2011. torcato. jogo do bicho porto alegre
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INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
Programa de Ps-Graduao em Histria
DISSERTAO
A REPRESSO OFICIAL AO JOGO DO BICHO:
UMA HISTRIA DOS JOGOS DE AZAR EM PORTO ALEGRE
(1885-1917)
CARLOS EDUARDO MARTINS TORCATO
Porto Alegre, julho de 2011.
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CARLOS EDUARDO MARTINS TORCATO
A REPRESSO OFICIAL AO JOGO DO BICHO:
UMA HISTRIA DOS JOGOS DE AZAR EM PORTO ALEGRE
(1885-1917)
Dissertao apresentada como requisitopara obteno do ttulo de Mestre, peloPrograma de Ps-Graduao em Histriada Universidade Federal do Rio Grandedo Sul.
Professora Orientadora: Dra. Regina CliaLima Xavier.
Porto Alegre, julho de 2011.
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CARLOS EDUARDO MARTINS TORCATO
A REPRESSO OFICIAL AO JOGO DO BICHO:
UMA HISTRIA DOS JOGOS DE AZAR EM PORTO ALEGRE
(1885-1917)
Dissertao apresentada como requisitopara obteno do ttulo de Mestre, pelo
Programa de Ps-Graduao em Histriada Universidade Federal do Rio Grandedo Sul.
Professora Orientadora: Dra. Regina CliaLima Xavier.
Aprovado em ____ / ____ / 2011
BANCA EXAMINADORA:
____________________________________________________________
Prof. Dr. Luis Antnio Francisco de Souza
Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho
___________________________________________________________
Prof. Dr. Karl Martin Monsma
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
___________________________________________________________
Prof. Dr. Silvia Regina Ferraz Petersen
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Porto Alegre, julho de 2011.
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AGRADECIMENTOS
Gostaria de iniciar os agradecimentos, seguindo os ensinamentos da vulgata marxista,
pelas pessoas e instituies que tornaram esse trabalho possvel com seus financiamentos.
Agradeo, portanto, ao Programa de Ps-graduao em Histria da UFRGS por ter me
concedido uma bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico
(CNPq), fundamental para o desenvolvimento dessa pesquisa.
Foram, entretanto, meus pais que me deram todas as condies para conseguir essa
bolsa. Eles que acreditaram e sempre foram meus fiis financiadores. Por isso, gostaria de
dedicar esse trabalho aos dois.
Fundamental para a pesquisa, porm no ligado ao financiamento, so os colegas e os
professores que me sugeriram fontes. Nesse ponto ningum se compara professora Cludia
Mauch, pois ela indicou todas os Relatrios Policiais utilizados ao longo do texto. E no
foram poucos! Tambm gostaria de agradecer ao colega Guilherme Aragon por ter me
mostrado o caminho dos discursos legislativos. Ao amigo e parceiro de tricolor Fagner Santos
pela indicao dos debates do Cdigo Civil. Por ltimo, mas no menos importante, colega
Gislaine por sempre se lembrar dos jogos e dos vadios nas suas pesquisas nos jornais.
Sabemos que no possvel separar a infraestrutura da superestrutura como
acreditavam os vulgares marxistas. Por isso gostaria de fazer um justo agradecimento quelesque criaram o caldo cultural onde a dissertao foi forjada.
Regina Clia Lima Xavier. Tu s minha inspirao! Gostaria que soubesse que levarei
comigo sua inquietao crtica.
Os colegas que participaram das discusses da linha de pesquisa em Relaes de
Dominao e Resistncia sabem a importncia das crticas para o fortalecimento do trabalho.
Por isso, agradeo a minha orientadora por ter levado a frente essa ideia no momento crucial
da escrita da dissertao. Aos meus colegas pelas leituras atentas e a disposio ao debate. Em
especial ao Felipe Bohrer pela discusso sobre os mapas e os territrios de Porto Alegre.
Gostaria de agradecer aos pesquisadores que fazem parte do Grupo de Trabalho em
Histria do Crime e da Justia Criminal do RS pelos encontros realizados e os debates
promovidos.
Instigante e provocador foi o debate iniciado com o Grupo de Pesquisa Violncia e
Cidadania, particularmente a oportunidade de participar da I Conferncia Nacional de
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Comendo lista na esquina do pecadoO Nicanor era reserva de bicheiro
Crioulo bom se dava bem com a curriolaE l na escola dava bola no pandeiro
Mas derrepente o Nicanor saiu em frenteDesceu o morro
E botou banca de bacanaO delegado no distrito anda cabreiro
Porque o Nicanor bicheiroNunca mais entrou em cana
Ele que tinha um dente sAgora est de dentadura
No mais garfo de doceiroAgora boca de fartura
E pra mostrar a toda genteQue tem dente na fachada
At quando v desastreO Nicanor cai na risadahahahahahahahahahah
Nicanor Belas Artes Joo Nogueira
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LISTA DE FIGURAS E GRFICOS
Figura 01 Organizao Administrativa de Porto Alegre em 1901................... .................... 30
Figura 02 Territrios da zona urbana de Porto Alegre em 1906. ........... ............................. 32
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LISTA DE TABELAS E QUADROS
Tabela 01 Populao de Porto Alegre por sexo.......... ...................... .............. .................... 28
Tabela 02 Perfil social dos rus segundo sexo ................................................................... 96Tabela 03 Perfil social dos rus segundo nacionalidade.......... ...................... .......... ........... 98
Tabela 04 Perfil social dos rus segundo cor da pele ......................................................... 98
Tabela 05 Resultados dos processos-crimes.......................................................................99
Tabela 06 Distribuio espacial dos processos-crime.......... ............. .......... ...................... 108
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RESUMO
A presente dissertao aborda a relao que se estabeleceu entre as prticas dos jogos de azar
e o papel dessas prticas nos debates pblicos sobre a modernizao. Foram dois tipos de
fontes primrias analisadas: os discursos legislativos proferidos no campo poltico e as fontes
da polcia e da justia criminal, estas ltimas retratando a represso s prticas ldicas.
Percebeu-se que, entre os jogos de azar perseguidos, o jogo do bicho assumiu um lugar de
destaque no conjunto da documentao. O problema social dos jogos de azar, entretanto,
remonta ao sculo XIX. Desde essa poca esses jogos se apresentam tanto como incitadores
de cdigos de virilidade (compartilhados inclusive com a polcia), quanto como um delicado
problema pblico, pois era imoral o Estado lucrar com o vcio atravs das loterias. O jogo do
bicho canaliza a ateno das autoridades a partir do final do sculo XIX, graas a sua
popularidade e a sua abrangncia nacional. Entre 1904-6, ocorreu uma campanha repressiva
ao jogo do bicho, em Porto Alegre, que colocou em evidncia as formas de controle social
existentes naquela poca. As mudanas na polcia e na justia criminal promovidas pelo
governo do Rio Grande do Sul, em fins do sculo XIX, ampliaram o poder de penalizao do
Estado atravs do fortalecimento das autoridades policiais. Percebeu-se, tambm, que as
autoridades policiais que comandavam as aes repressivas, posteriormente, se aliaram aos
banqueiros perseguidos durante a campanha de 1904-6, o que denota a corrupo policial.
Palavras-chave: jogos de azar; jogo do bicho; polticas pblicas; justia criminal; polcia.
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ABSTRACT
This dissertation addresses the relationship established between the practices of gambling and
the role of these practices in public debates on modernization. Two types of primary
sources were analyzed: the legal speeches made in the political field and the sources of police
and criminal justice, the latter depicting the repression of recreational practices. It was noticed
that, among the persecuted gambling games, the numbers game (Brazilianjogo do bicho) was
placed in an outstanding position according to the analyzed documentation. The social
problem of gambling, however, dates back to the Nineteenth Century. Since that time these
games are seen both as instigators of codes of masculinity (inclusively shared with the
police), and as a delicate public issue, since it was immoral for the State to make profit
through the lotteries. The numbers game became one of the main authorities concerns from
the end of the Nineteenth Century on due to its popularity and its national
scope. Between 1904-1906, there was a repressive campaign against the numbers game in
Porto Alegre (southern Brazil), which highlighted the forms of social control existing at the
time. The changes in police and in the criminal justice promoted by the government of the
State of Rio Grande do Sul in the late Nineteenth Century increased the States power
to penalize by strengthening police authorities. It was also noticed that the police
authorities who commanded the crackdown later allied themselves with the bankers who were
pursued during the campaign of 1904-1906, which denotes police corruption.
Keywords: gambling; numbers game; public policy; criminal justice; police.
