1-2 sm - os livros de 1 e 2 samuel

15
Antigo Testamento II Históricos e Poéticos 96 OS LIVROS DE 1 E 2 SAMUEL INTRODUÇÃO No texto hebraico os dois livros de Samuel formam um só, porque na realidade a atual divisão não vem apenas interromper a história de Davi, como a da catástrofe em Gilboa, em que Saul tomou parte. Os LXX consideraram os livros de Samuel e dos Reis como uma história única do reino, dividindo-a, no entanto, em quatro partes. Chamaram- lhes então “Livros do Reino” e a Vulgata apenas “Livros dos Reis”, considerando os de Samuel como 1 e 2 dos Reis. A partir do tempo de Daniel Bomberg, no século XVI, muitas bíblias hebraicas continuaram a dividir o livro de Samuel, chamando-lhes 1 e 2 livros de Samuel. O AUTOR Embora no título apareça o nome de Samuel, não quer dizer que fosse ele o autor dos livros. Uma tradição judaica atribui-lhe, de fato, a autoria; mas, a aceitar tal hipótese, apenas a poderíamos admitir para os primeiros 24 capítulos de 1 Samuel. É fora de dúvida que os livros constituem uma compilação, se bem que Samuel seja realmente o autor duma grande parte do primeiro livro, pois devia conhecer profundamente a história do povo escolhido, por ter sido chefe das escolas dos profetas. É que nas escolas desse tempo (por Samuel freqüentadas), que formavam o centro da cultura da nação, guardavam-se vivas as relações de Deus com o Seu povo. Em 1Cr 29.29 lemos no hebraico: “As crônicas do rei Davi, eis que estão escritas nas crônicas de Samuel, o vidente (roeh), e nas crônicas do profeta (nabi) Natã, e nas crônicas de Gade, o vidente (chozeh)”. Houve, portanto, acontecimentos narrados por Samuel, Natã e Gade e o compilador das Crônicas fez alusão àqueles autores, enquanto nas suas obras se encontram dispersos “os sucessos” do rei Davi. Por outro lado, achamos que certas páginas das Crônicas contêm quase os mesmos acontecimentos que os dos livros de Samuel, com ligeiras alterações, evidentemente. Mas dá-nos a impressão que o autor das Crônicas tem à mão todos os elementos de que se serve, o que não acontece com o compilador de Samuel. Sabemos que alguns documentos eram conservados ao lado da arca, desde o tempo de Moisés, e Samuel foi educado em Silo, precisamente junto da arca. Nada mais natural que viesse a interessar-se pela história de Israel, e que a ampliasse até, uma vez que não lhe faltavam dotes de escritor. Recorde-se que, quando Saul subiu ao trono, foi Samuel quem preparou uma constituição para o reino “e escreveu-a num livro e pô-la perante o Senhor” (1Sm 10.25). Existia, pois, um documento escrito, e junto da arca. Em 2Cr 9.29 novamente se faz alusão a Natã, mas desta vez como autor da história dos feitos de Salomão. Outros profetas são ainda citados como fontes para a história daquele reinado. Há muitas mais referências no Velho Testamento aos profetas, como autoridades para a história de outros reinados. Temos, pois, a certeza que Samuel, Natã e Gade, ou foram autores diretos dos livros de Samuel, ou pelo menos dos seus escritos foram compilados os acontecimentos que compõem aquilo a que chamamos “Livros de Samuel”. Quanto a Samuel, confirmam-no testemunhas contemporâneas, sabemos que viveu quase até ao fim do reinado de Saul. Natã e Gade sobreviveram a Davi. Importa sublinhar as íntimas relações de Davi não só com o próprio Samuel, como com a escola dos profetas em Naioth (cfr. 1Sm 19.18). Natã e Gade também andavam por vezes intimamente associados a

Upload: julie-george

Post on 14-Sep-2015

20 views

Category:

Documents


3 download

DESCRIPTION

Introdução ao AT - H 4.

TRANSCRIPT

  • Antigo Testamento II Histricos e Poticos 96

    OS LIVROS DE 1 E 2 SAMUEL

    INTRODUO

    No texto hebraico os dois livros de Samuel formam um s, porque na realidade a

    atual diviso no vem apenas interromper a histria de Davi, como a da catstrofe em

    Gilboa, em que Saul tomou parte. Os LXX consideraram os livros de Samuel e dos Reis

    como uma histria nica do reino, dividindo-a, no entanto, em quatro partes. Chamaram-

    lhes ento Livros do Reino e a Vulgata apenas Livros dos Reis, considerando os de Samuel como 1 e 2 dos Reis.

    A partir do tempo de Daniel Bomberg, no sculo XVI, muitas bblias hebraicas

    continuaram a dividir o livro de Samuel, chamando-lhes 1 e 2 livros de Samuel.

    O AUTOR

    Embora no ttulo aparea o nome de Samuel, no quer dizer que fosse ele o autor dos

    livros. Uma tradio judaica atribui-lhe, de fato, a autoria; mas, a aceitar tal hiptese, apenas

    a poderamos admitir para os primeiros 24 captulos de 1 Samuel.

    fora de dvida que os livros constituem uma compilao, se bem que Samuel seja

    realmente o autor duma grande parte do primeiro livro, pois devia conhecer profundamente

    a histria do povo escolhido, por ter sido chefe das escolas dos profetas. que nas escolas

    desse tempo (por Samuel freqentadas), que formavam o centro da cultura da nao,

    guardavam-se vivas as relaes de Deus com o Seu povo.

    Em 1Cr 29.29 lemos no hebraico: As crnicas do rei Davi, eis que esto escritas nas crnicas de Samuel, o vidente (roeh), e nas crnicas do profeta (nabi) Nat, e nas crnicas

    de Gade, o vidente (chozeh). Houve, portanto, acontecimentos narrados por Samuel, Nat e Gade e o compilador das Crnicas fez aluso queles autores, enquanto nas suas obras se

    encontram dispersos os sucessos do rei Davi. Por outro lado, achamos que certas pginas das Crnicas contm quase os mesmos acontecimentos que os dos livros de Samuel, com

    ligeiras alteraes, evidentemente. Mas d-nos a impresso que o autor das Crnicas tem

    mo todos os elementos de que se serve, o que no acontece com o compilador de Samuel.

    Sabemos que alguns documentos eram conservados ao lado da arca, desde o tempo

    de Moiss, e Samuel foi educado em Silo, precisamente junto da arca. Nada mais natural

    que viesse a interessar-se pela histria de Israel, e que a ampliasse at, uma vez que no lhe

    faltavam dotes de escritor. Recorde-se que, quando Saul subiu ao trono, foi Samuel quem

    preparou uma constituio para o reino e escreveu-a num livro e p-la perante o Senhor (1Sm 10.25). Existia, pois, um documento escrito, e junto da arca. Em 2Cr 9.29 novamente

    se faz aluso a Nat, mas desta vez como autor da histria dos feitos de Salomo. Outros

    profetas so ainda citados como fontes para a histria daquele reinado.

