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CONHECIMENTO E FÉ Pressupostos para uma Existência Autêntica em

Sören Aabye Kierkegaard (1813-1855)

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Imagens da capa: https://pixabay.com/pt/bas%C3%ADlica-de-s%C3%A3o-pedro-vaticano-1014258/

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Fernando Felix Rabelo José Francisco de Assis Dias

CONHECIMENTO E FÉ Pressupostos para uma Existência Autêntica em

Sören Aabye Kierkegaard (1813-1855)

Primeira Edição E-book

Editora Vivens O conhecimento a serviço da Vida!

Toledo – PR

2016

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6 Conhecimento e fé...

Copyright 2016 by

Fernando Felix Rabelo / José Francisco de Assis Dias EDITORA:

Daniela Valentini CONSELHO EDITORIAL:

Prof. Ademir Menin - UNIOESTE Prof. José Beluci Caporalini - UEM

Prof. Lorella Congiunti – PUU - Roma REVISÃO ORTOGRÁFICA:

Prof. Antonio Eduardo Gabriel CAPA, DIAGRAMAÇÃO E DESIGN:

Editora Vivens Ltda Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

Rosimarizy Linaris Montanhano Astolphi Bibliotecária CRB/9-1610

Todos os direitos reservados com exclusividade para o território nacional. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou

transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem

permissão escrita da Editora. Editora Vivens, O conhecimento a serviço da Vida!

Rua Pedro Lodi, nº 566 – Jardim Coopagro Toledo – PR – CEP: 85903-510; Fone: (45) 3056-5596

http://www.vivens.com.br; e-mail: [email protected]

Rabelo, Fernando Felix.

R114c Conhecimento e fé: pressupostos para

uma existência autêntica em Sören Aabye

Kierkegaard (1813-1855). / Fernando Felix

Rabelo, José Francisco de Assis Dias. -

1. ed. ebook - Toledo,PR : Vivens, 2016.

118 p.

Modo de Acesso: World Wide Web:

<http://www.vivens.com.br>

ISBN 978-85-92670-19-1

1. Filosofia dinamarquesa. 2.

Conhecimento humano. 3. Existencialismo.

4. Teologia filosófica. 5. Kierkegaard,

Sören Aabye (1813-1855). I. Título.

CDD 22.ed.198.9

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................... I = VISÃO GERAL DA VIDA E

PENSAMENTO DE KIERKEGAARD..................... 1.1 A VIDA DE KIERKEGAARD......................................... 1.2 O CONTEXTO HISTÓRICO....................................... 1.3 PRODUÇÃO INTELECTUAL

E CONFLITOS RELIGIOSOS................................. II = KIERKEGAARD E O EXISTENCIALISMO.............. 2.1 A CRÍTICA AO SISTEMA HEGELIANO................... 2.2 EXISTÊNCIA E SUBJETIVIDADE........................... 2.3 A DEFESA DO INDIVÍDUO...................................... 2.4 OS TRÊS ESTÁDIOS DA EXISTÊNCIA..................

2.4.1 O estádio estético...................................... 2.4.2 O Estádio ético............................................. 2.4.3 O estádio religioso......................................

III = A FÉ COMO PRESSUPOSTO

PARA UMA EXISTÊNCIA AUTÊNTICA................. 3.1 NATUREZA DA FÉ.................................................. 3.2 A FÉ COMO UM SALTO ALÉM DO ÉTICO................. 3.3 O ENCONTRO DO INDIVÍDUO

COM A SINGULARIDADE DE DEUS................. 3.3.1 O existir tem sentido enquanto

nele está a presença divina...................... CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................. REFERÊNCIAS..................................................................

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INTRODUÇÃO Nas frases que se seguem, buscaremos

apresentar sucintamente o conteúdo, os objetivos, a importância e o método de nossa pesquisa a fim de fornecer elementos para uma boa leitura e uma melhor compreensão acerca do tema proposto. Sabemos que a busca pelo sentido da vida sempre foi um dos maiores anseios da humanidade pelo fato de que o existir é algo grandioso demais para ser desperdiçado. Também foi e é um fator importantíssimo para o conhecimento de nós mesmos e de tudo que nos cerca, pois nos impulsiona para uma maior compreensão da realidade em que vivemos. É, sobretudo, a partir dessas afirmações que nos propusemos a discutir o existencialismo de Kierkegaard.

Ao retomarmos a história da filosofia, vemos claramente que, embora houvessem paradigmas diferentes e pontos de partidas diversos para compreensão da realidade, um fato é comum a todos, que é a tentativa de compreender o ser do homem no mundo, seja partindo de uma visão cosmocêntrica, seja teocêntrica ou, até mesmo, antropocêntrica; todas e cada uma em particular, cultiva esse desejo de não apenas compreender, mas dar um sentido para à vida.

Não diferente acontece nos dias de hoje, onde a chamada pós-modernidade oferece uma série de atrativos para o homem que facilmente se distancia de seu projeto inicial de vida, contudo, a sede e o

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desejo de uma vida autêntica permanecem, pois constitui um elemento natural da existência.

Questões sobre o porquê vivemos, para que vivemos, de onde viemos e para onde vamos estão sempre presentes na vida de todos, até mesmo daqueles ditos do senso comum. Imbuídos por esses questionamentos, nos propusemos a realizar essa pesquisa cujo objetivo principal é desvelar o que confere sentido e autenticidade ao existir humano, isto é, compreender de que modo o homem pode atingir uma existência autêntica.

Para isso, servimo-nos de um pensador que teve sua vida marcada pela busca incessante do fim para o qual existimos. Soren Kierkegaard, dinamarquês, contemporâneo do século XIX, experimentou as angústias da vida e soube empreender com maestria a difícil tarefa do existir, renunciando a tudo aquilo que é supérfluo e focando no essencial, sendo também ele um modelo para todos os que almejam esse ideal.

O presente trabalho está estruturado em três capítulos. No primeiro, cujo título é Visão Geral da Vida e Pensamento de Kierkegaard, deter-nos-emos nos aspectos mais significativos de sua vida e seu contexto, que constituem o berço do seu pensamento, destacando fatos e pessoas que travaram contato direto e indireto com nosso autor e que contribuíram para sua produção intelectual, como por exemplo, seu pai Michael Pedersen que deixou marcas profundas na sua personalidade, sobretudo, imprimindo uma característica melancólica que perdurou durante toda a vida de Kierkegaard. Marcado pela ideia de que fora amaldiçoado por Deus em virtude de suas ações, Michael sempre expressou um comportamento

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Introdução 11

tristonho, resultado de uma religiosidade sombria que desde a infância pesava sobre ele e que a transmitiu como herança ao filho.

Também Regina Olsen exerceu um papel significativo na vida e no pensamento de nosso autor. Jovem pela qual Kierkegaard se apaixonou e que marcaria para sempre sua existência e sua obra literária, mas que devido as suas convicções nunca permitiu que esse sentimento o distanciasse de seu objetivo, que consistia em mostrar que a vida autêntica é aquela em que o Indivíduo transcende a tudo que pertence à esfera finita, inclusive à tranquilidade e estabilidade de uma vida a dois. O próprio autor revela que toda a sua obra se resume na tentativa de compreender o motivo pelo qual ele deixou Regina e que todos os seus escritos foram dedicados a ela como leitora ideal.

Após apontar para essas duas personagens que foram predominantes na vida do filósofo, discorreremos, mesmo que em síntese, acerca de alguns acontecimentos históricos que marcaram o contexto filosófico do autor, destacando o cenário político de crise da Dinamarca, acenando para os principais escritores que se tornaram famosos no mundo todo; e por fim, apontando para as tendências culturais da época, que por sua vez, recebera grande influência da Alemanha.

Feito isso, buscaremos apresentar o que de mais significativo aconteceu em esfera mundial e que não poderia deixar de ser lembrado devido ao seu grau de importância, como por exemplo, as grandes transformações, rompimentos e revoluções que ocorreram a partir dos ideais de Marx, expressos

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sobretudo, no Manifesto do partido comunista e que se propagou pelo mundo todo.

Questões relacionadas à religiosidade, ao protestantismo e às instituições religiosas também serão abordadas nesse primeiro capítulo, pois o pensamento filosófico de Kierkegaard está imerso no contexto religioso de seu tempo, constituindo assim chave de compreensão de toda a sua filosofia.

Para concluir, traremos ao leitor uma relação das mais importantes obras de Kierkegaard, com destaque para as que foram traduzidas para o português, acompanhadas de breves comentários contendo dados da obra, conteúdo e contexto em que foram escritas. Em seguida abordaremos os conflitos religiosos aos quais o autor foi submetido e suas lutas em favor de um cristianismo que não se distancie de seu projeto inicial.

No segundo capítulo, intitulado Kierkegaard e o Existencialismo, a proposta será apresentar no que consiste essa corrente filosófica que tem como precursor o próprio Kierkegaard; em seguida nos deteremos em abordar os principais aspectos em que divergem o pensamento de Hegel e do autor em apreço, enfatizando a luta travada pelo mesmo em defesa do Indivíduo e contra a ideia de um sistema que abarque toda a realidade.

E para encerrar esse segundo momento de nosso trabalho, abordaremos os três estádios da existência: o estádio estético, o ético e o religioso, pois é a partir deles que teremos condições de adentrar o tema de nosso terceiro capítulo que tratará especificamente da fé como elemento constitutivo de uma existência autêntica.

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Introdução 13

No primeiro estádio, portanto o estético, veremos um indivíduo descomprometido consigo e com o mundo que o cerca, não se preocupa com assumir responsabilidades, fazer escolhas e tampouco em refletir sobre sua existência. Diferente do ético que busca na estabilidade da vida matrimonial, por exemplo, constituir sua existência, fazendo opções e refletindo acerca do sentido da vida. Contudo, é no estádio religioso que o existente se realiza, pois é a partir dele que se pode falar em existência autêntica, que se dá, justamente, no encontro do indivíduo com a singularidade de Deus, onde não há espaço para máscaras, personagens e fingimentos, onde o Indivíduo se coloca enquanto tal diante de Deus e se propõe a cumprir unicamente o que ele determina. Nisso consiste, portanto, a autenticidade da vida finita e que será tema do terceiro capítulo.

Como já acenamos anteriormente, é no terceiro capítulo que nos ocuparemos do problema da fé. Intitulado A Fé como Pressuposto para uma Existência Autêntica, nele buscaremos compreender a natureza da fé, bem como os elementos que a constituem, a saber o desespero, o pecado e a renúncia, para assim passar para um segundo problema que é o da fé como salto além do ético, onde nos esforçaremos para entender de que modo ela representa essa superação da ética e da moral e o que isso significa. Em seguida, nos deteremos com o problema do encontro do Indivíduo com a singularidade de Deus, que no entender de Kierkegaard, constitui a forma verdadeiramente autêntica da existência finita. E para fechar,

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apontaremos para o fato de que o existir apenas tem algum sentido quando nele está a presença divina.

Sabemos que a realidade em que vivemos é de total relativização da verdade, onde prevalece sempre a opinião particular dos indivíduos em detrimento dos valores absolutos. Sabemos também, que a moral e a ética estão cada vez mais em desuso, provavelmente consequência do secularismo em que estamos imersos. Desse modo, discutir sobre a fé como condição para um existir autêntico, neste contexto apresentado, é de fundamental importância, no sentido que contribuirá para uma reflexão mais profunda acerca do sentido da vida, e das implicações éticas e morais que são consequências de uma existência autêntica, alicerçada na fé e no cumprimento da vontade Deus.

No âmbito acadêmico, mesmo se tratando de um pensamento exclusivamente cristão, poderá contribuir e muito, visto que seus escritos revelam teorias que vão além do que já foi apresentado e demonstram um conhecimento impressionante sobre o homem, o mundo e Deus.

Convidamos você leitor a se aventurar nessa ousada tarefa de compreender o sentido da vida, bem como o que a torna autêntica, de modo a fazer parte do infinito número de pessoas que no decorrer de sua existência se depararam com esses questionamentos e que empreenderam grande esforço para superá-las. Fazemos votos de que nossa pesquisa contribua significativamente e sirva de motivação para uma intensa e ampla jornada onde só quem ganha é você, pois o conhecimento nunca é demais.

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= I =

VISÃO GERAL DA VIDA E PENSAMENTO DE KIERKEGAARD

Nesse primeiro capítulo, ocupar-nos-emos em

retratar o que de mais significativo ocorreu na vida de Kierkegaard, salientando o seu contexto, sua produção e as relações fundamentais estabelecidas com o pai e com Regina Olsen, que certamente influenciaram seu pensamento. Na política, pontuaremos a crise do estado dinamarquês; no âmbito social, abordaremos as principais características da época, seja cultural e espiritual; também apresentaremos os principais contemporâneos de Kierkegaard que se tornaram famosos pelo mundo inteiro. E por fim, sob uma ótica internacional, apresentaremos os acontecimentos mundiais que caracterizam o século XIX, tais como as grandes transformações sociais, rompimentos e revoluções, considerando que nosso autor viveu numa época muito próxima à Revolução Francesa.

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1.1 A VIDA DE KIERKEGAARD Aos cinco dias do mês de maio de 1813, nascia

em Copenhague, Sören Aabye Kierkegaard, cujo nome poderia ser traduzido como Severino Campo Santo, ou até mesmo como cemitério. Teve uma vida curta, viveu apenas 42 anos, quase sempre em Copenhague na Dinamarca. Era um pensador urbano. Assim como Sócrates, valorizava muito mais o convívio com as pessoas ao trato com a natureza. Seguindo o desejo do pai, estuda teologia, mas não se interessa tanto pela parte clássica. Interessa-se pela filosofia e literatura. Desse modo, começa a frequentar ambientes literários de Copenhague, teatro, bares e cafés e, torna-se um argumentador espirituoso e divertido nos círculos cultivados. Com isso, ele rompe com o estilo de vida de seu pai e passa a levar uma vida boêmia, onde tudo é apenas brincadeira, sem compromisso e responsabilidade. Mais tarde, descreve essa atitude como “estágio estético”. Kierkegaard se forma com 27 anos e não obtém uma boa classificação. Contudo, tornou-se um dos grandes escritores dinamarqueses e universais, com textos que reúnem elegância e riqueza, humor e críticas, sentimento religioso e linguagem popular; e expressam desde temas filosóficos e teológicos, bem como psicologia e poesia, tudo isso somado à espiritualidade, característica peculiar de seu pensamento.

Algum dia, não somente os meus escritos, mais até a minha vida e todo o complicado segredo do seu

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mecanismo serão minuciosamente estudados’. Isso foi o que Kierkegaard disse de si mesmo. E a profecia tornou-se verdadeira com o existencialismo contemporâneo, que se propôs explicitamente com uma Kierkegaard Renaissance, trazendo novamente ao primeiro plano, no palco da filosofia, o pensamento daquele filósofo solitário que foi Sören Aabye Kierkegaard, nascido e crescido no restrito ambiente cultural da Dinamarca de então.1

Duas personagens foram marcantes e

determinantes na vida de Kierkegaard: o pai Michael Pedersen e sua amada Regina Olsen. Seu pai deixou marcas profundas em sua personalidade. Fora menino pobre nas planícies da Jutlândia, a parte continental do país, e mais tarde enriquecera no comércio da capital.

Deste, além de herdar um temperamento tristonho, recebeu uma formação cristã exageradamente escrupulosa quanto ao pecado e, notadamente, à sexualidade, resultado de uma religiosidade sombria, envolta numa atmosfera de maldição que, desde a infância, já pesava sobre o pai, e lhe foi transmitida como herança.2

Michael Pedersen era pastor de ovelhas nas

charnecas da Jutlândia, interior da Dinamarca. Um dia sofrendo fome e frio, ele ergueu o punho para o céu e amaldiçoou Deus pela injustiça e pela 1 REALE, Giovanni; ANTÍSERE Dário. História da filosofia: do romantismo até nossos dias. São Paulo: Edições Paulinas, 1991. v. 3. p. 234. 2 GILES, Ransom Thomas. História do existencialismo e da fenomenologia. São Paulo: EPU, 1975. v. 1. p. 05.

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crueldade de tê-lo colocado lá. Pouco tempo após esse episódio, abandonara a charneca. Com doze anos vai trabalhar como aprendiz de um tio que é fabricante de malhas. Parece que encontra sua profissão e tem muito êxito no seu desempenho, a ponto de aos quarenta e dois anos, tornar-se um rico negociante de malhas e mercadorias coloniais, o suficiente para abandonar os negócios e dedicar-se a si mesmo e à família. Nesse tempo, perde sua primeira esposa, mas logo casa-se novamente com a criada, que ao contrário da primeira, é muito fértil e lhe dá sete filhos. O último, quando ele já se encontra com cinquenta e sete anos, é Kierkegaard, que representa o filho da velhice. Investimentos certeiros na bolsa enriquecem ainda mais os Kierkegaard.

Após retirar-se dos negócios, Michael dedicou-se a profundas meditações e reflexões, e decide partilhá-las. Desse modo, cria um salão onde se discute “a razão suficiente”, o “absoluto”, o “sofisma”, a “salvação” e a “transcendência”. E teve como personalidade principal, o pastor Mynster, conhecido como o vigário de Nossa Senhora, que se tornara bispo e também o principal expoente do cristianismo dinamarquês. De formação romântica, combatia as tendências hegelianas. Amigo e conselheiro de Michael, educou Kierkegaard com suas pregações.

O pai de Kierkegaard, embora tenha tido sucesso na vida financeira e profissional era melancólico e depressivo, angustiado pela ideia de culpa sentida como algo ameaçador e inevitável. A formação religiosa que recebera lhe trouxe a incerteza da salvação e uma concepção de humanidade baixa, que a seu ver cuspia no corpo mortificado de Cristo. Desse modo dedica sua vida a

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educar o filho para não proceder dessa maneira. Ofereceu-lhe, desde cedo, uma formação religiosa severa, marcada pelo temor do juízo e incerteza da salvação, pelo desdém do mundo e o escândalo que representava o Cristo crucificado, ensanguentado e martirizado.

Mais tarde a mãe e os irmãos de Kierkegaard morrem e seu pai está convencido de que chagara a vingança de Deus. Pobre e idoso sobrevive a própria descendência como uma cruz erguida acima de todas as suas esperanças. Assim na angústia, sem recursos e embriagado, revela a seu filho mais novo seu segredo: ter violentado a criada quando sua primeira esposa ainda estava viva. Essa revelação representa para o pensador uma luz que lhe permite compreender o mistério de sua vida e, ao mesmo tempo, é causa de sua mudança radical. Entregou-se a uma vida desregrada. Fez dívidas, assumiu uma postura de boêmio, superficial e sem seriedade. Isso fez que ele experimentasse concretamente a angústia e o desespero que o levou a uma profunda meditação sobre si mesmo.

