Fernando Pessoa, um diálogo em que Salazar Sampaio, a partir de estilhaços de poemas dos dois amigos, enfatiza o pensamento

14 Cf. Fernando Pessoa, Poesias Inéditas, Lisboa, Ática, 1973, p. 47: «Dormi, sonhei. No informe labirinto / que há entre a vida e a morte me perdi. / E o que, na vaga viagem, eu senti / com exacta memória não o sillto».

15 Ibidem, p. 53. 16 Ibidem, p. 42.

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comum entre ambos e esbate os limites de Mário e de Fernando, que passam a ser unicamente a emissão da fala por actoles diferentes:

Carneiro (recitando): «Corro em volta de mim sem me encontrar» Pedro (idem): «Giro em meu torno sem me achar» Carneiro: «Onde existo, que não existo em mim?» Pedro: «Jazo-me sem nexo ou fim». Carneiro: «Quero reunir-me e todo me dissipo.» Pedro: «Não sei quantas almas tenho.» Carneiro: «Pobre menino ideal...

que me faltou, afinal? Um elo? Um rastro? ... Ai de mim.»

Pedro: «Quem me roubou quem fui e a vida?» J 7

O Professor, outra personagem, é uma espécie de duplo de Jorge e se contrapõe à Criança: enquanto esta surge em momentos «entre» de Jorge (a semi-embriaguez e o dormitar) ele aparece durante a vigília e vem protestar contra o propósito «que se não fosse absurdo, seria vergonhoso e, em qualquer hipótese, bastante ridículo» 18 de levar à cena «um espectáculo de teatro sobre Fernando Pessoa» 19, o que só poderia ser feito com a contratação de um especialista (ele próprio) que saiba «qual dos três grandes heterónimos de Fernando Pessoa era mais pessoa que Fernando Pessoa» 20, que saiba em que rua nasceu o poeta e qual o número da porta. O Professor é uma espécie de Dantas, um anti-Pessoa, facto que a personagem Almada-Negreiros assinala, apontando-o e dizendo o trecho do seu Manifesto em que condena o popular autor.

Diferentemente do teatro moderno que propõe a rotatividade dos papeis entre os actores 21 - e também com outro objectivo - Salazar Sampaio recomenda que Criança seja feita pela mesma actriz da Ju,

17 Ibidem, p. 101-102. 18 Ibidem, p. 88. 19 Ibidem. 20 Ibidem, p. 94. 21 A desvinculação actor/personagem proposta pelo teatro moderno e usado

por Brecht em A Decisão, é uma forma de fazer que o actor seja um «encarnador» e passe a um «narrador» da personagem. Por outro lado esta quebra do realismo auxilia no impedimento da identificação emocional plateia/palco e solicita do espec­tador uma atitude crítica. Augusto Boal, encenador brasileiro que montou vários espectáculos em Portugal chama «do coringa» a esta técnica em que vários actores dizem as falas de uma personagem.

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da Ofélia e do Boto e este também pelo actor encarregado de Pedro. Esta atitude enfatiza a possibilidade da existência de duas almas num só corpo, «a mágoa de um não ser dois», o «não sei quantas almas tenho» pessoanos.

A incompletude pessoana é também sublinhada em Fernando (talvez) Pessoa pelo apagamento das fronteiras entre o discurso de uma personagem e o de outra, pois uma das marcas da personagem é o seu discurso: Criança, numa de suas entradas, ora fala como Criança ora como Ju. Além disso, Criança não muda por inteiro a atitude de Jorge. Ela destrói apenas alguma ideia de absoluto. Ele continua a fazer reparos do tipo «as datas das suas cartas de Paris não corres­pondem às do Diário dele. É o defeito destes improvisos» 22.

Como diz Pirandello, no prefácio de Seis Personagens à Procura de um Autor, «aquele palco de um teatro / ... / não existe de per si como dado fixo e imutável, como de resto nada existe pré-conceptualmente nesta peça; tudo nela se constrói e evolui a cada instante» 23. Daí que Salazar Sampaio/Jorge deixem falar Ofélia, Botto, Almada, Sá­-Carneiro, além dos heterónimos e do próprio Fernando. Ofélia e Botto são os Pessoas inéditos, heterónimos quase, como o é Sá-Carneiro. Estas personagens no entanto são chamadas e recusadas. Como os signos/símbolos pessoanos consagrados do chapéu, do bigode, da cómoda alta, e até mesmo os signos extraídos de poemas e tornados símbolos em cena - o carro de bois, o lenço branco embainhado e a cigarreira. «Mas poderá representar-se uma personagem rejei­tando-a? É evidente que, para a representar, se torna necessário acolhê-la na fantasia e exprimi-la. E eu, com efeito, acolhi e realizei aquelas seis personagens; mas acolhi-as e realizei-as como repudiadas: em busca de um autor» 24 - diz Pirandello. Questionando as fron­teiras da realidade com a fantasia, já que os candidatos a actores do Poetodrama de Jorge são também candidatos a actores no poetodrama de Fernando, Salazar Sampaio nunca chega a efectivar um Pessoa - este fica no talvez, que o título da peça anuncia. Porque se a vigília de Jorge é o sonho do espectáculo, o sonho de Jorge é a vigília do espectáculo. Porque, entre as verbas que o Estado há de fornecer ao Grupo e as verbas que não fornece, há outra coisa ainda, e esta é que é linda. Entre as sugestões de Ju, de Pedro, dos candidatos, o

22 Jaime Salazar Sampaio, op. cit., p. 100. 23 Luigi Pirandello, O Falecido Mattia Pascal. Seis Personagens à Procura

de um Autor, São Paulo, Abril, 1978, p. 340. 24 Ibidem, p. 333.

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café, as sandes, existem as possibilidades não-ditas: «when a thought would unmask our soul's masking, / Itself not unmasked to the unmasking» 25.

ROMEU CORREIA E UM FERNANDO SEM DRAMA

De 1983 data outro texto publicado, em que Pessoa aparece como personagem. É de Romeu Correia e, até hoje, não foi encenado. Trata-se de Grito no Outono.

Diferentemente de Salazar Sampaio, que mantém com Pessoa um diálogo permanente e para além das peças teatrais, Romeu Correia trata o poeta como personagem secundário e, digamos, ocasional na Estrela do Sul, leiteria que serve de espaço onde à peça. É verdade que Pessoa não é o primeiro escritor a merecer um texto de Romeu Coueia. Antes, em 1965, ele já produzira Bocage, «crónica dramática e gro­tesca de uma época, centralizada na figura do poeta maldito que foi Bocage» 26. A peça, como diz o próprio autor:

... não é um trabalho rigorosamente histórico... Procurou-se respeitar a ordem cronológica de alguns sucessos, azares aconte­cidos na aventura de Manuel Maria Barbosa du Bocage. As poesias ao longo do diálogo são atribuidas à sua autoria. Uma rapariga de rua canta uma canção de Camões. Recitam-se frag­mentos de uma sátira de José Agostinho de Macedo e duas quadras de Joaquim Manuel dos lundus; as restantes pertencem ao patri­mónio popular. Os documentos que se evocam são autênticos» 27.

A preocupação com a realidade histórica, o modo narrativo, a divisão em duas partes e um prólogo, o apelo à técnica do coringa, o jogo sacralizar/dessacralizar traduzido no dramático grotesco pro­posto, e o facto de Romeu Correia recomendar, entre outras coisas, «que na representação dentro da representação, que é esta crónica» 28

se mantenha «o clima vivo e ingénuo dos espetáculos de feira do século passado» 29 filiam Bocage à vertente da dramaturgia épica surgida em Portugal nos anos 60 30 e que ganha vulto, como já referimos, nos

2S Fernando Pessoa, Obra Poética, Rio de Janeiro, Aguillar, 1965, p. 591. 26 Romeu Correia, Bocage, Lisboa, Edições Maria da Fonte, 19782, p. 9. 27 Ibidem. 28 Ibidem, p. 10. 29 Ibidem. 30 Cf. José de Oliveira Barata, «A fábula histórica no teatro português con­

temporâneo» Vértice, 455, Coimbra, 1983, p. 1-6 e Maria Manuela Gouveia Delille,

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anos 70/80, em função do próprio contexto histórico, no qual, aliás, Correia criou uma outra peça nesta mesma linha: O Andarilho das Sete Partidas, em que focaliza a figura de Fernão Mendes Pinto.

Em Grito no Outono, existe um especial cuidado com a verdade histórica oficial no tratamento da personagem Fernando Pessoa. No entanto, a grande preocupação da peça não é o poeta, mas o direito ao amor, dentro de uma linha que poderiamos chamar neo-realista.

Em defesa do amor de dois sexagenários viúvos, coloca-se Tia Adelina, a dona da Estrela do Sul, onde os amantes se encontram, e que lhes chega a oferecer seu próprio quarto, no primeiro andar. Ao lado dela, numa espécie de cumplicidade, porque também vibra com o amor e se sente solitário, o cego Damião. Tratando o casal apenas como clientes, sem sentir os mesmos arroubos de sua mulher, Isidro, marido de Adelina.

Como cenário, veristicamente indicado por Romeu Correia, uma pequena leiteria lisboeta, «num bairro junto do Castelo. Balcão, prateleiras, máquinas de café, boiões e caixas com guloseimas, mesas, cadeiras etc. Gaiola e canário. Toda a pacatez provinciana da cidade de Lisboa, no ano da graça de 1934» 31 e pregões populares.

É neste espaço que está Fernando Pessoa, com as recomendações de Romeu Correia de que «a figura deve ser copiada do famoso retrato de Almada Negreiros», de que a personagem é um «homem delicado e timido, fixa as pessoas com olhos atentos, mas desassossegados, como quem faz esforço para ver o mundo exterior» 32, «um con­traponto» do que acontece.

Pessoa, na explicação de Adelina e Isidro ao cego Damião, é um cavalheiro de quem pouco se sabe, muito bem educado, que parece solteiro, bebe, fuma e lê papeis estrangeiros. Dizem que faz traduções numa firma da Rua dos Bacalhoeiros. Não incomoda ninguém e parece fazer versos, embora seu nome nunca tenha aparecido nos jornais que Isidro lê.

A frequência à leiteria serve como outro dado na construção da personagem: «- Não ... O Sr. Pessoa ainda não veio. Ontem também não esteve cá. Ele não é certo, é como lhe dá: umas vezes, aparece dias seguidos, noutras ocasiões está semanas sem lhe pormos a vista em cima. Não quer deixar recado?» 33 _. diz Adelina ao telefone.

«o Judeu de Bernardo Santareno; suas relações com o teatro épico de Bertolt Brecht e com o teatro de Peter Weiss», Separata da Revista Runa, n.O 2/84.

