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COLEÇÃO EXPLORANDO O ENSINO FILOSOFIA VOLUME 14 ENSINO MÉDIO

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  • COLEO EXPLORANDO O ENSINO

    FILOSOFIA

    VOLUME 14

    ENSINO MDIO

  • COLEO EXPLORANDO O ENSINO

    Vol. 1 MatemticaVol. 2 MatemticaVol. 3 MatemticaVol. 4 QumicaVol. 5 QumicaVol. 6 BiologiaVol. 7 FsicaVol. 8 GeografiaVol. 9 AntrticaVol. 10 O Brasil e o Meio Ambiente AntrticoVol. 11 AstronomiaVol. 12 AstronuticaVol. 13 Mudanas Climticas

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    Centro de Informao e Biblioteca em Educao (CIBEC)

    Filosofia: ensino mdio / Coordenao, Gabriele Cornelli,

    Marcelo Carvalho e Mrcio Danelon . - Braslia :

    Ministrio da Educao, Secretaria de Educao Bsica, 2010.

    212 p. : il. (Coleo Explorando o Ensino ; v. 14)

    ISBN 978-85-7783-038-1

    1. Filosofia. 2. EnsinoMdio. I. Cornelli, Gabriele. (Coord.) II. Carvalho,

    Marcelo. (Coord.) III. Danelon, Mrcio. (Coord.) IV. Brasil. Ministrio da Educao.

    Secretaria de Educao Bsica. V. Srie.

    CDU 1:373.5

  • MINISTRIO DA EDUCAOSECRETARIA DE EDUCAO BSICA

    FILOSOFIA

    Ensino Mdio

    Braslia2010

  • Coordenao da obraGabriele CornelliMarcelo CarvalhoMrcio Danelon

    AutoresFilipe CeppasGabriele CornelliJoo Carlos SallesJuvenal Savian FilhoMarcelo CarvalhoMarcelo GuimaresMrcio DanelonMarilena ChauiOlgaria MatosPlnio Junqueira Smith Priscila Rossinetti RufinoniSilvio GalloWalter Omar Kohan

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO PAULO UNIFESPInstituio responsvel pelo processo de elaborao dos volumes

    Secretaria de Educao Bsica

    Diretoria de Polticas de Formao, Materiais Didticos e de Tecnologias para Educao Bsica

    Coordenao-Geral de Materiais Didticos

    Equipe Tcnico-PedaggicaAndra Kluge PereiraCeclia Correia LimaElizangela Carvalho dos SantosJane Cristina da SilvaJos Ricardo Alberns LimaLucineide Bezerra DantasLunalva da Conceio GomesMaria Marismene Gonzaga

    Equipe de Apoio AdministrativoGabriela Brito de ArajoGislenilson Silva de MatosNeiliane Caixeta GuimaresPaulo Roberto Gonalves da Cunha

    Tiragem 27.934 exemplaresMINISTRIO DA EDUCAO

    SECRETARIA DE EDUCAO BSICAEsplanada dos Ministrios, Bloco L, Sala 500

    CEP: 70047-900Tel: (61) 2022 8419

    1) As opinies, indicaes e referncias so de responsabilidade dos autores cujos textos foram publicados neste volume.2) Em todas as citaes foi mantida a ortografia das edies consultadas.

  • Sumrio

    APRESENTAO .................................................................................................7

    INTRODUO .....................................................................................................9Gabriele CornelliMarCelo CarvalhoMrCio Danelon

    PRIMEIRA PARTE

    O ENSINO DE FILOSOFIA NO BRASIL: TRS GERAES

    Captulo 1Debate com Marilena Chau, Joo Carlos Salles e Marcelo Guimares ........... 13MarCelo CarvalhoMarli Dos santos

    SEGUNDA PARTE

    DIDTICA DA FILOSOFIA: A PRTICA DO ENSINO DA FILOSOFIA ATRAVS DE SEUS TEMAS

    Captulo 2Histria da filosofia antiga: comear pelo dilogo .............................................45Gabriele Cornelli

    Captulo 3Histria da filosofia medieval: um mosaico de culturas e pensamentos...........59Juvenal savian Filho

  • Captulo 4tica e filosofia poltica: o pensamento de Walter Benjamin ........................... 85olGria Matos

    Captulo 5Lgica e linguagem. O que se diz e o que se cala: Wittgenstein e os limites da linguagemMarCelo Carvalho ............................................................................................. 101

    Captulo 6Filosofia da arte e esttica: um caminho e muitos desvios ...............................117PrisCila rossinetti ruFinoni

    Captulo 7Teoria do conhecimento e filosofia da cincia: conhecimento como crena verdadeira justificada .......................................................................................143Plnio Junqueira sMith

    TERCEIRA PARTE

    FILOSOFIA DO ENSINO DE FILOSOFIA: QUESTES TERICAS DA PRTICA DO ENSINO

    Captulo 8Ensino de filosofia: avaliao e materiais didticos.........................................159slvio Gallo

    Captulo 9Anotaes sobre a histria do ensino de filosofia no Brasil .............................171FiliPe CePPas

    Captulo 10Em torno da especificidade da filosofia: uma leitura das orientaes curriculares nacionais de filosofia para o ensino Ensino Mdio .....................185MrCio Danelon

    Captulo 11O ensino de filosofia e a questo da emancipao .......................................... 203Walter oMar Kohan

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    Apresentao

    A Coleo Explorando o Ensino tem por objetivo apoiar o tra-balho do professor em sala de aula, oferecendo-lhe um material cientfico-pedaggico que contemple a fundamentao terica e metodolgica e proponha reflexes nas reas de conhecimento das etapas de ensino da educao bsica e, ainda, sugerir novas formas de abordar o conhecimento em sala de aula, contribuindo para a formao continuada e permanente do professor.

    Planejada em 2004, no mbito da Secretaria de Educao Bsica do Ministrio da Educao, a Coleo foi direcionada aos professores dos anos finais do ensino fundamental e ensino mdio e encaminha-da s escolas pblicas municipais, estaduais, federais e do Distrito Federal e s Secretarias de Estado da Educao. Entre 2004 e 2006 foram encaminhados volumes de Matemtica, Qumica, Biologia, Fsica e Geografia: O Mar no Espao Geogrfico Brasileiro. Em 2009, foram cinco volumes Antrtica, O Brasil e o Meio Ambiente An-trtico, Astronomia, Astronutica e Mudanas Climticas.

    Agora, essa Coleo tem novo direcionamento. Sua abran-gncia foi ampliada para toda a educao bsica, privilegiando os professores dos anos iniciais do ensino fundamental com seis volumes Lngua Portuguesa, Literatura, Matemtica, Cincias, Geografia e Histria alm da sequncia ao atendimento a pro-fessores do Ensino Mdio, com os volumes de Sociologia, Filosofia e Espanhol. Em cada volume, os autores tiveram a liberdade de apresentar a linha de pesquisa que vm desenvolvendo, colocando seus comentrios e opinies.

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    A expectativa do Ministrio da Educao a de que a Coleo Explorando o Ensino seja um instrumento de apoio ao professor, contribuindo para seu processo de formao, de modo a auxiliar na reflexo coletiva do processo pedaggico da escola, na apreenso das relaes entre o campo do conhecimento especfico e a proposta pedaggica; no dilogo com os programas do livro Programa Na-cional do Livro Didtico (PNLD) e Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), com a legislao educacional, com os programas voltados para o currculo e formao de professores; e na apro-priao de informaes, conhecimentos e conceitos que possam ser compartilhados com os alunos.

    Ministrio da Educao

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    Introduo

    No inferno no qual vivemos todos os dias [...] existem duas ma-neiras de no sofrer. A primeira fcil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste at o ponto de deixar de perceb-lo. A segunda arriscada e exige ateno e aprendizagem contnuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do in-ferno, no inferno, e preserv-lo, e abrir espao.1

    comum ouvir relatos de professores que atuam diariamente em sala de aula com relao ao verdadeiro inferno em que a prtica docente se transformou. No o caso aqui de enfrentar os moti-vos das dificuldades, sejam reais, como percebidas, do sistema de ensino brasileiro. H certamente importantes anlises e polticas pblicas dedicadas a desvendar e corrigir os motivos profundos destes desacertos.

    * professor adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade de Braslia. Ps-doutor em Filosofia Antiga pela UNICAMP e pela Universit degli Studi di Napoli, doutor em filosofia pela USP, atualmente Presidente da Sociedade Brasileira de Platonistas, Coordenador do Grupo Archai e Editor da Revista Archai: as origens do pensamento ocidental.

    ** Doutor em Filosofia pela Universidade de So Paulo, possui Mestrado e Gra-duao em Filosofia pela mesma Universidade. Atualmente professor da Uni-versidade Federal de So Paulo e Coordenador do Programa de Ps-Graduao em Filosofia desta universidade.

    *** Doutor em educao filosofia da educao. Professor na Faculdade de Educao da Universidade Federal de Uberlndia.

    1 CAlvINo, Italo. As cidades invisveis. So Paulo: o Globo, 2003. p. 158.

    Gabriele Cornelli*Marcelo Carvalho**Mrcio Danelon***

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    o que nos preme assinalar que a filosofia, que volta agora a estar presente no ensino, o faz em anos de profunda crise do sistema escolar. Dramaticamente, o clebre final, acima citado, das Cidades Invisveis do escritor talo Calvino aqui proposto como uma met-fora dos problemas que os professores de filosofia esto encontrando nesta volta. Mas quer ser tambm um mapa conceitual para o enfren-tamento destas dificuldades, sugerindo que a presena da filosofia no ensino possa se constituir como um elemento que permita o contnuo reconhecimento dos desafios do ensino-aprendizagem, e no mais uma tentativa de varr-los para baixo do tapete, de esconder a crise.

    Filosofia e crise se frequentam h muito tempo, ao menos desde a Atenas clssica: o professor de filosofia certamente chamado a ser protagonista desta crise, em busca de novas oportunidades de estruturao do saber e de seu ensino formal.

    Com o objetivo de oferecer material de aprofundamento da prtica didtica e de auxlio formao continuada para professores de filosofia do Ensino Bsico, o presente volume da Coleo Explo-rando o Ensino rene contribuies de alguns dos mais significativos especialistas na rea de filosofia e seu ensino no Pas.

    o livro dividido em trs partes, sendo a primeira parte de-dicada edio de uma entrevista que, articulando as falas e a his-tria de trs geraes de professores de filosofia, se prope a traar o perfil, em termos comparativos, de trs momentos do ensino da filosofia no Brasil.