    H muitas mais referncias no Velho Testamento aos profetas, como autoridades para

    a histria de outros reinados. Temos, pois, a certeza que Samuel, Nat e Gade, ou foram

    autores diretos dos livros de Samuel, ou pelo menos dos seus escritos foram compilados os

    acontecimentos que compem aquilo a que chamamos Livros de Samuel. Quanto a Samuel, confirmam-no testemunhas contemporneas, sabemos que viveu

    quase at ao fim do reinado de Saul. Nat e Gade sobreviveram a Davi. Importa sublinhar as

    ntimas relaes de Davi no s com o prprio Samuel, como com a escola dos profetas em

    Naioth (cfr. 1Sm 19.18). Nat e Gade tambm andavam por vezes intimamente associados a

  • Antigo Testamento II Histricos e Poticos 97

    Davi (cfr. 1Sm 22.5; 2Sm 24.11; 2Cr 29.25; 2Sm 7.2-17; 2Sm 12.25; 1Rs 1.8-27). Ningum

    duvida da existncia de crnicas oficiais do rei Davi, como se deduz de 1Cr 27.24.

    Havia ainda uma literatura potica da nao, tal como o livro do Reto (Jaser) (2Sm

    1.18), que deve ter sido uma coleo de cnticos e baladas em honra dos heris nacionais.

    Em fontes como estas que o autor dos livros de Samuel se deve ter inspirado (cfr. 1Sm

    2.1-10; 2Sm 3.33-34; 2Sm 22.1-51).

    O NOME

    O fato de os livros terem o nome de Samuel suficiente para demonstrar a estima em

    que ele era tido. Assim, entre os judeus era considerado um chefe nacional, um segundo

    Moiss. Se este libertou Israel das garras dos egpcios, dando-lhes uma lei e levando-os at

    vista da Terra da Promisso, Samuel foi por Deus enviado para libertar tambm Israel,

    quando j as esperanas pareciam perdidas. Sob o ponto de vista espiritual e poltico a nao

    parecia virtualmente perdida, quando Eli estava prestes a deixar esta vida (cfr. 1Sm 4.12-22;

    Sl 78.59-64; Jr 26.6). Com Samuel surgiu uma maravilhosa renovao espiritual e uma nova

    esperana inundou os coraes (1Sm 7).

    Julgam muitos ser Samuel o fundador das escolas dos profetas, que durante sculos

    to profunda influncia exerceram na vida da nao. volta destas escolas no s se

    respirava o ambiente da vida espiritual de Israel, mas ainda o de sua vida cultural e

    educativa. Se Moiss promulgou a Lei, foi Samuel quem garantiu que ela fosse propagada

    juntamente com outras revelaes de Deus.

    Ao mesmo tempo, Samuel era o instrumento providencial de Yahweh para guiar o

    povo de Israel no momento crtico da mudana da era dos juzes para a monarquia.

    Expectativa e prudncia! Deus pedia a Samuel nessa altura para incutir no povo o ideal

    duma monarquia constitucional sob a orientao do mesmo Deus, j que o rei devia

    observar a Lei e ser guiado pelas revelaes de Deus atravs dos profetas. Quando Saul

    falhou na sua misso, aps ondas de crimes e de despotismo, l estava Samuel, sempre

    bafejado pela sombra protetora de Deus, a preparar Davi para ser um rei segundo o corao de Deus. Apesar de algumas fraquezas, nunca Davi se colocou acima da Lei de Deus, nunca faltou ao respeito aos Seus profetas. por isso que os livros de Samuel tm como

    principal objetivo narrar a histria do rei Davi.

    Podia Samuel considerar-se deveras privilegiado, quando lhe foi concedida a misso

    de dar aos profetas o verdadeiro lugar que lhes competia na vida do povo israelita. Ao

    mesmo tempo, foi o introdutor da monarquia e o legislador providencial para que se

    preparasse convenientemente o caminho quele que seria Profeta, Sacerdote e Rei. S um

    homem como Samuel poderia, portanto, ter a honra de dar o nome ao conjunto dos dois

    livros presentes.

    DATA DA COMPILAO

    Pelo estilo do livro, somos levados a considerar a data da sua compilao numa

    poca muito remota. ainda o hebraico puro que encontramos nessas pginas de raro e vivo

    colorido, isento das expresses aramaicas e formas mais recentes, que se encontram noutros

    livros. Deve ter sido escrito pouco tempo depois da primeira apresentao de Saul a Samuel.

    Nessa poca o termo roeh (vidente) aplicava-se ao profeta. Mas quando se fez a compilao j se usava o termo nabhi, sendo necessrio explicar s novas geraes o significado de

  • Antigo Testamento II Histricos e Poticos 98

    roeh (cfr. 1Sm 9.9). Se se chegar concluso de que se trata, na realidade, duma nota adicional, esta pode ter sido acrescentada muito depois da compilao.

    Seja como for, o livro deve ter sido compilado depois da morte de Davi (cfr. 2Sm

    5.5), porque se indica a extenso do seu reinado. Antes do reinado de Roboo no deve ter

    sido, pois, j Israel se encontrava separado de Jud (cfr. 1Sm 27.6), atendendo a aluso aos

    reis de Jud. Os LXX tambm admitem uma data posterior a Roboo (cfr. 2Sm 8.7; 2Sm 14.27). O estilo do livro assim o reclama, aliado ao fato de no se fazer referncia a

    qualquer acontecimento passado depois daquela poca.

    CRONOLOGIA

    A seguir a cronologia mais ou menos aproximada dos principais acontecimentos:

    Nascimento de Samuel - 1090

    Vocao de Samuel - 1080

    Morte de Eli. Samuel juiz - 1070

    Saul sobe ao trono - 1040

    Morte de Samuel - 1015

    Morte de Saul em Gilboa - 1010

    Davi rei de Jud - 1010

    Davi rei de todo o Israel - 1003

    Convm notar que se passa em silncio uma grande parte da histria de Saul, talvez

    um espao de cerca de vinte anos. Era jovem, e possivelmente solteiro, quando foi eleito

    (1Sm 9.2). Os acontecimentos dos caps. 10 e 11 parece que sucederam aos do captulo 9

    com um intervalo pequenssimo. Quando se torna a falar em Saul, j pai dum valente

    soldado-Jnatas. Quer dizer que se passaram uns vinte anos, pelo menos. O principal

    objetivo do autor no historiar a vida de Saul, mas, sim, a do grande Davi.

    FORMA LITERRIA E MENSAGEM

    Os livros de Samuel apresentam uma grande variedade de tcnicas literrias e uma

    tremenda complexidade no que diz respeito maneira pela qual foram compostos.

    Childs resume a situao atual da literatura samuelina como de perplexidade diante

    das dificuldades inerentes estrutura dos livros e da diversidade de abordagens

    hermenuticas de que se valem os estudiosos para tentar entender 1 e 2 Samuel como

    literatura (Brevard S. Childs, Introduction to the Old Testament as Scripture, pp. 270-271).