31 Romeu Correia, Grito no Outono, Lisboa, Garcia & Carvalho, 1980, p. 11. 32 Ibidem, p. 33. 33 Ibidem, p. 103.

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Ou, então, o próprio Pessoa apresenta-se, numa fala cujos dados Romeu Correia faz questão de avisar, em nota, que são historicamente correctos:

- Está? É da tipografia da Editorial Império, Lda? Eu desejo falar com o Sr. Armando Figueiredo. Muito obrigado. Sr Armando Figueiredo? Boa Tarde! Fernando Pessoa. Des­culpe incomodá-lo, é para lhe dizer que só amanhã entrego as segundas provas do meu livro. Da parte da manhã. Sim, tem poucas emendas ... mas há umas pequenas alterações... Des­culpe... O título do livro, que tinha pensado ser PortugaL .. acho-o ambicioso, por não estar a obra à altura do nome da Pátria, optei por mensagem, está dentro da índole do trabalho e, além disso, tem o mesmo número de letras. Oito... Oito letras ... Na página 22 ... altero as últimas quatro linhas do poema D. Tareja. Na página 45 ... o poema Afonso de Albuquerque é eliminado. Tenho outro ... 34

O movimento interior do Poeta não interessa a Romeu Correia, que explora as angústias de uma mulher de sessenta anos, a cobiça de seus filhos e o sentimento doentio da filha de seu amante, além da projecção de Adelina e Damião no amor alheio. A personagem Fer­nando Pessoa assiste à briga dos filhos do par amoroso de sexagenários, recolhendo os seus papeis para que não sejam envolvidos na tormenta.

O que se passa na Estrela do Sul está para a personagem Pessoa como a Tabacaria está para o Poeta. Aliás, isto é mesmo sugerido pelo aparecimento da Rapariga das Violetas, a quem o Poeta-perso­nagem paga chocolates. No entanto, há uma difelença: Esteves não acena. E Pessoa personagem sai como entrou: alheio à primavera que se inicia no 21 de Março da folhinha e no Outono do casal que se despe no quarto de Adelina.

SASPORTES: A VIAGEM ENTRE O ROSTO E AS MÁSCARAS

Nos últimos anos, talvez pelas comemorações em torno da figura de Pessoa, talvez pelo crescente número de estudos sobre o poeta, surgiram numerosos textos, dos quais apenas dois foram publicados: Daisy - um Filme para Fernando Pessoa 11986), de José Sasportes; Chamam ao Telefone o Senhor Pirandello, de António Tabucchi 0988).

34 Ibidem, p. 149.

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Daisy, como indica o próprio subtitulo, era guião de filme, cuja publicação em livro 35 teve o concurso das imagens de Jorge Martins, o que lhe valeu um prémio da Fundação Calouste Gulbenkian. :Na Primavela de 88, no entanto, o encenador e também autor Richatd Demarcy, a quem o teatro português já deve bastante, levou Daisy a Paris, para o palco do Odeon.

Embora não se possa, pela falta de indicações cénicas fazer urna a.nálise mais completa do texto, pois que as rubricas dizem respeito à linguagem cinematográfica, é importante registar que a grande figura é Caeiro, o ausente/presente, a quem a personagem Daisy Lust, pintora inglesa, busca com insistência.

Amiga de Álvaro de Campos, veio de Inglaterra especialmente para conhecer o Mestre, mas só encontrou Bernardo, Pessoa, Reis e Álvaro, amigos/discípulos, a partir dos quais se inicia nos mistérios da heteronimia. Até compreendê-los como máscaras de um mesmo (?), Daisy tenta um retrato de Caeiro após outro. É aí que constrói o prisma giratório, em cujas faces estão Reis, Campos e Pessoa e que, rodando, apresenta o rosto procurado.

Na realidade, todo o texto se articula em torno das ideias viagem/ porto, máscara/rosto, em que dialogam a história pessoal de Fernando António Nogueira Pessoa, a história sonhada do poeta Pessoa e o texto de José Sasportes.

O pré-genérico do filme apresenta um retrato de Álvaro, Reis, Pessoa e Daisy, sentados à mesa do Martinho da Arcada, ao mesmo tempo palco do Teatro São Carlos. O retrato/porto queima-se e, como indica o próprio texto, o crepitar das chamas transforma-se no marulhar das ondas e traz a imagem do navio que transporta Daisy. O dinâmico substitui o estático, portanto, numa sucessão que se irá repetir por todo o texto, nas tentativas de Daisy em apleender Caeiro: cada retrato que ela traça é desmentido, a seguir, por um dado novo, por uma nova viagem que a pintora tem de empreender na busca de um novo rosto.

A própria Daisy, personagem criadti por Sasportes, a partir de Sónia Delaunay, mulher do pintor Robert Delaunay e da Daisy a quem Caeiro-poeta se dirige pedindo que noticie sua morte a Cecily e aos outros amigos, é também uma máscara, com quem ele dialoga.

Esta ideia, já sugerida pelos próprios versos «que eu nada que tu digas acredito», é reforçada por Sasportes incluindo Daisy ao lado de

35 José Sasportes, Daisy - um Filme para Fernando Pessoa, Lisboa, Sala­mandra, 1988.

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Reis, Pessoa e Campos, no retrato que aparece no pré-genérico já referido e que torna a sugerir na última cena que ela, actriz entre actores, agradece, juntamente com os companheiros, os aplausos do público. Aliás, junto à carta-poema de Caeiro que lhe é dirigida, a pintora encontra um retrato: o seu próprio, naquele momento ...

Daisy é, portanto, tratada por José Sasportes como heterónimo, máscara, actriz, filme, viagem, um porto inseguro, um rosto indefinido, uma intersecção.

TABUCCHI, PESSOA & PIRANDELLO

A peça de Tabucchi vem motivada pela proximidade histórica e poética entre Pessoa e Pirandello.

O problema da identidade, da multiplicidade de máscaras, do conflito entre o «ser» e o «pensar ser» é tema pirandelliano desde o romance O Falecido Mattia Pascal, passando por peças como Assim É, se Lhe Parece, O Jogo dos Papeis, Seis Personagens à Procura de um Autor. No romance, o protagonista, sem identidade civi1, passa a ser não o que de facto acredita ser, mas o que os outros supõem que ele é; em Assim É, se Lhe Parece, a Senhora Ponza resume as ideias do autor {«- Eu sou aquela que me julgam ser») 36 tendo como contra­ponto a fala de uma outra personagem (( - Aqui têm a verdade, meus senhores! estão contentes?») 37

Esta postura de incompletude, de que tudo são máscaras é exa­cerbada nas Seis Personagens à Procura de um Autor e em Esta Noite Improvisa-se, nas quais é questionado o próprio problema do teatro, das relações arte/vida, convenção/natureza, construção/espontaneidade, realidade/aparência, enfim, do poeta fingidor de sentimentos verdadeiros, também fios do tecer poético de Fernando Pessoa.

Juntando a este encontro de ideias a possibilidade do desejo de um outro na vida real, e a angústia por um interlocutor, que sirva de porto à viagem do protagonista (facto comum às duas peças que escre­veu), Tabucchi constrói Chamam ao Telefone o Senhor Pirandello. Como diz em nota de abertura:

Não consta que Luigi Pirandello e Fernando Pessoa se tenham conhecido / ... / Eno entanto teria havido oportunidade. Em 1931, Pirandello veio à Lisboa para assistir à estreia mundial (em por-

36 Luigi Pirandello, Cosi li (Se Vi Pare), parabola in tre atti, Firenze, R Bemporad & Figlio, 1975, p. 159 (Per me, io sono colei che mi si crede).

37 Ibidem (Ed ecco, o signori, come parIa la verità! Siete contenti?).

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tuguês) do seu Sonho ... ou talvez não. Numa de suas últimas cartas à namorada Ofélia Queirós, Pessoa manifesta a intenção de se internar para um periodo de cura numa clínica psiquiátrica de Cascais / ... / Não consta no entanto que ele tenha efectivamente sido internado numa clínica 38.

A peça de Tabucchi é o lugar onde consta este não consta, um sonho ... ou talvez não, o lugar do Entretanto.

Como espaço, o «Hospital Psiquiátrico de Cascais, em 1935». Como personagens, um actor, um tocador de realejo, um Coro. Um clima de festa é dado pelo cenário e pela caracterização das personagens. Sentados em cadeiras enfileiradas vinte figuras-manequins (das quais cinco ou seis são pessoas estáticas) vestidas como internas de um mani­cómio assistem ao espectáculo que Actor e seu Acompanhante cego e tocador de realejo vão dar através das grades. Como contraponto deste clima, mas mesclado ao próprio drama de Actor, um Falhado que tem como obsessão telefonar a Pirandello e nele encontrar um porto para as suas angústias.

A personagem Actor representa Fernando Pessoa e, ao mesmo tempo, Fernando Pessoa é o Actor: «aqui estou eu, Pessoa ou tal me disseram que fosse / ... / digamos que sou um actor e que vim para vos divertir» 39. É o jogo de máscaras tão pessoano e tão pirandelliano. Porque dizer « ... ou então se preferirdes, sou Pessoa que finge ser um actor que essa noite faz Fernando Pessoa» 40 é como afirmar «assim é se lhe parece» 41.

A proximidade personagem/actor e ao mesmo tempo a distância actor/personagem existente em Pirandello (cf. Seis Personagens à Procura de um Autor) também surge no texto de Tabucchi. Durante toda a peça a personagem Actor distancia-se da personagem Pessoa, chegando mesmo a ter entre as omoplatas «uma chave como a dos brinquedos de cOlda, enorme» 42. Mas, simultaneamente, e em aparte, como que a deixar de ser Actor, Actor se identifica com Fernando Pessoa: «gostava de telefonar a Pirandello, / veio a Lisboa em trinta e um e não nos encon1ramos» 43. A ânsia do todo e a impossibilidade

38 António Tabucchi, Chamam ao Telefone o Senhor Pirandel/o. Lisboa, Quetzal. 1988, p. 7.

39 Ibidem, p. 18. 40 Ibidem, p. 19. 41 Luigi Pirandello. 42 António Tabucchi, op. cit., p. 20. 43 Ibidem, p. 21.

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de alcançâ-Io, presente em Seis Personagens à Procura de um Autor, principalmente no desejo da Enteada e do Pai de colocar em cena todas as suas vivências em contraponto com a impotência do Encenador em fazê-lo, pois que precisa «combinar e agrupar / ... / numa aCyão simultânea e densa» 44 traduz-se na peça de Tabucchi por esse aparte. Ele se torna uma espécie de refrão obsessivo que surge a cada momento­-cena de Actor/Pessoa, pois que ele tece de fios marcadamente pessoanos (namorado de Ofélia, o menino de sua mãe, aquele que ambiciona viver de forma plural, a que deseja comeI dobrada à moda do Porto, o que fez seu horóscopo e sabe que vai morrer em 35) e novos fios de matizes variados (o actor falhado, o saltimbanco sem categoria que se faz acompanhar por um cego tocador de realejo, o homem angustiado que não encontra interlocutor).

A fala de Actor é marcada pela mesma solidão da de Homem, personagem de O Tempo Aperta, a outra peça de António Tabucchi. Ambos traçam diálogos imaginários com um interlocutor que não os ouve. O homem se dirige ao irmão do morto e, por vezes, assume o papel do defunto no que seria um diâlogo, para poder continuar o seu monólogo. Actor/Pessoa imagina o que diria a Pirandello se o tivesse encontrado em Lisboa ou se lhe telefonar naquele instante para Agri­gento. Pirandello/ausência é para ele um porto inalcançável que lhe torna o discurso viagem à procura de um autor, jâ que o Coro, também delirante, o impele a prosseguir.

CAMÕES PERSONAGEM PORTO

Camões surge como dramatis persona com o advento do Roman­tismo pela relação que mantém com o mito romântico do poeta injus­tiçado, ao qual o künstlerdrama goethiano deu relevo. Como mos­tramos em comunicação apresentada no 3.° Congresso de Lusitanistas 45,

a primeira apari~ão do Poeta num texto dramático data de 1808 e, desde então, nunca mais a figura de Camões saiu do palco. Explorado em vários paises da Europa, no Brasil e em Porto Rico, no século XIX,

o mito camoniano permaneceu no teatro português - e mesmo no brasileiro - durante o século xx. Se não vejamos:

1919 - Artur Botelho publica Camões, drama heróico em quatro actos e em verso.