Em relação a Regina Olsen, em maio de 1837, Kierkegaard a conheceu. Esse encontro marcaria para sempre sua existência e sua obra literária. O amor tomou conta de sua vida em profundidade. Kierkegaard explicou toda a sua obra como uma tentativa de compreender porque ele desmanchou a relação com Regina. Dessa forma, ele praticamente dedicou todos os seus escritos a ela, tendo-a imaginado como leitora ideal. Ela tinha dezesseis anos e pertencia a uma boa família burguesa de Copenhague. Ficam noivos em 1840, o que naquela

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época significava um compromisso tão sério, talvez até mais do que o casamento nos dias de hoje.

Quebrar essa promessa era atrair sobre si a reprovação de todos e, sobretudo, destruir a honra da pessoa abandonada. Mesmo sabendo disso, enquanto redigia sua dissertação sobre a ironia, pensava em romper sua relação com Regina. Em 1841, ele devolve a ela seu anel de noivado. Defende sua dissertação em vinte e nove de setembro desse mesmo ano e refugia-se em Berlim, para abafar o escândalo.

Mais tarde, Regina casou-se com Schelegel e teve uma vida tranquila. Contudo, Kierkegaard não a esqueceu. No fundo ele acreditava que a pertencia. Em sua opinião, quem de fato abraçou o cristianismo, com toda a seriedade que ele implica, não pode viver a tranquila existência de homem casado, porque seria o mesmo que aceitar os compromissos mundanos e a inserção na ordem constituída. Se ele a aceitasse como esposa, Deus deixaria de ter a precedência, e é justamente por defender essa convicção que ele relativiza todas as coisas do mundo, armando-se contra o cristianismo constituído de sua época.

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1.2 O CONTEXTO HISTÓRICO Soren Aabye Kierkegaard nasceu em

Copenhague, a cinco de maio de 1813, uma das épocas mais perturbadas da contemporaneidade. Cresceu no período posterior a Napoleão, contemporâneo da produção filosófica de Hegel. 1813 foi o ano em que o estado dinamarquês chegou à falência, depois de seis anos de guerra inútil contra a Inglaterra – mais precisamente no ano de 1807 – Copenhague sofreu ataques e bombardeio dos ingleses.

Tanto na política como na economia foi uma época em que houve um enfraquecimento financeiro muito grande, ou seja, foi uma época pobre, um período de baixo crescimento, de declínio da atividade produtiva e do mercado, ano em que muitos títulos financeiros sem valor foram lançados ao mercado. Todos esses fatos culminaram na queda de status de pequena “superpotência”, para, literalmente a proporção pequena do país.

Contudo, ao mesmo tempo em que política e economicamente a Dinamarca estava em crise, cultural e espiritualmente é uma das melhores fases, conhecida como a “época de ouro”; período em que muitos dinamarqueses se destacaram no cenário mundial, como por exemplo, o escritor de contos e fábulas Hans C. Andersen, o físico H. C. Orsted, o cientista P. W. Lund, que veio viver e pesquisar em Minas Gerais, o poeta Grundtvig e o próprio Soren Kierkegaard, que chegou a assistir aulas de Shelling

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em Berlim, no início dos anos 1840, tal como fizeram Bakunin e Engels.

Em termos de cultura, pelo menos até o século XIX, a Alemanha exerceu forte influência na Escandinávia, onde tudo que era válido para a Alemanha era adequado para a Dinamarca. Também no que diz respeito ao mundo, deve-se considerar as grandes mudanças sociais e políticas que caracterizam o século XIX, vejamos.

Sob uma ótica internacional, a época era de grandes transformações, rompimentos e revoluções. Marx foi um dos destacados contemporâneos de Kierkegaard, e no ano seguinte ao da publicação do manifesto comunista em 1848, Kierkegaard assistiu à transição do absolutismo para a democracia na Dinamarca, quando foi aprovada a nova constituição.3

Essas mudanças, certamente, decorrem do

século XVIII, que foi um século marcado por grandes revoluções. Nesse período o mundo encontrava-se em transição de uma fase relativamente calma para uma fase agitada, em que o número de habitantes cresce, o mercado aumenta, o absolutismo dos reis começa a ser questionado tornando-se alvo de crítica dos intelectuais, o comércio clama por liberdade. Em outras palavras, tudo está em transformação.

Também a Revolução Francesa exerce grande influência no cenário político e social do século XIX, constituindo-se um marco na história da humanidade,

3 HARBSMEIER, Eberhard. Kierkegaard – pessoa e obra – biografia e filosofia. Trad. Karl Erik Schollhammer. Uberlândia: Educ. e Filos, 1993. p. 193.

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e que teve reflexos, sobretudo, na Europa. Melo faz alusão a esse acontecimento da seguinte forma:

A Revolução Francesa de 1789 foi o modelo clássico de revolução burguesa. Pôs fim ao absolutismo, mas manteve as transformações implantadas dentro dos limites dos interesses burgueses. Inicialmente juntou a quase unanimidade da razão contra o antigo regime; posteriormente, no entanto, os vários projetos de nova sociedade, expressando interesses de classes e camadas diversas, levaram a uma luta interna entre os próprios revolucionários. Por fim, a alta burguesia deteve o controle do movimento, imprimindo à nova sociedade criada as instituições que lhe convinham.4

Nesse período, o mundo vivia em meio às

consequências da Era napoleônica, general da Revolução, primeiro cônsul, imperador, proscrito e depois triunfante. Mesmo após sua morte, Napoleão influenciou o andamento das questões francesas, europeias e mundiais. A era napoleônica satisfaria o anseio da burguesia de disseminar externamente as instituições criadas pela Revolução e consolidar internamente um novo regime. Vejamos na citação a seguir o que Napoleão afirma sobre isso:

Na minha carreira encontrar-se-ão erros, sem dúvida; mas Arcole, Rivoli, as Pirâmides, Marengo, Austerlitz, Iena, Friedland [batalhas] são de granito; o dente da inveja nada pode contra elas... Eu

4 MELLO, Leonel A. Itaussu; COSTA, Luís César Amad. História Moderna e Contemporânea. São Paulo: Ed. Scipione, 1993. p. 103.

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aterrei o abismo anárquico e pus ordem no caos. Eu limpei a Revolução... E depois sobre que poderiam atacar-me de que um historiador não pudesse defender-me?... Enfim, seria a minha ambição? Ah! Sem dúvida, ele encontrá-la-á em mim – e muita; mas a maior e a mais alta que talvez jamais tenha existido: a de estabelecer, de consagrar o império da razão e o pleno exército, o inteiro gozo de todas as faculdades humanas... Em poucas palavras, eis, pois, toda a minha história... Milhares de séculos decorrerão antes que as circunstancias acumuladas sobre a minha cabeça vão encontrar um outro na multidão para reproduzir o mesmo espetáculo.5

Vemos que o próprio Napoleão reconhece sua

importância do cenário político, sobretudo, ao que diz respeito à Revolução. Ele afirma ter colocado ordem no caos que havia e enterrado o abismo anárquico; seu objetivo era de estabelecer definitivamente o império da razão e o pleno gozo das faculdades humanas, e constituir um novo regime sob seu domínio.

Em relação às questões religiosas, vemos que o protestantismo nascido na Alemanha, no século XV, encontrou terreno fértil na Dinamarca, obteve apoio político aliando-se à nobreza dinamarquesa e, aos poucos se instituía uma igreja nacional, fortalecida pelo rompimento dos sete bispados dinamarqueses com o trono pontifical; e também por interesses políticos que levaram o rei Cristiano III – que acabara de vencer uma guerra civil e necessitava de capitais para restaurar sua autoridade – a reorganizar a Igreja e torná-la reformada e luterana; que teria,

5 1976 apud MELO; COSTA, 1993, p. 121.

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precisamente, o rei como chefe. Desse modo, o alto e o baixo clero, tornaram-se funcionários e o cargo de Pastor passou a ser remunerado pelo Estado, o que acarretou a inserção de pessoas com vocação incerta nesse ofício.

Enfim, toda a vida religiosa dinamarquesa, a teologia, a organização eclesiástica, a liturgia e a ética procederam de Martinho Lutero6. Dessa maneira, o cristianismo de que trata Kierkegaard não é o cristianismo católico, mas aquele proveniente do protestantismo, isto é, reformado, que modelou sua compreensão do fenômeno religioso. Portanto, é nesse contexto que se estabelece os fundamentos

6 REALE, Giovanni; ANTÍSERE Dário. História da filosofia: do humanismo a Descartes. 2 ed. São Paulo: Paulus, 2005. v.3. p. 70-71 “(1483-1546) foi o teórico da reforma protestante, o sustentador da teoria da salvação mediante a fé apenas: “iustus vivit ex fide” (“o justo vive segundo a fé”). Os fundamentos doutrinais de Lutero são substancialmente três. 1) A doutrina da justificação mediante a fé apenas. A doutrina tradicional da igreja era e é que o homem se salva tanto pela fé como pelas obras, enquanto Lutero rejeitou o valor das obras com base na tese de que o homem, depois do pecado de Adão, sozinho não pode fazer nada, e sua salvação depende exclusivamente do amor divino: a fé está em compreender isso e entregar-se totalmente a Deus. 2) A doutrina da infalibilidade da Escritura, considerada como única fonte de verdade. Tudo o que sabemos de Deus e da relação homem-Deus nos é dito pelo próprio Deus na Escritura: apenas a Escritura constitui por isso a autoridade infalível de que temos necessidade, enquanto o papa, os bispos, os concílios e toda a tradição da mais não fazem do que obstaculizar a compreensão do texto sagrado. 3) A doutrina do sacerdócio universal e do livre exame das Escrituras. Entre o homem e Deus não há necessidade de um intermediário especial: um cristão isolado, se iluminado e inspirado diretamente por Deus, pode ter razão contra um concílio. Todo homem pode, portanto, pregar a palavra de Deus”.

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das teorias filosóficas do nosso autor, sobretudo, em três aspectos importantes: a) a experiência da crise, que decorre do fato de o indivíduo compreender-se proporcionalmente inferior a Deus, e por isso a dificuldade em atender as exigências divinas de perfeição; b) a noção de situação, que se dá por meio da relação do indivíduo com o Absoluto, onde ele percebe sua condição de pecador e vive o drama da dúvida se será ou não salvo; c) a ideia de fé em Kierkegaard possui um valor muito além de uma simples intuição subjetiva, mas é entendida como ato concreto, no qual o homem decide sobre sua própria existência, dando-lhe um novo significado.

Outro elemento importante no contexto religioso da Dinamarca é o pietismo7, que defendia que a Igreja não deveria ser burocratizada e que suas práticas, de modo algum, deveriam ser secularizadas e reivindicava um cristianismo mais fervoroso, fundamentado em uma prática e em uma moral religiosas mais austeras, com o objetivo de

7 Corrente religiosa proveniente do protestantismo que a princípio se arraigou na Alemanha do século XVII e colocava em primeiro plano a experiência religiosa pessoal e a reforma interior. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 763. “Reação contra a ortodoxia protestante que ocorreu no norte da Europa, especialmente na Alemanha, na segunda metade do século XVII. Foi comandada por Felipe Spener (1635-1705), e um de seus expoentes foi o pedagogo August Franke (1663 – 1727). O Pietismo pretendia voltar as teses originais da Reforma protestante: livre interpretação da Bíblia e negação da teologia; culto interior ou moral de Deus e negação do culto externo, dos ritos e de qualquer organização eclesiástica, compromisso com a vida civil e negação do valor das denominadas “obras” de natureza religiosa”.

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proporcionar ao luteranismo uma vida nova e mais profunda, de modo a levar o crente à aquisição de uma fé vivida e sentida pelo contato direto com Deus. Por conseguinte, a educação religiosa recebida por Kierkegaard é marcada por um excesso de gravidade e austeridade na qual se transmite um Cristo ensanguentado e morto na cruz, não o Cristo Redentor e Ressuscitado. Essa noção cristã na qual a humanidade pecadora repete, com seus atos, o escândalo da condenação de Cristo é como se os homens cuspissem sobre o corpo mortificado de Cristo.

Convém ressaltar que, quando Kierkegaard fala do cristianismo, ele o apresenta sem mediações, sem figuras femininas e quase sem Igreja. Nisso consiste o radicalismo da fé presente no seu pensamento e que expressa, sem sombra de dúvida, o forte desejo de empreender uma reforma religiosa. Quanto à fé, para Kierkegaard ela tem um papel fundamental de socorrer a alma e ajudá-la a vencer os sofrimentos. Desse modo ela é não apenas a certeza de uma vida feliz na eternidade, que se dá por meio da salvação, mas um ato do pensamento que permite dar um sentido ao mundo físico, e contribui para o conhecimento do homem interior.

A concepção “pessimista” de cristianismo é outro aspecto importante presente no pensamento de Kierkegaard. Para ele o cristão é por vocação um sofredor, ou seja, homem do sofrimento. Assim, o cristianismo assume uma função de provação, de paixão. Contudo é a única via de acesso a Deus. Desse modo, conclui-se que para se chegar a Deus não há outro caminho senão o sofrimento. Foi por pensar assim que Kierkegaard rompeu com a Igreja

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de seu país, e traçou uma teoria que questiona a institucionalização da fé, em defesa de um cristianismo interior, heterônomo e contrário ao mundo. 1.3 PRODUÇÃO INTELECTUAL E CONFLITOS RELIGIOSOS

No final de outubro de 1841, Kierkegaard faz

uma viagem a Berlim e tem a oportunidade de meditar sobre si mesmo, sobre suas opções, bem como sobre suas implicações, ou seja, sobre sua situação. Em Berlim, Kierkegaard vai ao teatro ouvir o Dom Giovanni de Mozart, de novembro de 1841 a fevereiro de 1842, esteve na presença de Bakunin e Engels e frequenta aulas de Schelling, esperando que sua filosofia, que é uma crítica à ontologia de Hegel, fornecesse uma explicação da realidade que ele não encontrava nesse filósofo.

Logo abandona essas aulas, pois, segundo ele, parecem-lhe sedutoras promessas filosóficas não cumpridas, contudo toma para si a ideia de que a consciência não empreende sua viagem rumo ao conhecimento, em um estado de virgindade absoluta, mas que, ao contrário, é uma consciência inquieta e perturbada que compreende tal périplo. Kierkegaard retorna para Copenhague e mergulha numa profunda solidão estudiosa. Em 1843, publica dois discursos religiosos dedicados ao pai, em seguida Ou... ou..., publicado sob um pseudônimo. Como em todas as

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suas obras, nessa Kierkegaard apresenta as duas primeiras etapas da filosofia dos estádios da existência: estético e o ético. Esse livro também contém um romance, o Diário do Sedutor, obra escandalosa para a época. O sucesso é imediato e dá início a um período de produção gigantesca.

No curto espaço de seis anos o filósofo escreve as seguintes obras: Temor e tremor (1843); A repetição; Migalhas filosóficas (1844); O conceito de angústia; Estádios no caminho da vida (1845); Post-scriptum final não científico às migalhas filosóficas (1846); Obras do Amor (1847). Também escreve três versões de um livro sobre Adler (1847) não publicado; Dois ensaios ético-religiosos e A doença até à morte (1849) entre outras que não estão nessa lista e que constituem, talvez, a única produção na história da filosofia totalmente entregue ao público sob pseudônimo.

Os anos de 1844 a 1849 constituem a melhor fase da vida de Kierkegaard, que aproveita a fortuna do pai, contrata um secretário para passar seus rascunhos a limpo e lhe oferece prazeres, vinhos caros, refeições robustas, roupas da última moda, viagens, entre outros. Sua tranquilidade financeira garante a liberdade e a independência, condições necessárias para pensar e escrever, bem como arcar com as despesas com as publicações. Nesse período também, ele se torna um personagem influente e conhecido em Copenhague; respeitado por importantes membros da corte, mas prefere o contato com as pessoas mais simples.

Outro feito que marcou a vida do nosso autor foi o lançamento de um jornal satírico, chamado O Corsário, que encontrou um terreno fértil na

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efervescência das ideias liberais de 1848; que tinha por objetivo ridicularizar homens respeitáveis e pacíficos que serviam o Estado. Kierkegaard temia ser visto como cúmplice desse empreendimento pelo fato de que, certa vez, fora elogiado pelo jornal, sobretudo pela sua obra Ou... ou..., somente pela parte estética dos estádios no caminho da vida, desprezando a parte ética e religiosa, que para ele representava o essencial.

Dessa forma, ele exigiu que fosse ridicularizado pelo jornal, o que foi feito: zombaram de sua aparência, de suas calças curtas, até de sua bengala, entre tantas outras coisas; de modo que ele não conseguiu mais sair às ruas sem que provocasse o riso nas pessoas. Por causa disso acabou se isolando. E foi nesse isolamento que ele recebeu o golpe mais terrível de sua vida: a notícia do matrimônio de Regina Olsen com Fritz Schelegel. Ele tenta revê-la, mas é impedido. Primeiro, pelo pai e, em seguida, pelo marido dela. Não tendo sucesso, Kierkegaard retoma sua atividade de escritor e é na condenação do pastor Adler pela Igreja oficial que ele comprova que o cristianismo organizado se tornara o principal obstáculo ao próprio cristianismo. Vejamos, a seguir, uma citação sobre esse período:

Após estudos brilhantes, Adler adequara-se às exigências gerais para chegar a ser pastor e recebera o apoio e o estímulo da Igreja de Estado enquanto fora pontual e obediente: funcionário. Um dia teve uma revelação divina (?) e quis “tornar-se

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cristão”, intensamente e desprezando as regras. Foi censurado e afastado como “visionário”.8

Esse acontecimento marcou tanto a sua vida

que ele dedicou um livro exclusivamente para tratar desse assunto. O livro não foi publicado e ele se ocupou dessa tarefa até pouco antes de sua morte. O caso Adler, que para o filósofo era um exemplo da dificuldade de tornar-se um cristão autêntico, preocupou-o cada vez mais. A Igreja de Estado era a grande inimiga, seu representante oficial, o bispo Mynster, o confessor do pai e quase preceptor do filho. Em sua concepção, o bispo Mynster era a encarnação dolorosa da dicotomia entre a vida e a doutrina cristã. Ele era o representante da Igreja de Estado, que desempenhava bem o seu papel, mas para o Estado.

O brilho mundano de seu sacerdócio chocava Kierkegaard profundamente. Aos domingos, com os paramentos de sua posição, após falar de renúncia e ascetismo, o bispo Mynster ia comer na corte. Kierkegaard via entre a vida e a doutrina do cristianismo institucional a mesma distância – que denunciara em sua crítica de Hegel – que entre a realidade e a especulação filosófica.9

Após esse episódio, Mynster recusa-se

encontrar com Kierkegaard, que não querendo atacar

8 BLANC, Charles Le. Kierkegaard. Col. Figuras do saber. Trad. Marina Appenzeller. São Paulo: - Estação Liberdade, 2003. p. 42-3. 9 BLANC, op. cit., 2003, p. 43.

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o bispo publicamente, imerge no silêncio e na busca interior, de 1852 a 1853, fase de grandes conflitos interiores, sobretudo com relação ao cristianismo, sobre o papel do cristão e sobre o bispo Mynster. Segundo ele, se a Igreja oficial, tivesse aceitado sua crítica sobre a contradição entre a vida cristã e o discurso, a crise final poderia ter sido neutralizada.