    Levando em conta a moldura pactual (aliana deuteronmica) utilizada pelo autor de

    Samuel, as seguintes caractersticas so importantes para construir uma teologia bblica

    desses livros:

    Contraste

    Uma das mais notveis tcnicas literrias de 1 Samuel o uso de contrastes para

    tornar bvia sua mensagem. Em geral, os contrastes que estabelece tm como ponto de

    referncia a aliana deuteronmica, especialmente quando trata de obedincia e

    recompensas. Assim, encontramos o contraste inicial entre Ana e Penina, em que a ltima

    despeja seu desprezo sobre a primeira devido a sua infertilidade, ao passo que Ana

    demonstra f em Yahweh, em vez de na fertilidade em si. Ana termina recompensada, no

  • Antigo Testamento II Histricos e Poticos 99

    com a simples concepo, mas com a honra de ter dado luz o filho que haveria de reverter

    a destino sombrio da nao.

    Bem visvel tambm o contraste entre Samuel e os filhos de Eli. Enquanto o jovem

    Samuel serve ao Senhor, os dois sacerdotes servem a si mesmos e desprezam o culto a

    Yahweh (cf. 1 Sm 2.17, 18). Sua obedincia aliana foi recompensada com honra e

    longevidade, enquanto que a imoralidade escandalosa e a ganncia gritante de Hofni e

    Finias teve como recompensa a morte prematura e a infmia permanente.

    Um exemplo final, entre muitos, o contraste chocante entre Jnatas e Saul, seu pai.

    Saul relutou em confiar no Senhor para a vitria (1 Sm 13.8s.), ao passo que Jnatas foi

    audaz em sua f (14.6). Saul esperou as coisas acontecerem em Gibe (13.8-13), enquanto

    Jnatas fez as coisas acontecerem em Micms (14.1-14). Saul no se preocupou com o bem-

    estar do povo (14.24), mas Jnatas o fez (14:29-31). Saul foi inconstante em sua devoo a

    Yahweh (passim), ao passo que Jnatas perseverou em sua lealdade. Por fim, em um

    contraste que acabaria por determinar o destino de ambos, Saul no reconheceu a indicao

    de Davi como vinda de Yahweh (20.31), enquanto Jnatas altruistamente reconheceu que

    Davi tomaria o lugar que caberia a ele, Jnatas, como sucessor de Saul no trono de Israel

    (18.4; 23.17).

    Justaposio de personagens

    Esse recurso literrio parcialmente relacionado ao contraste, mas difere em dois

    pontos: (a) a justaposio de personagens traz consigo uma das nfases teolgicas que o

    autor deseja firmar na mente dos leitores, ou seja, que a lealdade aliana essencial para o

    desfrute de vitalidade e prosperidade no contexto da teocracia, tanto na monarquia quanto

    fora, na confederao tribal; e (b) o motivo da inverso de sorte destaca-se mais claramente

    do que quando simples contrastes so empregados (veja John A. Martin, The Literary Quality of 1 and 2 Samuel, Bibliotheca Sacra 141:562 (abril-junho 1984):131-44. Um livro muito til no estudo das narrativas bblicas Ele Nos Deu Histrias (He Gave Us Stories),

    de Richard L. Pratt, Jr., especialmente o captulo 6).

    Assim, em cada uma das quatro divises principais do livro podem ser encontradas

    justaposies de personagens ligadas a exemplos de inverso de papis, no esquema geral

    de inverso de sorte.

    A TEOLOGIA DE 1 SAMUEL (A PESSOA E O CARTER DE DEUS)

    A proposio mencionada na pgina anterior fornece indcios quanto teologia no

    apenas de 1 Samuel, mas de ambos volumes. Juntos, 1 e 2 Samuel servem para dar nao,

    mais especificamente a seus lderes, uma viso apropriada da monarquia nos limites de sua

    categoria mais ampla, a teocracia.

    O conceito (vrias vezes mencionado ou sugerido) de que o rei estava sujeito s

    estipulaes da aliana, conforme interpretadas pelos profetas, indicava claramente que a

    monarquia nunca seria o ltimo foro da vida israelita. A autoridade ltima e,

    conseqentemente, a lealdade ltima cabiam sempre a Yahweh, e transferi-las para um rei

    humano era to mau quanto oferec-las a um deus pago. Essa ntima ligao entre a

    idolatria do Estado e o paganismo pode ser vista em 1 Samuel 12.

    De outro lado, todo o livro de 1 Samuel conduz o leitor direo da monarquia

    davdica como o agente escolhido por Yahweh para dar continuidade teocracia (=

    soberania mediada) na histria, seguindo as linhas prolepticamente traadas no cntico de

  • Antigo Testamento II Histricos e Poticos 100

    Ana humildade e dependncia de Yahweh trazem vitalidade e permanncia, enquanto que a auto-suficincia condena os indivduos e a nao ao fracasso (Cf. as observaes de Ralph

    Klein, 1 Samuel, WBC, pp. 119-20).

    Sua soberania

    quase impossvel deixar de perceber este tema nos livros de Samuel, e seus

    exemplos mais luminosos ocorrem no primeiro volume. A interveno em favor de Ana e

    sua contnua fertilidade, depois de Samuel ter sido efetivamente dedicado a Yahweh, so o

    primeiro exemplo da capacidade divina de controlar a vitalidade do indivduo em resposta

    f humilde.

    Talvez a demonstrao mais dramtica da soberania de Yahweh surja na narrativa da

    arca (1 Sm 4 6). Ao contrrio do que pensam alguns comentaristas que a consideram uma narrativa isolada inserida ao acaso no texto, (Hertzberg, I & II Samuel, p. 46, afirma: A segunda diviso principal dos livros de Samuel no tem ligao direta com a primeira ...

    conclui-se corretamente que a segunda diviso teve, originalmente, existncia

    independente. A questo da origem independente da narrativa no invalida o fato de que o autor tem para ela uma funo importante e um significado especial no todo de sua obra.

    Hertzberg retrata o perigo de darmos excessiva ateno aos detalhes e perdermos a viso do

    todo) essa diviso demonstra no s a superioridade de Yahweh sobre os deuses com quem Israel flertava (supondo que eles concediam vida melhor aos povos volta), mas tambm a

    necessidade de uma atitude correta em relao ao culto em Israel. Yahweh soberanamente

    remove aqueles que se consideravam acima dos requisitos da lei (cf. 3.34; 4.10, 11),

    soberanamente humilha Dagom, lanando o dolo por terra diante da arca da aliana e

    quebrando sua cabea e mos como sinal da impotncia de Dagom diante de Yahweh,

    soberanamente pune os filisteus com uma praga devastadora, ensinando-os que Ele no

    um mero amuleto ou fetiche a ser carregado como trofu de batalha, mas o verdadeiro Deus

    do universo. Ainda em Israel, essa soberania apresentada no caso dos moradores de Bete-

    Semes e Quiriate-Jearim, em que os primeiros sofrem por sua atitude profana em relao

    arca, e os ltimos so abenoados por sua reverncia.

    A soberania divina exercitada de acordo com as bnos e maldies estipuladas na

    aliana. O arrependimento nacional, sob a liderana de Samuel, trouxe a vitria (7.3-12) e o

    alvio (temporrio) da opresso dos filisteus (7.13). O padro operacional de Yahweh fica

    claro: O Deus soberano abenoar a nao enquanto esta permanecer humilde e for

    conduzida por um indivduo escolhido por Ele.