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LISTA DE ABREVIATURAS
APERGS - Arquivo Pblico do Estado do Rio Grande do SulPRR - Partido Republicano Rio-grandense
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SUMRIO
1. INTRODUO ............................................................................................................. 11
1.1 Apresentao do tema............................................................................................... 111.2 Inquietaes Tericas ............................................................................................... 16
1.3 Notas sobre a histria poltico-institucional da polcia e da justia criminal no Rio
Grande do Sul .................................................................................................................... 19
1.4 Geografia urbana e demogrfica de Porto Alegre.. ....................... ......... .................... 25
2. CAPTULO 1: OS JOGOS DE AZAR NO RIO GRANDE DO SUL NO SCULO XIX:
Sua importncia como elemento de sociabilidade e o problema moral da explorao do vcio
pelo Estado ..........................................................................................................................36
2.1 Introduo ................................................................................................................ 36
2.2 Os jogos e as sociabilidades viris: os limites do policiamento ........... ............. ......... .. 37
2.3 As loterias e o dilema moral da explorao do vcio pelo Estado .......... .................... 42
2.4 Os jogos de azar e a Repblica ................................................................................. 52
2.5 Concluso................................................................................................................. 58
3. CAPTULO 2: O ESCANDALOSO JOGO DO BICHO: A historiografia, a trajetria dojogo do bicho na capital federal, as primeiras manifestaes desse jogo em Porto Alegre e as
possibilidades de controle na dcada de 1890....................................................................... 60
3.1 Introduo ................................................................................................................ 60
3.2 O jogo do bicho: histria e historiografia. ................................................................. 61
3.3 O jogo do bicho em Porto Alegre no final do sculo XIX e incio do sculo XX....... 65
3.4 Os mecanismos de controle social utilizados na represso oficial............... ............... 71
3.5 Concluso................................................................................................................. 84
4. CAPITULO 3: A CAMPANHA OFICIAL CONTRA O JOGO DO BICHO (1904-1906):
As mudanas legais e o fortalecimento da autoridade policial; capito Orlando Motta e o
modo justiceiro de ao policial; o banqueiro Joo Serro e os limites do proibicionismo. ... 85
4.1 Introduo ................................................................................................................ 85
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4.2 A lei Alfredo Pinto: ampliao do poder policial ...................................................... 86
4.3 A reforma judiciria do Rio Grande do Sul: o Cdigo de Processo Penal de 1898..... 91
4.4 A campanha oficial contra o jogo do bicho (1904-1906) e a atuao do capito
Orlando Motta.................................................................................................................... 96
4.5 Os limites do proibicionismo: a corrupo policial e os debates sobre direitos
individuais no Cdigo Civil.............................................................................................. 107
4.6 Concluso............................................................................................................... 122
5. CONSIDERAES FINAIS ....................................................................................... 123
6. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.......................................................................... 127
6.1 Fontes Primrias..................................................................................................... 1276.1.1 Arquivo Pblico do Estado do Rio Grande do Sul........................ .................. 127
6.1.2 Arquivo Histrico do Rio Grande do Sul ....................................................... 129
6.1.3 Arquivo Histrico Moyses Velhinho................. ......................................... .... 129
6.1.4 Biblioteca da Assemblia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul.......... 129
6.1.5 Biblioteca da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul 130
6.1.6 Instituto Histrico e Geogrfico do Rio Grande do Sul (IHGRGS)........ ......... 130
6.1.7 Internet ..........................................................................................................130
6.2 Bibliografia ............................................................................................................ 131
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1. INTRODUO
Tratei de expressar com o vermelho e o verde as
terrveis paixes humanas (...) o caf um lugar
onde as pessoas podem se arruinar, enlouquecer
ou cometer um crime, definiu em O caf de
noite (1888). Vicente Van Gogh.
1.1 Apresentao do temaNo dia 14 de novembro de 2010, o jornal Correio do Povo divulgou matria sobre o
carter dos jogos ilegais em Porto Alegre e no Brasil. A reportagem especial abordou o
problema a partir de inmeras frentes: mostrou o drama dos viciados; as tticas usadas pelos
proprietrios desses estabelecimentos para enganar a Polcia; o esforo despendido pelo
Ministrio Pblico; os projetos de lei que esto sendo discutidos sobre o assunto; bem como, a
comparao com a situao da Inglaterra e dos Estados Unidos.
O leitor leigo pode estranhar o fato de um trabalho de histria que tratar do sculoXIX e incio do sculo XX comear com a enunciao de um problema social contemporneo.
O historiador atento s vicissitudes do trabalho histrico ficar tentado a apontar o possvel
anacronismo de comparaes entre sociedades com mais de cem anos de diferena. Sensvel a
todas as dificuldades desta proposta mostrar-se- que os problemas contemporneos so frutos
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das limitaes de um projeto penal que possu constituio nos fundamentos do Estado
moderno.
No Brasil, os ltimos vinte anos foram marcados pela instaurao de um ordenamento
social baseado nos preceitos democrticos. Promulgou-se a Constituio Cidad, em 1988,
porm logo se percebeu que a democracia ultrapassa a mera participao poltica nos ritos
eleitorais. So vrios os entraves que ainda impedem que as polticas pblicas sejam
orientadas pelo respeito e pela promoo da agncia. 1 Mais do que uma prerrogativa escrita
em um cdigo ou uma dimenso do direito, ela uma prtica e como tal s pode ser
verificada a partir de experincias concretas.
Os ndices apontam para a proliferao da violncia em diversos espaos sociais,
invertendo a tendncia do processo civilizador evidenciado por Norbert Elias. As explicaes
para esse fenmeno so variadas: fragmentao social fruto das polticas de segregao,precarizao do trabalho, crise dos mecanismos de controle sociais tradicionais (famlia,
escola, fbricas, religio, justia criminal), entre outros (SANTOS, 2004).
A incapacidade demonstrada pelo Estado em dar uma resposta ao problema da
violncia na sociedade e a seletividade do sistema penal voltado aos segmentos pobres e
estigmatizados resulta na perda de legitimidade das instituies responsveis pela
segurana. O sistema poltico no inerte a este cenrio, buscando reagir com propostas de
mudanas. Essas propostas, entretanto, so feitas de forma bastante fragmentada e na maioria
das vezes so motivadas pelo clamor da opinio pblica amplificada pela atuao da grande
mdia. Sem levar em conta as variveis que provocam as situaes de violncia, a resposta
comum do poder pblico o aumento da punitividade atravs do recurso penal que
corresponde ao aumento das penas e diversificao das condutas sociais proibidas.2
1 A maioria dos estudos polticos sobre a democracia se limita a analisar o regime poltico e suas instituies.Segundo ODonnell, o perigo de ampliar o conceito de democracia demasiadamente reside na indeterminao
conceitual. Para evitar isso, ele prope como parmetro da anlise uma concepo de ser humano como agente.Ver. ODONNELL, Guillermo. Notas sobre la democracia en Amrica Latina. In: ODONNELL, Guillermo(org). La Democracia en America Latina: El debate conceptual sobre la democracia. New York: Programa de lasNaciones Unidas para el Desarrollo, 2004, p.11-82.2 O recurso s normas penais para solucionar os conflitos pode ser verificado na legislao corrente. No Brasil,so exemplos destes recursos a Lei dos Crimes Hediondos e a Lei de combate do crime organizado. Ver:AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli. Tendncias do controle penal na poca contempornea: reformas penais noBrasil e na Argentina. So Paulo em Perspectiva. v.18, n.1, p.39-48, 2004.
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A reportagem sobre a ilegalidade dos jogos de azar que abre essa introduo no foi
publicada ingenuamente, pois tramitava em fase final na Cmara dos Deputados um projeto
de Lei que visava legalizar os jogos de azar. Menos de um ms depois desta publicao, o
polmico projeto foi levado para votao. Os acalorados debates acrescidos de manifestaes
contundentes do Ministrio Pblico e da Polcia Federal contra o projeto foram decisivos para
sua rejeio. A histria no se repete, mas determinados fenmenos sociais so recorrentes:
optou-se novamente pelo proibicionismo para resolver esse problema social.3
A histria que ser apresentada nas linhas que seguem ocorre em um cenrio
enormemente distinto deste que foi anunciado acima, porm apresenta um aspecto de inegvel
continuidade. Veremos que as atribuies legais dos delegados, o funcionamento do
judicirio, as estratgias de defesa das pessoas, as tenses originadas das aes policiais e os
discursos que fundamentaram a resposta estatal ao problema dos jogos de azar possuem as
particularidades prprias da sociedade do sculo XIX e incio do sculo XX. Porm, a
despeito disto tudo, a opo pelo recurso penal foi, e continua sendo, a maneira usual de
resolver os problemas decorrentes da existncia de prticas sociais no adequadas
modernidade.
O tema central da presente dissertao a relao entre a prtica dos jogos de azar e o
seu papel nos debates pblicos sobre a modernizao do Brasil, especificamente Porto Alegre.
A partir desse interesse se realizou uma pesquisa exploratria na coleo Processo-crime
Tribunal do Jri, disponvel para consulta no Arquivo Pblico do Estado do Rio Grande doSul (APERGS), para descobrir possveis inseres dos jogos de azar no mbito da Justia
Criminal. Nessa pesquisa foram contabilizados 1.398 processos-crime, entre 1856-1910,
correspondendo totalidade dos processos-crimes da coleo analisada no perodo
delimitado. Ao longo de toda a srie analisada, foram encontrados 48 processos-crimes
envolvendo jogos de azar. Entre 1904-05, foram encontrados 29 processos-crimes contra o
3 Projeto de lei disponvel em:
Acesso em: 01 fev. 2011.
Discusses do projeto disponvel em:
Acesso em: 01 fev. 2011.
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jogo do bicho, nmero que representa aproximadamente 60% das incidncias desse tipo de
crime em toda a srie analisada.
O resultado encontrado trs alguns questionamentos. Por que ocorreu essa
concentrao de processos-crimes no perodo entre 1904-5? Qual foi o contexto social e
poltico que permitiu a insero dessa prtica no mbito da Justia Criminal? Quem eram as
pessoas levadas a julgamento? Quais foram os discursos que permitiram a definio dos jogos
de azar como um problema social? Quais as solues utilizadas para resolver esse problema?
Na tentativa de solucionar esses problemas se avanou na pesquisa emprica por dois
caminhos: Por um lado, se buscou novas ocorrncias de processos-crimes na coleo
Processo-crime Porto Alegre do APERGS. Foram vasculhadas 731 referncias de
processos-crimes e encontradas 19 ocorrncias de jogos de azar.4 Por outro lado, a partir da
legislao citada no interior dos processos-crimes, se procurou as legislaes e as discussesocorridas no mbito legislativo que tinham relao com o tema de pesquisa.
A pesquisa emprica descrita acima teve um acrscimo inestimvel proveniente das
inmeras indicaes de fontes feitas pelos colegas de profisso. Foram graas e esse
acrscimo que se incorporou s discusses o projeto de proibio das loterias (1885) e o
debate sobre a incluso do tema dos jogos de azar no Cdigo de Civil (1905). Foram graas
aos Relatrios Policiais5 selecionados e cedidos pela professora Claudia Mauch que foi
possvel estender a anlise da Justia Criminal para a Polcia. Essas e outras indicaes foram
fundamentais na definio do universo documental da pesquisa e no alcance da anlise
realizada.
As fontes localizadas no deixam dvida que a campanha repressiva contra o jogo do
bicho, realizada em Porto Alegre, entre 1904-5, no teria sido possvel se no fosse a
tradicional preocupao sobre a influncia dos jogos de azar na populao. A prtica de jogos
de azar est ligado ao cio e capacidade de usar o tempo e o corpo de maneira autnoma.