44 Luigi Pirandello, op. cit., p. 00. 4S Maria Aparecida Ribeiro, «Máscaras dramáticas de Camões no Roman­

tismo», em publicação nas Actas do Congresso.

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1956 - Eduardo Damas, baseado nos textos de Juromenha, Storck, Teófilo Braga e outros, escreveu o seu Luís de Camões, publi­cado em 59.

1971 - José Baldaia Moreira leva à cena, no Liceu da Figueira da Foz, para as comemorações do 10 de Junho, o seu Camões.

1972 - Surge O Canto da Ocidental Praia, escrito para as comemorações do quadricentenário de Os Lusíadas, por António Victorino de Almeida.

- No Teatro Municipal do Rio de Janeiro, representa-se Por Mares nunca dantes Navegados, uma ópera-lock, da autoria de Paulo Affonso Grisolli e Tite de Lemos, com música de Sidney Müller.

1980 - Hélder Costa publica A Viagem - Camões Poeta Prático.

- Jaime Gralheiro escreve ... Onde Vaz, Luís?

- Natália Correia cria Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente.

- É apresentada a peça de José Saramago Que Farei com Este

- Livro?

- Carlos Correia escreve Conhece Luís de Camões?

1981 - Luzia Maria Martins leva à cena O Homem que Julgava Ser Camões.

- Eduarda Dionísio e Antonino Solmer montam o espectáculo Dou-che-lo Vivo, Dou-che-lo Morto.

- O comandante Quirino da Fonseca publica, ao que parece sob encomenda, Camões - evocação dramatizada do regresso do poeta a Portugal.

E ainda haveria que citar A Viagem, uma adaptação de Os Lusíadas feita por Carlos de Queirós Telles, com a qual o Teatro Ruth Escobar participou das comemorações do Sesquicentenário da Independência do Brasil (1972) e que foi apresentada em pré-estreia, naquela ocasião, ao Presidente Marcello Caetano, quando da sua visita a São Paulo. Apesar de Camões não ser personagem, a menção à peça faz-se neces­sária não só pelo sucesso alcançado pelo espectáculo, como também porque Os Lusíadas são traço pertinente ao mito camoniano, e seu recorte por Carlos Queirós Telles mostra não só a face do louvor, mas também o lado de reprovação que a epopeia contém e que só o nosso século foi capaz de iluminar.

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REVIVENDO CAMÕES

Os textos de Artur Botelho e Eduardo Damas, assim como os de Paulo Affonso Grisolli, Quirino da Fonseca e Natália Correia, embala de diferentes estilos e valor literário diverso, aplesentam um Camões ao qual estamos, por assim dizer, acostumados. Valendo-se declara­damente, ou não, de factos e traços com que a História e o mito dese­nharam a figura do Poeta, estes autores estruturam seus textos de forma a conferir a Camões o estatuto de herói.

Artur Botelho estabelece a tensão dramática a partir das invejas do Paço, nomeadamente o ciúme de Pera de Andrade Caminha, por causa do amor correspondido de Camões por Caterina de Ataíde, filha de D. António de Lima, e por causa da superioridade poética do autor de Os Lusíadas. Garcia de Orta, Damião de Góis, Fernão Mendes Pinto aparecem também como homens valorosos e admiradores do Poeta, embora exercendo papeis secundários. A fidelidade do Jau, a pobreza de Camões, a amizade de D. Manuel de Portugal e de Francisca de Aragão ajudam a conferir autenticidade à personagem. Mas, apesar de o autor, mesmo depois do surto naturalista no teatro português, escolher o verso como forma de expor os pensamentos de suas perso­nagens - o que é um dado importante na configuração tradicional do herói -, Camões só firma este status nas cenas finSlis quando, já sem receber a tença, ainda mais fraco e doente porque sabedor da derrota de Portugal em África, expulsa de sua casa um emissário de Filipe II que o vinha convidar a apoiar as pretensões deste rei. Além disso, sua última fala é uma espécie de vaticínio que fixa a imagem de patriota cujos contornos foram, talvez, juntamente com os de invejado, os mais nítidos do texto:

Como ressurge linda ... a pátria dos heróis! ... Eu vejo ... eu vejo ainda ... os séculos vindouros ... Pedir-lhe ... o seu esforço ... e coroá-la de louros!. .. Ei-Ia!... Como ergue ... a fronte ... por toda a eternidade! ... 46

A peça de Eduardo Damas, apesar de escrita nos anos 50, não guarda muita distância das técnicas utilizadas por Artur Botelho. Um «Prólogo», em que um contemporâneo de Camões em Coimbra mostra

46 Artur Botelho, Camões, drama heróico, Porto, Chardron, 1919, p. 210-211.

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ao filho o túmulo do Poeta, serve de pretexto à peça, que se desen­volve com base em estudos de Juromenha, Storck, Teófilo Braga, Carolina Michaelis e Campos Júnior, dentro do melhor estilo do drama histórico. Lá estão as personagens numerosas, de existência real, tiradas das fantasiosas biografias ou da ficção lfrica camoniana: D. Manuel de Portugal, D. Sebastião, Paula Vicente, Caterina de Ataide, a Infanta D. Maria, Pero de Andrade Caminha, Fernão da Silveira, Chiado, Luis Franco, o Jau, Ana de Sá, Bárbara, Lianor, e muitas outras. O cenário busca o realismo que a personagem Camões reitera ao recital várias vezes os seus versos. A paixão por Catarina, o amor filial 47, a amizade esboçam no mito um contorno de afectivi­dade. A coragem é outro traço que surge, mas o que prevalece é o amor do canto ligado ao amor pátrio: Camões é, sobretudo, um poeta que deseja escrever sobre a sua terra. Esta é não só a máscara dramática mais usada na peça, como também a que o Poeta ostenta na cena final: moribundo, ele fica a saber que Os Lusíadas foram tra­duzidos para o castelhano, recebe os versos que Torcato de Tasso lhe dedicou e, insistentemente, durante toda a sua agonia, repete que o seu poema foi a recompensa de seus sofrimentos e que servirá de norte aos portugueses no difícil momento atravessado pela pátria.

Como o texto de Eduardo Damas, é o de Quirino da Fonseca, baseado num romance do autor, datado de 1934: Luís de Camões­o Trinca-Fortes. O subtítulo da peça - evocação dramatizada - já mostra a intenção de reviver o mito. Sem obedecer propriamente a uma relação de causa e efeito, mas também sem pretender distanciar da cena o espectador-leitor, sucedem-se quadros que mostram o Poeta como um critico da cobiça, um patriota, um abandonado das benesses da corte, mas acabam por privilegiar a sua face amorosa.

Datada de 1972 e com uma estrutura diferente dos tratamentos dados até então a Camões e a seu poema, surgiu no Rio de Janeiro, como já tivemos ocasião de mencionar, a ópera-rock Por Mares Nunca Dantes Navegados 48. É uma colagem de excertos de Os Lusíadas e da peça de Machado de Assis, Tu só, Tu Puro Amor. Também ela, apesar da forma fragmentar de apresentação, da inserção de um narrador (Frei Bartolomeu Ferreira) e do ritmo escolhido, acaba por reforçar o mito do grande lírico e do incompreendido cantor da pátria: em

47 Esta peça é a única, mesmo levando em conta as do século XIX, em que os pais de Camões são dados como vivendo juntos na Mouraria.

48 O texto, não publicado, pode ser consultado na sede da Sociedade Bra­sileira de Autores Teatrais.

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cena final que os autores recomendam apoteótica, surge Bocage a dizer de sua dívida poética para com Camões; este recita o soneto «Em prisões baixas fui atado»; um grande coro, ao qual não falta acompanhamento coreográfico, canta os primeiros versos de Os Lusíadas.

O mesmo acontece com o texto de Natália Correia. Se o seu O Encoberto é marcado pela desmitificação, o que, aliás, lhe valeu a suspensão do espectáculo, o mesmo não se pode dizer de Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente. Apesar de ter sido também proibida (a censura tem razões que a própria razão desconhece), é uma proposta encantatória: música ritual, encenação vertiginosa, linha dramática ascendente, iluminação, tudo reforça o clima de sonho e serve de enlevo à plateia.

Relações de causa e efeito põem o espectador/leitor em crescente tensão, fazem-no esquecer-se de si e viver o momento, identificando-se com Camões, figura central e praticamente única da peça, já que seus adjuvantes/admiradores não têm especial relevo, nem tampouco seu «Salieri» em versão de poeta - Pedro de Andrade Caminha.

Neste viver Camões, o discurso estilizador e parafraseador de que se vale a autora assume grande importância, pois, estabelecendo uma intertextualidade de semelhanças 49, torna legitimas personagens e cena.

É preciso lembrar que citar é um discurso de autoridade, já que a própria prática da justiça é feita através de citações da Lei, mas também é preciso ver que a citação traduz um acto de leitura e um acto de escrita: como acto de leitura implica uma operação de corte - uma ex-citação; como acto de escrita, uma in-citação que, ao produzir-se, produz um novo sentido.

Num compromisso com a mímese, que os cenários, o guarda­-roupa e a caracterização das personagens corroboram, Natália chama à cena ideias e autores contemporâneos de Camões: André Falcão de Resende discorre sobre o desconcerto do mundo e busca o teste­munho dos versos de Gil Vicente para falar da sisudez do paço (EM, p. 17) 50 e declama Sá de Miranda, para criticar as atitudes cama­leónicas dos homens da corte (EM, p. 23).

49 Cf. Afonso Romano de Sant'Ana, Paródia, Paráfrase & Cia., São Paulo, Ática, 1986.

so A partir daqui, as citações do texto de Natália Correia, Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente, Lisboa, Afrodite, 1981, serão feitas pelas iniciais EM segui­das do número da página.

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A história e a estória se confundem; o drama se tece com fios de origens diferentes, mas de igual fantasia. Juromenha, Faria e Sousa, Storck, José Hermano Saraiva registam; o texto de Natália Correia não discute e acrescenta. A suposição, por exemplo de que Camões teria sonhado com Os Lusladas durante o exilio (cf. Faria e Sousa) toma foros de verdade.

Natália privilegia o lado amoroso do poeta e tenta estabelecer, a partir dos textos liricos, uma biografia. E não fora Camões a perso­nagem central, é sua a lirica mais citada. Composições na íntegra ou estilhaços de versos permeando textos em prosa brotam da fala da personagem, buscando conferir-lhe autenticidade.

No ardor pela Infanta, o poeta recita «Num tão alto lugar, de tanto preço ... (EM, p. 30-31) e «Cresce desejo meu, pois a ventura ... » (EM, p. 48). Exalta-a, ainda, nos versos com que humilha os olhos verdes de Catarina e glosa o mote dado por Pero de Andrade Caminha (<<Sois formosa e tudo tendes/Senão que tendes os olhos verdes») (EM, p. 44).

À Catarina dedica «Alma minha gentil que te partiste / ... /», quando em Goa, sabe de sua morte. Antes, o despedir-se dela lhe inspirara «Aquela triste e Ieda madrugada».

Referindo-se à sua própria vida, Camões glosa o mote «Perdigão perdeu a pena», que lhe dá André Falcão de Resende (EM, p. 62); resume suas desditas declamando «Erros meus, má fortuna, amor ardente» e compõe «O dia em que nasci moura e pereça» (EM, p. 220), maldizendo-se por ter incutido ideias de conquista em D. Sebastião.