No dia 30 de janeiro de 1854, o bispo Mynster morre, sendo sucedido pelo professor Martensen, que Kierkegaard considerava a essência da especulação objetiva em teologia e figura emblemática do compromisso mundano da igreja oficial. Assim, quando Martensen resolve homenagear o falecido bispo, dizendo que ele era uma testemunha da verdade e um dos elos da santa corrente que une o tempo dos apóstolos aos nossos dias, Kierkegaard não consegue conter sua indignação e publica um artigo: “o bispo Mynster era uma testemunha da verdade, uma das testemunhas da verdade, isto é verdade?” (BLANC, 2003, p. 44).

Esse artigo levou a população de Copenhague inteira à indignação, sendo considerado como ingrato, por ter atacado a memória de um homem amado. Desencadeou-se, assim, uma polêmica nos jornais e Kierkegaard responde dizendo que Mynster não poderia ser uma testemunha da verdade. Ele que, além do mais, só fizera o hedonismo de Groethe conciliar-se com os sofrimentos de Cristo; e disse também que, com ele, a Igreja preferiu a glória e as riquezas desse mundo à auréola do martírio.

Dessa maneira, o filósofo defende que Igreja e Estado são incompatíveis e que a multidão não deve ser mais importante que o indivíduo, porque a salvação é individual, pessoal e não coletiva e menos

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ainda “política”. O fato é que os ataques de Kierkegaard se estendem aos estudantes de teologia, que segundo ele não passam de sanguessugas que só querem algo que ofereça tranquilidade, uma boa renda e lhes permita viver de sermões. A sua fúria é tamanha a ponto de ele dizer que já que se fecham as lojas e os açougues aos domingos, por que não fazer o mesmo com as igrejas?

Deste modo, Kierkegaard concluiu com amargura que nenhum de seus contemporâneos conseguia responder, segundo o que ele achava correto, a esse chamado do Cristo, em aparência simples, aos seus apóstolos: “Vem e segue-me!” E, no dia dois de outubro de 1855, Kierkegaard é encontrado deitado em plena rua, é levado ao hospital, onde se nega a receber o único irmão que lhe resta, o bispo, que segundo ele se ocupara de cuidar dos compromissos mundanos da Igreja de Estado, e recusa os últimos sacramentos; a onze de novembro desse mesmo ano, após quarenta e dois anos lutando pela verdade e pelo cristianismo autêntico, morre Soren Aabye Kierkegaard; descobriu-se que só deixara de seu grande patrimônio a soma necessária para custear seus funerais.

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= II =

KIERKEGAARD E O EXISTENCIALISMO Neste segundo capítulo, a ênfase será sobre

os temas relacionados ao existencialismo, considerando que o autor em apreço é conhecido como “pai” da referida corrente. Em seguida abordaremos as críticas levantadas pelo filósofo às teorias hegelianas, que por consequência levam à descoberta do Indivíduo, bem como sua defesa frente àqueles que seguem a linha de Hegel. E, para fechar, discorreremos sobre os três estádios da existência: o estádio estético, o ético e o religioso que servem de base para a compreensão do objetivo estabelecido para essa pesquisa que consiste na busca pelo sentido da existência humana. Passemos a falar das objeções de Kierkegaard em relação ao sistema de Hegel.

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2.1 A CRÍTICA AO SISTEMA HEGELIANO É com corajosa sinceridade e franqueza que,

em nome da indedutível realidade que é o indivíduo, Kierkegaard ataca severamente a filosofia especulativa, sobretudo, o sistema hegeliano. O autor defende que a existência, como já ensinara Aristóteles, corresponde à realidade singular, ou seja, ao indivíduo, de modo que ela permanece de fora e de forma alguma coincide com o conceito. Dessa forma, o homem singular certamente não possui existência conceitual. Na citação a seguir vejamos quais os pontos que são atacados em Hegel:

Em sua polêmica com Hegel, Kierkegaard denunciava as ilusões da ciência filosófica e do Sistema que consideram o Indivíduo concreto quantidade negligenciável; para ele, havia grande diferença entre a verdade no papel e a que o coração com dificuldade adquire pela experiência do sofrimento. O homem não tem uma existência especulativa e metafísica, determinada pelo movimento necessário da dialética, mas uma existência concreta e contingente que se deve justificar e na qual a filosofia deve encontrar seu ponto de partida.10

Segundo o filósofo, a filosofia pareceu

interessada somente pelos conceitos e não se preocupou com o existente concreto, eu e tu, em nossa irrepetível e insubstituível singularidade, mas

10 BLANC, op. cit., 2003, p. 125.

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se preocupou com o homem em geral, com o conceito de homem. Kierkegaard acusa os sistemáticos de nem mesmo eles viverem pessoalmente em seus sistemas. Essa acusação é dirigida, sobretudo, a Hegel, cujo sistema é a encarnação da pretensão de explicar tudo e demonstrar a necessidade de todo conhecimento. Para Kierkegaard, Hegel pretende ver as coisas com os olhos de Deus, saber tudo, mas cai no ridículo, visto que o seu sistema se esquece da existência, isto é, do Indivíduo. Para ele todo sistema é ridículo; e a filosofia não deve ser um sistema especulativo e sim um diário íntimo da existência irrepetível, deste modo, Hegel não teria compreendido nem se quer a si mesmo, mas sim esta ou aquela ciência, o que é bem mais fácil do que compreender-se a si mesmo.

Sob esse ângulo, Kierkegaard é o anti-hegel, de modo a acreditar que seu pensamento nada traz de positivo, no esforço de contradizer as posições fundamentais do sistema. O filósofo criticava Hegel por ter a pretensão de fazer um sistema completo da existência, o que necessariamente quer dizer que é fechado ou tem a potencialidade de se fechar, tal sistema para ele era impossível, porque a existência e o tempo ainda não saíram de seu eixo, de modo que não existe sistema da existência. Podemos identificar quatro elementos que assinalam a oposição de Kierkegaard a Hegel:

a) transcendência absoluta de Deus versus imanência da ideia,

b) transcendência da fé versus imanência da razão,

c) abandono da mediação especulativa versus sua manutenção,

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d) necessidade da justificação pela graça versus alcance da verdade unicamente pelas forças da razão.

Deste modo, não podemos dizer que a filosofia de Kierkegaard se construiu apenas em oposição a Hegel, ela é autônoma; Kierkegaard é compreendido sem Hegel. Sua filosofia não é uma filosofia de oposição, mas de posição: do caráter radical da mensagem cristã. Considerando a análise crítica feita pelo autor acerca da filosofia hegeliana, deter-nos-emos a seguir na problemática da existência e da subjetividade que, de certo modo, constitui uma resposta ao pensamento de Hegel.

2.2 EXISTÊNCIA E SUBJETIVIDADE

Kierkegaard é o pensador de maior destaque

da corrente existencialista, devido ao fato de ser o primeiro dessa corrente. Com perspicácia, ele analisa a situação em que o homem moderno se encontra exercendo grande influência sobre todos os filósofos existencialistas-fenomenólogos contemporâneos. Questionou o sistema hegeliano e utilizou a maiêutica socrática de modo realmente original. Sua constante busca pelo sentido da vida e de qual papel sua existência individual deveria desempenhar, somado ao seu esforço para impedir as fugas da existência, representadas pelo romantismo alienado e pelo idealismo sem compromisso com a realidade moral,

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fez dele o que se poderia chamar de filósofo da existência, herdeiro de Sócrates, Agostinho e Pascal.

Kierkegaard pode ser considerado o pai do existencialismo. Termo que, na maioria das vezes evoca mais uma moda da boêmia intelectual de Paris, após a libertação, do que uma filosofia no sentido estrito. Esta corrente se ocupa em realizar libertações totais em todos os campos da existência: dos costumes, do exercício da escrita e da moral tradicional, entre outras. Constitui, acima de tudo, uma filosofia da liberdade que pretendia, segundo as palavras de Sartre, “colocar as pessoas diante de sua própria liberdade”.

O existencialismo tornou-se a divisa de um exercício de recusa de valores burgueses e da tomada de consciência de um mundo em que não se pode aceitá-lo como é, e no qual cada um tem a responsabilidade de contribuir para sua transformação. Por isso, o pensamento desse filósofo pode ser traduzido como “filosofia existencial”, que é toda forma de pensamento que se propõe a analisar a existência humana, opondo-se a qualquer redução objetiva do homem ou à sua dissolução nos conjuntos ou sistemas totalizantes, encarregando-se da questão do modo de ser do homem no mundo, constituindo assim uma filosofia da introspecção, das profundezas, assemelhando-se à psicologia e à psicanálise.

Com Kierkegaard, o existencialismo se caracteriza da seguinte forma:

É, todavia, importante colocar Kierkegaard na posição que lhe cabe no desenvolvimento do existencialismo em que o Indivíduo é uma realidade de experiência concebida como relação com o eu,

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com os outros e com o mundo, um existencialismo em que o ser humano se recoloca sem cessar em questão, onde ele está em projeto, diante de sua liberdade e das possibilidades de existência...11

Vemos que o filósofo lançou as bases para o

surgimento e desenvolvimento da corrente existencialista, e com total dedicação se ocupou da defesa da pessoa singular, única e irrepetível, isto é, do Indivíduo. Com Kierkegaard a pessoa humana foi novamente analisada, mas numa perspectiva do interno para o externo, ou seja, do eu para o mundo. Tendo apontado rapidamente os elementos que compõem a análise de Kierkegaard em relação à existência e subjetividade, passemos, no tópico a seguir, a falar sobre a apologia que o autor faz em relação ao Indivíduo em seu pensamento.

2.3 A DEFESA DO INDIVÍDUO

Kierkegaard defende que a existência é uma

tensão em direção não a uma totalidade pensada, mas sim, em direção ao Indivíduo, ao sujeito, que é a categoria essencial da mesma. Se entre os animais a espécie é mais importante que o Indivíduo, para o ser humano é diferente, entre os homens prevalece o Indivíduo, o que significa dizer que a espécie não decide por ele, o Indivíduo deve decidir por si mesmo. Blanc aponta para essa ideia da seguinte maneira:

11 BLANC, op. cit., 2003, p. 127.

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Entre os homens, prevalece o Indivíduo: a espécie não decide por ele, o Indivíduo deve decidir por sua conta, sem escapatória. O homem não tem, portanto, uma existência especulativa, mas concreta, e é no confronto com os possíveis que ele dá forma à sua singularidade.12

O existir do homem é possibilidade.

Considerando esse aspecto e também o que disse o estudioso, que o homem não possui uma existência especulativa, mas concreta, no sentido que ao confrontar-se com os “possíveis” ele dá forma à sua singularidade, vemos que esta existência concreta, singular, coloca-nos constantemente diante de alternativas, às quais precisamos optar; o que requer do Indivíduo a necessidade de pesar, computar, calcular para, em seguida, escolher. Contudo, nem sempre ele fará a melhor escolha devido à indeterminação da possibilidade que leva tanto à satisfação, como também à insatisfação.

Ao se deparar com o desconhecido, isto é, com a possibilidade, o Indivíduo se sente mal, esse sentimento de mal-estar é a angústia13 gerada pelo

12 BLANC, op. cit., 2003, p. 50. 13 ABBAGNANO, op. cit., 2000, p. 60. “No seu significado filosófico, isto é, como atitude do homem de sua situação no mundo, esse termo foi introduzido por Kierkegaard em Conceito de angústia (1848). A raiz da angustia é a existência como possibilidade. Ao contrário do temor e de outros estados análogos, que sempre se referem a algo determinado, a angustia não se refere a nada preciso: é o sentimento puro da possibilidade. O homem no mundo vive de possibilidade, já que a possibilidade é a dimensão do futuro e o homem vive continuamente debruçado sobre o futuro. Mas as possibilidades que se apresentam ao homem não têm garantia nenhuma de realização. Só por piedosa ilusão elas se lhe apresentam como

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fato de que qualquer alternativa traz consigo a felicidade e a infelicidade, sucesso ou fracasso, vida ou morte, ou seja, as possibilidades que se oferecem ao Indivíduo não oferecem nenhuma garantia de sucesso. Assim, se a existência é possibilidade, a existência individual é angústia, em outras palavras, se a individualidade é o modo de ser fundamental do homem diante da existência, sua dimensão principal é a angústia. Vemos essa análise na obra de Blanc que ele apresenta do seguinte modo:

Esse sentimento de mal-estar diante do desconhecido da possibilidade é a angústia. As possibilidades que se apresentam a nós não oferecem nenhuma garantia de sucesso. [...]. Se a existência é possibilidade, a existência individual é angústia. Se a individualidade é o modo de ser fundamental do homem diante da existência, sua dimensão principal é, portanto, a angústia.14

possibilidades agradáveis, felizes ou vitoriosas: na realidade, como possibilidades humanas, não oferecem garantia alguma e ocultam sempre a alternativa imanente do insucesso, do fracasso e da morte. “No possível tudo é possível”, diz Kierkegaard, o que quer dizer que uma possibilidade favorável não tem maior segurança do que a possibilidade mais desastrosa e horrível. Logo, o homem que se dá conta disso, reconhece a inutilidade da habilidade e diante de si só tem dois caminhos: o suicídio ou a fé, isto é, o recurso a “Aquele a quem tudo é possível”. A angústia é, segundo Kierkegaard, parte essencial da espiritualidade própria do homem, de sorte que, se o homem fosse anjo ou animal, não conheceria a angústia.: e como efeito, logra mascará-la ou escondê-la o homem cuja espiritualidade é demasiado débil. Enquanto reflexão sobre a própria condição humana, a espiritualidade do homem está ligada à angústia, isto é, ao sentimento da ameaça imanente em toda a possibilidade humana como tal”. 14BLANC, op. cit., 2003, p. 50/1.

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Outro aspecto que deve ser abordado nessa temática é a afirmação de que o Indivíduo não está somente dentro e diante da existência, mas está ao mesmo tempo em relação consigo mesmo, de modo que, ele é possibilidade para si mesmo, isto é, possibilidade de se realizar enquanto tal existência, o que o leva a se deparar com o peso das possibilidades da qual é composta sua existência; e percebe que até mesmo a relação que mantém consigo mesmo é problemática.

O desespero15 traduz concretamente a dificuldade dessa relação. O autor afirma que a única forma de superar essa dificuldade é recorrer a Deus, porque para Ele tudo é possível. Dessa forma, a relação com Deus aparece como meio de salvar o Indivíduo da angústia e do desespero ao qual sua existência o submete. Entretanto, deve-se ter bem claro que só em se tratando do estádio estético, devido ao fato de que até mesmo a relação que ele estabelece com Deus nada tem de necessária, mas é também uma relação possível, por isso angustiada. Essa relação com Deus se dá por meio da fé, contudo

15 ABBAGNANO, op. cit., 2000, p. 242. “Segundo Kierkegaard, é a “doença mortal”, a doença própria da personalidade humana e que a torna incapaz de realizar-se. Enquanto a angústia se refere à relação do homem com o mundo, a desesperança refere-se a relação do homem consigo mesmo, em que consiste própria mente o eu, nessa relação, se o eu quiser ser ele mesmo, pois é finito, logo insuficiente a si mesmo, não chegará jamais ao equilíbrio e ao repouso. E se não quiser ser ele mesmo chocar-se-á também contra uma possibilidade fundamental. Em um outro e outro caso tropeçará na desesperança., que é “viver a morte do eu”, isto é, a negação da possibilidade do eu na vã tentativa de torná-lo autossuficiente ou destruí-lo em sua natureza (A doença mortal, 1849, esp. parte I, C).

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ela não oferece qualquer certeza intelectual de que o Indivíduo será liberto das incertezas da possibilidade, mas constitui, de certa forma, um alívio para a condição humana, sobretudo, no sentido de que ter fé é assumir os riscos que derivam das possibilidades da existência.

Nisto consiste a verdadeira escolha diante da existência, que requer não escolher isso ou aquilo, preferir uma coisa à outra e cair na angústia ou desespero, mas assumir os riscos da existência pela fé ou não. De outro modo, não se trata de escolher isso ou aquilo, mas “escolher querer”, assim, o Indivíduo não tem outra escolha a não ser se entregar, por meio da fé, Àquele para quem tudo é possível, Deus.

Voltando a Hegel, vemos que para ele o que conta, como na espécie biológica, não é o Indivíduo, e sim a humanidade, porém, para Kierkegaard o Indivíduo conta mais que a espécie, de modo que ele passa a ser a constatação e a rejeição do sistema. Segundo Hegel, o racional e o real, o interno e o externo coincidem no universal concreto. Contudo, no entender do nosso filósofo, com essa ideia ele suprimiu toda a distinção entre Deus, o mundo e o Indivíduo, colocando tudo no sistema, uma vez que tudo se integra na essência única que é o Espírito Absoluto16.

16 Ibid., 2000, p. 355. “[...] por Espírito absoluto, entende o mundo da arte, da religião e da filosofia. [...] Espírito Absoluto é o mundo da Autoconsciência, que se revela a si mesma nas produções superiores, que são a arte, a religião e a filosofia... é só no Espírito Absoluto que a Ideia ou Razão se realiza plenamente ou chega à manifestação acabada ou adequada. Essas noções caracterizam o idealismo romântico de inspiração hegeliana, que identificou o Espírito com sujeito absoluto e universal, como o

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É contra essa concepção de Indivíduo como simples manifestação de Espírito Absoluto, elemento incorporado num sistema, que os protestos do autor se dirigem. É contra todo o esforço de condensar a realidade num sistema que o autor se levanta. Vejamos na citação a seguir como se dá esta oposição:

Contra todo o esforço para condensar a realidade num sistema, Kierkegaard aponta para o resíduo irredutível de oposições absolutas fundadas no princípio de que a existência é uma tensão em direção não a uma totalidade pensada, mas, sim, em direção ao Indivíduo, ao sujeito, categoria essencial da existência.17

Segundo o filósofo, Hegel edificou uma

construção imensa, procurou abarcar num único sistema toda a existência e história do mundo, porém, a vida privada, o Indivíduo ficou pasmado, sem lugar, absorvido por esse sistema, de modo que ele não habitava esse vasto palácio, ocupava uma morada à parte, ou seja, externo a essa realidade. O que Kierkegaard pretende é demonstrar que é por meio da apropriação subjetiva da verdade que se deve fundamentar o desenrolar do pensamento ligado sempre à raiz mais profunda da existência que é o Indivíduo.

Assim ele, definitivamente, reprova as teorias objetivas defendidas por Hegel. Se de um lado Hegel procurou resolver no Espírito Absoluto todas as fez Gentile (Teoria generale dello S., 1920), ou com Conceito em sua universalidade ou concretude, que é a Razão absoluta, como o fez Croce (Logica, 1920, pp. 26ss.)”. 17 GILES, op. cit., 1975, p. 06.

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diferenças entre os indivíduos, Kierkegaard tentou elevar o Indivíduo concreto ao nível de elemento central do pensamento filosófico, de modo que as diferenças passam a ser características da subjetividade.