Ao longo da histria da humanidade possvel perceber que o usufruto do cio era um dos
4 Esta coleo possui algumas particularidades que dificultam o rastreamento dos registros. Seus cadernos dereferncia no esto em ordem cronolgica e abarcam longos perodos: os cadernos pesquisados(1,18,31,38,39,42) correspondem processos-crimes diversamente distribudos entre os anos de 1848-1958.5 Relatrios Policiais foram institudos com o Cdigo de Processo Penal do Rio Grande do Sul (1898) parasubstituir os Inquritos Policiais. Na prtica, a diferena entre eles bastante sutil.
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principais sinais de distino das classes dominantes (BENATTE, 2002, p.182-186). Foi
somente com a ascenso da sociedade burguesa que o trabalho passou a se tornar valor
essencial na constituio social, assim incluindo tambm as elites (BENATTE, 2002, p.110-
113). Essa valorizao do trabalho foi fundamental para a constituio do jogo como um
problema social (BENATTE, 2002, p.192-194).
Objetivar-se tambm reconstituir o contexto social e poltico que permitiu a definio
dos jogos de azar como um problema social, tomando como marco inicial os debates na
Assemblia Legislativa sobre o projeto do Partido Republicano Rio-grandense (PRR) de
proibio das loterias estaduais em 1885.
Conforme veremos, a campanha repressiva que ocorreu em 1904-5 s foi possvel
graas a uma srie de mudanas institucionais, feitas entre 1890-1900, que ampliou a
autoridade policial. O projeto poltico republicano, representado pela superao da escravidoa partir da emergncia do cidado, precisa ser compreendido pelas prticas e pelas
experincias sociais. A autoridade era percebida como libertria em alguns contextos, pois era
necessria em locais onde as pessoas eram consideradas incapazes de exercer sua autonomia
(COOPER; HOLD; SCOTT, 2005, p.58-74).6
O exerccio da autoridade, durante os anos de 1904-5, na campanha repressiva contra
o jogo do bicho gerou resistncias nas esferas jurdica, social e poltica. O uso excessivo da
fora e as constantes violaes de direitos individuais que acompanhavam as aes policiais
geraram tenses importantes, decretando a falncia do recurso Justia Criminal como meio
de solucionar esse problema.
A experincia adquirida nessa campanha estatal contra o jogo do bicho gerou uma
situao paradoxal: por um lado, percebe-se a emergncia de princpios liberais no mbito da
justia, percebidas nos debates para elaborao do Cdigo Civil; por outro lado, o controle do
jogo por parte da polcia adquire uma nova configurao, baseada em arranjos extralegais
com os empresrios do jogo. O Capito Orlando Gaudis Ferreira da Motta, responsvel pelas
6 Os autores indicados problematizam essa questo a partir do contexto do Haiti.
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aes de rua na campanha repressiva de 1904-5, ascende na carreira burocrtico-militar:
promovido a Major e a Delegado, especializado nas questes do vcio.7
Assim, os debates ocorridos em torno da elaborao do Cdigo Civil e os novos
arranjos entre os policiais e os banqueiros, percebidos no ano de 1916, tambm se tornam
importantes referncias para a anlise proposta. Assim, se tomar como marco temporal final
da presente dissertao o ano de 1917, data da promulgao do Cdigo Civil.
O mago das dificuldades em realizar o projeto de codificao do direito civil no
Brasil eram as disputas em torno da definio do conceito de cidadania. Essas dificuldades,
presentes em todos os pases da poca que buscavam edificar uma ordem liberal, tiveram no
Brasil como fator complicador o papel que a populao pobre, especialmente os africanos e
seus descendentes, teria na sociedade moderna que se constitua. Outros temas, entretanto,
tambm tiveram importncia nos debates em torno do Cdigo Civil, como a necessidade de seestabelecer registros civis, a caracterizao das relaes familiares, o status jurdico das
mulheres, etc (GRINBERG, 2002, p.318-320). A presente dissertao pretende demonstrar
que tambm a relao do Estado perante a prtica dos jogos de azar foi tema polmico no
contexto de elaborao do Cdigo Civil.
Buscar-se- apresentar, abaixo, algumas discusses tericas que serviram de
inspirao para a presente dissertao. Faz-se necessrio tambm oferecer ao leitor uma breve
introduo sobre o contexto social, poltico e institucional do Rio Grande do Sul e,
especificamente, de Porto Alegre.
1.2 Inquietaes TericasA abordagem do tema apresentado buscou dialogar com algumas discusses
promovidas por Michael Foucault nos cursos que tratam sobre a governamentalidade
(FOUCAULT, 2008(a); FOUCAULT, 2008(b)), particularmente os temas da razo de Estado
e as tecnologias de poder que agem sobre as populaes urbanas (mecanismos jurdicos,disciplinares e de segurana). (FOUCAULT, 2008(a), p.315-488; FOUCAULT, 2008(b),
7 Pouco se sabe sobre a trajetria social de Orlando Gaudis Ferreira da Motta e a Delegacia que ele atuava. Osindcios encontrados sobre esse agente a Delegacia citada sero apresentados ao longo da dissertao.
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p.03-103). As fontes analisadas por este autor foram so os tratados polticos e filosficos, dos
sculos XVI, XVII, XVIII e XIX, escritos nos crculos de governo por diminutas elites.
Tambm se destaca a documentao diplomtica e os manuais de polcia elaborado nas
instituies de ensino superior alem durante no sculo XVII. Por ser uma anlise circunscrita
aquele contexto, ela serve apenas como inspirao para algumas problematizaes desta
dissertao.
Naquele contexto europeu, se desenvolveram instituies que crescentemente
ampliaram o regramento social no interior dos Estados. Os mecanismos de poder
desenvolvidos seguiam uma razo de Estado preocupada em aumentar sua capacidade de
concentrar recursos, graas s presses que essas comunidades polticas sofriam no campo
diplomtico-militar voltado para o exterior (FOUCAULT, 2008(a), p.338-410; FOUCAULT,
2008(b), p.425-426). Interessante perceber no que se refere ao complexo diplomtico-militar
que o Brasil tambm se colocava como uma entidade poltica que projetava um futuro de
influncia na poltica internacional.
Segundo Foucault, a razo de Estado (necessidade de concentrar recursos) era comum
aos diversos pases europeus, porm o problema da maximizao das foras internas atravs
da polcia se fez de maneiras diferentes em cada contexto (FOUCAUL, 2008(a), p.425-426).
No Brasil, a polcia, criada no Rio de Janeiro, em 1808, desenvolveu caractersticas singulares
a partir da adoo de modelos europeus (HOLLOWAY, 1997, p.22-23).
No contexto europeu, no sculo XVII, apesar das diferenas locais, a polcia foi
pensada como instituio responsvel por mobilizar os recursos internos disponveis no
sentido de integrar as atividades das pessoas residentes a acumulao de recursos, tendo em
vistas competio internacional (FOUCAULT, 2008(a), p.433-434). Tendo como objeto
fundamental as formas de coexistncia entre as pessoas, toda a sociabilidade ser de interesse
da polcia. No sistema econmico e social desenvolvido no contexto clssico europeu, a
polcia tornou-se um conjunto de tcnicas que foravam as pessoas a viverem, a coexistirem e
a se comunicarem de maneira produtiva (FOUCAULT, 2008(a), p.440-441).
Percebe-se que as atribuies da polcia so mais amplas do que aquelas que hoje a
atribumos, pois suas atividades no podem se reduzir apenas ao controle da criminalidade e
das desordens. Incluem-se no rol de atribuies policiais a organizao da a mo de obra, o
controle da circulao de pessoas e mercadorias, a sade fsica e moral das pessoas. Um
modelo de sociedade policial levado ao limite pressupe a interveno do Estado em amplos
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aspectos da vida dos homens a partir da tica da disciplina e da regulao (FOUCAULT,
2008(a), p.454-456).
Desde o final do sculo XVIII, o modelo de governo policial recebe inmeras crticas
no que se refere sua capacidade de promover o correto crescimento do poder do Estado. Os
economistas foram os pioneiros no rompimento da soberania policial, graas as suas crticas
no modo como a conduo econmica era feita. Segundo os economistas, a construo das
condies para a livre circulao das mercadorias era um modelo de gesto econmica mais
adequada para alcanar o fortalecimento econmico do Estado. Era preciso substituir a ciso
entre sditos e soberano, entre aqueles que gozavam de liberdade reservada e aqueles que
deviam se submeter, para introduzir a idia de agenda de governo, ou as aes necessrias
construo do ambiente favorvel circulao de riquezas e de mercadorias. O governo no
podia ser uma prtica imposta aos governados pelos que governam, mas uma prtica que fixa
a posio e a definio de cada um diante dos outros e em relao aos outros. O objetivo final
do governo no seriam os sujeitos e sim os seus interesses (FOUCAULT, 2008(b), p.61-64).
Ao trazer a reflexo de Foucault sobre o contexto europeu no se pretende aplic-la a
realidade estudada. Apenas se pretende destacar que possvel perceber nas discusses
legislativas utilizadas na delimitao temporal apresentada anteriormente alguns aspectos que
remetem forma de perceber o governo das pessoas. A necessidade de se proibir e de se
disciplinar a prtica de jogos de azar, expressas nos debates legislativos de 1885, so
prximas as preocupaes do governo policial. Da mesma forma, a insero dos jogos nocampo jurdico civil foi sustentada por uma concepo de governo que destacava a
inconvenincia da ao demasiadamente reguladora da polcia.
preciso deixar claro, entretanto, que no se trata de supervalorizar a ao das elites.
As mudanas que ocorrem nos diversos campos da vida poltica e social so resultado de um
jogo incessante entre as tcnicas de poder implementadas e as reaes (resistncias) a essas
tcnicas. Acredita-se que o estudo dos controles estabelecidos sobre os jogos de azar pode
contribuir para compreenso dessas dinmicas.
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1.3 Notas sobre a histria poltico-institucional da polcia e da justia criminalno Rio Grande do Sul
O papel dos jogos de azar nos debates pblicos sobre a modernizao precisa ser
compreendido, tambm, dentro dos conflitos gerados pela tentativa precoce de edificao deuma sociedade liberal no Imprio do Brasil e pelas especificidades das instituies
republicanas no Rio Grande do Sul.