Mais do que os versos que declama, o que confere à personagem Camões um estatuto de verdadeiro é o facto de seu discurso ter disse­minadas expressões consagradas na lirica camoniana. O poeta fala, assim, a sua própria lingua. A incerteza da vida, a instabilidade dos sentimentos, a sensação de estar no labirinto e, ao mesmo tempo, a ideia neoplatónica do amor traduzem-se, por exemplo, no seguinte texto: «Mas este desconcerto de querer voar ao céu, estando em terra, só por ti pode a minha alma descansar. Se noutra busquei desumanas glórias de amor, em ti repouso como a matéria simples na sua justa forma» (EM, p. 70). Estas palavras são familiares ao espectador/ leitor, porque mosaicos extraídos dos sonetos. E, sob a chancela de Camões poeta, o espectador acredita no Camões personagem. Vale a pena confrontar: «este desconcerto de querer voar ao céu, estando em terra» tem por base «Estando em terra, chego ao céu voando» (do soneto «Tanto de meu estado me acho incerto»); « ... só em ti pode a minha alma descansar» vem de «em ti somente pode descansar/pois consigo tal alma está ligada»; « ... como a matéria simples na sua justa

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forma» é a fala dramática do verso «como a matéria simples busca a forma» (de «Transforma-se o amador na cousa amada»).

É também o soneto «Tlansforma-se o amador na cousa amada» que ecoa no diálogo do poeta com a Infanta (EM, p. 52): «Bastaria uma ordem vossa e contentar-me-ia em contemplar-vos dentro da minha alma». Os versos de «Busque amor novas artes, novo engenho» transparecem na fala «Busque Amor, nos olhos verdes de Catarina novas artes para me atormentar» (EM, p. 66).

Já quando Camões se refere a Catarina (EM, p. 26) - «Que angélica figura: E diz-me o seu olhar suave que está tão firme em amar-me como eu em adorá-la» -, percebe-se a retomada da expressão «angélica figura» do soneto «Presença dela, angélica figura», mesclada a formas que evocam não só o discurso do poeta como o do maneirismo.

Um novo tecido ao qual facilmente se atribui a assinatura de Camões poeta, pode ser visto ainda quando Camões personagem se dirige à Infanta (EM, p. 28): «Que altiva dignidade! Que ondulados fios de ouro reluzente! Que doce mover de olhos em mil divinos raios encendidos! ! 6 nacarada boca que entre corais e pérolas aparece! 6 visão de que não sou digno. A furto salteias-me a razão e cegas-me de todo». A ele subjaz o soneto «ondados fios d'ouro reluzente». Além do primeiro verso do primeiro quarteto, compõem o novo texto os dois primeiros versos do segundo quarteto: «olhos, que moveis tão docemente, lem mil divinos raios encendidos». O primeiro terceto - «Honesto riso, que entre mor fineza I de pérolas e corais nasce e perece, I se n'alma em doces ecos não o ouvisse» - tlansforma-se em «6 nacarada boca que entre corais e pérolas aparece». E os dois primeiros versos do último terceto - «S'imaginando só tanta beleza I de si, em nova glória, a alma se esquece, /. .. 1» - ecoam em «6 visão de que não sou digno! A furto salteias-me a razão e cegas-me de todo!»

Atualizando parte do soneto «Ah! minha Dinamene! assim deixaste I quem não deixava nunca de querer-te» e valendo-se de expressões do famoso «Um mover de olhos brando e piedoso», Natália compõe um novo mosaico para a fala do seu Camões:

9

E tu Ti-Nan-Men? Que farei contigo? 1 ... 1 És a minha preferidal ... Não. Não te mexas ... Deixa-me olhar-te, nessa tua imobilidade de ídolo. Um mover de olhos brando ... Um doce e humilde gesto... Um desejo quieto e vergonhoso... Um encolhido ousar ... Um longo e obediente sofrimento ... I ... 1 Diz-me, minha libélula, que fazes se te casares com umpássaro?!. .. 1 Não

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percebes uma palavra desta lingua de pedregal e silvos. Mas eu respondo por ti. Voas atrás dele. E se te casares com um cão? Corres com ele como uma cadelinha, e se te casares com um náu­frago, como eu? Afogas-te com ele. Mas eu canto-te:

Ah! minha Dinamene! assim deixaste Quem nunca deixar pode de querer-te? Que já, Ninfa gentil não posso ver-te Que tão veloz vida desprezaste. (EM, p. 123)

Além destes intertextos cujos fios não são difíceis de identificar, há outros, de matizes mais variados, nos quais o que se percebe é o tom da época, aguarelado pelo vocabulário e pela sintaxe: «1 ... 1 preso já estou de uns olhos que me furtaram, a liberdade» (EM, p. 22); «Não os tenho. Para não vestir seguilha e saragoça mais me acode a vossa protecção do que a minha nobreza que é das que andam a tinir» (EM, p. 27); «1 ... 1 Se alta e grande é a casa deste sentimento, com razão, a razão perco. E quanto mais perdida a vejo, na sua própria perda a ganho» (EM, p. 46); «Esta é pelos olhos verdes de Catarina... Esta é pelas suas tranças de ouro... Esta é pelo colo de neve... Esta é por corações amantes que titulos e rendas não podem esperar ... » (EM, p. 83).

Mas não só o texto camoniano lílico entra na tessitura dramática de Natália Correia: também o épico. Durante as alucinações do poeta, surgem-lhe cenas d'Os Lusíadas (que está compondo). São vozes que o impulsionam a cantar os feitos dos portugueses, tornando-o um escolhido. As estâncias 113, 46, 49, 50, 51, 52 e 54 do Canto II, que, no poema, são ditas pelo lei de Melinde ou por Júpiter, passam, na peça, a ser enunciadas por um coro de vozes masculinas, pelos navegantes e pela própria personagem Camões (EM, p. 124-127).

TEXTO DRAMÁTICO

Vozes Masculinas,'

Razão tem em pedir eterna glória Quem fez obras tão dignas de memória

Primeiros Navegantes,'

Fortalezas, cidades e altos muros Pelos Lusitanos vereis edificados

TEXTO ÉPICO

Rei de Melinde:

Mais razão há que queira eterna glória Quem faz obras tão dignas de memória

(II, 113, v. 7-8)

Júpiter:

Fortalezas, cidades e altos muros Por eles vereis, filho, edificados.

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CAMÕES E PESSOA - DOIS POETAS NO PALCO 131

Segundos Navegantes:

Os reis da índia, livres e seguros Vereis ao Rei Potente subjugados

Terceiros Navegantes:

E vereis o Mar Roxo tão famoso Tomar-se-lhe amarelo, de enfiado, Primeiros Navegantes Vereis de Ormuz o, reino, Po,deroso Duas vezes tomado e dominado

Segundos Navegantes:

Vereis a inexpugnável Dio forte Que dois cercos terá do,S lusos sendo Razão para que ali sem preço, e sorte Mostrem feitos grandíssimos fazendo,

Terceiros Navegantes:

Goa vereis aos mouros ser to,mada A qual virá depois ser a senhora De todo o Oriente sublimada Com triunfos da gente vencedora

Primeiros Navegantes:

Vereis a fortaleza sustentar-se De Cananor com Po,uca fo,rça e gente Segundos Navegantes E vereis CaIecu desbaratar-se Cidade populosa e tão potente Terceiros Navegantes E vereis em Cochim assinalar-se Nosso feito soberbo e ifliolente

Todos os Navegantes:

De Nações diferentes triunfando

E às mais ilhas mais remotas do Oriente Ser-nos-á todo o Oceano obediente

Os reis da índia, livres e seguros Vereis ao Rei Potente sojugados

(II, 46, v. 1-2 e 5-6)

Júpiter:

E vereis o Mar Roxo tão famoso Tornar-se-lhe amarelo de infiado.

Vereis de Ormuz o reino po,deroso Duas vezes tomado e so,jugado,

(II, 49, v. 1-4)

Júpiter:

Vereis a inexpugnável Dio forte Que dois cerco,s terá do,S Vo,SSOS sendo, Ali se mostrará sem preço e sorte Feitos de armas grandíssimos fazendo

(II, 50, v. 1-4)

Júpiter:

Goa vereis aos mouro,s ser tomada A qual virá despois ser a senhora De todo, o, Oriente, e sublimada Cos triunfos da gente vencedora

(II, 51, 1-4)

Júpiter:

Vereis a fortaleza sustentar-se DCil Cananor, com pouca força e gente;

E vereis Calecu desbaratar-se Cidade populo,sa e tão potente

E vereis em Cochim assinalar-se Tanto um feito soberbo e insolente

(II, 52, v.I-6)

Júpiter:

De nações diferentes triunfando, E, sujeita a rica Aurea Quersoneso E as ilhas mais remotas do Oriente Ser-lhe-á todo o Oceano obediente

(II, 34, v. 4, 6-8)

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132 MARIA APARECIDA RIBEIRO

Luis de Camões: Júpiter:

Que cítara jamais cantou vitória Que cítara jamais cantou vitória Que assim mereça eterno nome e glória? Que assi mereça eterno nome e glória

(II, 52, v. 7-8)

É de notar que a letra do texto de Os Lusíadas não sofre grandes alterações, sendo imediatamente reconhecida no novo intertexto. Aparentemente, mudam apenas os alocutórios, numa forma de inter­textualidade a que Laurent Jenny 51 chama interversão de situação enunciativa. Mudam os emissores (Rei de Melinde> Vozes Mas­culinas; Júpiter> Navegantes; Júpiter> Camões) e os receptores (Gama, portugueses, súbditos do Rei de Melinde> Camões; Vénus> Camões; Vénus> chinesas e público). No entanto, as transformações páram aí, pois ocorre uma nova contextualização que inverte o sentido do poema.

Não é mais o Rei de Melinde que conclui sobre o valor dos por­tugueses, mas o próprio povo lusitano é que exorta Camões a escrever o poema: os versos «Mais razão há em pedir eterna glória/Quem fez obras tão dignas de memória», n'Os Lusíadas na fala do Rei de Melinde e, na peça, pertencentes às Vozes Masculinas são actualizados para «Razão 1'em em pedir eterna glória/Quem fez obras tão dignas de memó­ria» (EM, p. 124-129) e assumem, no delirio de Camões-personagem, o carácter de clamor, de chamamento, de desígnio.

Os «Vereis» do Canto II, est. 45 e 49, deixam de ser uma plOmessa da vitória portuguesa feita por Júpiter a Vénus, para constituírem o próprio texto épico que as personagens ditam ao poeta em pleno pro­cesso de criação poética.

À conclusão do Pai dos Deuses de que nunca existiu vitória tamanha substitui uma frase interrogativa: é o próprio poeta a duvidar ser ele o primeiro a cantar os feitos lusitanos.

Corroborando o sentido celebratório da peça, a ênfase dada à conquista cede lugar ao enfoque do poeta como um ser eleito, ao pro­cesso de criação como um delirio, como um chamamento da Fortuna e um acto de amor.

Eis ai a escritura como um acto de memória, mas também de esquecimento, como nos lembra Delrida 52. A in-citação esquece o

51 Laurent Jenny, «A estratégia da forma», Laurent Jenny et alii, Poetique­revista de teoria e análise literárias, lntertextualidades, Coimbra, Almedina, 1979, p. 5-21.