Nosso autor fundamenta suas críticas à teoria hegeliana apontando para o abismo infinito que há entre o Indivíduo, em sua singularidade, e o Espírito Absoluto; entre o tempo no qual ele é submetido para realizar suas potencialidades e a eternidade na qual se encontra o próprio Deus. São estes aspectos que evidenciam as diferenças de pensamento que há entre Kierkegaard e Hegel, destacando a importância do Indivíduo que é o eixo condutor e ponto focal de toda a sua filosofia.

Nesse sentido, a própria verdade, em Kierkegaard, assume novo significado; não se trata mais de apenas adequar o pensamento à realidade, mas de concebê-la como sinônimo de subjetividade, onde o existente deve assumir um compromisso pessoal com a verdade, já que esta tem raízes na existência concreta e integrada a cada um em particular, de modo que não basta apenas conhecer a verdade objetiva, mas torná-la existencial no ato de o Indivíduo viver aquilo em que acredita, na realização leal dos seus objetivos mais profundos.

Portanto, o que é indispensável não é tanto conhecer a verdade, mas sim introduzi-la na existência, de modo que, devemos viver em função de uma ideia concreta que seja o ideal de uma existência vivida, o que explica a ausência de um pensamento sistemático, e argumentos que levam a conclusões lógicas e evidenciam situações

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existenciais definidas a partir da categoria essencial que é o Indivíduo.

Ousarmos ser nós próprios, ousarmos ser Indivíduos, não um qualquer, mas este que somos, só em face de Deus, isolados na imensidade do esforço e da responsabilidade; é este o desafio do existencialismo Kierkegaardiano (GILES, 1975, p. 07). Tendo considerado a importância do Indivíduo, no pensamento do autor, passamos adiante, onde nos deteremos na discussão em torno dos três estádios da existência, necessários para uma maior compreensão do pensamento existencial de Kierkegaard.

2.4 OS TRÊS ESTÁDIOS DA EXISTÊNCIA

A existência submete o Indivíduo às

possibilidades, levando-o a estabelecer uma relação com o mundo, consigo mesmo e com Deus de modo que ele deve fazer uma opção decisiva, pois não é só uma questão de optar a favor ou contra a uma simples ideia, mas sim pró ou contra uma forma de existência. Essa relação, à qual nos referimos anteriormente, recairá mais sobre a questão de como se entra em relação com eles, ou seja, o mundo, o próprio indivíduo e Deus, do que sobre o que eles significam, isto é, a preocupação está em como o Indivíduo se relaciona com esses objetos e não o que eles são. A citação a seguir ilustra de forma clara essa ideia:

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Mantemos com esses objetos uma relação emocional, apaixonada, e muitas vezes paradoxal. É o como, o aspecto resolutamente qualitativo pelo qual se entra em relação com o mundo, consigo mesmo e com Deus, que impede falar da verdade objetiva como da verdade última.18

Desse modo, o autor apresenta um exemplo de

verdade objetiva: “o todo é maior que a parte”19. Segundo ele, essa afirmação constitui o conhecimento, mas para o Indivíduo é indiferente, no sentido que não lhe diz respeito, não há uma relação com ele, de modo que o mesmo pede uma verdade que lhe diga algo, isto é, uma verdade subjetiva; é nessa ideia que Kierkegaard sempre insistiu, de que a verdade só é verdade se for verdade para mim.

Começamos esse tópico com a afirmação de que a existência coloca o Indivíduo diante das possibilidades levando-o a estabelecer uma relação com o mundo, consigo mesmo e com Deus. Esses três tipos de relação representam as três possibilidades fundamentais da existência, e para explicá-las, Kierkegaard apresenta três estádios da existência para se chegar finalmente ao reconhecimento de uma vocação radical na fé, mediante o salto no infinito do estádio religioso, que por sua vez, constitui o ponto culminante da existência finita. Os saltos não são nem sucessivos no tempo nem mutuamente exclusivos, de modo que ao saltar de um estádio a outro, o estádio posterior retém aquilo que foi superado. Dessa forma, os estádios se excluem uns aos outros e não podem de

18 BLANC, op. cit., 2003, p. 53. 19 Ibid., 2003, p. 52.

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maneira alguma ser objeto de síntese. Do contrário, ou seja, se submeter os estádios à síntese, dissolve-se o Indivíduo concreto na espécie humana.

Pode-se dizer então, que não são os estádios que se transformam, que passam de um a outro, porque se assim o fosse teríamos uma teoria ou um sistema objetivo da existência, mas é o Indivíduo que muda, experimenta, sente, detém-se e pode passar de um estádio a outro, ou não. Assim, não se trata de uma necessidade lógica nem dialética, mas de opção de romper ou não, de escolher ou não aquilo de onde provém. Vejamos a seguir cada um dos três estádios propostos por Kierkegaard.

2.4.1 O estádio estético

Nesse primeiro estádio, o Indivíduo procura no

mar sem fundo dos prazeres, lançar a âncora de sua existência. A característica principal desse estádio é a relação contraditória com o mundo onde, devido às influências da filosofia romântica,20 o esteta mantém

20 BLANC, op. cit., 2003, p. 54. “Para a filosofia romântica, a razão não é capaz de explicar a totalidade do real: o conhecimento da coisa em si, por exemplo, segundo Kant escapa-lhe. [...] Para os românticos, a realidade é um todo do qual é necessário aproximar-se, não analiticamente, mas de maneira a compreende-lhe a unidade. Eles colocam que é pelo sentimento que se pode melhor apreender sinteticamente a realidade, que é a partir do sentimento que se deve entrar em relação com o real. E onde melhor se exerce o sentimento senão na experiência estética, onde não é o conceito que é examinado do ângulo da razão que raciocina, mas a forma do ângulo da unidade espiritual que só o sentimento pode colher? [...] Penetrar a realidade pelo sentimento, apreender-lhe a unidade, é habitar o infinito do real, é o que o esteta busca: mas seus limites acabam por mostrar-lhe a impossibilidade dessa tarefa”.

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uma relação ideal com a realidade, ou seja, não a aceita como é.

Assim, o estádio estético é aquele no qual o Indivíduo fica preso ao imediatismo da natureza e não consegue distanciar-se, estando submetido aos sentidos e aos sentimentos. Idealmente, sente que é capaz de tudo, mas na realidade só consegue construir um mundo ilusório que é negado pelos critérios da própria subjetividade.

De outro modo, poderia se dizer que é uma reflexão sobre a irreflexão. Pelo fato de o esteta não poder encontrar respostas aos seus anseios fora de si, chega ao ponto de não poder suportar mais a existência no presente; e se sente forçado a voltar para um passado irreal ou para um futuro impossível, com a tentativa de escapar do vazio e do tédio de um presente aparentemente sem sentido. Dessa forma, uma consequência comum ao estádio estético é o desespero21, que não vem de fora, mas do interior do próprio Indivíduo. Thomas Giles fala sobre esse fato do seguinte modo:

21 ABBAGNANO, op. cit., 2000, p. 242. “Segundo Kierkegaard, é a ‘doença mortal’, a doença própria da personalidade humana e que a torna incapaz de realizar-se. Enquanto a angústia se refere à relação do homem com o mundo, o desespero refere-se à relação do homem consigo mesmo, em que consiste propriamente o eu. Nessa relação, se o eu quiser ser ele mesmo, não chegará jamais ao equilíbrio e ao repouso. E se não quiser ser ele mesmo chocar-se-á também contra uma impossibilidade fundamental. Em um outro caso tropeçará no desespero, que é ‘viver a morte do eu’, isto é, a negação da possibilidade do eu na vã tentativa de torná-lo auto-suficiente ou destruí-lo em sua natureza (A doença mortal, 1849, esp. parte I, C)”.

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O estádio estético tem por companheiro constante e inevitável o desespero que não vem de fora, mas do próprio interior do indivíduo. Tem por origem a paralisia da vontade, o que leva o indivíduo a um impasse, pois a vontade paralisada é totalmente incapaz de desempenhar o seu devido papel na tomada de uma decisão que possibilite a passagem para o estádio ético.22

O desespero, certamente, é causado pela fuga

da realidade, sobretudo, pela fuga de si mesmo. Ele pertence ao eu e assinala um estado de discordância interna, onde ele se encontra diante da responsabilidade e da liberdade de ser ou de não ser ele mesmo. Enfim, o desespero nasce do sentimento de separação entre o eu subjetivo e o eu objetivo em que se o eu quiser ser ele mesmo, sua natureza finita o impedirá de alcançar o equilíbrio e o repouso; se não quiser, irá deparar-se então com a impossibilidade de sair da relação que o constitui.

Para Kierkegaard, o desespero é a doença até a morte. O desesperado é, portanto, um enfermo que sofre de uma doença mortal, mas da qual não pode morrer, o mal não acaba. O desesperado deseja a morte do eu, que justamente não pode morrer. Desse modo, o desespero constitui o viver a morte do eu, na tentativa impossível de tornar o eu autossuficiente ou de negar a possibilidade do eu.

Convém lembrar que Kierkegaard viveu segundo o modo de vida esteta. Aos vinte anos frequentou tabernas, fez dívidas, viveu desregradamente. Como bom esteta ele evitou

22 GILES, op. cit. 1975, p. 11.

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escolher, preferiu permanecer como que suspenso entre todas as possibilidades:

Suspenso no possível tudo era novo, o hábito não encontrava espaço: nem trabalho, nem família. O esteta pode construir-se segundo sua vontade, segundo sua imaginação: sua vida torna-se como um livro, “um romance que lhe agrada muito”, para repetir a expressão de Hector Berlioz. Kierkegaard então construía e destruía mundos, segundo seus caprichos, unicamente pela gargalhada da ironia. Sua vontade não se sujeitava a qualquer lei, de modo que sua vida tornava-se cada vez mais “poética”.23

Desse modo, viver apenas para o instante é

uma das características do estádio estético. O fato de não escolher, não eleger este ou aquele objeto, esta ou aquela pessoa, na tentativa de se manter acima de tudo, não se submetendo ao modo de vida estável, não refletindo acerca da existência, vivendo no imediatismo, marcado por um desejo forte de superar a condição humana recusando-se a optar entre as possibilidades apresentadas pela existência, tornando o prazer o objetivo de sua vida, esse é o modo de vida do esteta. Porém, quem nada procura além de sua própria satisfação, logo sofre com a brevidade dos dias diante da infinidade dos desejos, eis o que o leva a angústia, que não passa do resumo da vida do esteta. O estádio estético é marcado pela busca desenfreada da satisfação, o que leva à angústia.

23 BLANC, op. cit., 2003, p. 55-6.

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Contudo, há uma forma de angústia apresentada por Kierkegaard, entendida como angústia do bem que ele denomina demoníaco. É o vazio, o tédio, angústia sem limites, sede por situações novas, insaciáveis; e serve como guia que o leva a refletir sobre o ser no mundo e pensar que uma outra relação com o mundo é concebível, porém, isso exige que se rompa com a vida estética, que se mude radicalmente de foco, o que segundo o filósofo, constitui o salto dialético, isto é, não é uma síntese, fruto da evolução de um estado a outro, mas um acontecimento.

Como vimos, a existência obriga o Indivíduo a escolher, ou seja, nem sempre permite manter as portas das possibilidades todas abertas, de modo que a vida decide por nós, o que nos leva a um compromisso com a existência. É justamente a escolha que diferencia o estádio ético do estético. Contudo, entre estes dois estádios existe algo ou uma situação que atua como interestádios, onde se toma consciência do fracasso da vida estética e da necessidade da escolha que ainda não se fez. Essa fase é caracterizada pela ironia24 que assinala o desapego do eu pelo mundo, superando a imediatilidade da vida estética; e torna-se meio para o existente tomar consciência da sua individualidade, interioridade; é, portanto, reflexão.

O ironista se caracteriza pela reflexão acerca das particularidades da vida finita e as da vida infinita, entretanto, vale dizer que ainda não optou pela última,

24 Ibid., 2003, p. 59. “Atitude intelectual que insiste na inadequação entre o infinito e suas manifestações particulares, estado de espírito que quer assinalar sua superioridade sobre qualquer conteúdo conceitual”.

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visto que insiste nas contradições da vida finita buscando os clarões fugidios do infinito. Ironia é reflexão, que leva à tomada de consciência da individualidade e da interioridade. Blanc aponta para essa ideia da seguinte forma:

Essa tomada de consciência particular da interioridade sai da estética, mais ainda não é ética; é por isso que Kierkegaard fala da ironia como uma situação interestádios. Por que a ironia não está na estética? Por que ela é reflexão e não é, nesse sentido uma coisa imediata. Por que não é ética? Por que não decide e insiste nas contradições.25

Desse modo, vemos que o esteta se percebe,

reflete sobre sua existência e para se livrar da angústia busca um estilo diferente de vida. A ironia constitui, assim, o processo pelo qual o indivíduo é submetido para saltar para o estádio ético. Tendo em vista que os estádios possuem uma ordem já estabelecida por Kierkegaard, pois se trata de um processo realizado na tentativa de tornar a existência autêntica, passemos adiante onde discorreremos sobre o estádio ético que corresponde ao segundo da referida ordem.

2.4.2 O Estádio ético

Devido ao fracasso da vida do esteta, na

angústia ao qual se encontra por não ter feito nenhuma escolha diante das possibilidades que lhe foram oferecidas pela existência, ele é conduzido ao desespero. A vida estética não se preocupa com a

25 BLANC, op. cit., 2003, p. 60.

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escolha. Permanecendo assim, no instante da escolha, o esteta não quer renunciar a qualquer prazer. Já o ético pretende organizá-lo. A escolha do desespero, isto é, a escolha de si mesmo, de querer ser realmente si mesmo constitui o salto para o estádio ético, ou seja, o estádio ético nasce dessa escolha.

A vida estética, marcada pela constante busca pela novidade, exclui o sentido de continuidade na existência, característica da vida ética, de modo que, enquanto o esteta vive o instante, o ético vive no tempo. No estádio estético, o homem é imediatamente o que é, no estádio ético, o homem torna-se o que se torna. Na vida ética, o homem submete-se a uma forma, conforma-se ao universal; renuncia ao instante, renuncia a ser excepcional (BLANC, 2003, p. 61).

O estilo de vida do esposo caracteriza o estádio ético. Assim, ético é aquele homem que se preocupa em construir uma vida alicerçada em bases sólidas, isto é, procura manter consigo mesmo uma relação amigável, institui regras que norteiam seu modo de viver, compromete-se, de fato, com a existência. A escolha por escolher caracteriza o modo de vida ético, ou seja, diferente do esteta ele decide escolher, não escolher simplesmente isto ou aquilo, mas escolher apenas; o que quer dizer que para o ético não há recusa irônica da escolha, na tentativa de o Indivíduo afirmar sua soberania absoluta, mas o que está em jogo é a construção de sua personalidade, sua interioridade, o que implica escolher.

Uma das exigências presentes no modo de vida ético é a de realizar o geral, que significa conciliar

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a sua vida interior com a vida moral, como também conciliar a vida moral com seu interior. De outro modo, é também reconhecer que as obrigações morais representam os valores mais importantes do Indivíduo, que se harmonizam com a consciência individual. Consequência disso é que o ético deve colocar ordem, estabelecer uma continuidade em sua vida e viver conforme o tempo, não apenas no instante.

Desse modo, o casamento é a forma de vida mais adequada ao estádio ético, porque implica a vontade e, ao mesmo tempo, abrange todos os aspectos da vida humana. O estádio ético consiste na reavaliação do estético, de modo que não se trata de excluí-lo totalmente, mas de reavaliá-lo, colocar limites, estabelecer normas morais, de forma que o ético não renuncia ao prazer, mas lhe confere novo valor. Assim, este salto de um estádio a outro consiste numa interpretação renovada acerca do passado, ou seja, há uma mudança radical no Indivíduo, mas ele nem por isso deixa de ser quem ele foi, mas apenas abre-se para as possibilidades, o que ele não fazia no estádio estético.

Aqui o homem se escolhe, escolhe realizar suas possibilidades, e na busca de construir sua personalidade refugia-se no seu interior, onde reconhece valores morais e eternos; e escolhe aceitá-los, pois compreende que eles representam a expressão dessa liberdade, dessa vontade que os aceitam como tais. A citação a seguir nos apresenta umas das definições do estádio ético, presente na obra de Blanc:

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O ético é aquele que quer livremente o que quer e que consegue conciliar sua vontade com a vida social sob a forma do dever. Quando o ético se casa, mantém relações com uma outra pessoa, compromete-se com o Estado, exerce uma profissão, ele não se submete ao dever e as normas sociais. Ao contrário, cada um de seus atos é a expressão de sua liberdade, por que cada um foi livremente aceito como a expressão da personalidade no que ela tem de eterno. O ético não se decide entre diversas possibilidades, não se decide cumprir uma série de deveres: essencialmente opta por si mesmo.26

O que vemos é que o ético é aquele homem

que não está submetido ao dever, mas o cumpre como parte de sua personalidade ao optar por si mesmo. A vida ética é dessa forma, um voltar-se para si, na busca do conhecer-se a si mesmo e consolidar uma personalidade, de modo que a sua vida não será apenas um executar tarefas, mas, ao contrário, ao cumprir suas tarefas, engajando-se no dever cotidiano, faz a liberdade triunfar. Os valores da personalidade não se expressam pelo hábito, o Indivíduo deve querer fazer o bem, querer ser justo, não por hábito, mas por consciência.

Diferente do estádio estético, o ético é caracterizado pela reflexão, sobretudo, de si mesmo e fruto dessa reflexão é a aceitação de que as falhas da condição humana são inevitáveis, chegando a conceber que está em nossa natureza fazer o mal, ser injusto, pecar. A grande descoberta da ética é que a existência e o erro são indissociáveis. E o que toma

26 BLANC, op. cit., 2003, p. 63-4.

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consciência disso? A subjetividade (BLANC, 2003, p. 66).

A subjetividade, entendida como reflexão acerca de si mesmo, não é passiva; de modo que ao tomar consciência de seus erros assume, ao mesmo tempo, a responsabilidade por eles. Aqui ela assume um valor de redenção, isto é, o Indivíduo que toma consciência de sua condição necessária de pecador, de que sua existência traz inerente o erro e percebe que a vida ética não basta para lavar a vida interior do pecado, dos erros que a existência carrega. Nesse exato momento, o Indivíduo cai no arrependimento, que consiste em o último momento do estádio ético. Enfim, quando o Indivíduo, ao explorar sua história pessoal, ou seja, descobrir sua subjetividade e reconhecer sua condição e a necessidade do arrependimento, ele estará pronto para saltar para o estádio religioso.

Contudo, assim como a ironia é a intermediária entre o estádio estético e o ético, o humor27 assume a posição de intermediário entre o ético e o religioso.