A influncia da escola clssica, derivada dos princpios bsicos do pensamento
jurdico iluminista (como a igualdade dos indivduos perante a lei, o livre-arbtrio, a
responsabilidade moral pelos atos praticados e a punio fixa e proporcional ao crime
cometido) so marcantes no Brasil desde a promulgao do Cdigo Penal, de 1830, e do
Cdigo de Processo Penal, de 1832. O Brasil foi o primeiro pas da regio latino-americana a
ter um cdigo penal autnomo, influenciando, assim, os pases vizinhos. Percebe-se que estes
cdigos eram bastante avanados, em termos liberais, se comparado com os congneres
europeus daquele perodo (CAULFIELD, 2000, p.57-58).
As intenes expostas na legislao encontraram enormes obstculos para se
concretizem na prtica, pois tanto as normas sociais quanto as legislaes civis diferenciavam
os indivduos com base no gnero, na raa ou nas condies sociais. A prova dessa
dificuldade pode ser percebida nos sucessivos fracassos encontrados nas tentativas de
codificar o direito civil durante todo o sculo XIX (CAULFIELD, 2000, p.57-58).
Essa legislao liberal e descentralizadora, caracterstica do perodo ps-
independncia, sofreu alteraes importantes com a Reforma Judiciria de 1841. Ela inseriu a
figura das autoridades policiais nomeadas diretamente pelo governo central na administrao
local, integrando o governo central e com os chefes e os polticos locais (KOERNER, 1998,
p.34). Alm disso, ela uniu na figura das autoridades policiais tanto o poder de polcia quando
o poder de julgamento, fato inconcebvel na perspectiva liberal. Pela primeira vez, foi
legalmente reconhecido o direito de intromisso do poder pblico na resoluo dos conflitos
privados (SOUZA, 2010, p.41-42). A necessidade de reformar a legislao de 1841 foi temacorrente em vrios programas ministeriais. O Partido Liberal era o mais crtico, argumentando
que essa legislao consagrava a centralizao poltica, sujeitava os magistrados ao executivo
e confundia a polcia com a justia (KOERNER, 1998, p.81-82).
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Esse quadro legal somente ser alterado, em 1871, com a Reforma Judiciria. Essa
reforma foi aprovada apenas oito dias antes da Lei do Ventre Livre e estava ligada ao projeto
amplo de abolio gradual da escravido. A emancipao dos escravos devia ser
acompanhada por medidas que reforassem a autoridade como meio de manter a ordem
pblica e de obrigar os libertos, os vadios e os vagabundos ao trabalho (KOERNER, 1998,
p.82-87). Assim, por um lado, a Lei do Ventre Livre estendeu a interveno judicial nas
relaes entre escravos e senhores, com vrios casos favorveis aos cativos, por outro lado, a
Reforma Judiciria restringiu a interveno dos magistrados na esfera criminal, que se
manteve sob controle das autoridades locais (juizes da paz e policiais) (KOERNER, 1998,
p.113-114).
A Reforma de 1871 provocou algumas mudanas importantes na competncia policial.
Na tentativa de separar o poder de polcia do poder de julgamento, algumas atribuies
judiciais que eram da rea policial a partir de 1841 como a aplicao das posturas
municipais e o julgamento dos crimes contra os costumes foram atribudas aos juzes da
paz. Foi tambm criado o cargo de promotor pblico, objetivando separar a figura do
acusador do juiz (KOERNER, 1998, p.104).
A grande novidade da reforma de 1871, entretanto, foi a criao do inqurito policial.
Atriburam-se as autoridades policiais competncia para proceder em seus distritos s
diligncias necessrias para verificar os crimes comuns. Depois de feito, este relatrio deveria
ser enviado ao promotor pblico, que ento faria a pronncia dos acusados para novamenteescutar os depoimentos. Dessa forma, o processo de formao da culpa ficou duplicado, sendo
a primeira parte feita pela polcia e a segunda pela justia. O resultado desse modelo
institucional a preponderncia da verso policial na formao da culpa e o afastamento do
controle judicial sobre a legalidade dos procedimentos policiais(KOERNER, 1998, p.104-
107).
A despeito das vrias mudanas implementadas, pouco se alterou a perspectiva dos
homens livres e pobres, pois as garantias civis dessa parcela da populao continuaram
suspensas. Essas pessoas estavam sujeitas a controles policiais avaliados pelo critrio da
prpria autoridade policial. Os magistrados profissionais somente intervinham nos recursos ou
graus extraordinrios, como na questo do habeas-corpus, prprias das elites (KOERNER,
1998, p.113-116).
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Os mecanismos jurdicos descritos acima foram pensados, principalmente, como meio
de intervir na populao com o intuito de resolver o problema da mo de obra. preciso ter
em mente, entretanto, que o controle policial projetado em mbito federal era adaptado para
soluo de diversos conflitos locais e manuteno da ordem pblica.
O modelo jurdico-institucional inaugurado em 1871 perdurou at a queda do regime
monrquico sem modificaes. A mudana de regime poltico significou, para o judicirio, o
fim de algumas garantias dos juzes e a conseqente subjugao dos magistrados das
instncias inferiores aos poderes executivos estaduais. Isso possibilitou a cada Estado um
encaminhamento particular frente aos problemas da mo de obra. Por outro lado, o governo
federal reservou o direito de nomear os magistrados das instncias superiores, responsveis
pelos conflitos entre as elites (KOERNER, 1998, p.168-173). A forma de organizao do
poder judicirio foi mantida na passagem do Imprio Repblica, pois essa forma garantia o
controle dos magistrados pelo governo, agora em mbito estadual (KOERNER, 1998, p.210-
217).
O caso do Rio Grande do Sul uma exceo, pois a organizao das instituies da
Justia e o acesso aos cargos polticos na Repblica foi substancialmente diferente dos demais
estados do pas. Isso ocorreu graas trajetria poltica dos republicanos, marcadas pelas
dificuldades de se consolidarem no poder. O resultado foi uma organizao institucional
altamente autoritria e personalista.
A principal dificuldade dos republicanos em se consolidarem no poder era fruto da
fora do partido liberal e dos ideais liberais no Rio Grande do Sul. Desde o final da
Revoluo Farroupilha (1835-45), o Partido Liberal foi dominante na cena poltica gacha.
Nos momentos de hegemonia conservadora no cenrio nacional, o partido liberal se dividia
entre radicais e moderados, os segundos mais inclinados a contribuir com o centro do poder.
Os primeiros republicanos provinham da intelectualidade urbana e se associavam ao partido
liberal em um primeiro momento (1870-1881) (PACHECO, 2006, p.141-143).
A aproximao dos republicanos com os liberais muda, em fins de 1870, quando opartido liberal que ascende ao poder no consegue corresponder s expectativas geradas. A
crise de legitimidade liberal coincide com o retorno de vrios jovens iniciados no
republicanismo no interior da Faculdade de Direito de So Paulo. Esses jovens, descendentes
das elites polticas do Rio Grande do Sul, eram crentes no cientificismo e desejavam a
modernizao e a transformao da sociedade, em consonncia com as teorias evolucionistas
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em voga na Europa daquele perodo. Foi a unio dos republicanos ligados ao partido liberal
com os republicanos provenientes de So Paulo que possibilitou a fundao do Partido
Republicano Rio-grandense (PRR) em fins de 1881 (PACHECO, 2006, p.143-148).
Os republicanos gachos que se formaram na Faculdade de Direito de So Paulo
trouxeram daquela experincia duas importantes formas de organizao e de mobilizao
poltica que foram fundamentais para o sucesso poltico desse grupo: clubes polticos e
debates em jornais. Os clubes republicanos foram se multiplicando depois da formao do
PRR at terem sedes em todas as cidades gachas. Esse modelo de organizao partidria foi
responsvel pela enorme disciplina da sua militncia, fato que permitiu aos republicanos um
impacto poltico maior do que sua representao social. Apenas trs anos aps a fundao do
PRR, ele conseguia eleger vereadores em vrias cidades e Assis Brasil para a Assemblia
Provincial (PACHECO, 2006, p.148-149).
O PRR conheceu plena ascenso durante os anos de 1880, tornando-se o segundo
partido mais votado na eleio de 1889. Quando o levante nacional contra a monarquia foi
instaurado, os partidrios republicanos estavam de prontido para tomar o poder dos liberais.
A posio hegemnica do Partido Liberal, ao longo da dcada de 1880, propiciou a curiosa
aproximao de republicanos e de conservadores no cenrio poltico do Rio Grande do Sul
(PACHECO, 2006, p.149-152).
A base social reduzida dos republicanos foi superada pela organizao e pela
disciplina superior do PRR. A ameaa poltica representada pelos antigos liberais motivou a
promulgao de uma constituio centralizadora em 1891, prevendo enormes poderes ao
chefe poltico estadual. Esses poderes foram usados tanto para silenciar a oposio quanto
para abafar novos quadros do PRR, perpetuando, assim, algumas lideranas no poder. A
intransigncia apresentada pelos novos governantes definiu o afastamento de vrias lideranas
republicanas, identificadas com o liberalismo, do PRR e o recurso, por parte da oposio, s
armas como meio de contestar o poder estadual (AXT, 2004, p.305-307).
Desde a proclamao da Repblica, os liberais, at aquele momento a principal forapoltica do estado, reagiram com firmeza ao seu afastamento do poder. Os conflitos foram
ganhando maiores propores at desembocarem em uma guerra civil, conhecida como
Revoluo Federalista (1892-1895). A vitria dos republicanos, com o apoio do exrcito
nacional, possibilitou a montagem de um aparato burocrtico e militar capaz de consolidar o
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novo regime e perpetuar o PRR no poder durante toda a primeira Repblica (MAUCH, 2004,
p.39-42).
O governo republicano do Rio Grande do Sul baseava seu poder: na centralizao do
poder poltico nas mos do Presidente do estado, cuja autoridade constitucional lhe dava
poderes ditatoriais; na frrea disciplina partidria; na existncia de um corpo militar
permanente, Brigada Militar, diretamente subordinada ao Presidente do estado (MAUCH,
2004, p.42-43).
O processo de consolidao dos republicanos no poder tambm passou por uma
alterao na estrutura policial e na estrutura jurdica do Estado. A polcia foi reorganizada
com a lei n11 de 04/01/1896 e dividida em duas corporaes: polcia administrativa,
responsvel pelo policiamento extensivo e subordinada aos Intendentes municipais, e a polcia
judiciria, responsvel pela investigao dos crimes j ocorridos e subordinada s autoridadesestaduais. Alm de subordinada aos Intendentes, a polcia administrativa tambm era
subordinada a polcia judiciria e, nos casos de falta de policiais, poderia ter acrscimo de
quadros da Brigada Militar (MAUCH, 2004, p.165-172).