    Mesmo quando o povo interveio com seu pedido de um rei, a soberania de Yahweh

    superou a vontade humana, demonstrando Seu desprazer em relao viso antropocntrica

    dos israelitas, mas suprindo um lder que haveria de comprovar a verdade de Sua

    advertncia (1 Sm 8; 12.18).

    Os dois incidentes mais conhecidos do livro tambm apontam para a soberania de

    Yahweh: o combate entre Davi e Golias (17) e a entrevista de Saul com a mdium de En-

    Dor (28). No primeiro incidente, a confiana em Yahweh soberanamente recompensada

    com a vitria, a despeito da fora e experincia militar do adversrio. No segundo, Deus usa

    Samuel para demonstrar a inutilidade dos esforos desesperados de Saul para escapar ao

    soberano veredicto divino de tirar de sua dinastia o trono de Israel.

  • Antigo Testamento II Histricos e Poticos 101

    Sua lealdade pactual

    Embora a palavra (hesed, amor ou lealdade pactual) seja usada apenas uma vez no livro, com referncia a Yahweh (20.14), o conceito permeia o livro. Aqueles que se

    humilham, os que confiam em Yahweh para a realizao do impossvel, e aqueles que se

    alinham com o ungido de Yahweh so objeto de Seu hesed. Ana, o povo de Quiriate-Jearim,

    Samuel, Saul (no incio do reinado), Jnatas e Abigail so exemplos marcantes.

    A lealdade pactual, todavia, opera nos dois sentidos. As maldies sobrevm aos que

    arrogantemente rejeitam a direo de Yahweh em suas vidas. Os exemplos principais so

    Eli e seus filhos, os moradores de Bete-Semes, Saul (do meio para o fim do reinado) e

    Nabal.

    Jnatas a aparente contradio. Apesar de aparecer no livro como a eptome da

    lealdade, ele encontra uma morte trgica em Gilboa. A razo de tal fato se acha em outro

    princpio relacionado aliana o da solidariedade corporativa. A rejeio pessoal de Saul tambm significou a rejeio corporativa de sua famlia. Jnatas anteviu esse fato, mas no

    previu que seu filho, e no ele mesmo, seria o beneficirio da lealdade pactual de Davi

    (20.12-15; 41-42) (Mefibosete, o filho aleijado de Jnatas, foi realmente favorecido com a

    lealdade pactual de Davi, mesmo depois de vrios incidentes em que a rejeio de Saul

    continuou a afetar seus descendentes (cf. 2 Sm 9.1-12; 19.24-30; 21.1-14).).

    Esse conceito da lealdade pactual de Deus tem por referencial no apenas a aliana

    deuteronmica, mas tambm a abramica, que subjaz o propsito aparente do autor em

    descrever o funcionamento da aliana deuteronmica na histria da nao.

    Sua imutabilidade

    Primeiro Samuel um campo de batalha para a doutrina da imutabilidade de Deus. O

    conceito aparece, primeiramente, nas narrativas da transio teocrtica nos captulos 8 a 12,

    em que o porta-voz de Yahweh parece vacilar entre a aprovao e a rejeio da monarquia.

    Essa aparente contradio foi tratada anteriormente (pp. 259, 260) e aqui basta mencion-la.

    A rejeio divina no relacionava-se ao conceito de monarquia em si (uma antiga

    expectativa israelita, cf. Gn 49.10), mas ao conceito popular de um rei fac totum, que viesse

    a ser a garantia humana de uma vida segura para Israel, em Cana. A monarquia seria o

    instrumento escolhido, mas a fonte das bnos da aliana s poderia ser o doador da

    aliana.

    Outra passagem controvertida o relato, no captulo 15, da rejeio de Saul, em que

    o autor parece afirmar, com um canto da boca, que Deus mudar de idia em relao

    escolha de Saul como rei (15.10,35), e, com o outro, parece afirmar categoricamente a

    imutabilidade divina (15.29). Essa aparente contradio explicada satisfatoriamente pelo

    uso de linguagem antropomrfica (Hertzberg oferece uma explicao alternativa. Ele diz:

    Deus no est escravizado s suas prprias decises, mas de tal modo todo-poderoso que senhor tambm de suas decises. Assim como ele leva em conta nas suas decises a ao

    humana, de modo que a onipotncia jamais significa que o homem seja privado de sua

    responsabilidade, assim, tambm, a eleio do rei no irrevogvel (I & II Samuel, p.126. A explicao deixa no ar a possibilidade de mudana no decreto de Deus, que no parte

    essencial de Seu ser, mas reflete seu carter totalmente sbio. Apesar de amenizar a idia de

    arrependimento, a alternativa me parece insuficiente). A mudana em um procedimento visvel explicada como uma mudana emocional na pessoa de Deus, quando, na realidade,

    o desenvolvimento de Seu propsito imutvel que inclua novos meios, instrumentos e

  • Antigo Testamento II Histricos e Poticos 102

    direes, dando assim ao autor humano das Escrituras a impresso de que o plano de Deus

    havia sido alterado.

    Deus e o incidente de En-Dor

    Este famoso incidente uma constante fonte de perplexidade para cristos e

    opositores do cristianismo. Estes ltimos buscam nele apoio para prticas como mediunismo

    e incorporao de espritos (o chanelling da Nova Era), e ignoram as proibies claras

    contra tais prticas no restante da Escritura. Os primeiros procuram eliminar a apario real

    de Samuel, argumentando que no h uma identificao positiva de Samuel e dando a

    entender que este incidente apenas um caso de charlatanismo por parte da mdium e de

    equvoco da parte de Saul (um tratamento popular do assunto o livreto Saul e a Mdium de

    En-Dor, de Gilberto Stevo. Hertzberg circunda o problema propondo que a leitura do texto

    precisa ser emendada, o que na prtica significa eliminar o elemento sobrenatural da

    narrativa (I & II Samuel, p. 218-219). Klein (1 Samuel, p. 270s.) e Eugene Merrill (1 and 2 Samuel, The Bible Knowledge Commentary, OT Edition, pp. 435-454) preferem o ponto de vista de que foi realmente Samuel quem apareceu. As notas da Bblia Shedd, de autoria de

    Frederico Vitols, apresentam uma batelada de argumentos aparentemente convincentes

    contra a possibilidade de Samuel ter aparecido. Em um exame mais cuidadoso, verifica-se

    que as evidncias foram ajustadas para se conformarem a uma teoria predeterminada).

    Tais abordagens ignoram, em primeiro lugar, o artifcio literrio do autor em pr Saul

    busca de Samuel, no incio e no fim de sua carreira. Dessa maneira, ele espera

    impressionar seus leitores com a rejeio total de Saul. A meno ao manto (28.14) e a

    referncia ao reino ser arrancado das mos de Saul (28.17) so aluses claras a 1 Samuel

    15.27,28, ocasio em que a fatdica promessa fora feita. A mensagem desta percope clara:

    Saul j passou do ponto em que o retorno possvel e, assim, no h mais esperana para

    ele. Nem os vivos nem os mortos podem ajud-lo a escapar do juzo de Yahweh. Esta

    passagem indica que a obedincia a Deus no pode ser determinada pela convenincia

    humana: os que escolhem adiar a obedincia espera de uma ocasio mais favorvel podem

    vir a lamentar para sempre tal escolha.