    A segunda parte estruturada em diversos textos que apresen-tam cada um uma diferente rea de trabalho em filosofia, de modo a tanto subsidiar o professor do ensino mdio em suas propostas de aula como mesmo a consolidar sua formao no tema especfico. Gabriele Cornelli enfrenta a problemtica de se estudar filosofia antiga no Brasil e da relevncia deste estudo num Pas situado na outra margem do pensamento ocidental. Aborda a questo como uma oportunidade/desafio enquanto discute o que seja filosofia antiga e como buscar caminhos para ensin-la, especificamente atravs dos dilogos de Plato. Juvenal Savian Filho trata da pertinncia e do sentido histrico-filosfico do termo medieval, assim como das limitaes impostas por esse conceito. Faz consideraes so-bre os mal-entendidos e clichs a respeito do pensamento medieval, abordando a questo da continuidade com o perodo antigo e a

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    modernidade e da relevncia do estudo da filosofia medieval. Ol-gria Matos apresenta o pensamento de Walter Benjamin inscrito na histria da filosofia como uma reflexo sobre o mundo cultural e histrico, em particular a partir do sculo XIX. A importncia da memria e do passado, das experincias de vida e de pensamento que os indivduos desenvolvem em suas relaes com seus con-temporneos e com os valores herdados da tradio so os temas centrais de sua abordagem. Marcelo Carvalho aborda as dificuldades de se trabalhar com filosofia da lgica e da linguagem no contexto escolar. A partir disso, tece uma exposio sobre a principal obra de Wittgenstein, o Tractatus logico-philosophicus, sublinhando sua im-portncia no debate contemporneo e expondo de forma sinttica a discusso contida neste volume sobre as possibilidades e limites da linguagem. Priscila Rufinoni inicia sua contribuio explorando o significado do termo esttico e pontuando-o como uma forma do conhecer em geral. Sugere, em seguida, caminhos de abordagem temtica: a esttica como experincia sensorial, como filosofia da arte e como experincia existencial, histrica e poltica, sugerindo estratgias de abordagem para cada uma destas veredas. Plnio Smith anota que, desde o surgimento da cincia, o homem concebeu vrias mudanas no seu lugar na natureza e em sua viso a respeito desta. No entanto, afirma ser preciso perguntar se a cincia cumpriu com a expectativa gerada por sua evoluo. No mbito dessa discusso, aborda o surgimento da teoria do conhecimento na antiguidade clssica e helenstica, seus desenvolvimentos na modernidade e sua importncia na contemporaneidade. Tambm elenca distines nas diversas definies de conhecimento e sobre questes fundamentais como crena, verdade e justificao.

    A terceira parte dedicada mais precisamente abordagem das questes tericas inerentes ao ensino de filosofia hoje no Brasil. Silvio Gallo abre esta parte discutindo as justificativas que defenderam a volta da filosofia aos currculos e realando a possibilidade de uma sustentao destas justificativas nos contextos da promoo de uma viso crtica do mundo, da cidadania, ou da interdisciplinaridade. Filipe Ceppas faz uma anlise da histria do ensino de filosofia no Brasil, tentando explorar, a partir de uma perspectiva histrica e um pequeno conjunto de referncias, a pergunta sobre a relevncia ou os sentidos do ensino de filosofia em nvel secundrio. Acrescenta a esta explorao a indicao de algumas consequncias para a formao

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    de professores de filosofia, produzidas por trs formas distintas de se responder a esta pergunta: a forma da educao, da histria e da filosofia. Mrcio Danelon enfrenta, com base nas orientaes oficiais, a importncia de uma discusso verdadeiramente filosfica sobre o que a filosofia e as consequncias que surgem a partir de como essa discusso levada a cabo. Tambm discute a especificidade da filosofia enquanto reflexo e dos possveis usos que a filosofia pode ter dentro do ambiente escolar, assim como os compromissos que cada um destes usos assume na prtica educativa. o texto refere-se questo da emancipao do indivduo, de como tal exigncia de emancipao, caracterstica do ideal democrtico, cria exigncias para o ensino de filosofia. Walter Omar Kohan aprofunda a compreen-so de emancipao, apresentando as teses principais de Adorno a respeito da relao entre educao e emancipao. Alm disso, coloca em questo o pensar a emancipao no contexto da obra de J. Ran-cire, tirando algumas consequncias destas anlises, para pensar o lugar da emancipao no campo do ensino de filosofia no Brasil.

    A articulao das trs partes resulta numa proposta de leitura que permita ao professor de filosofia no ensino mdio afinar seu posicionamento profissional e intelectual em tempos de redefinio do lugar da filosofia enquanto disciplina curricular obrigatria. A inteno dos organizadores que este livro possa suscitar no pro-fessor o desejo de seguir pensando a filosofia e sua atividade de ensino como uma prtica em continua mudana. E que faa surgir, portanto, a necessidade de um movimento pessoal de atualizao e reviso constantes. Pois a responsabilidade da filosofia na sociedade e na escola permanece a mesma desde suas origens: contribuir com o processo de construo da autonomia crtica dos cidados, ensi-nando s novas geraes a repensar continuamente o mundo com suas prprias cabeas, a abrir espaos para sair de todas as cavernas, de todos os entraves apreenso livre e crtica do viver.

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    Captulo 1

    O Ensino de Filosofia no Brasil: trs geraes

    Breve panorama da trajetria do ensino de filosofia nos ltimos 50 anos

    Uma misso francesa constituda de professores de renome daquele pas do velho continente chegou ao Brasil na dcada de 1940 para criar e desenvolver o ensino de filosofia na recm-criada Universidade de So Paulo, fundada em 1934, atendendo s de-mandas de formao intelectual da burguesia paulistana. A nfase era um ensino humanstico e reflexivo, at porque a referncia de educao no Brasil era o modelo europeu. o acesso universidade se restringia s elites sociais.

    Foi durante o Estado Novo (1937-1945), de Getlio vargas, que se criou o Ministrio da Educao e Sade Pblica e se estabeleceram algumas diretrizes para o sistema educacional, abrangendo parcelas mais amplas da populao. As mudanas ocorreram no bojo de um movimento para renovar a educao no Brasil, o qual defendia a educao pblica e gratuita, laica e obrigatria, uma Escola Nova. o Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova produzido pelos intelectuais

    Marcelo Carvalho*Marli dos Santos**

    * Doutor em Filosofia pela Universidade de So Paulo, possui Mestrado e Gra-duao em Filosofia pela mesma Universidade. Atualmente professor da Uni-versidade Federal de So Paulo e Coordenador do Programa de Ps-Graduao em Filosofia desta universidade.

    ** Doutora em Cincias da Comunicao da USP. professora titular do Curso de Jornalismo do Programa de Ps-Graduao lato Sensu da Universidade Meto-dista de So Paulo.

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    participantes desse movimento pode ser considerado um dos primei-ros documentos de expresso ideolgica na educao brasileira.

    Para atender s demandas das camadas mais populares, asso-ciou-se o ento Ensino Primrio, equivalente ao Ensino Bsico de 1 a 4 sries, ao ensino comercial, que tinha como nfase o aprendiza-do tcnico. As elites sociais tinham acesso ao Ensino Secundrio e Superior. o Ensino Secundrio oferecia cultura geral e humanstica, com duas opes de cursos, o Clssico e o Cientfico.

    No final da dcada de 1950, observa-se a gestao de uma mu-dana significativa na educao no Brasil, especialmente no Ensino Mdio. o desenvolvimentismo tomou conta do Pas, com a abertura do mercado para empresas multinacionais, a instalao de inds-trias automobilsticas, de cigarro, farmacuticas e de mecnica. Isso provocou crescente desnacionalizao da economia e coincidiu com o perodo de forte crescimento do ps-guerra. Grande parte dos investimentos feitos na educao durante esse perodo foram dire-cionados formao tcnica, oferecendo-se qualificao de mo de obra s empresas que ento se instalavam no Brasil.

    A lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (lDB), pre-vista na Constituio de 1946, s foi colocada em prtica no final de 1961, durante o governo de Joo Goulart. A lei 4024/61 tinha como uma de suas orientaes a no obrigatoriedade do ensino de filosofia e sociologia.

    Pouco mais de dois anos depois, em maro de 1964, o golpe militar e a ditadura provocaram novas mudanas. As escolas pbli-cas de ensino mdio foram sendo levadas em direo a um modelo instrumental de ensino, no qual o resultado e o pragmatismo eram o foco. Em 1968, a filosofia foi retirada de todos os vestibulares do pas e, em 1971, a lei 5692/71 elimina de vez filosofia e sociologia da grade curricular do Ensino Mdio, substituindo-as por organizao social e poltica brasileira (oSPB).

    As novas orientaes curriculares, somadas poltica econ-mica e ideologia do regime militar, que persistiu de 1964 a 1985, afetaram a qualidade do ensino, pela carncia crnica de cultu-ra humanstica e de formao crtica. Nesse perodo, a filosofia se manteve no exlio do Ensino Mdio pblico. Seu retorno ocorre, a princpio, como disciplina optativa, ao longo dos anos de 1980. Em 1996, com a lDB n 9394/96, a situao se mantm. o artigo 36, pa-rgrafo 1, recomenda o domnio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessrios ao exerccio da cidadania, mas no a

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    sua presena como disciplina escolar. Essa situao s de fato al-terada quando, em 2008, a lei 11.684/08 rev o artigo 36 da lDB e estabelece a obrigatoriedade da insero da filosofia e da sociologia nos currculos do Ensino Mdio.

    Nesses pouco mais de 50 anos, o ensino de filosofia causou diver-sas polmicas. No perodo da ditadura, foi julgado nefasto formao dos jovens, porque poderia levar ao pensamento crtico, este associado ao comunismo pelos militares. Em seguida, os debates que retomaram a discusso sobre sua insero obrigatria no Ensino Mdio trouxeram baila a viso de intelectuais que defendiam a no obrigatoriedade do ensino de filosofia. o argumento essencial: a filosofia no disci-plina e nem pode ser, pois uma atitude crtica ao pensamento, e no h modelo pedaggico que d conta de sua natureza, ou que possa estabelecer limites didticos para o seu ensino.

    o que se espera da filosofia nesse contexto de sua reinsero? Qual a identidade desse saber e dessa atividade docente que agora se faz presente em todas as salas de aula do Pas? H muito a ama-durecer e a se construir no longo caminho que nos levar conso-lidao da relao da filosofia com a formao da cultura e com o ensino brasileiros. Esse debate se faz com um olhar atento para a prpria filosofia, para que ela se reconhea nessas prticas docentes, mas que nunca descuida de se debruar sobre a experincia dos docentes que no cotidiano das escolas so chamados continuamente a se posicionar sobre todos esses temas.

