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RECEBIDO EM 11 DE JANEIRO DE 2014 E ACEITO EM 14 DE JUNHO DE 2014. 245 ARTIGOS DOI: 10.5433/2176-6665.2014v19n2p245 OS DOCUMENTOS DE DIREITOS HUMANOS DO MUNDO MUÇULMANO EM PERSPECTIVA COMPARADA Luana Hordones Chaves 1 RESUMO Uma das questões teóricas mais importantes do debate islâmico de direitos humanos é a relação entre secularismo e direitos do homem, e a questão empírica correlata: a aplicação da xaria. Trata-se do que Enzo Pace chamou de déficit estrutural de legitimação no Islã, referindo-se às características originárias, particularmente à fusão entre as dimensões religiosa e política, como desafio à adesão ao sistema de direitos humanos da ONU. Nessa perspectiva, o presente artigo analisa documentos sobre direitos humanos produzidos no mundo muçulmano, dando maior importância àqueles produzidos em ambiente intergovernamental, uma vez que refletem as preocupações e os esforços desses governos em se inserirem na discussão dos direitos humanos. Palavras-chave: Direitos humanos. Documentos. Islã. Xaria. 1 Doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Brasil. [email protected]

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  • RECEBIDO EM 11 DE JANEIRO DE 2014 E ACEITO EM 14 DE JUNHO DE 2014. 245

    ARTIGOS

    DOI: 10.5433/2176-6665.2014v19n2p245

    OS DOCUMENTOS DE DIREITOS HUMANOS DO MUNDO MUULMANO EM

    PERSPECTIVA COMPARADA

    Luana Hordones Chaves1

    RESUMO

    Uma das questes tericas mais importantes do debate islmico de direitos humanos a relao entre secularismo e direitos do homem, e a questo emprica correlata: a aplicao da xaria. Trata-se do que Enzo Pace chamou de dficit estrutural de legitimao no Isl, referindo-se s caractersticas originrias, particularmente fuso entre as dimenses religiosa e poltica, como desafio adeso ao sistema de direitos humanos da ONU. Nessa perspectiva, o presente artigo analisa documentos sobre direitos humanos produzidos no mundo muulmano, dando maior importncia queles produzidos em ambiente intergovernamental, uma vez que refletem as preocupaes e os esforos desses governos em se inserirem na discusso dos direitos humanos.

    Palavras-chave: Direitos humanos. Documentos. Isl. Xaria.

    1 Doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Brasil. [email protected]

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    THE HUMAN RIGHTS DOCUMENTS OF THE MUSLIM WORLD

    FROM A COMPARATIVE PERSPECTIVE

    ABSTRACT

    One of the most important theoretical issues in the Islamic debate on human rights is the relationship between secularism and human rights and the related empirical question of the application of sharia. This issue is what Enzo Pace calls the structural deficit of legitimacy in Islam, referring to its original characteristics, particularly the fusion of religious and political dimensions, as a challenge in adhering to the United Nations (UN) human rights system. From that perspective, this article analyzes human rights documents produced in the Muslim world, attributing more importance to documents produced in intergovernmental environments because they reflect the concerns and efforts of these governments to participate in the discussion of human rights.

    Keywords: Human rights. Documents. Islam. Sharia.

    s direitos humanos podem ser entendidos como um conjunto de valores consagrados em instrumentos jurdicos internacionais, e referem-se a diversas condies e possibilidades destinadas a tratar dos direitos dos

    homens.

    Foi no contexto ps-Segunda Guerra que a proposta dos direitos humanos passou a ser discutida na Organizao das Naes Unidas, a fim de se elaborar uma declarao de carter universal acerca dos direitos do homem. Os milhes de mortes e torturas ocorridas durante a Segunda Guerra Mundial, assim como a situao dos aptridas no ps-guerra conduziram o surgimento do regime internacional de direitos humanos.

    Um projeto de universalizao dos direitos humanos passou a ser desenvolvido durante os anos de 1947 e 1948 pela Comisso de Direitos Humanos, criada pela Carta das Naes Unidas em 1946. A Declarao Universal de Direitos Humanos foi aprovada em 10 de dezembro de 1948 pela Resoluo n. 217 A (III) da Assembleia Geral das Naes Unidas. A redao da Declarao foi iniciada pela Comisso de Direitos Humanos que contava, na ocasio, com representantes dos seguintes pases: Bielorssia, Estados Unidos, Filipinas, Unio das Repblicas Socialistas Soviticas, Frana e Panam. A aprovao do texto final contou, por sua vez, com quarenta e oito votos a favor dos ento cinquenta e oito Estados-membros das Naes Unidas, no havendo, nessa ocasio, voto contra.

    O

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    Com duas ausncias, foram oito os pases que se abstiveram: Bielorssia, Checoslovquia, Unio das Repblicas Socialistas Soviticas, Polnia, Ucrnia, frica do Sul, Iugoslvia e Arbia Saudita2 (TRINDADE, 2003). notado, portanto, o restrito nmero de pases que participaram tanto da elaborao, quanto da aprovao da Declarao de Direitos Humanos.