    A ADMINISTRAO DOS PROPSITOS DE DEUS

    As quatro linhas de ao de Deus na histria, por meio das quais Ele opera para

    restabelecer Sua soberania mediada sobre o universo, esto presentes em 1 Samuel pelo

    menos uma vez, e a maioria se manifesta mais de uma vez.

    A permisso do mal

    O primeiro exemplo desta linha de atividade de Deus a conduta escandalosa dos

    filhos de Eli (2.12-17), cuja distoro do culto para fins egostas, quando a arca capturada

    pelos filisteus, por fim se volta contra eles mesmos. possvel dizer o mesmo dos filhos de

    Samuel, cuja tica distorcida e indulgente contrasta dramaticamente com a conduta

    inatacvel de seu pai como juiz (8.2, 3; cf. 12.3). H ainda, claro, Saul e sua conduta

    progressivamente rebelde, contra Yahweh e as exigncias de Sua aliana (13.7-14; 15.1-23),

    e maldosa, contra Davi, seu sucessor escolhido por Deus. O exemplo mais chocante dessa

    ao de Deus a permisso para que Samuel retorne dentre os mortos para confirmar a

    rejeio definitiva de Saul (cap. 28).

  • Antigo Testamento II Histricos e Poticos 103

    A promessa/ao de julgar o mal

    Estas promessas, em termos de exaltao dos humildes e queda dos arrogantes, esto

    contidas no cntico de Ana (2.1-10). Em todo o livro, encontramos o tema na ameaa

    proftica contra a casa de Eli (2.27-36) e em seu macabro cumprimento (4.1-12). O mesmo

    tema resplandece no triunfo da arca sobre os deuses dos filisteus (caps. 46), na execuo de Agague por Samuel (15.32, 33), na remoo do Esprito de Yahweh de Saul devido a sua

    rebeldia (16.14), e na derrota final do rei pelas mos dos filisteus (cap. 31).

    A libertao do mal para/por uma semente escolhida

    Esta linha de ao divina tem seu primeiro exemplo na narrativa do nascimento de

    Samuel e em sua gradativa capacitao para servir como o agente divino de libertao (caps.

    13, 7). Saul desperdia sua oportunidade de tornar-se o instrumento escolhido por Deus, a despeito de agir assim por algum tempo (caps. 11, 1415 [em que, todavia, Jnatas desempenha o papel mais positivo]). Davi torna-se a semente escolhida, e, aps poucos

    pargrafos, o autor demonstra a disposio do jovem pastor em cumprir tal papel como

    tambm sua capacidade de agir como libertador (cap. 17; cf. 18.7, 14). A despeito de falhas

    ticas, que o autor no faz qualquer questo de esconder, Davi permanece como o principal

    libertador de Israel, medida que Saul vai desaparecendo de cena devido sua conduta

    autodestrutiva. Quando o livro termina, com a famlia de Saul dizimada, Davi aparece como

    a nica alternativa para que Israel sobreviva como nao livre.

    O decreto de abenoar os eleitos

    Esta quarta linha de ao divina no muito proeminente em 1 Samuel, pois sua

    apario aguarda a plena manifestao de Davi como o regente escolhido de Yahweh, o rei

    cuja casa Ele promete estabelecer para sempre. Apesar disso, h indcios presentes em 2.9,

    10, quando Ana antev a bno de Yahweh sobre os humildes e a escolha de um (msah, i.e., Ungido), como tambm na promessa do profeta annimo a Eli (2.35), em que Yahweh promete abenoar e estabelecer a casa de Seu sacerdote fiel (promessa cumprida

    em Zadoque).

    Duas outras linhas de ao divina aparecem com importncia no desenvolvimento do

    livro e, embora possam ser encaixadas nas quatro linhas tradicionais, contribuem de maneira

    especial para a mensagem do livro e merecem ser destacadas.

    Yahweh age como o grande inversor da sorte

    Esta atividade, que j foi considerada anteriormente, esboada no cntico de Ana

    (2.1-10). Em todo o livro, o destino dos pobres, dos desprezados, dos humilhados e dos

    amargurados modificado de acordo com sua fidelidade aliana, que prova de sua f em

    Yahweh. Davi, obviamente, o exemplo maior de tal atividade. Sua constante recusa em

    tomar a histria nas prprias mos (eliminando Saul) demonstra sua f na promessa divina

    feita por intermdio de Samuel, bem como na capacidade divina de estabelec-lo como

    regente da monarquia teocrtica que seria o meio de Yahweh dirigir Seu povo, Israel.

  • Antigo Testamento II Histricos e Poticos 104

    Yahweh age como o estabelecedor da monarquia

    No h dvida na mente deste autor de que o plano de Yahweh para a teocracia

    inclua, desde o princpio, a monarquia. As provises mosaicas (Dt 17) o indicam, e o

    cntico proftico de Ana revela o que pode ter sido a sensao predominante entre o povo

    durante o perodo dos juzes Israel precisa de um rei! desnecessrio postular inseres editoriais ou autoria recente para o cntico. Uma

    mulher guiada pelo Esprito foi usada para expressar uma verdade divina que Deus realizaria, no futuro, maravilhas em favor de Seu povo. A questo de Ana ter composto o

    salmo ou ter apenas recitado um salmo j existente totalmente irrelevante (veja os

    comentrios de Hertzberg (I & II Samuel, p. 29-30) sobre a falta de ligao entre o salmo e a

    histria de Ana. Ele evidentemente no percebeu a ligao crtica entre o cntico e a

    experincia de Ana e a maneira em que eles resumem a experincia de outros personagens

    do texto de 1 e 2 Samuel). O que o autor do livro quer comunicar que Deus tinha Seu

    plano traado, e a estratgia correta para realiz-lo.

    Por duas vezes, entretanto, Yahweh traria Seu povo ao ponto de total quebrantamento

    e quase aniquilao, em que Israel reconheceria a necessidade de se humilhar perante Ele,

    de se comprometer com Ele (este um dos propsitos da narrativa da arca), e de depender

    de Sua superioridade sobre outros deuses (7.2-4) e de Sua soberania sobre o povo da aliana

    (isto feito por meio dos discursos de Samuel sobre o tipo de monarquia que Israel teria e

    deveria ter).

    A TEOLOGIA DE 2 SAMUEL (A PESSOA E O CARTER DE DEUS)

    O estudo de 2 Samuel demonstrou, at aqui, que um narrador magistral queria

    comunicar verdade espiritual a seus leitores e reforar alguns conceitos teolgicos.

    O fato de poucas de suas avaliaes ser explcitas no diminui o impacto teolgico de

    sua obra, desde que o leitor esteja alerta para tcnicas literrias como as j mencionadas:

    insinuao, ambigidade, recapitulao, quiasma e repetio.