Essa estrutura jurdica-poltica conferia ao Chefe de Polcia uma importncia
extraordinria. Cabia a ele a incumbncia de coordenar e manter a ordem pblica, porm suas
funes no se esgotavam nessa tarefa. O Chefe de Polcia, assim como os Sub-Chefes do
interior, eram cargos de grande importncia poltica. As pessoas que ocupavam esses cargos
deviam ter renomada capacidade poltica, como os coronis e lideranas polticas do interior,
ou ligadas ao circulo de bacharis em direito que dominavam s aes polticas do PRR
(MAUCH, 2004, p.167). Eles eram responsveis tanto pela ordem pblica quanto pela
articulao poltica, intervindo nas disputas entre lideranas locais (AXT, 2004, p.278-280;
MAUCH, 2004, p.167-168).
A disponibilidade de usar a fora pblica era elemento de distino importante para a
elite poltica gacha. Este fato propiciava uma concorrncia entre o poder estadual central e as
foras polticas locais na indicao dos cargos de Delegado e Subintendente. O primeiro eramais ligado poltica local, enquanto o segundo ao palcio do governo do Estado. Conflitos
de jurisprudncia entre estas autoridades eram comuns e podiam motivar a nomeao de
apenas uma pessoa para os dois cargos (AXT, 2004, p.280). A capital do Estado, por sua
importncia estratgica, possua cargos de delegado e de subintendente para cada distrito da
cidade.
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O processo de consolidao dos republicanos no poder passou tambm pela
reestruturao da Justia Criminal, a partir da lei n24 de 15/08/1898. O Cdigo de Processo
Penal do Rio Grande do Sul, como ficou conhecida essa legislao, alterou: as competncias
previstas na lei de 1871; extinguiu o inqurito policial, definindo duas etapas para o processo
de formao da culpa, a secreta (policial) e a pblica (judicial); definiu o sorteio pblico mais
restrito para a definio dos jurados, permitindo maior controle sobre o jri (AXT, 2004,
p.283-284).
O ordenamento policial e jurdico do Rio Grande do Sul, realizado na segunda metade
da dcada de 1890, teve como principal articulador poltico Borges de Medeiros. Ele era o
principal aliado de Jlio de Castilhos, liderana republicana que esteve a frente do PRR e do
governo do Estado nos primeiros anos da Repblica. Borges de Medeiros assume o governo
do Estado do Rio Grande do Sul, em 1898, graas indicao de Castilhos. Este ltimo,
apesar de no exercer o poder diretamente, ainda manteve forte influncia na conduo
poltica at sua morte, em 1903. Foi entre 1903 e 1904 que Borges de Medeiros assumiu o
comando do governo e do PRR, encerrando um ciclo de perseguies polticas e de
intimidaes policiais aos opositores de Jlio de Castilhos. Borges de Medeiros reestruturou
algumas alianas polticas e ps fim ao perodo de instabilidade (AXT, 2004, p.270-272). A
estrutura poltica montada pelos republicanos, nos anos finais do sculo XIX, permitiu o
controle dos principais postos polticos at o ano de 1923, quando ocorreu novamente um
levante armado da oposio (AXT, 2004, p.307-308).Apesar de todas essas mudanas, preciso destacar algumas continuidades
importantes, no que se refere organizao da polcia, no perodo imperial e republicano. A
profissionalizao da polcia, embora desejada e identificada pelas autoridades e pelos
jornalistas como principal meio de se obter um bom servio na rea da segurana pblica, no
se efetuou durante todo o perodo estudado, tanto referente aos praas quanto as autoridades
(MAUCH, 2004, p.163-165; MOREIRA, 2009, p.50-62). possvel perceber tambm, graas
s caractersticas prprias de um estado fronteirio e militarizado, a permanncia de inmeras
corporaes militares na cidade de Porto Alegre. Essas corporaes e a Polcia competiam
entre si pelo monoplio da violncia, sendo recorrentes os confrontos opondo praas do
exrcito e marinheiros aos policiais civis e/ou militares locais (MAUCH, 2004, p.144-146;
MOREIRA, 2009, p.36-44).
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1.4 Geografia urbana e demogrfica de Porto AlegreO final do sculo XIX e o incio do sculo XX foram caracterizados pelo poderio das
potncias europias e pela universalizao das concepes de Estado e de cidadania moderna.
Fora da Europa, entretanto, a implementao dessas concepes encontrou enorme resistncianas populaes locais, sendo acolhidas somente por segmentos das elites e de alguns setores
citadinos identificados com ideais de progresso e modernidade (HOBSBAWM, 2002, p.52-
53).
No Brasil, a tentativa de implementao de tais concepes, no sentido de adequar o
pas aos parmetros internacionais de progresso, encontrou tambm dificuldades. Esses
empecilhos eram, sobretudo, de ordem antropolgica, visto que a vivncia moderna envolve
uma exigncia de ordem cultural/moral. Para que o Estado moderno se estabelea, preciso
que as pessoas que fazem parte da sua coletividade (nao) ajam de forma propcia ao seu
funcionamento (COOPER, 2005, p.62-63).
Ao longo do sculo XIX, existiam entre as elites brasileiras vrias consideraes a
respeito da posio do Brasil no seio das naes modernas. As vises eram bastante
pessimistas, visto que o pas carecia de um elemento considerado fundamental para um estado
que se pretendia nao: nacionalismo. As divises scio-raciais no permitiam o
desenvolvimento de uma identificao da populao com o Estado. Alguns pensadores, com
base nas teorias raciais que se desenvolviam na Europa e EUA, passaram a apontar a
imigrao em massa de genes superiores como meio de superar esse enclave racial
(AZEVEDO, 1987, p.59-60).
O conceito de nacionalismo exprime as noes de povo (raa), cultura (civilizao) e
lngua como fundamentais para a constituio do Estado-Nao moderno. No caso do Brasil,
o principal problema enfrentado era a grande influncia da raa negra sobre a populao em
geral. As teorias raciais, de modo geral, atribuem como causa central da diversidade humana,
tanto em termos anatmicos como culturais, a influncia das raas (SEYFERTH, 1996, p.41-
44). E, com isso, pode-se dizer que a raa negra seria uma das responsveis pela inclinaodos brasileiros ao vcio e vadiagem.
A formao da nao brasileira passaria (segundo concepes do sculo XIX), tanto
pela melhora da raa, quanto pela adoo de instituies modernas.
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A melhoria da raa foi tentada a partir da colonizao europia. As primeiras
tentativas de colonizao no Brasil ocorreram em 1818, com alemes no nordeste e suos no
Rio de Janeiro. Todas essas iniciativas foram fracassadas devido s dificuldades econmicas e
culturais enfrentadas pelos colonos. As disputas territoriais com a Argentina e o Uruguai
motivaram novas tentativas de colonizao, desta vez no Rio Grande do Sul em 1824. Essa
poltica de imigrao teve sucesso, porm foi interrompida pelos confrontos gerados pela
Revoluo Farroupilha (1835-1845) (SEYFERTH, 1996, p.41-44).8
Tais polticas de imigrao consideravam o imigrante do norte da Europa o mais
adequado a melhorar a raa brasileira. Foram encontrados diversos discursos exaltando as
qualidades dos imigrantes alemes, fato que gerou resistncia ferrenha da Igreja Catlica,
contrria introduo de colonos protestantes (SEYFERTH, 1996, p.44-45). O projeto
imigracionista implementado no Rio Grande do Sul, portanto, foi pioneiro no Brasil,
articulando diversos objetivos, entre eles, a melhoria gentica da populao, a carncia de
mo-de-obra disciplinada e, principalmente, a ocupao territorial visando defesa do pas.
Em meados do sculo XIX, a cidade de Porto Alegre, apesar da sua importncia
poltica por ser sede do governo provincial, possua uma populao que ainda no atingia a
marca de 20.000 habitantes.9 Por causa do projeto colonial, era possvel perceber na cidade,
alm das tradicionais etnias que compem o povo brasileiro, a presena germnica
(CONSTANTINO, 1998).10 A proximidade com outros pases platinos e o envolvimento na
Guerra do Paraguai (1864-1870) fizeram da cidade um importante entreposto militar (PINTO,2006, p.97-123).11 Entre 1850 e 1870 possvel perceber um reforo na segurana pblica da
8 Mesmo depois da pacificao militar, a retomada vacilante do projeto imigracionista fez com que o nmerototal de imigrantes no Rio Grande do Sul no superasse a marca dos 20.000 indivduos at meados do sculoXIX.9 FUNDAO DE ECONOMIA E ESTATSTICA. De Provncia de So Pedro a Estado do Rio Grande do Sul Censos do RS 1803-1950. Porto Alegre, 1981. Disponvel em:
Acesso em: 06 fev. 2011
10 Os relatos de estrangeiros que passavam por Porto Alegre podem indicar a presena germnica nesta cidade. Osoldado alemo Hrmeyer, em 1850, descreveu a grande presena de seus conterrneos pelas ruas de PortoAlegre, esboando Porto Alegre como uma cidade germanizada. Carl Seidler, em 1827, destacou a importnciada cidade para o escoamento da produo realizada pela colnia alem de So Leopoldo, assim como ganhoseconmicos gerados pelo trnsito de mercadorias entre essas duas cidades.11 Durante todo o sculo XIX, a provncia do Rio Grande foi a maior fonte de mobilizao militar do Brasil,fornecendo a maioria dos combatentes para todos os conflitos platinos. Na Guerra do Paraguai, especificamente,os combatentes gachos correspondiam a quase 30% do efetivo nacional.
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cidade de Porto Alegre, visando o controle dos pobres livres, especialmente os negros recm-
libertos, que circulavam no espao urbano (MOREIRA, 2009, p.13-14; p.321).12
A partir da dcada de 1870, as atenes colonizadoras se voltam para a Itlia, visto as
dificuldades encontradas na Alemanha. O objetivo era destinar esses imigrantes s atividades
agrcolas, pois a experincia alem no sul do pas era considerada um exemplo exitoso
(SEYFERTH, 1996, p.46-48). O projeto imigracionista implementado no Rio Grande do Sul
foi pioneiro no Brasil, articulando diversos objetivos, entre eles, melhoria gentica da
populao, carncia de mo-de-obra disciplinada e, principalmente, ocupao territorial
visando defesa do pas.