    Trs geraes, trs histrias

    No breve e resumido recorte no tempo sobre o ensino de filoso-fia que consideramos aqui, h trs momentos importantes a serem destacados: a presena da filosofia como disciplina acadmica em uma conjuntura histrica na qual a cultura geral e humanstica eram a tnica, que caracteriza o perodo anterior ao regime militar e que persiste, em grande medida, at 1968; um segundo perodo em que o regime militar prioriza a formao tcnica e que se elimina o lugar que seria destinado filosofia no Ensino Mdio, e que se estende para alm da dcada de 1990; e um terceiro momento, no qual se constri o retorno do ensino de filosofia e se debate sua contribui-o para a formao crtica do jovem no Ensino Mdio. Questes ideolgicas, polticas e econmicas permeiam a trajetria do ensino de filosofia no Ensino Mdio ao longo do tempo.

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    Esses trs momentos podem ser representados por trs filsofos brasileiros de geraes diferentes, que expressam a sua viso sobre o ensino de filosofia no Ensino Mdio pblico: Marilena Chaui, Joo Carlos Salles e Marcelo Sena Guimares. Apresentamos a seguir o resultado de entrevistas e debates em que se pretende explicitar os contrastes de perspectivas e experincias associadas a esses diferen-tes momentos do debate sobre o ensino de filosofia. Em primeiro lugar, esboamos o perfil de cada um dos entrevistados e sua relao com a filosofia e com seu ensino. Em seguida, colocamos em debate essas diferentes perspectivas e esses diferentes percursos.

    Marilena de Souza Chaui

    Quatro dcadas de filosofia. Marilena Chaui respeitada como intelectual e militante poltica. Participou ativamente da criao do Partido dos Trabalhadores PT, em 1980. ocupou o cargo de se-cretria da cultura da cidade de So Paulo no governo de luiza Erundina, de 1989 a 1992, poca eleita pelo PT.

    Algumas de suas obras a fizeram extrapolar o contexto acad-mico e atingir os leigos, como em O que Ideologia, que compe a Coleo Primeiros Passos da editora Brasiliense, e Convite Filosofia, da editora tica.

    professora doutora honoris causa, ttulo concedido por duas instituies estrangeiras Universidade de Paris 8, Frana, e Uni-versidade de Crdoba, Argentina. Possui centenas de artigos publi-cados em peridicos de grande circulao e cientficos, dezenas de textos, entre livros e artigos publicados em obras de outros autores, em portugus e francs. Tem se dedicado, principalmente, hist-ria da filosofia contempornea, com foco em Baruch de Espinosa e Merleau-Ponty. professora titular do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo (USP), desde 1986.

    Nascida na cidade de So Paulo, a filsofa estudou o Primrio, e grande parte do Ginsio em Catanduva, no interior paulista. voltou a So Paulo em 1956 para terminar o Ginsio e cursar o Colegial Clssico (Ensino Mdio) no Colgio Estadual Presidente Roosevelt, bairro da liberdade, para depois fazer graduao e licenciatura em filosofia na Universidade de So Paulo (1960-65), em seguida o mes-trado (1966-67), apresentando a dissertao Merleau-Ponty e a crtica do humanismo. Em 1971, defende o doutorado com a tese Introduo leitura de Espinosa. Em 1977, conclui o trabalho de livre-docncia,

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    A nervura do Real: Espinosa e a questo da liberdade, na mesma uni-versidade. Realizou o ps-doutorado na Bibliotque Nationale de Paris (BNP), concludo em 1987.

    Encontro com a filosofia

    o pai da filsofa, Nicolau Chaui, era jornalista. A me, laura de Souza Chaui, professora, tornou-se indiretamente responsvel pelo primeiro encontro da filha com a filosofia. Eu me encontrei com ela [a filosofia] muito cedo. Quando tinha 12 anos, li um livro de minha me sobre filosofia da educao e fiquei deslumbrada com um sujeito chamado Scrates. Acho que no entendi quase nada do livro, mas a figura de Scrates ficou gravada em minha memria por causa de uma coisa fantstica chamada maiutica!.

    Mas foi na escola que conheceu melhor a filosofia, estimula-da por professores, por autores clssicos e disciplinas voltadas ao estudo de idiomas. No meu tempo havia, aps os quatro anos de Ginsio (no qual se aprendia latim, ingls e francs), o chamado Colegial (dividido em Clssico e Cientfico), que durava trs anos e nos preparava para a universidade. Durante os trs anos de Co-legial Clssico (no qual se aprendia latim, grego, espanhol, ingls e francs) tive aulas de filosofia, que era uma disciplina obrigatria eram cinco aulas semanais, isto , com exceo do sbado, havia filosofia todos os dias.

    A nfase dada filosofia (e outras disciplinas das humanidades) naquele momento era um dos caminhos para valorizar a formao humanstica e crtica dos alunos. A filsofa conta que no colgio Pre-sidente Roosevelt havia estmulo leitura, ao debate, participao, ao desenvolvimento de propostas, s novas ideias, participao poltica por meio do grmio estudantil. Para se ter uma ideia de como era o ensino, lembro que lamos Caio Prado Jnior nas aulas de histria do Brasil; Csar, Ccero e virglio, nas aulas de latim; trechos de Homero, Sfocles e Plato, nas aulas de grego; Racine, Corneille e Molire, nas aulas de francs; Shakespeare e Milton, nas aulas de ingls; Cervantes e Machado, nas de espanhol; todos os poetas e novelistas romnticos, simbolistas e modernistas, nas de literatura portuguesa e brasileira.

    Em meio aos clssicos da filosofia e da literatura, Marilena Chaui descreve a aula inaugural de filosofia na escola: A primeira aula teve incio com o professor dizendo o seguinte: Palamede da Escola Eleata, Zeno de Elia.... Era uma classe de jovens com 15

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    anos de idade, que nunca tinham ouvido falar de filosofia, muito menos de Zeno de Elia e menos ainda de quem poderia ser um tal de Palamede! o curso era de lgica e as primeiras aulas foram sobre Parmnides, Zeno, Herclito e Grgias e o efeito sobre mim foi fulminante: descobri que era possvel o pensamento pensar sobre o pensamento, a linguagem falar sobre a linguagem e que havia uma grande distncia entre perceber e conhecer.

    Entre bons professores aos quais atribui sua formao, destaca um. Tive um professor extraordinrio, Joo Eduardo villalobos, pessoa muito culta, irnica e cortante, que no fazia qualquer con-cesso nossa ignorncia, mas nos tratava como capazes de entender as aulas, pesquisar na Biblioteca Municipal, escrever razoavelmente. No meu caso, villalobos era, ao mesmo tempo, a iniciao ao pen-samento e o desafio de tomar conhecimento de um universo at ento desconhecido e sem fim. Muitas vezes, foram suas tiradas sobre algum fato corriqueiro do cotidiano que me fizeram olhar as coisas e as pessoas de uma maneira nova, problemtica, instigante. Fui fazer filosofia na universidade por causa dele, sem dvida. Mas tambm por causa de alguns outros professores.

    Vocao

    A licenciatura em filosofia s confirmou o que Marilena Chaui j sabia. Sempre me vi como professora e, na poca em que fiz a faculdade, ramos preparados para o ensino, pois alm do ba-charelado, a licenciatura fazia parte de nosso currculo, visto que a filosofia era disciplina obrigatria no que hoje se chama ensino mdio. Quase ningum imaginava dar aula em universidades (isso era para muito poucos), mas todos se destinavam espontaneamente para o ensino mdio.

    Apesar da vocao e preparo para a docncia no Ensino Mdio, a vivncia como professora nessa etapa de formao foi curta. Dei aula no Colgio Estadual Prof. Alberto levy, portanto, numa escola pblica e, diga-se de passagem, das melhores. Foi uma experincia muito gratificante, pois o ensino mdio (isto , o curso Colegial) no tinha passado pelas sucessivas reformas que iriam desfigur-lo e mantinha a formao que eu havia conhecido no Colgio Estadu-al Presidente Roosevelt, com timos alunos, muito dilogo entre os professores, todos exigentes quanto qualidade do ensino e ao desempenho dos alunos, e boa infraestrutura de trabalho, parti-cularmente, a biblioteca. Havia ciclos de debates e palestras sobre

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    assuntos variados da cultura contempornea com os professores da casa e com convidados especiais. No incio de cada semestre, os professores se reuniam por afinidade de suas matrias e propunham trabalhar juntos determinados assuntos, mas ningum usava o jargo da interdisciplinaridade; era bvio para muitos que suas matrias e temas se entrecruzavam e que valia a pena um trabalho conjunto. os alunos eram receptivos e interessados e vrios deles foram fazer filosofia na universidade, segundo eles, estimulados pelas aulas.

    Para as aulas, os professores do Alberto levy usavam a voz em sala de aula e os livros disponveis em bibliotecas. o professor prepa-rava suas aulas com o material pesquisado na Biblioteca Municipal e, no caso dos alunos, como eram pouqussimos os livros de filosofia em portugus (talvez uns 10 ou 15 ttulos), consultavam livros em ingls, francs e espanhol (pois estudavam essas lnguas no Colegial). Penso que o mesmo se dava com as outras disciplinas, embora algumas, como as de cincias e as de lnguas contassem com livros didticos, isto , destinados especificamente ao programa de cada ano escolar.

    A professora valoriza a indicao de livros de autores de refe-rncia em cada rea, como uma ao comum dos professores nas grandes escolas pblicas na dcada de 1960, inclusive no Col-gio Alberto levy. A ltima coisa em que algum pensaria seria em livros com ilustraes, pouco texto e quase nenhuma formao! Tambm nunca passaria pela cabea de ningum, em qualquer das disciplinas, em dar provas na forma de testes de mltipla escolha. E um professor se sentiria ofendido se recebesse um livro denominado livro (ou exemplar) do professor, ensinando-o a dar aulas, fazer provas e corrigir trabalhos!

    logo que defendeu a dissertao de mestrado no recm-criado programa de ps-graduao da USP, em 1967, foi convidada a lecio-nar no Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, letras e Cincias Humanas, da mesma Universidade.

    Em tempos de ditadura

    Enquanto Marilena Chaui cursava graduao e licenciatura de filosofia na USP, vivenciou um momento conturbado da hist-ria poltica brasileira. De 1960 a 1965, viu quatro presidentes da Repblica, uma renncia presidencial e um golpe militar, que mu-daram os rumos do Pas. A ditadura instaurada quando os milita-res tomam o poder no afetou inicialmente a educao (at 1968); somente as universidades sofriam com as constantes perseguies a professores e alunos.

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    Politicamente, a ditadura estava implantada, porm ainda no haviam chegado os anos de chumbo do AI-5 e a educao ainda no era alvo da Segurana Nacional nem estava encarregada de formar quadros para o Brasil Grande de Delfim Neto e Golbery do Couto e Silva. As perseguies haviam sido limitadas s universidades e, nestas, a professores individualmente visados por suas ligaes com o Partido Comunista ou com os grupos que haviam apoiado o de-senvolvimentismo de Juscelino Kubitschek ou as Reformas de Base, propostas por Jango Goulart. ou seja, o ataque ainda no visava (como aconteceria a partir de 1969) instituio universitria nem s instituies do ensino mdio, mas a indivduos.