    Aprovada a Declarao, no mbito do Direito Internacional comeou a ser delineado o sistema normativo internacional de proteo de direitos humanos por meio de tratados, enquanto no mbito do Direito Constitucional ocidental a abertura ao Direito Internacional exigiu a observncia de princpios materiais (isto , de contedo) de poltica de direito internacional na elaborao do direito interno. Tendo em vista que o papel do Direito, tanto no mbito interno, quanto na esfera internacional, submeter as diretrizes polticas racionalidade jurdica a fim de evitar os abusos de poder e permitir a participao dos cidados em suas decises, so muitas as questes que permeiam o debate quanto universalidade e efetividade dos direitos humanos tais como postos pela ONU. Por isso, a questo da validade da Declarao Universal de Direitos Humanos, seja como instrumentos normativos das relaes internacionais ou como linguagem do dilogo intercultural, um tema caro dentro e fora do Ocidente. E como essa questo no a proposta deste artigo, o que interessa dizer que a partir desses eventos histricos, os direitos humanos se tornaram um tema de grande relevncia na agenda internacional sem, todavia, se esgotar no que prope a Declarao de 1948.

    nesse aspecto que os direitos humanos islmicos ganham destaque para anlise: a cultura islmica imprime valores e normas morais por vezes distintos da cultura ocidental. Tema deste texto, os documentos de direitos humanos do mundo muulmano divergem, em aspectos significantes, do que defende a Declarao de 1948 da ONU. O presente artigo prope, nesse sentido, tratar dos documentos islmicos de direitos humanos produzidos em ambiente intergovernamental, dando destaque a dois temas: a liberdade de religio e a liberdade de expresso. A saber, dentre os Direitos assumidos pela ONU na Declarao, tem-se:

    Artigo 18: Toda pessoa tem direito liberdade de pensamento, conscincia e religio; este direito inclui a liberdade de mudar de religio ou crena e a liberdade de manifestar essa religio ou crena,

    2 Faz-se vlido citar que a Arbia Saudita entendeu que a liberdade de mudar de religio, expressa no artigo 18 da Declarao, era incompatvel com o que professava a f islmica.

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    pelo ensino, pela prtica, pelo culto e pela observncia, isolada ou coletivamente, em pblico ou em particular.

    Artigo 19: Toda pessoa tem direito liberdade de opinio e expresso; este direito inclui a liberdade de, sem interferncia, ter opinies e de procurar, receber e transmitir informaes e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras (ORGANIZAO DAS NAES UNIDAS, 1948).

    Sendo o objeto deste trabalho ainda pouco estudado no Brasil, este artigo tem a pretenso de contribuir com uma introduo ao tema. O objetivo deste breve estudo , portanto, levantar os princpios constitutivos de tais documentos, seus processos de construo, e alguns pontos de divergncia em relao declarao ocidental no que tange principalmente liberdade religiosa e de expresso. Ademais, tratar-se- da nfase dada nesses documentos sobre a supremacia da xaria3 quando em confronto com alguma fonte de direito externa ao Isl, e da falta de legitimidade de alguns artigos da Declarao de 1948 em contextos islmicos.

    DOCUMENTOS DE DIREITOS HUMANOS NO MUNDO MUULMANO

    Dentre os documentos sobre direitos humanos produzidos no mundo muulmano, o presente artigo deter-se- queles gerados nos ltimos anos pelos organismos interestatais e pelos organismos no-governamentais. Toma-se para anlise a Declarao dos Direitos do Homem no Isl de 1990 (mais conhecida como Declarao do Cairo), a Carta rabe dos Direitos do Homem de 1994, e a Declarao do Conselho Islmico da Europa de 1981 (nomeada Declarao Islmica Universal dos Direitos Humanos); sendo os dois primeiros documentos desenvolvidos por organismos governamentais e interestatais e o ltimo por organismos no-governamentais.

    Os documentos produzidos em ambiente intergovernamental refletem as preocupaes dos governos de pases de tradio muulmana em se inserirem na

    3 A xaria um complexo de normas costumeiras religiosas e da jurisprudncia muulmana derivada destas normas. vlido dizer ainda que algumas vezes nomes prprios e tradues do rabe so escritos de formas diferentes, como no caso da palavra Sharia. Neste artigo reserva-se a forma preferida por cada autor e por cada documento quando se trata de citaes diretas. Entretanto, no decorrer do texto preferiu-se dar prioridade para as formas tomadas em portugus por Demant (2008) em sua obra: o autor usa os termos xaria e Maom, por exemplo.

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    discusso dos direitos humanos. E, segundo Pace (2005), significativo que haja um esforo para elaborar documentos e cartas que tratam de direitos humanos no mundo muulmano a partir da dcada de 1980:

    [...] quando o mundo muulmano se v sacudido por dois acontecimentos extraordinrios: por um lado, a revoluo iraniana de 1979 e a sua involuo para um regime autocrtico que limita as liberdades fundamentais e, pelo outro, a ofensiva de muitos movimentos radicais (da Arglia ao Sudo, do Egito ao Paquisto), que contestam os grupos dirigentes dos respectivos pases, acusando-os de subordinao ao antigo modelo colonial do Ocidente e, por conseguinte, reivindicando a necessidade de retornar ao autntico Isl da Lei cornica, que se deve aplicar integralmente (PACE, 2005, p. 339).