    Yahweh gracioso

    A graa de Deus jamais mencionada explicitamente no livro, mas permeia toda a

    narrativa. Ela mais claramente demonstrada nos dois eventos-chave do livro: o

    estabelecimento da aliana davdica e o pecado de Davi com Bate-Seba.

    No primeiro evento (7.117), a graa fica evidenciada na maneira pela qual Deus assume o cuidado de Davi (e, por meio dele, de toda a nao). Em vez de permitir que Davi

    Lhe construa uma casa (que O tornaria, de alguma forma, devedor ao rei), Yahweh promete

    abenoar Davi de tal forma que tudo que seus descendentes pudessem oferecer a Ele seria

    apenas uma nfima resposta quela demonstrao inicial do hesed divino. O amor leal de

    Yahweh no o fruto do amor leal do homem, mas a causa.

    A graa criativa de Yahweh tambm vista na elevao de um humilde pastor

    condio de grande rei (7.9), a quem vassalos prestaro homenagem. O prprio Davi

    demonstra surpresa diante de tal demonstrao (7.19).

    A graa de Deus tambm brilha em perdo, pelo fato de que o hediondo crime de

    Davi, embora jamais tolerado, perdoado. Adultrio e homicdio premeditado so tratados

    no conforme a Lei Mosaica, que prescrevia a pena capital para ambos (Lv 20.10; x

    21.14), mas de acordo com a graa que detecta o arrependimento e a confiana no carter

  • Antigo Testamento II Histricos e Poticos 105

    misericordioso de Yahweh. Essa mesma graa non ex opera demonstrada no captulo 24,

    quando o castigo divino suspenso antes que o anjo exterminador chegue a Jerusalm.

    Embora haja envolvimento humano em intercesso, esta no apresentada como a causa do

    ato divino de libertao, mas como seu mero (embora importante) instrumento.

    Yahweh severo

    A contrapartida da graa a severidade (cf. Rm 11.22). Em Sua santidade, Deus no

    permite que se zombe de Sua pessoa ou de Seu carter. Portanto, o desprezo de Saul pelo

    Senhor e Sua aliana (e.g. Arca, gibeonitas) punido pela justia divina sobre seus

    descendentes que, com a exceo de Mefibosete, morrem violentamente ou so submetidos

    vergonha da esterilidade (cf. Mical, no captulo 6).

    As mesmas conseqncias do pecado esto presentes, de maneira chocante, na vida

    de Davi. As ondas de choque de seu pecado fragmentam os sonhos de sua famlia de

    maneira qudrupla (de conformidade com seu julgamento em 2 Sm 12.6): o filho de seu adultrio morre, com Amnom, Absalo e Adonias. Pelo estupro de Bate-Seba (o leitor no

    informado de como ela reagiu no incidente), no apenas sua bela filha violada, mas suas

    concubinas tornam-se objeto do exibicionismo de Absalo, em sua ousada tentativa de

    tomar o trono de Israel.

    A vida de Davi prova clara de que o perdo espiritual no garante iseno da

    vergonha, do sofrimento e da tristeza, que invariavelmente acompanham o pecado em suas

    muitas formas. Yahweh escolheu perdoar a culpa sem poupar-lhe as conseqncias.

    Um exemplo final da severidade de Yahweh se acha na narrativa da arca em 2

    Samuel 6. Uz, apesar de bem-intencionado, estava agindo fundamentado em uma

    mentalidade humana e supersticiosa. Davi e seus homens tinham instrues mosaicas bem

    claras sobre como transportar a arca. O mtodo que escolheram sugere uma tentativa de

    duplicar o sucesso dos filisteus 70 anos antes. No entanto, para surpresa de Uz, e

    consternao tardia de Davi, a presena santa de Yahweh e o respeito obediente devido a

    Ele no podem ser tratados com leviandade.

    Yahweh soberano

    A maioria das referncias soberania de Yahweh est centralizada na pessoa de

    Davi. Pacientemente, ele espera que Yahweh torne realidade a promessa de ser o rei ungido

    de Israel, buscando a direo do Senhor (2.1,2) e esperando um pedido unificado das doze

    tribos.

    A soberania de Yahweh talvez aparea na esterilidade de Mical, depois de sua

    repulsa ao entusiasmo de Davi diante da arca do Senhor. A despeito das causas de tal

    esterilidade (uma interveno sobrenatural ou a simples recusa, por parte de Davi, em

    manter relaes sexuais com ela o que certamente seria a sorte mais amarga), a soberana rejeio divina da linhagem de Saul foi assim efetuada.

    O respeito que Davi tinha pela soberania de Yahweh transpira no relato da barragem

    de ofensas que Simei dispara contra o rei deposto (16.5-14). Davi, quando lhe oferecida a

    possibilidade de livrar-se de tal incmodo fsico e moral, recusa o gesto de lealdade de

    Abisai, aludindo possibilidade de que o prprio Yahweh tivesse soberanamente ordenado

    as aes de Simei (cf. 16.10).

  • Antigo Testamento II Histricos e Poticos 106

    Confiana semelhante subjaz em seu pedido para que Deus transtorne o conselho de

    Aitofel. Sua crena, todavia, no o impediu de empregar os servios de Husai e de

    estabelecer uma rede de espionagem na corte de Absalo.

    Embora 2 Samuel no apresente um quadro claro da escolha davdica de um

    sucessor, indcios da soberana escolha divina de Salomo podem ser encontrados no relato

    de seu nascimento (cf. 12.24). O menino, da inevitvel vergonha associada ao passado

    recente de sua me, foi alado posio de escolhido (amado; cf. Ml 1.2, 3). Jedidias, seu

    nome alternativo, derivado da mesma raiz verbal que o nome Davi, sugere que a mensagem de Nat a Davi tinha algo a ver com a escolha divina de Salomo como herdeiro

    do trono (cf. 1 Rs 1.13,30; 1 Cr 21.9,13). Assim, em certo sentido, a chamada narrativa da sucesso deveria chamar-se narrativa da eliminao, pois nela Deus vai soberanamente afastando os candidatos imprprios, enquanto opera, simultaneamente, as terrveis

    conseqncias do pecado de Davi (Merrill (Histria, p. 262), situa o incio de uma co-regncia entre Davi e Salomo por volta de 973 a.C., dois anos antes da morte de Davi).

    Uma ltima demonstrao da soberania de Yahweh surge no captulo 24, quando

    creditada a Ele a origem do censo. Primeiro Crnicas atribui tais pensamentos a Satans,

    que seria o agente designado soberanamente por Yahweh. O fato notvel que Yahweh

    soberanamente administra o uso satnico do orgulho e ambio humanos para punir algum

    pecado nacional no identificado (24.1) e produzir o bem maior na clara definio do local

    onde Seu culto ficaria centralizado e a unidade religiosa da nao seria obtida.

    A ADMINISTRAO DOS PROPSITOS DE DEUS

    Dentro do propsito qudruplo de Deus de permitir a existncia do mal, de julgar o

    mal, de vencer o mal em favor de uma semente escolhida, ou por meio dela, e de conceder

    Sua bno aos eleitos, o livro de 2 Samuel opera como o elemento de focalizao.