    Ao mesmo tempo, o ensino de filosofia no Ensino Mdio buscou um caminho para no ficar margem das questes essenciais naquele momento, de forma mais indireta. As fontes de inspirao e reflexo para professores e estudantes eram o existencialismo do francs Jean Paul Sartre e o engajado movimento cinematogrfico Nouvelle Vague (Nova onda), relembra a filsofa, que tambm destaca as prioridades da escola naquele momento: prezar e valorizar a cultura e respeitar a cincia. o clima nas escolas tambm era diferente:

    Do ponto de vista social e econmico, a classe mdia ainda estava longe da indstria do vestibular, da competio desvairada e do sucesso a qualquer preo, de maneira que, na escola pblica, havia uma atmosfera de camaradagem e cooperao tanto entre os alunos como entre os professores.

    Ao fazer uma retrospectiva sobre o ensino de filosofia nos lti-mos 50 anos, Marilena Chaui acredita no ser possvel uma anlise sem relacionar a disciplina com as demais matrias do Ensino Mdio, ainda que a excluso da mesma pelos militares tenha sido justificada por motivos de subverso, ao lado da pedagogia de Paulo Freire e da histria do Brasil, apresentada por Caio Prado Jnior, exemplos que cita. Penso que preciso inserir a filosofia no mesmo contexto em que se encontraram as demais disciplinas de humanidades hist-ria, geografia, lnguas e literatura brasileira e estrangeira. Filosofia, histria e geografia foram, de incio, submetidas ideia de educao moral e cvica; em seguida, suprimido o ensino de filosofia, surgiu a disciplina estudos sociais, reunindo histria e geografia; e a disci-plina expresso e comunicao substituiu o ensino das lnguas, alm de suprimir o ensino de latim, grego, francs e espanhol.

    As reformas ocorridas no Ensino Mdio brasileiro so resultado da orientao poltico-econmica no Pas, segundo Marilena Chaui.

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    Nas mudanas, diz ela, a lgica do mercado prevaleceu em detrimento dos valores anteriormente cultivados e preservados na escola:

    o primeiro momento da reforma do ensino mdio foi feito sob a gide do Brasil Grande, da Segurana Nacional e das recomen-daes do Departamento de Estado norte-americano (o chamado acordo MEC-Usaid) com nfase nos conhecimentos tcnico-cient-ficos e desinteresse pelas humanidades, pouco significativas para o milagre brasileiro. o ensino mdio passou a ser visto de maneira puramente instrumental (e no mais como perodo formador), isto , como etapa preparatria para a universidade e esta, como garantia de ascenso social para uma classe mdia que, desprovida de poder econmico e poltico, dava sustentao ideolgica ditadura e pre-cisava ser recompensada. Tem incio o ensino de massa. A chegada de grande contingente de jovens aos vestibulares levou institui-o do vestibular organizado fora das prprias universidades, s provas sob a forma de testes de mltipla escolha e ao surgimento da indstria do vestibular.

    Para a pensadora, a privatizao da escola pblica, a reduo da atuao do Estado na educao, a adequao do ensino s exigncias do mercado e o controle ideolgico da classe mdia pelo diploma universitrio so aspectos essenciais a serem considerados para com-preender a evoluo do Ensino Mdio nesse recorte histrico.

    Joo Carlos Salles Pires da Silva

    No foi apenas um encontro que Joo Carlos Salles Pires da Sil-va teve com a filosofia. Nas palavras dele, foram vrias aproximaes dentro e fora do ambiente acadmico. Isso lhe permitiu o contato com diversos perfis da filosofia, a partir da adolescncia.

    Como no havia filosofia no Ensino Mdio durante a sua for-mao, as aproximaes ocorreram por meio de docentes de outras disciplinas naquele momento. Tive excelentes professores de litera-tura e de histria. Com a professora de literatura, Snia Borba, tive a inquietao do texto, o exerccio de exegese, a paixo pela palavra. Foram doses extremas de poesia e bastante prosa, transitando de Machado de Assis a Kafka. Com o professor de histria, Fbio Paes, tive a pergunta pelo sentido dos fatos, atravs de leitura bastante prxima ao marxismo.

    As influncias na escola o estimularam s buscas, porm o con-texto poltico o levara a outros lugares. Eram os anos de chumbo do

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    Filosofia e marxismo passaram a ser a mesma coisa, segun-do Joo Carlos. o futuro filsofo, ento militante da Ao Popular Marxista-leninista (APMl), tratou de ampliar seus conhecimentos tericos, dedicando-se durante cinco anos. Se bem me lembro, de 1976 a 1981. Nesse momento, a proposta da APMl ajudou minha formao terica, inclusive por ela vir de cises diversas e por ela procurar dar conta da especfica realidade brasileira.

    A busca pela formao intelectual tinha um objetivo, o de no ser mero tarefeiro da revoluo. o empenho terico individual e coletivo na organizao em que atuava o influenciou na escolha do primeiro curso superior: economia. Esse empenho me levou primeiro ao curso de economia, no qual logo descobri no estar exatamente em meu elemento. Aos poucos migrou para filosofia. Em 1985, concluiu a graduao e licenciatura em filosofia na Uni-versidade Federal da Bahia.

    A experincia na universidade

    Foi por causa da militncia que o filsofo se aproximou do professor do Departamento de Filosofia da UFBA e futuro orienta-dor Ubirajara Rebouas. o curso de economia e o marxismo me aproximaram de Ubirajara Rebouas, de quem me tornei amigo, um tanto discpulo e, enfim, orientando. Era um intelectual autntico e engajado, com formao refinada e ampla em histria da filosofia, forte militncia marxista e especializao em lgica, atravs de longo trabalho na Frana junto a Robert Blanch.

    o amigo e professor lhe permitiu um contato intenso com impor-tante bibliografia. Bira me abriu, generosamente, sua biblioteca, na qual pude encontrar, ao lado de obras clssicas do marxismo, o melhor repertrio da lgica, da filosofia analtica e, claro, Wittgenstein.

    outros professores foram fundamentais sua formao em filo-sofia. Esse especialmente o caso de Fernando Rego, que, em priscas eras, fora fazer mestrado na USP, e muito me ajudou a recuperar o cuidado com o texto e a palavra, que antes tanto prezara. Devo ainda mencionar a importncia para minha formao do olhar estruturalista de lvaro Menezes e incluir na lista de influncias importantes o nome

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    de um professor de sociologia, Carlos Costa, cuja slida formao fenomenolgica husserliana, vejo hoje, deixou marcas que no desejo apagar. Creio que, de alguma forma, a trama dessas aproximaes filosofia reinventou o contexto pelo qual, deixando a militncia orga-nizada, mas no a esquerda, reencontrei um lugar para um exerccio filosfico especfico e, se quiserem, para uma vocao.

    O ensino de filosofia

    logo aps a formatura, comeou a lecionar no Ensino Supe-rior, no mesmo departamento em que atuara como estudante. Ele atribui esse incio dedicao nos tempos da faculdade. Durante a graduao, fazia todos os cursos extras ao currculo obrigatrio e organizava eventos. Tive algum destaque entre os alunos. Talvez at por antiga paixo militante, sempre gostei de animar grupos de estudos e procurava fazer todo curso adicional que ento estivesse disponvel. Ainda fazendo economia, fiz curso com Paul Singer e mesmo organizei eventos [...]. E, j no curso de filosofia, partici-pei com entusiasmo de cursos oferecidos por vrios professores na Bahia, a exemplo de Jos Arthur Giannotti e Carlos Alberto Ribeiro de Moura. Talvez por esse empenho, em um momento em que a UFBA no estava fazendo contrataes, fui convidado a permanecer como professor. Assim, por gestes polticas de Bira, estando lotado no Estado, fui colocado disposio do Departa-mento de Filosofia como docente em setembro de 1985, logo aps minha formatura. Essa trajetria o impeliu ao Ensino Superior, no tendo experincia profissional no Ensino Mdio.

    Joo Carlos Salles Pires da Silva um dos coordenadores do pro-jeto de implantao da disciplina filosofia no Ensino Mdio, financiado pela Fundao de Amparo Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb). Participou intensamente das discusses das orientaes Curriculares Nacionais (oCNs) e considera que as disciplinas que compem a grade curricular do Ensino Mdio hoje so favorveis integrao.

    O acadmico

    Aps a graduao, elaborou dissertao de mestrado em ci-ncias sociais pela Universidade Federal da Bahia, apresentada em 1992, com o ttulo O Tempo Lgico da Sociologia Geral: Pressu-postos Filosficos da Sociologia de mile Durkheim. Doutorou-se em filosofia pela Universidade Estadual de Campinas, em 1999, ao

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    defender a tese A Gramtica das Cores em Wittgenstein. Atualmente professor associado da Universidade Federal da Bahia (UFBA), exercendo o cargo de Diretor da Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas, e professor colaborador da Universidade Federal da Paraba (UFPB).

    Produziu vrios artigos ao longo de sua carreira acadmica. Dentre os livros de sua autoria, destacam-se A Gramtica das Cores em Wittgenstein, editora ClE/Unicamp, em 2002, e O Retrato do Ver-melho e Outros Ensaios, editora Quarteto, em 2006.

    Seu foco na filosofia abrange a histria da filosofia moderna e contempornea, especificamente o empirismo clssico e a experincia em Wittgenstein.

    Marcelo Senna Guimares

    o professor do Ensino Mdio, Marcelo Senna Guimares, co-meou a lecionar em escola particular, em 1994, em Braslia. Mas a experincia sofreu breve interrupo, para dar lugar aos estudos de mestrado. veio para o Rio, para a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Foram dois anos que o levaram a buscar mais conhecimentos para o exerccio da docncia.

    Ao final do mestrado, em 2002, apresentou a dissertao O prag-matismo tem uma tica? O pensamento moral de John Dewey, continuidade dos estudos realizados na graduao, na monografia As transformaes da moral na reconstruo em filosofia de John Dewey, em 1995.

    Para atingir seus objetivos na docncia, o filsofo tambm fez especializao em Fundamentos de uma educao para o pensar, na Pon-tifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC/SP), perodo de 1995 a 1997, onde produziu a monografia Educao moral e educao para o pensar. Graduou-se tambm em histria pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com estudo voltado filosofia e escola: Silvio Romero, a filosofia e a escola no Brasil, em 2008. No ano seguinte, 2009, iniciou o doutoramento na rea da educao na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). A trajetria intelectual do filsofo une a filosofia educao. A sua atuao docente tambm.

