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22 III PEDAGÓGICO

(

Emoçõesentram nocurriculoPOR VíVIAN GAMBA

H Habilidades socioemocionais devem fazer parte do

currículo das escolas - a Base Nacional Comum

Curricular (BNCC) traz isso de forma clara na sua

proposta. Muitas instituições de ensino já abordam valores

comuns a algumas dessas competências, mas é preciso estar

atento à forma como isso é feito. Debates e atividades pontuais,

como aulas sobre empatia ou palestras sobre bullying, não dão

conta dessa demanda, acreditam os especialistas.

A formadora de professores e equipes pedagógicas

e doutoranda em Psicologia da Educação (PUC/SP)

Alcielle Santos entende a abordagem das competências

socioemocionais no currículo das escolas como uma proposta

de construção de um projeto de educação integral, que deve

cuidar das cinco dimensões do processo de desenvolvimento

humano - cognitiva, cultural, social, física e emocional. "O

desenvolvimento de competências emocionais é processual

e, como tal, demanda um investimento processual, sistêmico,

orgânico, que precisa abraçar as diversas disciplinas do

currículo e dialogar com a identidade da escola. É muito

diferente eu fazer um projeto para falar sobre empatia e um

trabalho em que as crianças se coloquem no lugar do outro,

tenham uma escuta sensível, não cometam condutas que

possam ser entendidas como bullyinq", explica.

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É possível ter um componente curricular para cuidar disso?

Sim, afirma Alcielle. "Mas não quer dizer que eu precise de um

componente curricular para fazer isso. Eu posso ter um itinerário

processual que considere diferentes contextos e seja construído

simultaneamente em trabalho colaborativo por professores de

diferentes disciplinas já existentes no currículo."

A psicóloga e presidente do programa Escola da Inteligência,

Camila Cury, acredita que as escolas devam fazer o que ela

chama de alfabetização da emoção. "Assim como você ensina

uma criança a aprender a ler ou pensar matematicamente

de maneira regular, trabalhar as emoções deve ser algo

sistematizado, monitorado, avaliado e acompanhado." A

metodologia da Escola da Inteligência consiste em fazer com

que a criança reconheça suas emoções, aprenda a lidar com

elas e, a partir disso, aprenda a lidar com o outro. 'Temos uma

turma de personagens com caracteristicas saudáveis e não

saudáveis. Não há o bom ou o mau." A partir das histórias

de vida deles, é possível que as crianças se identifiquem,

estabeleçam um vínculo e façam a leitura de determinados

comportamentos que podem ser modificados ou desenvolvidos.

"[O objetivo él expandir as características saudáveis e trabalhar

as características não saudáveis. O conceito é muito mais amplo

e complexo do que certo e errado", defende Camila.

Professores em formação

Quanto mais os professores estiverem envolvidos com

esses conceitos, muito mais significativo será o trabalho, afirma

Camila. E a única forma de fazer isso é com capacitação. Para

uma geração fruto de uma escola diferente do que a que se

quer construir, o caminho pode ser tortuoso. "A escola sempre

foi comprometida com conhecimento, conteúdo, disciplina.

Mas agora também é lugar de encontro de pessoas, onde elas

aprendem a conviver. O professor - filho dessa escola - não

tem ideia de como fazer isso, de forma geral", acredita a

psicóloga e psicopedagoga consultora da Unesco e autora

de estudo-base sobre competências socioemocionais para o

Conselho Nacional de Educação, Anita Abed. "Os professores

devem ter uma orientação teórica e filosófica muito consistente,

precisam modernizar suas concepções do que é conhecimento,

ensinar, aprender, de qual é o seu papel."

A iniciativa Movimento pela Base e grupos como a

Fundação Lemann, portal Porvir e Instituto Ayrton Senna

estão escrevendo muitos documentos que podem ajudar os

23

"O desenvolvimento de competênciasemocionais é processual e l. ..] precisaabraçar as diversas disciplinas docurrículo", Alcielle Santos

professores, orienta Alcielle. Os gestores devem pensar, ainda,

numa metodologia para a formação dos professores. "Não

deve ser uma aula expositiva ministrada por um coordenador

pedagógico, mas vivências pensadas pelos formadores como

meios de sensibilização e de criação de experiências por parte

dos for mandos. Vi\Jências criam experiências, modificam

pessoas, causam mudanças processuais",

Anita concorda: "O professor precisa passar por um processo

em que ele desenvolve [as habilidades socioemocionaisl nele

mesmo, e isso não ocorre por meio do discurso, Você aprende a

amadurecer vivendo situações carregadas afetivarnente, Você

vive, você conhece a emoção, nomeia-a e então reflete, Se você

começar pelo reflexo da emoção, corre o risco de impedir que ela

surja, por conta da teorização'.

Mas como a escola pode se tornar um lugar onde a

circulação do afeto seja vista? Trabalhar a circulação do afeto

não é fazer terapia ou querer que as crianças sejam boazinhas,

alerta Anita. "É criar um lugar onde as pessoas apareçam mais

verdadeiramente como pessoas e onde o professor desenvolva

um tipo de olhar e de escuta que busque compreender o que

está acontecendo e fazer intervenções que ajudem a criança e o

adolescente a tomar consciência do que está acontecendo,"

Como fazer?