    A revoluo iraniana de 1979 e a conseguinte Constituio da Repblica Islmica do Ir tiveram um papel importante na defesa e na propagao das perspectivas islmicas em todo o mundo muulmano. A experincia de ocidentalizao do pas marcada por corrupo e inflao durante o governo da famlia Pahlevi, e a forte figura do aiatol Khomeini contriburam para a imagem do Ir como nova liderana no mundo islmico. A transio do Estado iraniano de monarquia autocrtica pr-Ocidente para uma Repblica Islmica, fundada sob os preceitos do Alcoro, fortaleceu a religio e deu flego aos movimentos de islamizao de alguns pases; nesse nterim o discurso de demonizao do ocidente na retrica do lder Khomeini ganhou destaque. Nesse sentido, toda essa mobilizao para se pensar os direitos humanos em contexto islmico , em alguma medida, reflexo desses eventos histricos marcantes no Oriente Mdio. Mais que isso:

    Sob a presso desses movimentos, nos ambientes mais laicizados e moderados do mundo muulmano moderno vai ganhando terreno a convico de que o confronto com o paradigma dos direitos humanos, assim como esto delineados nos principais documentos da ONU, poderia ser til para mostrar como a cultura muulmana no apenas indiferente questo dos direitos mas, ao contrrio, pode at entrar em sintonia com a moderna cultura dos direitos (PACE, 2005, p. 340).

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    O primeiro documento data de 1981. A Declarao Islmica Universal dos Direitos Humanos foi aprovada pelo Conselho Islmico da Europa, em Londres. Preparado por uma organizao no governamental denominada Direitos Humanos Islmicos, tal conselho reunira estudiosos, juristas e representantes muulmanos de movimentos e pensamentos islmicos: por isso, apesar do esforo em direo aos direitos humanos, tal documento no tem validade legal para os Estados. Acerca da Declarao Islmica Universal dos Direitos Humanos, vale ressaltar que, como enfatiza o prefcio, tem como base o Alcoro e a Sunna4:

    H quatorze sculos atrs, o Isl concedeu humanidade um cdigo ideal de direitos humanos. Esses direitos tm por objetivo conferir honra e dignidade humanidade, eliminando a explorao, a opresso e a injustia. Os direitos humanos no Isl esto firmemente enraizados na crena de que Deus, e somente Ele o Legislador e a Fonte de todos os direitos humanos. Em razo de sua origem divina, nenhum governante, governo, assembleia ou autoridade pode reduzir ou violar, sob qualquer hiptese, os direitos humanos conferidos por Deus, assim como no podem ser cedidos (DECLARAO..., 1981).

    A supremacia do que foi pregado e dito pelo Profeta Maom aparece, pois, como norteadora do documento. So dispostos, ainda no texto introdutrio, os fundamentos tico-morais a partir dos quais a declarao foi escrita. Dentre eles, a crena em Deus como nico guia da humanidade e fonte de todas as leis, a responsabilidade do homem em satisfazer a vontade de Deus na terra, a orientao da mensagem divina final trazida pelo profeta Maom, e o acordo com Deus de que os deveres tm prioridade sobre os direitos.

    No documento em questo, a referncia xaria aparece nas notas explicativas: O termo "Lei" significa a Chariah, ou seja, a totalidade de suas normas provm do Alcoro e da Sunnah e de quaisquer outras leis que tenham sido baseadas nessas duas fontes, atravs de mtodos considerados vlidos pela jurisprudncia islmica. (DECLARAO..., 1981).

    4 Para melhor entender o que sunna, vale ressaltar que o ncleo normativo islmico origina-se de uma pluralidade de fontes: o Alcoro, os Ditos e os Atos do Profeta; alm das interpretaes que interligam mensagens profticas a preceitos reguladores da vida social. Tem-se que o desenvolvimento poltico, social e religioso da comunidade religiosa (umma) aps a morte de Maom desafiou os muulmanos a problemas que no tinham sido solucionados ou expostos no Alcoro. Disso surge o interesse pelo comportamento de Maom: a chamada sunna do Profeta.

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    Embora isso seja ressaltado, o contedo dos artigos se distingue bastante do que prega a lei cornica no que toca liberdade de expresso e liberdade religiosa, visto que apostasia considerada crime de acordo com leis islmicas e que blasfmia normalmente um tema caro jurisprudncia muulmana. A ver:

    XIII Direito Liberdade de Religio: Toda a pessoa tem o direito liberdade de conscincia e de culto, de acordo com suas crenas religiosas.

    XII Direito de Liberdade de Crena, Pensamento e Expresso: Toda a pessoa tem o direito de expressar seus pensamentos e crenas desde que permanea dentro dos limites estabelecidos pela Lei. Ningum, no entanto, ter autorizao para disseminar a discrdia ou circular notcias que afrontem a decncia pblica ou entregar-se calnia ou lanar a difamao sobre outras pessoas. [...] Ningum ser desprezado ou ridicularizado em razo de suas crenas religiosas ou sofrer qualquer hostilidade pblica; todos os muulmanos so obrigados a respeitar os sentimentos religiosos das pessoas (DECLARAO..., 1981).