52 Cf. Jacques Derrida, De la Grammatologie, Minuit, Paris, 1967.

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sentido primeiro de Os Lusíadas e traz à tona uma nova ideia; assim, ao mesmo tempo em que é morte, dá também vida.

Num segundo momento do processo de gestação do poema pelo poeta, momento de êxtase para o espectadorjleitor, surgem um coro de mulheres e o Velho do Restelo. As mulheres, numa interversão da situação comunicativa, passam de objecto do discurso a sujeito: o que, em Os Lusíadas, a respeito delas diz Vasco da Gama, agora lhes surge na própria voz:

Mães, Esposas, Irmãs já por perdidos Nos largos oceanos vos julgamos Por lusitanos sonhos desmedidos A branca areia de lágrimas banhamos 6 desesperação, ó frio medo De já vos não tornar a ver tão cedo. (EM, p. 127)

Os dois primeiros versos têm origem em estilhaços do Canto IV, estância 89, versos 5 e 2, sendo que a expressão «largos oceanos» subs­titui «longo caminho» (v. 1):

Em tão longo caminho Por perdidos as gentes nos julgavam,

Mães, Esposas, Irmãs que o temeroso

No novo texto surge um verso estranho à letra de Os Lusíadas, mas cujo espirito lhe pertence: «Por lusitanos sonhos desmedidos». A ele se seguem outros fragmentos do Canto IV. «A branca areia as lágrimas banhavam» (est. 92, v. 7) serve de suporte a «A branca areia de lágrimas banhamos» e «a desesperação e frio medoj De já não nos tornar a ver tão cedo», com a actualização necessária transforma-se em «6 desesperação; ó frio medoj De já não nos tornar a ver tão cedo» (EM, p. 127).

Também a fala do Velho do Restelo (EM, p. 127) se renova, através da composição em mosaico:

6 vão cometimento alto e nefando (IV, 104, v. 5) 6 gostosa vaidade que no perigo (IV, 99, v. 1) A antiga inocência violando (cf. IV, 98) Despovoando vais o reino antigo (cf. IV, 101, v. 3)

Nesta nova contextualização das mulheres e do Velho do Restelo, não desaparece o sentido do avesso da conquista existente no texto

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eplCo, mas, antes, aguça-se a ideia de sofrimento e perda ai latentes, para valorizar os feitos portugueses. Isto fica patente quando, após a visão das mulheres e do Velho, a personagem Camões, assumindo agora as falas de Gama (V, 4, v. 1-4) e do Narrador (I, 106, v. 1-2 e 5-8), numa nova interversão de situação comunicativa, diz:

Assim foram abrindo mares Que geração humana alguma não abriu As novas terras vendo e os novos ares Que o geneloso Henrique descobriu. No mar, tanta tormenta e tanto dano, Tantas vezes a morte apercebida, Onde pode acolher-se um fraco humano, Onde terá segura a sua vida Que não se arme e não se indique o céu severo Contia um bicho da terra tão pequeno? (EM, p 129)

Reforçando as ideias da alucinação e dos feitos que clamam por quem os cante, a peça recorre ao texto da Mensagem O Mostrengo é o Adamastor; o piloto, Vasco da Gama Ao texto de Fernando Pessoa somam-se mais estilhaços de Os Lusíadas para compor o delirio da personagem Camões (EM, 131-132) Alternam-se as vozes dos Marinheiros, do Piloto e de Gama, conferindo maior dinamismo ao episódio da tromba marinha, já presentificado, no texto épico, pelo uso do discurso directo E, se nem todas as falas de Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente encontram explicita correspondência n'Os Lusíadas, esta existe, ainda que sob a forma latente:

TEXTO DRAMÁTICO (EM, p. 131-133)

Vasco da Gama:

Alerta, alerta estai que o vento cresce Daquela nuvem negra que aparece

Piloto:

Amaina! Amaina! Amaina a grande vela

TEXTO ÉPICO

o Mestre:

Alerta (disse) estai, que o vento cresce Daquela nuvem negra que aparece

(VI, 70, v. 7-8)

o Mestre:

Amaina (disse o mestre a grandes [brados)

Amaina (disse) a grande vela!

(VI, 71, v.4-5)

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CAMÕES E PESSOA - DOIS POETAS NO PALCO 135

Marinheiros:

É medonha e súbita a procela

Vasco da Gama:

Alija! Alija que a nau está alagada!

Marinheiros:

Virgem Sagrada!

Vasco da Gama:

Dai à bomba! à bomba sem cessar!

Marinheiros:

Ai que nos vamos afogar!

Um Marinheiro:

Terra ... terra enxergamos pela proa!

Marinheiros:

Terra é de Calecu que demandamos

Por onde o Ganges murmurando soa

Gama:

Quando dá a grande e súbita procela

(VI, 71, v.2)

o Mestre:

Alija tudo ao mar, não falte acordo!

(VI, 72, v. 7)

............................ ~ ..................... .

Narrador:

Enxergarão alta terra pela proa

(V. 92, v.4)

Piloto Melindano:

Terra é de Calecu se não me engano

(VI, 92, v. 8)

Narrador:

Por onde o Ganges murmurando soa

(VI, 92, v. 2)

A fala de um dos marinheiros inclui um dado estranho a Os Lusía­das - a invocação à Virgem Maria. É a própria mãe de Deus que aparece no novo texto. Surge depois de Vasco da Gama para agia­decer à Divina Guarda, num discurso quase idêntico ao que a ele per­tence no texto épico. Vem cercada de um coro de anjos e confundida com a infanta. É o clímax de delirio de Camões-personagem, que coincide com o clímax da narrativa de Os Lusíadas. Os anjos dão lugar às Ninfas e Maria é a Infanta-Vénus. A prece de Camões mostra esta fusão:

Ó Maria Celeste e derivada Do mar, para favor dos lusitanos (EM, p. 134)

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136 MARIA APARECIDA RIBEIRO

Também, e mais uma vez, o texto épico e o texto dramático se fundem na resposta da Infanta:

TEXTO DRAMÁTICO

Infanta-Vénus:

Bem vejo as lusitanas fadigas Que eu já de muito longe favoreço E porque tanto imitam as antigas

(Para as Ninfas)

Preparemos aquáticas donzelas Umafesta aos fortíssimos varões Com danças e coreias, porque nelas Influirão secretas afeições

TEXTO ÉPICO

Vénus (IX, 38, v.I-2, 5-7):

Bem vês as lusitânicas fadigas Que eujá de muito longe favoreço / ... / E, porque tanto imitam as antigas Obras dos meus Romanos, me ofereço A lhe dar tanta ajuda, em quanto posso.

Narrador (IX, 22, v. 1-2, 5-6):

Ali quer que aquáticas donzelas Esperem os fortíssimos barões / ... / Com danças e coreias, porque nelas Influirá secretas afeições

Vale notar que, ao transpor o discurso do Narrador pata a fala da Vénus-Infanta, Natália muda o sujeito do verbo influir: no texto épico, é Vénus quem influirá; no texto dramático, o objecto secretas afeições passa a sujeito, além disso, no texto épico, nelas refere-se a aquáticas donzelas, isto é, Vénus fará que as ninfas sejam tocadas pelo amor; no dramático, no entanto, as danças e coreias é que terão os eflúvios amorosos.

Como nos outros trechos de Os Lusíadas falados pelos Navegantes, pelo coro de Mulheres e pelo Velho do Restelo, também o episódio da Ilha dos Amores, se toma mais vivo, mais presente, e a visão de Camões­personagem mais extasiante para o espectador/leitor com essa inter­versão de função enunciativa.

Corroborando a legitimidade da personagem, Camões recita, livre de detirio, as estâncias 1 e 2 do Canto I. Sobejos exemplos haveria para dar desta intertextualidade do discUrso de Camões e do de seu tempo com o de Natália Correia, o que tanto contribui para o envolvi­mento do espectador e para a reiteração do mito. Mais vale mostrar, no entanto, outros aspectos bastante explorados pela peça e que também favorecem a abordagem dramática proposta. Trata-se da caractelÍ­zação das personagens, da iluminação, da música e da coreografia. Enquanto a ptimeira, como já se disse, reitera o compromisso com a mimese, aquelas ajudam a manter o clima de sonho, ao qual, aliás, o próprio Jacinto Ramos se refere em seus apontamentos sobre a ence-

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nação (EM, p. 239). A iluminação, principalmente, cria um teatro de êxtases. Alguns exemplos extraídos das rubricas podem mostrá-lo:

Na penumbra do templo entreluz o ouro que, profusamente, reveste, em riquíssima talha, as paredes, as colunas e os altares. Vénus roxas velam as imagens, pondo manchas violáceas nas opulências do ouro que, por enquanto recatadas na meia luz da igreja, devem ser cenograficamente muito acentuadas (EM, p. 25).

Cai de joelhos (Camões) perante a visão (da Infanta) que o cega. A iluminação atinge o auge, batendo nos ouros que refulgem orgiasticamente. Neste apogeu luminoso, caem abruptamente os véus roxos que envolvem as imagens, em concordância com o maior resplendor que circunda a Infanta. Ao som de uma aleluia, a cortina corre lentamente sobre esta apoteose de luz e unção amorosa do poeta (EM, p. 29).

As luzes vão baixando até que ficam só, iluminados, o Poeta e a Princesa que, imóvel, também o fixa. É uma cena muda, de enfeitiç,amento mútuo. (EM, p. 48).

Camões a vê alongar-se qual gaze que flutua no bruxulear da aurora que matiza o jardim de cores fantasmagóricas / ... / O jardim encantado desaparece por fases na escuridão, como as páginas de um sonho que se fechasse uma a uma (EM, p. 72-73).

Mas é principalmente a conjugação de todos os apelos - visual, sonoro, cinético - que leva Jacinto Ramos a falar em «teatro total», esquecendo-se de que ele se fundamenta em necessidades diferentes das da peça em questão tEM, p. 135-136). Por vezes são tantas as indi­cações, e a rubrica atinge um tal descritivismo que o texto mais tende ao romance ou à cena de um filme (cf. EM, p. 82-83).

E essa «ditadura do escritor» não deixa ver saída para o labirinto: o amor ardente é a causa dos erros que a má fortuna vem punir; mas o castigo resulta em mais amar/mais errar: «Não tenho culpa de que a beleza não conheça limites. Se me deslumbra um rosto, logo noutro mais esplende, para nos submeter à portentosa lei do infinito de que emana» (EM, p. 28).

Amar é, portanto, uma busca do inatingível, da perfeição. E a busca do saber, um caminho para a morte: «transforma-se o amador na coisa amada, por virtude do muito imaginar». (EM, p. 301).

Catarina de Ataide fascina o poeta, mas a Infanta D. Maria logo se torna o objecto de seu amor. E, por causa deste amor, «perdigão perde a pena», o poeta seu chão: Ceuta é o desterro.

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No entanto, «se de queixumes se socorre, lança no fogo mais lenha»: Catarina de Ataíde volta à cena e Camões a Goa, para cair nos braços de Bárbara. Mas não é «a captiva que o mantém captivo»: se a notícia da morte de Catarina o liberta, torna a acender-lhe a chama, a ideia de que a Infanta não mais se casará. Em Filode'l:no, encenado para o Vice-Rei, o poeta mostra a comédia como forma de driblar o impossível: « ... acuda-me a comédia. Com ela, tisonhamente engano os vossos preconceitos» (EM, p. 111).

O proibido pela ordem é permitido no auto representado: Flori­mena tem o rosto da Infanta e Dionisa, como Catarina, é prima de Filodemo, a arte é a forma de realizar o sonho.