27 ABBAGNANO, op. cit., 2000, p. 520. “Estado emotivo que não tem objeto, ou cujo objeto é indeterminável, distinguindo-se, assim, da emoção propriamente dita. [...] O humor não tem objeto intencional no sentido de que não existe um humor de..., assim como existe um medo de... ou alegria de... etc. Tem causa ou razão, mas não se refere a um objeto em particular e não constitui advertência quanto ao valor biológico de uma situação. Nesse sentido, Cerf afirmou que na arte não existem emoções, mas apenas humor. Heidegger chamou a atenção para o significado existencial dos humores: ‘O fato de os humores poderem transformar-se ou deteriorar-se significa somente que o ser-aí está sempre num estado emocional’. O humor fundamental é o tédio, ‘o peso do ser’. Mas, em qualquer caso, o humor é aquilo que torna manifesto ‘ como alguém é se torna’ (Sein und Zeit, § 29)”.

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O humor talvez seja o que exprime melhor a existência de Kierkegaard. O humor pode ser traduzido como uma reflexão de modo mais profundo e que deve levar a uma tomada de consciência de que existência e erro são indissociáveis. Essa reflexão deve proporcionar ao indivíduo um erguer-se acima de tudo e de si mesmo e tomar consciência de seu nada.

Desse modo, o humor implica uma revisão de valores mais completa que a ironia, consiste num questionamento acerca de tudo, inclusive de si mesmo. A ironia quer marcar o domínio absoluto da subjetividade, do eu, já o humorista não tem a mesma pretensão. Segundo Kierkegaard, é o cristianismo que expressa, no seu mais alto grau, o humor, porque o homem religioso reconhece que por maiores que sejam seus esforços, não são absolutamente nada. Essa dor, às vezes, expressa-se por meio do riso, daí o sentido do termo humor. O humor é, nesse sentido, uma tomada de consciência do limite da condição humana. Consiste no encontro da nossa finitude com a consciência religiosa de nossa eternidade.

O Indivíduo, nessa fase humorística, percebe a desproporção que há na sua relação com Deus, ou seja, percebe a fragilidade da razão, a insuficiência da vida ética, do cumprimento dos deveres, na realização das inspirações do Indivíduo. Percebe que Deus escapa à capacidade da razão e sabe que ele é a possibilidade de todas as suas aspirações. Todavia, o fato de ter compreendido a insuficiência da razão não significa que ele compreendeu que a solução está apenas na fé.

Quando o Indivíduo compreender que a fé é a resposta, estará pronto para o estádio religioso, o que

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implica que ele tenha levado muito a sério o estádio ético, pois só assim ele terá o direito de dar o salto para o seguinte. Contudo, não se tem nenhuma garantia de êxito e será sempre dado por aquele que reconhece que jamais poderá realizar seu destino enquanto permanecer dentro dos padrões universais do estádio ético. Vejamos no tópico a seguir como se caracteriza o estádio religioso.

2.4.3 O estádio religioso

Antes de analisarmos no que consiste o

estádio religioso, vale ressaltar que aqui faremos somente uma breve introdução sobre esse tema, pois será no capítulo seguinte que nos deteremos com maior atenção sobre ele ao discorrermos acerca do problema da fé.

Pode-se perguntar por que o estádio religioso e o ético não se fundem e veremos que são dois os motivos pelos quais não se pode imaginá-los como uma coisa só. O primeiro deles é o fato de que a Revelação não é somente um conjunto de regras, mandamentos, como entendem as igrejas e o judaísmo, mas se trata de algo que vai além do exterior e causa uma verdadeira reviravolta interior, ou seja, a revelação, a encarnação, anuncia uma relação singular entre o Indivíduo e o Absoluto que é Deus. Essa relação tem início quando o Indivíduo se reconhece fraco, pecador e imperfeito diante da grandeza e perfeição de Deus; e encontra no seu interior um anseio, uma aspiração ao perfeito, de modo a querer elevar-se até Ele.

Esse anseio, essa vontade é alheia à ética, porque ela só reconhece o erro moral que, por sua

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vez, é relativo. O pecado é um erro moral absoluto, pois é cometido diante do Absoluto. Consiste na ruptura com a imanência. E com relação à moral, suas regras não estão mais na ação, mas numa realidade que lhe é exterior, um bem transcendente. Na obra de Blanc, vemos essa teoria da seguinte forma:

Essa relação instaura-se pela consciência do pecado. O homem, que se reconhece fraco e imperfeito, encontra contudo em seu coração uma aspiração ao perfeito e quer elevar-se até ele. Essa vontade é alheia à ética; ela só conhece o erro moral que, como qualquer moral, é relativo. O pecado é decerto erro moral com relação ao Absoluto, é ruptura com a imanência: a norma da ação moral não deve mais ser buscada na própria ação (os elementos inerentes à ação), mas numa relação com um conceito (um bem) que lhe é exterior, transcendente.28

O homem no estádio religioso conduz suas

ações sem se preocupar com regras de ordem racional, sem critérios e sem justificativas, justamente pelo fato de que este estádio se fundamenta apenas na justificação pessoal e instantânea de cada Indivíduo, não em pressupostos sociais e históricos, como acontece no estádio ético. Aqui Deus é a regra do Indivíduo, o Absoluto que justifica todas as exceções, de modo que só em se tratando Dele que as categorias éticas são suspensas.

O segundo motivo pelo qual o ético e o religioso não podem ser fundidos é o fato de que a nem todos os homens é dado realizar o geral, isto é,

28 BLANC, op. cit., 2003, p. 69.

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casar-se, assumir uma posição social, como é o caso do próprio Kierkegaard. Existem aqueles que não conseguem relacionar-se com os outros e se fecham em sim mesmos, preferem relacionar-se com Deus antes de relacionar-se com a sociedade; e o pecado, aqui, assume um papel fundamental porque é princípio de individuação que impede a relação do Indivíduo com o social, isto é, realizar o geral. Aquele que por meio do pecado conquista sua individuação e consegue realizar uma relação absoluta com o Absoluto, constitui o que Kierkegaard chama de exceção.

O fato de ele ter rompido o noivado com Regina Olsen em vista de estabelecer uma relação com Deus e combater a igreja oficial que estava a serviço do mundo, expressa que ele realizou essa exceção a fim de construir uma verdadeira relação de fé. Mas a fé consiste numa relação de ninguém com ninguém, ignora o mundo e tudo que há nele, por isso existe um salto do ético para o religioso, o que significa dizer que o Indivíduo no estádio religioso também respeita regras, preceitos morais, porém, estes não lhe representam tudo, o essencial para ele é a relação absoluta da subjetividade com o Absoluto que é Deus; e por definição é alheio a tudo que é mundano. Deus está acima de qualquer compromisso entre a fé e o mundo. É alheio à experiência humana e ao mesmo tempo às regras morais e legais que a limitam. Vejamos na citação a seguir como Blanc apresenta essa tese:

O religioso também respeita os preceitos morais, mas estes não representam tudo para ele. O essencial do religioso é a relação absoluta da subjetividade com o Absoluto e, por definição, o

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Absoluto é alheio a tudo que é mundano. Deus é alheio a qualquer compromisso entre a fé e o mundo; enquanto Deus, Ele é o Outro em seu sentido absoluto. É alheio à experiência humana e, consequentemente, às regras (morais ou legais) que a limitam.29

O pecado, por sua vez, como manifestação da

vida interior do indivíduo, não pode estar circunscrito numa história universal, objetiva, exterior, o que está em questão é o eu, sozinho, individual, solitário, radicalmente subjetivo. O pecado manifesta o conflito interior do eu com ele mesmo e não pode ter relação com o externo. Assim, pode-se dizer que a interioridade é superior à exterioridade, que a consciência é superior ao erro, o que leva o Indivíduo a entrar em conflito com o mundo como é o caso de Abraão; que será o tema do nosso próximo capítulo.

29 BLANC, op. cit., 2003, p. 70.

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= III =

A FÉ COMO PRESSUPOSTO PARA UMA EXISTÊNCIA AUTÊNTICA

O presente trabalho, na sua totalidade, tem por

objetivo discorrer sobre o tema da fé no pensamento de Kierkegaard, com o intuito de compreender como ela pode ser garantia de uma existência autêntica. Para tanto, tomamos como base a obra Temor e tremor30, onde o filósofo apresenta o episódio bíblico em que Abraão se dispõe a sacrificar o próprio filho em obediência à ordem divina; e é, sobretudo, nesse capítulo que abordaremos com ênfase essa temática.

Num primeiro momento, buscaremos apresentar em que consiste a natureza da fé para o nosso filósofo, em seguida como ela pode significar um salto além do ético; e, para terminar, apontaremos para o encontro do Indivíduo com a singularidade de

30 PECORARO, Rossano. Os filósofos: clássicos da filosofia; de Kant a Popper. Vol. 2. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 137. “Do ano de 1843, a obra Temor e tremor, escrita sob o pseudônimo de Johannes de Silentio, com pouco mais de cem páginas, elabora variações em cima do relato bíblico, para questionar assim a moral kantiana e a ética hegeliana. Pois, o Patriarca, Pai de nossa fé, não pode falar a verdade, como o exigia Kant, e se relaciona com um absoluto que transcende a ética, de um modo que contraria os sistemas idealistas e racionalistas. Kierkegaard anota nos Diários: bastaria esta obra, Temor e tremor, para torná-lo imortal como escritor, e conhecido por leitores de muitos idiomas, o que de fato aconteceu. A apreciação vale tanto no terreno literário, psicológico e teológico quanto no filosófico, se tratamos de entender sua tese do ponto de vista da ética ou do sistema”.

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Deus que certamente, não se dá de outro modo que não seja por meio da fé.

3.1 NATUREZA DA FÉ

Vimos, ao longo desse trabalho, que a

existência do homem é marcada por fases e, na linguagem do nosso autor, por estádios. E se perguntarmos a respeito da natureza da fé veremos que está intrinsecamente ligada à teoria dos estádios, pois nada mais é do que saltar do estádio ético para o religioso. Contudo, a questão pode ser um pouco mais complexa se nos propusermos a compreender o que leva o Indivíduo a realizar esse salto, para isso é necessário recorrer à causa, ao motivo pelo qual o mesmo se decide saltar do estádio ético ao religioso.

O desespero torna-se, aqui, chave de compreensão para esse salto, pois é a partir do momento em que o Indivíduo se coloca em relação consigo mesmo, e percebe a contínua discordância que há no seu interior, que ele cai no desespero. Desespero por que deve assumir a responsabilidade de ser ou não ser ele mesmo, se opta por ser ele mesmo sua natureza finita o impedirá de alcançar o equilíbrio e o repouso, de outro modo, se não quiser ser ele mesmo, terá que enfrentar a impossibilidade de ir além da relação que o constitui31, ou seja, há

31 Em Nietzsche, por exemplo, há uma semelhança, isto é, também ele concebe que o homem para se realizar precisa deixar de estar satisfeito consigo mesmo para seguir a

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uma separação entre o eu subjetivo e o eu objetivo no que consiste o desespero.

O desesperado é aquele Indivíduo que não suporta ser ele mesmo, deseja a morte do eu, vive a morte do eu, na tentativa impossível de tornar o eu autossuficiente, como também querer ser o que não é, ou querer ser si mesmo a qualquer preço, não admitindo que o eu seja incompleto e dependente, recusa as questões essenciais que a existência coloca, como por exemplo: qual o sentido da vida? Quem sou? Deus existe? Entre outras.

No entanto, não é somente o desespero que leva o Indivíduo a realizar o salto, mas também o pecado,32 que no entender de Kierkegaard nada mais é do que a essência do desespero. Dessa forma o desesperado vive em condição de pecado cujo antídoto é a fé, isto é, o que pode corrigir o pecado é a fé. Assim, podemos perceber que a natureza da fé se dá no momento em que o Indivíduo se coloca em

consciência que lhe grita aos ouvidos: Sê tu mesmo! Não és realmente tudo o que fazes, pensas e desejas. Cf. GILES, 1975, p. 28. Em Kierkegaard, essa relação consigo mesmo torna-se essencial, pois é se descobrindo que o Indivíduo percebe suas misérias e busca fora de si algo que confira valor ao seu existir. 32 ABBAGNANO, op. cit., 2000, p. 746/47 “Transgressão intencional de um mandamento divino. Esse termo tem com cotação sobretudo religiosa: pecado não é a transgressão de uma norma moral ou jurídica, mas a transgressão de uma norma considerada imposta ou estabelecida pela divindade. [...] Pode-se dizer que esse conceito de pecado não alterou através dos tempos. Kant repete-o ao definir o pecado como ‘ a transgressão da lei moral vista como mandamento divino’; o mesmo faz Kierkegaard, ao afirmar que o pecado é perante Deus, e que consiste em ‘buscar desesperadamente à identidade ou em fugir desesperadamente à identidade’, o que significa que consiste no desespero de não ter fé”.

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relação consigo mesmo e na tentativa de querer ser si mesmo se desespera, pois se depara com a impossibilidade, por causa da sua natureza finita e, ao mesmo tempo, com a impossibilidade de vencer o desespero, porém, isso só é impossível para aquele que não acredita em Deus, ou seja, para aquele que não tem fé, porque em Deus tudo continua sendo possível.

Desse modo o desespero conduz à fé, que por sua vez é o único remédio para o mesmo. A fé surge com a superação das impossibilidades da existência finita e a crença de que para Deus tudo é possível. Desse modo, a fé coloca entre o eu e o mundo, entre o eu e ele mesmo, uma relação de estabilidade que apaga a angústia e o desespero causados pela infinidade de possibilidades que a existência apresenta, apenas pelo princípio de que para Deus tudo é possível, mas ao mesmo tempo causa angústia pelo fato de que também Deus é uma possibilidade, nisso consiste o paradoxo.

Mas afinal, o que é a fé? A fé é um paradoxo, afirma Kierkegaard, depois de ter efetuado os movimentos do infinito, cumpre o finito, aqui está a questão essencial, de maneira a não perder o mundo finito, antes, pelo contrário, permite ganhá-lo constantemente, isto é, em Kierkegaard a fé, ao mesmo tempo que constitui um movimento em direção ao infinito, permanece no finito, porém, não se prende a ele. A fé é, ao mesmo tempo, um movimento que deve efetuar-se constantemente em virtude do absurdo. “Feliz é aquele que é capaz de tal movimento, realiza um prodígio que me não cansarei de admirar” (KIERKEGAARD, 1979, p. 130).

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Kierkegaard usa o exemplo do cavaleiro da fé33 para nos mostrar como é a vida de quem faz uma opção radical pela fé. Segundo o autor ele jamais encontrou um exemplar autêntico de cavaleiro da fé, mas consegue bem representá-lo e se um dia soubesse da existência de um iria imediatamente ao seu encontro. Leiamos a seguir o que diz o autor a esse respeito:

Mas se acaso soubesse onde mora um cavaleiro da fé, iria, com meus próprios pés, ao encontro desse prodígio que representa para mim um interesse absoluto. Não abandonaria um instante sequer, em cada minuto que passasse observaria os seus mais secretos movimentos e, considerando-me para sempre esquecido, dividiria o meu tempo em duas partes: uma para observar miudamente e outra para me exercitar de tal modo que, afinal só me empenharia em o admirar. Repito nunca encontrei um tal homem; contudo é-me bem possível representá-lo.34

O cavaleiro da fé é marcado pela constante

resignação, isto é, renúncia, conhece a felicidade do infinito, e experimenta a dor da total renúncia a tudo que mais ama no mundo. Essa renúncia, como já vimos, não significa abster-se por completo, mas, conserva tudo que é finito, porém escolhe sempre o

33 O cavaleiro da fé é Abraão cuja atitude serviu de base para a análise do problema do salto do estádio ético para o religioso em Temor e Tremor. 34 KIERKEGAARD, Soren Aabye. Diário de um sedutor; temor e tremor; o desespero humano; 2. ed. Trad. Carlos Grifo, Maria José Marinho e Adolfo Casais Monteiro. São Paulo: Abril Cultura, 1979 (Os Pensadores). p. 130.

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infinito. O cavaleiro da fé é ainda aquele que renunciou infinitamente a tudo, mas na certeza de tudo recuperar pelo absurdo. Ele convive com as impossibilidades do mundo finito, mas as torna possíveis porque as encara sob o ângulo do espírito e, ao mesmo tempo, deixa claro que a tudo renúncia.

Uma das características fundamentais do cavaleiro da fé é a resignação. Kierkegaard aponta para esse dado da seguinte maneira:

O cavaleiro não abandona a resignação, o seu amor conserva a frescura do primeiro momento, não a deixa nunca e isso precisamente porque realizou o movimento infinito. (KIERKEGAARD, 1979, p. 134)

Esse processo de resignação pode ser e é

doloroso, contudo implica sempre a paz e o repouso, isto é, implica o repouso, a paz e a consolação no seio da dor e leva à conciliação com a vida. Segundo o autor a resignação é o último estádio que precede a fé. Vejamos:

A resignação infinita é o último estádio que precede a fé, pois ninguém a alcança antes de ter realizado previamente esse movimento; porque é na resignação infinita que, antes de tudo, tomo consciência do meu valor eterno, e só então se pode alcançar a vida deste mundo pela fé.35

Fica claro, portanto, que é por meio da

resignação que o Indivíduo se torna consciente de que possui uma eternidade, ou seja, que sua

35 KIERKEGAARD, op. cit., 1979, p. 135.

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existência possui um valor que ultrapassa a realidade finita, quando isso ocorre é que ele está pronto para assumir a fé e suas exigências.

Quanto às atitudes do cavaleiro da fé, vemos que sua existência é marcada pela renúncia a tudo que mais ama, de modo que esse movimento é de tamanho valor, pois ele crê seriamente que obterá tudo o que ama em virtude do absurdo, absurdo que consiste em crer que tudo é possível a Deus, absurdo porque não pode ser compreendido pelos quadros da razão; ele possui a lúcida consciência que só o que o pode salvar é o absurdo; e que ele o concebe não de outro modo, mas por meio da fé, reconhece diante de si a impossibilidade e, ao mesmo tempo, crê no absurdo; pois ter fé é isso, é reconhecer a impossibilidade daquilo que se busca, porém, acreditar.

De outro modo, se alguém imagina ter fé sem reconhecer a impossibilidade, engana-se a si próprio e o seu testemunho é absolutamente inaceitável, afirma Kierkegaard. A fé, desse modo, constitui um impulso muito mais elevado do que o da ordem estética, pois pressupõe a resignação, ou seja, não é o instinto imediato do coração, mas o paradoxo da vida.

Falamos, anteriormente, que a resignação é o último estádio que precede a fé, contudo, vale ressaltar que a resignação, ao mesmo tempo, não implica a fé. O que se adquire com a resignação é a consciência eterna, o que não quer dizer que para alguém se resignar seja indispensável a fé, porque ela é necessária para se obter o que está além da consciência eterna, nisso consiste o paradoxo. Dizem

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que é preciso fé para renunciar a tudo, mas ao mesmo tempo é necessário renunciar a tudo para saltar à fé.

Do mesmo modo que renúncia significa rejeitar a tudo que mais ama, abster-se, significa também tudo possuir, tudo ganhar, pois se renuncia a temporalidade a fim de ganhar a eternidade e não só, também o que é temporal é de novo obtido, como é o caso de Abraão que renunciando a Isaac obteve-o. Assim a fé oferece ao Indivíduo a coragem para crer no absurdo e a força para renunciar a tudo e encontrar a paz e o repouso na dor.