    Percebe-se, portanto, uma forte influncia da Declarao da ONU, que defende a liberdade de crena e de expresso, sobre este documento. J no documento seguinte, a Declarao do Cairo de 1990, os temas em destaque recebem um tratamento diferente.

    A Declarao do Cairo sobre Direitos Humanos no Isl, datada de 5 de agosto de 1990 foi assinada pela Organizao da Conferncia Islmica5 (OCI), aps mais de uma dcada de elaborao. Criada em setembro de 1969, consta em sua Carta de Constituio que a Organizao de Cooperao Islmica6 guiada pelos

    5 A OCI, em 1969 contava com os seguintes Estados membros: Jordnia, Afeganisto, Indonsia, Ir, Paquisto, Turquia, Chade, Tunsia, Arglia, Arbia Saudita, Senegal, Sudo, Somlia, Guin, Palestina, Kwait, Lbano, Lbia, Mali, Malsia, Egito, Marrocos, Mauritnia, Nger, Imen. Atualmente so 57 Estados que aos j citados se somam: Azerbaijo, Albnia, Emirados rabes Unidos, Uzbequisto, Uganda, Barein, Brunei, Bangladesh, Benin, Burkina Faso, Tadjiquisto, Turcomenisto, Repblica do Togo, Djibuti, Sria, Suriname, Serra Leoa, Iraque, Om, Gabo, Gmbia, Guiana, Guin-Bissau, Comores, Quirguisto, Catar, Cazaquisto, Camares, Costa do Marfim, Maldivas, Moambique, Nigria. 6 A mesma Organizao referida como Organizao de Cooperao e Organizao da Conferncia Islmica. No endereo eletrnico da OCI encontra-se a Carta/Legislao de sua constituio, esta, com data de publicao de 2008. H uma nota final de ratificaes no artigo 39 que diz que a

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    valores islmicos de unidade e de fraternidade. Estes, tidos como fundamentais para a promoo e o reforo da unidade e da solidariedade entre os Estados Membros, uma vez que a proposta da Organizao garantir seus interesses comuns sobre a cena internacional. A carta reafirma o compromisso com os princpios da Carta das Naes Unidas e apresenta como objetivos, dentre outros, propagar, promover e preservar os ensinamentos e valores islmicos fundados sobre a moderao e a tolerncia; promover a cultura islmica e salvar a herana islmica; proteger e defender a verdadeira imagem do Isl na luta contra a difamao do Isl; promover e proteger os direitos humanos e liberdades fundamentais, e incentivar o dilogo entre as civilizaes e religies7.

    Foi na XIX Conferncia Islmica dos Ministros dos Negcios Estrangeiros (Sesso da Paz, Interdependncia e Desenvolvimento), realizada no Egito em 1990 que a Declarao do Cairo foi preparada e formalmente adotada pelos Ministros do Exterior da OCI. Por reunir a maioria dos Estados de tradio muulmana, tal reunio representa a sntese de orientaes jurdicas que cada Estado se compromete a seguir sem comprometer a soberania nacional de cada um deles.

    A Carta da Organizao de Cooperao Islmica solicitou ainda a criao de uma Comisso Independente Permanente para promover os instrumentos de direitos humanos internacionalmente reconhecidos. A OCI atendeu tal solicitao e publicou um documento intitulado Regulamento Interno da Comisso Permanente de Direitos Humanos da OCI com os procedimentos para a realizao de sesses da Comisso, assim como para o exerccio de suas funes. J o Estatuto da Comisso Permanente de Direitos Humanos data de junho de 2010. A iniciativa da Organizao de Cooperao Islmica em criar uma Comisso de Direitos Humanos, reafirmando a Declarao do Cairo de 1990 e ao mesmo tempo assegurando a cooperao com organizaes internacionais como a Organizao das Naes Unidas, faz crer que, assim como assinalou Pace (2005), apesar de no se caracterizar como um tratado internacional que vincule os pases signatrios, a Declarao do Cairo continua sendo at hoje a mais articulada carta de direitos humanos assumidos do ponto de vista dos Estados de tradio muulmana.

    A Declarao do Cairo conta com 25 artigos e precedida de um amplo prembulo que enfatiza seu carter islmico e seu embasamento de acordo com a xaria. Destaca-se:

    presente Carta substitui a Carta da Organizao da Conferncia Islmica registrado em 1 de fevereiro de 1974, o que comprova que se trata da mesma Organizao. 7 A Carta est disponvel em: http://www.oic-oci.org/french/charter/OIC%20charter-new-fr.pdf.

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    [...] Acreditando que os direitos e liberdades fundamentais de acordo com o Isl so parte integrante da religio islmica e que ningum tem o direito como uma questo de princpio, para extingui-los, no todo ou em parte ou violar ou ignor-los, na medida em que mandamentos divinos so vinculativos, que esto contidos nos Livros Revelados de Deus e que foram enviadas atravs do ltimo dos seus profetas para completar a mensagem divina anterior e que a salvaguarda desses direitos e liberdades fundamentais um ato de adorao ao passo que a negligncia ou violao da mesma um pecado abominvel, e que a salvaguarda dos direitos fundamentais e a liberdade uma responsabilidade individual de cada pessoa e uma responsabilidade coletiva de toda a Ummah [...] (NINETEENTH ISLAMIC CONFERENCE OF FOREIGN MINISTERS, 1990, traduo nossa).