Esta ideia não é, no entanto, o que a peça reforça, mas a de que o amor ardente é a desmedida que leva o poeta ao castigo (desta vez, a China - Provedor de Defundos e Ausentes) e ao mais amar (Dina­menes). No desterro, mais uma vez, a fantasia, o canto como forma de suprir a falta: surgem Os Lusíadas, escolhido que foi o poeta pelas «sombras de uma glória que se chega» (EM, p. 124); no poema, a visão da amada lnfantajVénus, é o prémio do poeta/Gama pela ousadia, mas prémio que só existe - e Natália faz questão de enfatizá-Io­no delírio.

À leituIa de Os Lusíadas, D. Sebastião, esperança de novos dias, mais se motiva a partir, a deixar Portugal «em desgovernada grandeza» (EM, p. 124). O rei interpreta às avessas o poema de Camões, e, mais uma vez, é desmistificado por Natália (Cf. O Encoberto).

Pela voz de Francisca de Aragão, no último acto, a desmedida camoniana é identificada com a própria feição dos lusitanos:

Pero de Andrade Caminha: Senhora, porque protegeis tanta loucura?

Francisca de Aragão: É a loucura dos lusíadas. Caminha: Luís de Camões compraz-se em escandalizar o

mundo. Francisca de Aragão: Haverá maior escândalo que este povo

pequeno e pobre que, conhecendo mares desconhecidos, num século descobriu metade do mundo? Desterremos os corpos em temeridades que afeiçoam a alma ao desprezo pela sensatez.

Caminha: Luís de Camões não é um insensato em ser pródigo com os bens alheios / ... / É tão sequioso este doidivanas que, tendo os pés no lodo, até ousou cortejar uma estrela.

Francisca de Aragão: É a paixão dos lusíadas, a sedução do remoto, encarnada na mulher inatingível (EM, p. 161-163).

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A coincidência da morte de Camões com a da pátria em Alcácer Quibir é também enfatizada nesta identificação de Camões/povo por­tuguês. E a fala do Padre Manuel Correia, durante a agonia do Poeta, enfeixa e resume o que já disse Francisca de Aragão e ficou disseminado por toda a peça: «Este homem é ... todos nós, a nossa grandeza, e a nossa desgraça. A nossa humildade e os nossos extremos, a nossa luz. E as nossas trevas» (EM, p. 232). Os erros meus, má fortuna, amor ardente podem ser lidos como erros nossos, azares lusos, luso erotismo. Na encantatória proposta de Natália Correia, a identidade Camões/portugueses/espectador-Ieitor. De todos é a busca da per­feição, de todos, o ideal amoroso, de todos, o labirinto e a desilusão. A peça reduplica o mito camoniano e o estende ao povo português.

O AVESSO DO MITO

José Baldaia Moreira desejou «situar Camões na sua época e na época descrita n'Os Lusíadas. A trajectória crescimento > decadência que vai de 1385 a 1580, marcada pela alteração sócio-politica da intervenção 'popular' nos destinos do pais» 53. É o primeiro texto a pretender dar a uma peça sobre o poeta um tratamento épico: a presença de um narrador, a apresentação de quadros de diferentes épocas e a recomen­dação de um tom normal no dizer de te~tos de espírito grandiloquente são as técnicas usadas para atingir este objectivo. Mas, na intenção de «'desmitificar' o dito 'Épico' (reduzindo-o à sua dimensão real de homem também vulgar e anuaceiro)>> 54, o autor não chega a fugir ao mito: acaba por reforçar os traços de louco e beberrão, que este já contém, e associa a imagem do poeta à de Cristo, o que é uma forma de designar o mártir e o profeta, máscaras possíveis do perseguido cantor de verdades. Finalmente, num clima «tragicamente grotesco» que se dilui até atingir o apenas trágico (construido por pessoas ves­tidas de preto, curvadas sobre si mesmas e entoando cantos fúnebres, após a morte de D. Sebastião), o Camões de Baldaia Moreila, repe­tindo palavlas de Vénus no «Concilio dos Deuses», recupera a aura de patriota que permanentemente tem envolvido o Poeta.

Nove anos mais tarde que Baldaia, Hélder Costa, ligado aos gru­pos A Barraca e A Comuna - teatro de pesquisa, nos quais sobressaem

53 José Baldaia Moreira, Ensaio e Camões - duas propostas de trabalho cénico, Lisboa, Ministério da Educação e Investigação Científica/Secretaria de Estado dos Desportos e Acção Social Escolar, s.d. (Cadernos de Juventude e Cultura), p. 21.

54 Ibidem.

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a criação colectiva e a preocupação com o teatro popular -, escreve A Viagem - Camões, Poeta Prático 55.

A partir do titulo, já se vê que a figura e Camões não é a principal, mas peça secundária de um acontecimento: se ele é uma das vozes que se levantam contra os abusos, o que o coloca numa posição especial, e um poeta - marca da sua individualidade -, é também um prático, errando ao sabor dos desmandos da Coroa, o que o iguala a muitos.

Optando por uma construção fragmentar, isto é por uma sequência de cenas em que a subordinação desaparece, ou é mínima, Hélder Costa busca o distanciamento, na tentativa de permitir a análise e impedir a mitificação: à apresentação de El Rei Seleuco à corte, ao ambiente do «Mal Cozinhado», ao amor por Violante/Joana/Dina­mene - flashes da vida de Camões - são misturados episódios do próprio século XVI português (a expansão império/fé, a peste, a censura e a nova ordem que se instaura, a partir da morte de D. Sebastião).

O avesso da conquista ganha ênfase: Vasco da Gama e seus com­panheiros falam de roubos e pilhagens, lembram que as riquezas não ficam com os fundadores (A V, p. 66-68). Pela técnica de simultaneidade, o autor contrasta a atitude sisuda de D. João II - que impede na corte um simples jogo de prendas - com o esbanjamento sem limites de rei e reino, com a improdutividade geral tA V, p. 47-52). A tirania é acentuada a partir do «coringa», técnica proposta por Augusto Boal, com quem Hélder Costa montou espetáculos pelos anos 60/70: as personagens que, no 1.0 acto, cena 3, representaram as forças políticas e sociais que condenam Camões à prisão, na cena 4 do mesmo acto, são os carcereiros. Mostra-se a nobreza da conquista sucedendo à nobreza de linhagem; o abandono do trabalho certo e duro do campo pela aventura; a mistura da fé ao interesse; a vitória colectiva sobre o mar, na qual se inclui Camões. O Adamastor, pela técnica do «coringa», é identificado com o Velho do Restelo: a glória traz também maldição.

Não só as falas das personagens, a técnica do coringa, o processo de fragmentação espacial e temporal são recursos didácticos: o cenário também contribui para desocultar o sentido da viagem. Por isso, há a preocupação de que ele não seja mero décor. Daí que as rubricas chamem a atenção para o facto de que o barco colocado em cena,

55 A partir daqui as citações de Hélder Costa, A Viagem - Camões, Poeta Prático, Coimbra, Centelha, 1982, serão feitas no próprio texto com as iniciais AV, seguidas do número da página de onde foram extraídas.

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como a maioria das imagens previstas, não admita representação naturalista, dado o carácter da peça (AV, p. 64); antes, ele deverá con­trastar com o resto da cena, intrometendo-se no que ela diz. É com este sentido que Hélder Costa também se vale do grotesco: um velho cardeal, numa alusão a D. Henrique, por exemplo, aparece «rodeado de padres e conselheiros a mamar numa mulher com enormes tetas de papelão», enquanto Ribeiro Chiado canta este trecho de Os Lusíadas. «Vê aqueles que devem à pobreza, / Amor divino, e ao povo caridade, / Amam somente mandos e riqueza, / Simulando justiça e integridade». (AV, p. 95-96).

Garcia de Orta e Diogo do Couto dividem com Camões o espaço destinado ao herói: vozes que se levantam contra a viagem sem retorno, são também marginalizadas pelo poder (No seu objectivo didáctico de mostrar que os processos de repressão se repetem na História, a última cena - a sucessão do Cardeal D. Henrique -, lembra a revolta de 1383, «calada com pulso forte»).

A visão que Hélder Costa dá do Poeta não é triunfante: o amor, traço pertinente do mito camoniano, comparece à cena, mas não como um dado de elevação - sentido em que Natália o tomou; o que se enfatiza é a face mulherenga, portanto, humana, comum, própria do carácter colectivo que o dramaturgo pretende conferir a Camões. Esta imagem de colectividade é, aliás, a marca que fica ao final da peça: Diogo do Couto regista os acontecimentos, a Inquisição desen­terra Garcia de Orta e faz-lhe um auto de fé, enquanto o melancólico «nô mais, musa, nô mais» é ouvido, num tom que, como a rubrica recomenda, fuja ao recitativo, para evitar o grand finale.

Utilizando também técnicas brechtianas, Jaime Gralheiro vale-se de efeitos circences e de teatro de revista, em ... onde vaz, luís? Suas personagens narradoras comentaristas são principalmente animadoras do espectáculo e reduzem-se, pela técnica do coringa já aqui men­cionada, a uma só: a do cauteleiro/chefe de trupe/escravo/camelô. Como se isto fosse pouco, o texto incorpora pregoeiros, mercadores, regateiras e bufarinheiros. E há bailados, música, muita música, da mais popular e sem romantismo: antes; uma música-gesto 56, evi­tando, o que Brecht chamou «teatro poético» 57.

56 Cf. Bertolt Brecht, Estudos sobre Teatro - para uma Arte Dramática Não­-Aristotélica, Lisboa, Portugália, s.d. p. 293-313.

57 Ibidem.

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Valendo-se da estrutura do vaudevil/e, Gralheiro procura neutra­lizar a empatia do espectador. Entre os quadros que se alternam e dialogam, cenas de Lisboa do século XVI (montadas sobre textos do Auto da Índia, de lnês Pereira e dos Enfatriões) e passagens da vida de Camões, em versões ditadas pela fantasia do autor e pela história oficial. Na voz da Professora Primária e de seus Alunos, do Professor Catedrático, do Político, o Poeta é «o épico da raça, o Trinca-Fortes, o eterno apaixonado, o que perdeu o olhono nOIte de África, o que escreveu Os Lusíadas (dos quais a escola difunde apenas a face lauda­tória e a forma, através da análise ... sintáctica). Acentuando «o espaço de contradição» em que se constitui Camões, Jaime Gralheiro faz contrastar, com os clichês que o discurso do poder e do saber insti­tucionalizado impuseram ao Poeta, aquilo que seria o seu avesso: o lado beberrão e mulherengo.

Ao contrário de Natália Correia, que explora os sonetos suposta­mente dedicados a personagens femininas da aristocracia e procura sacralizar a criação poética, mostrando Camões como um predestinado, Gralheiro, como Hélder Costa, vale-se de textos líricos supostamente dedicados a plebeias. Diferentemente deste, no entanto, acentua em seu Camões a faceta do poeta de taberna, cujos versos são conhecidos de todos os «degradados» 58. Enquanto os amores do Poeta por damas do Paço são apenas referidos (OVL, p. 91), as ninfas/musas perdem o ar de produtos da fantasia: passam a mulheres «de vida fácil». São a Esperança, a Alma, a Vida, frequentadoras do Mal Cozinhado, que com o Poeta, recitam «Que esperais, Esperança 1»; são «as delicadas filhas de Neleia» que saltam, com os versos do Canto IX de Os Lusíadas, para as ruas de Lisboa e para a boca de um palhaço. É importante transcrever uma das cenas, para que se possa notar o tom dessacra­lizador imprimido:

(Vai-se abrindo a cortina e por detrás, em posição semelhante à do painel, surge Camões cercado de mulheres da vida fácil, numa taberna de Lisboa: «O Mal Cozinhado»)

As delicadas filhas de NeIeia Com mil vozes de tão doce harmonia I am honrando a bela companhia Que (se eu não erro) por honrá-las veio.