    Na escola

    Desde que comeou a lecionar, o filsofo busca alternativas para despertar o interesse dos alunos. Tenho procurado aprender ma-neiras de promover experincias filosficas que sejam significativas

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    para os estudantes, o que um trabalho rduo, mas tambm muito estimulante [...] Como fazer as teses filosficas fazerem sentido e terem alguma relevncia diante da urgncia vital da juventude e das questes latentes na vida social brasileira? No dia a dia em sala de aula no Colgio D. Pedro II, escola pblica federal de Educao Bsica no Rio de Janeiro, tenta dar conta dessa tarefa.

    Minha estratgia bsica a apresentao de um tema, atravs de um texto, para discusso. Esse texto pode ser filosfico, de um autor clssico da histria da filosofia ou um texto preparado para a aula; pode estar associado a textos de outras origens, jornalsticos, cientficos, artsticos. Da procede-se leitura e discusso do texto. Nesse momento, pode-se fazer um trabalho de aprendizado da lei-tura, de ateno ao rigor conceitual, s preocupaes filosficas em torno, investigao de um tema. Procura-se fazer com que o texto produza um questionamento real para os alunos, e no meramente um questionamento intelectual ou escolar.

    Para desenvolver sua estratgia didtico-pedaggica, h o es-foro individual e tambm a interao com os demais colegas da rea. No departamento de filosofia, criado em virtude de a escola ter diversas unidades, turmas e equipes de professores, os encontros entre professores facilitam a troca de experincias.

    Encontros filosficos

    Por volta da 6 ou 7 srie, acho, escrevi um poema sobre o pensamento na verdade, alguns poucos versos (se podem ser chamados versos!), mal finalizados: penso em pensar sem estar pen-sando, pensando em pensar. Mas, antes que pense, j pensei naquilo que penso [...]. lembro que, com uma certa ousadia, coloquei o poema no mural da sala de aula, e a professora de portugus, vani (tima professora), fez um comentrio: Bem pensado.

    Quando isso aconteceu, Marcelo Senna Guimares tinha em torno de 12 anos e ficou estimulado com o comentrio da profes-sora. Mesmo sem o contato disciplinar com a filosofia na escola, o pensamento j chamava a sua ateno. Aliava a isso o interesse por cincias, especialmente sobre animais, depois por fsica e matem-tica, e a leitura da revista Cincia Ilustrada (publicada pela editora Abril na dcada de 1980), a qual colecionava. Procurar compreender mais amplamente as cincias, questionando sobre o que seria seu objeto prprio, seu modo de proceder, a relao entre a matemtica e a natureza, as relaes das cincias entre si havia algum encanto

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    nisso, que a escola de certo modo desperdiava , que me parecia poder ser encontrado com um olhar filosfico sobre o conhecimen-to. o contato com obras culturais, em particular, msicas e filmes, tambm colaboraram para despertar questes ticas e polticas.

    Ainda no havia a obrigatoriedade da filosofia no Ensino Mdio nos anos de 1980, mas o desempenho individual dos professores de vrias disciplinas o ajudou a desenvolver um pensamento crtico. Alguns professores, de diversas disciplinas, promoviam algum tipo de questionamento, ou procuravam ensinar de modos mais prximos a ns, mais claros, relacionados a experincias demonstradas ou vividas. lembro particularmente, j no 2 grau, do professor luiz, de fsica, que apresentava desde experimentos fsicos em sala at questionamentos mais existenciais; Joo, de geografia; Emerson e Julio, de matemtica; Joo, de literatura; lacerda, de literatura; e diversos outros, de histria, biologia, entre outras disciplinas, com quem, de diversos modos, aprendi a ampliar e aprofundar o pensa-mento e a desenvolver perspectivas crticas sobre a realidade.

    Fora a escola, espelhava-se na me, que buscava respostas para questionamentos existenciais em religies diferentes para alm de sua formao catlica, como na Krishnamurti e Seicho-no-Ie. Esses questionamentos sem dvida me levantaram questes filosficas como as afirmaes da Seicho-no-Ie de que a matria no existe, tudo projeo de nossa mente que eu tentava pensar com os recursos da cincia aprendida na escola e lida nas revistas.

    Na casa de uma amiga durante o Ensino Mdio, conheceu Marli Boaventura, me da garota, que tambm o levou filosofia. Foi a primeira filsofa que conheceu, o que marcou sua aproximao da filosofia de forma afetiva.

    Depois, prestou vestibular para cincias da computao na UnB, mas com expectativas de transferir-se para filosofia, que ain-da no existia naquele momento na universidade. Na graduao, enfatiza a formao ampla e o contato com autores e perodos histricos diversos.

    Redemocratizao

    Quando cursava o ensino mdio, entre 1984 e 1986, o Pas ini-ciava o processo de redemocratizao. Marcelo pde perceber mu-danas no ensino de filosofia que foram se concretizando lentamente ao longo da dcada de 1980 e 1990, como estudante e docente. A presena gradual da disciplina nas escolas pblicas e, principal-

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    mente, o aumento do nmero de publicaes acadmicas e no aca-dmicas. Esse o perodo de expanso e consolidao dos cursos de graduao e ps-graduao em filosofia nas universidades bra-sileiras, o que nos permite hoje falar da possibilidade de formao de um grande nmero de professores de filosofia para a educao bsica, formados em grande parte por universidades pblicas, o que tambm um fato novo na histria da filosofia no Brasil, onde a formao filosfica sempre esteve vinculada formao religiosa e, a partir de certo perodo, ao engajamento poltico.

    J lecionando no Rio de Janeiro, lembra que no havia uma lei federal que estabelecesse a filosofia como disciplina obrigatria, ape-nas contedos de filosofia e sociologia necessrios para o exerccio da cidadania, conforme a lei de Diretrizes e Bases (lDB) de 1996. A incluso nas escolas pblicas dependia das decises estaduais. o Colgio Pedro II estava prestes a ingressar em um perodo de sete ou oito anos sem concurso para professores, sendo efetivado o contrato temporrio de trabalho, que chegou a constituir metade da equipe de professores de filosofia no colgio.

    Ao relacionar a abordagem adotada no ensino da filosofia com o contexto social daquele momento, o filsofo menciona que havia insatisfao com o processo e os resultados na escola. As consequn-cias foram as experimentaes (apesar de limitaes institucionais), buscas por estratgias didticas que pudessem incluir a filosofia como experincia importante para os alunos.

    Heranas

    A ausncia do ensino da filosofia no perodo da ditadura mili-tar pode ter contribudo para gerar diversas atitudes em relao mesma, na opinio de Marcelo Senna Guimares. Eu percebo que, ainda hoje, na escola e mesmo na sociedade, h diversas atitudes em relao filosofia que podem ter relao com a ditadura, mesmo que no exclusivamente com ela. A Filosofia vista como conversas que no levam a lugar algum, como conhecimento pouco rigoroso (e, portanto, impossibilitado de tornar-se uma disciplina escolar, que deveria ser mais objetiva), como fadada ao relativismo (eu respeito a sua opinio, voc respeita a minha, e ficamos todos na mesma), alm de ser intil, sem serventia para a vida prtica ou profissional.

    Se de um lado h vises equivocadas sobre o papel da filoso-fia na formao do pensamento crtico, de outro, h os que atri-buem excesso de responsabilidade disciplina. As expectativas

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    que pesam sobre ela [filosofia] nem sempre so justificadas, como a capacidade de realizar uma educao moral e poltica dos estu-dantes (muitas vezes se quer que os alunos obedeam ou assumam certos valores, e se pretende dar filosofia o papel de realizar esse objetivo; outras vezes, a filosofia acusada de ser doutrinao ideolgica); ou mesmo a capacidade de ensinar a pensar, lgica e racionalmente. Tambm parece se esperar da filosofia a capacidade de responder a questes ltimas, questes abrangentes, ou mesmo de ter resposta para todos os problemas. Algumas expectativas podem ser justificveis, outras talvez no.

    Marcelo analisa que a resistncia insero da filosofia na escola resultado de uma viso elitista, que qualifica a populao como incapacitada e desinteressada.

    Trs professores, trs momentos, trs olhares: debate entre Marilena Chaui, Joo Carlos Salles e Marcelo Guimares

    A presena obrigatria do ensino de filosofia e da sociologia em todas as sries do Ensino Mdio ocorreu a partir da lei 11.684/08, de 3 de junho de 2008, gerando muitas expectativas e esforos do governo, das universidades, do Ensino Mdio pblico e da sociedade brasileira. um processo complexo no qual h diversas demandas das partes envolvidas, tornando o debate imprescindvel.

    Apresentamos aqui um dilogo entre Marilena Chaui, Joo Carlos Salles Pires da Silva, e Marcelo Senna Guimares, que, em virtude das suas experincias profissionais e de relao com a fi-losofia em contextos histricos diferenciados nos ltimos 50 anos, abordam temas essenciais ao ensino de filosofia nas escolas da rede pblica. A mediao de Marcelo Carvalho, professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de So Paulo (Unifesp). Sero analisados a seguir os impactos da reinsero obrigatria da filosofia no Ensino Mdio e nos departamentos de filosofia das universidades, a formao dos docentes, as prticas em sala de aula, a relao com o aluno, as orientaes Curricu-lares Nacionais (oCNs), a integrao com outras disciplinas; a disseminao da filosofia em espaos informais e na mdia. Foram realizadas entrevistas e encontros com os filsofos, cujo contedo foi organizado em tpicos, de acordo com as questes colocadas e as reflexes apresentadas pelos participantes.

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    Dados da Capes de 2009 indicam que h pouco mais de 31 mil professores de filosofia atuando no Pas. Destes, apenas 25% tm formao especfica. Portanto, segundo a instituio, atual-mente seriam necessrios quase 110 mil professores para atender demanda das escolas pblicas. Como analisam o impacto da reintroduo da filosofia no Ensino Mdio (EM) pblico?

    Marilena Chau (MC) Essa meta impossvel. Talvez pos-samos alcan-la at 2020. H duas coisas a evitar e uma que seria recomendvel. A evitar: distribuir as aulas de filosofia aos no gra-duados em filosofia; introduzir o ensino distncia para suprir a falta de professores. Recomendvel: admitir como professores alunos que esto concluindo a graduao, isto , que esto no ltimo ano ou no ltimo semestre do curso, com o compromisso de superviso de algum docente universitrio. Quando eu era estudante de gra-duao, isso era muito comum.