"O ser humano é complexo, É mais uma postura, uma

disponibilidade interna de ouvir, de acolher, intervir, trazer àconsciência, abrir um espaço de expressão", acredita Anita. Isso

pode ser feito por meio de desenhos, de histórias, de projeções,

Há uma série de recursos mediadores, que promovem o

desenvolvimento de habilidades socioernocionais, O jogo, para

a psicopedagoga, é o melhor deles, "porque é uma situação

mais leve, uma brincadeira, não trata de analisar uma situação

concreta de vida", O jogo envolve disputa, ganhar e perder, a

necessidade de ficar calmo, manter-se centrado, concentrado;

envolve atenção, autonomia, escolha, protagonismo, relações

humanas - porque se joga com outra pessoa, parceiro ou

oponente -, justifica, "Quando a gente joga, transparece mais,

EDUCAÇAO lM REVIS TA III

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24 III PEDAGÓGICO

o que torna os processos do aluno visíveis para o professor,

que pode íntervir na maneira como o aluno joga - você está

distraído, tem que prestar mais atenção; você perdeu, o que

acontece quando você não está atento? "O jogo funciona como

uma tela de proteção, tanto para expressar aquilo que está se

passando como para o professor conseguir enxergar e intervir."

Outro recurso "muito legal" é a metáfora, avalia Aníta. "Elas

são ótimas para trabalhar conceitos que envolvem emoção."

Em vez de falar em fração, perguntar quem já jogou na loteria.

O que é o bilhete? Um pedaço. Onde mais tem um pedaço?

Bolo. "Eu vou chegar lá, na definição da fração, mas antes disso

estou recheando-a de vários sentidos." Mais uma aplicação:

pensar na fração de qual a parte que você mais gosta de você

mesmo, de O a 10. Se a criança é muito divertida, das 10 coisas

dentro dela, quanto 'divertido' representa? "Estou trazendo

outras noções ligadas à mesma essência, de parte-todo.

Posso trabalhar coisas emocionais, temas do dia a dia. Isso

é importante: o professor saber que pode inserir elementos

emocionais, afetivos e relacionais em qualquer conteúdo."

Como avaliar?Evidentemente, essas mudanças implicam mudanças

na avaliação, um tema bastante delicado. "As habilidades

socioemocionais são muito mais subjetivas que as coqnitivas",

justifica Camila. A Escola da Inteligência fez uma parceria

com a Fundação Carlos Chagas e o Instituto Poli técnico do

Porto para esse processo de avaliação, realizado a partir de

inventários que mensuram as habilidades sociais - o quanto

essa criança é empática, o quanto é capaz de lidar com a dor, o

quanto tem disciplina. "A criança tem uma situação-problema

e alternativas de como agir. Cruzamos os dados de forma

III Jogo promove desenvolvimento socioemocional

"Os professores precisam modernizarsuas concepções do que éconhecimento, ensinar, aprender, dequal é o seu papel", Anita Abed

estatística para que possamos ver o quanto ela está mais

próxima do desenvolvimento de determinada competência. A

avaliação é feita em relação à própria criança."

Anita considera complicada a avaliação por muitos

dos instrumentos desenvolvidos especificamente para

as habilidades socioemocionais, especialmente os de

auto percepção. Há muitos em que a própria criança dá uma

nota de O a 10 ao se identificar com uma situação - "fico

nervoso quando estou numa prova", por exemplo. "Uma pessoa

tímida não é tão bem considerada quanto uma extrovertida

na nossa cultura. Corremos sério risco de entrar num juízo

de valor", pondera. O que é ter habilidades socioemocionais

desenvolvidas?, questiona a psicopedagoga. "Antes de

pensar em como avaliar, temos de pensar nos parâmetros. Se

pensarmos numa avaliação para comparar o Joãozinho de hoje

com o de ontem, como ele trata suas emoções, a sua relação

com o mundo, então vale a pena", acredita.

Desenvolver uma habilidade socioemocional significa ajudar

a pessoa a ser o melhor dela, lidar da melhor maneira consigo

mesma, com os outros e com o que acontece na vida. "Reconhecer

e desenvolver suas potencialidades e se apoiar nelas, assim

como reconhecer as fragilidades e desenvolvê-Ias", aponta Anita.

Há aquele que desenha superbem e não escreve. Vai precisar

escrever, mas deve desenhar cada vez melhor. O desenvolvimento

deve levar em conta a diversidade e a riqueza das pessoas.

"Existem mecanismos mais qualitativos que o professor pode

e deve usar. Portfólio, diário de anotações, registros de como a

criança está melhorando no domínio de x, y, z emoções. Isso é um

instrumento de avaliação mais condizente", acredita.

O importante, em todo esse processo, é tentar repensar que

sociedade queremos construir e o que, de fato, é preciso saber. A

BNCC tem esse propósito.

CONTEÚDO ONLlNE DISPONíVEL

Confira documentos do Movimento pela Base,da Fundação lemann, do Porvir e do InstitutoAyrton Senna para auxiliar os professores.www.educacaoemrevista.com.br

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