58 A popularidade dos versos do Poeta é um dos traços também pertinentes ao mito camoniano, como pode ser visto em algumas peças românticas, principal­mente estrangeiras.

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Camões (cantando e bebendo, acompanhado das mulheres e de outros amigos):

Que fuera dormiredes Que non comigo, amor mio!

(Gargalhada) Esperança, dâ aqui um beijinho no teu poeta.

(Uma executa) Que esperais, Esperança?

Esperança: Desespero. Camões, Quem a causa disso foi? Esperança: Uma mudança. Esperança: Uma mudança. Camões (para a outra): Vós, Vida, como estais? Vida: Sem Esperança. Camões (para outra): Que dizeis, Coração? Coração: Que muito quero. Camões (para outra): Que sentis, Alma, vós? Alma: Que amor é fero. Camões (para todas): E, enfim, como viveis? Todas. Sem confiança. Camões. Quem vos sustenta? Todas. Uma lembrança. Camões. E só nela esperais? Todas. Só nela espero ...

(OVL, p. 40-42) 59

É também numa das cenas de taberna que Gralheiro aproveita para sublinhar a dupla leitura que o texto camoniano possibilita: «Vós sois uma dama ... de grão parecer/ Das feias do mundo ... sois bem apartada» é o soneto escolhido para mostrar que a leitura apenas dos hemistíquios oferece um sentido diferente daquele que o Poeta imprimiu à totalidade do poema. A letra de Os Lusíadas que, em Natâlia, ajuda a leviver a criação da epopeia e a mostrar o Poeta como tocado pela Fortuna (como jâ foi referido) e, em Hélder Costa, presen­tifica a viagem da qual Camões é um dos protagonistas, é usada por Gralheiro para ressaltar «o espaço de contradição», que permite à

59 A partir daqui as citações de Jaime Gralheiro, ... onde vaz, Luís?, Lisboa, Vega, s.d. serão feitas no próprio texto com as iniciais OVL, seguidas do número da página· de onde foram extraídas.

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esquerda e à direita ler o Poeta como um dos seus. Estabelecendo um diálogo entre Camões e Fernão Mendes Pinto (2. 0 acto, cena 5), o escritor enfatiza que, se o poema épico não canta «os que com hábito honesto e grave veio (por contentar o rei no ofício novo) despem e roubam o pobre povo», não deixa de fazer menção (e até exalta) a quem «as povoações sem muro e sem defesa, esbombardeia, acende e desbarata». Nesta cena (OVL, p. 115), Gralheiro ressalta a ideia de que foi esta face triunfante que interessou ao mito e à História, que deu fama a Camões e calou Fernão Mendes. É uma reiteração do sentido da 2. a cena do 1. o acto, quando a Professora Primária des­conhece o autor da Peregrinação, o Professor Universitário o chama mentiroso e o Político diz que a «História não se faz com aldrabões», enquanto Camões, olhado apenas pelo ângulo do louvor, tem todas as honras e espaços. Por outro lado, a última cena da peça, retomando a morte do Poeta, pobre e abandonado, juntamente com a derrota da Pátria, mostra o autor de Os Lusíadas como voz discordante, facto que ele próprio assume, prenunciando vir a ser um dia não mais a bandeira dos poderosos, mas a dos que contestam o poder, identifi­cada com o 25 de Abril:

Se te disserem que morro de fome ... diz-lhes que morro de nojo ... a minha pátria amada não é esta.

Tudo me quiseram roubar... Vai e diz-lhes que, um dia, tudo será meu.. E, então, eles levantarão o meu espantalho e farão dele uma bandeira ... Canalhas! ...

Eu sou o espaço da contradição: o tempo da verdade! da miséria em que morro, há de florir um cravo! E a minha pátria fica à espera para colhê-lo! ... (OVL, p. 156).

Para cortar o clima apoteótico que se estabelece com esta fala, Gralheiro retoma o modo do vaudevil/e: o escravo que acompanhava Camões transforma-se no cauteleiro do início da peça e apregoa can­tando a Lotaria de Camões. Fecha-se o ciclo; a sorte está lançada: ... onde vais, Luís? que contornos assumirá o mito camoniano? - é a pergunta que fica.

CAMÕES EM PEDAÇOS REPARTIDO

As oscilações da sorte do Poeta estão igualmente na peça de Eduarda Dionísio e Antonio Solmer, Dou-che-/o Vivo, Douche-/o Morto, que, embora tendo também um carácter narrativo, não toma Camões no

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sentido tradicional da personagem, isto é, «o eixo em torno do qual gira a acção e em função da qual se organiza a economia da narrativa» 60.

Principalmente não o coloca propriamente em cena; antes, evoca-o através de situações e insinuações.

Dou-che-Io vivo, dou-che-Io morto é o nome de um jogo pouco conhecido do século XVI, no qual, segundo consta, perde quem deixar apagar uma vela que passa de mão em mão, antes de responder a deter­minada pergunta. E toda a peça é, realmente, um jogo em que o vencedor é o próprio espírito lúdico.

Trata-se de uma comédia em quatro partes e um entremês (con­temporâneo), em que as personagens, além de não serem nomeadas em cena, isto é, de não merecerem um vocativo ou outra qualquer espécie de referência que as designe, distinguem-se apenas nas rubricas, por nomes criados a partir dos dos actores que as representaram. As falas que poderiam ser de Camões aparecem com a indicação LC, mas como quem as disse foi Luís Miguel Cintra, estabelece-se uma ambi­guidade de iniciais. Os outros actores foram Francisco Costa, Gilberto Gonçalves, José Manuel Mendes, José Pedro Gomes, Márcia Bréia que interpretaram, conforme as necessidades, falas atribuídas a Mer­cador Costa, cego Gilberto, D. Gilberto Gonçalves, Reitor Mendes, D. Manuel Mendes, D. Pedro Gomes, Marcinha, Ama Bleia, D. Maria Breia, aluno, ninfa, etc., etc.

As vinte e três cenas em que a peça está dividida ora têm como títulos episódios ou locais comumente relacionados à vida de Camões, ora se valem de nomes sugeridos pela própria sequência e que, facil­mente acabam por poder ser tomados como relacionados ao Poeta e sua época: «Natividade - Missa do Galo»; «Joane»; «A Máquina do Mundo»; «Aprendizagem»; «Até a Cidade»; «Xabregas»; «Paço»; «Desterros, Ceuta e Volta»; «Mal Cozinhado»; «Rixa»; «Cárcere, Perdão para a índia»; «Colóquio de Drogas»; «Cartas de Lisboa»; «O da Noiva»; «Galanteios, Pratos, Papelinhos e Outros Gracejos»; «Naufrágio»; «Histórias Trágico-Marítimas»; «O Roubo»; «A Peste»; «Juízos»; «Juízo Final- Réquiem».

A peça é uma colagem de textos de Camões, de seus contemporâ­neos e daquilo que se escreveu sobre eles e sua época, mas o diálogo, no sentido tradicional, em que os limites do «eu» e do «tu» se esta­belecem a partir das falas, é praticamente ausente. Esfumaçando-se

60 Carlos Reis & Ana Cristina M. Lopes, Dicionário de Narratologia, Coim­bra, Almedina, 1987, p. 306.

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as fronteiras, dilui-se também, e em muito, o compromisso com a mímese que os subtítulos alusivos à vida do Poeta e o seu texto poderiam sugerir. Torna-se mesmo impossivel construir um Camões ou qualquer outra personagem. Um exemplo poderá clarificar o que vimos dizendo:

Reitor Mendes: / ... / Acontece frequentemente que os astró­logos anunciam coisas exactas. Isto pode ser devido a duas causas; primeira, porque a maioria dos homens segue as suas paixões corporais; os seus actos sofrerão, portanto, a influência dos corpos celestes. Poucos há, e são os únicos avisados que moderam pela razão estas influências. É a razão pela qual os astrólogos para muitos casos anunciam coisas verdadeiras, sobretudo para os que dependem de agrupamentos humanos. Uma outra causa é a intervenção das demónios.

LC: Bem vês como se veste e faz ornado co largo cinto de ouro, que estelantes animais doze tIaz afigurados, apousentos de Febo limitados, olha, por outra parte, a pintura que estrelas fulgen­tes vão fazendo, olha a Carreta, atenta a Cinosura, Andrómeda e seu pai, e o Drago horrendo.

Ama Breia: É só engolir um nadinha de um extracto balsâ­mico. Por volta da meia-noite, aparece o Maligno sob a apa­rência de um bode monstruoso ou dum gato gigante com asas de trevas. Voa pela manhã, depois de me ter posto aos omblOs.

LC: Vê de Cassiopeia a fermosura e do Oriente o gesto turbu­lento; olha o Cisne morrendo que suspira, a Lebre e os Cães, a Nau e a doce Lira.

Reitor Mendes: Debaixo deste grande firmamento, vês o Céu de Saturno, deus antigo; Júpiter logo faz o movimento, e Marte abaixo bélico inimigo; o claro olho do céu, no quarto assento, e Vénus, que os amoles traz consigo, Mercúrio, de elo­quência soberana; com três rostos, debaixo vai Diana 61.

Como se vê, o que dialoga não são as personagens propriamente, mas recortes de Santo Tomás de Aquino, do Canto X de Os Lusíadas e do Relato de um Feiticeiro. O trecho do Canto. X distribui-se sem marca de oposição eu/tu, entre LC e o Reitor Mendes; este, por sua vez, coloca em cena tanto o pensamento tomistico quanto o camoniano.

61 Eduarda Dionísio & Antonio Solmer, Dou-che-Io vivo, Dou-che-Io MarIo, Lisboa, Armazém das Letras, s.d, p. 6-7.

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E porque o texto publicado não contivesse nenhuma rubrica indicadora de outros signos que pudessem auxiliar na decodificação da peça, como cenários, figurinos ou mesmo entonação dos actores, pro­curamos a critica, uma vez que Dou-che-lo Vivo, Dou-che-lo Morto foi levada à cena (pela Cornucópia, no Teatro do Bairro Alto, a 19/5/81). Ficamos a saber, então, que as músicas escolhidas para o espectáculo de então, segundo o critico Augusto Vilela (Diário de Lisboa, 20/5/81), pertenciam ao século XVI, ao repertório tradicional português, ao do Norte de África, ao do Japão, ao do Camboja e a um do compositor moderno que se inspira em temas orientais - Rão-Kyao.

O espaço cénico e a própria encenação, conforme se pode ler em CaIlos Porto (Diário de Lisboa, 27/5/81) privilegiaram o infantil, o circense, o lúdico que, enfim, o próprio titulo sugere: são linhas tra­çadas no palco como que para o jogo das macacas; são brincadeiras como as dos quatro-cantos, a da cabra-cega, do chapéu/barco de papel (tipo «Marcha, Soldado»), são elementos reversíveis como o pedaço de madeira que balança ora cavalo ora barco, as espadas/remos/ muletas, as cordas de circo/navio.