    Joo Carlos Salles Pires da Silva (JC) vejo que estamos en-frentando um grande desafio, ou seja, a implantao uma vitria, uma conquista, mas com isto comeam os problemas. Em primeiro lugar, o centro da questo a formao do professor. Na univer-sidade, h um ambiente que no pensava a educao do EM, um ambiente que se fortaleceu pensando a pesquisa, inclusive a prpria ausncia do ensino de filosofia no EM fez com que os nossos expe-dientes, nossa maneira de formao, se voltasse para pensar aquele produtor de textos, produtor de papers, pesquisador do programa de ps-graduao, e no algum refletindo sobre a especificidade do ensino. Isto cria certa ciso que pode ser revertida agora, mas a, por exemplo, ns precisamos ter uma forma de avaliao da qualidade do trabalho do docente nas graduaes e ps-graduaes fortes do Pas, que valorizem tambm a preparao de professores e no apenas a preparao de pesquisadores. Esta uma ciso que vamos ter de enfrentar.

    Marcelo Senna Guimares (MG) Sem dvida um desafio imenso. Um problema em questo o fato de que no EM temos que dar aula para alunos que no vo seguir a carreira de profissional em filosofia. os professores vo ter que encontrar maneiras de fazer a filosofia ter sentido para este pblico, que no vai necessariamente estar interessado em aprofundar aquele contedo filosfico para alm do que vai ser dado na escola. Penso que principalmente nos

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    primeiros anos de implantao da filosofia na escola ser interessante estar atento diversidade, s formas encontradas pelos professores para levar a disciplina at os alunos.

    Quais os desdobramentos da presena da filosofia no Ensino Mdio para os departamentos de filosofia das universidades?

    MC A retomada da licenciatura e o empenho na formao de professores, assim como a produo de uma bibliografia adequada s condies do Ensino Mdio. o fundamental no dividir os es-tudantes em duas categorias, a dos professores do Ensino Mdio e a dos ps-graduandos candidatos ao Ensino Superior: tanto a licencia-tura quanto a ps-graduao devem alcanar todos os estudantes de filosofia e dar-lhes a mesma formao. Alm disso, os departamentos de filosofia no podero furtar-se tarefa de informar-se sobre as condies materiais e intelectuais do Ensino Mdio e colaborar com os professores que pretendam transform-las ou melhor-las.

    JC Essa nova tarefa filosfica no poder ficar isolada em um compartimento, como se no fosse nos afetar em nossos interesses de pesquisa supostamente mais elevados. A comunidade inteira deve estar atenta, sabendo, por exemplo, fornecer bons textos, boas edies, quer reproduzindo obras clssicas, quer produzindo bons materiais didticos, quer enfim oferecendo aos professores suporte paradidtico, que tanto favorea seu trabalho em sala de aula, como ainda reforce seu contato com o melhor da produo filosfica atual, estimulando-o inclusive a continuar sua formao acadmica. Nesse sentido, a implantao da disciplina no Ensino Mdio modifica, am-plia e, queiram ou no, enriquece a pauta dos cursos de graduao e ps-graduao em filosofia. No cria apenas um mercado novo, a demandar outros itens. Mais que isso, obriga-nos a uma nova ateno, a novos desafios, como o , por exemplo, o de conciliar profundidade e clareza, na forma e no contedo.

    MG Penso que seria bom se os departamentos de filosofia das universidades brasileiras se sensibilizassem para a necessidade de formar os professores de filosofia para a Educao Bsica, e para isso adotassem procedimentos de formao que fossem relevantes e eficazes. A formao do professor no deve ser tarefa exclusiva dos departamentos de educao, mas deve-se buscar integrar, de algum modo, a formao acadmica/disciplinar com as necessidades de

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    formao do professor. Isso j ocorre, em parte, com as experincias de estgio realizadas como requisito de obteno da licenciatura. preciso aprofundar essa experincia para que ela se torne mais efetiva tanto para os licenciandos quanto para os professores j em exerccio e para as escolas onde trabalham. os departamentos universitrios de filosofia podem realizar um importante papel, ao acolher e cultivar a discusso e a produo de alternativas em conjunto com os professores das escolas e como modo de formao dos licenciandos. Seria um modo de colocar em questo e encontrar caminhos para responder ao que pode significar currculo rigoroso, de valor filosfico e de relevncia para a formao dos jovens de que modo a filosofia interessa juventude e sociedade brasileira? Essa questo um modo de entender o significado da obrigatorieda-de do ensino de filosofia nas escolas preciso que os profissionais da filosofia tornem-se capazes de responder a ela, de modo coletivo. Parece-me importante que haja interao entre os departamentos de filosofia e os professores de prtica de ensino de filosofia, que atu-am geralmente nos departamentos de educao. Note-se que o GT da Anpof Filosofar e ensinar a filosofar, que tem promovido a pesquisa e discusso do ensino de filosofia, entre outros temas, constitudo em grande parte por professores que atuam nos departamentos de educao. Esse carter hbrido institucionalmente (um GT da associao de pesquisa em filosofia, formado por profissionais que trabalham nos departamentos de educao) tende a gerar dificul-dades de financiamento para eventos, por exemplo. No obstante, parece ser importante que os departamentos de filosofia acolham pesquisas sobre o ensino de filosofia, ou que se articulem de modo mais produtivo com os professores que realizam essa pesquisa.

    Houve acomodao na estrutura das universidades por causa da herana do regime militar, que definitivamente expurgou a fi-losofia do EM? Se isto for realidade, o processo de transformao da universidade ser mais traumtico?

    JC Traumtico, no sei. vai ser difcil. Primeiro, acho que fizemos o melhor possvel, ou seja, ns fazemos pesquisa de qua-lidade no Pas. Temos hoje uma comunidade filosfica nacional que envolve vrios programas de ps-graduao, onde professores esto produzindo textos de qualidade comparveis s melhores universidades do mundo. Ento, certamente, houve sucesso; no

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    houve uma acomodao. H o pesquisador que se torna especialista em, vamos dizer, Wittgenstein, e o que acontece? Este pesquisador solicitado a escrever de maneira cada vez mais pontual, fazendo um recorte que s vezes s compreendido por um especialista. Agora, comeamos a ser demandados a escrever sobre outros as-suntos, a traduzir textos visando a um pblico mais amplo e assim por diante, ou seja, esta demanda j est atingindo o pesquisador que anteriormente s se voltaria produo de artigos e peridicos e a alimentar o prprio sistema de ps-graduao. Existe um movi-mento que nos agarra um pouco e nos coloca a obrigao de produ-zir boas tradues, bons materiais voltados tambm ao EM, textos voltados formao de professores. Este movimento talvez seja traumtico em alguns lugares, mas ele conta com uma base slida da ps-graduao para que a transio seja de qualidade tambm.

    Os departamentos de filosofia focaram seus contedos na for-mao de pesquisadores. No que essa caracterstica favorece os departamentos de filosofia das universidades, tendo em vista o desafio do EM?

    JC A mudana radical nos departamentos de filosofia do Pas. Sem esta mudana, talvez, hoje, fosse temerrio aprovar uma intro-duo da filosofia no EM. E esta mudana envolve uma profissionali-zao, uma qualificao dos departamentos que no necessariamente nos casos individuais significaram uma melhoria na qualidade, mas em linhas gerais, uma mudana na composio docente dos depar-tamentos. Ao comparar o departamento de filosofia hoje, pensando na dimenso do Pas, com os anos de 1970, 1980, verificamos que havia poucas pessoas com titulao [especfica], at mesmo de gra-duao. Eram mdicos, advogados, ex-padres, muitos ex-padres. No havia uma prtica de formao marcada por critrios prprios. Esta transformao no pode ser desdenhada para entender as condies hoje para o trabalho filosfico, porque ela tem a ver tambm com o processo de ampliao da ps-graduao no Pas. Hoje ns temos uma composio dos departamentos, basicamente, de doutores em filosofia em quase todos os cantos do Pas. Isto uma situao que reflete um padro de qualidade. Se houve certa expropriao do nosso territrio, o vcio da ausncia se transformou em virtude: a transformao dos departamentos de filosofia paralelamente au-sncia da disciplina no EM.

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    Ento, possvel dizer que as graduaes e licenciaturas de filosofia nas universidades esto preparadas para formar profes-sores para o Ensino Mdio?

    MG os licenciandos chegam com uma formao j muito especializada. A graduao tende a fazer com que o estudante v se especializando num autor, ou numa poca, ou num perodo etc. E, no EM, a demanda, at dos prprios alunos, de um conhecimento mais geral. Muitas vezes se aborda um tema em Plato, por exem-plo, e os alunos fazem perguntas que demandam outras posies. Perguntam o que se diz hoje sobre a filosofia, o que derivou daquele pensador. Parece-me que os cursos de graduao vo ter que pensar em como oferecer para os estudantes uma formao geral que no seja superficial, que tenha algum lastro, alguma profundidade. Esta uma questo que parece importante.

    JC H tambm o risco de gerar um outro aluno, um aluno da generalidade, de um conhecimento superficial, da frase de efeito, das gotas de sabedoria. Este risco muito srio porque um grande mercado [de trabalho] se abre; os nmeros so assustadores. Com este mercado, certamente, muitos produtos vo ser oferecidos e a questo como vamos avaliar a qualidade destes produtos. Como vamos poder fazer um agenciamento perfeito entre profundidade e generalidade? Neste sentido, acho que at o prprio EM oferece algumas respostas; ou seja, que estgio este? Que momento este de formao? Que tipo de demanda o aluno apresenta? Pode ser uma ponte para esta transio da filosofia mais profissional, mais voltada para a pesquisa, para atender este contexto, esta sensibili-zao do aluno do EM.

    MC Escrevi um livro para o EM. o que penso est l. bobagem querer dar um curso que seja uma verso preparatria para a graduao de filosofia ou que seja uma verso diminuda da graduao. Alm disso, a relao da filosofia com a sociedade e cultura contemporneas pode ser um bom caminho para mostrar aos alunos a antiguidade e sistematicidades de certas questes que percorrem a histria da filosofia e chegam at ns; ou, ao contrrio, para lhes mostrar as novas exigncias a que o pensamento levado pelo mundo contemporneo. Basta que os alunos no imaginem que esto inventando a roda ou que a filosofia achismo (eu acho que, eu gosto de, eu no gosto de) para que a escolha do tema seja formadora.

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    MG No colgio D. Pedro II, a gente adotou uma forma de estgio na qual o licenciando fica um ano inteiro acompanhando todas, ou quase todas, as atividades do professor. E no s obser-vando, mas na medida do possvel tambm participando, sem fa-zer dele mo de obra barata. Que ele tenha participao efetiva no planejamento, na discusso, na aplicao, na realizao de aulas, aplicao de exerccios. Este contato direto com a prtica talvez seja a maneira mais concreta de dar a dimenso do necessrio no EM.

    JC A gente vai precisar de muito trabalho para formar bons quadros para este EM. Eu estou dizendo uma coisa particular: for-mar um pesquisador de ps-graduao mais fcil do que formar um professor para o desafio do EM nesta extenso, na extenso do desafio que se coloca para o Pas.