    Encontra-se j no texto inicial que os direitos humanos como parte integrante da religio muulmana devem conservar o que est posto no Alcoro e na tradio do Profeta, sendo essas as fontes de lei maior e s quais o indivduo deve obedincia, como ressalta o trecho. O contedo dos artigos da Declarao de 1990 deixa claro tanto a subordinao a Deus, como a superioridade da Lei cornica (xaria) como guia de todo o sistema de direitos. O segundo artigo afirma, nesse sentido:

    [...] proibido tirar a vida, exceto por uma razo na Shariah prescrita. [...] A segurana do dano corporal um direito garantido. dever do Estado proteg-lo, e proibida a violao sem uma razo na Shari'ah prescrita (NINETEENTH ISLAMIC CONFERENCE OF FOREIGN MINISTERS, 1990, traduo nossa).

    Pensando os direitos de liberdade de expresso, tema caro ao mundo muulmano com relao ao Ocidente, como os emblemticos casos de protestos islmicos ligados acusao de blasfmia8, vale citar:

    Artigo 16: Todos tm o direito de gozar os frutos do seu domnio cientfico, de trabalho, literria, artstica ou tcnica da qual ele o

    8 Se cabe citar exemplos, a condenao de morte emitida por Khomeini em 1989 ao autor Salman Rushdie e as ondas de protesto contra a publicao das charges do Profeta Maom em 2006 na Dinamarca.

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    autor, e ele ter o direito proteo dos seus interesses morais e materiais que da decorrem, desde que no seja contrria aos princpios da Sharia [...].

    Artigo 22: (A) Toda pessoa ter o direito de expressar sua opinio livremente da forma que no seria contrrio aos princpios da Sharia (NINETEENTH ISLAMIC CONFERENCE OF FOREIGN MINISTERS, 1990, traduo nossa).

    Quanto liberdade de religio, de fato uma questo de suma importncia na tradio islmica, o artigo 18 da referida declarao deixa claro o respeito s minorias religiosas afirmando que toda pessoa ter o direito de viver em segurana com sua religio, seus dependentes, sua honra e sua propriedade. J o artigo que trata da religio islmica faz objeo mudana de credo: Artigo 10: O Isl a religio da natureza intocada. proibido exercer qualquer forma de coero sobre o homem ou explorar a sua pobreza ou ignorncia, a fim de convert-lo para outra religio ou ao atesmo. Ademais, a formao na f islmica tambm citada pelo documento no artigo que trata sobre direito educao:

    Artigo 9: O Estado deve assegurar a disponibilidade de meios e formas de aquisio da educao e garantir a diversidade educativa, no interesse da sociedade, de modo a permitir que os homens se familiarizarem com a religio do Isl e os fatos do Universo, em benefcio da humanidade (NINETEENTH ISLAMIC CONFERENCE OF FOREIGN MINISTERS, 1990, traduo nossa).

    Ao contrrio do que se encontra na Declarao de 1981 sobre liberdade religiosa, a Declarao do Cairo no defende a liberdade de crena aos muulmanos. A Declarao do Cairo afirma, em consonncia com preceitos islmicos, que o Isl a religio natural do ser humano e, por isso, torna-se proibido mudar de religio ou assumir-se ateu, defendendo tambm a formao religiosa como direito.

    Acerca da supremacia da xaria, os dois ltimos artigos da declarao no deixam dvidas:

    ARTIGO 24: Todos os direitos e liberdades previstos na presente Declarao esto sujeitos a Sharia islmica.

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    ARTIGO 25: A Sharia islmica a nica fonte de referncia para a explicao ou esclarecimento de qualquer um dos artigos da presente Declarao (NINETEENTH ISLAMIC CONFERENCE OF FOREIGN MINISTERS, 1990, traduo nossa).

    O terceiro e ltimo documento a ser abordado a Carta rabe dos Direitos Humanos aprovada em 15 de setembro de 1994. Esta, por sua vez, um autntico tratado intergovernamental submetido ratificao dos Estados. A Carta foi elaborada pelos governos dos Estados-membros da Liga dos Estados rabes9 e afirma se basear na tradio rabe para encontrar afinidades eletivas com o paradigma dos direitos humanos: o que a distingue dos outros documentos que se fundamentam nas fontes religiosas do Isl.

    No prembulo da Carta rabe consta:

    Reafirmando os princpios da Carta das Naes Unidas e a Declarao Universal dos Direitos Humanos, bem como as disposies das Naes Unidas Pactos Internacionais sobre Direitos Civis e Polticos e Econmicos, Sociais e Culturais e a Declarao do Cairo sobre Direitos Humanos no Isl [...] (COUNCIL OF THE LEAGUE OF ARAB STATES, 1994, traduo nossa).