O ncleo de alemes que se desenvolveu na cidade de Porto Alegre, entretanto, no
fazia parte do projeto imperial de colonizao (GANS, 2004, p.13). Tal processo ocorreu de
forma independente e foi fomentado por imigrantes vindos diretamente da Europa. Aochegarem nesta cidade, ocuparam uma posio de competio com os trabalhadores
nacionais, sendo favorecidos pela atmosfera de preconceito racial ao negro. Esta comunidade
alem, apesar do permanente contato com os luso-brasileiros, procurou construir uma
identidade capaz de diferenci-los do restante da populao (GANS, 2004, p.212-213).
A proximidade dos imigrantes porto-alegrenses teutos com a cultura alem europia
fazia deles importantes porta-vozes da cultura alem no Estado. Os discursos da imprensa
teuta na capital atingiam toda a regio colonial. Nesse aspecto, se destaca a atuao do
jornalista Carl Von Koseritz. Darwinista e anticlerical, Koseritz considerava que a melhor
contribuio dada pelos teutos ao aprimoramento da nao brasileira era preservar suas
particularidades enquanto alemes (GANS, 2004, p.214). Diferentemente de outras colnias
de origem alem, os teutos porto-alegrenses aderiram ao escravagismo, se valendo de prticas
semelhantes quelas dos luso-brasileiros (GANS, 2004, p.212-213).
A principal mudana na demografia urbana de Porto Alegre, no final do sculo XIX,
ser ocasionada pela entrada expressiva de imigrantes italianos. Embora as polticas pblicas
fossem voltadas para reas rurais limtrofes, no havia como impedir a imigrao espontneapara os centros urbanos. Em 1877, as famlias italianas estabelecidas na capital fundaram uma
12 So indcios disso o novo regulamento do Corpo Policial, da Cadeia Civil e a Reforma do Cdigo de Posturade Porto Alegre na dcada de 1850.
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sociedade de socorro mtuo, sendo comprovados os vrios laos de compadrio e parentesco
existentes entre elas (CONSTANTINO, 1998, p.155). A convivncia entre alemes e italianos
no eram isentas de conflitos (CONSTANTINO; SIMES, 1996, p.97).13
A presena dos imigrantes no espao urbano de Porto Alegre pode ser percebida
tambm pela ocorrncia de nomes estrangeiros em negcios estabelecidos nessa cidade.
Constantino percebeu que dentre os 286 estabelecimentos comerciais registrados no centro de
Porto Alegre no ano de 1895, 186 possuam nomes estrangeiros. Esse expressivo nmero foi
alcanado sem contabilizar os sobrenomes lusitanos (CONSTANTINO, 1998, p.152-153).
Destacar a presena estrangeira no cenrio urbano da cidade no significa menosprezar
a existncia de negros e mestios. Dados estatsticos, de 1888, indicam que aproximadamente
31% da populao era composta por pretos (18%) ou pardos (12%). Mesmo considerando o
enorme crescimento populacional e entrada macia de italianos no final do XIX, tal nmeromostra-se expressivo (PESAVENTO, 1989, p.68-70).
O crescimento urbano e demogrfico da cidade de Porto Alegre, em fins do sculo
XIX e incio do sculo XX, provocaram uma reordenao do espao urbano e presso sobre
as habitaes existentes, visto a escassez de moradias. O crescimento populacional pode ser
avaliado na tabela apresentada abaixo com base nos censos do ano de 1872, 1890, 1900 e
1920.
Tabela 01 Populao de Porto Alegre por sexo
Homens mulheres Total
187214 22.914 21.084 43.998
13 Um confronto coletivo extraordinrio que mobilizou parte destas duas comunidades capaz tanto deexemplificar bem essas tenses tnicas como mostrar a manuteno do vnculo dessas populaes com sua terrade origem. Em 20 de setembro de 1895, o jornal de lngua alem Volksblatt que funcionava em Porto Alegrepublica matria ofensiva contra a Itlia e os italianos. Uma comisso italiana procurou o Chefe de Polcia e nofoi bem recebida. Devido a toda essa situao, panfletos foram impressos incitando a comunidade italiana a umapasseata, fato que resultou em uma marcha, com bandeiras do Brasil e da Itlia, at a tipografia que publicou taisinjrias contra os italianos. O resultado foi destruio dos equipamentos do jornal e a instaurao de umprocesso-crime que no culpou ningum.14 O censo de 1872 apresenta os seguintes dados para Porto Alegre: 6042 casas e 43998 o nmero de pessoaslivres e escravos. Com base em outra tabela Populao presente, por sexo, no Rio Grande do Sul seconstruiu um nmero aproximado de homens e mulheres para Porto Alegre neste perodo.
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1890 26.409 26.012 52.421
1900 36.719 36.955 73.674
1920 75.734 82.231 157.965
FONTE: FUNDAO DE ECONOMIA E ESTATSTICA. De Provncia de So Pedro a Estado do Rio Grandedo Sul Censos do RS 1803-1950. Porto Alegre, 1981.
Os dados apresentados na tabela 01 so incontestes em mostrar o crescimento
populacional de Porto Alegre, pois em um perodo de aproximadamente 50 anos a cidade
triplicou o tamanho de sua populao. Os dados colhidos nos censos oficiais precisam,
entretanto, ser problematizados. Existia, por parte da populao, grande resistncia em sefazer registrar nas estatsticas governamentais, pois isso provavelmente significava
recrutamento, aumento de impostos e/ou controle. Constantino chama ateno, tambm, para
o perfil social dos imigrantes italianos que chegavam capital: homens jovens, entre 19 e 24
anos (CONSTANTINO, 1998, p.155-156).
O crescimento vertiginoso da populao colocou problemas aos gestores municipais.
O problema da moradia que atingiu diversas cidades do pas e ficou conhecido como questo
habitacional (BAKOS, 1998, p.04). Essa questo foi uma das principais demandas
enfrentadas pelos quadros administrativos da prefeitura. A centralidade do problema pode ser
percebida tanto pelo fato de o assunto ter sido posto como uma das principais reivindicaes
do Partido Socialista, fundado em 1897, quanto pelas inmeras crticas publicadas nos jornais
sobre a ineficincia e a incapacidade dos gestores pblicos de resolverem esse problema
(BAKOS, 1998, p.15).
O modo como a elite poltica encaminhou a questo habitacional parece ser revelador
da prpria capacidade da mesma em encaminhar polticas pblicas capazes de promover as
mudanas modernizantes to alardeadas como necessrias no perodo em questo. Acomparao com o Rio de Janeiro pode ser elucidativa das dificuldades enfrentadas pelos
gachos. Durante o incio do XX, por exemplo, os tecnocratas cariocas conseguiram impor
projetos higienistas e expulsar os populares do centro - foi o famoso bota abaixo da
administrao Pereira Passos. Durante o Imprio, as investidas desses segmentos, mesmo
quando contavam com claro apoio governamental, ainda tinham que enfrentar resistncias no
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Judicirio, graas s atuaes dos liberais na defesa da propriedade. Tal obstculo foi
superado com o advento da Repblica (CHALHOUB, 1996, p.44-46).
Figura 01 Organizao Administrativa de Porto Alegre em 1901
FONTE: INSTITUTO HISTRICO E GEOGRFICO DO RIO GRANDE DO SUL. Planta Geral DoMunicpio De Porto Alegre. 1901, s/autor. (*) Cpia xerogrfica de original impresso, com rosa dos ventos ecoordenadas geogrficas, escala 1:100.000. Impresso: Lit. de Igncio Weingartner, Porto Alegre. 80X70 cm.
No Rio Grande do Sul, a sada autoritria para o problema habitacional certamente
encontraria justificativa na influncia positivista e na tradio militarizada e autoritria da
sociedade. O grande obstculo para a higienizao do centro foi, sobretudo, financeiro.
Apenas dois anos aps a guerra civil, o governo j enfrentava crise econmica. Sinal
emblemtico dessa situao foi a aceitao, por parte do Banco da Provncia do Rio Grande
do Sul, de imveis para liquidar os dbitos de seus clientes. Essa situao perdura at pelo
menos 1907, quando as dificuldades comeam a diminuir. O tempo de crescimento
econmico durou pouco, pois, em 1914, iniciou-se outro perodo de recesso devido Guerra
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Mundial. O governo municipal s conseguiu articular emprstimo externo depois de 1924
(BAKOS, 1998, p.07-09).
A falta de residncias provocada pelo crescimento populacional vertiginoso, a falncia
dos governos estadual e municipal ocorrida graas desorganizao ps-guerra civil e a
convivncia de diversas etnias eram o cenrio social e econmico da virada do sculo em
Porto Alegre. Terminada a caracterizao geral, tentar-se-, a partir de dois mapas, descrever
as divises administrativas e territoriais.
A parte mais antiga de povoamento e a mais populosa tambm o centro da
cidade. No FIGURA 01 o centro corresponde ao 1 Distrito e no FIGURA 02 foi feito
um contorno em cor verde para identific-lo. rea que abrigava os principais prdios pblicos
dos governos estadual e municipal foi tambm a regio que mais sofreu com a falta de
moradias, sendo recorrentes a superlotao de prdios habitacionais e a formao de cortios.Em algumas regies, prximas aos locais de moradia dos setores tradicionais da elite,
encontram-se inmeras propriedades que pagavam impostos como cortios. Foi essa
convivncia incmoda que levou alguns segmentos emergentes da elite a ocupar a regio em
torno da Av. Independncia15, um pouco mais afastado do centro da cidade (BAKOS, 1998,
p.156-158).
Outros territrios que tambm tiveram sua ocupao realizada ao longo do sculo XIX
so as reas marcadas em vermelho no FIGURA 02. A cidade baixa, a ilhota, o areal da
baronesa e a colnia africana estavam ligados dinmica da sociedade escravista, na medida
em que as primeiras populaes dessas reas eram de etnias africanas (MATTOS, 2000;
KERSTING, 1998). O forte crescimento populacional da cidade descrito anteriormente gerou
dinmicas que gradativamente alteraram o perfil dos habitantes dessas regies. A regio da
Cidade Baixa passou a receber, nas primeiras dcadas do XX, a populao italiana que
chegava cidade. Os novos proprietrios foram, gradativamente, melhorando a qualidade das
moradias, operando qualificaes higinicas e arquitetnicas, fatores fundamentais na
definio do status social de um local respeitvel, mesmo se inserido em territorialidades
marcadamente pobres. Entretanto, at 1920, ainda era possvel detectar a presena de cortios
nessa rea (CONSTANTINO, 1998, p.160-161).