    Presumindo que a monarquia j havia sido definida como o agente temporrio de Deus em

    Israel (a despeito da falha grotesca de Saul), Yahweh julga o mal dentro da nao e liberta

    Seu povo escolhido (disciplinando Davi e removendo candidatos indignos ao trono), ao

    garantir a Israel no apenas alvio de opresses estrangeiras, mas domnio sobre antigos

    inimigos, de modo que a nao possa desfrutar a plenitude das bnos da aliana.

    O desenvolvimento da aliana abramica

    Segundo Samuel oferece um desenvolvimento da aliana abramica ao focalizar

    aquela promessa de que reis procederiam dos patriarcas (cf. Gn 17.6,16; 35.11). A profecia

    implcita de que um rei viria (cf. Dt 17.14s.) sugere que a monarquia operaria conforme o

    duplo mbito das duas alianas prvias.

    Isto parece claro em 2 Samuel 7.14: Se vier a transgredir, castig-lo-ei com vara de

    homens, e com aoites de filhos de homens. A promessa a Jud (Gn 49.10) garantia a

    natureza perptua da promessa feita linhagem de Davi; as ameaas da aliana

    deuteronmica garantiam o inevitvel resultado do pecado na vida de qualquer representante

    individual da linhagem.

    A aliana davdica floresce, por assim dizer, da semente prometida a Abrao, que

    ampliada para incluir uma casa ou dinastia (7.12,13a), um trono eterno (7.13b-15, 16b) e um

    reino eterno (7.16a). Essa promessa complexa surge tecnicamente sob a forma de uma

    aliana de doao real, um contrato pelo qual um soberano graciosamente concedia um benefcio, normalmente sob a forma de terra ou feudo, a um vassalo, quer por servios

  • Antigo Testamento II Histricos e Poticos 107

    prestados quer por pura generosidade e amor do soberano (para maiores detalhes sobre essa

    forma de pacto veja Moshe Weinfeld, The Covenant of Grant in the Old Testament and in the Ancient Near East, Journal of the American Oriental Society 90 (1970): 184-203. Uma passagem paralela importante o Salmo 89, que interpreta em forma de hino o orculo

    entregue por Nat (veja especialmente Sl 89.27, em que a natureza eterna do pacto

    enfatizada e testemunhas celestiais so invocadas).).

    A aliana tambm se baseia em Gnesis 49.10, que assegura que o direito de reinar

    sobre Israel pertencer a Jud; a partir desse ponto, a promessa afunila-se at chegar casa

    de Davi, antecipando assim o reino de Cristo.

    2 Samuel 7 tem vrias implicaes escatolgicas, das quais as mais importantes so:

    a) Israel deve ser preservado como nao; b) Israel, por fim, reconquistar pleno controle da

    terra oferecida a Abrao; e c) o Grande Filho de Davi retornar corporalmente e

    estabelecer o reino davdico.

    Sacerdcio da ordem de Melquisedeque em 2 Samuel

    As tradues modernas de 2 Samuel 8.18, no apenas em portugus, mas tambm em

    ingls, evitam uma questo significativa, mas problemtica, ao dar um significado geral

    palavra hebraica (khn, sacerdote). Ao fazerem isso, seguem uma antiga tradio, j que tanto o livro de Crnicas quanto a Septuaginta fizeram o mesmo para evitar a palavra

    problemtica. Duas outras referncias complicam o problema: 2 Samuel 20.26 e 1 Reis 4.5.

    A maioria dos comentrios consultados (com exceo de 2 Samuel, de P. R. Ackroyd

    [CBC]), considera, a priori, que era impossvel que os filhos de Davi tenham oficiado como

    sacerdotes (o sentido normal da palavra kohen). Essa posio, porm, ignora uma forte

    tradio de sacerdcio real no Antigo Testamento. As aes de Davi, em 2 Samuel 6, seriam

    absolutamente absurdas (oferecer sacrifcios, abenoar o povo etc.) a no ser que ele

    estivesse convicto de que, em virtude de sua captura de Jerusalm e do papel real que ali

    exercia, estava capacitado a exercer os privilgios que haviam precipitado a runa de Saul e

    sua dinastia (cf. gesto semelhante de Saul em 1 Sm 13).

    A isso deve somar-se o fato de que Davi afirmou que o rei ungido de Israel seria

    tambm um sacerdote da ordem de Melquisedeque (Sl 110). luz da promessa de 2 Samuel

    7, no de estranhar que ele tenha designado funes sacerdotais para seus filhos. Tal

    designao sugere que Davi estivesse esperando para muito breve a promessa do surgimento

    de Seu Filho maior e que por isso organizou o culto de maneira que seus filhos

    desempenhassem os mesmos papis sacerdotais que, por um curto perodo de tempo, ele

    desempenhara.

    O fato de ter havido, por algum tempo (977-959 a.C.), dois focos no culto israelita

    (um em Gibeo, onde estava o tabernculo, e outro em Jerusalm, onde estava a arca) pode

    ter contribudo para essa diversificao sacerdotal (cf. 2 Sm 6.17; 1 Rs 3.4,5) (Hertzberg, I

    & II Samuel p. 294, sugere, ao citar o exemplo de Juzes 17:5, que era aceitvel

    mentalidade israelita que os filhos do patrono de um santurio oficiassem como sacerdotes.

    A. A. Anderson, 2 Samuel, WBC, p. 137-138, sugere que o arranjo foi temporrio, mas no

    fornece maiores explicaes).

    Que tal esperana ainda ardia em Israel depois de sculos de desiluso fica evidente

    na profecia de Zacarias (6.9-14) e na tentativa dos hasmoneus de combinar os do os dois

    ofcios (rei e sacerdote). Esses lderes, embora tenham conseguido (alguns, at certo ponto,

    mas Joo Hircano, totalmente) acumular as duas funes, no se qualificavam para cumprir

  • Antigo Testamento II Histricos e Poticos 108

    a profecia de Salmo 110, pois eram primariamente sacerdotes, e apenas secundariamente

    governantes seculares, j que no pertenciam linhagem de Davi.

    A objeo que pode ser feita que 2 Samuel 20.26 e 1 Reis 4.5 no apiam essa tese

    proposta, j que os homens nela mencionados no so filhos de Davi. Todavia, bem

    possvel que, dadas as condies caticas durante e aps a rebelio de Absalo, Ira, o jairita,

    tenha funcionado como sacerdote real interino, com autoridade derivada de sua indicao

    por Davi. Poderia se dizer o mesmo de Zabude , embora ele possa ter sido sobrinho de

    Salomo, j que seu pai, de resto desconhecido, chamava-se Nat. O fato de outros filhos de

    Davi se sentirem capacitados para tal funo pode ser observado quando Adonias ofereceu

    sacrifcios por ocasio de seu frustrado golpe de Estado (1 Rs 1.19). Outra objeo possvel posio aqui proposta que ela faria Davi dependente de

    um sacerdcio jebuseu, pago, cujo lugar ele teria assumido ao conquistar a cidade. Tal

    idia negada contextualmente pelo profundo dio que Davi devotava aos jebuseus;

    tambm duvidoso que assumisse uma posio de tal sincretismo religioso depois da

    violenta punio a Uz, no caso do transporte da arca. melhor postular uma tradio

    israelita de sacerdcio real, iniciada com a figura mstica de Melquisedeque, que teria sido

    gradativamente reforada pelas figuras quase monrquicas de Moiss e Samuel e que fora

    ambicionada por Gideo, com sua estola sacerdotal (cf. Jz 8.22-27). O fato de Saul jamais

    ter tomado Jerusalm, fazendo de Gibe sua capital, pode ser uma razo a mais para que seu

    ato sacerdotal tenha sido considerado inaceitvel diante de Yahweh.