    Um projeto complicado, visto que a Declarao do Cairo e a Declarao de Direitos Humanos da ONU tm divergncias, como as que foram citadas.

    A Carta rabe, composta por 43 artigos, garante a liberdade religiosa e de culto e se aproxima, de maneira geral do documento de 1948:

    Artigo 26: Toda a pessoa tem um direito garantido liberdade de pensamento crena e de opinio.

    Artigo 27: Os adeptos de cada religio tm o direito de praticar seus rituais religiosos e de manifestar suas opinies atravs da expresso, prtica ou de ensino, sem prejuzo dos direitos dos outros. Nenhuma

    9 Fundada em 1945, os 22 Estados-membros da Liga dos Estados rabes e que assinaram a Carta rabe dos Direitos Humanos so: Jordnia, Emirados rabes Unidos, Bahrain, Tunsia, Arglia, Djibuti, Arbia Saudita, Sudo, Repblica rabe da Sria, Somlia, Iraque, Om, Palestina, Catar, Comores, Kuwait, Lbano, Lbia, Egito, Marrocos, Mauritnia, Imen.

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    restrio deve ser imposta ao exerccio da liberdade de pensamento, crena e opinio, exceto nos casos previstos em lei (COUNCIL OF THE LEAGUE OF ARAB STATES, 1994).

    Tem-se, portanto, que os direitos humanos na leitura da cultura rabe, como proposto pela Carta, no apresentam significativas distines sobre os direitos declarados pela ONU. No entanto, apesar de ser o ltimo documento de direitos humanos a ser assinado e de sua caracterstica de tratado intergovernamental, a Carta rabe no encerra a discusso sobre algumas questes, como da liberdade religiosa e de expresso, por exemplo. Uma vez que a lei cornica tida como a primeira lei do Isl, a supremacia da xaria torna-se um ponto-chave nesses debates.

    XARIA: BREVES CONSIDERAES SOBRE A SUPREMACIA E AS POSSIBILIDADES INTERPRETATIVAS

    Pace (2005) enfatiza que a relao entre Isl e direitos humanos remete relao entre o Isl e a democratizao de pases em que h um nexo entre religio e poltica. De acordo com a abordagem desse autor, se os direitos humanos entram em choque com a Lei cornica (xaria), a ltima deve prevalecer. Esse o principal obstculo a uma completa adeso do Isl moderna cultura dos direitos humanos, observa.

    Nesse sentido, vale ressaltar que o ncleo normativo origina-se de uma pluralidade de fontes: o Alcoro, os Ditos e os Atos do Profeta; alm das interpretaes que interligam mensagens profticas a preceitos reguladores da vida social. Tem-se que o desenvolvimento poltico, social e religioso da comunidade religiosa (umma) aps a morte de Maom desafiou os muulmanos a problemas que no tinham sido solucionados ou expostos no Alcoro. Disso surge o interesse pelo comportamento de Maom (a chamada sunna do Profeta) e por suas palavras, ditas quando no proclamava o Alcoro (afirmaes que so conhecidas como hadith). Dessa forma, a sunna e o hadith (que se sobrepem) se impuseram como fontes adicionais do direito islmico ao lado do Alcoro.

    Como a comunidade fundada sobre os princpios da Lei de Deus (a xaria) no necessitava de sacerdotes mediadores entre os crentes e Deus, aps a morte do Profeta os peritos da religio e da poltica tornaram-se responsveis tambm pela interpretao da Lei (atividade esta que se tornou fonte de controvrsias). Tendo em vista que o Alcoro traz princpios reguladores da vida social e poltica

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    da comunidade ento estabelecida, a interpretao da lei islmica, tanto do Alcoro como da coleo dos fatos e ditos atribudos ao Profeta, produziu e ainda hoje produz uma considervel diversidade de opinies (ANTES, 2003). Sobre o esforo racional de interpretao,

    Em suma, alm das fontes reveladas, as normas sobre o estatuto pessoal foram sucessivamente elaboradas em termos de interpretao racional luz da f, realizada por eruditos em assuntos religiosos (ulama), legisladores (fuqaha) e juzes das cortes (qadi). Tudo isso tendo como pano de fundo uma subordinao orgnica dessas figuras do saber religioso autoridade poltica dos califas dos grandes imprios muulmanos do passado (PACE, 2005, p. 321).

    A concepo do ncleo normativo contava, portanto, com uma metodologia de pensamento e interpretao (fiqh), e o produto final ficou conhecido como xaria. A supremacia da xaria se deve, desse modo, referncia a uma norma fundamental que se considera revelada por Deus, segundo a qual os direitos humanos no tm fundamento fora ou contra os direitos divinos, sobretudo porque h a ideia de que todo ser humano, de acordo com o pensamento teolgico muulmano, nasce disposto naturalmente ao Isl.