Os figurinos, como documentam as fotos e a palavra de Maria Helena Serôdio (O Diário, 17/6/81), «são como fardas de trabalho, que constróem, com todos o outros elementos, uma ambiência que fala de Camões e de sua época, sem no entanto, ter uma direcção única».

A entropia é, portanto, o que prevalece em Dou-che-lo Vivo, Dou-che-lo Morto, embora o polifónico das partes tenha um contra­ponto no entremês contemporâneo. Nele, dialogam os textos sobre Camões: recortes de Gervásio Lobato, Latino Coelho, Cipriano Jardim, trechos extraídos da implensa e da tradição oral sobre os centenários do poeta, caricaturizam o que dele fizeram as diferentes linhas ideo­lógicas.

Buscando a neutralidade através dessas caricaturas, a peça recusa uma imagem única de Camões, privilegia a teatralidade, o ritual, e assume um carácter alegórico, no sentido que lhe imprime Walter Benjamin 62. Dai que o Poeta esteja nela sem estar, e seja parceiro, sem propriamente ser, no jogo que se estabelece entre texto, actor e espectador.

62 Walter Benjamin, II Dramma Barocco Tedejco, Torino, Giulio Einaudi, 1971, p. 166-257.

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UM CAMÕES INÉDITO

A peça de Carlos Correia, Conhece Luís de Camães?, que não passou de um texto proposto a um concurso, busca também despir o mito camoniano de determinados traços tornados estigmas. Colo­cado no palco como «um busto decorado como um travesti espec­tacular, com elementos tipicos do vestuáIÍo afro-indo-americano» 63,

um emblema da política expansionista, portanto, Camões tem expur­gada esta imagem por um actOl que, em monólogo e tom de farsa, culmina por dizer-lhe: «Vai-te! Some-te desaparece pelo boqueirão fundo e escuro, pela sargeta onde escorre verde e fétida a sílilis da miragem que nos envenenou o sangue» 64.

Finalmente, o actor convida o Poeta (despido, então, da roupagem de cantor da expansão Império/Fé que lhe foi imposta durante séculos) a palmilhar com o povo, <<já não néscio», e do qual o próprio actor se diz parte, a estrada nova para o futuro. É a dimensão popular que o mito camoniano contém a ganhar terreno, fazendo mais uma vez do Poeta uma bandeira.

CAMÕES E A MISSÃO DO ESCRITOR

José Saramago consegue superar o mito e apresentar um Camões com dimensão humana. Em primeiro lugar, porque não exagera ou discute nenhum dos aspectos da biografia camoniana, embora se possa notar em seu texto uma preocupação com a verdade que, por não ser excessiva, não tende também ao teatro histórico. A indicação de que os trajes devam ser luxuosos restringe-se apenas a um dos quadros (1.0 acto, quadro V) e também só por uma cena o autor pede música da época; no mais, fala em sala do paço, casa de Damião de Góis no sítio do Castelo, casa de Luís de Camões etc., etc. e vai mencionando datas, num crescente cronológico, entre Abril de 1500 e Março de 1572, que acompanha o ritmo com que o problema da elaboração e da publi­cação de Os Lusíadas é aplesentado ao espectador. Este ritmo só não é de todo ascencional, o que confetiria à peça um carácter por demais alistotélico, pOlque, ao Camões escritor se mesclam o Camões bom camarada - ressaltado por Diogo do Couto, o Camões filho

63 Carlos Correia, Conhece Luís de Camães? s.n.t .• p. 3 (texto mimeografado). 64 Ibidem, p. 29.

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amoroso - a quem Ana de Sá não entende, o Camões homem amar­gurado e desacostumado aos usos da corte, o Camões melancólico, o Camões que é amado por várias mulheres (inclusive Francisca de Aragão que o. ajuda na publicação do poema épico), o homem que declara amar as imagens do amor, numa construção de personagem em que nenhum destes aspectos Pledomina sobre o outro.

Ao contrário da peça de Natália Correia onde a citação do texto épico camoniano vem corroborar o mito do predestinado, ou das de Jaime Gralheiro e Hélder Costa, nas quais as menções a Os Lusíadas ressaltam o avesso registado pelo poema e esquecido durante muito tempo por aqueles a quem só interessava lê-lo como canto de glória, a peça de Saramago, através das vozes de Diogo do Couto, Damião de Góis e Luís Vaz, enfatiza o livro, mesmo sem citar o texto, como obra de muitos momentos, que louva o passado e repreende:o presente.

Por outro lado, a personagem Damião de Góis lembra que o sentido do poema depende da direcção do olhar 65. Como diz a personagem Padre Bartolomeu Ferreira, tudo é uma questão de leitura, «basta ter paciência e procuraI».

Fica, assim, patente que o mais importante no texto de Saramago não é a figura de Camões, mas seu livro e sua missão. Que farei com este livro? - é a indagação que o poeta lança às gerações futuras/ gerações presentes, numa abertura que a maioria das outras peças portuguesas dedicadas no século xx a Camões não têm.

CAMÕES E A CARITAS

Como Eduarda Dionísio e Antonino Solmer, Luzia Maria Martins tenta fugir à construção de um Camões unívoco. A começar pelo título, a personagem não é o Poeta; apenas imagina-se como tal. Por outro lado, confunde-se com Portugal em algumas cenas. «O dia em que nasci moura e pereça» é a fala que abre o espectáculo. Dita pelo homem que se julga Camões, não têm o efeito legitimador do estatuto da per­sonagem que assume em Natália Correia, por exemplo. Luzia Malia Martins vale-se do texto para expandir este «em> que amaldiçoa a própria origem; e a personagem Camões se interroga quando foi que tudo começou, iniciando-se, então, uma revisão da História da Expansão Portuguesa, na qual se incluem o Poeta e o seu calar/falar. Não se

65 José Saramago, Que Farei com Este Livro?, Lisboa, Caminho, 1981, p. 93-94.

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julgue, no entanto, que a identificação Camões/Pátria seja feita a partir da grandeza de ambos: pelo contrário, o ponto comum é o terem sido explorados pelos poderosos.

Camões liga-se, assim, à colectividade. Para isso, contribui também a personagem Isac. Junto com Maria Tonta, o lado infantil, a voz não censurada, ele é apresentado como a culpa do Poeta. Mas não só: é «um peso na consciência colectiva», um dos judeus massa­crados em nome da cristandade do Reino.

Se Camões é acusado pela perseguição aos judeus, pelo envio de homens ao mar sem necessidade, pelo tratamento dado ao povo por­tuguês e aos povos conquistados - Até onde o teu silêncio? Por onde passaste tu? (Cf. OHQ, I, p. 3 e 159) 66 - o mesmo a peça faz aos reis, num processo de recorte histórico, presentificador, que per­mite ao público observar o acontecimento como testemunha.

Mas a figura de Camões, já cindida, como se disse anteriormente, com o seu lado consciente e censurável (Isac) e seu lado inconsciente e censurado (Marioa Tonta), não se completa a ponto de se poder extrair da peça um perfil da personagem: ela é «um pequeno bicho da terra», porque se esqueceu da sua humanidade (cf. OHQ, I, p. 13), um homem que não lembra de seu nome, que não existe porque «as outras pessoas o ignoram, num país que está dividido em tantos países quantas as pessoas que o habitam» (OHQ, I, p. 10), uma ilha isolada, alguém que no presente examina o passado, observando que o mundo transformou-se num cemitério de portugueses (OHQ, I, p. 20). Mas, principalmente, o homem que julgava ser Camões é uma personagem que busca a si e a sua Pátria, disseminando por esse percurso uma mensagem cristã de amor.

Camões cita Jesus (Amai-vos uns aos outros, etc. - cf. OHQ I, p. 12) e não se cansa de dizer que a História deturpou os ensinamentos do Mestre. E é uma mensagem cristã que circula entre actores e público ao final da peça. Como os apóstolos, vão eles repetindo e fazendo repetir: « ... a Pátria está no nosso trabalho, na nossa dádiva de frater­nidade!» (OHQ, II, p. 22).

O homem que se julga Camões, que procurava a razão da doença da história do seu país e da sua própria, descobre finalmente que «o sal da terra somos nós» (OHQ, II, p. 22), que a grandeza buscada fora desta nesga de teIra é falsa, que «o ouro somos nós».

66 A partir daqui as citações da peça de Luzia Maria Martins, O Homem que Queria ser Camões (original dactilografado) serão feitas no próprio texto com as iniciais OHQ, seguidas do número da página de onde foram extraídas.

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CONCLUSÃO

Profundamente irracional, porque tem como substrato as emoções, o mito organiza os temores, as angústias, as esperanças fundamentais arraigadas e faz do hel ói a personificação dos anseios de uma colec­tividade.

Fernando Pessoa, posto à margem como poeta e como homem pelos do seu tempo, adquiriu foros miticos à medida que teve divulgada a sua poesia e a heteronimia veio ao encontro de um crescente gosto pelo enigma. À excepção de Romeu Correia, todos os autores que escreveram sobre Fernando Pessoa mostraram-se fascinados pelo poeta, muito mais que pelas versões de sua história pessoal, como ocorre com outras figuras focadas pela dtamaturgia contemporânea. O comentário de Almada Negreiros (Diário de Lisboa, 6/12/1935) - «Não conheci exemplo igual ao de Fernando Pessoa: o do homem substituído pelo poeta!» - continua válido cinquenta anos depois. O teatto por­tuguês da actualidade viaja no curso da heteronímia, de máscara em máscara, sabendo que é impossível chegar à cara, mas tentando apreen­der, nas personas de Pessoa, a pessoa de Fernando.

Com Camões, a situação é outra. Com uma biografia sempre associada à poesia e à própria Histótia de Portugal, de que Os Lusíadas são o representante máximo, o Poeta é uma figura que permite o traço simplificado, o esquema que faculta o mito.

Nos anos 70/80, os brasileiros, embora empenhados em movi­mentos colectivos e de participação popular, no qual o teatro didáctico, o épico, e o de intervenção tinham o seu lugar, não questionaram em suas peças a figura de Camões ou o problema da expansão. Talvez o espírito da festa tivesse suplantado o crítico, já que os textos coinci­diram com o quadricentenário da epopeia. Apenas Carlos Queirós Telles mostrou em sua montagem a voz de cenSUla existente n'Os Lusíadas.

Por esta época, com a independência das colónias, o 25 de Abril e todas as transformações dele advindas, porque os portugueses sentissem «consciente ou inconscientemente, a necessidade de reactua­lizar a sua própria imagem de Portugal» 67, também o mito camoniano, associado à concepção imperial e guerreira do país precisou ser revisto.

67 Eduardo Lourenço, «Da contra-epopeia à não-epopeia: de Fernão Mendes Pinto a Ricardo Reis» Revista Crítica de Ciências Sociais, n.O 18, 19, 20, Fev., 1986, p.30.

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o teatro, embOla haja excepções, procurou, então, corroer o velho retrato do Poeta e relativizar o mito, através da farsa, do· uso do fragmento, dos quadros que buscam explicar o contexto histórico, da música-gesto, da inserção de outtaspersonagens que dividem a cena com Camões, como Diogo do Couto, Garcia de Orta, Fernão Mendes Pinto. Se bem vistas, no entanto, estas novas fOI mas apenas mudam a direcção do olhar, mas não tiram do Poeta a sua condição mítica. Camões, louvando ou denunciando, sozinho ou integrado num grupo, à direita ou à esquerda, faz parte da identidade portuguesa. Os titulos das peças falam por si.