15 Essa avenida se localiza entre o centro, o bom fim e a zona norte no FIGURA 02.
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Figura 02 Territrios da zona urbana de Porto Alegre em 1906.
FONTE: INSTITUTO HISTRICO E GEOGRFICO DO RIO GRANDE DO SUL. TREBBI, A. A. Planta DaCidade De Porto Alegre, Capital Do Estado Do Rio Grande Do Sul. PORTO ALEGRE: Casa Editora Livraria do
Commercio, 1906. (*) Original impresso, colorido, tinta s/papel, com orientao norte-sul e coordenadasgeogrficas, escala 1:13.400, com legendas desenhos de monumentos arquitetnicos. 63,3X44 cm.
A regio do Bom Fim, provavelmente, devido sua proximidade com a Colnia
Africana, era uma rea bastante desprestigiada at o final do sculo XIX. Em 1910, todavia, j
possvel detectar tanto a presena de italianos quanto a proliferaes dos cortios. Somente
em um segundo momento o bairro passou a receber os imigrantes judeus, que acabaramcriando uma nova dinmica de ocupao para esse espao (CONSTANTINO, 1998, p.161-
162).
A principal aposta dos administradores pblicos para o escoamento da populao foi a
urbanizao da zona norte da capital, marcada em amarelo no FIGURA 02. As primeiras
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ruas foram traadas em 1896, porm o servio de bonde s chegou regio em 1907. As
indstrias se instalavam naquela regio tanto pela proximidade com o centro quanto pela
facilidade no escoamento da produo. A relevncia econmica, poltica e social desse espao
da capital cresceu bastante. Meios de sociabilidade prprios e diferentes daqueles da parte sul
tambm se desenvolveram nessa rea (FORTES, 2004, p.35-38).
Em associao com esse processo de expanso, percebe-se o estabelecimento de
comrcio ao longo da Av. Voluntrios da Ptria e de algumas famlias de italianos e alemes
ao longo eixo da Av. Cristovo Colombo. Em 1900, registram-se inmeras propriedades para
alugar nessas reas. Fortemente marcada pela presena estrangeira, a ocupao desses espaos
trazia consigo o desejo das pessoas de alcanar a segurana econmica e o respeito, cujo
signo maior era o acesso casa prpria. Gradativamente, graas s dinmicas prprias dessa
regio, alguns espaos foram se destacando pela ocupao de uma classe mdia ascendente,
como o caso do bairro Higienpolis (CONSTANTINO, 1998, p.158-163).
As divises administrativas ainda so nebulosas. A zona norte da capital ficou
conhecida pela historiografia como quarto distrito (FORTES, 2004, p.35-38), porm o
FIGURA 01 e as evidncias encontradas nos processos-crimes contra o jogo do bicho, entre
1904-06, que sero analisadas posteriormente, apontam a zona norte da capital como o
terceiro distrito. As zonas de urbanizao mais antigas, marcadas em vermelho no FIGURA
02, correspondiam ao 2 e 4 distrito.
***
Apresentar-se- agora o resumo dos captulos que compem essa dissertao. O
primeiro deles apresenta o modo como as prticas de jogo se constituram como um problema
social na segunda metade do sculo XIX. Seu controle era preferencialmente realizado no
mbito policial, embora isso no signifique que ele no fosse encontrado em outras esferas.
No campo da justia criminal, os jogos de azar estavam associados aos conflitos nascidos em
torno de alguns espaos de sociabilidade, geralmente bares e tabernas, motivados pela
vigncia de cdigos de virilidade como meio de soluo dos conflitos. Esses cdigos eramtambm pertencentes ao universo policial. Assim, os policiais, que possuam a mesma origem
social das populaes que deviam controlar, se tornavam reprodutores da prtica do jogo. Isso
trazia inmeros constrangimentos ao poder pblico, pois ele se tornava incapaz de controlar o
jogo a partir de atos de autoridade. Maiores constrangimentos, entretanto, foram trazidos pela
explorao das loterias pelo Estado. Graas a esse tema, o problema social dos jogos de azar
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tambm entrou no campo poltico a partir de um projeto apresentado pelo PRR Assemblea
Provincial. Foi possvel perceber, a partir dos discursos analisados, a existncia de um amplo
e concorrido mercado de loterias. A mudana de regime poltico representou uma maior
intolerncia prtica dos jogos de azar, fator evidenciado a partir da comparao entre a
legislao imperial e a republicana. Essa reposta do Estado ao problema no parece ter
alterado a popularidade dos jogos, apesar da atuao firme das autoridades policiais de Porto
Alegre no sentido de coibir o jogo.
O segundo captulo tratar de uma loteria ilegal que passou a dominar a ateno das
autoridades pblicas na ltima dcada do sculo XIX: o jogo do bicho. Esse jogo tornou-se,
nos dias atuais, um smbolo da nacionalidade brasileira e um elemento reconhecidamente
pertencente cultura popular. Esse aspecto acabou influenciando a historiografia que trata
desse tema, pois a intolerncia da primeira Repblica com as prticas populares serviu de
chave explicativa para a criminalizao desse jogo. Outras explicaes, entretanto, foram
sugeridas por trabalhos recentes, conforme se ver. Independentemente dessas discusses
historiogrficas, se percebe que o jogo do bicho alcanou enorme popularidade, tanto no Rio
de Janeiro, quanto em Porto Alegre. Na capital gacha, as autoridades no ficaram inertes a
esse cenrio, utilizando os meios disponveis para enfrentar o desafio representado pelo jogo
do bicho. A ltima parte desse captulo tratar dos mecanismos de controle social disponveis,
na dcada de 1890, para o enfrentamento desse e de outros jogos de azar. Eram eles:
intimidaes orais, prises de 24h, agentes secretos, cdigo de posturas e cdigo penal.O terceiro captulo ter como tema central uma campanha oficial feita contra a loteria
ilegal do jogo do bicho em Porto Alegre que se iniciou em meados do ano de 1904 e durou at
1906. Para a compreenso dessas aes necessrio, entretanto, a exposio de algumas
modificaes legais, que ocorreram em fins do sculo XIX, que modificaram alguns dos
mecanismos de controle social expostos no final do captulo anterior. Essas modificaes
permitiram a formao de policiais justiceiros, como o caso do capito Orlando Motta que
comandou a maioria das aes dessa campanha repressiva. O reforo da autoridade policial
no foi suficiente para eliminar o jogo do bicho. Os conflitos gerados pela truculncia policial
acabaram levando a um questionamento da validade dos procedimentos adotados naquela
campanha no campo jurdico, percebidos nos debates do Cdigo Civil. A falncia do recurso
judicial, entretanto, no eliminou o controle policial. Ao contrrio, o capito Orlando Motta
conheceu uma ascenso profissional e se tornou um delegado especializado nas questes do
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vcio. A impossibilidade de acabar com esse jogo por atos de autoridade e a ampla
discricionalidade policial presentes nos mecanismos de controle disponveis permitiram a
formao de associaes corruptas entre policiais e banqueiros, conforme foi possvel
perceber a partir de alguns indcios.
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2. CAPTULO 1: OS JOGOS DE AZAR NO RIO GRANDE DO SUL NOSCULO XIX: Sua importncia como elemento de sociabilidade e oproblema moral da explorao do vcio pelo Estado
2.1 IntroduoBuscou-se pesquisar como as prticas dos jogos de azar se inseriram no mbito da
justia criminal, ao longo do sculo XIX e incio do sculo XX, as modalidades de jogos
perseguidas e o tipo de punio aplicada. Para tanto, se vasculhou os registros de processos-
crimes disponveis para consulta no APERGS.
A questo das fraudes lotricas, contrabando de bilhetes e loterias ilegais atravessam
toda a extenso temporal do acervo: existe um processo sobre fraude de bilhetes no ano de
1863 e dois em 1866; dois de contrabando ilegal de loteria estrangeira em 1884 e trs em1907. Nenhuma loteria, entretanto, gerou mais processos-crimes do que o jogo do bicho.
Foram trs processos em 1898, um em 1900, vinte e dois em 1904, treze em 1905 e quatro em
1906.
Os processos-crime envolvendo jogos, entretanto, no se encerravam na questo das
loterias ilegais. Localizou-se tambm a ao do poder judicirio em duas casas de tavolagem
no ano de 1895, logo aps o trmino dos conflitos entre republicanos e federalistas e em 1905.
Os jogos tambm aparecem de uma forma indireta nos processos-crimes associadas a brigas e
a homicdios, muitas vezes, envolvendo os prprios policiais que deviam coibir essas prticas.
latente que os anos de 1904-5 foram aqueles que os jogos, particularmente o jogo do
bicho, tiveram maior importncia no mbito da justia criminal. Acredita-se, entretanto, que a
insero dos jogos nesse mbito s foi possvel por uma srie de problemas que essas prticas
traziam para os gestores pblicos desde o perodo imperial. O objetivo desse captulo ser,
portanto, reconstituir o contexto social existente em torno das prticas de jogos de azar e os
problemas que a disseminao dessas prticas traziam para o projeto de modernizao do Rio
Grande do Sul pelo ponto de vista das elites polticas.
A primeira parte desse captulo, portanto, buscar descrever os conflitos nascidos nos
locais onde as prticas dos jogos de azar se realizavam e ainda avaliar as possibilidades do
controle policial sobre tais prticas. Os jogos de azar, particularmente as loterias, penetraro
no mbito poltico atravs do projeto de proibio das loterias apresentado pelo PRR em
1885. A segunda parte desse captulo objetivar analisar como os jogos eram representados no
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mbito poltico. Tal anlise ser realizada a partir dos debates ocasionados em torno do
projeto citado acima, evidenciando o porqu deles se constiturem como um problema social.
Por ltimo, tentar-se- mostrar que o advento da Repblica significou um maior
recrudescimento penal prtica dos jogos de azar, como uma resposta aos problemas que se
apresentavam no regime poltico anterior.