    A isso se remete uma das violaes mais evidentes da cultura muulmana que entra diretamente em choque com o sistema de direitos humanos: a liberdade de mudar de religio. Compreendido como um mal abominvel e que deve ser perseguido, o abandono da religio em que se nasceu (no caso do Isl) significa tanto um ato de rejeio da verdade divina, como de insubordinao contra o poder constitudo na sociedade. Dentre outras questes que entram em choque com os direitos humanos, o modo como as minorias no muulmanas so tratadas em alguns pases de maioria islmica, e a relao de desigualdade entre homens e mulheres se destacam. Questes como essas so tambm objeto de confronto interno e de movimentos sociais no mundo muulmano e, assim como para a discusso intergovernamental de direitos humanos, representam um grande desafio, uma vez que dizem respeito ao campo da poltica e da religio.

    Pode-se afirmar, entretanto, que tendo em vista o processo de interpretao das fontes normativas do Isl, a lei islmica pode no ser uma lei de todo imutvel e incompatvel com o paradigma dos direitos humanos. Nesse sentido, para Pace, a xaria:

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    [...] no certamente um edifcio compacto e coerente, cujas paredes esto fora de dvida assentadas sobre as duas fontes principais, do Alcoro de um lado e da coletnea dos Ditos e Atos do Profeta (a tradio oral, transcrita e transmitida por uma cadeia de fiis transmissores e testemunhas), do outro lado, mas s vezes pontilhadas pelo direito consuetudinrio e pelos usos locais que no decurso da sua expanso, entre os sculos VII e IX, o Isl ia encontrando e no conseguia suprimir [...] Alm disso, justamente porque o problema fundamental que os primeiros Estados imperiais muulmanos tiveram de encarar era a distncia entre tudo o que se achava contido nas fontes sagradas acima mencionadas e a realidade social e poltica que ia se tornando mais complexa e diferente da pequena comunidade originria nos tempos do Profeta, por mais de dois sculos se havia dado um amplo espao ao trabalho interpretativo de peritos em questes religiosas. Estes, muitas vezes, tiveram de recorrer ao raciocnio analgico ou a uma verdadeira hermenutica dos textos sagrados para encontrar amparo visando a definio de novas regras jurdicas e sociais (PACE, 2005, p. 329-330).

    Importa ainda destacar que a xaria, embora seja reivindicada como universal, tem sua aplicao amplamente variada nos pases de maioria muulmana, ou seja, no se caracteriza como cdigo fixo aplicado igualmente nos diversos contextos sociais (o que se aproxima muito dos procedimentos da Commor Law, por exemplo). E, nesse contexto, vale ressaltar tambm que xiitas e sunitas divergem sobre alguns pontos interpretativos da lei cornica. Nesse sentido, os processos de interpretao da lei cornica e as diferentes leituras quanto aplicabilidade da xaria permitem, de alguma maneira, o desenvolvimento do projeto de internacionalizao dos direitos humanos sem anular, todavia, as diversidades culturais.

    LEGITIMIDADE EM QUESTO

    Ao tratar da relao entre o Isl e os direitos humanos, Pace (2005, p. 323) afirma que [...] a dificuldade maior que o Isl encontra na recepo cabal do paradigma dos direitos humanos, da maneira como se consolidaram no seio da ONU, estrutural porque se refere ao problema no resolvido da falta do princpio de legitimao da autoridade. E segue: Pode parecer paradoxal, mas no Isl, [...] a crena no fim do ciclo da profecia com Muhammad tem consequncias

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    inesperadas: nenhuma pessoa, depois do Profeta, tem o poder de interpretar a revelao originria (PACE, 2005, p. 323-324).

    Somado variedade das fontes do ncleo normativo de pases de maioria muulmana e possibilidade de uma diversidade de interpretaes, Pace destaca a questo estrutural da legitimidade de direitos no Isl. Segundo o autor, Entre o Isl e a poltica se interpe o direito no Isl [...] (PACE, 2005, p. 324), mas quando se fala de dficit estrutural de legitimao no Isl como desafio adeso ao sistema de direitos humanos, refere-se s caractersticas originrias, particularmente fuso entre as dimenses religiosa e poltica. Quanto s normas jurdicas, vale ressaltar que a motivao tico-religiosa que as inspira; assim, qualquer sistema de lei acaba sendo um projeto submetido a contnuas tenses interpretativas.

    Dada a juno das funes de liderana espiritual e poltica durante a vida do Profeta Maom [...] o Isl insiste na unidade de ambos pela frmula din-wa-dawla (religio e Estado) e com isso recusa uma sociedade secular [...] (ANTES, 2003, p. 123); o que desde a morte do Profeta constitui problemas muito especficos de secularizao devido forte inter-relao entre religio e poltica que se deu nos tempos em que viveu. O que, como aborda Pace, uma questo de carisma10:

    Em virtude do seu carisma espiritual, este acabou exercendo a dupla funo de reformador religioso, sobretudo na primeira fase da sua pregao em Meca e, em seguida, de lder poltico, na cidade de Medina. A legitimidade no comando tinha sua fonte na autoridade carismtica do Profeta. [...] religio e poltica no podiam ser separadas, porque o carisma pessoal, a graa extraordinria recebida por Muhammad com a revelao era indivisvel, por definio (PACE, 2005, p. 325).