    Dentro do esquema divino de interveno na histria para restaurar Sua soberania

    mediada, a linha de revelao centrada em Melquisedeque ocasionalmente converge com o

    fluxo maior da atividade divina por meio das instituies de Israel.

    Essa convergncia na pessoa de Davi, rei de Jerusalm, parece, a este autor, o

    fundamento do uso de Melquisedeque no livro de Hebreus, cujo autor defende a

    superioridade de Jesus Cristo sobre o judasmo (o ponto de vista aqui defendido oposto, de

    maneira mais absoluta, ao de C. F. Keil e F. Delitzsch, The Books of Samuel, p. 368-369. C.

    E. Armerding defende o sacerdcio dos filhos de Davi em Were Davids Sons Really Priests? em Current Issues in Biblical and Patristic Interpretation, editado por G. Hawthorne).

    ESBOO

    I. O FIM DE UMA ERA: SAMUEL, O LTIMO JUIZ DE ISRAEL (1Sm 1.112.25) a. O nascimento e a infncia de Samuel (1.14.1a)

    i. A orao de uma mulher respondida (1.1-28)

    ii. Ana exulta no Senhor (2.1-10)

    iii. Samuel se depara com a corrupo em Sil (2.11-36)

    iv. O Senhor chama Samuel (3.14.1a) b. Calamidade, arrependimento e livramento (4.1b7.17) i. Derrota e perda da arca da aliana (4.1b-22)

    ii. Os filisteus tm problemas com a arca (5.1-12)

    iii. A volta da arca (6.17.2) iv. Arrependimento e nova consagrao em Mispa (7.3-17)

    c. A questo da monarquia (8.112.25) i. O pedido de um rei (8.1-22)

    ii. A uno secreta de Saul (9.110.16) iii. Saul escolhido e aclamado rei (10.17-27)

  • Antigo Testamento II Histricos e Poticos 109

    iv. Saul confirmado como rei (11.1-15)

    v. Samuel transfere o poder a Saul (12.1-25)

    II. SAUL: O PRIMEIRO REI (13.131.13) a. Incidentes bsicos no reinado de Saul (13.115.35) i. Jnatas ataca a guarnio filistia (13.1-23)

    ii. A segunda iniciativa de Jnatas (14.1-23)

    iii. O voto precipitado de Saul (14.24-46)

    iv. Um panorama do reinado de Saul (14.47-52)

    v. O confronto final de Samuel com Saul (15.1-35)

    b. Davi se destaca (16.119.17) i. A uno secreta de Davi (16.1-13)

    ii. Saul precisa de um msico (16.14-23)

    iii. Saul precisa de um guerreiro para combater Golias (17.118.5) iv. O cime e o medo que Saul sente de Davi (18.6-30)

    v. Jnatas e Mical salvam a vida de Davi (19.1-17)

    c. Davi, o fora-da-lei (19.1826.25) i. Davi se refugia junto a Samuel (19.18-24)

    ii. Davi e Jnatas fazem uma aliana (20.1-43)

    iii. O sacerdote Aimeleque ajuda a Davi (21.1-9)

    iv. Davi enfrenta o perigo em Gate (21.10-15)

    v. Davi em Adulo e em Moabe (22.1-5)

    vi. O preo de proteger Davi (22.6-23)

    vii. Saul caa a Davi (23.1-29)

    viii. Davi poupa a vida de Saul (24.125.1a) ix. Davi conquista Abigail (25.1b-44)

    x. Davi poupa a vida de Saul pela segunda vez (26.1-25)

    d. Davi recorre aos filisteus (27.131.13) i. Com Aquis, rei de Gate (27.128.2) ii. Saul consulta uma mdium (28.3-25)

    iii. A providencial rejeio de Davi por parte do exrcito filisteu (29.1-11)

    iv. Davi e os amalequitas (30.1-31)

    v. A ltima batalha de Saul (31.1-13)

    III. O REINADO DE DAVI (2Sm 1.120.26) a. A ascenso de Davi ao poder em Jud (1.14,12) i. Davi recebe a notcia da morte de Saul (1.1-16)

    ii. O lamento de Davi (1.17-27)

    iii. Davi rei em Hebrom (2.1-4a)

    iv. Embaixadores de Davi so enviados a Jabes-Gileade (2.4b-7)

    v. O reino rival (2.83.1) vi. Os filhos e os herdeiros de Davi (3.2-5)

    vii. Abner deserta para o lado de Davi (3.6-21)

    viii. A morte de Abner (3.22-39)

    ix. A queda da casa de Saul (4.1-12)

    b. Davi rei sobre todo o Israel (5.19.13) i. A aliana de Davi com Israel (5.1-5)

    ii. Davi faz de Jerusalm sua cidade (5.6-16)

  • Antigo Testamento II Histricos e Poticos 110

    iii. Davi derrota duas vezes os filisteus (5.17-25)

    iv. Davi torna Jerusalm a cidade de Deus (6.1-23)

    v. Uma casa para o Senhor (7.1-29)

    vi. O estabelecimento do imprio de Davi (8.1-14)

    vii. Davi delega responsabilidades (8.15-18)

    viii. Davi honra um possvel rival (9.1-13)

    c. A crise pessoal de Davi (10.112.31) i. Guerra com Amom (10.1-19)

    ii. O adultrio de Davi (11.1-27)

    iii. O profeta confronta o rei (12.1-15a)

    iv. A morte da criana (12.15b-23)

    v. O nascimento de Salomo (12.24-25)

    vi. O fim da guerra amonita (12.26-31)

    d. Tal pai, tais filhos (13.119.40) i. Amnom violenta sua meia-irm Tamar (13.1-22)

    ii. A vingana de Absalo (13.23-39)

    iii. A ousada iniciativa de Joabe (14.1-33)

    iv. A revolta de Absalo (15.1-37)

    v. Os confrontos de Davi e as tramas de Absalo (16.117.29) vi. A derrota e a morte de Absalo (18.1-33)

    vii. Rompendo o impasse (19.1-40)

    e. O descontentamento em Israel (19.4120.26)

    IV. EPLOGO (21.124.25) A. Um legado do passado (21.1-14)

    B. Davi e seus assassinos de gigantes (21.15-22)

    C. Um dos grandes salmos de Davi (22.1-51)

    C1. As ltimas palavras de Davi (23.1-7)

    B1. Mais menes de bravura (23.8-39)

    A1. O juzo divino cai novamente sobre Israel (24.1-25)