O cavaleiro da fé emprega todas as suas forças na renúncia, a fim de alegrar-se na dor, porém, para obter novamente aquilo a que renunciou não se vale de suas próprias forças, pois aplicou-as todas na renúncia, mas a fé se encarrega de recompensá-lo em virtude do absurdo. Assim, a grandeza do cavaleiro da fé consiste no fato de que ele vive cada momento para o absurdo, vendo em cada instante aquilo que mais ama correndo riscos, encontrando não o repouso na dor da resignação, mas a alegria em virtude do absurdo, aquele que for capaz disso é grande, afirma o autor. Desse modo, a resignação infinita é algo possível a todos; e, segundo Kierkegaard, covarde é aquele que se julga incapaz de realizá-la; porém, em se tratando de fé, a questão é outra, a fé não é coisa fácil, é a maior e mais penosa de todas as coisas. Assim, Kierkegaard caracteriza a fé:

[...] inaudito paradoxo é a fé, paradoxo capaz de fazer de um crime um ato santo e agradável a Deus, paradoxo que devolve a Abraão o seu filho, paradoxo que não pode reduzir-se a nenhum

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raciocínio, porque a fé começa precisamente onde acaba a razão.36

A fé é, portanto, este paradoxo37 que a razão

não pode abstrair, não pode compreender, pois ela começa, justamente onde acaba a razão, visto que, se a razão fosse suficiente para explicá-la não se trataria de fé, devido ao fato de que só o inexplicável é objeto de fé. A fé, cujo modelo Abraão nos oferece com o sacrifício de Isaac, é contrária a toda a razão, é acreditar pelo absurdo. Pela fé, se justifica o que a moral condenaria, pois se trata de um salto além da própria moral, mostrando-nos, assim, que ela é o estádio mais nobre do existente porque, ao tomar consciência de sua eternidade, abandona tudo e obedece única e exclusivamente à ordem divina.

36 KIERKEGAARD, op. cit., 1979, p. 140. 37ABBAGNANO, op. cit., 1979, p. 742. “O que é contrário à ‘opinião da maioria’, ou seja, ao sistema de crenças comuns a que se fez referência, ou contrário a princípios considerados sólidos ou a proposições científicas. Aristóteles, em Refutações Sofísticas (cap. 12), considera a redução de um discurso a uma opinião paradoxal como um segundo fim da Sofística (o primeiro é a refutação, ou seja, provar a falsidade da asserção do adversário). [...] No sentido religioso, chamou-se paradoxo a afirmação dos direitos da fé e da verdade do seu conteúdo em oposição às exigências da razão. Paradoxo é, por exemplo, a transcendência absoluta e a inefabilidade de Deus, afirmada pela teologia negativa; paradoxo é o ‘credo quia absurdum’ de Tertuliano; paradoxo é toda a fé, segundo Kierkegaard, porque todas as categorias do pensamento religioso são impensáveis, e a fé, não obstante, crê em tudo e assume todos os riscos. Kierkegaard viu como paradoxo a própria relação entre o homem e Deus: ‘O paradoxo não é concessão, mas uma categoria: uma determinação ontológica que expressa a relação entre um espírito existente e cognoscente e a verdade eterna’. (Diário, VII, A 11)”.

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Nessa perspectiva, abordaremos no tópico seguinte, em que sentido a fé representa uma superação das normas morais, tida como salto além do ético.

3.2 A FÉ COMO UM SALTO ALÉM DO ÉTICO

Embora se possa formular em conceito toda a substância da fé não resulta daí que se alcance a fé, como se a penetrássemos ou a ela se houvesse introduzido dentro de nós. (KIERKEGAARD, 1979, p. 110)

Com essa afirmação, iniciamos esse segundo

tópico onde nos esforçaremos para entender, mais profundamente, o tema da fé apresentado pelo nosso autor. Contudo, como ele mesmo nos advertiu, compreender o que é a fé não significa possuí-la. Desse modo, não teremos aqui a pretensão de ensinar o que se deve fazer para alcançar a fé nem tão pouco convencer de que a possuímos, o que buscamos é compreender como para Kierkegaard a fé atribui sentido à existência.

Sabemos que a fé é um salto e está acima de qualquer coisa, inclusive das próprias regras impostas pela ética; e é em Abraão que veremos como o Indivíduo se comporta nesse estádio. O episódio bíblico em que Abraão se dispõe a matar o próprio filho será, aqui, objeto de nossa reflexão.

Vejamos:

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Abraão levantou-se bem cedo, encilhou o jumento, tomou consigo dois criados e o seu filho Isaac. Depois de ter rachado a lenha para o holocausto, pôs-se a caminho para o local que Deus o havia ordenado. No terceiro dia, Abraão levantou os olhos e viu de longe o lugar. Disse então aos criados: “Esperai aqui com o jumento, enquanto eu e o menino vamos até lá. Depois de adorarmos a Deus, voltaremos a vós”. Abraão tomou a lenha para o holocausto e a pôs às costas do seu filho Isaac, enquanto ele levava o fogo e a faca. Os dois continuaram caminhando juntos. Isaac falou para seu pai Abraão e disse: “Pai!” – “O que queres meu filho?” respondeu ele. O menino disse: “Temos o fogo e a lenha, mas onde está o cordeiro para o holocausto?” Abraão respondeu: “Deus providenciará o cordeiro para o holocausto, meu filho”. Os dois continuaram caminhando juntos. Quando chegaram ao lugar indicado por Deus, Abraão ergueu ali o altar, colocou a lenha em cima, amarrou o filho e o pôs sobre a lenha do altar. Depois estendeu a mão e tomou a faca a fim de matar o filho para o sacrifício. Mas o anjo do Senhor gritou-lhe do céu: “Abraão! Abraão!” Ele respondeu: “Aqui estou!” E o anjo disse: “Não estendas a mão contra o menino e não lhe faças mal algum. Agora sei que temes a Deus, pois não me recusaste teu único filho”. Abraão ergueu os olhos e viu um carneiro preso pelos chifres num espinheiro. Pegou o carneiro e ofereceu-o em holocausto no lugar de seu filho. Abraão passou a chamar aquele lugar “O Senhor providenciará”. Hoje se diz: “No monte em que o Senhor aparece”.38

38 BÍBLIA SAGRADA, ed. CNBB, 2007, p. 34.

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Esse é o acontecimento sobre o qual debruça Kierkegaard, na tentativa, quase que inútil, de compreender a grandeza de Abraão. Para o autor a existência humana só adquire sentido à medida que o Indivíduo toma consciência da eternidade e percebe o vínculo sagrado que cinge a humanidade39. Nesse sentido, a fé passa, então, a ser o vínculo de união, de relação entre o homem e Deus. Porém, a questão aqui é no sentido de que a fé supera tudo que é humano, tudo que é finito, em virtude do infinito, que por sua vez é incerto, de modo que ela não é senão o absurdo, e é justamente, quando o absurdo é atingido que a fé acontece.

Pela fé Abrão abandonou a terra de seus maiores e foi estrangeiro na terra prometida, abandonou uma coisa, a sua razão terrestre, por outra, a fé; se refletisse no absurdo da viagem, nunca teria partido. (KIERKEGAARD, 1979, p. 118) A fé é isso, é suspensão da razão, é superação

da reflexão, é acreditar quando não se há razões para crer, é perseverar quando não se chega a lugar nenhum, é ter esperança quando as possibilidades são mínimas, é renunciar a tudo que é humano em

39 Diferentemente de seus contemporâneos, Kierkegaard transfere a causa do sentido da vida para a esfera do transcendente. Sartre, por exemplo, afirma que a existência tem sentido à medida que o homem opta por alguma coisa, ou seja, faz escolhas. Nietzsche, por sua vez defende que para conseguir uma existência verdadeira basta seguir a voz da consciência que diz constantemente: torna-te aquilo que és. Faze sempre o que quiseres; mas sê desde logo daqueles que podem querer! Cf. GILES, 1975, p. 29.

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vista da possibilidade do infinito, é acreditar pelo absurdo e abandonar todo o humano cálculo; o que, certamente, causa muita dor, pois no caso de Abraão tudo estava perdido. Setenta anos de fiel expectativa para tão curta alegria, tudo então ia se perder, deveria dizer adeus a tudo quanto amava. Apesar de tudo, Abraão acreditou para essa vida, porque a fé é uma crença para essa vida não para uma vida futura.

Assim diz o autor: Se a sua fé reportasse para uma vida futura ter-se-ia, com facilidade, despojado de tudo, para sair prontamente dum mundo a que já não pertencia. Mas não era desta a fé de Abraão, se acaso isso é fé. A bem dizer não se trata aí de fé, [...]. (KIERKEGAARD, 1979, p. 12)

Abraão não acreditou que um dia fosse ditoso

no céu, mas que seria cumulado de alegrias na terra, acreditou sem jamais duvidar, acreditou no absurdo e nunca se antecipou em súplicas, alegre e corajosamente, pleno de confiança; apressou-se como quem vai para uma festa e, de madrugada, avança para o local designado, na montanha de Morija. Aos olhos puramente humanos a atitude de Abraão é incompreensível, o que justifica seu silêncio, ele não comunicou nem a Sara, nem a Eliezer, tão pouco a Isaac, pois afinal, quem o compreenderia? Caminhou em silêncio, olhos fixos no chão e durante três dias permaneceu firme, pois, de outro modo, se comunicasse, se pedisse opinião, se partilhasse certamente teria mudado de ideia, o que significa dizer que a atitude de fé é individual, é subjetiva, é silenciosa; o Indivíduo e Deus apenas.

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Vejamos, a seguir, como Kierkegaard nos apresenta esse fato:

Abraão guardou, pois, silêncio; não falou a Sara, a Eliezer, nem a Isaac, desprezou as três instâncias morais porque a ética não tinha, para ele, mais alta expressão que a vida em família. (KIERKEGAARD, 1979, p. 178)

Outro aspecto importante a ser destacado é o

fato de que a fé, ao mesmo tempo em que leva o Indivíduo a transpor tudo que é finito, justifica a ação do mesmo atribuindo-lhe novo significado, isto é, se olharmos a atitude de Abraão apenas pela ótica da moralidade, veremos a brutalidade de ter querido matar o próprio filho, de outro modo, se olharmos numa perspectiva da fé, veremos que Abrão quis sacrificá-lo. O que isso quer dizer? Quer dizer que um mesmo ato pode ter significados diferentes, pois no segundo caso sua atitude era em vista de algo, isto é, de um bem que ele acreditava e julgava ser superior a tudo.

Vejamos como o autor nos apresenta esse problema:

Quando, na verdade, se suprime a fé, reduzindo-a a zero, resta só o fato brutal de Abraão ter querido matar o filho, conduta bem fácil de imitar por quem quer que não possua a fé – entendo eu por fé o que torna difícil o sacrifício. (KIERKEGAARD, 1979, p. 125)

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Quanto à questão moral40, é o amor que Abraão sente por Isaac que faz com que seu ato não seja criminoso e sim um sacrifício, que segundo o próprio termo, significa abrir mão daquilo que lhe é mais valioso, renunciar, privar-se de algo precioso.

Segundo o filósofo, a moral é representada pelo geral41, ou seja, um estado de vida em que o Indivíduo cumpre com suas tarefas, engaja-se no dever cotidiano, exerce uma função, busca edificar sua personalidade em bases sólidas, busca relacionar-se consigo mesmo, enfim compromete-se com a existência. Contudo essa moralidade possui o seu telos42 em si mesma, isto é, repousa em si mesma sem nada exterior que seja o seu fim, sendo ela

40 ABBAGNANO, op. cit., 2000, p. 682. “Este adjetivo tem, em primeiro lugar, os dois significados correspondentes aos do substantivo moral: 1º atinente à doutrina ética, 2º atinente à conduta e, portanto, suscetível de avaliação moral, especialmente de avaliação moral positiva. Assim não só se fala de atitude moral para indicar uma atitude moralmente valorável, mas também coisas positivamente valoráveis, ou seja, boas. Em inglês, francês e italiano, esse adjetivo depois passou a ter o significado genérico de ‘espiritual’, que ainda conserva em certas expressões. Hegel lembrava este significado com referência ao francês; ele ainda persiste, por exemplo, na expressão ‘ciências morais’, que são as ‘ciências do espírito’. 41 Ibid., 1979, p. 484. “Essa palavra foi introduzida no uso moderno pelo empirismo inglês que por meio dela designou o resultado de uma operação de abstração; por isso, é algo diferente de universal, interpretado como natureza originária ou forma substancial.” Em Kierkegaard significa um estado de vida, por exemplo, o matrimônio, onde o existente faz escolhas, assume uma posição social, busca constituir sua personalidade na vida em sociedade. 42. Ibid., 1979. p. 943. “Este termo foi criado por Wolff para indicar “a parte da filosofia natural que explica os fins das coisas” (Log.,1728, Disc. Prael.,§ 85). O mesmo que finalismo”.

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mesma telos de tudo o que lhe é exterior. O Indivíduo nesse estado tem como tarefa principal despojar-se de sua individualidade para alcançar a generalidade. De outro modo é a fé. Por meio dela o Indivíduo se coloca acima do geral, numa condição superior a ele e busca, numa esfera transcendental, um fim para suas ações.

A fé é justamente aquele paradoxo segundo o qual o Indivíduo se encontra como tal acima do geral, sobre ele debruçado (não em situação inferior, pelo contrário, sendo-lhe superior) e sempre de tal maneira que, note-se, é o Indivíduo quem, depois de ter estado como tal subordinado ao geral, alcança ser agora, graças ao geral, o Indivíduo, e como tal superior a este; de maneira que o Indivíduo como tal encontra-se numa relação absoluta com o absoluto.43

É assim que Kierkegaard caracteriza a fé,

como esse paradoxo, inacessível ao pensamento, superior à razão, inexplicável e se assim não for não se trata de fé. E Abraão viveu autenticamente sua fé, de modo que suspendeu tudo que pertence à esfera material, finita, tudo que está relacionado ao geral; desse modo, também a moralidade, não se subordinou as normas éticas e morais, pois havia realizado o salto, não só tomou consciência de sua eternidade, como fez uma escolha absoluta por ela, o que implica superar a tudo que o prende nesse mundo e ao mesmo tempo permanecer no mundo.

Abraão move-se em nome do absurdo que, por sua vez, é estar como Indivíduo acima do geral; é

43 KIERKEGAARD, op. cit., 1979, p. 142.

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absurdo porque não há garantia de absolutamente nada, ora se houvesse uma certeza não seria necessário a fé, por isso sua atitude é louvável, pois mesmo sem compreender e sem haver nada que garantisse a recompensa de sua ação ele creu. Do ponto de vista moral, sua situação para com Isaac simplifica-se dizendo que o pai deve amar o seu filho mais do que a si próprio. Por isso a fé exige esse “ir além do ético”, pois se Abraão refletisse sobre o que determina a ética jamais teria se proposto a sacrificar o filho, nisso consiste a diferença entre Abraão e o herói trágico44, o último permanece na esfera moral, muito diferente é o caso de Abraão, pelo seu ato ultrapassou toda a esfera da moral, pois tem para além de sua ação um telos que suspende tudo que pertença a essa esfera.

Abraão torna-se grande não por uma virtude moral, mas, por uma virtude estritamente pessoal. Por amor de Deus e, da mesma forma por amor de si mesmo, Abraão se propôs ao sacrifício. Por amor de Deus, porque este lhe exige uma prova de fé, e por amor de si mesmo, quando aceita dar a prova. Essa prova pode ser entendida também como uma tentação, mas não no sentido comum, que é vista como algo que pretende desviar o Indivíduo do seu dever, mas no caso de Abraão a tentação é a moral

44 Expressão utilizada por Kierkegaard para identificar o esteta, em contrapartida está o Cavaleiro da fé que representa o Indivíduo no estádio religioso. Cf. KIERKEGAARD, 1979, p. 156. “O herói trágico rapidamente terminou o combate; realizou o movimento infinito e agora encontra a segurança no geral. Pelo contrário, o cavaleiro da fé sofre uma constante prova, a cada momento tem uma possibilidade de regressar, arrependendo-se ao seio do geral, e essa possibilidade tanto pode ser crise como verdade”.

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que pretende impedi-lo de realizar a vontade de Deus, desse modo, o dever é a expressão da vontade de Deus.

Com isso, vemos que uma vida autêntica consiste em viver o finito segundo as regras do infinito; em outras palavras, significa ser reprovado pelo mundo, mas ao mesmo tempo cumprir a vontade de Deus, pois não se trata de uma ação em vista de ser honrado e homenageado nesse mundo; se assim fosse bastaria se valer do que determina a ética: que um pai deve amar o próprio filho mais que a si mesmo, e sacrificar a si próprio e poupar a vida do filho. Com essa atitude certamente Abraão teria arrancado elogios, homenagens póstumas e seria lembrado por muitos, contudo, nada teria de diferente, não seria ele o pai da fé, mas pelo contrário, em nome do absurdo e em vista do absoluto rompeu com o mundo e, numa atitude individual, ousou ir além.

A fé exige do indivíduo uma oposição ao geral, de modo a levá-lo a uma relação absoluta com o absoluto, superando tudo que é mundano sem esperar dele reconhecimento, não precisa da admiração do mundo, é ao mesmo tempo incompreensível, de modo que só ao Indivíduo cabe realizá-la. A moralidade é o geral. Viver o geral, como o próprio termo pressupõe é viver como todo mundo, assumir a existência, fazer escolhas, assumir compromissos, viver a temporalidade segundo suas normas e regras.

A fé, pelo contrário é este paradoxo onde o interior é superior ao exterior, há uma interioridade incomensurável em relação à exterioridade e, para atingi-la, é necessário primeiro que o Indivíduo tenha se esgotado na infinitude; por isso é mais exigente e

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ao mesmo tempo mais nobre. Cumprir o que determina as leis desse mundo que, no mais das vezes, são aplicadas com igual validade a todos, é simples, pois não exigem uma escolha radical, um rompimento; trata de um movimento natural, agora a fé não, ela implica romper com uma estrutura e isso certamente não é fácil.

O paradoxo da fé consiste, portanto, em que o Indivíduo é superior ao geral, afirma o filósofo; de modo que o mesmo determina a sua relação com o geral tomando como referência o absoluto e não a relação com o absoluto em referência ao geral; nesse caso o absoluto é algo externo, enquanto que no outro é parte integrante da existência. Porém, não significa dizer que a moral deva ser abolida. Vejamos:

De qualquer modo não se segue daí que a moral deva ser abolida, mas recebe uma expressão muito diferente, a do paradoxo, de forma que, por exemplo, o amor para com Deus pode levar o cavaleiro da fé a dar ao seu amor para com o próximo a expressão contrária do que, do ponto de vista moral, é o dever.45

Dessa maneira, não se suspende a moral, mas

atribui-se a ela novo sentido, por amor a Deus, o Indivíduo age com o seu próximo, muitas vezes de maneira contrária ao que manda a moral, como é o caso de Abraão que, ao romper com a moral que determina amar o próprio filho, manifestou seu amor para com Deus por meio de sua obediência, mesmo que isso seja absurdo, por exemplo, sacrificar o único filho.