    E, como nos faz lembrar Weber (1991, p.141), no caso da dominao carismtica [...] obedece-se ao lder carismaticamente qualificado como tal, em virtude de confiana pessoal em revelao, herosmo ou exemplaridade dentro do mbito da crena nesse seu carisma. Nesse sentido, a base da ideia weberiana de

    10 Weber (1991) denomina carisma a qualidade inslita de uma pessoa que parece dar provas de um poder sobrenatural, sobre-humano ou pelo menos desusado, de sorte que ela aparece como um ser providencial, exemplar, ou fora do comum e, por essa razo, agrupa em torno de si discpulos ou partidrios.

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    legitimidade relacionada crena, seja no carisma do lder, seja no domnio tradicional, se distingue da legitimidade jurdica ocidental que opera a partir da separao entre direito e moral. A questo que para o Isl, e como visto em alguns documentos de direitos humanos, a lei islmica tanto fundamento de leis morais, como uma referncia jurdica. A conexo entre poltica, direito e religio no Isl tem pesos diferentes para cada um dos pases de maioria islmica, assim como dentro da heterognea sociedade muulmana, mas no um peso que pode ser ignorado.

    Habermas discute a introduo de liberdades subjetivas ao tratar do direito moderno e comenta a separao entre direito e moral: o direito moderno diferencia-se das ordens jurdicas tradicionais justamente pelo fato de separar direito de moral. Para o autor, Enquanto os direitos morais so derivados de obrigaes recprocas, as obrigaes jurdicas o so da delimitao legal das liberdades subjetivas (HABERMAS 2001, p. 144-145). Nesse sentido, a legitimidade dos direitos humanos firmados nas Naes Unidas pensada no contexto do Estado moderno, ou seja, em termos weberianos, do Estado racional legal. Portanto, sua legitimidade est ligada relao entre secularidade e direitos do homem: requisito da constituio de uma sociedade moderna de direito onde h a autonomia das esferas, e que em tese garante igualdade e liberdade a todos os indivduos.

    Trata-se, pois, de formas de legitimidades distintas, frutos de histrias e de culturas demarcadas. Diante disso, levanta-se o debate sobre a pretenso de universalidade dos direitos humanos. Cabe mencionar, nesse sentido, duas abordagens, mesmo que brevemente. Para Habermas (2001), os direitos humanos so legtimos como cdigo de validade universal nas questes interculturais, de modo que a legitimao desse sistema de direitos como linguagem e instrumento no cenrio internacional abre uma oportunidade de dilogo e reflexes a fim de esclarecer os pontos cegos supostamente existentes na declarao de 1948. Diante de argumentaes de que o talhe individualista e secular, assim como as fundamentaes do direito moderno tornam os direitos humanos um cdigo de validade universal, Habermas defende o direito moderno e, por consequncia, os direitos humanos como instrumentos vlidos para o processo de democratizao. Para ele, um processo de democratizao sob a diretriz do discurso racional possibilita o reconhecimento mtuo das culturas e a coexistncia dessas em um sistema de tolerncia e de igualdade de direitos.

    J para Said (1990), que toma o orientalismo como um fato poltico e cultural, o Oriente dado no s pela sua localizao geogrfica e pela sua

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    diferenciao cultural, como tambm pela concepo do outro que adquiriu na construo poltico-ideolgica do Ocidente. Segundo o autor, no trato com temas do Oriente, e consequentemente do mundo muulmano, h uma nfase nas distines entre o que nosso e o que deles (quanto concepo de mundo, por exemplo) sempre em uma designao avaliativa. Tal interpretao muitas vezes corresponde ao de se conceber o deles de acordo com o ponto de vista e em funo do que nosso. Nesse aspecto, a subordinao histrica de linguagem e de cdigos ao trato ocidental precisa ser considerada para que se evite as padronizaes culturais quando se aborda questes do mundo muulmano. O autor adverte, portanto, sobre o risco de aes de dominao poltica e cultural ao se tentar minimizar as diferenas entre tais sociedades.

    CONSIDERAES FINAIS

    Pode-se afirmar, a partir do que foi exposto, que a relao entre direitos humanos e Isl no est fadada incomunicabilidade, assim como no est determinada a uma supresso das diversidades culturais. Percebeu-se que h divergncias entre os fundamentos tico-morais das duas ordens (a moderna e a islmica) os quais se expressam, inevitavelmente, nos diferentes documentos de direitos humanos.

    Se por um lado o fator complicador da validade dos direitos humanos como declarados em 1948 pela Organizao das Naes Unidas em contextos de tradio muulmana de cunho estrutural, por outro, importante notar que h um esforo para assimilar o paradigma dos direitos humanos em muitos dos pases de tradio muulmana: o que acrescenta positivamente ao debate sobre a necessidade de garantia de direitos aos seres humanos do mundo inteiro..

    So muitos os estudiosos que se debruam sobre o tema deste artigo, tanto no ocidente como em pases islmicos. H uma vasta literatura em que os direitos humanos no mundo muulmano so objetos de pensamento, assim como h muitos trabalhos que problematizam a pretenso universal da Declarao da ONU. Vale ressaltar que no era a proposta deste texto dar conta desses debates, mas to somente tratar desses documentos e de alguns pontos-chave que eles apresentam, como dito.

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