    Como aliar a leitura dos textos clssicos, o debate de grandes questes de sua tradio, a um olhar atento e crtico com relao atualidade e seus problemas?

    MG Eu acho que a nfase no texto filosfico muito impor-tante, mas s vezes o professor se v atrapalhado, digamos assim, com a turma de adolescentes que ele encontra frente. Sem negar a importncia do texto filosfico, como o professor [Joo Carlos] disse, talvez a formao do docente de EM seja at mais difcil que a formao do pesquisador. Porque ele precisa ser capaz de realizar esta ponte, digamos, entre esta tradio, na qual se espera que seja o mais bem formado possvel, que ele tenha condies de continuar se formando, mas fazer a ponte desta tradio com a experincia, as questes, as ansiedades, as angstias dos adolescentes, que so o seu pblico, no fcil, de fato.

    JC s vezes temos a ideia de que vamos atingir mais um es-tudante com um poema do que com um texto filosfico, e fazemos pouca coisa diferente que um professor de literatura, um bom pro-fessor de literatura. o risco que corremos, de fazer algo que no se distingue, ou que no traz a marca prpria da filosofia. Estamos, ento, dando emprego a um profissional e no fazendo com que a filosofia chegue ao EM.

    MG Mas h textos filosficos estimulantes e maravilhosos para trabalhar no EM. o professor realmente tem de conseguir escolher. Textos curtos j geram efeitos muito interessantes...

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    MC uma questo de dosagem e de kairs. Dosagem: re-comendvel que os alunos leiam pelo menos trs textos clssicos (por exempo: Menon, Discurso do Mtodo Parte 1, Discurso sobre a origem das desigualdades) e aprendam a fazer anlise de texto porque isto os ajudar no s em filosofia, mas em todas as outras mat-rias e, futuramente, em cursos de graduao que no de filosofia. Penso que no recomendvel estruturar o curso por leitura de textos, pois isso requer tcnica, interesse, pacincia e tempo que os adolescentes no tm. Kairs: depois de conhecer a classe e perceber quais as inquietaes dos alunos em geral, existenciais e religiosas o professor pode escolher os textos para seminrios de leitura de texto.

    MG No colgio D. Pedro II, a gente tenta adotar esta pers-pectiva de que o texto filosfico fundamental, ento, tentamos trabalhar sempre tendo como referncia um texto filosfico para cada unidade do programa. l, atualmente, so trimestres. Em cada trimestre temos um ou mais textos filosficos e desenvolvemos tra-balhos relacionados com ele: filmes, debates, produo de texto, ler os textos com os prprios alunos, o professor produzir textos, usar, produzir expresses teatrais etc. Cada turma, cada sala de aula um desafio novo, no tem uma receita para tudo.

    Se no h receitas, alm da formao slida em filosofia, o que mais preciso para um bom professor de filosofia?

    MG A sensibilidade para o pblico com o qual se est tratando, para que o professor no se coloque numa posio de apenas enunciar, fazer uma exposio filosfica sem que os alunos, de fato, estejam aproveitando. Isto pode acontecer em algumas situaes: o professor faz uma bela exposio, mas os alunos esto completamente distantes daquilo que est sendo falado, respondem um pouco ao modo do que acontece muitas vezes na escola, um pouco mecanicamente. Pode se criar ali um ambiente um pouco artificial. o tipo de trabalho que o professor desenvolve, o tipo de instrumento que vai criando para aproximar os conceitos, para fazer o tratamento dos conceitos, muito importante, mas isto, de fato, se desenvolve em cada situao.

    JC Em um ponto h razo: uma certa sensibilidade do pro-fessor ao especfico da situao em que ele vai precisar mostrar competncia filosfica. Uma coisa a aula, outra a comunicao,

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    uma palestra. o professor bem informado capaz de lidar com vrios instrumentos e muito distintos. Todo um repertrio. Ele no apenas aquele que escreve papers, ou faz prestao de contas, ou relatrios para as agncias de fomento, ou solicita bolsas para alunos de iniciao cientfica. Tem que ser capaz de fazer aula, e aqui, s um detalhe: boa aula no a utilizao de um monte de manuais. claro que vo se produzir muitos manuais, livros didticos vo ser adquiridos aos montes, inclusive pelo MEC. o que significa isto? Significa que o professor que estiver bitolado ao manual est na contramo das orientaes curriculares. Quando colocamos contedos nas orientaes curriculares, no pensamos que estes seriam resolvidos em vrios captulos num manual, onde o professor comea no primeiro ano dando aqueles assuntos, vai seguindo e assim por diante. A ideia que ele seja capaz, com a sua formao, de fazer um projeto prprio, porque somente assim vai realizar em sala de aula uma experincia filosfica autntica, sempre diferente de sala para sala, diferente de professor para professor. Seria uma tragdia imaginarmos que, no Pas inteiro, vrias pessoas estivessem ministrando os mesmos contedos. Imagine s se todos tivessem uma mesma didtica: no importa a sala onde se entra, no importa se o professor foi formado lendo Sartre, Wittgenstein, Marx etc., isto seria talvez um inferno total, um desastre filosfico. Porque a a filosofia, ao invs de ser um processo de formao, de reflexo, seria somente mais uma coleta de informaes. E esta coleta de informaes seria decorar certos argumentos e ser capaz de reproduzi-los. Isto no o essencial do trabalho filosfico.

    MC Concordo com Joo Carlos. Um professor bem formado capaz de criar o interesse da classe. Formao: conhecimento apro-fundado da histria da filosofia; conhecimento das questes clssicas da filosofia em todas as suas reas; conhecimento dos principais autores e textos clssicos de cada uma das disciplinas que com-pem a filosofia; conhecimento de pelo menos uma lngua, alm do portugus, que permita ler um filsofo no original; percepo das relaes entre temas clssicos e contemporneos, seja no campo da esttica, da tica, da poltica ou da lgica.

    Em virtude da falta de cultura do ensino filosfico, preciso pensar as dificuldades do professor de EM no futuro prximo. Como hoje a relao com o aluno em sala de aula?

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    MG A experincia sempre diversa. s vezes de uma turma para outra j tem diferenas imensas. preciso chegar perto dos alunos, se aproximar, trazer a filosofia, fazer o convite para se aproxi-marem da disciplina. No colgio D. Pedro II, a gente tem uma mdia de 15 professores trabalhando todo o ano, o que d possibilidade de abordar e de trabalhar de diversas maneiras. Agora, outra coisa inte-ressante que, em geral, em todas as turmas se encontra pelo menos um grupo de alunos que est interessado j quase espontaneamente nas questes que a filosofia coloca. bem curioso. Quando se chega com questes sobre o conhecimento, a verdade, s vezes sobre o ser, algo muito abstrato, os alunos ficam intrigados, participam das questes, dos debates. Conduzir um debate, um processo de ensino mais cuidadoso, mais rigoroso, gera uma srie de dificuldades que cada professor deve resolver em cada sala de aula.

    MG Eu estava pensando que, muitas vezes, o adolescente rude. Quando se faz uma apresentao filosfica, se o professor no estiver muito seguro, no preparou bem a sua aula, digamos assim, o adolescente pega muito facilmente os seus pontos fracos, as suas falhas. Dar aula para os jovens um bom teste para o professor, para ver se o discurso realmente convincente e bem construdo. os jo-vens, em geral, rejeitam muito rapidamente uma apresentao que no tenha consistncia. J na universidade, h certo espao de proteo da filosofia, porque as pessoas esto interessadas, escolheram, esto com boa vontade. Nas escolas [EM], isso, s vezes, no acontece. Quando se comea a apresentar um tema ou um autor, se no mostrar a per-tinncia daquele tema ao aluno, eles rapidamente rejeitam. Muitas vezes, o aluno coloca uma questo diretamente do tipo: Afinal, qual a sua posio, professor?, o que voc acha?, voc est falando dos racionalistas e dos empiristas em conhecimento, mas o que voc acha afinal?, o que conhecimento?. Sempre coloca um desafio para o professor. Eu estava, outro dia, conversando com um colega professor que se formou recentemente na UFRJ [Universidade Fede-ral do Rio de Janeiro]. Estava dando aula no colgio e ele falou: os alunos me perguntam coisas que eu no sei. Eu no sei responder, mas eles exigem que eu manifeste alguma posio sobre isto e....

    JC Eles sempre perguntam coisas que ns no sabemos...

    MG importante colocar para o aluno: olha, esta questo eu realmente no tenho como responder, ou, importante explicar para o aluno alguma direo daquela questo. Eu acho que isto.

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    A sala de aula um desafio, sem querer desqualificar a sala de aula de nvel superior em relao ao nvel mdio. So contextos bastante diferentes. preciso fazer a filosofia dialogar com este pblico e com as suas expectativas e preocupaes. Esta pode ser uma tarefa muito interessante, tornando-a mais disseminada na prpria cultu-ra brasileira. Esta presena disseminada se consolidar de alguma forma, somos empurrados a ela pelas circunstncias, para o bem ou para o mal. Esperamos que para o bem.

    A presena do dilogo filosfico, da formao em filosofia, adequada no momento especfico da adolescncia? Este um pblico interessante para a filosofia?

    MG Eu acho que um pblico muito interessante, apesar de que Aristteles j tinha percebido que os adolescentes se deixam levar pelas suas paixes. De fato, s vezes, difcil conseguir fa-zer um debate, ou seguir uma linha argumentativa mais densa por um tempo muito longo, mas um pblico que tambm est muito interessado em discutir o que est colocado no mundo, em pensar a prpria vida. A filosofia apresentada no como uma teoria, mas com uma espcie de sabedoria prtica envolvida na disciplina, ten-de a ser muito rica e estimulante para os adolescentes. Acho que um momento em que o jovem est muito aberto para experimentar diferentes posies, por isso interessante ele ter contato com dife-rentes perspectivas filosficas, para ser capaz de perceber que existe a pluralidade de formas de pensar o mundo, de pensar a existncia, de pensar o conhecimento, de pensar a cincia. Muitas vezes h uma espcie de uniformidade do pensamento e o trabalho do pro-fessor de filosofia mostrar alm daquela maneira nico de pensar.

    JC isto que o Marcelo falou. s vezes, o aluno tem questes prprias sobre o ser, a existncia, que podem evocar temas naturais de filosofia, mas ele tambm tem questes de cincias que podem ser a ponte para um dilogo com a filosofia [...]. Uma coisa fundamental que o professor no parea um mago que vai chegar levando um saber, ou um certo pensamento crtico que ningum mais tem. Ele no pode ser aquele professor isolado diante do projeto pedaggi-co da escola. neste sentido que h um certo caminho para fazer esta transio que reconhecer o que o EM, qual a caracterstica fundamental. A, sim, fazer o dilogo da filosofia com os outros professores, com os outros contedos que esto desafiando a cabea

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    do aluno. Temos uma ideia um pouco tosca de que o que interessa para o aluno do EM somente a sua formao pessoal, psicolgica, sexual e assim por diante. o aluno mais, o aluno tem desafio.