2.2 Os jogos e as sociabilidades viris: os limites do policiamentoA baixa incidncia de processos-crime envolvendo a prtica de jogos de azar durante o
perodo imperial no significa, necessariamente, o no interesse pelo controle dessas prticas.
A ao do poder judicirio era restrita porque o pequeno grau de periculosidade e o carter
moral da condenao remetiam seu controle esfera policial. sintomtico, nesse sentido,
que a legislao antijogo presente no Cdigo Criminal do Imprio, de 1830, esteja localizada
na parte referente aos crimes policiaes.16
Essa caracterstica dos jogos de azar no impede, entretanto, que eles sejam
importantes agenciadores de conflitos entre as pessoas. Escravos de diferentes donos podiam
entrar em confronto fsico por causa de apostas feitas no jogo de carta, o que aponta para
existncia da prtica de aposta nos momentos de lazer dos cativos. Em 1876, o crioulo
Gaudncio, escravo de Ana Marques de Souza, feriu com uma faca o escravo Joo depois de
discutir e de brigar por causa de uma aposta feita no jogo de cartas. O ru foi condenado a seis
anos de priso, a duzentos aoites e a carregar uma argola de ferro no pescoo por vinte anos
(PROCESSO-CRIME, 1876, n 1290).
Durante toda a srie documental analisada foi possvel encontrar vrios processos com
este perfil: dois ou mais homens discutem por causa de aposta feita em jogo de cartas,
discusso que leva ao confronto fsico com uso de armas brandas, resultando em leses
corporais ou homicdios.
Esse tipo de briga no era restrito aos escravos, sendo corrente tambm entre
trabalhadores livres pobres. No mesmo ano de 1876, Joo Tomas Peixoto, lavrador, feriu Joo
16 Nos documentos consultados se preservar a grafia da poca. O Cdigo Criminal do Imprio pode seracessado pela Internet. Ver: BRASIL. O Cdigo Criminal do Imprio.
Acesso em: 01 nov. 2010.
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Machado da Silva com uma faca depois de interferir em uma discusso por causa de duas
cervejas apostadas em um jogo de cartas (PROCESSO-CRIME, 1876, n 1302). Existe outro
indcio que aponta para recorrncia em apostar cervejas no jogo. o caso do processo que
trata do roubo de um relgio envolvendo o pardo Rafael e o crioulo Gregrio, ambos
escravos, que afirmaram terem se encontrado ocasionalmente em um local onde as pessoas
costumam se encontrar para jogar bisca (jogo de cartas) e apostar cerveja (PROCESSO-
CRIME, 1872, n 1249).
Os bares, as tabernas e estabelecimentos similares constituam-se em uma opo das
pessoas para o usufruto do cio, possibilitando a construo de laos de solidariedade e de
identidade. Nesses locais as sociabilidades envolvendo afirmao de virilidade eram
recorrentes, fato atestado, por exemplo, pelo consumo de lcool (MOREIRA, 2009, p.85-
118).17 Associados ou no ao consumo dessa substncia, os jogos de azar tambm erampresentes nesses espaos podendo se tornar catalisadores de tenses ou de conflitos que
podiam levar a agresso fsica e at ao homicdio, como foi visto. A violncia uma
caracterstica dos meios de sociabilidade viris, comum entre homens (BOURDIEU, 1998,
p.63-67).18
Uma notcia publicada no jornal Emancipao, financiado pelo Partido Liberal do Rio
Grande do Sul, sugere a frequncia de autoridades policiais nos locais de sociabilidade
descritos acima. Em 16 de outubro de 1872, esse jornal denunciou que autoridades policiaes
da cidade, frequenta com toda a assiduidade uma taberna situada rua do Rosrio, rua
posteriormente chamada de Vigrio Jos Igncio e localizada no centro da cidade. Aquela
casa ponto de reunio para jogatina de escravos, vagabundos, e soldados que muitas vezes
esto de servio ali junto com a banca do jogo da mosca. O jornal solicita que os
responsveis tomam as providncias antes de alli der-se alguma desgraa ou organisar-se
alguma quadrilha de gatunos. Segundo o jornal, depois do problema ter acontecido, no
adianta apparecer o apparato da polcia, e as patrulhas de cavalaria... para prenderam e
17 A manuteno do autocontrole concomitante a ingesto de grandes quantidades de lcool uma das formas deafirmar a virilidade, importante para os crculos masculinos.18 As diferenas entre o feminino e o masculino so frutos de vrias estruturas sociais que foram as pessoas aadotarem atitudes de feminilidade e de virilidade como se fossem prprias de uma ordem natural e cosmolgica.Em alguns espaos sociais, como os bares, so comuns os ritos capazes de fazerem os homens provarem avirilidade frente ao coletivo, e assim serem reconhecidos como verdadeiros homens.
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amarrarem pobres crianas inoffencivas (JORNAL EMANCIPAO, n 235, 16/10/1872,
p.01).
O envolvimento de policiais em desordens ou em prticas moralmente condenveis
pode ser verificado em outras cidades, especialmente o Rio de Janeiro. Acredita-se quecomparao com a experincia de policiamento da capital federal pode ajudar na
compreenso do contexto gacho. A Polcia uma instituio essencialmente moderna e
criada para defender a propriedade, combater o crime e disciplinar os comportamentos nos
espaos pblicos. De fato, as primeiras instituies deste gnero instauradas no Brasil,
notadamente no Rio de Janeiro, foram influenciadas nas experincias exitosas lanadas na
Europa, obedecendo em suas origens aos padres inicialmente estabelecidos pela Frana
absolutista e pela Inglaterra do sculo XIX (BRETAS, 1997, p.39).
Os desafios impostos pelo contexto social do Rio de Janeiro, entretanto, rapidamente
impuseram mudanas institucionais na Polcia no sentido de ampliar a disciplina e reforar o
respeito hierarquia no interior das corporaes (HOLLOWAY, 1997, p.22-23). O
crescimento vertiginoso de indivduos no submetidos aos controles pessoais caractersticos
do sistema de dominao escravista criou um crescente sentimento de medo e uma demanda
por ordem (AZEVEDO, 1987). No cenrio de crise da escravido, se fortalecia um discurso
de denncia contra o despreparo moral e intelectual do povo sendo freqente o recurso a
termos como vagabundos ou desordeiros para designar os homens livres (SCHWARCZ,
2007, p.36-37).
Um dos motivos que levou a polcia do Rio de Janeiro a ampliar e reforar o respeito
hierarquia no interior da corporao policial nasceu da necessidade de impor aos integrantes
da polcia algumas normas e comportamentos tidos como importantes elite e no
compartilhados pela maioria da populao (HOLLOWAY, 1997, p.254-255). Bretas (2002,
p.14-15), analisando o perodo republicano, destaca a distncia considervel entre aqueles que
discutiam e elaboravam as polticas da Polcia e os operadores da ponta da instituio os
policiais responsveis pela moralizao do espao pblico.
Acredita-se que essas particularidades da polcia no Rio de Janeiro possam ser
encontradas tambm no caso de Porto Alegre, visto as origens sociais dos policiais, tanto no
perodo imperial, quanto no perodo republicano. O recrutamento de policiais ocorria no seio
das classes mais pobres, fazendo com que eles compartilhassem os cdigos culturais das
populaes que eles tinham que controlar, incluindo algumas formas violentas de resoluo de
conflitos. Alm disso, os rendimentos obtidos no trabalho policial eram nfimos, o que no
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permitia a formao de uma categoria scio-profissional (MAUCH, 2008(b), p.103-104;
MOREIRA, 2009, p.46-60).
No Rio Grande do Sul, as corporaes policiais e militares tambm incorporavam na
sua dinmica institucional alguns meios violentos para impor a disciplina e o respeito hierarquia no seu interior. Os agentes sociais envolvidos nesse tipo de experincia acabavam
desenvolvendo laos de solidariedade e de identidade bastante fortes, reforados pelo fato de
habitarem casas prximas e freqentarem os mesmos espaos de sociabilidade. Tambm
influenciavam, para a solidificao destes laos, os conflitos e as rivalidades que as diferentes
corporaes existentes criavam entre si (MAUCH, 2004, p.144-146; MOREIRA, 2009, p.60-
62).
Espaos comuns de sociabilidade, rivalidade entre corporaes e prtica continuada de
hbitos condenveis moralmente so elementos que faziam parte do cotidiano dos policiais. O
exemplo a seguir ilustrar tanto os elementos citados acima, quanto o tipo de desafio
encontrado pelas autoridades que queriam acabar com a prtica dos jogos de azar pela fora.
Em 1884, devido a temores de que o uso da Polcia possa piorar as rixas existentes entre
policiais e soldados, o Chefe de Polcia de Porto Alegre solicita ao Presidente da Provncia a
permisso para utilizar alguns praas do exrcito na moralizao do Beco do Oitavo, futura
rua Andr da Rocha, localizado no centro da cidade.
Constando-me que na Travessa Trs de Novembro e ruas imediatas, todas situadas
nos fundos do quartel do 13 Batalho de Infantaria, existem diversas casas de
tabolagem, freqentadas por praas do Exrcito, e que promovem tambm
constantes desordens. E como estou no firme propsito de terminar com os jogos
que a lei probe, rogo a V. Exa. se digne de expedir a necessria ordem para que
seja prestado ao Delegado de Polcia desta capital alguns soldados do mesmo
Batalho, sempre que os requisitar no respectivo quartel, visto no convir que
semelhante servio se leve a efeito com fora de polcia, evitando-se assim
qualquer conflito que possa dar-se, desde que esta se veja em contato com aquela,como j tem por vezes acontecido (Apud MOREIRA, 2009, p.44).
O hiato existente entre as prticas sociais dos soldados e dos praas do exrcito, por
um lado, e o que os comportamentos esperados pelos oficiais e chefes dessas corporaes, por
outro lado, parece ser mais uma similaridade da polcia gacha com a polcia carioca. Bretas
chama a ateno para a resistncia dos policiais da Repblica, no Rio de Janeiro, em obedecer
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por completo as ordens dos seus superiores. Algumas atividades consideradas ilegais, como o
jogo e a prostituio, eram para os policiais um mal necessrio, impossveis de serem
proibidas. Os policiais que faziam o p