45 KIERKEGAARD, op. cit., 1979, p. 151.

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Por outro lado, a fé é também uma atitude egoísta. É algo realizado em favor de si próprio e, ao mesmo tempo, é a expressão do mais absoluto abandono, atua por amor de Deus e é incompreensível. É egoísta porque sua recompensa é individual. Abraão foi posto à prova; logo, era somente ele que interessava a Deus naquele momento. Contudo, para isso era necessária a prova de fidelidade que se daria por meio do sacrifício de Isaac, porém, o mérito é unicamente de Abraão.

A pessoa de Isaac é uma eventualidade, de modo que só seu pai demonstrou a Deus sua dignidade e sua fidelidade e, ao mesmo tempo, só ele recebeu a recompensa que era ter o filho de volta. É expressão do mais absoluto abandono no sentido de que não se trata de algo concreto, de algo certo, mas de um infinito de possibilidades no qual o Indivíduo aposta sem poder prever as consequências; Abraão não sabia que teria o filho de volta, nem ao menos se era Deus mesmo que pedia o sacrifício, podia ser uma voz enganadora, de um ser maligno, mas ele acreditou, teve fé, nos mostrando que a fé, no seu mais profundo sentido, é crer quando não se tem razões para crer, por isso é absurdo; a fé deve ser incondicional, do contrário não se trata de fé, quando se condiciona ou então busca razões para crer, isso não é atitude de fé. A fé é incompreensível, pois ela começa exatamente onde termina a razão, isso quer dizer que, em se tratando de fé, não se buscam explicações, é quando se esgotam as possibilidades de compreensão que se recorre à fé, acreditar por acreditar apenas.

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Poderíamos perguntar: há um dever absoluto para com Deus?46 Há, no sentido que Ele exige o amor absoluto de cada Indivíduo. Esse dever absoluto é o que o leva a realizar o que a moral proibiria como fez Abraão: em vista do dever para com Deus, suspendeu a moral e se propôs a sacrificar o próprio filho.

A existência autêntica47, portanto, se dá quando o Indivíduo assume exclusivamente o dever

46 O termo dever é empregado aqui no sentido de observância exclusiva ao que determina a ordem divina, ou seja, agir conforme a vontade de Deus, mesmo que isso pareça absurdo, como é o caso de Abraão que foi submetido ao sacrifício do filho Isaac. 47 ABBAGNANO, op. cit., 1979, p. 95. “Termo empregado por Jaspers (ao lado do termo inautêntico, simétrico e oposto) para indicar o ser que é próprio do homem, em contraposição à perda de si mesmo ou de sua própria natureza, que é inautenticidade. ‘O autêntico’, diz Jaspers, ‘é o mais profundo, em contraposição ao mais superficial; por exemplo, o que toca o fundo de toda a existência psíquica contra o que lhe aflora à epiderme, e que dura contra o que é momentâneo, o que cresceu e se desenvolveu com a própria pessoa contra o que a pessoa escolheu ou imitou’. Heidegger expressou em outros termos a mesma oposição: ‘Precisamente porque o Ser-aí (isto é, o homem) é essencialmente a sua possibilidade, esse ente pode, no seu ser, escolher-se e conquistar-se ou perder-se, ou seja, não se conquistar ou conquistar-se só aparentemente’. A possibilidade própria do Ser-aí é a morte: por isso, ‘O Ser-aí é autenticamente ele mesmo só no isolamento originário da decisão tácita e votada à angústia’. Por outro lado, a existência inautêntica é caracterizada pela tagarelice, pela curiosidade e pelo equívoco, que constituem o modo de ser cotidiano, impessoal do homem e representam, portanto, uma decadência do ser em relação a si mesmo. Deve-se, porém, advertir que a distinção e a oposição entre autenticidade e inautenticidade não implicam nenhuma valorização preferencial. A inautenticidade faz parte da estrutura do ser tanto quanto a autenticidade. ‘O

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para com Deus, mesmo quando isso lhe seja doloroso demais, como por exemplo, sacrificar um filho. Se olharmos a atitude de Abraão com um olhar puramente moral, podemos afirmar que ele odeia o filho, porque, como bem sabemos, a norma moral consiste em amar o filho mais que a si mesmo, contudo, se assim fosse, se ele odiasse mesmo Isaac, certamente Deus não pediria o sacrifício, porque é esse amor que ele sente pelo filho que faz de seu ato um sacrifício. “É somente no instante em que o seu ato está em contradição absoluta com o seu sentimento, que ele sacrifica Isaac” (KIEKEGAARD, 1979, p. 154).

Nisso consiste a diferença entre o dever pelo dever, que a moral defende, e o dever para com Deus que a fé justifica. A primeira consiste apenas no fato natural de que o pai deve amar o filho, enquanto que na segunda é o amor que o pai sente pelo filho que, comparado ao amor para com Deus, deve ser superado em nome da fé.

A fé é ainda, uma renúncia ao geral em vista de converter-se em Indivíduo. É um caminho solitário, estreito, isolado, fora do geral. É loucura para os homens, exige um esforço constante, pois, diferente do herói trágico que possui repouso no geral, aqui o absoluto é a garantia, que por sua vez é incerto, portanto, absurdo; é o Indivíduo, absoluta e

estado de decadência do Ser-aí não deve ser entendido como uma queda de um ‘estado original’ mais puro e mais alto. De algo semelhante não só temos nenhuma experimentação ôntica, como nem mesmo o caminho de uma possível interpretação ontológica’. Com o sentido análogo ao de Jaspers e de Heidegger, as duas palavras têm sido usadas com freqüência na filosofia contemporânea”.

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unicamente o Indivíduo; essa é sua terrível situação, não há no que se apoiar, não há certeza, tudo é possibilidade, “se vive na solidão do universo, jamais ouve voz humana, avança sozinho com sua terrível responsabilidade” (KIERKEGAARD, 1979, p. 158).

O cavaleiro da fé, isto é, aquele que a vive autenticamente sua fé, não encontra outro apoio senão em si próprio, sofre por não ser compreendido, a sua dor é a sua segurança, ignora tudo que é vão, vive o martírio da incompreensão. Esse “tornar-se Indivíduo” o coloca numa posição acima do geral, portanto, da moral, onde a sua relação absoluta com o absoluto exige somente que ele assuma o dever para com Deus. Essa relação absoluta de que fala Kierkegaard é justamente isso, colocar-se enquanto Indivíduo diante da singularidade de Deus, apenas ele e Deus, sem nenhuma interferência, sem nenhuma ação nem intermediação exterior.48

Esse salto além do ético que é exigido do cavaleiro da fé é uma atitude individual, como vimos, e incompreensível. Em Abraão, vemos o modelo

48Essa afirmação expressa o descontentamento de Kierkegaard com o cristianismo institucionalizado e sua defesa de que a relação do indivíduo com Deus é singular, ou seja, dispensa intermediações. Quanto ao cristianismo vemos que: Cf. REALE, 1991, p. 238. “Na opinião de Kierkegaard, o contraste entre cristianismo e cristandade estabelecida é claro. ‘O cristianismo é de uma seriedade tremenda: é nesta vida que se decide a tua eternidade (...) Ser cristão é sê-lo como espírito, é a inquietude mais elevada do espírito, é a impaciência da eternidade, é temor e tremor contínuo, aguçados pelo fato de encontrar-se nesse mundo perverso que crucifica o amor e abalado de estremecimento pela prestação de contas final, quando o Senhor e Mestre retornará para julgar se os cristãos foram fiéis’. Entretanto, depois de mil e oitocentos anos de cristianismo, ‘tudo se tornou superficialidade na cristandade atual”.

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dessa conduta, pois ele guardou o silêncio, não comunicou a ninguém, nem a Sara, nem a Eliezer, nem tão pouco a Isaac, desprezou as estâncias da moral e da ética, pois ele se encontrava em relação absoluta com o absoluto, ousou ser Indivíduo e se colocou diante de Deus, assumindo somente o que Ele determinou, de modo que a moral não significou para ele o estádio supremo, mas foi além, emigrou da esfera do geral.

Assim fala o filósofo:

Abraão guardou, pois, silêncio, não falou a Sara, a Eliezer, nem a Isaac, desprezou as três instâncias morais porque a ética não tinha, para ele, mais alta expressão que a vida em família. (KIERKEGAARD, 1979, p. 178)

Este silêncio, ao qual o cavaleiro da fé é

submetido, causa a tribulação e a angústia, não lhe cabe pronunciar seja o que for, porque não pode dizer o que sabe, não será compreendido, realiza apenas o movimento em direção ao absurdo, onde tudo é possível, mas nada é garantido.

Abraão cala-se [...] porque não pode falar; nesta impossibilidade residem a tribulação e a angústia. Porque, se não me posso fazer compreender, não falo, mesmo se discurso noite e dia sem interrupção. Tal é o caso de Abraão, e quando não pode dizê-la de maneira a fazer-se entender, não fala.49

49 KIERKEGAARD, op. cit., 1979, p. 179.

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Essa é a existência autêntica, em que tudo é suspenso em virtude do absoluto, em que para alcançá-lo é necessário antes migrar em direção a si próprio, autoconhecer-se, converter-se em Indivíduo para assim estabelecer uma relação absoluta com Deus. O instrumento para tal conquista é a fé, por meio dela se chega ao absurdo das possibilidades, por ela escolhe renunciar, por ela aceita ser si mesmo, também por ela torna-se livre em relação a tudo e a todos. Responde única e exclusivamente à ordem divina, estabelece uma ruptura com os outros homens e com a moral.

É uma relação da subjetividade com o absoluto, estimulada pelo arrependimento e alimentada pela fé, essa ruptura com o mundo causa dor e solidão, mas ao mesmo tempo traz a alegria de tudo possuir, pois pela renúncia se conquista novamente o que se renunciou. É exatamente a vida de fé que constitui a forma verdadeiramente autêntica da existência finita, vista como encontro do Indivíduo com a singularidade de Deus.

Dessa forma, se a pergunta a respeito do que torna a existência humana autêntica foi o que nos impulsionou a realizar essa pesquisa, aqui vemos o ápice do nosso trabalho, de modo que já podemos apreender o que, ao ver de Kierkegaard, garante a autenticidade da existência. E como o autor aponta, essa busca não é uma tarefa fácil, pelo contrário, é árdua, vemos que exige um longo processo, como que degraus a serem lentamente transpostos e, ao mesmo tempo em que é um movimento em direção ao transcendente,50 é também em direção a si

50 ABBAGNANO, op. cit., 1979, p. 970. “Esse termo foi usado com dois significados diferentes: 1º estado ou condição do

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mesmo, isto é, primeiro ousa ser Indivíduo, absolutamente Indivíduo, para assim migrar em direção ao Absoluto que é Deus.

Só assim conseguirá então, o cavaleiro da fé, dar sentido à sua vida, tornar autêntica a sua existência, que não é senão uma existência para Deus, onde Ele suspende tudo que pertence à moral, à ética, ao social, enfim, é o mesmo que ascender em direção ao eterno, mas permanecer no finito, ou seja, antecipa na existência o que será na eternidade.

Essa é a existência autêntica tão desejada pelo homem. Se aceitamos a fé, como Abraão, então a autêntica vida religiosa acontece porque o princípio moral que está na esfera do finito entra em conflito com a ordem divina. Contudo, como o próprio Kierkegaard nos diz, não houve neste mundo quem soube à medida de Abraão realizar esse movimento,

princípio divino, do ser alem de tudo, de toda a experiência humana (enquanto experiência de coisas) ou do próprio ser; 2º ato de estabelecer uma relação que exclua a unificação ou a identificação dos termos. No primeiro sentido, esse termo vincula-se a concepção neoplatônica de divindade. Platão já dissera que o bem, como princípio supremo de tudo o que é, comparável como tal ao sol que dá vida às coisas e as torna visíveis, está além da substancia. [...] No segundo significado, transcendência é o ato de se estabelecer uma relação, sem que esta signifique unidade ou identidade de seus termos, mas sim garantindo com a própria relação, a sua alteridade. Esse conceito também tem origem religiosa e neoplatônica. [...] Num trecho famoso, Santo Agostinho dizia: ‘Se achares mutável a tua natureza, ‘transcende-te a ti mesmo’, e acrescentava: ‘Lembra-te de que, ao te transcenderes a ti mesmo, estás transcendendo uma alma racional e que, portanto, deves visar ao ponto do qual provém a luz da razão.” AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião; o cuidado devido aos mortos. Trad. Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 2002. (Patrística; 19). Cap. 39, § 72.

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o máximo que se chegou foi à resignação eterna, isto é, uma contínua renúncia. Mas a fé não é só renunciar, é ir além, é conquistar por meio do absurdo o objeto renunciado. É estabelecer com o divino uma relação individual, singular, pessoal, como veremos no tópico a seguir, onde o objetivo será analisar como se dá a relação do Indivíduo com Deus.

Poderíamos perguntar então: para se ter fé é necessário sacrificar o próprio filho, como fez Abraão? Certamente não se trata disso, o que Kierkegaard almejou, ao tomar Abrão como exemplo, é demonstrar a radicalidade da fé que, no caso citado, expressa-se no sacrifício, mas este é o caso específico de Abraão, o que não quer dizer que é uma regra. Desse modo, o que devemos tomar como certo é que o Indivíduo, no último estádio da existência, deve, em nome da fé e por meio dela, obedecer unicamente a ordem divina, seja ela qual for e mesmo que, esta, choque-se com o que determina as normas e regras desse mundo.

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3.3 O ENCONTRO DO INDIVÍDUO COM A SINGULARIDADE DE DEUS

A fé, como vimos, é a chave de acesso ao

Absoluto que é Deus, de modo que exige uma ruptura com o mundo, com os homens e com a moral. Essa ruptura acarreta, simultaneamente, na solidão;51 de modo que essa relação do Indivíduo com Deus não é senão uma relação da subjetividade com o absoluto, isto é, uma relação individual, privada que não permite agrupar-se nem mesmo com aqueles que fizeram a mesma opção. O Indivíduo, por sua vez, é uma síntese do infinito e do finito, do eterno e do temporal, da liberdade e da necessidade; uma vez que não é totalmente autossuficiente, só poderá conseguir auto-realizar-se relacionando com o eterno. Se não consegue tal relacionamento, cai no desespero. O religioso, portanto, é aquele que possui o domínio da solidão.

51ABBAGNANO, op. cit., 1979, p. 918. “Isolamento ou busca de melhor comunicação. No primeiro sentido, a solidão é a situação do sábio, que, tradicionalmente, é autárquico e por isso se isola na sua perfeição. Afora esse ideal, o isolamento é um fato patológico: é a impossibilidade de comunicação associada a todas as formas de loucura. Em sentido próprio, contudo, a solidão não é isolamento, mas busca de formas diferentes e superiores de comunicação: não dispensa os laços com o ambiente e a vida cotidiana, a não ser em vista de outros laços com homens do passado e do futuro, com os quais seja possível uma forma nova e mais fecunda de comunicação. O fato de a solidão dispensar esses laços é, pois, uma tentativa de libertar-se deles e focar disponível para outras relações sociais”.

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Solidão, esta, não só causada pela ruptura com o mundo e com tudo que a ele pertence, mas também pelo fato de que, em se tratando de fé, não encontrará no mundo nenhuma confirmação ou aprovação de seus atos, o que quer dizer que aquele que optou pela fé, certamente conviverá com as constantes reprovações por parte dos homens e com as mesmas apreensões que viveu Abraão a caminho da montanha de Morija.

Vemos, portanto, que a condição do crente em sua relação com Deus, não é uma condição de bem-estar e de felicidade, mas de incertezas, de temor e tremor, condição terrível, somada pelo isolamento do mundo e às contradições entre ambos. Daí a única certeza que se tem é a angústia. A fé é uma certeza angustiada, pelo fato de que o homem deformou sua relação natural com Deus pelo pecado, contudo ele sente tanto mais atraído por Ele, quanto maiores forem seus erros e sua culpa. Desse modo, para Kierkegaard a relação do Indivíduo com o absoluto se dá atrelada ao erro e à culpa.

Assim como a fé, a relação do Indivíduo com Deus também é um paradoxo, pois há no homem uma sede absoluta de verdade que o move em direção ao transcendente, mas de outro lado, há uma tendência muito forte ao pecado, inerente à sua natureza; essa realidade segundo o autor constitui um escândalo cuja expressão mais contundente é o cristianismo, Cristo sofre e morre como homem, mas fala como Deus, ou seja, ele é a mais pura expressão dessas duas realidades presentes na existência humana. Outro exemplo que podemos tomar é a situação onde o homem pede a Deus para enviar-lhe a fé, enquanto essa prece é ela própria um dom de Deus, um desejo

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pela verdade e, ao mesmo tempo, é sua fragilidade que o move a isso.

Para Kierkegaard o cristianismo é esse escândalo, se assim não fosse não poderia ser objeto de fé. E quanto ao cristianismo institucionalizado, será ele uma forma de entrar em relação com Deus? Não, segundo o autor esse cristianismo abandonou o escândalo em nome de uma religião que só é vivida aos domingos, um cristianismo mundano do qual só se participa do banco de uma capela, dispensa compromisso, renúncia, angústia, completamente oposto ao Cristo na Cruz, ensanguentado, insultado, despido, humilhado. A fé não tem importância, o que conta é a moral, como se deve agir. Para o autor, o cristianismo institucionalizado permanece no estádio ético, e jamais alcançará a profundidade infinita do escândalo, do paradoxo, do absurdo.

O instante, categoria importantíssima na filosofia de Kierkegaard, é o ponto de encontro privilegiado entre o tempo e a eternidade, o Indivíduo e Deus. De um lado está no tempo, enquanto divisão entre o passado e o futuro, de outro é aquele ponto a partir do qual algo se fixa para sempre, assinala a ruptura com o temporal e marca o encontro com o Infinito. Vejamos como Thomas Giles apresenta esse tema:

É em função do próprio paradoxo da existência que a subjetividade, o aprofundamento na existência resulta no isolamento do Indivíduo perante Deus e, nesse instante, o eterno e o temporal, o bem absoluto e o Indivíduo culpado unem-se no paradoxo.52

52 GILES, op. cit., 1975, p. 21.

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A relação do homem com Deus é também uma

relação de incertezas. A fé não é garantia de absolutamente nada, não garante ao crente que ele será tocado pela graça, que ele atingirá o Absoluto. O homem está em um estado de pecado e se lança no oceano das incertezas que alimentam suas angústias. Contudo, é nessa situação de pecado, incerteza, angústia que o Indivíduo entra em relação absoluta com o Absoluto, de modo que, afirma Kierkegaard, é pelo pecado que cada homem estabelece uma relação única e pessoal com Deus, de modo que essa relação é de tal modo subjetiva que ninguém pode se pôr no meu lugar diante de Deus.