    Tendo em vista a necessidade de integrao do professor de filosofia ao projeto pedaggico da escola, em linhas gerais, qual a concepo do trabalho docente, quais so os problemas que as Orientaes Curriculares Nacionais (OCNs) de filosofia tentam responder?

    JC As oCNs surgiram de um processo muito interessante da Secretaria de Educao Bsica do MEC, que chamou as sociedades cientficas para dialogar, realizou fruns, e neste sentido fez uma ponte entre o melhor da formao profissional das diversas reas, com elaborao de textos para o EM. Antes no era bem assim, havia alguns consultores eleitos que faziam suas redaes. Mas desta vez no, foi um processo de consulta ampla, de reunies pelo pas intei-ro que traaram um novo perfil para elas [oCNs] e aproximaram o contedo do EM daquilo que estava sendo realizado com o melhor da formao profissional nas diversas reas. Foi interessante perceber primeiro que as diversas reas apresentavam questes filosficas na sua elaborao, tinham demandas filosficas, mas que resolviam luz de seus contedos. Em filosofia, houve uma ateno especial em pensar um sistema nico, digamos assim, um sistema que associasse desde o EM at a formao de doutorado, j que a chave o profes-sor e o como vai estar bem informado para dar conta do contedo da filosofia. importante ver em que contedos os professores es-tavam sendo formados efetivamente e traduzir isto nos temas que naturalmente deveriam gerar produtos para o EM. Esta foi a chave bsica. Eu acho que este o diferencial. As oCNs foram elaboradas tendo em conta o efetivo da formao de filosofia, de maneira sria, de qualidade no Pas. desta maneira que elas podem fazer, diga-mos assim, uma diferena na passagem daquilo que a formao do licenciando e o controle dos materiais que so utilizados.

    As OCNs do nfase muito forte ao debate com a leitura de textos filosficos e especificidade da filosofia...

    JC Sim, sem dvida. claro que o legado da histria da fi-losofia no poderia estar desvencilhado daquilo que tratamos, mas no uma reproduo do curso de graduao no EM que est sendo

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    proposto. o resultado seria um trabalho de pssima qualidade, alm de ser enfadonho e de afastar completamente os alunos. A ideia foi traduzir, criar mecanismos (que deve envolver um esforo da Se-cretaria de Educao, dos departamentos, dos cursos de filosofia), criar condies para ter material, um bom material disposio da comunidade acadmica, de tal sorte que os contedos de filosofia estivessem acessveis para o professor, que usaria este material luz de sua formao tambm. Ento, os contedos que foram pas-sados [nas oCNs] no so exclusivos, no so nicos, mas sugerem esta passagem, desde a leitura do texto clssico at a utilizao de materiais que no so estritamente de filosofia. No se descarta que se use um filme, mas a aula no para passar um filme sim-plesmente; no se descarta um poema, mas a aula de filosofia no simplesmente de literatura, e assim por diante. Ao mesmo tempo, importante recomendar fontes. Eu recomendaria para um professor que est numa escola afastada (s vezes isolado, brigando para ter mais horas de aula, porque no brincadeira) estar inserido no projeto pedaggico. muito interessante que ele consiga encontrar pontes com outras disciplinas.

    A generalidade do discurso filosfico dialoga com contextos especficos em que est colocado. De que maneira a filosofia deve ser permevel ao ambiente e como isto provoca o prprio debate que se apresenta na sala de aula?

    JC Talvez no com a ideia de que uma cor local se im-ponha sempre, porque h um processo de formao que co-mum, universal. Nem sempre tem que se fazer concesso a uma informao que daria um colorido prprio. Isto vem naturalmente, at porque no EM vrias escolas esto escolhendo o seu acervo de contedos. Por exemplo, na Bahia existe histria da frica que est sendo colocada no EM, que faz parte da nossa... um ponto impor-tante para a nossa afirmao cultural. Isto vai ter seu impacto na reflexo filosfica...

    H perspectivas de integrao da filosofia com outras disci-plinas colocadas pelas OCNs?

    JC Sim, sem dvida. claro que no se pode ir ao EM sem o nosso legado. Eu sou contra a ideia de que simplesmente devemos privilegiar somente temas, como se no houvesse um legado prprio

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    da histria da filosofia, textos de histria da filosofia, aos quais os estudantes no estariam preparados para este acesso. Isto falso. Um bom professor, bem preparado, pode traduzir estes textos, pode fazer com que este seja um instrumento didtico extraordinrio.

    MG [na prtica] um ambiente de tenso. o espao da fi-losofia na escola um espao disputado. Isso pela experincia do D. Pedro II, que na maior parte dos anos inseriu a disciplina em duas sries, com dois tempos semanais. Em alguns anos ela este-ve reduzida a uma srie apenas, por questes internas do colgio. Percebe-se a presso de outras disciplinas para ter aquele espao na grade horria, que muito disputada. Tem a questo do vestibular tambm que constrange muito o EM, no s dentro da escola, mas as prprias universidades exercem uma presso sobre o EM ao definir programas de vestibulares muito extensos das disciplinas, inclusive de filosofia, em alguns casos. Alguns vestibulares propem uma tarefa talvez impossvel para o professor, que cumprir um programa extensssimo de histria da filosofia.

    JC Se ns olharmos as orientaes curriculares nacionais das diversas disciplinas, todas elas tm componentes com apelos filos-ficos muito fortes. Um exemplo: biologia evolucionismo. o debate evolucionismo/criacionismo faz com que se possa valer de textos da histria da filosofia. Um texto de David Hume, Dilogo sobre a religio natural, no qual David discute a prova teolgica da existncia de Deus, pode ajudar a discutir a teoria da seleo natural. Um tema que se est aprendendo em biologia, com uma certa narrativa da causalidade, uma narrativa de como se pode mostrar que a experincia se ordena no por mero acaso, que tem explicaes para aquilo que parecia fugir a qualquer ordem, a qualquer regularidade. Este conhecimento especfico em biologia pode ser trazido para o debate filosfico. A a filosofia no se torna um corpo estranho, no surge do nada, pode at tornar mais instigante a aula de biologia, e vice-versa. o contedo de biologia pode despertar o interesse filosfico. s um exemplo.

    MG [a integrao] Depende muito da equipe, das pessoas, da abertura e do modo de se integrarem, mas o dilogo possvel. claro que existem muitas escolas em situao muito precria, mas, nesse caso, a dificuldade j de outra ordem. onde h uma condio mnima para se trabalhar, acho que um campo de oportunidades e possibilidades muito grande.

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    JC [...] no sei se a filosofia transformadora do EM. Acho que seria pens-la como uma panaceia que vai resolver toda a indi-gncia de reflexo crtica. Ao contrrio, acho que h uma mudana na prpria concepo do EM e as diversas disciplinas esto trazen-do questes que fazem com que a presena da filosofia seja mais natural e necessria.

    MG o EM est em questo realmente e, de fato, a volta da filosofia e da sociologia pode gerar alguma mudana neste debate, no sentido de introduzir outras perspectivas que no as que esto mais, como as disciplinas de cincias, das cincias naturais, da ma-temtica; elas ocupam grande parte do currculo. Sem desvaloriz-las, preciso que haja espao para outras perspectivas, alm do dilogo com a rea das cincias naturais, matemticas. A filosofia pode ter dilogos muito interessantes, muito ricos, por exemplo, com a rea de linguagens, com as disciplinas de lngua portugue-sa, de literatura, e eu penso at ( um pouco um projeto) que as disciplinas de artes, se houvesse mais presena de artes no EM, seriam muito interessantes para enriquecer at a prpria formao dos alunos. Propor aos alunos que apresentem trabalhos de sntese do contedo discutido na forma de apresentaes artsticas tende a motivar muito. Parece-me que a relao dos adolescentes com o campo das artes e da comunicao muito importante.

    O trabalho filosfico com o texto tem certa especificidade. Muitas vezes se confunde a aula de filosofia com um espao de debate solto, de sobreposio de opinies. Como se lida com isto no contexto da sala de aula?

    MG sempre um processo no qual se tenta sempre aprofun-dar e tornar mais rigoroso o trabalho com o conceito, o trabalho com os argumentos, a compreenso das perspectivas filosficas que so enunciadas em cada texto. Mas no posso dizer que h garantia de que se deem grandes passos com uma turma de EM, independentemente das condies que se tem. Acho que uma tentativa mesmo, cada professor tem de experimentar com sua turma maneiras de ir desenvolvendo o trabalho especificamente filosfico, para no ficar apenas uma noo vaga de crtica, sem ser capaz de especificar o que significa uma perspectiva crtica, uma certa perspectiva crtica em filosofia.

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    JC Eu acho que o desafio do EM dado tambm para a matemtica, dado para a histria, dado para a biologia, para a fsica... muito difcil concentrar a ateno, atrair para o debate. E, por outro lado, no s na idade prpria para o EM que as pessoas podem ser dadas a banalidades; ao contrrio, a banalidade, a futilidade, a disperso, ser guiado por paixes, no mau sentido do termo, tudo isto pode acontecer em qualquer poca [...] ou somos cativados pela polidez do esprito ou pela rudeza. Eu acho que este desafio se d para velhos marmanjos e no apenas para adolescen-tes. o adolescente, em geral, pode ser agarrado com muito mais inocncia, talvez seja mais facilmente doutrinvel num momento em que est formando a sua personalidade. A aula de filosofia pode virar uma espcie de catecismo religioso. perigoso o pro-fessor se valer disso, se impor com verdade, trazendo verdades, ao invs de trazer a nossa tradicional procura de verdades, ou seja, renovar este gesto de procura. muito mais fcil para o professor supostamente despejar sabedoria e isto fcil para a autoridade dele e um desastre [para os alunos].

    Para finalizar, como veem a presena da filosofia em espaos informais e na mdia?

    JC Esses novos espaos no podem ser ignorados, nem des-denhados. So instigantes, sobretudo para a realizao pessoal de intelectuais naturalmente talhados para o domnio da expresso, embora tenham tudo para serem frustrantes, se temos em conta autnticos ganhos filosficos. Sabemos que a comunidade, em seus ambientes mais prprios, tem mecanismos para separar qualidade reflexiva de prestidigitao verbal, mas at nesse espao ntimo ela se ilude muitas vezes. Imaginem ento em espaos que, por definio, escapam a nossos mecanismos de controle, a nossas medidas.

    certo que, de tempos em tempos, a filosofia se v obrigada a defender seus padres na praa ou no mercado. Isso j faz parte de nossa tradio, sendo um de