Segundo o autor, a lei da existência que, por seu turno é graça, se resume em: “Põe-te como Indivíduo em relação com Deus”. Nisso consiste o drama do crente por que esse isolamento que a fé requer é para o homem imensamente angustiante, causa dor, sofrimento, medo, dúvida; são justamente esses sentimentos que fazem com que o Indivíduo prefira estabelecer relação com os outros homens; portanto, prefira permanecer na esfera do geral a pôr-se em relação com Deus; para o autor esse tipo de escolha expressa um verdadeiro desperdício da existência.

Portanto, o homem deve ter coragem de se pôr, como Indivíduo em relação com Deus, ou seja, antes em relação com Deus e não antes em relação com o outros. Contudo, vale lembrar que nessa relação evidencia-se também a infinita e abissal diferença qualitativa entre Deus e o homem, o homem

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não pode absolutamente nada, é Deus quem pode tudo, quem dá tudo, inclusive quem possibilita ao homem crer, isso é a graça, que segundo ele, é o princípio do cristianismo.

É precisamente esse princípio que torna autêntica a existência, pois, quando o Indivíduo se coloca diante de Deus, não há mais espaço para os fingimentos, os disfarces e as ilusões, é preciso desfazer-se das vestimentas as quais estamos acostumados, não só no âmbito da exterioridade, mas muito mais no âmbito da interioridade, do pensamento, das ideias, do egoísmo. Aqui está o coração da pesquisa, o cerne de nosso trabalho, pois justifica o porquê a existência autêntica se dá no encontro do Indivíduo com o Absoluto. A resposta é porque diante do absoluto não há o que esconder, não há como fingir, nem disfarçar, o Indivíduo é forçado ser ele mesmo, seja quem for, nisso consiste ser autêntico, ser si mesmo, com todas as suas misérias e imperfeições, diante daquele que tudo sabe, tudo pode e tudo vê.

Nessa perspectiva, o autor se levanta contra o cristianismo de sua época dizendo que depois de mil e oitocentos anos tudo se tornou superficialidade. Isso porque o cristianismo se preocupou em facilitar a vida, a temporalidade, fugindo de seu projeto original. Segundo ele, a preocupação da maioria é viver uma vida tranquila e atravessar o mundo com felicidade, essa é a razão pela qual toda a cristandade é uma farsa, onde os seus pastores não passam de canalhas que, ao invés de satisfazer a eternidade, ocupam-se unicamente em satisfazer a temporalidade.

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Desse modo, o existir religiosamente significa transformar radicalmente a própria existência, renunciar a conciliar a relação com Deus com os interesses temporais, não aceitar a mediação; o homem religioso vive a finitude, mas não tem sua vida nela, coloca a sua vida inteiramente nas mãos do Absoluto e aceita dele tanto a alegria quanto a dor; e o sofrimento é, de certo modo, a expressão mais concreta da verdadeira atitude religiosa, pois denota a insatisfação do Indivíduo em relação a todo bem finito.

É pela fé que o Indivíduo estabelece a relação com o Divino, ela tem por função dispensar todas as formas de mediação universal, de modo que é o próprio Indivíduo que deve sustentar um relacionamento absoluto com o absoluto, onde ele é o ponto de encontro entre o tempo e a eternidade; e, ao mesmo tempo, também ele é um paradoxo, pois sem se lançar no abismo do tempo, não é possível qualquer contato com o eterno.

Agora, considerados todos esses apontamentos acerca da relação do Indivíduo com Deus, vejamos como se deu essa relação entre Abraão e o Absoluto. Partiremos, de início, das versões apresentadas por Kierkegaard, do acontecimento da montanha de Morija; e em primeiro lugar queremos chamar a atenção para o seguinte: “caminharam em silêncio durante três dias”; “caminharam em silêncio”; “Em silêncio preparou o holocausto [...]”; “em silêncio puxou da faca; [...]”; “[...] Abraão se achou sozinho em Morija” (KIERKEGAARD, 1979, p. 114-115).

Nas duas primeiras versões apresentadas por Kierkegaard no início da obra Temor e tremor vemos

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o destaque para a questão do silêncio, que certamente confirma aquilo que já vem sendo discutido, onde a relação do Indivíduo com Deus se dá no isolamento, no silêncio, na individualidade, na subjetividade apenas.

Portanto Abraão não falou. Dele apenas foi conservada uma única frase, a única resposta dada a Isaac que prova suficientemente que nada dissera anteriormente. Isaac pergunta ao pai onde está o cordeiro para o sacrifício. Abraão responde: Meu filho, Deus prover-se-á ele próprio do cordeiro para o holocausto.53

Um segundo aspecto que também foi

abordado anteriormente e que veremos a confirmação em Abraão, é a questão da incompreensão que cerca o cavaleiro da fé, na primeira versão apresentada por Kierkegaard, vemos:

Mas Isaac não podia compreendê-lo; a sua alma não lograva elevar-se tão alto; [...]. Mas Isaac não podia compreendê-lo. [...]. Isaac não o compreendia. (KIERKEGAARD, 1979, p. 114)

Aqui se evidencia a afirmação de que a atitude

de fé é incompreensível, tanto à razão como também pelas pessoas que o cercam, de modo que acarreta no isolamento e na angústia por não poder falar o que sabe e não ser compreendido. Talvez por que se falasse, certamente seria influenciado por outros e não realizaria o movimento da fé. A relação com Deus é, portanto, uma relação de solidão, amargura e

53 KIERKEGAARD, op. cit., 1979, p. 180.

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tristezas. Abraão provou essa realidade, conheceu a tristeza e a amargura, contudo não caiu em lamentos, mas alimentou a esperança, acreditou e guardou firmemente a promessa.

Acreditar é a condição essencial para se chegar até Deus, Abraão acreditou no absurdo, pois tal acontecimento não faz parte do humano cálculo, não pode ser aceito no Âmbito da razão, a fé é mais do que simplesmente refletir sobre si e perceber suas misérias, mas refletir-se no próprio Deus, o que significa abandonar as reflexões e lançar-se em direção ao absurdo. No prefácio de Torrieri Guimarães à obra Temor e tremor vemos: “Abraão, como Indivíduo, está sozinho diante do eterno. Não lhe podem valer a sua sabedoria, a sua hierarquia social, nem os ritos religiosos existentes [...]”.54

A relação do Indivíduo com Deus se dá, portanto, quando ele suspende o geral e parte em direção ao Absoluto, o que fez Abraão; ele se lançou como Indivíduo em direção ao Absoluto, não pensou, não refletiu, não comunicou a ninguém da sua decisão, pois a fé exige esse isolamento do mundo, de modo que o Indivíduo não pode fazer-se compreender por ninguém, pois o seu ato contraria tudo que humanamente é aceito.

54 KIERKEGAARD, Soren. Temor e tremor. Tradução de Torrieri Guimarães. (Universidade de Bolso) – Ediouro. p. 9.

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3.3.1 O existir tem sentido enquanto nele está a presença divina

Se a fé é o meio pelo qual se garante a

autenticidade da existência é, ao mesmo tempo, condição essencial para se estabelecer uma relação absoluta com o absoluto, nesse sentido podemos perceber que inerente à fé está a consciência eterna, de modo que é a fé somada à noção de divindade que atribui o sentido à nossa existência. Kierkegaard aponta para essa afirmação da seguinte forma:

Se o homem não possuísse consciência eterna, se um poder selvagem e efervescente produtor de tudo, grandioso e fútil, no torvelinho das paixões obscuras, existisse só no fundo de todas as coisas; se sob elas se escondesse infinito vazio que nada pudesse encher, que seria da vida senão desespero?55

A fé é o pressuposto para uma existência

autêntica, como bem vimos no decorrer da pesquisa, que é o título desse trabalho. Contudo ela sozinha não basta. É necessário, antes, o objeto da fé que, no caso em apreço, é Deus, o Absoluto. Isso significa dizer que antes de realizar o movimento da fé, o Indivíduo precisa descobrir o Absoluto, isto é, tomar consciência da eternidade em detrimento da temporalidade. Há, portanto, uma consciência da eternidade que faz com que o homem busque nela conciliar a sua existência a fim de torná-la autêntica, de modo que não há nada de concreto que prove que ela exista, por isso a necessidade da fé para atingi-la,

55 KIERKEGAARD, op. cit., 1979, p. 117.

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ou seja, é um produto que se encontra apenas na consciência de cada Indivíduo.

Abraão acreditou, mas sua crença não era vazia de significado, não acreditou simplesmente por acreditar. Acreditou em um Absoluto, de modo que a fé por ela mesma não garante o sentido da existência. Ela é apenas pressuposto para tal, que se realiza plenamente, quando possuindo a consciência eterna, o existente inicia sua constante busca em direção ao absoluto, a fim de superar o estado de angústia e desespero que a infinidade de possibilidades e a necessidade da escolha o submete. É a partir dessa consciência então, que ele decide saltar em direção ao absoluto, ou seja, se a existência autêntica é a relação absoluta com o Absoluto por meio da fé, é necessário antes haver um objeto de fé, que nesse caso é Deus.

Há, inerente à condição humana, uma consciência da eternidade que faz com que tudo se renove, garante que as coisas não se extingam. Pela fé o Absoluto entra na temporalidade, por ela também o Indivíduo age, não conforme as regras da moral ou da ética, mas conforme determina a ordem divina.

Por isso é que a presença divina confere sentido à existência, pois é em consideração a ela que o Indivíduo age. É a presença divina, consciência eterna, que faz com que o Indivíduo realize o salto: salta além do estético, salta além do ético e se coloca como Indivíduo diante da singularidade de Deus. Sem a presença divina o existir humano não tem sentido. Limita-se ao dever ser, ao âmbito prático. Contudo a partir da consciência da eternidade toda a sua ação passa a ser em vista de uma causa transcendente, de modo que também ele transcende o infinito que, por

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sua vez, o distancia da verdadeira existência e vive conforme determina o absoluto.

Vejamos na citação a seguir o que disse Torrieri Guimarães no prefácio da obra Temor e tremor a esse respeito:

Entretanto, o desígnio da existência, o fim para o qual existimos, a manifestação, permanece no enigmático, e o existir apenas tem algum sentido enquanto nele está a presença divina; esse enigma não pode ser resolvido pela reflexão, e nem existe mediação possível entre a existência e o ser absoluto. Aí está a dramática relação da existência com a divindade [...].56

Assim, percorrido o longo caminho, passando

pelo estádio ético, em que o Indivíduo vive na imediatilidade da existência, sem escolher nem ser si mesmo, tão pouco compromissos, passando ao estádio ético, que de certo modo, possui o seu grau de importância; pois representa um passo em direção ao religioso e consiste numa vida de valores, mesmo que temporais, onde o Indivíduo assume a responsabilidade da existência, faz escolhas e assume as suas consequências; chegamos enfim ao estádio religioso e com ele a conclusão a respeito do sentido da vida, que não é senão, um encontro com Deus. Mas não só, além disso, é um encontro que gera compromisso, não com a temporalidade, mas com o infinito, no sentido de assumir o dever para com Deus, obedecê-lo unicamente, mesmo que pareça

56 KIERKEGAARD, Soren. Temor e tremor. Tradução de Torrieri Guimarães. (Universidade de Bolso) – Ediouro. p. 8.

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absurdo; transpor a tudo que é humano, a tudo que é temporal, a tudo que é passível de explicações, bem como objeto da razão, e lançar-se no infinito de possibilidades que consiste o absurdo da fé; assim, pode-se dizer que tal Indivíduo encontrou o sentido de sua vida, realizou o movimento da fé, assumiu sua existência e foi além, colocou-se diante de Deus tal como ele é, sem fingimentos e sem máscaras, só ele e Deus; assumiu uma posição na existência e ao mesmo tempo diante de Deus, suspendeu sua razão para conquistar o Absoluto, nisso consiste o ato de crer.

Dito isto, chegamos ao fim de nosso árduo e, ao mesmo tempo, prazeroso trabalho que, sem dúvida, não só enriqueceu nossa dimensão intelectual, mas também acrescentou muito em nossa dimensão humana e religiosa; e, mesmo sendo tão exigente saltar para a fé, certamente a partir de agora a buscaremos com mais insistência.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS A novidade do pensamento de Kierkegaard

não está somente no fato de ser um grande defensor do Indivíduo e ter se levantado contra as tendências filosóficas que defendiam sistemas, como por exemplo, a de Hegel, mas, sobretudo, pelo fato de, em tempos modernos, retomar um tema já não muito lembrado pelos seus contemporâneos: a fé.

Kierkegaard se destacou por fazer um caminho totalmente inverso e resgatar a dimensão religiosa do homem em sua tarefa na busca pelo sentido da vida, para ele é na vida de fé que o Indivíduo constitui a forma verdadeiramente autêntica da existência finita. De fato, como bem sabemos, a sede por algo que atribua sentido à vida é algo muito presente e, se no século XIX atribuir à fé o pressuposto para uma existência autêntica já nos surpreende, quanto mais nos tempos em que vivemos onde valores como esse foram substituídos por outros de outras naturezas e importâncias.

Há quem diga que nunca se falou tanto em Deus, em religião, em fé como nos dias de hoje; de fato, temos que concordar, pois é visível a proliferação de denominações e seguimentos religiosos, a ponto de quase que a cada esquina haver um templo, mesmo que improvisado, e um pregador falando acerca das sagradas escrituras; também os meios de comunicação social, tais como o rádio, a TV e a internet abriram as portas para essas práticas, ampliando seus espaços de atuação. Contudo, também é fato que a fé nos dias de hoje já

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não é mais vista como um elemento constitutivo de uma existência autêntica, mas como instrumento para uma vida fácil, tranquila e feliz; de modo que o homem não busca na prática da fé um modo de vida autêntico, mas sim em outros meios, como por exemplo, o dinheiro, o poder e o reconhecimento. São muitos os que defendem e acreditam que a vida só tem sentido quando alcançamos certo equilíbrio financeiro, por isso é que as denominações que pregam a teologia da prosperidade estão cada vez mais atraindo seguidores, o que revela o quanto são superficiais as preocupações do homem atual.

Há outros ainda que dizem que há uma sede de Deus muito mais intensa no homem contemporâneo do que em tempos passados, realidade fácil de ser confirmada, basta olharmos as mesmas esquinas e seus templos e veremos assembleias cheias; basta saber cantar e falar bonito para arrastar multidões, o que significa dizer que há uma busca desenfreada pelo transcendente; no entanto, essa busca é vazia de sentido, pois fica na superficialidade, não ousa ir adiante, não se atreve a assumir compromissos, mas concebe uma fé que é apenas objeto de culto, tema de celebrações, conteúdo para shows e instrumento de alienação e exploração do povo mais simples.

Nessa perspectiva, temos que concordar com nosso autor que, ao se levantar contra o cristianismo institucionalizado, faz a seguinte afirmação:

Entretanto, depois de mil e oitocentos anos de cristianismo, tudo se tornou superficialidade na cristandade atual. E isso porque o cristianismo é visto como instrumento capaz de facilitar sempre mais a vida, a temporalidade no sentido mais trivial.

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Considerações finais 107

O que se quer é viver tranqüilo e atravessar o mundo em felicidade: essa é a razão por que toda a cristandade é disfarce, mas o cristianismo não existe em absoluto.57

Isso nos revela que, de fato, com a

institucionalização do cristianismo muito se perdeu de seu projeto original, acabando por se tornar instrumento de realização das mais pessoais intenções de uma grande parcela de pessoas mal intencionadas e de vocação incerta, com isso perdeu-se também o valor da fé, que no mais das vezes não passa de fachada para impor uma moralidade falsa e pesados fardos nos ombros dos menos instruídos, porém, não é essa a fé de que fala Kierkegaard, se é que isso pode ser chamado de fé, mas sim aquela em que o Indivíduo é capaz de transcender a tudo que é finito, humano, portanto, que pertença a esse mundo, e agir como determina a lei divina, mesmo que isso ocasione na reprovação por parte dos homens.

É, portanto, a partir dessa atitude que o indivíduo tornará autêntica a sua existência, pois diante de Deus não há espaço para fingimentos, é o Indivíduo tal qual ele é, com suas misérias e imperfeições, diferente do que estamos acostumados a ver por parte de alguns, uma fé que na verdade é mais um refúgio para esconder-se da condenação do mundo e viver de maneira que agrade os outros, muito distante do que ela realmente deveria ser, pressuposto para uma existência autêntica e ponto de encontro do Indivíduo com a singularidade de Deus.

57 REALE, op. cit., 1991, p. 238.

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Dessa forma vemos que é gritante a necessidade de reconstruirmos o significado da fé a partir de seus moldes originais, de modo a resgatar o seu valor primeiro a fim de que não seja mais um meio para realizações pessoais, nem refúgio para os que não assumem suas misérias, mas que seja um elo entre o mundo finito e o infinito, entre o profano e o sagrado, entre o humano e o divino, a fim de contribuir significativamente na busca pelo sentido da vida. Por outro lado, não podemos deixar de reconhecer o papel das instituições religiosas que, mesmo em alguns casos contribuindo para distorção do verdadeiro significado da fé, na sua grande maioria foi e é responsável por guardar e defender seu conteúdo, ou seja, se percebemos que a fé deve ser revista, também devemos concordar que não há outro modo eficaz para a sua propagação que não seja por meio das instituições, assim o convite é resgatar o verdadeiro significado da fé é utilizar das organizações religiosas para a sua efetivação.

Enfim, apontamos as causas e os efeitos e ousamos apresentar uma alternativa, contudo nosso objetivo consiste apenas em lançar o problema e colocar bases para uma reflexão acerca do sentido da existência, se este não lhes serve, encontrem vocês mesmos os instrumentos, só não desistam de buscar o fim para o qual existem.

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OS AUTORES:

Fernando Felix Rabelo, natural de Cornélio Procópio, PR,

é graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade

Católica de Maringá, PR; Bacharel em Teologia pela

Pontifícia Universidade Católica de Londrina, PR e pós-

graduando em Docência na Educação Superior pelo

Claretiano Centro Universitário. Atualmente reside em

Barretos, SP.

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Referências da parte II 115

José Francisco de Assis Dias, é Professor Adjunto da

UNIOESTE, Toledo-PR; professor do Mestrado em Gestão

do Conhecimento nas Organizações, na UNICESUMAR;

pesquisador do Grupo de Pesquisa “Educação e Gestão”

e do Grupo de Pesquisa “Ética e Política”, da UNIOESTE,

CCHS, Toledo-PR. Doutor em Direito Canônico pela

Pontifícia Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano,

Roma, Itália; Doutor em Filosofia também pela mesma

Pontifícia Universidade; Mestre em Direito Canônico

também pela mesma Pontifícia Universidade Urbaniana;

Mestre em Filosofia pela mesma Pontifícia Universidade;

Especialista em Docência no Ensino Superior pela

UNICESUMAR; Licenciado em Filosofia pela Universidade

de Passo Fundo – RS; Bacharel em Teologia pela

UNICESUMAR. Pesquisador do Instituto Cesumar de

Ciência, Tecnologia e Inovação (ICETI). E-mail:

[email protected]

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Referências da parte II 117

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